Zero - Ano XXXIII - 4ª ed. - Julho de 2014

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CURSO DE JORNALISMO DA UFSC - FLORIANÓPOLIS, JULHO DE 2014 - ANO XXXIII, NÚMERO 4

O homem pós-moderno

#EscravidãoDigital, #Machismo, #AmorLíquido, #Abandono, #ContraoRelógio, #ContraoRacismo, #Selfie, #TinderdaDepressão , julho de 2014


2 | EDITORIAL

Os dilemas contemporâneos

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edição do Zero que o leitor tem em mãos é a última escrita por esta turma de repórteres. No próximo semestre, a nova redação do Zero se compõe para mais um semestre e novas quatro edições. E não é por que estamos deixando o Zerinho que mudaríamos nossa proposta editorial. Mantivemos a proposta de fazer jornalismo com crítica social e análise - algo que, infelizmente, deveria ser um pleonasmo, mas não é. Fomos audaciosos e resolvemos discutir males contemporâneos, não cabendo, claro, a totalidade deles, o que nos pareceria impossível mensurar. Algumas de nossas chagas sociais como a descriminalização das drogas, a mobilidade urbana e a falta de moradia, no entanto, já ganharam destaque em edições anteriores neste semestre, como a violência, um dos nossos maiores desafios enquanto nação que se diz democrática. Desafio sentido na pele e retratado no texto da primeira edição que assumimos após o fatídico Levante do Bosque. Agora, mesmo depois de termos tratado de extensos problemas e temas delicados, não nos faltaram perguntas na hora de pensar quais seriam os males do homem pós-moderno, tema central desta edição. Não chegamos a um consenso e, também, acreditamos ser até irrelevante criar um ranking que ten-

OMBUDSMAN Nilson Lage

tasse medir tais mazelas. Da fome ao abandono, do machismo ao racismo, do lidar com a morte ao lidar com o sexo, do trabalho excessivo à busca por sossego, são temas relevantes e sua discussão se faz necessária. Seriam debates que poderiam ser levantados em diversos momentos, mas agora - quando o jornalismo como negócio está em crise, redações encolhem, profissionais tem de fazer menos render mais e fatores comerciais tendem a pesar mais do que princípios elementares da profissão -, torna-se ainda mais fundamental um resgate da função social do jornalista. Servir ao público, à democracia, aos direitos básicos da cidadania, sem amarras de anunciantes, financiadores ou investidores. É o que nos propomos e propusemos a fazer durante este semestre no Zero. É o que todo aquele que quer trabalhar na “melhor profissão do mundo”, como diria o mestre Gabo, deve buscar - seja veterano experiente na redação, foca recém-chegado ou mesmo o estudante universitário. Para balancear nossa pouca experiência, temos prazos maiores e inexistem as questões financeiras. No entanto, estas não podem ser desculpas para não fazer um jornalismo sério e comprometido. Nada pode ser. Uma ótima leitura!

NOTA DA REDAÇÃO PARTICIPE! Mande críticas, sugestões e comentários para: E-mail - zeroufsc@gmail.com Telefone - (48) 3721-4833 Facebook - /jornalzero Twitter - @zeroufsc Cartas - Departamento de Jornalismo - Centro de Comunicação e Expressão, UFSC, Trindade, Florianópolis (SC) - CEP: 88040-900

O leitor do Zero já pode acessar o conteúdo do jornal com interatividade, materiais extras e vídeos! É o Zero+, aplicativo desenvolvido como atividade de extensão do projeto “Jornalismo para Tablet’s”, da professora do curso de Jornalismo da UFSC, Rita Paulino, com a participação de bolsista e alunos voluntários. Para navegar pelo Zero+ basta enviar um e-mail para rcpauli@gmail.com solicitando o aplicativo.

Um jornal não se faz sozinho. Um jornal-laboratório – que da prática desafiadora faz brotar o aprendizado e a segurança para narrar o mundo – muito menos. E foi assim, juntando esforços, talentos e paixão que a quarta edição do Zero está impressa, pronta para ser consumida e criticada pelos seus leitores. Não menos empolgante, a edição que trata de alguns dos males e sinas do homem pósmoderno incomodou desde o primeiro dia em que o tema pairou nas discussões que chegariam à pauta final da edição. O desconforto era compreensível: como transformar assuntos tão dispersos em um tema central, coeso e coerente? Aliado a isso, a indissociável pressão do relógio assumiu uma dimensão ainda maior do que é: tínhamos menos tempo do que o habitual prazo para produzir a quarta edição e, ainda, a iminente proximidade com as férias, preocupando a distribuição/ circulação. Todos os fatores foram vencidos, um a um, em uma das daquelas contas que só o jornalismo permite fazer. O resultado é uma edição provocadora e atemporal, que inquieta e, principalmente, faz o homem refletir sobre sua condição enquanto ser social, político e interagente, em uma metamorfose que, mais uma vez, tentamos desnudar através do jornalismo.

A copa não linear A leitura atenta das matérias sobre a Copa do Mundo e seu entorno produzidas neste número do Zero permite que se conclua algo importante para um jornalismo de qualidade: a realidade não é linear. Como o jornalismo surgiu, no século XVII, associado ao movimento da burguesia para livrar-se da aliança compulsória com a nobreza, o projeto ideológico associado à atividade desde o início foi o combate ao Estado da época – seja a aristocracia como classe ou o absolutismo como política. Na ordem de coisas instituída pela democracia liberal, no século XIX, coube ao Estado, reconfigurado sob a hegemonia burguesa, desempenhar o papel de mediador nos conflitos no mundo do trabalho e nos confrontos étnicos, o que o manteve como alvo da imprensa. O mesmo espírito de contestação contagiou o pensamento revolucionário e as propostas reformistas que têm marcado os dois últimos séculos na sociedade ocidental – e, daí, por toda parte. Dessa perspectiva, seria função da imprensa, tal como da filosofia, mudar o mundo – nunca se soube bem com que meta, embora, pelo raciocínio dialético amparado nas utopias clássicas de Platão e Morus, Karl Marx, genial crítico do capitalismo, tenha imaginado uma sociedade pacífica e sem classes que recuperaria o universo fortemente idealizado das comunidades primitivas. Se a propaganda é um discurso a favor, o jornalismo seria um discurso contra. Nada disso mudou, fundamentalmente, quando o jornalismo se tornou atividade comercial competitiva e a mídia passou a pautar os temas de sua cobertura pensando em contentar público vasto e diferenciado, que se nivela na paixão pelas formas explícitas, reguladas (como o esporte) ou sublimadas (como o romance) de impulsos humanos básicos: agressividade, sexualidade, poder, posse e compaixão. No entanto, como se constata, o mundo não é linear, nem a verdade simples. Sociedades sem conflitos estão mortas e, quanto mais a engrenagem da História funciona, mais se atritam suas sensíveis peças móveis – as pessoas. Daí, a Copa do Mundo, que surpreendeu os visitantes pelo funcionamento perfeito de aeroportos, estádios, transportes urbanos e pela hospitalidade do povo de nossas cidades, foi também o espaço de conflitos que a reportagem colheu em flagrantes – todos eles verdadeiros, embora o contraste de uns com os outros contrarie a esperança que, no fundo, temos, de uma só resposta para todas as perguntas, uma orientação única, clara e decisiva para nossas escolhas. Não significa que o jornalismo deva ser imparcial ou neutro: isso é impossível, Mas exclui a adesão acrítica e entusiasmada ao discurso da fonte; deve considerar o contraditório – isto é, perceber que tanto o morador ameaçado de despejo para abertura de uma avenida tem fortes motivos para inquietar-se quanto o trabalhador que espera na fila pelo transporte está certo ao esperar que a avenida seja aberta. A objetividade, aí, pode-se materializar em um discurso (datado, de classe, até personalista, dependendo das circunstâncias) voltado para seu objeto, mas buscando ver o fato singular nos contextos particulares em que se insere e na universalidade do momento da narrativa. A injustiça não está no conflito, que é a essência da notícia, mas na solução que se dá a ele; a indignação deve ser guardada com certo resguardo. Como ensinava o repórter Joel Silveira, jornalista é o homem que vê a banda passar, não o que toca na banda; cabe a ele assistir ao desfile, testemunhá-lo, transmitir discursos em terceira pessoa e denunciar apenas o passista que tropeça, quando tropeça, ou a trompa que desafina, quando desafina.

Marcelo Barcelos, professor da disciplina

Com graduação em Letras, mestrado em Comunicação e doutorado em Linguística (todas as formações pela Universidade Federal do Rio de Janeiro), Nilson Lage é jornalista, teórico da área, ex-professor da UFSC e UFRJ e autor de diversos livros, como Ideologia e Técnica da Notícia, Linguagem Jornalística e Teoria e Técnica do Texto Jornalístico.

JORNAL LABORATÓRIO ZERO Ano XXXIII - Nº 4 - Julho de 2014 REPORTAGEM Amanda Simeone, Beatriz Nedel, Bianca Bertoli, Caio Spechoto, Fernanda Ferretti, Gabriel Shiozawa, Gabriela Damaceno, Janine Silva, Júlia Schutz, Luan Martendal, Luciana Paula Bonetti, Mateus Vargas, Murici Balbinot, Poliana Dallabrida, Rafael Gomes, Rafael Venuto, Raíssa Turci, Rosângela Menezes, Stefanie Damazio, Tainara Rosa FOTOGRAFIA Bianca Bertoli, Gabriel Shiozawa, Isadora Ruschel, Luan Martendal, Mariana Petry, Mateus Vargas, Rafael Venuto, Rosângela Menezes EDIÇÃO Bianca Bertoli, Caio Spechoto, Fernanda Ferretti, Gabriel Shiozawa, Géssica Silva, Isadora Ruschel, Júlia Schutz, Mariana Petry, Mateus Boaventura, Mateus Vargas, Raíssa Turci, Thaís Ferraz DIAGRAMAÇÃO Caio Spechoto, Gabriel Shiozawa, Géssica Silva, Janine Silva, Marianne Ternes, Tulio Kruse INFOGRAFIA Rosângela Menezes CAPA Tarik Assis PROFESSOR-RESPONSÁVEL Marcelo Barcelos MTb/SP 25041 MONITORIA Tulio Kruse IMPRESSÃO Gráfica Grafinorte TIRAGEM 5 mil exemplares DISTRIBUIÇÃO Nacional FECHAMENTO 18 de julho

Melhor Jornal Laboratório - I Prêmio Foca Sindicato dos Jornalistas de SC 2000

3º melhor Jornal-Laboratório do Brasil EXPOCOM 1994

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Melhor Peça Gráfica Set Universitário / PUCRS 1988, 1989, 1990, 1991, 1992 e 1998


3 Mateus Vargas /Zero

Artigo

Das fraturas do velho mundo, inventar um outro tempo

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omo é possível que um bilhão de pessoas ainda passem fome sistematicamente, enquanto tanta comida se desperdiça? Enquanto a gastronomia molecular fascina seguidores? Por que trabalhadores ainda se esfalfam em jornadas desgastantes e intermináveis, se há por todo lado miraculosa tecnologia a prometer menos esforço? Por que certa tecnologia aprisiona o trabalhador até em meio ao sono? Ou consome as energias de multidões em rede? Por que tantos sentem que é impossível algo como “ser feliz”? Anda cada vez mais estranho o mundo. A vida contemporânea – nas metrópoles, sobretudo – produz desequilíbrio em massa. A pós-modernidade – sociedade pós-industrial, era da informação, tempos hipermodernos, o que for – multiplica frustrações, enquanto expande desigualdades. Uma parte das causas é bem conhecida: a concentração de renda não para de aumentar. “Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois terços mais pobres têm acesso a apenas 6%. Em 1960, a renda apropriada pelos 20% mais ricos era setenta vezes o equivalente dos 20% mais pobres, em 1989 era cento e quarenta vezes. A concentração de renda é absolutamente escandalosa, e nos obriga de ver de frente tanto o problema ético, da injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas, como o problema econômico, pois estamos excluindo bilhões de pessoas que poderiam estar não só vivendo melhor, como contribuindo de forma mais ampla com a sua capacidade produtiva. Não haverá tranquilidade no planeta enquanto a economia for organizada em função de um terço da população mundial”, resumiram Ladislau Dowbor, Carlos Lopes e Ignacy Sachs. Outra parte das causas transcende a renda: o mundo deixa doentes ricos e pobres. O mesmo Estado que redistribui renda para enxugar o gelo da desigualdade estrutural, distribui às massas ansiolíticos e antidepressivos. Dopa multidões. Ricos e pobres acham normal perseguir o impossível – como tentar controlar os efeitos do tempo em suas vidas, sobre seus corpos. Mais frustração. “Nosso tempo está desnorteado”, disse Hamlet, na tradução de Millôr Fernandes. Numa crítica radical ao neoliberalismo, em que homenageou o espectro de Karl Marx, Jacques Derrida citou esse trecho da peça de Shakespeare. E atualizou:

