Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas

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Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Apoios

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental

Jorge Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Quando em 1532 Rui Fernandes acaba de escrever a sua «Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas», apresentando-se então como «Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei», estaria longe de imaginar a importância que, cinco séculos mais tarde, o seu registo teria para o conhecimento da região duriense. Escrevendo num momento de viragem histórica, entrevemos na sua descrição a transição da lógica de produção vinícola Medieval, local, de baixa qualidade e de autoconsumo, para uma lógica Moderna, de produção em quantidade, qualidade e fortemente vocacionada para a «carregação» para os mercados externos. Única descrição pormenorizada do Douro anterior à reforma pombalina, dá-nos uma imagem cheia de pormenor e cor das gentes, costumes, economia e paisagem. Referindo-se demoradamente aos mosteiros cistercienses de São João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, deixa claro o papel que estas abadias tiveram no desenvolvimento agrícola e, especialmente, vinícola do Douro, mormente através das inúmeras granjas monásticas que estiveram na base do sucesso económico da Ordem de Cister, perdurando muitas até hoje como grandes quintas vinhateiras. Apenas publicado pela primeira vez em 1824, pela Academia Real das Ciências, e contando com segunda edição em 1947 pela mão de Augusto Dias, somente em 2001 o manuscrito de Rui Fernandes é alvo da publicação transcrita e comentada que merece, numa iniciativa da Associação Beira-Douro, cabendo então ao historiador Amândio Barros a responsabilidade científica da mesma. Inserido no projeto turístico-patrimonial Vale do Varosa, esta nova reedição do manuscrito de Rui Fernandes pretende contribuir de forma renovada para a sua maior divulgação e acessibilidade, destacando o papel dos mosteiros cistercienses da sub-região do rio Varosa para a construção do Douro como hoje o conhecemos.

© Paulo

Rui Fernandes

Rui Fernandes

Amândio Jorge Morais Barros nasceu no Porto. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto, onde tem feito toda a sua carreira de investigador. Especializou-se nas áreas da História Social e Económica e na História Marítima (área do seu doutoramento: Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, prémio Almirante Sarmento Rodrigues da Academia de Marinha e Prémio Artur de Magalhães Basto de História da Cidade do Porto). As suas publicações têm incidido nestes domínios, assim como nos da História da Cidade do Porto e Douro e História da Expansão, aos quais tem dedicado diversos trabalhos. Professor da Escola Superior de Educação do Porto é pós-doutorado pelas universidades do Porto e de Valladolid, investigador do CITCEM-UP (Centro de Investigação Transdisciplinar. Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto) e membro da Academia de Marinha.


Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Apoios

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental

Jorge Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Quando em 1532 Rui Fernandes acaba de escrever a sua «Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas», apresentando-se então como «Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei», estaria longe de imaginar a importância que, cinco séculos mais tarde, o seu registo teria para o conhecimento da região duriense. Escrevendo num momento de viragem histórica, entrevemos na sua descrição a transição da lógica de produção vinícola Medieval, local, de baixa qualidade e de autoconsumo, para uma lógica Moderna, de produção em quantidade, qualidade e fortemente vocacionada para a «carregação» para os mercados externos. Única descrição pormenorizada do Douro anterior à reforma pombalina, dá-nos uma imagem cheia de pormenor e cor das gentes, costumes, economia e paisagem. Referindo-se demoradamente aos mosteiros cistercienses de São João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, deixa claro o papel que estas abadias tiveram no desenvolvimento agrícola e, especialmente, vinícola do Douro, mormente através das inúmeras granjas monásticas que estiveram na base do sucesso económico da Ordem de Cister, perdurando muitas até hoje como grandes quintas vinhateiras. Apenas publicado pela primeira vez em 1824, pela Academia Real das Ciências, e contando com segunda edição em 1947 pela mão de Augusto Dias, somente em 2001 o manuscrito de Rui Fernandes é alvo da publicação transcrita e comentada que merece, numa iniciativa da Associação Beira-Douro, cabendo então ao historiador Amândio Barros a responsabilidade científica da mesma. Inserido no projeto turístico-patrimonial Vale do Varosa, esta nova reedição do manuscrito de Rui Fernandes pretende contribuir de forma renovada para a sua maior divulgação e acessibilidade, destacando o papel dos mosteiros cistercienses da sub-região do rio Varosa para a construção do Douro como hoje o conhecemos.

© Paulo

Rui Fernandes

Rui Fernandes

Amândio Jorge Morais Barros nasceu no Porto. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto, onde tem feito toda a sua carreira de investigador. Especializou-se nas áreas da História Social e Económica e na História Marítima (área do seu doutoramento: Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, prémio Almirante Sarmento Rodrigues da Academia de Marinha e Prémio Artur de Magalhães Basto de História da Cidade do Porto). As suas publicações têm incidido nestes domínios, assim como nos da História da Cidade do Porto e Douro e História da Expansão, aos quais tem dedicado diversos trabalhos. Professor da Escola Superior de Educação do Porto é pós-doutorado pelas universidades do Porto e de Valladolid, investigador do CITCEM-UP (Centro de Investigação Transdisciplinar. Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto) e membro da Academia de Marinha.


Rui Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental


TiTULO Descricaodoterrenoem redor de Lamego duas leguas (1531-1532) AUTOR Rui Fernandes ESTUOO INTROOUTiiRIO , TRANSCRICAo ACTUALIZADA EF1XACAo CRiTICA DO TEXTO Amandio JorgeMorais Barros CODRDENACAo EDITORIAL Lu isSebastian FOTOGRAFIA DA CAPA BibliotecaPublica Municipal doPorto COMPOSICAo GRAFICA Ana Sarmento DATA DE EDiCAo 1.' edlcao, Outubro de 2012 ISBN 978-989-658-188-6

EOI CAO

ca e i

d ose 6 i0 Cale idoscopio - Edigao eArtes Gralicas, S.A. Rua deEstrasburgo, 26- Ric Drt." 2605-756 Casal deCambra Portugal Tel.:(+351)219817960· Fax:(+351)219817955 e-mail: caleidoscopio@caleidoscopio.pt www.caleidoscopio.pt

r/til'l

GOVERNODE

PORTUGAL

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SECRETARIO DE ESTADO DA CULTURA

