Quantos gritos cabem no silêncio dessa cidade?

Page 1

QUANTOS GRITOS CABEM NO SILÊNCIO DESSA CIDADE? Exposição de Taciana Oliveira Textos de Cristina Huggins, Elvis Pinheiro e Germana Accioly



Concepção, Curadoria e Produção do projeto Galeria do Meio-Dia e Taciana Oliveira Organização do Catálogo Galeria do Meio-Dia, Aliás Selo Editorial e Taciana Oliveira Textos Cristina Huggins, Elvis Pinheiro e Germana Accioly Revisão de Texto João Gomes Fotografia, Produção Audiovisual e Projeto Gráfico Taciana Oliveira

Oliveira, Taciana OT118q Quantos gritos cabem no silêncio dessa cidade / Taciana Oliveira; Recife/PE, 2018. 52p. 1. Fotografias. 2. Recife. 3. Audiovisual. 4. Poesia. 5. Vídeoinstalaçáo. I. Catálogo expositivo. lI. Título. ISBN: 978-85-54263-03-4


QUANTOS GRITOS CABEM NO SILÊNCIO DESSA CIDADE?


Índice

Foto 1: Escultura do Ícaro na Praça 17 --------------------------------------------------8 Apresentação, por Cristina Huggins ----------------------------------------------------9/10 Foto 2: barco no Capibaribe e Dedicatória -----------------------------------------------11 Foto 3: Praça Maciel Pinheiro ---------------------------------------------------------12 “Faço filmes, tenho sonhos”, por Taciana Oliveira --------------------------------------13 Foto 4: Andréa Veruska no Parque das Esculturas --------------------------------------14 Foto 5: Escultura do Ícaro na Praça 17 ------------------------------------------------- 15 Foto 6: Ave no Rio Capibaribe ---------------------------------------------------------16 Foto 7: Comunidade do Bode, no Pina, --------------------------------------------------17 Foto 8: Barco no Marco Zero -----------------------------------------------------------18 Foto 9: Andréa Veruska no Parque das Esculturas -------------------------------------19 Foto 10: Estátua da Ponte Maurício de Nassau ---------------------------------------- 20 Foto 11: João Melo no Marco Zero ------------------------------------------------------21 Fotos 12 e 13: Garotos no Parque das Esculturas ----------------------------------------22/23 Foto 14: Danilo Gonçalves na Praia de Boa Viagem ------------------------------------- 24 Foto 15: Palafitas da Comunidade do Coque ------------------------------------------- 25 Foto 16: Palafitas da Comunidade do Bode ----------------------------------------------26


Foto 17: Casa na Rua da Glória ----------------------------------------------------- 27 Foto 18: Fonte da Praça Maciel Pinheiro ----------------------------------------------- 28 Foto 19: Banca de frutas na Maciel Pinheiro -------------------------------------------29 Eu, transparente, por Germana Accioly ------------------------------------------------30 Foto 20: Rua da Matriz, Bairro da Boa Vista -------------------------------------------31 De que vale uma casa velha?, por Germana Accioly -----------------------------------32/34 Foto 21: Rua da Matriz, Bairro da Boa Vista ------------------------------------------- 33 Foto 22: Rua da Matriz, Bairro da Boa Vista ---------------------------------------- 35 Foto 23: Lagoa do Araçá, Imbiribeira ------------------------------------------------ 36 Foto 24: Quierqules Santana na Rua da Aurora --------------------------------------- 37 Foto 25: Fábio Eduardo na Comunidade do Coque -------------------------------------38 Foto 26: Garotos no Parque das Escultura ------------------------------------------ 39 Foto 27: Danilo Gonçalves na Praia de Boa Viagem ---------------------------------40 Foto 28 : Gleydson Yuri na Comunidade do Coque ------------------------------------41 Foto 29: Meninas na Praia de Boa Viagem

----------------------------------------42

Foto 30: Garoto no Parque das Esculturas -----------------------------------------43 Foto 31: Quierqules Santana --------------------------------------------------------44


Um silêncio foi tocado por Taciana Oliveira, por Elvis Pinheiro --------------------- 45/47 Foto 32: Rua da Saudade -------------------------------------------------------------46 Foto 33: Comunidade do Coque ---------------------------------------------------------48 Colaboradores --------------------------------------------------------------------------49 Foto 33: Casarão da Rua da Glória / Agradecimentos ----------------------------------50 Ficha técnica ---------------------------------------------------------------------------51 Foto 34: Parque das Esculturas -------------------------------------------------------52



De tanto olhar as grades, seu olhar esmoreceu e nada mais aferra. Como se houvesse só grades na Terra: grades, apenas grades para olhar. Rilke, A pantera