“O mundo está fora dos eixos. Tudo, começando pelo tempo, parece desregulado, injusto ou desajustado”. Vinte anos depois do texto de Derrida, não temos mais controle, justiça ou ajustes; mas temos ao menos novas formas de combate. Há resistência espalhada por aí – ela existe onde quer que haja poder. Céticos quanto às chances de revolução, pouco dispostos ao embate sistemático contra o capitalismo, uns quantos sujeitos inventam astúcias antissistêmicas, soluções criativas para abrigar sociabilidades alternativas. Revoluções na vida privada, por gente disposta a demonstrar que é possível ser diferente – abandonar o consumismo, o individualismo, a exploração do outro. Não à toa, algumas dessas astúcias focam no uso do tempo: priorizar o que se gosta de fazer ou o convívio com quem se ama, em vez de acolher alegremente o sacrifício da vida em nome de qualquer trabalho. Uns topam vender a força de trabalho num tempo limitado, diferindo a alienação incontornável em práticas prazerosas. Criam seu próprio tempo – um tempo próprio. Outros fazem uso seletivo da tecnologia. Recusam-se a ostentar a vida privada. Abdicam de curtir ou ser curtidos. Preferem reforçar vínculos de presença com sujeitos de carne e osso. Ou escolhem o que alguns designariam como solidão. Desistem da metrópole plugada o tempo todo: desconectam-se, perseguem o simples. Cultivam o que comem, refugiam-se no mais seguro dos mundos. Outros, por fim, escrevem. Jornalistas – assim como cientistas, filósofos, artistas, místicos – tentam entender o mundo, traduzi-lo, narrá-lo, raramente com sucesso. “Maldita a sina que me fez nascer um dia pra consertá-lo!”, dizia o mesmo Hamlet. Talvez o melhor que os jornalistas possam fazer por esse mundo grávido de mudança, por enquanto, seja mesmo perguntar – como fizeram os garotos do Zero, nesta edição.

Desigualdade: economia gira em torno de apenas 1/3 da população de todo o planeta

Jacques Mick Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC, jornalista, publicava no Zero entre 1989 e 1991

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4 Falsa eternidade

Brasileiro não quer parecer velho

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luta contra o envelhecimento e a busca pela beleza são preceitos constantemente perseguidos e considerados importantes atualmente. Assim como o processo de “ficar velho” é natural, ele nos aproxima de outro fator intrínseco à vida: a morte. Para se distanciarem da idade que possuem e aparentarem o máximo de juventude possível, pessoas têm investido quantidades significativas de tempo e dinheiro em tratamentos estéticos e cirurgias plásticas. No Brasil, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), foram realizadas mais de 900 mil cirurgias plásticas em 2011, o que significa que o país tem o segundo maior número de procedimentos realizados, atrás apenas dos Estados Unidos. Dados de 2009 da SBCP apontam que 73% das cirurgias plásticas realizadas naquele ano tiveram finalidade estética – as com fins reparadores foram minoria. A cirurgia mais feita é a lipoaspiração, seguida do aumento de mamas, abdominoplastia (remoção do excesso de gordura e pele do abdômen), blefaroplastia (rejuvenescimento de pálpebras) e redução de mamas. Lara Maciel é médica. Graduou-se e fez residência em Cirurgia Geral na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, e em Cirurgia Plástica no Hospital Federal de Ipanema, no Rio de Janeiro. Foi titulada especialista pela SBCP em 2009 e atua em Florianópolis desde então. Sua especialidade é em cirurgia plástica reparadora, remoção de tumores de pele, cirurgia plástica estética e procedimentos estéticos faciais minimamente invasivos. Lara atende principalmente mulheres, mas sua clientela masculina tem aumentado gradativamente – atualmente, 17% dos pacientes operados por ela são do sexo masculino. Em entrevista ao ZERO, a cirurgiã falou da relação entre a cirurgia plástica e sentimentos como angústia e felicidade, e como a junção desses fatores com a baixa autoestima leva à obsessão pela correção estética e pela busca da “beleza exterior”. ZERO: Por que você escolheu esse ramo da medicina? Lara Maciel: Primeiramente, por gostar de trabalhos manuais, sinto satisfação quando estou trabalhando com as mãos, consigo me concentrar no que estou fazendo e não ficar cansada com o trabalho, que é muito dinâmico e particular. Para

Mateus Vargas/Zero

Com 900 mil cirurgias realizadas em 2011, país é segundo no ranking mundial das plásticas, atrás apenas dos EUA

Em 2009, 73% dos procedimentos tiveram fins estéticos. A cirurgia mais feita hoje é a lipoaspiração

mim, a cirurgia plástica é o ramo que associa o trabalho manual a um trabalho mental, que é o senso estético, a noção geométrica e a sensibilidade para enxergar as proporções corporais e faciais. Quais são as principais queixas dos pacientes que vêm ao seu consultório? LM: Quanto às mulheres, são principalmente queixas em relação ao acúmulo de gorduras e insatisfação com o tamanho ou flacidez dos seios. Quanto aos homens, as

“A palavra-chave para definir o sucesso de uma plástica é a felicidade” principais queixas são flacidez nas pálpebras, acúmulo de gorduras no abdômen e glândulas mamárias salientes. Toda cirurgia plástica tem o intuito de corrigir alguma alteração corporal ou facial que gera incômo-

do ou atrapalha na realização de atividades do dia-a-dia. Muitas pessoas podem recuperar a autoestima quando realizam essas correções, se estiverem psicologicamente saudáveis. O que você apontaria como a maior causa do boom de cirurgias plásticas realizadas de uns anos para cá? LM: São diversos fatores. Primeiramente, porque hoje os custos estão muito mais acessíveis do que antigamente. Segundo, porque o avanço da

Estabelecimentos investem em serviços para público masculino Uma maior dedicação aos cuidados com a aparência geralmente é associada às mulheres, o que faz com que os homens sintam vergonha na hora de se submeter a tratamentos estéticos. Para deixá-los mais à vontade com os cuidados de beleza e proporcionar um momento de relaxamento aos clientes, uma barbearia localizada no bairro Santa Mônica foca o atendimento apenas no público masculino. Os serviços mais tradicionais, de corte de cabelo e barba, ainda são os mais procurados. Procedimentos como depilação,

limpeza de pele, drenagem linfática, clareamento de manchas e lipoescultura também estão disponíveis e fazem sucesso entre os clientes. Também são oferecidos serviços de bar e video game para entretenimento. Esse diferencial no atendimento rende um faturamento que gira em torno de R$ 55 mil por mês e uma média de 60 clientes por dia, com um total de 15 mil já atendidos. Dentre os cinco mil clientes ativos que o salão especializado possui, está o empresário Cláudio Newlands, 46 anos, que frequenta

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o local duas vezes por semana para fazer retoques nos cabelos e barba. Para ele, o cuidado não se trata de vaidade, mas sim de uma questão de higiene e de se apresentar bem no trabalho. Sua preocupação com a aparência não vai muito além disso: o único cuidado que tem em casa é de usar produtos de uma linha especial para homens no tratamento dos cabelos. Em relação às rugas, brinca que foi privilegiado com uma boa genética e conclui: “Quem fica paranóico com a idade aparecendo do lado de fora, é porque já está velho por dentro.”

medicina e a tecnologia proporcionaram a realização de cirurgias menos invasivas e com mais segurança. Mas também acredito que, hoje em dia, as pessoas estão muito mais preocupadas com a aparência e, de uma forma inconsciente, necessitam estar dentro dos “padrões de beleza” ditados pela mídia. Muitas vezes, uma insatisfação constante com a aparência é gerada pela falta de conhecimento dos verdadeiros valores do ser humano, o que faz com que as pessoas fiquem na busca incessante pela “beleza” exterior. Esse desconhecimento do real valor que temos faz com que seja necessário se transformar por fora, para estar de acordo com o que a sociedade atual exige. Vou citar uma frase de um colega e amigo cirurgião plástico que é muito adequada nos dias atuais: “A palavra-chave para definir o sucesso de uma plástica é a felicidade. Se a cirurgia traz aceitação e autoestima, o objetivo foi alcançado. Mas os recursos estéticos não são uma solução para os vazios emocionais. É preciso curar as angústias antes de realizar a mudança física. Caso contrário, de nada vai adiantar.” Quando um paciente quer realizar uma cirurgia que, de certa forma, irá agredir o corpo para “consertar” algo que não necessita de um reparo tão específico, como você reage? Realiza mesmo sem uma necessidade explícita? LM: Todo procedimento cirúrgico acarreta alterações no organismo, como formação de inchaço, reação inflamatória, etc. Desta forma, o paciente deve estar ciente de que uma cirurgia não é um procedimento isento de complicações, e que as correções sempre vão gerar uma reação do organismo, por mais leve e temporária que seja. Não realizo uma cirurgia sem necessidade, mas procuro avaliar os reais motivos pelos quais a pessoa me procurou, e se tem possibilidade de melhora com a cirurgia. Quase todas as alterações são passíveis de correção, e o que pode parecer desnecessário para alguns, pode causar muito incômodo para outros. Portanto, é muito importante a conversa e a sinceridade de ambas as partes na consulta. Normalmente, sigo a regra de não fazer nos outros o procedimento que eu não faria em mim. Amanda Simeone amandasimeone1@gmail.com Fernanda Ferretti fernandaluisaf@gmail.com


Gabriel Shiozawa /Zer

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Distúrbio

Depressão atinge 350 milhões de pessoas, mas segue como tabu Pacientes relatam preconceito e vergonha de se expor difíceis de estabelecer. “Um caso de depressão pode ter diversas causas sejam orgânicas, psicossociais, perda de sentido na vida e desesperança. Dados mostram que as pessoas com histórico familiar positivo ou divorciadas também têm maior risco para se deprimirem”. Ainda de acordo com o médico, doenças hepáticas, neurológicas ou crônicas, como câncer, AIDS e hipotireoidismo, são também fatores de risco que podem desencadear a depressão. Pessoas com a enfermidade tendem a correr riscos maiores de infarto, derrame e alterações físico-químicas inflamatórias. “A depressão ocorre em sua maioria nas mulheres, o dobro em relação aos homens, com início mais frequente dos 30 aos 35 anos de idade. Nos jovens, o mais comum é ocorrer o Transtorno Bipolar, na faixa dos 20 anos, caracterizado pela alternância de períodos de depressão com euforia”, explica o médico. A empresária Maria Terezinha

Segundo a OMS, a doença deve se tornar a mais comum do mundo até 2030

Rotinas estressantes Longa jornada de trabalho, trânsito parado, correria diária. Tudo isso está interferindo diretamente no estilo e na qualidade de vida das pessoas e, muitas vezes, causando o estresse. Embora seja psicológico, ele afeta igualmente a saúde física da população, tendo como principais sintomas: dores de cabeça, esquecimentos, mau humor, ansiedade, músculos doloridos e batimentos cardíacos acelerados. O estresse é uma reação que o organismo apresenta diante de uma situação de tensão, emoção intensa ou uma situação atípica. Em busca de sensações como leveza e relaxamento é que 45% dos brasileiros estão aderindo ao uso de medicamentos que aliviam o estresse. Os dados são da Proteste que revelou também que o Brasil é um dos líderes mundiais no consumo de remédios como o Clonazepam, conhecido no mercado como Rivotril. É o segundo remédio mais vendido no país e perde apenas para o Microvlar, anticoncepcional com consumo atrelado à distribuição pelo governo via Sistema Único de Saúde (SUS). Esse medicamento não deve ser usado sem acompanhamento médio e por muito tempo porque pode causar síndrome de dependência.