DIRECc;.:\O HEGIO.'lAL DE CULTURA

no NORTE

www.valedovarosa.pt DRCN - Direcgao Regional deCulturadoNorte PracetadaCarreira, 5000-560 VilaReal Tel.:(+351)259330 770 . Fax:(+351)259330 779 e-mai l: geral@cu lturanorte.pt www.culturanorte.pt


Sumário

Prefácio. ..................................................................................................................................................................................................................... 5 Agradecimentos. ..................................................................................................................................................................................................... 7 Estudo Introdutório Saudades da terra: o pintor de Lamego......................................................................................................................................... 9

Introdução. .............................................................................................................................................................................................................. 10 O texto....................................................................................................................................................................................................................... 13 O autor. ..................................................................................................................................................................................................................... 16 A feitoria. ................................................................................................................................................................................................................. 20

O primeiro quadro de Lamego. ........................................................................................................................................................................ 23 Os vinhos e o Porto............................................................................................................................................................................................... 28 Outras gentes, outros produtos......................................................................................................................................................................... 33 Conclusão................................................................................................................................................................................................................ 37 Textos e documentos........................................................................................................................................................................ 39 Critérios de transcrição....................................................................................................................................................................................... 40 Transcrição actualizada. ..................................................................................................................................................................................... 42 Transcrição crítica. ............................................................................................................................................................................................... 76 Apêndice documental.................................................................................................................................................................... 119 Documento 1. ....................................................................................................................................................................................................... 120 Documento 2. ....................................................................................................................................................................................................... 121 Documento 3. ....................................................................................................................................................................................................... 124



Prefácio

Conhecer Portugal

De Lamego para o Douro e em torno das serras, dos declives, de um ou outro trecho de planalto mais a sul, nas encostas, caminhos, córregos que há séculos os homens abriram no dorso das montanhas ou no vale profundo onde corre o rio mais antigo. Assim se poderia, como numa monografia romanesca, delimitar o território onde circula o livro de Rui Fernandes, que Amândio Jorge Morais Barros anota e apresenta para nosso deleite. O contato direto com as fontes da nossa história é uma vantagem incomparável; neste caso, a leitura do texto de Rui Fernandes oferece-nos um retrato da sua época e a oportunidade de verificar como o tempo esculpiu mudanças essenciais no território e nas comunicações, como a economia local evoluiu e se transformou, como o bem precioso das vinhas da região era tratado, mas também como a genealogia do nosso tempo se preparava já no século XVI. O viajante que hoje se comove diante de uma paisagem tão rara, ou sabe distinguir e valorizar os vinhos desta região, não pode ignorar os sacrifícios, nem o engenho, a criatividade, o génio ou a sabedoria dos que, desde a época de Rui Fernandes, não construíram apenas uma paisagem ou uma economia, mas também legaram uma cultura que, ao longo dos séculos, mudou o mundo e conquistou a nossa admiração. Amândio Jorge Morais Barros evoca justamente essa outra obra monumental, Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, uma monografia do Descobrimento, contemporânea de Rui Fernandes: as terras da Beira Douro são, de facto, uma parte notável do paraíso original da Terra. O seu penoso isolamento foi, também, o pilar onde assentou a originalidade e a força dos seus habitantes, obrigados a procurar caminhos para tornar a vida possível e mais humana. Este esforço faz parte da história da região e devia comover-nos com sinceridade, e é ele que permite que saboreemos os vinhos esplêndidos do Douro, que apreciemos a forma como a paisagem foi sendo transformada ou como gerações de portugueses antigos souberam romper o isolamento e contornar as dificuldades. Conhecer Portugal é contatar de perto com as raízes, e o texto de Rui Fernandes transporta-nos nessa viagem. Francisco José Viegas (Secretário de Estado da Cultura)

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Agradecimentos

Em 2001 publiquei uma edição crítica da obra de Rui Fernandes Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas.Tal como naquela altura, o objectivo que aqui se apresenta continua a ser o de revelar a um vasto público um texto fundamental para o conhecimento de uma cidade e de uma região que desempenharam um importante papel no contexto do Portugal do século XVI. O estudo introdutório e a bibliografia nele citada são exemplos – entre muitos – das abordagens historiográficas que o texto nos permite fazer. As opções da edição continuam a ser minhas e naturalmente sujeitas a eventuais reparos. Procurei um compromisso entre a simplificação de uma transcrição actualizada e o aparato de uma transcrição crítica. A primeira destina-se ao grande público curioso das coisas do passado e, sendo caso disso, da sua terra. A segunda, como se compreende, destina-se a toda a comunidade científica. Surge imediatamente a seguir à versão actualizada do texto de Rui Fernandes. Escrevi um novo estudo introdutório, enriquecido com notas de investigação actualizadas. Tal como na anterior publicação continuei a receber o apoio da “Beira Douro” – Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro na pessoa de Rui Oliveira, com quem há muito tempo trabalho e a quem mais uma vez agradeço. Mantenho, como não podia deixar de ser, os agradecimentos a Gaspar Martins Pereira e a Luís Miguel Duarte, amigos de muitos anos, atentos revisores dos meus textos e colegas no Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória. Nesta edição o destaque e os maiores agradecimentos vão para Luís Sebastian e para a Direcção Regional de Cultura do Norte, prestigiada instituição à qual ele se encontra ligado, pelo convite que me foi dirigido para reeditar o livro. Há muito tempo ligado ao Douro e com obra feita a partir do mosteiro de S. João de Tarouca, o seu apoio e o seu entusiasmo foram inexcedíveis, e espero que esta seja a primeira de muitas iniciativas que possamos realizar conjuntamente. A.J.M.B.