Os versos do poeta expõem o triste fim de uma pantera, cerceada de seu ambiente natural. Para o felino, a liberdade é pretérita; seu presente, a jaula de um zoológico. Contrastes entre uma cidade do passado, mais generosa e hospitaleira, refúgio e conforto de seus habitantes, e outra, atual, inóspita e tirana com os cidadãos, permeiam a memória dos mortais que residem na urbe registrada por Taciana Oliveira. Quantos gritos cabem no silêncio dessa cidade? O média-metragem da diretora é também uma pergunta que rouba o sossego. No filme, a cidade é melancólica, assombrada pelo descaso e pela incerteza. Suas personagens, “panteras-bípedes”, aprisionadas nessa urbe nada gentil, deambulam pelas ruas, atormentadas em meio à nostalgia e à angústia. Uma delas vagueia até esbarrar na mesma porta. Confere a residência, velha conhecida, e tomba o corpo fatigado na mesma cama. É noite. É dia. É noite. É dia. É noite. É dia... Desperta, sufocada por um cotidiano linear.

“Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto”, escreveu Machado de Assis. Taciana mostra o rosto de sua cidade. Ousada, evita obviedades. Escolhe uma vereda tortuosa para dialogar com o espectador. Dispensa a narrativa esperada, conduzida pela palavra, e constrói uma crônica imagética que flerta com a música. Na tela, passeiam tipos insones, alucinados, atordoados, perdidos; mas igualmente solidários, generosos, puros e, às vezes, confiantes. Ela incorpora cada um deles como alter egos e convoca a sociedade à reflexão.


O destemor e a singularidade da cineasta chamam a atenção. É preciso valentia para fazer perguntas lancinantes e cortar o próprio músculo. Ela tem essa coragem. Não receia sangrar. Como Saramago, brada aos sete ventos: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia”. Seu trabalho é faca amolada. Fere, mas também emancipa. As cores incidentais, a generosidade de pessoas de uma comunidade humilde e a inocência de uma criança-anjo — punctum de uma cena hostil —, entremeadas no cenário sombrio do filme, acenam para respostas e uma esperança de cidade harmônica possível. Neste e-book, estão reunidos frames e fotografias da diretora, textos de convidados, e de escritores selecionados por ela para integrar a edição. Apreciar esse material é empreender uma jornada pela visão de Taciana sobre viver e conviver nas metrópoles de hoje. O e-book e o média-metragem fazem parte dos trabalhos levados ao público pela Galeria do Meio-dia, projeto da Garagem 94, em 2018. Taciana Oliveira vem trabalhando, incansavelmente, na produção audiovisual desde 1991. Assinala, como seus trabalhos mais significativos, A descoberta do mundo: um documentário sobre Clarice Lispector; O som que vem de Paciência — curta sobre o luthier Joaquim Pinheiro —; Das Dores — realização ficcional entrelaçada pela narrativa de três poemas; e o videoclipe Perdidos no espaço, da banda Paulo Francis Vai Pro Céu, vencedor na categoria Democlipe no MTV Video Music Brasil de 1998.

TEXTO

CRISTINA HUGGINS


PARA INÊS AMORIM E ADÉLIA PIQUET

“Não fazemos uma foto apenas com uma câmara; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, a música que ouvimos, as pessoas que amamos.” Ansel Adams



Faço filmes, tenho sonhos. Ultimamente não tenho muito, não tenho pouco, não tenho nada. Faço filmes em preto e branco, com pedaços de coisas, retalhos perdidos, loucuras de uma mente cansada. Fotografo versos, traços indefinidos, traços coloridos, arco-íris sem chuva. Desenho um plano sequência, escrevo cartas, mando recados e não espero respostas: não sei vender alegria, minha tristeza não incomoda. Faço um esboço de lugares que não conheço, fotografo imagens que me perturbam. Ando em círculos, dou meia volta e pergunto insistentemente a quem não quer me ouvir: Quem pode justificar a dor? Taciana Oliveira