Aguiar Petry, 42 anos, manifestou a doença no verão de 2009 quando o filho quase se afogou durante um banho de mar. “Nesse dia fiquei muito nervosa, e dali em diante comecei a dormir mal, ter pesadelos e dor de cabeça. Também comecei a me alimentar mal e ficar fraca. Tive infecção urinária e alergias”. A empresária conta que foi difícil descobrir que estava com depressão. “Fui a um clínico geral, fiz exames que a princípio não constatavam nada. Mais tarde, sabendo que alguma coisa estava errada, procurei um neurologista e realizei outros exames, incluindo da cabeça, que também deram bons. Eu ficava desesperada porque sabia que estava doente.” Sem um diagnóstico e com crises de choro frequentes aliados a falta de vontade para se alimentar, tomar banho ou sair de casa, Petry percebeu que estava com depressão. Projeções da OMS apontam que a doença deve se tornar a mais comum em todo o mundo até 2030 e provocar gastos com tratamentos que podem chegar a US$ 16,3 bilhões entre 2011 e 2030. Entretanto, o status de comum ainda está longe de ser aplicado socialmente. De acordo com o médico João Paulo Martins, “as pessoas com quadro de depressão sentem vergonha de expor o problema até para parentes justamente porque ainda há muito preconceito, devido aos termos pejorativos que são usados e a falta de conhecimento das doenças psiquiátricas”. Maria Petry tentou esconder da família que estava enfrentando a doença. “Fingia que estava bem, mas era mentira. Tentava esconder e logo que descobri que estava com o problema procurei ajuda médica para não ter um impacto muito forte na família”. Enquanto sofria sozinha, conta que chegou a planejar suicídio. “É muito triste, a doença é psicológica e os exames não acusam nada. Quando temos, chegamos a pensar em morrer, sumir, desaparecer. Ficava planejando uma forma de me matar. Só não morri mesmo porque me apeguei muito a Deus.” Com acompanhamento de um psiquiatra, a empresária se tratou com o auxílio do antidepressivo Fluo, julho de 2014

Gastos com tratamento podem chegar a US$ 16,3 bilhões, segundo OMS Mariana Petry /Zero

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nfrentar momentos de tristeza, perder o apetite, o sono e a libido ou apresentar sensação de cansaço são algumas das alterações que podem ocorrer em nosso organismo quando enfrentamos abalos emocionais. Para 350 milhões de pessoas em todo o mundo esses episódios tornam-se um problema sério de saúde que além de sofrimento, pode causar sentimentos recorrentes de dor, desesperança e baixa autoestima, além de reclusão e perda de desempenho escolar e laboral. Os dados são do Plano de Ação para a Saúde Mental 2013-2020 da Organização Mundial da Saúde (OMS), que aponta a depressão como uma das principais causas de incapacidade e mortalidade, a maioria proveniente de suicídio - são cerca de um milhão de mortes por ano. De acordo com o médico do Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (Ipq-SC), João Paulo de Oliveira Branco Martins, as causas da depressão são multifatoriais e geralmente

Maria começou a sofrer com a doença em 2009 e segue se tratando

xetina. Segundo ela, os efeitos colaterais do remédio causavam tremor no corpo e náuseas, fazendo com que parasse de usar o medicamento com frequência. Conforme o médico, os antidepressivos não causam dependência e as alterações corporais ocorrem dentro de um período de adequação do organismo à medicação, que dura pelo menos de três a quatro semanas. João Paulo Martins explica que existem outras formas de tratamento como Psicoterapia, Estimulação Magnética Transcraniana e Eletroconvulsoterapia. Pouco mais de cinco anos após desenvolver a doença, Maria Petry admite que ainda não está totalmente curada. “Hoje sei que não estou curada, estou sendo medicada. Tenho consciência que preciso dos remédios psiquiátricos. Já tentei parar várias

vezes, mas não consigo. Quando paro, a depressão volta.” O psiquiatra João Paulo Martins diz que a maior parte dos casos de depressão quando tratados de forma correta são reversíveis e uma parcela pequena não volta ao que era antes, muitas vezes devido à presença de outras doenças clínicas ou patologias psiquiátricas. “Quando o paciente deixa de tomar o remédio indicado, dependendo de cada caso, as chances de retorno da depressão são de 50%. Na segunda parada, aumentam para 70%, e 90% em um terceiro episódio” conclui o médico.

Luan Martendal luanmartendal@gmail.com Stefanie Damazio stefanie.jor@gmail.com


6 O Fim

Morte como forma de ganhar a vida Maioria não encara bem fim da existência, mas há quem trabalhe na área e não se afete são dos sentimentos e elaboração do luto. “Há uma dificuldade social e cultural para falar sobre o tema.” Ela assume dois paradigmas. O primeiro, de que há uma banalização da morte pela televisão e pelo cinema e uma situação de vulnerabilidade devido a violência. E o segundo, de que temos dificuldade em falar sobre o assunto e “temos medo do processo de morrer”. De camisa xadrez e barba desenhada, Pedro conta quando encarou a morte de frente, desta vez longe do trabalho. Foi em 2012, quando a imunidade baixa pelo excesso de trabalho e má alimentação fez com que contraísse meningite bacteriana, de sintomas mais graves e de difícil recuperação. Ficou internado por 30 dias. O médico achou que ele poderia morrer em determinada etapa da doença. “Foi no período em que tive muita dor de cabeça e não conseguia abrir os olhos.” Pedro diz que não se preocupou com o incidente. “Se acontecesse, aconteceu. Não ficava pensando nisso.” Além de ele próprio ser contido, diz que a família também é - tanto que o pai o visitou apenas cinco vezes durante todo o tempo de internação. Fotos: Mateus Vargas/Zero

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os momentos em que não está surfando, tocando bateria, ou buscando a filha no colégio, Pedro Bonassis preenche sua rotina percorrendo a Grande Florianópolis em busca de cadáveres vítimas de morte violenta, desde assassinatos até acidentes domésticos. Após ser aprovado no concurso para o Instituto Geral de Perícias (IGP), as cenas de crimes ganharam espaço na sua vida e as noites animando bares com sua banda foram ficando para trás. Na maior parte do tempo de trabalho escreve relatórios sobre os casos, mas quando surge uma demanda vai a campo recolher evidências no local da morte. A experiência e a prática fazem com que não se comova facilmente com as ocorrências e considere a emoção até prejudicial. “Eu não gosto. Quando tem algum familiar chorando por perto e ninguém o tira dali, chega a atrapalhar.” Ele atua no setor de criminalística, onde são analisadas impressões digitais, munições e, claro, defuntos. Em alguns casos, chega a trabalhar com corpos em estado avançado de putrefação. Para Pedro, a morte é um acaso. Ele diz que as pessoas falam coisas como “Deus quis” ou “era a hora dele”, como se responsabilizassem a figura divina pela tragédia, e excluíssem o fato de que, muitas vezes, a culpa é da própria vítima. E depois que morre, deixa de ser a pessoa, vira um corpo qualquer. “Tem perito aqui que não encosta em corpo, não quer nem ver gente morta.” Semanas antes da entrada no IGP, sua mãe teve um acidente vascular cerebral em casa. Único na residência, o filho pegou o carro, furou sinaleiras, atravessou a ponte e levou-a para a emergência. Ela não resistiu. Morreu praticamente em seus braços. Lidar com a morte da mãe foi uma surpresa. Sofreu, chorou no enterro, mas depois foi “tranquilo” e conseguiu suportar bem a perda, diferente do irmão que “não pode ouvir o nome dela sem se emocionar”. A adaptação a ausência materna ocorreu naturalmente; conta que chorou mais em um final de relacionamento. “Sempre fui muito fechado.” Diferente dele, o restante da população ainda tem dificuldade em lidar com a morte. “Ela pode ser considerada um tabu, mas temos observado uma maior necessidade das pessoas para falarem do assunto”, explica Maria Julia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da USP. Ela diz que na atualidade, temos uma interdição para expres-

“Seja gordo ou magro, rico ou pobre, o Neymar ou um mendigo, vai feder igual” “Ele mantinha certa distância, mas ficava de longe torcendo.” A doença mudou seu comportamento, e a reação mais profunda foi a perda da vaidade. Abandonou o hábito de vestir-se bem, emagreceu e passou a ficar mais em casa. Após a recuperação resgatou antigos costumes, mas muita coisa mudou. Somada à chegada da filha pequena e do pai para morar em sua casa, a experiência fez com que houvesse alterações nos horários e na alimentação. “Passei a dormir mais cedo, comer melhor, e também a dar importância

Para especialista da USP, ao mesmo tempo em que há uma banalização da morte, “temos medo do processo de morrer”

a coisas mais simples do dia a dia”. Começou ainda a fazer menos coisas radicais e atuar dentro de um “limite”. Quando se fala em aceitação, Pedro cita Kafka. O autor austríaco reflete acerca da atribuição da própria responsabilidade para cada coisa. Ou seja, de uma maneira geral, caberia a cada um o entendimento e a culpa sobre a morte. “Se um cara troca a fiação elétrica da casa desprotegido, ele está pedindo para morrer”, exemplifica. Não possui nenhuma religião. Diz que, se suas explicações são excludentes, então todas estão erradas. Mas sustenta uma expectativa para a morte baseado nas próprias convicções. Sabe que o corpo ficará por aqui, já que “seja gordo ou magro, rico ou pobre, o Neymar ou um mendigo, depois de morto vai feder igual” e sobre o pós-morte, nada de eternidade ou salvação, apenas “uma forte impressão de que não vai acontecer nada”.

Murici Balbinot muricibalbinot@gmail.com

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7 Vida e mídia

Vale quase tudo por alguma curtida

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m “bom dia” na hora do café da manhã, a selfie com uma frase motivadora, um registro do prato de comida na hora do almoço, a foto em frente ao espelho na academia... Todo mundo tem um amigo que age dessa forma no Facebook ou no Instagram e, se não tem, corre o risco de ser essa pessoa. Expor acontecimentos do dia a dia nas redes sociais virou hábito comum entre os usuários de internet. E não é pra menos - passamos muito tempo conectados. O Brasil é o país com maior engajamento em redes sociais, de acordo com uma pesquisa realizada pela comScore, empresa especialista em análise de internet, e divulgada no mês de maio. De acordo com o estudo, os usuários brasileiros gastaram em média 13 horas durante o mês de Fevereiro com redes sociais. E o Facebook foi campeão de audiência: do tempo que passamos nas redes sociais, 97,8% é no site criado por Mark Zuckeberg. Na era dos tablets e smartphones, não basta vivenciar o momento, é necessário registrar e compartilhar. Mas, de onde vem essa necessidade? Ana Brambilla, jornalista e pesquisadora de mídia sociais, diz que esse tipo de atitude é parte da nossa vontade de viver em sociedade. “O ser humano não vive só, é um ser gregário por natureza. O que as mídias sociais fazem é promover essa convivência entre a espécie de maneira mais intensa, constante e ubíqua.” E que comentários e curtidas são tão importantes quanto um elogio dado pessoalmente, mesmo que a maioria de nós pense que relações online sejam fracas e superficiais. “A neurolinguística já mostrou que nossas redes neurais ligadas às sensações não distinguem a ficção da realidade. Prova disso é a pornografia, inclusive offline, que pode levar o ser humano a um estado de excitação mesmo diante de um papel ou de uma tela - e não de outro ser humano”. Essas ações são reflexos de emoções e personalidades de cada usuáro, potencialmente influenciando na autoestima dos usuários. Quando as pessoas compartilham fotos ou pensamentos nas redes sociais esperam que seus amigos curtam aquela publicação. Se ninguém curtir, algo está errado. De uma forma, às vezes imperceptível, tornam-se reféns da opinião alheia. Para a bancária Franciane Tavares, 35, que possui um perfil no Facebook, postar acontecimentos diários na rede é “uma vontade de

Luan Martendal/Zero

Brasileiros gastaram, em média, 13 horas em redes sociais durante o mês de fevereiro

expor seus pensamentos e, ao mesmo tempo, estar disposto e propenso a escutar críticas”. Tavares diz que fica feliz em ver suas publicações curtidas por amigos. Pensamentos, fotos da filha de 1 ano, da comida e dos lugares que frequenta costumam receber uma média de 40 a 60 curtidas. Sua explicação para isso é a importância do que publica. “Posto coisas que provavelmente são de interesse de \ outras pessoas também”. A rede social mais utilizada por Tavares é o Foursquare. Só no período de janeiro de 2012 à abril de 2013, ela realizou chek-in em 1.110 estabelecimentos em Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Alagoas e Paraná, indicando bons restaurantes, bares, padarias, cinemas, teatros e pontos turísticos. Os registros só diminuíram após o nascimento de sua primeira filha. Em 2012, quando engravidou, atualizava seu Facebook diariamente com fotos da gestação, ultrasons, dicas de roupas para gestante e experiências da gravidez. Em abril de 2013, o parto cesariano foi filmado e transmitido ao vivo pela internet para um grupo de familiares e amigos. “Antes de ter a bebê, a maioria das minhas postagens era sobre alimentação saudável, dietas, etc. Agora a maioria são fotos são dela e do nosso cotidiano. Publico curiosidades que ela faz

e o seu desenvolvimento. Gosto de compartilhar minhas experiências”. Para a psicóloga Beatriz Gomes Molinos, que atende no Serviço de Atenção Psicológico (SAPSI) da UFSC, as mídias sociais são responsáveis por um novo comportamento social. “Na rede social, somos todos protagonistas das nossas estórias. O que é mostrado é a parte alegre da vida das pessoas. A intimidade continua, ela não é revelada, só as coisas boas. Os momentos infelizes ou desagradáveis não são publicados”. Ou seja, apesar da superexposição, ainda preferimos manter alguns aspectos de nossas vidas privados, sobretudo momentos dolorosos. É como se as atualizações de status fossem um jogo onde o jogador com a maior quantidade de postagens positivas vence, enquanto desabafos e tristezas vão contra as regras. Quem acompanha essa ‘eterna felicidade’ nos registros compartilhados nas redes sociais pode passar a ter uma reação negativa sobre sua própria vida, não entendendo o motivo de ter que enfrentar situações estressantes, mesmo que elas sejam normais e presentes na vida de todos. O auxiliar administrativo Maciel Silva, de 24 anos, mantém um perfil no Facebook com frequentes atualizações e concorda que essa distorção da realidade nas redes sociais é comum. , julho de 2014