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Estudo Introdutório Saudades da terra: o pintor de Lamego

Amândio Jorge Morais Barros*

Esta Ribeira do Douro se navega vinte e sinco legoas convém a saber: de São João da Fóz, que he a barra do Porto pello rio arriba ‘té São João da Pesqueira (...) com barcas que carregão mil 600 ‘té mil out[ocentos] alqueires de pão pella grande medida. […] e soom os mais excelentes vinhos, e de mais dura, que no Regno se podem achar, e mais cheirantes, porque ha vinhos de quatro, sinco, e sete annos, e de quantos mais annos he, tanto mais excelente, e mais cheirozo1

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Politécnico do Porto-Escola Superior de Educação. Investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória (CITCEM), membro da Academia de Marinha. 1 FERNANDES, Rui – Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas, manuscrito n.º 547 da Biblioteca Pública Municipal do Porto (=BPMP), fl. 9v. 9


Introdução

Quando se conta a história da navegabilidade do Douro, Rui Fernandes que escreveu no início da terceira década do século XVI é um dos primeiros autores citados. Os menos de 150 quilómetros de distância entre o Porto e São João da Pesqueira, então limite navegável do rio no Cachão da Valeira, haviam-se transformado na mais percorrida “estrada” de todo o vale do Douro e num decisivo factor de desenvolvimento de toda a zona norte do Reino. Essa condição justifica que o rio domine na descrição que aquele autor quinhentista fez de Lamego e da sua região. Objecto de história, o rio foi determinante na organização do território e na ligação entre o mundo urbano e marítimo e a ruralidade duriense que o tempo haveria de identificar com a produção de vinhos, “os mais excelentes que no Reino se podem achar”. Vinhedos em Lamego, junto ao Douro e ao Varosa, zonas privilegiadas com produção de qualidade, exploradas por mosteiros cistercienses, estiveram na base de um animado comércio, responsável pelo crescimento do trânsito fluvial e pelo estabelecimento de rotas marítimas desde o Porto. Estas primeiras impressões sobre o rio e os vinhos do Douro introduzem os temas que pretendo analisar nas notas que antecedem a publicação do documento de Rui Fernandes. Com alguns dados de arquivo e a corografia de Fernandes procurarei mostrar aspectos que me parecem relevantes na evolução económica do vale do Douro, a partir das suas produções, dos agentes que as comercializaram e da estreita ligação com a cidade e espaço portuário do Porto. No século XVI, esta cidade baseava a sua economia num activo comércio marítimo. Os circuitos estabelecidos durante a Idade Média em direcção a portos do Reino como Lisboa, ou do estrangeiro, como os das Ilhas Britânicas e os da Flandres continuavam a ter um peso muito grande, sobretudo numa altura em que se requeriam mercados para escoamento das mercadorias provenientes dos domínios ultramarinos atlânticos que entretanto afluíam ao seu porto. Mas o século XVI não decorreu sempre da mesma forma. Enquanto não se afirmou a economia do açúcar brasileiro (a partir dos anos 1570), enquanto não se consolidou a elite mercantil cristã-nova responsável por ela (a partir de meados do século), enquanto não se definiram as estratégias políticas que valorizaram os pequenos e médios portos nacionais defendendo a sua navegação (com D. Sebastião e os primeiros Filipes) sucederam-se períodos de dificuldades e impasses que exigiram resoluções satisfatórias. Arredado da rota do Cabo com a generalidade dos centros costeiros nacionais em razão das políticas monopolistas da Coroa, o Porto foi obrigado a encontrar alternativas, outros rumos para a sua actividade. Desse processo resultaria uma aposta atlântica bem-sucedida, primeiro com a exploração das Ilhas e do tráfico de escravos para as Índias de Castela e, mais tarde, com o Brasil dos canaviais de açúcar. A consolidação destes rumos valeu-se, numa grande percentagem, dos recursos económicos gerados na sua região envolvente. A cidade manter-se-ia fiel a essa matriz pelos séculos fora. A ligação ao Entre Douro e Minho garantia-lhe carnes e couros; a ligação às terras da Feira 10


Estudo Introdutório

e a Aveiro as madeiras para a sua construção naval e o sal para os seus tratos internacionais; por fim, a ligação ao vale do Douro assegurava-lhe vinhos, sumagres e azeites destinados ao consumo local mas também à exportação. Por isso se explica a preocupação, desde sempre manifestada pela Vereação e pelos mercadores, em manter uma navegação de cabotagem forte e atrair navios estrangeiros. Num dado passo do seu “tratado de um rico pano de fina verdura”, Rui Fernandes fala-nos de tréguas com os franceses evocando a dura concorrência e o conflito que então se travava no mar com os estados da Europa do Norte, responsáveis por uma quebra acentuada das frotas mercantes portuguesas, a do Porto incluída. Será a pressão dos homens do trato, entretanto organizados em companhias comerciais de dimensão internacional, junto da Coroa a forçar negociações, a assegurar o fim da contenda e a fazer prosseguir os negócios. Quando a corografia de Lamego foi escrita vivia-se um período de transição em que os velhos modelos económicos medievais davam mostras de ceder à economia moderna, ao capitalismo comercial, ao tempo dos mercadores. Ainda no Porto, tal opção passou pelo domínio do hinterland, processo amparado pela Coroa, impelido pela atracção exercida pela cidade, e resultou na canalização das produções de áreas extensas para o seu mercado. O caso do território de Lamego, embora geograficamente mais distanciado, enquadra este movimento, concretizado em toda a extensão do rio e das estradas que o marginavam por frotas de barcos, recovas de almocreves e carretos de cargas. Não é aconselhável menosprezar o significado deste trato interno. Os grandes produtos vulgarizados pelos descobrimentos, como a pimenta, a canela e outras especiarias só em ínfima parte eram transaccionados por mãos portuguesas, e o açúcar, que os cristãos-novos se encarregarão de tornar bem de consumo de massas, dependia de financiamentos e mercados muito instáveis durante a Época Moderna. A competição e a associação com poderosas companhias comerciais castelhanas, flamengas, alemãs ou italianas exigiram recursos e formas de actuação que protegessem os interesses das redes nacionais. Parte desses recursos resultava da exploração sistemática das produções do Reino através de esquemas de intervenção que passavam pela formação de parcerias e modelos de financiamento agrícola e comercial acertados entre o mundo urbano e o mundo rural. Característico da Época Moderna, este fenómeno da penetração do capital urbano no campo constituiu um exemplo de como os mercadores e os proprietários rurais puderam retirar vantagens do investimento nos produtos tradicionais da nossa economia, tornando-a mercantil de base agrícola, como a definiu Jaime Cortesão, e apoiada no tráfico de sal e nas pescarias, como a explicou V. M. Godinho. Como já foi dito foram os investimentos no vinho, azeite, sal ou sumagre os que mais se fizeram sentir. Ao mesmo tempo, fenómenos peninsulares, como o das navegações oceânicas, as armadas e a vida portuária foram oportunidades para as associações mercantis que dominavam o comércio trazendo para si e para os produtores com elas envolvidos lucros elevados. Será neste quadro que nos situaremos. Fruto da necessidade ou resultado de uma estratégia pensada, devemos interpretar este período como um momento de transformação favorável à evolução económica do Douro e à economia marítima portuense, dependente das rotas comerciais e do labor das redes de negócios. A actuação destas fez crescer como nunca o movimento dos portos, alimentado pelo tráfico de mercadorias. A sua vitalidade dependeu da intensidade e valor dos contactos por elas estabelecidos, bem como da manutenção de relações com diferentes áreas de interesse. Como a estabelecida com o hinterland, desde muito cedo tida como fundamental para a afirmação económica e, mesmo, sobrevivência, de alguns desses portos. 11