FILM FRAME

ANDRÉA VERUSKA



CAIS

DO IMPERADOR




FILM FRAME

ANDRÉA VERUSKA



MARCO ZERO

RECIFE ANTIGO





FILM FRAME

COQUE



BOA VISTA

RUA DA GLÓRIA



BOA VISTA

PRAÇA MACIEL PINHEIRO


eu, transparente eu ando muito clarice lispector. uma clarice ambulante. perambulando pelas ruas do recife mascate. tudo em letra minúscula, porque nada é mais importante que nada. nada é menos revelante que tudo. eu ando me sentindo tanto! às vésperas dos 45 anos, me sinto mais menina do que nunca. e mais mulher do que sempre. como se retirasse todo o sumo de uma laranja e bebesse puro, sem água, com seus travos e bagos. como se comesse a laranja inteira, sentindo suas sutis nuances. clarice andou pelas ruas que eu ando. clarice viu meu cenário, já foi minha vizinha, em tempos desencontrados. ando pelas pedras e buracos da cidade, vejo nos rostos das pessoas um pouco da história. a rua fala. os carrinhos de fruta concentrados na praça maciel pinheiro dialogam com os moradores de rua que ali tomam banho. eu passo transparente por eles. outro dia estava justamente ali, cheia de sacolas nas mãos, quando um grupo de meninos impregnados de cola passaram por mim. eram uns 15, talvez. eles me atravessaram, passaram por mim e eu era quase uma transparência. eu não tive medo de perder nada. e eles nada quiseram de mim. virei paisagem.

TEXTO

GERMANA ACCIOLY



De que vale uma casa velha?

Sou moradora da Rua da Glória, no bairro da Boa Vista, no Centro do Recife. Moro numa destas casas orgânicas, antigas e generosas. Abro a janela e toco meu piano. Imagino a rua sorrindo, com saudade do tempo em que cada casa tinha um piano. A Glória da ocupação dos judeus no início do século XX. A Glória do Centro Islâmico no século XXI. A minha Glória. A minha memória afetiva. O que sentir quando mais uma casa na rua é destruída pelo fogo? Mais uma. Dessa vez, o sobrado dos girassóis na janela. Que fica na frente do centenário convento da Glória, sobrado vizinho à primeira sede do Clube Lenhadores. De que vale uma casa velha? De que valem os pobres seres que nela habitam empilhados feito papelão? Faz um tempo, não muito, que um depósito de papel pegou fogo na Rua Velha. Bombeiro, Defesa Civil, gente morta, interdição da rua e tapume. Pronto. Foi feita a política institucional. Depois, outros caíram. Foi a chuva. Foi o tempo. Foi a vontade de Deus. Foi a falta de uma política de respeito às pessoas e à memória. Foi mais um. Era uma dessas pensões sustentadas pelo aluguel social – a política habitacional do município. Um sobrado secular (Quem se importa? Não tinha nem espaço gourmet.) Um curto-circuito, numa casa caindo aos pedaços. Piso de madeira corrida, gente entulhada em cubículos.



De que vale uma casa velha?

Bombeiro, Defesa Civil, Samu, interdição da rua e tapume. Pronto. Foi feita a política institucional. Na cidade dos prédios espelhados que nada refletem de história, o que valem uns pobres quase cidadãos sentados no meio-fio.

A omissão mata. O descaso mata. A falta de respeito mata. E duas pessoas morreram no incêndio do sobrado dos girassóis na Rua da Glória. Os bombeiros não ouviram a população, que dava notícia da falta. Interditaram a casa sem a devida busca. Os moradores, desolados, quebraram o cadeado, furaram o bloqueio e encontraram seus mortos. Triste. Desesperador. Apavorante. Essa chuva insistente não lava a alma. Encharca o peito e sufoca. A rua muda. Intranquila de dor.

TEXTO

GERMANA ACCIOLY



IMBIRIBEIRA

LAGOA DO ARAÇA


FILM FRAME

QUIERCLES SANTANA


FILM FRAME

FÁBIO EDUARDO


MARCO ZERO

PARQUE DAS ESCULTURAS


FILM FRAME

DANILO GONÇALVES


FILM FRAME

COQUE


PRAIA

DE BOA VIAGEM



FILM FRAME

QUIERCLES SANTANA


Um silêncio foi tocado por esse filme de Taciana Oliveira

Minutos, horas, o tempo. Um tempo de descanso, um tempo de trabalho, um tempo de contemplação. Uma Recife espaço-tempo que se faz de lugares, de fragmentos, de ausências e de líquido. Uma cidade que se dissolve e que sua, que derrete, que se inunda. Uma cidade de trilhos, de muros, de pontes e de pontos de convergência. Sonoridades: uma voz feminina que apresenta o circuito no qual entramos, seguida de músicas que orquestram imagens e um clássico para letreiros. O cinema se permitindo ser mais que uma narrativa linear e explícita. Um cinema que se pretende para a repetição do confronto porque não se mostra de uma tomada, de uma vez, de uma única olhada. Nós vamos olhando e olhando e olhando e nos deparando com as pessoas-tipo, com os típicos de uma Recife imaginária e real, uma Recife de além dos cartões-postais, uma Recife viscosa, referencial e criadora de referências. Uma cidade que lembra a morte, uma cidade-mangue de afogados, de crianças aos gritos e silenciadas. Taciana Oliveira transformou-se no Anjo de Asas do Desejo e passeou por Recife como se passeasse pelas Berlins de antes da queda do muro. Recife de muros, olhar de Anjo com cores próprias e um foco único no humano, no natural, no íntimo. O olhar passeia sobre esses seres invejáveis de vidas difíceis, mas que sentem o mar, o sono, o desejo. A música de Danilo Gonçalves torna clip os momentos de visita do Anjo CâmeraOlho. O filme é às vezes Vertov, às vezes Wenders e segue Eisenstein numa dinâmica de montagem que gera mais e mais sentido pela aglutinação de frames, pela justaposição de cenários e personas. A música, cada uma se presta a ilustração e nova narrativa em paralelo, fazendo polifonia. A imagem grita, a música grita, os letreiros com citações são outras vozes que não explicam nem