“Muitos querem mostrar e provar para os outros aquilo que não são e não têm na vida real.” Se hoje nos expomos demais, a tendência é que passemos a ser cada vais mais seletos em relação a que tipos de registros compartilhamos e, principalmente, para quem. “Há uma preocupação natural do adolescente em preservar sua intimidade, seu relacionamento com amigos, de preferência, longe dos olhares dos pais, professores, adultos. As redes sociais facilitam a comunicação nesse grupo, mas também os expõe com muita facilidade”, diz Ana Brambilla. O número de redes sociais segmentadas está em crescimento. Um exemplo é o Linkedin, usado para contatos profissionais, que ultrapassou o Twitter e hoje é a segunda rede social mais usada no Brasil de acordo com o relatório da comScore. Aplicativos como Whatsapp e Snapchat também são alternativas para quem prefere interagir com um círculo de amigos mais fechado.

Na internet, prefirimos ocultar aspectos negativos de nossas vidas privadas

“Na rede social, somos todos protagonistas das nossas próprias estórias”

Janine Silva janinesilva.tj@gmail.com Tainara Rosa tainara.silvarosa@gmail.com


Gabriel Shiozawa/Zer

8 Sem teto

Na sarjeta em Florianópolis Abrigos municipais atendem menos de um quinto dos moradores de rua POP foi inaugurado, a Secretaria de Assistência Social previa a manutenção de oito oficinas aos moradores de rua. Aulas de música e informática são as únicas ofertadas atualmente. “É legal quando colocam uns filmes aí pra gente ver”, responde Gigante sobre as oficinas. Depois das cinco da tarde, Gigante volta para o espaço já “conquistado” no centro. O problema maior, segundo o morador, ainda é com a polícia. “Várias vezes falaram que é pra gente vazar do centro”. A situação melhorou depois de um tête-à-tête com o secretário da assistência social meses atrás. “Falei com ele, contei o que tava acontecendo e que não queria mais isso não”. Sem sentar, descruzar os braços ou tirar o capuz da cabeça, Gigante responde com um dar de ombros quando perguntado sobre o futuro. “Sem pressa, deixa o barco andar”, aconselha. “Pra dormir, tenho rua; pra comer e tomar banho, tenho aqui”. O morador diz preferir a rua às ordens e exigências do Abrigo Municipal – próximo passo, depois de passar pela triagem do Centro POP, no caminho da reinserção social. A capacidade de atendimento diário no Centro POP é de até 150 pessoas. Dos abrigos municipais, 50. Cerca de 430 vivem nas vias da capital catarinense. A Rua Victor Meirelles, viela de ladrilhos transversal à Praça XV, é o endereço do abrigo mantido pela prefeitura. Além desse, outra instituição, no Jardim Atlântico, também recebe moradores de rua encaminhados pelo Centro POP. Ambos só aceitam homens. O único abrigo feminino – para moradoras de rua e vítimas de violência doméstica - fica no bairro Agronômica. A casa, com 19 cômodos, tem capacidade para abrigar até 20 moradores. Depois de passar pela lista de espera controlada pelo Centro POP, o morador pode ficar por até seis meses no abrigo. Há casos de moradores que, sem condições de viver sozinhos ou sem ter para onde ir, ficam por mais tempo no abrigo. Para permanecer no local, é preciso seguir um plano individual de atividades, com a especificação de curso, trabalho e outras atividades que o morador pretende realizar. Em geral, os horários do café da manha, almoço, lanche da tarde e jantar são fixos, mas abrem-se exceções aos que trabalham, estudam ou possuem algum compro-

Na Nego Quirido, até 150 indigentes podem ter acesso a serviços básicos durante o dia

misso nesse período. No abrigo, o objetivo principal é dar autonomia ao morador: conseguir um emprego, tomar remédio sozinho, andar de ônibus. “Tratamos aqui como uma casa normal. A gente tem muita discussão, conversa toda semana com eles pra mudar ou não as regras”, esclarece a coordenadora do abrigo Lucienne Bambini. A próxima reunião com os moradores – que ocorre todas as quintas, 11 horas da manhã – será para anunciar a sua saída do cargo de gerência do abrigo, atendendo a novas determinações políticas da Secretaria. O vínculo entre os moradores e os funcionários do abrigo – uma psicóloga, sete educadores, uma assistente social, uma cozinheira, uma auxiliar de limpeza e um vigilante – é fundamental para a reinserção social. “Eles precisam sentir que possuem apoio de alguém”, afirma Bambini. E o contato continua mesmo depois da saída da casa. No mínimo, cinco ex-moradores ligam ou passam no local toda a semana. “Às vezes, são coisas mínimas, como ‘conheci alguém e quero falar sobre isso’. Coisas que você faria com um familiar ou um amigo e eles sabem que aqui encontram alguém de confiança”. Como o abrigo municipal do Centro mudará de endereço, muitos moradores já saíram dali – foram para o abrigo do Jardim Atlântico ou

conseguiram condições para morar sozinhos. No abrigo da Victor Meirelles, a falta de acessibilidade e de mobília, como guarda-roupas ou estantes com cadeados, era só um dos problemas de uma estrutura inadequada para uma casa de acolhimento. O novo local será um abrigo, no segundo andar da casa, e um albergue, no térreo, onde a permanência é de apenas uma noite. Sentado na ponta de um gasto sofá laranja, Walter Dias da Silva, de 72 anos, estava com os olhos vidrados no programa culinário que passava na televisão – “vocês sabem, aliás, a diferença entre carne de charque e carne de sol?”, perguntava aos funcionários. Natural de Rio do Sul, suas duas filhas ficaram 12 anos sem notícias do pai. Seu Walter, encontrado pelo Serviço de Abordagem de Rua da Assistência Social, estava dormindo nas ruas do Centro depois que a aposentadoria que recebia não foi suficiente para pagar o aluguel na cidade. Terminado o programa, foi organizar, junto com o educador social de plantão na manhã, os documentos necessários para a reunião que teria na defensoria pública. “Quer ajuda, Seu Walter?”, perguntava Lucienne. “Não, minha filha. Pode deixar que eu arrumo tudo sozinho”. Poliana Dallabrida poliana.dallabrida@gmail.com

Dos 370 mil usuários de crack do Bra

Biacna Bertoli/Zero

E

u prego ‘a palavra de Deus’ e não cobro nada, mas se pagam, amém”, grita o homem com um sobretudo de uma velha lã preta, calça de moletom e chinelos já finos nos calcanhares. Com os braços levados ao céu em movimentos frenéticos, o homem lê trechos desconexos do livro de Salmos da Bíblia. “Ele escolheu o Apocalipse, isso sim!”, grita outro. Gargalhadas tomam conta da manhã gelada de Florianópolis. Enquanto o “culto” acontece, outros vinte homens dormem no chão, sobre papelões, enrolados em finas cobertas cinzas, próximo à porta de entrada. Espalhados pelo pátio, outros 40 caminham, conversam em cadeiras de plásticos quebradas ou arrumam as roupas em suas mochilas surradas. Todos ali esperam atendimento do Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), espaço administrado pela Secretaria de Assistência Social da Prefeitura. Comida, roupa, banho: no canto escondido atrás das velhas arquibancadas da Passarela Nego Quirido – ociosa durante exatos 11 meses – moradores de rua têm acesso a direitos básicos. No meio da roda formada por oito homens, que discutiam futebol e tiravam sarro um do outro, sai, sem muita pressa, um tipo alto, magro, com o semblante fechado imprimido pela meia cara coberta pelo capuz do moletom. Seu codinome é coerente com a posição de liderança que ocupa no grupo. “Gigante, prazer.” Carlos Eduardo Jesus da Silva, manezinho de São José, mora na rua desde que “se aposentou”. Os anos de serviços prestados foram no crime. Preso quatro meses antes de completar 18 anos, Gigante cumpriu pena por 12 anos na Penitenciária da Agronômica. Ao sair, em 2005, passou a viver entre a Praça XV e o Largo da Alfândega. Vendeu flores por um tempo, pediu esmolas por outro. Voltar pra casa? “Minha casa é rua”, responde enfaticamente. A rotina de Gigante é a mesma de muitos que frequentam o Centro POP: dormir na rua e ficar no espaço da Nego Quirido durante o dia. “Ficamos até aqui fechar, depois volta cada um pro seu canto”. No Centro POP os moradores de rua tem direito a café da manhã, almoço e janta, além de banho e orientação de educadores, assistentes sociais e psicólogos. Quando o Centro

Em horário comercial, os moradores de rua podem ter refeições, banho, acompanhamento profissional, aulas de

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Crack faz muita gente ficar sem casa “Era escravo. Vivia para usar e usava para viver”, conta ex-usuário São 8 da manhã e Sérgio Dias, 40, está na porta da padaria O Padeiro de Sevilha, no centro da capital catarinense, cujas ruas lhe servem de casa. Cumprimenta os passantes com um animado “bom dia, abençoado/a”, conversa, recebe trocados e comida. Nesta fria manhã, quer juntar 20 reais para entregar à sua filha de 12 anos, que fará aniversário em menos de um mês, no dia 9 de agosto. Na rua desde os 6, Sérgio luta para se manter longe do vício em crack – que, para o Secretário Municipal de Assistência Social, Tiago Silva, não só é o maior problema social da cidade como é o “mal do século”. Tanto secretário quanto usuários se referem ao vício como “a doença” e o consideram uma desgraça. Segundo pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 370 mil brasileiros utilizam regularmente o crack e 40% deles vivem nas ruas, principalmente em capitais. Sérgio foi viciado por cerca de 15 anos – período no qual era “escravo da droga. Vivia pra usar, usava pra viver”. Passou quase um ano e meio sem tomar um banho sequer. Roubou para manter o vício. Foi detido tentando furtar peças de alumínio. Hoje, está limpo. Confessa que ocasionalmente ainda “fuma um baseadinho pra dormir”, mas se mantém longe do crack. A realidade da maioria dos moradores de rua, no entanto, é outra. Mesmo sem números exatos, o

secretário afirma que a maioria dos indigentes é dependente quimício e o número de ex-usuários é “baixíssimo”. Defende a internação compulsória como uma medida necessária para lidar com a questão. Atualmente, a Secretaria de Assistência Social faz abordagem com moradores de rua, os cadastra e oferece albergue, mas a internação só é feita com ordem judi-

Para o Secretário Municipal de Assistência Social, o vício na pedra é o “mal do século” cial – muitas vezes pedida pela própria família do usuário. No entanto, o secretário não tem ilusões quanto à resolução do problema. “A internação não é a solução, é o caminho. É muito mais próximo de morrer do que ter uma solução”. Sérgio concorda. Para ele, há um tripé no vício do crack: “a doença” é progressiva, incurável e fatal. Sabe não estar totalmente livre da droga. “Se eu disser que não tenho mais vontade, não é verdade. Tem gente que fala isso, e todos esses voltaram [a consumir]. Não dá pra passar por cima da doença assim, não”. Mas tem certeza sobre a ineficácia da internação compulsória. Foi tratado diversas vezes, mas só funcionou

asil, 40% vive na rua. Sérgio Dias largou o vício, mas continua sem casa

quando ele próprio resolveu largar a droga – se era pedido da Justiça ou da família, voltava para o vício. Para se livrar do crack, só com força de vontade. “Ou sente a dor da retirada ou usa até morrer.” Em Florianópolis, são 4 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) com unidades terapêuticas que funcionam para desintoxicar, mas o número é insuficiente. Para o secretário, o problema está na falta de debate e política pública nacional clara – muitas vezes tratando a questão como problema de segurança pública. A ação da campanha do governo federal “Crack, é possível vencer”, por exemplo, foi a entrega de ônibus para videomonitoramento, viaturas, pistolas taser e sprays de pimenta para a Polícia Militar. “Não se aplica na segurança. É o grande problema de saúde pública que estamos enfrentando, não só social. Se não houvesse o crack, não teríamos pessoas na rua”. Sérgio, no entanto, é prova de que não existe uma relação tão simples de causa e efeito. Mesmo livre do crack e com a oportunidade de ficar na casa de familiares, prefere a rua, por dois motivos: não quer se sentir como um fardo e aproveita a liberdade que tem sem moradia. “Tem gente que me quer fora da rua, mas eu gosto, fazer o quê?”