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

É esse tipo de relação que aqui se descreve. Se o intercâmbio entre o Porto e as regiões envolventes determinou a sua estrutura comercial-marítima, também ajudou a perceber a estratégia das redes mercantis na aquisição e controlo da distribuição daqueles produtos. Enfim, tal negócio – e isso é revelador do peso económico das redes – determinou uma parte da organização da estrutura portuária com a edificação de cais e postos de fiscalização adequados ao trânsito fluvial/marítimo e à supervisão do comércio. Em vários momentos do seu texto Rui Fernandes escreve acerca dessa animação fluvial, desse intercâmbio, certificando a importância da relação entre o Douro e o litoral. Produzida num contexto de crescente gosto pelo saber e de necessidade de informação próprios do Renascimento e do incipiente estado moderno, também esta descrição articula saberes2 e informa: o Rei, ao qual o autor se dirige constantemente através do bispo de Lamego, a quem dedica a obra, e os mercadores, aos quais se encontra ligado por relações que conheceremos adiante.

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GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – Duas Descrições do Algarve do século XVI. Lisboa: Sá da Costa, 1983, p. 3.

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O texto

É ocioso justificar a importância do texto escrito por Rui Fernandes entre 1531 e 1532. Tal como outros do género efectuados na época percorre os temas que esperamos encontrar nestas obras: as origens da terra, o número e distribuição dos seus moradores, a variedade e valor das suas produções, a posse da propriedade e algumas curiosidades históricas e naturais. Porém, e como aconteceu com outros escritos corográficos sobre o Entre Douro e Minho, Trásos-Montes, Lisboa e Algarve concluídos no século XVI, o texto de Fernandes sobre Lamego não aproveitaria aos seus contemporâneos. O seu destino foi permanecer inédito durante séculos pois o fulgor humanista foi efémero e o tempo adverso à corografia, que perdeu espaço em favor dos “secos relatórios de fogos, ruas, igrejas, conventos, rendimentos” mais interessantes à administração3. O manuscrito só viria a ser publicado pela Academia Real das Ciências em 18244, a partir de um documento, muito provavelmente o original, pertencente à biblioteca do Visconde de Balsemão, e abria da seguinte forma: “Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas; Suas producções, e outras muitas cousas notaveis: dirigida ao Sr. D. Fernando, Bispo da dita Cidade, Primo de El Rei, e seu Capellão Mor; e feita por Rui Fernandes, Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei, no anno de 1531 para 1532”5. Em 1947, Augusto Dias trabalhou o manuscrito que fora entretanto integrado na Biblioteca Pública Municipal do Porto, no seu projecto de monografia da cidade de Lamego quinhentista6. Quer o texto da Academia quer o de Augusto Dias há muito que estão esgotados e nem sempre se encontram acessíveis nas bibliotecas. Por isso impunha-se colocar à disposição dos interessados uma edição do texto, que é importante não apenas para a cidade de Lamego e a região envolvente, mas igualmente para o conhecimento de muitas facetas da vida económica e social do Portugal de Quinhentos. Em 2001 encarreguei-me disso apoiado pela Associação Beira-Douro, aproveitando o ensejo para fazer uma edição crítica do mesmo, cotejando as duas versões conhecidas7. Essa edição encontra-se hoje também praticamente esgotada, facto que levou a Direcção Regional de Cultura do Norte a interessar-se pela sua

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Idem, p. 4. Neste caso, utilizei a 2.ª edição da mesma obra, da qual retirei a citação completa: FERNANDES, Rui – Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas, in “Collecção de Ineditos de Historia Portugueza”, 2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1936, Tomo V, p. 546-613. 5 Idem. Ibidem, p. 546. 6 DIAS, Augusto – Lamego do século XVI. S/l.: Edições “Beira Douro”, 1947. 7 Rui Fernandes – Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas (1531-1532). Edição crítica de Amândio Morais Barros. Lamego: Beira-Douro, 2001. Procurava-se dar a conhecer a descrição de Rui Fernandes a um público alargado. Assim, depois da introdução seguia-se uma versão ortograficamente actualizada do documento e numa terceira parte surgia a transcrição paleográfica do texto. Como aqui acontece. 4