o que se passou nem o que virá. Estão no filme numa dimensão física do verbal e trazendo novas pessoas para a conversa.


FILM FRAME

RUA DA SAUDADE


Há quem busque explicação e queira no agir da ampulheta a transparência da compreensão e não se permite a experiência de viver o tempo-existência. Taciana nos apresenta o filme-poema-carta-diário-recordação-criação-transcrição. Nele cabem os marginais por viverem na margem e por não estarem à mostra. Todo o tempo é o tempo de chegar em casa, dormir, acordar e fumar um cigarro, espanar, espanar e esperar o cliente-choro, o comprador-defunto, a ponte que dá para imensidão e o ato de se jogar em travessia para o nada enquanto as crianças não sonham e brincam e jogam e de repente podem não estar mais lá, podem estar nas estatísticas. Porque Recife também são estatísticas terríveis que a diretora apresenta em meio aos balões. As cores do laranja e do vermelho podem ser o céu ensolarado podem ser as cores da tragédia. O azul da melancolia e da tristeza, da frieza e da umidade e o mar e o rio a misturarem lágrima, suor e saliva. Cada qual carregando sua solidão. Vi o filme muitas vezes, demorei muito para escrever sobre ele, porque não queria traí-lo com nenhuma explicação. Não queria que meu texto numa objetividade acadêmica traísse a impressão sentida na memória olfato, na memória tato, na memória fato. Vi o filme muitas vezes e poderia falar de aspectos técnicos ou narrativos ou metalinguísticos e eu não chegaria a falar do que senti. Mesmo agora eu posso apenas ser um eco do que captaram minhas retinas, minhas ouças. Cabem muitos silêncios dentro de mim e alguns destes resolveram se estilhaçar para se reconstituírem em depoimento.

TEXTO

ELVIS PINHEIRO



COLABORADORES

CRISTINA HUGGINS é especialista em Linguística Aplicada (UFPE) . Tem formação em Estudos Hispânicos (Salamanca, Espanha) . Sua experiência inclui ensino, pesquisa, produção de textos e tradução.

GERMANA ACCIOLY é jornalista, tem experiência em cultura e política. Moradora e amante do Centro do Recife. Cada vez mais dedica-se à escrita e assina o blog www.perderdevista.blogspot.com.

ELVIS PINHEIRO é formado em Letras pela URCA (Universidade Regional do Cariri), servidor público desde 2014, lotado atualmente na Coordenação do curso de Administração Pública da UFCA (Universidade Federal do Cariri), já morou em Recife onde cursou Publicidade na UFPE, e desde 2003 publica poemas sob o nome Cais do Porto. Presidente e fundador do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, há mais de seis anos é Editor da Revista Sétima de Cinema. Criou em abril de 2008 o LUME: a livre reunião de pessoas em torno de uma leitura compartilhada.


AGRADECIMENTOS Andréa Veruska, Quiercles Santana, Thiago Amaral, Roberta Santos Danilo Gonçalves, Shelder Osmo, Marcelo Silveira, Cristina Huggins, João Gomes, João Melo, Lucas Hero Águeda Amaral, Rodolpho Melo, Ronaldo Melo, Germana Accioly, Elvis Pinheiro, Fafá Rennó, Anna K Lima e Luciano Santiago.


Ficha Técnica Filme Experimental **** Elenco Andréa Veruska | Quiercles Santana | Danilo Gonçalves Elenco de Apoio Gleydson Yuri | Fábio Eduardo | Roberta Santos |Deyvid Santos | Ícaro da Silva |Artur Silva Participação Especial Fafá Rennó Direção de Arte Thiago Amaral Trilha Sonora e Som Danilo Gonçalves Direção, Fotografia, Roteiro e Edição Taciana Oliveira Realização Zest Artes e Comunicação **** Exposição e Vídeo-Instalação Produção de Catálogo João Gomes | Taciana Oliveira Realização Galeria do Meio-dia, Garagem 94 **** Parcerias Àlias Selo Editorial |Luca Hero Produções



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.