Gabriel Shiozawa gabrielscoelho@gmail.com

Voluntários aplacando a fome

música e informática no Centro POP. Depois das 17h, voltam à indigência

, julho de 2014

A rotina de Dora Lima, 65, é a mesma todas segundas-feiras. A aposentada vai aos supermercados e restaurantes do bairro Campeche, sul de Florianópolis, e pede doações de alimentos. Na tarde do dia seguinte, ela e mais 14 pessoas se reúnem para cozinhar tudo o que foi arrecadado. Às 20h30, quando os ‘amigos da sopa’ chegam em frente à catedral, na região central da cidade, alguns moradores de rua e das comunidades carentes entorno do local se aproximam com alegria. Todos já conhecem o trabalho, que completa três anos em julho, e contam com a entrega das quase 180 refeições. “Que Deus abençoe vocês para sempre poderem voltar. Esse é o melhor dia da nossa vida!”, é o que o grupo escuta enquanto distribui as marmitas acompanhadas de talheres e frutas. Apesar de ter intitulado o nome do projeto, a sopa, que antes era cardápio fixo, hoje só é feita nos dias mais frios de inverno, nos outros, predominam a feijoada, macarronada ou risoto. A

ação é mantida pelos estabelecimentos que fazem doações dos ingredientes e por pessoas que mandam dinheiro para a equipe. A ajuda financeira só é usada em situações de extrema necessidade: quando falta comida para encher os três panelões, quando um jovem pede para sair da rua e voltar para casa da família em outra cidade, quando algum indigente possui machucados e precisa de remédio, quando uma mulher grávida aparece sem ter qualquer roupa para cobrir o filho que nascerá. São nesses momentos que os amigos decidem gastar o que reservam para a realização do desejo de comprar um carro que possa levar as refeições, já que a maioria dos voluntários não tem carro. Dora diz que cada vez que os amigos vão ao local, têm a impressão que o número de moradores de rua aumenta, “é triste, mas sempre tem gente nova”, conta. Para ela, as expressões e espera pela chegada do grupo é a maior prova de que a fome existe sob

o céu da capital. Segundo o assessor de comunicação da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), Vandrei Bion, a fome é consequência de outros problemas sociais, como a dependência do crack, mas que “ninguém morre de fome em Florianópolis”. A SMAS oferece 5 mil refeições diariamente e distribui mensalmente 900 cestas básicas para os cadastrados no bolsa família ou nos Centros de Referência de Assistência Social. Para Dora, o que os amigos da sopa fazem é “um grão de areia” perto das ações maiores, mas eles não falham em nenhuma terça-feira, assumindo um compromisso informal com os moradores de rua. “Nesses três anos não teve um dia que caiu ‘aquela’ chuva que nos impediria de levar a comida. Parece que lá em cima tem alguém que está do nosso lado”, conclui com um sorriso.

Bianca Bertoli bertolibianca@gmail.com


10 Machismo

“Falar grosso” para serem ouvidas

De alunas a professoras, ser mulher ainda é fator de vulnerabilidade no meio acadêmico

B

ertha Lutz já lutou pelo voto feminino, em 1932. Margaret Sanger incentivou e Katharine McCormick financiou a pílula anticoncepcional, símbolo da libertação sexual feminina. Simone de Beauvoir já lutou para desconstruir o papel convencional da mulher na sociedade. Maria da Penha Fernandes já lutou por uma lei que aumentasse o rigor nas punições por violência doméstica no Brasil. Temos nossa primeira presidenta, Dilma Rousseff. As mulheres têm média de escolaridade maior que os homens e são maioria em diversas profissões. No entanto, ainda precisam lutar muito para serem respeitadas e superarem os inúmeros estigmas que recaem sobre elas em todas as áreas, inclusive no meio acadêmico. No Brasil, há 5,2 milhões de mulheres a mais que homens, de acordo com dados do IBGE. No entanto, apenas 57 ocupam cargos na política, o que representa pouco mais de 9% das cadeiras em comparação com os 594 homens – o menor índice da América Latina e o equivalente à posição 130 em um ranking de 151 países. Sônia Maluf, vice-diretora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da UFSC, afirma que, quando se trata de ocupar cargos de chefia, “ser mulher transforma-se em um ponto de vulnerabilidade”. As críticas versam geralmente sobre um dos dois lados opostos: desautorizar a posição da mulher por falta de firmeza ou julgar por autoritarismo quando ela toma iniciativas e decisões. “Atitudes que seriam consideradas naturais vindas de um homem reitor ou chefe são vistas como autoritarismo quando é uma mulher que faz”, diz Sônia. Para a vice-diretora do CFH, em muitos momentos é preciso “falar grosso” para ser ouvida. “Muitas mulheres que falam firme, forte, que batem na mesa, acabam sendo vistas como histéricas, porque esse não é o lugar natural delas dentro da estrutura de gênero.” Em declaração sobre a atitude da polícia no caso Levante do Bosque, o delegado Paulo Cassiano Júnior afirmou que “a Polícia Federal não tem compromisso com a falta de pulso com que a reitora gere os assuntos pertinentes à sua universidade” e repetiu que o comportamento de Roselane Neckel, primeira reitora em 52 anos de UFSC, “é condescendente”. “Em mais de vinte anos na Universidade, nunca vi tratarem um reitor da forma como tratam as reitoras”, afirma Joana Pedro, professora do Departamento de História e pró-reitora de Pós-Graduação. “Certa vez, em um Conselho de Unidade, deixaram a reitora esperando. Isso nunca aconteceu antes. Quando a autoridade máxima da Universidade chegava, todos paravam tudo que estavam fazendo”, diz. Os questionamentos sobre machismo acompanharam a carreira acadêmica de Joana Prado, que ainda hoje vê na UFSC a “desqualificação da mulher”. “Quando entrei no Departamento de História, com 33 anos, havia muita fofoca. Diziam que eu era amante de outro professor. Isso acontece com a mulher jovem: ser amante serve para desqualificá-la”, afirma. “Nunca é o homem que trai, é a mulher que é

Professoras Sônia Maluf e Marcia Mantelli perceberam o machismo, explícito ou velado

amante.” Para Sônia Maluf, a diferenciação entre gêneros é acentuada por uma divisão na Universidade, em que as chamadas hard sciences, relacionadas à tecnologia e áreas de exatas, são mais “masculinas”, e as soft sciences, que incluem áreas de humanas, seriam mais “femininas”. “Tudo isso faz com que, para que uma mulher consiga acesso a um cargo, bolsa ou concurso, ela precise ser muito melhor do que um homem”, afirma Sônia. Como única professora mulher do curso de Engenharia Mecânica da UFSC, Marcia Mantelli precisou “se acostumar a ser diferente” e a saber que todos a estão observando durante sua trajetória acadêmica. Marcia foi a primeira mulher formada em Engenharia Mecânica na

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 16 anos depois da fundação da universidade. “Nunca houve nada explícito, nenhum colega me apontou o dedo e disse ‘Você é burra porque é mulher’, mas sinto nas entrelinhas que a gente precisa mostrar mais a que veio, tem que ficar se reafirmando para ganhar respeito”, conta, sobre sua carreira na UFSC. Em 2012, Marcia recebeu o Prêmio Claudia, que homenageia mulheres que realizam pesquisas e trabalhos de grande impacto na sociedade. Surpresa com a escolha, conta que a premiação foi “o ápice da minha carreira científica, porque, apesar de ser uma revista feminina, é um prêmio pelo qual não concorri, e não são meus colegas, mas a sociedade quem está dizendo que meu trabalho é importante para o país.” A reação dos colegas de Departamento,

“Diziam que eu era amante de professor. Acontece com mulher jovem: serve para desqualificá-la”, diz Joana Pedro

, julho de 2014

no entanto, não foi tão entusiasmada. “Eu sentia alguns sorrisos que diziam ‘Pô, revista feminina? Prêmio Claudia, o que é isso aí?’. Recebi poucos parabéns aqui dentro.” Entre os conselhos que Marcia dá às poucas alunas da Engenharia Mecânica, estão: não vestir roupas “muito sensuais”, não usar decotes e “nunca usar o fato de ser mulher para tirar proveito”. “Por mais que seja verão, se resguarde”, aconselha. Ela diz que as alunas precisam se ajustar ao ambiente e ter “uma postura séria” porque estão em locais onde ser mulher é raridade e gera muita observação. Ornella Rizzi, graduanda em bacharelado em Física na UFSC, também sente, mesmo que de forma mais naturalizada, o que é ser parte de uma minoria em áreas do conhecimento consideradas masculinas. Ela leva os comentários na brincadeira e diz que nunca passou por um caso de machismo. “Os meninos brincam que quando uma menina se forma em Física recebe o diploma de homem. Falam que é o ‘diploma pinto’”, afirma Ornella. “Já me acostumei a andar só com os rapazes, nem tenho contato com outras colegas mulheres da Física.” Romper com o costume foi o que tentou um grupo de estudantes dos Centros Acadêmicos dos cursos de Engenharia Civil, Arquitetura e Engenharia Sanitária e Ambiental, quando contestou o Miss Caloura, uma das provas do Trote Integrado do CTC. No Miss Caloura, cada curso escolhe uma representante que deve cantar, dançar ou realizar outra atividade que impressione os “jurados”. As candidatas são avaliadas com notas em três quesitos: talento, beleza e simpatia. “Por que a mulher sempre tem que estar na posição de ser avaliada? Por que temos que competir umas com as outras sobre quem é mais bonita, quem é mais simpática? Por que não podemos simplesmente entrar no curso e só estudar para sermos engenheiras?”, questiona Marina Caixeta, estudante do curso de Engenharia Civil. “Se eles acham que tem que haver essa competição, por que ela não é unissex?”. O movimento não teve grande adesão dos demais estudantes do centro. No movimento estudantil, as mulheres também precisam brigar por voz política. “Uma mulher que milita na esquerda luta dobrado”, afirma Mariana Queiroz, estudante de Psicologia. Ela afirma que, além de militar pelas pautas do movimento que defende, a mulher precisa lutar para se fazer ouvir. “A mulherada tá aí disputando: é cortada em fala e a mesma argumentação na boca de um cara tem mais valor que na boca da mulher”, avalia Mariana. Para a estudante, num espaço onde, historicamente, quem assume a frente dos processos políticos são homens, casos evidentes de machismo são importantes e devem ser usados como denúncia. “O cara é militante do movimento estudantil e acha que por isso ele não é machista, homofóbico, transfóbico, racista.” Poliana Dallabrida poliana.dallabrida@gmail.com Raíssa Turci raissa.turci@gmail.com