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

republicação, que aqui se faz, com novo estudo introdutório e apêndice mais desenvolvido, que inclui novos dados sobre a vida profissional de Fernandes à frente da feitoria de Lamego. Tal como em 2001, o documento base do presente trabalho é o manuscrito número 547 da Biblioteca portuense. Trata-se de uma cópia do original executada entre os finais do século XVII e inícios do século XVIII. Como aquele que foi objecto de publicação por parte da Academia das Ciências é provável que tenha pertencido ao Visconde de Balsemão, cujo espólio se conserva na Biblioteca Pública Municipal do Porto e inclui o manuscrito. Em relação ao documento editado pela Academia há algumas diferenças, quer na grafia das palavras, quer na disposição dos títulos – algumas vezes inexistentes8. Assim, procurei fazer o confronto dos dois textos, que o leitor poderá verificar pela consulta das notas críticas. O documento não é muito extenso. Compõe-se de vinte e oito fólios e o texto apresenta menor subdivisão de capítulos relativamente à publicação dos Inéditos da Academia9. Foi copiado pela mesma mão e a letra é característica do período atrás mencionado: finais do século XVII, inícios do século XVIII10. À boa maneira quinhentista/renascentista, Rui Fernandes dedicou a obra à figura do Bispo de Lamego, D. Fernando, que governou a diocese até 1540. É também provável que, de acordo com uma prática vulgar nessa altura, tenha sido o prelado a financiar o trabalho e a fornecer meios para a sua execução. Isso mesmo pode ser comprovado no capítulo sobre a “largura e altura do Douro”, fólio 10v, no qual Fernandes presta contas referindo: “E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os creados de Vossa Senhoria à barca da Regoa”. Conforme menção do autor, o texto foi terminado em 1532, mas, de certeza que o trabalho de recolha de informação, para além de provir do conhecimento de quem era natural da região e a percorria em função dos negócios e do cargo que ocupava, foi tarefa que lhe demorou alguns anos. O que leu para se informar, não sabemos; mas perguntou e foi ver quando pôde. Basta atentar no pormenor das descrições e na profusão de informações registadas. Que, segundo o próprio, ainda poderiam ter sido ampliadas pois, como diz no fólio 28, “as couzas conteudas neste tratado som muy verdadeiras, somente das fontes, e filhos, e povoadores e porcos, e outras couzas que por conta não podia tirar, vão postas antes em menos soma que mais, e assi a sepultura de Donna Mafalda que digo estar em Villa Boa do Bispo, outros dizem que a ossada esta no Mosteiro d’Arouca, della nom som bem certeficado [e] por ser fora do compas de duas legoas a nom fui ver”. Tal como atrás afirmei, não há memória de que tenha sido publicado em vida do seu autor. Quase de certeza que não11. Mas estes textos circulavam; desconhecemos a que ritmo nem com que alcance, mas circulavam, inspirando

8 Sobre eles, refere Augusto Dias: “Eis-nos, pois, à face de textos diferentes. O 547 [manuscrito da BPMP] é um códice encadernado a carneira, no formato 30X20 cm. A lombada, a ouro, tem os ferros usados nos fins do século XVII, princípios do século XVIII. A marca de água do papel é da oficina de António Pedroso, de Lisboa: - escudo tendo no campo uma faixa com a palavra Libertas sob coroa. Não há pois dúvida de que se trata de um volume encadernado na primeira metade do século XVIII. Demais, o erro de data a que se refere a nota final da publicação da Academia de Ciências não se verifica no códice onde está escrito sem rasuras ou emendas o ano de 1532”. O. c., p. XV. Mesmo assim, ficam dúvidas por esclarecer. Por exemplo, se estamos perante duas cópias diferentes do original; ou se alguém reproduziu uma cópia já existente – sendo que, num dos casos (no da Academia) há mais informação, nomeadamente acerca da propriedade de algumas terras mencionadas; além disso, pelo tipo de linguagem reproduzida no texto dos Inéditos, mais de acordo com a que se utilizava no século XVI, acredito que os académicos, apesar de alguns equívocos na transcrição, terão trabalhado a partir do original. 9 De qualquer modo, o texto é, basicamente, o mesmo. 10 Mantenho esta cronologia por uma mera questão de segurança, pois parece-me tratar-se de letra setecentista. 11 GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – o.c., p. 4.

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Estudo Introdutório

trabalhos semelhantes e, porventura, a discussão de alguns temas por eles suscitados. Neste caso, a riqueza do relato que o tratador de lonas e bordates de Lamego nos legou é indiscutível. E os historiadores não o ignoram. A frequência com que usam este texto e a diversidade de temas sobre os quais ele informa – por exemplo, Gonçalves Guimarães utilizou-no num interessante estudo sobre gastronomia duriense antiga12 – provam a importância dos conteúdos registados, testemunhos valiosos sobre o quotidiano duriense e nacional do século XVI.

12 GUIMARÃES, J.A. Gonçalves – Produtos alimentares da Beira Douro no século XVI: persistências e abandonos gastronómicos da região, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 21, 2006, p. 107-130.

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O autor

De Rui Fernandes pouco se sabe para além das raras informações sobre a sua pessoa que o próprio registou em algumas passagens desta obra, embora estudo recente de Carlos Manuel Valentim esclareça algumas das suas origens familiares e contactos desenvolvidos ao longo da vida. Natural de Lamego, era irmão de Jerónimo Fernandes, mercador e rendeiro dessa cidade, e de Jácome e António da Fonseca, netos de Mestre Rodrigo13. Casou no Porto com uma filha de Mestre Dinis, com quem viria a partilhar o trato das lonas e bordates de Lamego. Cidadão desta cidade, protegido do Bispo D. Fernando, Rui Fernandes ocupava o ofício de feitor das lonas e bordates do Rei desde meados dos anos 1520 e, a partir de 1530 fazia-o em parceria com o sogro e outros mercadores. Pelos documentos pouco podemos dizer em concreto acerca do conhecimento que tinha de outras terras e de outras culturas. De qualquer modo, dado o ambiente em que se movimentava e o tipo de contactos que mantinha por força da sua ocupação e posição social, não ignorava o que se passava para além das duas léguas em torno de Lamego. Pelo documento de 23 de Setembro de 153014 sabemos que andava por Lisboa: “porquanto elle amda em minha corte em cousas do meu serviço” entenda-se, tratando de assuntos relacionados com a gestão da feitoria – e bem precisava de o fazer – aproveitando para visitar o Bispo, que aí passava muito tempo. A instalação da feitoria das lonas e a economia da cidade baseada na exploração das potencialidades da terra imprimiam uma forte dinâmica à região – que também estava então à procura de um modelo sustentável de desenvolvimento – suscitando movimentações constantes, responsáveis pela animação do rio, das estradas e dos mercados, quer em direcção ao interior, ao resto do território nacional, quer às terras raianas e às feiras de Castela, quer ainda em direcção às cidades e vilas portuárias, e daí com prolongamentos a centros do comércio europeu. Num tempo em que a circulação de obras de arte e de cultura se fazia ao ritmo do comércio e das disponibilidades dos mecenas, as belas tapeçarias flamengas do Museu de Lamego, outrora no paço episcopal, aí estão para o comprovar15. Não é por este texto que conseguimos dizer muito sobre o seu grau de cultura. Já que nos falta original do documento nem sequer podemos avaliar a prática de escrita que tinha ou o seu domínio do Latim, que utiliza quando reproduz a epígrafe inscrita no túmulo de D. Teresa, mulher de Egas Moniz, em Salzedas. O que afirma sobre os Romanos – pequeno tributo pago aos clássicos, parafraseando Romero Magalhães e Viegas Guerreiro – é