11 Opressão

Racismo na UFSC não é penalizado

S

entido cotidianamente na pele por milhares de negros e negras, o racismo fica claro na análise de diversos dados: a população negra - 50,7%, segundo o Censo de 2010 - recebe menos, ocupa postos de trabalhos menos valorizados, é mais pobre, tem mais chance de ser assassinada e presa. “A ideologia do racismo continua ainda muito forte em nossa cultura, e é possível verificar isso olhando para os territórios que a população negra ocupa em nosso país: periferias, sistema prisional, abrigos, ruas e quilombos” afirma a pscicóloga Mathizy Pinheiro. Como o estado com a maior proporção de brancos em todo o território nacional - 84%, segundo o dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - Santa Catarina não está livre da discriminação. O grupo da UFSC no Facebook, não raro, é palco de manifestações racistas, seguidas de discussão - que geralmente se encerram com dezenas de comentários da zoeira. O caso mais célebre ocorreu no final do ano passado, quando um estudante de engenharia mecânica postou a foto de um homem negro entregando um cacho de bananas a uma mulher negra. Em resposta, cobrando penalidades ao autor da postagem e chamando a atenção para a discriminação sofrida dentro da universidade, o ato “A UFSC vai ficar preta” foi convocado por diversos grupos do Movimento Negro da universidade - como o Grupo Negro 4P (Poder Para o Povo Preto) e o Coletivo Kurima -, além de diversas entidades e orgãos para a promoção de políticas de igualdade racial. De um ano para cá, houve melhoras, avalia o estudante de Engenharia Civil e militante do Grupo 4P Alex Zok. Para ele, houve uma “fortificação do movimento negro” e um debate maior acerca do racismo. Como ações institucionais da universidade, cita a palestra sobre a discriminação no acolhimento dos calouros em 2014.1 -- tão positiva que fez um estudante de Geografia, que pensava em sair do curso, permanecesse -- e a cartilha distribuída na calourada. O material entregue aos ingressantes na recepção foi elaborado por diversos coletivos da universidade não só do movimento negro, mas de diversos setores oprimidos - com o apoio da UFSC. Enquanto se preparava para uma reunião de preparação da cartilha de 2014.2, a Pró-Reitora de Pós-Graduação, Joana Maria Pedro, revela que a intenção é garantir um acolhimento dos calouros que

Mateus Vargas /Zero

Coletivos do movimento negro denunciaram casos no campus e grupo UFSC, no Facebook sempre debata discriminação, institucionalizando a inciativa. Grande parte dos atos discriminatórios, como bananas atiradas para estudantes negros no Restaurante Universitário, não são denunciados, tanto por serem implícitos, mascarados como brincadeiras quanto por constrangimento das vítimas. No entanto, pouco resultado se vê dos que resultam em queixas formais. O presidente da Comissão Institucional de Acompanhamento e Avaliação do Programa de Ações Afirmativas, Marcelo Tragtenberg, cita o caso de um professor do curso de Jornalismo, denunciado por atos discriminatórios, mas tranquilamente aposentado. Do mesmo modo, o estudante que postou uma foto de cunho racista no grupo UFSC teve seu processo arquivado pela Comissão de Ética da universidade e vai se formar no próximo mês. O grupo UFSC no A população negra no Brasil ocupa postos de trabalho menos valorizados e tem mais chances de ser assassinada Facebook, apesar de promessas de punição aos coibir esse tipo de manifestação”. O racistas por parte da reitoria no ano documento também apresentava a passado, segue com manifestações ligação entre a chamada Lei de Codiscriminatórias. Num tópico deste tas, a mudança na configuração dos Em conjunto com o Pró-Reitor de Graduação, ano -- inciado justamente para dis- ingressantes na universidade e o um Julian Borba, a Pró-Reitora de Pós-Graduação, cutir o caratér opressor de algumas tanto quanto paradoxal aumento no Joana Maria Pedro, é uma das responsáveis piadas --, os exemplos são diversos. racismo após o início das ações afirdentro da reitoria por pensar em políticas de Para um estudante de engenharia mativas. “Ao inclusão. “Ser alvo de discriminação, por mais eletrônica, tudo não passa de brin- mesmo teminteligente que a pessoa seja, vai tornar a sua cadeira: “os comentários não foram po em que há vida universitária um inferno”. As políticas, no racistas, foram piadas politicamen- um avanço entanto, estão mais no campo das propostas te incorretas, que podem ser vistas social por do que das ações. como tendo cunho racista. Certo, parte desse Designado pelo Conselho Universitário (CUn) não tá, mas não quer dizer que quem espaço, a lei no final de 2013, o Grupo de Trabalho (GT) escreveu é racista”. Outro aluno, de e a presença para a criação de um comitê de Acompanhaengenharia mecânica comenta, logo de estudantes mento das Ações Afirmativas fez sua primeira depois de fazer uma piada racista, negros e nereunião em 27 de março. O GT deve definir “ih, f*, vou ser preso. Brincadeirinhas gras provoca composição, vinculação e atribuições do à parte, ainda tem gente que liga pra ações negatiComitê, entregando, nos próximos meses, uma racismo quando ele não é descarado vas oriundas minuta de resolução ao CUn. Entre as propos(como no caso dos estádios recente- de estudantes tas, a de que o novo orgão tenha status de mente) ou direcionado diretamente à conservadores e racistas, que passam pro-reitoria e, portanto, capacidade de executar uma pessoa?”. Um pouco antes, havia a se manifestar das mais diversas ações. No entanto, mais provável é que seja postado “racismo é crime, me prove formas” -- inclusive em público, exum espaço de discussão, consultivo, e as agora que proferir as palavras ‘botar pondo os próprios nome e, aparenteações sejam executadas por diferentes instâno afro-descendente pra nadar’ é um mente, sem correr risco de punições. cias da universidade - apoio pedagógico com a ato de racismo”. Prograd, questões de permanência com a ProÀ época da infame postagem que -reitoria de Assuntos Estudantis e denúncias de motivou o ato do Movimento Negro, racismo, ao que tudo indica, com a Ouvidoria. um manifesto foi publicado cobranGabriel Shiozawa gabrielscoelho@gmail.com do “fortes medidas de maneira a

Ações de inclusão

Parte dos atos não é denunciado, em razão do constrangimento das vítimas ou por acontecer de forma implícita

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12 Aplicativo do amor

Usuários reclamam de relação rasa de gostos em comum. “Com as pessoas que têm 30 coisas em comum rola um papo melhor do que com as que não têm nada a ver. Por exemplo, você sai para tomar um café com uma pessoa e se vocês não têm nada pra conversar, aquele café fica muito longo.” Quem não gostou de julgar se as pessoas merecem um like ou não apenas por seis fotos foi a jornalista I. L., 22 anos. “Chegou uma hora em que isso começou a me angustiar, porque as pessoas com quem eu dava match, embora me atraíssem fisicamente, eu não me identificava muito, até porque me interessava mais por quem eu conhecia pessoalmente. Eu sei que é um aplicativo de pegação, mas eu não estava mais nesse clima.” I. L. saiu com duas pessoas que conheceu no Tinder, mas acabou deletando o perfil. Ao contrário da jornalista, W. M. considera o aplicativo uma ferramenta para conhecer pessoas que podem estar abertas para um relacionamento, seja ele de apenas uma noite ou algo mais duradouro. “Não considero o Tinder uma ferramenta de pegação, pois não serão meia dúzia de fotos que farão com que eu goste de uma pessoa, ou que ela goste de mim. A gente sabe que rola muito mais coisas para ficar com uma pessoa, tem que rolar simpatia, química e interesse das duas partes.” M. C., 29

M. C. tem quase 100 homens no bate-papo, mas saiu com apenas um

Infográfico: Rosângela Menezes/Zero

A

letra T da agenda telefônica de W. M., 28 anos, estudante de Engenharia de Mobilidade na UFSC, tem 27 contatos. A lista não é composta por Thiagos, Teresas e Tatianas, mas por T Amanda, T Juliana, T Maria – o “T” se refere ao aplicativo Tinder, que W. M. utiliza há sete meses. Durante esse período, ele deu match (definição para quando duas pessoas se interessam uma pela outra na rede social) com mais de 50 pessoas, saiu com cinco e manteve dois breves relacionamentos. O Tinder é um aplicativo gratuito para smartphones e para utilizá-lo é necessário ter uma conta no Facebook. Depois de criado o perfil, é possível definir o gênero, a faixa etária e a distância de até 160 km para a busca dos pretendentes. A ferramenta se baseia na geolocalização e nos interesses em comum cruzando informações do Facebook, e os perfis contêm uma foto principal, a idade, os amigos em comum e as fanpages que ambos curtem. Para ajudar a decidir entre um “Não” e um “Curti”, também é possível analisar até seis fotos e um texto de apresentação disponibilizados pelo usuário. Caso o match aconteça, o Tinder abre um chat privado para os dois perfis. Os contatos com um “T” na frente do nome na agenda de W. M. estão lá porque, em um primeiro momento, o que contou não foram só as fotos da pretendente, mas o que eles têm

Rosângela Menezes/Zero

Rede social facilita primeiro contato, mas encontro na vida real continua sendo o fator decisivo

Cerca de 10 milhões de brasileiros usam o aplicativo criado em 2012, e acessam em média 11 vezes ao dia

anos e assistente social, também defende a ideia de que o Tinder é uma ferramenta para se conhecer pessoas e conversar sem muitas intenções. Mas ela alerta para o fato de que, a partir do momento em que se propaga a ideia de que é uma ferramenta para sexo fácil e relacionamentos curtos, as pessoas perdem o interesse. A assistente social tem quase 100 homens em seu bate-papo, mas saiu com apenas um e, antes do primeiro encontro acontecer, bateu papo via whatsapp por pelo menos dois meses. O maior problema para M. C. em

encontrar pessoas que conheceu no Tinder é a segurança. “Tenho medo de entender errado o objetivo da pessoa. Claro que, conversando um pouco mais, você consegue identificar. Mas você pode não querer transar com o cara e a situação ficar meio tensa”, desabafa. O Tinder foi criado em 2012 por alunos da Universidade do Sul da Califórnia e conta com uma rede de mais de 100 milhões de usuários em todo o mundo. Somente no Brasil, existem cerca de 10 milhões de perfis, que fazem login até 11 vezes ao dia. A

descrição no site do aplicativo diz que ele foi criado para quebrar as barreiras que envolvem fazer novas amizades e para fortalecer as existentes. W. M. concorda: “O Tinder não veio acabar com a arte do encontro, ele veio, na verdade, fomentar o encontro, pois as pessoas não ficam eternamente se falando no bate-papo, tem uma hora que ele vai pular para o mundo real. E o ao vivo sempre vai rolar pra quem estiver disposto.” Rosângela Menezes rosangelanmenezes@gmail.com

Brasil já é quinta potência na web Os brasileiros não desgrudam mais os olhos dos celulares e seus aplicativos, que hoje servem para quase tudo: pesquisar linhas e horários de ônibus, controlar batimentos cardíacos, compartilhar mensagens, lembrar o usuário de tomar água a intervalos de tempo estipulados, dar dicas de astrologia, mostrar a previsão do tempo, editar fotos e ajudar na paquera. Desde o início da Copa do Mundo de 2014, a atividade dos 10 milhões de usuários no Brasil já cresceu em 50%. Outro aplicativo “de paquera”, o Grindr, teve aumento de 31% no número de perfis só nas últimas semanas. Para o mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Psicodrama Terapêutico Vitor Paese, a dificuldade de interagir pessoalmente e a facilidade e o alcance das novas tecnologias são as principais razões da popularidade dos aplicativos. De acordo com pesquisa do Ibope Media, o brasileiro é o que passa mais tempo conectado na internet: são 43 horas por mês, a maioria interagindo em redes sociais. “O

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ideal é que os aplicativos existam para complementar a comunicação, e não como canal exclusivo. Se for assim, os aplicativos só tendem a fortalecer as relações entre as pessoas.” No Brasil, sete de cada dez pessoas têm pelo menos um telefone celular, e o número de linhas ativas na telefonia móvel já ultrapassa os 275 milhões – marca que supera a população brasileira, que é de 76,7 milhões. Já se fala no país como a quinta maior potência da internet em número de usuários. “Pessoas de todas as idades estão diversificando as formas de se relacionar”, afirma Vitor Paese, que cita os iPhones como facilitadores para quem antes não acessava a internet. “O contato virtual, assim como na vida fora da rede, pode ou não ser mais superficial. Tudo vai depender das intenções do indivíduo e do que ele procura.” Beatriz Nedel beatriznedel@gmail.com


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Sexo: velhas e novas formas de ver e fazer