13 VALENTIM, Carlos Manuel – Uma família de cristãos-novos do Entre Douro e Minho: os Paz. Reprodução familiar, formas de mobilidade social, mercancia e poder (1495-1598). Dissertação de Mestrado em História Moderna, policopiada. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2007, p. 58. 14 Apêndice documental, documento n.º 2. 15 Sobre estes panos de armar ver QUINA, Maria Antónia; MOREIRA, Rafael; PESSOA, José – Tapeçarias flamengas do Museu de Lamego. Lisboa: IPM, 2005.

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Estudo Introdutório

demasiado ligeiro para aferirmos o seu nível de conhecimento sobre os saberes da Antiguidade que começavam a ser largamente divulgados entre os espíritos mais esclarecidos. Fernandes escreveu alguns anos depois de Mestre António de Guimarães e conhecia a descrição do Entre Douro e Minho do autor vimaranense, dando prova de que estes textos eram resgatados ao anonimato através da circulação de traslados oferecidos à curiosidade de familiares, amigos ou associados, que os liam e discutiam16. Tal como se infere da leitura desta corografia, foi o trabalho de Mestre António que motivou Fernandes a escrever a descrição da sua terra. Finalmente regista alguns dados históricos, comum ou convenientemente divulgados no seu tempo, não deixando de associar a entrada no Reino dos judeus de Castela à ocorrência de pestes que, juntamente com o caso, que poderíamos dizer endémico, da Régua, utiliza como excepção à regra do panorama sadio da sua terra natal17. Um documento que encontrei nos registos da Alfândega do Porto18 fornece-nos mais alguns elementos sobre ele. De acordo com esse registo, datado de 1530, Rui Fernandes, confirmado como cidadão de Lamego, já obtivera o título de escudeiro da casa do rei e usufruía de outros privilégios por intermédio do trato de lonas e bordates. Esses atributos tinham significado na época integrando-o nos quadros de um elite local, de uma aristocracia influente de variada extracção, composta por abastados mercadores e cavaleiros. Cidadão de Lamego, escudeiro e feitor das lonas e bordates. Para além dos benefícios inerentes às duas primeiras condições, a última dava-lhe a possibilidade de desfrutar de uma série de privilégios sociais não negligenciáveis no seu tempo. Na protecção aos feitores das lonas o rei decretava que “sejam escusos de servirem em cousas algũas com suas pesoas e asy ajam e guozem de todalas liberdades que tem os oficiaes de minha armaria”. Mais: em todos os pleitos cíveis ou crimes podiam escolher juiz e alçada; no caso de Gestaçô, onde havia feitoria idêntica, podiam recorrer para o contador da cidade do Porto ou o juiz de fora da mesma cidade, e essa prerrogativa passava também a beneficiar os de Lamego. Eram dispensados do indesejado direito de aposentadoria. Mas podiam fazer uso dele. Estavam autorizados a trazer “armas defesas”, isto é, proibidas, de dia ou de noite desde que as não utilizassem para fazer mal. Podiam andar em mulas e animais de albarda, regalia muito solicitada por todos quantos, pela sua categoria social, eram obrigados a ter cavalo, animal dispendioso. Tinham também direito a uma soldada, espécie de ajudas de custo equiparadas às que eram pagas anteriormente aos besteiros do conto19. Sendo considerados culpados em qualquer tribunal, eram protegidos da humilhação social não podendo ser açoitados publicamente nem degredados com baraço, recebendo apenas punição como a que era aplicada aos escudeiros. Eram dispensados de pagar nas mais variadas fintas e talhas lançadas pelos concelhos ou pelo rei. Não serviam “em matos, pomtes, fomtes, caminhos, calçadas soomente nas testadas de suas casas”. Também não serviriam com presos nem transportariam

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Tal como o de Lamego, o texto de Mestre António esteve inédito até 1959. Foi primeiramente publicado por RIBEIRO, Luciano – Uma descrição de Entre Douro e Minho por Mestre António, in “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, vol. XXII, fasc. 3-4 (Setembro-Dezembro). Porto: Câmara Municipal do Porto, 1959, p. 440-460. Sobre esta obra ver VALENTIM, Carlos Manuel – Uma corografia renascentista útil ao poder e aos poderes, in “NW. Noroeste. Revista de História” (Actas do Congresso Internacional de História, Territórios, Culturas e Poderes). S/l: Núcleo de Estudos Históricos/Universidade do Minho, 2006, p. 433-451. 17 “O mais compasso da terra he muito são de mui poucas febres, e de poucas maleitas; e des que os Judeos de Castella entrarão em Portugal, que então forom mui grandes pestellenças, nunca mais ouve peste”. Idem, fl. 22. 18 Arquivo Distrital do Porto – Contadoria da Comarca do Porto, liv. 4, fl. 50v-51v; publico-o em apêndice, documento n.º 3. 19 “Quando os hy avia”. Este documento dá-nos uma informação preciosa sobre a extinção deste serviço militar; no caso, na cidade do Porto, mas possivelmente, também em Lamego. 17


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

dinheiros. Nem participariam em trabalhos públicos ordenados pelo monarca ou pelos municípios. Por fim, estavam isentos do pagamento de uma série de tributos que incidiam sobre as produções das suas terras ou de pagamentos de impostos, como a sisa sobre algumas mercadorias, à fazenda pública. Esta elite evidenciava-se na abertura da Época Moderna, aliada ao Rei que a privilegiava e a utilizava como apoio das suas políticas de controlo dos poderes locais. A ela deveu-se, em certa medida, a construção do Douro dos vinhedos. As suas raízes encontram-se na Baixa Idade Média. Mantendo relações com todo o vale do Douro até ao Porto, e com prolongamentos até à fronteira, aos povoados e cidades da raia de Castela, às feiras de dinheiro e aos portos do norte da Península, estabeleceu uma série de redes bem articuladas e responsáveis por um intenso trânsito mercantil sentido em todos os portos, secos e molhados, de Portugal. O exemplo de Rui Fernandes ilustra a capacidade de relacionamento dos centros mais activos da economia nortenha, tendência a que se assistia nesta altura um pouco por toda a região. Como muitos antes e depois dele, ligou-se por laços familiares com outras sociedades mercantis. É no já mencionado documento da Contadoria do Porto que se sabe ser casado com uma portuense, filha de um certo Mestre Dinis, licenciado, e, como outros, identificado pela documentação como um físico e homem de negócios do Porto ligado aos tráficos com o Douro. Os seus recursos, decerto gerados no comércio, permitiam-lhe ser “parceiro em yguoall parte no dito trato dos bordates” com o seu genro. E, ao que parece, com outros mercadores. Este dado sobre a sociedade no trato das lonas merece melhor reflexão. A carta de privilégio mostra-nos Rui Fernandes associado por matrimónio a uma família de cristãos-novos. De acordo com Carlos Valentim, que atrás citei, o mesmo acontecia com o seu irmão Jerónimo, que casara em Lamego com uma cristã-nova da abastada família Paz que geria uma rede internacional desde o Entre Douro e Minho e, mais concretamente, do Porto. Não é impossível que Fernandes fosse também um cristão-novo20. O seu percurso familiar e mesmo a sua participação no trato dos bordates como feitor (e rendeiro) enquadram modelos de intervenção seguidos por esta elite ocupando cargos lucrativos, prestigiados e influentes que, desde logo, lhe permitiam aceder a domínios sociais e económicos, dentro e fora do Reino. Além disso, a cidade de Lamego e o seu bispado eram conhecidos pela sua extensa e movimentada comunidade de cristãos-novos, protagonista de volumosos empreendimentos mercantis e financeiros nos séculos XVI e XVII em Portugal e no estrangeiro21. Neste período de afirmação da economia-mundo,

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O que não impede que tenha escrito o que atrás foi dito a propósito da relação entre a entrada dos judeus no reino e as pestilências. Num tempo tão complicado, com anúncios de estabelecimento da Inquisição e um clima de tensão que a qualquer momento poderia resultar em ataques à comunidade, era indispensável não dar nas vistas e sustentar publicamente uma opinião que caísse bem entre a ortodoxia. Em 1532 esteve a ponto de rebentar em Lamego um tumulto anti-judaico, circulando panfletos que incitavam ao holocausto; NAZARIO, Luiz – Autos de fé como espetáculos de massas. São Paulo: Editorial da Universidade de São Paulo, 2005, p. 65. 21 Basta pensar nos Coronel, família de cristãos-novos de Baiona com um importante ramo em Lamego, ligado ao financiamento da Coroa dual no século XVII; SANZ AYÁN, Carmen – Los banqueros de Carlos II. Valladolid: Universidade de Valladolid, 1989, p. 365-366. Estou neste momento a estudar um processo da Inquisição de Cartagena das Índias onde estas ligações familiares, que se estendem aos portos do Noroeste português e à Andaluzia são descritas. Ou nos Mendes, que começaram por vender vinhos e sumagres desde a Folgosa, Gogim e Vila Seca para o Porto e acabaram por exportá-los para a Europa graças às ligações geradas pelas redes cristãs-novas em que se integravam, nomeadamente a de Mestre Isidro. Ou ainda João Nunes Correia, contratador de Pau Brasil no início do século XVII, com origens em Lamego e Castro Daire; Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e gente do trato, dir, de A.A. Marques de Almeida. Lisboa: Campo da Comunicação, 2009, p. 425-427. Os percursos de uma parte destes homens podem ser acompanhados em NOVOA, James Nelson; BASTOS, Susana Mateus – De Lamego para a Toscana: o périplo do médico Pedro Furtado, cristão-novo português, in “Cadernos de Estudos Sefarditas”, n.º 5, 2006, p. 313-338. Sobre os cristãos-novos de Lamego e as suas questões com a Inquisição foi recentemente defendida uma tese de doutoramento da autoria de Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas Ferreira, que ainda não me foi possível 18


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a capacidade financeira e de organização dos cristãos-novos deu-lhes o controlo de alguns sectores fundamentais da economia portuguesa. E assim, graças ao texto de R. Fernandes, vemos como uma região periférica participa neste processo. Talvez seja lógico supô-lo dentro da mesma rede que compreendia os Paz como figuras de primeiro plano de articulação económica e de transformação das relações entre os agentes envolvidos, Mestre Dinis e ele como membros (aparentemente) secundários, e todos eles protegendo-se através da integração em instituições poderosas: os Paz, procurando prestigiar-se pela via das alfândegas do Entre Douro e Minho22, Fernandes e o sogro pela posse da feitoria das lonas e o patrocínio do Bispo. Sem certezas quanto a essa origem é, no entanto, inegável a associação de Rui Fernandes aos meios mercantis conversos e, desse modo, aquilo que escreveu integra-se também num processo de acumulação de informação e de saberes que interessavam a estes homens de negócios, como mais tarde fará Bento Fernandes, no Porto, com o seu “tratado de Aritmética” (1555).