Mateus Vargas/Zero

Sexualidade

Prazer e liberdade multifacetados

F

onte de prazer, mecanismo sagrado da procriação, expressão de amor – não é de hoje que o sexo divide opiniões. O vínculo monogâmico e heterogâmico foi normatizado pela Igreja Católica ainda no século XIII. A aliança como símbolo de fidelidade a uma só pessoa aparece já no IX. O psicólogo Tito Sena, especialista em sexualidade e que atende em Florianópolis, explica que a sexualidade se expande no espectro das fantasias, do desejo/atração, do romance/afetividade, das práticas, das manifestações e do prazer. Sobre as vivências contemporâneas, Sena ressalta o papel preponderante da Internet. “Vivemos em uma sociedade supersexualizada, a internet intensifica o contato com diversos referenciais de fantasias e práticas eróticas. Contraditoriamente, muitas frustrações surgem exatamente das expectativas que criamos a partir de ‘roteiros sexuais’ pré-estabelecidos.” Um número cada vez maior de pessoas consegue romper estes milenares padrões e realizar suas fantasias com relativa tranquilidade. Aplicativos, sites de relacionamento e redes sociais têm desempenhado um papel de destaque como intermediadores de encontros casuais ou não. Em Florianópolis, diversos grupos no Facebook reúnem centenas de interessados em práticas sexuais não normativas, como a do sexo em locais públicos, que acontece diariamente em praças, banheiros de supermercados e shoppings, trapiches ou mesmo na praia. Os canais são utilizados por um público majoritariamente masculino. Os mais movimentados são “Pegação Floripa”, “UFSC da pegação” e “Banheirão Floripa”. A proposta é promover a troca de experiências e a organização de encontros. Enquetes são feitas para que os participantes listem os melhores lugares e horários. “Na maioria das vezes o contato se restringe a carícias e sexo oral, mas há quem siga adiante”, explica P.F, um dos participantes

do “Banheirão Floripa”. Segundo o rapaz, que prefere não ser identificado, o número de integrantes do grupo vem aumentando significativamente. “Não existe um perfil específico. A faixa etária, assim como o grau de escolaridade e classe social, é bem diversificada. As preferências também variam. Muitos são héteros e até mesmo casados”, conta. A democratização do prazer, conquistada ao logo do último século graças a inúmeros movimentos, em especial o feminista, traz novos desafios para a experiência da sexualidade. Os jogos de poder, no entanto, ainda representam um perigo. “Por exemplo, uma pessoa tem suas experiências sexuais. Quando encontra mais prazer com um determinado parceiro e acredita que somente ele tem o poder de satisfazê-la, este indivíduo pode acabar assumindo um controle muito prejudicial”, afirma o psicólogo Tito Sena. Professor e doutor em filosofia, Wellington Lima Amorin, vive e pensa o “poliamor” há pelo menos oito anos. Natural do Rio de Janeiro, Amorin se aprofundou no tema durante o doutorado no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. Para ele, “a pós-modernidade é a falência da solidez moderna. Colocando o homem diante de um abismo, o SER não tem mais espaço, mas se tem o ESTAR: estou monogâmico, mas posso estar poligâmico. Estou heterossexual, mas posso estar homossexual.” A relação com mais de uma pessoa pode gerar conflitos, assim como todas as outras formas de convívio onde pactos são feitos. “Um dos benefícios da poligamia está no amadurecimento, desejo de autonomia e liberdade em uma vida contingente e líquida, que reconhece a inexistência de Leis Universais. A nossa maioridade consiste em um estilo de vida que busca o cuidado de si de forma autônoma e livre.”, explica o filósofo. “A fidelidade a um pacto conjugal não deveria implicar, necessariamente, na exclu-

Casamento, poliamor e relações casuais são tendências de uma mesma época

Grupos no facebook reúnem centenas de pessoas em busca de sexo não normativo, como em locais públicos

sividade de um parceiro”, completa. Sobre as diversas formas de vivenciar a sexualidade, o especialista Tito Sena ressalta que a Psicologia entende como saudável aquela em que os “indivíduos não colocam a saúde física e mental, sua ou de outrem, em risco”. Então, caberia a cada pessoa estabelecer os critérios de cada envolvimento. Ainda asssim, independe dos padrões de conduta sexual de cada indivíduo. Não existe algum que nos mantenha imunes às decepções. “Elas fazem parte da vida e dos relacionamentos. A questão é como lidamos com elas, independente do caminho que escolhemos. Lidar com a frustração é sine qua non para amuderecer, crescer e explorar sua sexualidade.” Monogamia também é opção A mestranda em História da Universidade do Estado de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo, perdeu a virgindade aos dezenove anos com aquele que foi seu terceiro e último namorado. Os dois casaram em 2010 e planejam quatro ou cinco filhos, mas por enquanto o uso do anticoncepcional é mantido. Aos 23 anos, natural de Itajaí e criada em Chapecó, a jovem defende a monogamia: “cada pessoa é de um jeito e de um gosto nas relações sexuais. , julho de 2014

Dois ou mais parceiros “Poliamor” pode ser definido como um tipo de relação onde cada pessoa pode ter mais de um relacionamento ao mesmo tempo. O modelo de felicidade deixa de estar atrelado à monogamia, o que não implica em promiscuidade. O sentimento de liberdade não descarta essa possibilidade, mas é consenso entre os praticantes que haja ética e respeito e que todos os envolvidos estejam cientes. Acredito que o sexo é tanto melhor quanto mais praticado com a mesma pessoa.” Práticas como a masturbação, por outro lado, são vistas como fraqueza, um vício egoísta. Ana diz sempre ter se sentido livre para sair, curtir as amizades e namorar. Para ela, “uma vida saudável é a vida que leva uma pessoa liberta de vícios, que não é escrava de seus próprios impulsos.” A decisão sobre manter a virgindade até o casamento, para ela, lhe poupou da decepção quanto ao caráter e o temperamento de um possível affair e até mesmo do risco de uma gravidez prematura. A história de Abelardo e Heloísa romance real e proibido, que se passa na França do século XII - exemplifica o que Ana entende por amor. Segundo ela, “o amor é aquela decisão

perene que se toma em prol do bem do outro, pensando na eternidade, inclusive, na saúde da alma do outro, na satisfação do seu corpo, na plenitude da sua existência”. O casamento cristão seria, portanto, a melhor expressão deste ideal. Sua família lhe criou frequentando a igreja Assembleia de Deus, “mas assim que tive condições escolhi a denominação que mais me agrada: hoje sou calvinista e frequento a Igreja Presbiteriana.” A decisão pela mudança se deu em diálogo com o marido, ainda durante o namoro.

Luciana Paula Bonetti lucipbs@gmail.com Rafael Venuto rafael.vnt@gmail.com


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Workaholics

Trabalhar demais pode ser doença

Profissionais dedicam maior parte do dia ao emprego e ficam sem tempo para descanso e lazer caiaques e pranchas em pontos turísticos de Florianópolis. No pico da temporada, chega a fazer jornadas de quatorze horas por dia. Nos outros oito meses de menos movimento só sai de casa a trabalho se for muito bem pago. Caso contrário, surfa, joga futebol, fica “vadiando no jardim”. O trabalho, para ele, é só uma forma de viabilizar sua vida pessoal. Toscani tem sua própria maneira de lidar com o trabalho, assim como todo mundo. Não existe, porém, uma ideia hegemônica acerca do assunto. A ocupação de um indivíduo é parte fundamental na construção de sua identidade. Ou identidades, no plural, como pontua

a professora do Departamento de Psicologia da UFSC Edite Krawulski. Ela explica que cada pessoa tem diversas delas: no papel de cônjuge, filho, colega, aluno, etc. Na nossa sociedade e na dinâmica econômica, o trabalho acaba sendo central. “O sujeito precisa dessa identidade [profissional] até para ter legitimação social.” A importância que cada indivíduo dá a esses aspectos sempre varia. Carine Morandi, por exemplo, dedica diariamente cerca de 17 horas às suas ocupações e se sente satisfeita. Ela trabalha com marketing digital, tem acordo fechado com uma editora para lançar um livro ano que

A ocupação de um indivíduo é parte fundamental na construção de sua identidade

Infográfico: Rosângela Menezes/Zero

“A

ntigamente eu dormia naquela sacada e acordava com o sol nascendo, hoje tem essa parede na frente”, reclama Marcelo Toscani. No final da década de 1990 comprou seu sobradinho, simples e sem luxos, perto da Igreja de Pedras do Rio Tavares, procurando o sossego que a região, na época ainda mais tranquila que hoje. Mora no andar de cima com seu filho de 18 anos, que está se formando no IFSC (Instituto Federal de Santa Catarina), e com Fantasma, seu cão. O térreo serve para hospedar amigos ou, quando as contas apertam, alugar. Gaúcho de 54 anos, foi estudante interno de colégio militar em Porto Alegre e em seguida, ainda na capital do Rio Grande do Sul, bancário. Depois chegou a trabalhar em jornal, circo, barco pesqueiro artesanal e industrial... desde 1997 vive de alugar

vem e alimenta um blog. Diz não sentir muita falta de mais horários de lazer porque gosta de suas atividades. “Sabe um hobbie que você gosta muito de fazer?”. Começou a trabalhar com 18 anos, hoje tem 26, e desde então tirou férias uma vez – viagem de oito dias. Ficou sem internet durante essa folga e se sentiu muito incomodada por não conseguir ter notícias do trabalho. A dedicação dela, que dorme de três a quatro horas por dia, se manteve inclusive nos finais de semana até março deste ano, quando recebeu recomendações médicas para diminuir o ritmo, se exercitar e melhorar a alimentação. Agora evita ligar o computador aos domingos, mas fica sempre atenta ao smartphone – mesmo nas visitas à família, em Navegantes. “Uma tia já me disse uma vez: ‘poxa, se você vem aqui para trabalhar então nem venha’.” Perguntada se é workaholic (viciada em trabalho), ela responde: “meus amigos dizem que sim.” O workaholismo não está inserido na Classificação Internacional de Doenças (CID), mas é considerado uma patologia por alguns psiquiatras e psicólogos. Abandonar aos poucos o convívio social, dedicar parte excessivamente grande do tempo à ocupação e não conseguir relaxar nas férias por pensar apenas no trabalho, podem ser sintomas apresentados por um workaholic – Carine Morandi não é formalmente diagnosticada. A professora Krawulski diz que “não dá para dizer que é uma doença, mas pelo menos uma disfunção” nas relações entre as identidades de uma pessoa. Mesmo os empregadores estão percebendo isso, segundo o professor do Departamento de Administração Maurício Serva: “Pode parecer interessante [para o empregador] no início, mas aos poucos a pessoa vai afetando negativamente o grupo, vai exigir muito e querer que todos façam o que ela faz”. Mas a maioria das pessoas precisa se desligar e descansar, e esse é um dos motivos da Consolidação das Leis do Trabalho ter, em 1943, regulamentado a jornada básica do assalariado em oito horas, além do dia de folga semanal e das férias. Segundo o também professor da UFSC Adriano Luiz Duarte, especialista em história do trabalho e da Era Vargas, havia a concepção de que o ofício, o sono e as

necessidades pessoais deveriam ocupar um terço do dia cada. Comenta que sempre houve uma intenção de “moldar as horas de descanso do trabalhador para que ele fosse o mais produtivo possível”. O descanço às vezes é visto como parte da ocupação, pois dá à pessoa melhores condições de a desempenhar satisfatoriamente. “Em 2014 consegui ir para a praia três vezes, e é a minha melhor estatística”, conta Diego Nogueira, 26 anos, sobre o tempo que tem para o lazer. A maneira que arrumou de manter sua única atividade recreativa regular, um jogo de futebol por semana, foi colocá-la na agenda como um compromisso formal. Há quatro anos ele trabalha por conta própria, com mais dois contratados, mediando a relação de empresas com seus mercados via redes sociais. Ele fica no mínimo 12 horas por dia em seu escritório sem janelas, pensando em estratégias de marketing e vendo o dia passar no relógio do computador. Não são raras jornadas ainda mais longas. Nogueira chegou inclusive a dormir no trabalho algumas vezes, e extensões nos finais de semana também são muito comuns. Ele acredita que é recompensador o que faz, apesar de não estar totalmente satisfeito com o tempo que toma. Gostaria de pelo menos conseguir ficar só das nove da manhã às nove da noite em função do trabalho. “Meu sonho.” A professora Edite Krawulski comentava, durante a entrevista ao Zero, que a centralidade do trabalho na vida das pessoas pode trazer alguns questionamentos a elas próprias. No final da conversa, em tom mais informal, solta uma frase meio auto reflexiva: “nós estamos fadados a trabalhar, a questão é se precisa ser tanto.” Não é muito diferente do que pensa Marcelo Toscani, guardadas as proporções de intensidade. Ele decidiu dar prioridade máxima a sua vida pessoal depois de uma de suas experiências profissionais. “Eu fui pescador industrial, onde você se mata de trabalhar por uma coisa super destrutiva. Até consegue construir uma casa, alguma coisa, mas não vale a pena.”

O workaholismo é considerado uma patologia por alguns psiquiatras e psicólogos

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Caio Spechoto caio.spechoto@gmail.com Rafael Gomes rafaelgomes.rgs@gmail.com


15 Pasárgada

Jovens buscam vida longe do estresse Insatisfeita com ritmo acelerado, paulistana procura cidades litorâneas para ter sossego Bianca Bertoli/Zero

E

Amsterdã foi a primeira tentativa de Izabelle para fugir da pressão cotidiana que vivia em São Paulo

Desde a época de faculdade, a jovem tem vontade de conhecer a capital e quase prestou vestibular na UFSC. O que ela conhece da ilha veio de pesquisas e conversas com amigos. “Eles dizem que realmente é muito diferente, bem mais calma que São Paulo, e que as pessoas tem tempo de conversar uma com as outras.” Floripa não foi a única alternativa da designer. Ela também pensou em Recife, Maceió e até Jericoacoara, no estado do Ceará. Suas opções en-

volvem praia, sol e mar, o que, segundo ela, trazem outra energia para cidade. “Nunca morei num lugar onde pudesse ver o mar sempre, e isso deve fazer toda a diferença”. Praia é fator fundamental, e Florianópolis chama sua atenção entre as outras cidades pois é onde ela teria mais espaço para trabalhar com o que faz de melhor. Izabelle é designer gráfica, formada em 2010 pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas), em São

“Esperar para viver a vida ideal não funciona. Precisa ser agora, tudo junto”

Paulo. Há cerca de um mês, começou a enviar seu portfólio para alguns estúdios de design da capital catarinense. Sua intenção é continuar atuando na área, entretanto ela não descarta outras possibilidades de trabalho. Izabelle já foi alertada sobre os inúmeros problemas que Florianópolis abriga: trânsito caótico, transporte público insuficiente e tarifas elevadas. Porém, a possibilidade de olhar para o mar e de estar próxima à natureza, além de poder andar de bicicleta sem o medo que sente em São Paulo, ainda pesam mais na sua balança. “O problema é que São Paulo te leva até o limite, e eu tenho a impressão, talvez por estar saturada

Ciclistas fogem da rotina viajando Roupa social, horário comercial e rotina de escritório. Nada disso pertence ao dia-a-dia do casal Ana Vivian e André Costa, que se conheceu em um encontro de ciclistas e desde então não se separou mais. Casados, fizeram pequenas cicloviagens de no máximo 15 dias, e o que revela o estilo de vida que levam atualmente é a viagem de mais de 21 mil km que fizeram pela América Latina, em que passaram cerca de 700 dias na estrada pedalando. Os passos para a concretização do sonho de fazer uma grande cicloviagem foram dados aos poucos. “Tínhamos um estilo de vida bem econômico durante a graduação, então tudo que sobrava ao final do mês ia pra poupança. Pensávamos assim ‘Esta luminária é legal, ficaria bem na nossa escrivaninha. Mas são dois dias a mais na viagem se eu deixar de comprá-la!’ O sonho sempre falava mais alto”, conta Ana.

Ele se formou em Ciências da Computação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e se tornou especialista em soluções não-técnicas, ou melhor, gambiarras em bicicletas. Ana estudou Moda na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e, em seu trabalho de conclusão de curso, pesquisou sobre o vestuário do ciclista urbano, onde descobriu possibilidades de tecidos e costuras mais agradáveis para quem pedala. Hoje, eles têm uma loja virtual, em que vendem acessórios para cicloturismo, camping e ciclismo urbano. “Nós percebemos que sempre estávamos confeccionando algum produto para adequar às nossas necessidades de viagens urbanas ou de lazer sobre bicicleta.” Quando conseguiram estabilizar a movimentação na loja virtual, André pediu demissão de seu trabalho e os dois passaram a se

daqui mesmo, de que isso não acontece em outros lugares de forma tão feroz e cruel.” Alguns de seus amigos e conhecidos também compartilham do sentimento de se estar sufocado e preso nas atribuições do dia a dia. “Conheço poucas pessoas nascidas na cidade que estão satisfeitas em morar aqui. Por mais frenético que você seja, acho que isso tem prazo de validade. Parece que São Paulo está expulsando as pessoas daqui.” E ela não deixa de estar certa. Segundo o Índice de Eficácia Migratória do IBGE, que mede a capacidade de absorção de pessoas por região, o estado de São Paulo, em 2000, teve registrado um índice de 0,16, enquanto em 2009 esse número foi para -0.04 (índices próximos a 1 indicam maior capacidade de absorver pessoas, enquanto mais perto de -1 indicam maior evasão populacional). Já em Santa Catarina, o índice em 2000 era de 0,17 e de 0,26 em 2009. Izabelle acha que sua geração não se preocupa tanto com o “fazer carreira” e esperar pelo sossego. “Com a velocidade dos acontecimentos, esperar para viver a vida ideal não funciona. Precisa ser agora, tudo junto. Se você não tem a possibilidade de ir embora, você não vai e nem pensa nisso. Agora, se existe a possibilidade de fazer diferente, aí aquele bichinho começa a coçar e você começa a sonhar e correr atrás. Pelo menos comigo é assim.”

Júlia Schutz juwschutz@gmail.com

Bianca Bertoli/Zero

stresse, poluição, correria, congestionamentos, fumaça, barulho, violência. A lista inteira é conhecida, e é no centro desse caos que muitos não se encontram; acabam mesmo é se perdendo. O ritmo de vida exige mais de seus moradores, e, em meio a tudo isso, algumas pessoas pensam: “Mal posso esperar pra me aposentar e sair daqui”. Izabelle Alvares, 26, mora em São Paulo e quer se mudar para Florianópolis. Há tempos nota os resultados da vida corrida da metrópole e os define: “Ônibus lotado, metrô lotado, rua lotada, cabeça lotada, peito lotado. E uma pressão absurda para dar conta de tudo”. A jovem não conseguia chegar a tempo em seus compromissos por causa do trânsito. Devido a poluição e ao estresse cotidiano, teve problema de psoríase, além da rinite alérgica e sinusite. Começou a ter crises de pânico enquanto andava pelas ruas, suava frio e tinha a sensação de que alguma coisa ruim iria acontecer. Foi o estopim. A ideia de procurar outro lugar para viver foi pensada em conjunto com um ex namorado. Seu primeiro destino foi Amsterdã. Pelo site Workaway.info, Izabelle, na época com 23 anos, encontrou um trabalho como passeadora de cães. Depois disso, achou outro emprego e ficou pela cidade até completar um ano, data em que não podia mais adiar sua passagem de volta ao Brasil. Depois de quase dois anos de seu retorno de Amsterdã, Izabelle chegou ao “seu limite, de novo”, como ela mesma diz, e agora é em Florianópolis que pretende encontrar sossego.

dedicar exclusivamente ao novo negócio. “Em certo momento vimos que nosso ganho poderia financiar parte da viagem, uma pequena quantia por mês junto com o que conseguimos poupar nos anos anteriores seria suficiente para alguns meses de viagem, bem econômica, de bicicleta.” O custo médio de pernoites durante a cicloviagem foi de R$ 4,00 por pessoa, valor próximo ao que o casal pagava de taxa de condomínio (R$ 120,00) do prédio em que moravam em Florianópolis. “Por aí já se tem uma base que a vida na estrada é bem menos custosa que a nossa antiga vida cubicular urbana. Agora, em termos de satisfação pessoal, não há como medir e calcular.”

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Gabriela Damaceno gktdamaceno@gmail.com

Casal passou cerca de 700 dias na estrada


16 CONTRACAPA

Dezenas de trabalhadores de prédios em construção moram dentro da UFSC

Fotos: Mateus Vargas/Zero

Desde os 16 em alojamento de firma

Operários narram suas vidas, enquanto assistem ao jogo entre Brasil e Colômbia no Mundial

Respeita o hino, Zé. Respeita que é a parte mais emocionante do jogo. Bola já começa com eles, esse James (Rodrigues) é frio, incomoda. Põe uma pra gelar que os colombiano vão dar trabalho. Tira foto aí pra mostrar que é o assador oficial, Zé. Tem contrafilé e porco. E tu, da câmera, pega uma cerveja, não te acanha. ——— Se já morei antes em obra? Tô desde os 16 em alojamento de firma. Fiz aniversário na semana passada. Teve festa aqui, fizemos uma carninha. Depois foAndarilhos de obra: alguns operários moram no local onde a empresa constrói mos pra putaria, gastei 700 conto. Não me recuperei até agora. Tô meio torto Falta daí é muito longe do gol, tem a gente. Mina que é bom os caras não ainda. de cruzar na área. GOOOOOOL! Porra, trazem. Não é foda? Morar em obra é bom. Tem cama e golaço! David Luís é muito foda. Só não Eu trabalhava levando muamba do comida, pão de manhã e janta à noite. é melhor que o Thiago Silva. O cam- Paraguai pro Brasil. Aqui é meu primeiPrecisa mais? O problema é que tô dopeão voltooooooooou! ro trampo em obra. Vim com um amigo. ente e o quarto lá é muito úmido. Antes Porra, me fudi no bolão. Morei um tempo na Ocupação Amarildo. eu tava num melhor, mas tive de sair ——— Ah, depois que saíram da SC-401 eu por causa do velho faquiador. Sabe o Esse quarto é muito úmido e tô larguei. Mas porra, tem nego aqui que que é velho faquiador? Ele bebe e quer doente, já disse. Durmo com mais três mora em morro, paga aluguel alto e dar facada em quem aparece na frente. peão. Mas hoje vou para as Maria, não não quer participar da luta. Depois que Eu me estranhei com ele e fui pro quarfico aqui. Quanto cobram? Essas nada. entrei na ocupação mudei muito da Nos quartos de madeira há dois beliches, televisão e video game to dos fundos. Saem com o cara, bebem, ficam bem minha visão política. Claro que antes Vamo Brasil, porra! Ô campeão vol- na mijando. O foda é aquela batucada ——— louca. Tudo na faixa. Ainda vão cobrar? eu já sabia que político é tudo filho da tooou! Gol! Gol! Caralho! Gol, porra! O na quarta-feira ali no prédio do lado Eu não sou de sair pra farra. Dei- Hoje não durmo em casa. puta. Mas mudei. campeão voltooou! (Centro de Convivência). Vai até ma- xei a mulher e três filhos na Bahia. ——— Aqui os papos são todos diferentes, Thiago Silva é o melhor zagueiro do drugada. Tô em obra pela primeira vez. É bom Desliga essa música aí, Zé. Que o né? Peão de obra é tudo maluco! mundo. Sei não, David Luis também é Se eu ganhar no bolão levo 250 demais. Aqui chove emprego! E eu tra- jogo tá pegado. Tá parecendo o último Ô da câmera. Tenho um furo de bom. Mas nem se aproxima do Thiago conto. Vou daqui pra Zona. balho bem, trabalho bem mesmo. Com jogo, tomando pressão. reportagem pra ti! Neymar tá fora da Silva. A gente trabalha mais ou menos a graça de Deus, nosso senhor. Comecei Penalti. O Júlio César pega. Pega! Copa! Mordeu o grelo da Bruna e tá Quem quer carne mal passada já 10h por dia. Dá uns 10 conto por hora, a trampar com sete anos, fazendo tijo- Porra, que frieza do filho da puta. Eles suspenso pela FIFA! Tô zoando, deu lepode pegar. Não é aquela carne que a uns ganham mais outros menos, de- linho pra ajudar meu pai na olaria. vem pra cima tentar o empate. são nas costas. gente fazia lá no Rio Grande, mas tá pende da função. Depois fui pra roça. Arrancava toco Para de gritar, Zé. Respeita o jogo. ——— boa. Aqui é esses bifinho, lá era carne É trampo né? Saio da obra e só de eucalipto, limpava patio e fazia frete Último lance. Poorraaaa!! O Campeão Próximo jogo tem de fazer outro mesmo, no espeto no chão. quero tomar uma canha até de madru- final de semana. Era puxado, trabalho voltooou caralho. Pra cima dos ale- churrasco. Repetir tudo. O Zé assando, Alojamento é bom, tem comida, a gada. Eu sou ignorante mesmo, só sei pra escravo. Com 18 anos, procurei mão! Vai Brasil! o baiano na capoeira, eu com a camisa gente faz umas festinhas, visita umas gastar a grana na noite. uma firma. Tem festa dos alunos? Vamos lá pra do Avaí. Ô, da câmera, tu vai tá aqui de meninas. Se o Brasil perder, fudeu. Sou burCê guenta trabalho firme? Me per- frente botar um som. novo pra não dá azar. Quando tem festa na universidade a ro, mas entendo de umas coisa. E tem guntou o dono da firma. Guento. Mas É Brasil, porra! É Brasil! gente se mistura. E as mina vem tudo muita gente contra a Copa que vai que- não dava dinheiro, era cinco conto por Os meninos disseram que vão traMateus Vargas mateusbandeiravargas@gmail.com mijar aqui do lado. Tem fila de meni- rer quebrar tudo aí. dia. Só. zer umas linguiças pra assar aqui com , julho de 2014


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