consultar mas que parece trazer dados impostantes para o conhecimento desta comunidade dado ter sido investigação realizada sobre documentação de arquivo, nomeadamente o Livro das Denúncias, e complementada com a consulta dos processos respectivos. 22 Entre muitos documentos, ver Torre do Tombo – Corpo Cronológico, parte II, maço 25, documento 50. 19


A feitoria

A feitoria das lonas e bordates era um dos espaços ideais para a intervenção de mercadores, cristãos-novos ou apenas com eles relacionados, de Lamego. A sua existência revestia-se de especial interesse económico não só para a cidade como para toda a região norte do Reino. Ela era a face mais visível de uma “indústria” têxtil já esboçada na Idade Média e importante nos tempos modernos, sobretudo na faceta de produção de lonas e panos interessantes à indústria naval, papel reforçado pela existência de outra estrutura similar igualmente próxima do rio Douro, em Gestaçô, Baião23. No documento que atrás citei, de privilégio a Mestre Dinis, constata-se a articulação entre as duas feitorias e percebe-se que o modelo de funcionamento da de Lamego (assim como os privilégios de que desfrutavam os feitores e os oficiais que nela laboravam) reproduzia o de Gestaçô. Como se disse, representava uma mais-valia em todo este território. Para ela foram canalizados capitais necessários para a construção de estruturas do tipo de pisões no activo lugar do Vau, no rio de Balsemão, junto das atafonas dos moleiros, bem como no ribeiro de Fafel, “o qual rio he a melhor agoa para curar pannos [...] e com elle se curão os ditos bordates, e alguns fustães, que se aqui tambem fazem nos emgenhos dos bordates”24. Com estes engenhos, e com outros de que o texto dá nota, é-nos revelada uma estrutura de algum modo complexa que anunciava as posteriores manufacturas notando-se uma diferenciação produtiva e uma concentração de operações que iam desde a tecelagem à tinturaria. Além disso, a feitoria tinha um importante peso social. Mantendo o tradicional domestic system envolvia uma abundante mão-de-obra que dela retirava o seu sustento. Assim: “e se repartia por fiadeiras, e tascadeiras, e debadeiras todo pollo meudo, que hé regateiras, e panadeiras; ate os prezos nisto ganhavão de comer em debar, e almocreves em carretos, e homens pobres, que não tinhão officios aprenderão a tecelães das ditas lonas”25. Esta breve incursão de Fernandes ao mundo do trabalho na Época Moderna revela, indirectamente, a mencionada penetração do capital urbano no campo e a dependência dos trabalhadores rurais face aos capitalistas, neste caso representados por ele próprio e pelos demais rendeiros da feitoria. Os documentos que publico após a descrição de Rui Fernandes dão a perceber como os rendeiros da feitoria obtinham (ou esperavam obter) lucro: em regime de contratação com o rei, negociando com a Coroa um acordo para entrega das lonas a um determinado preço por peça e produzi-la por um custo menor e ganhar com esse diferencial.

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Aí o tratador era, pelo menos desde 1528, Tristão Dias – mais um cristão-novo relacionado com o Porto e os seus tratos – e outros. FERNANDES, Rui – Descrição ..., fl. 15. 25 Idem, fl. 18. 24

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Por outro lado, e até pela cronologia em que esta acção decorria, assistimos aqui às movimentações características dos cristãos-novos e seus associados que, desde os portos, começavam a ocupar posições influentes em organismos que se pretendia funcionassem em articulação: alfândegas, do mar e da terra, contratação naval e centros de produção no interior, por exemplo, aqueles que alimentavam a construção naval e logística das armadas. No caso dos portos nortenhos e das suas ramificações, este processo iniciou-se na abertura da Época Moderna e concluiu-se em meados do século XVI, alcançando lucros muito elevados no último quartel da centúria e primeiras décadas do século XVII. Os panos manufacturados nessas feitorias, para além de se destinarem ao consumo das populações, respondiam na sua maior parte, às solicitações da política naval dos portos e da Coroa. Nos dois exemplos citados, Lamego e Gestaçô, a principal motivação do seu estabelecimento foi a produção de equipamentos para as armadas, aproveitando as potencialidades têxteis das terras. Além disso, a produção nelas obtida destinava-se a colmatar a quebra das importações originárias de França numa altura em que Portugal mantinha com esse reino um conflito aceso no mar, com roubos, apresamento de navios e represálias de parte a parte26. Com oscilações, características da economia de Antigo Regime, o trato era habitualmente proveitoso e, como acontecia na época em casos semelhantes, o rei arrendava-o. Essas rendas, que solicitavam muito capital mas antecipavam melhores lucros, eram objecto de especulação e arrematadas pelo grupo com maior disponibilidade financeira: o dos mercadores. O dos cristãos-novos. Surgiam assim associações, parcerias de homens de negócios, tendo em vista a sua exploração. Aos feitores competia “por em boa arrecadação os ditos bordates [...] e os feitorizar e fazer carregar pera El Rey noso senhor com mais seguramça e brevydade ser servido”27. Era aqui que Rui Fernandes fazia uma parte da sua vida. De acordo com os manuscritos que apresento no apêndice documental, Fernandes está ligado à feitoria pelo menos desde 1526, quando já tinha o contrato. Desconhece-se se nesse ano já tinha sociedade com o sogro – ou sequer se já era então casado – como aconteceria de certeza a partir de 1530 ano em que se sabe que essa feitoria das lonas e bordates era explorada pelos dois (e talvez com outros mais28) em parceria. Estudar os documentos publicados em apêndice (principalmente os dois alvarás) é apreender uma parte interessante da história do Douro a partir de Lamego: a da sua participação por via das lonas na Expansão marítima portuguesa, fornecendo velas para os navios das armadas, entregues, como se pode ver, anualmente, no armazém régio de Lisboa, estrutura ligada à Ribeira das Naus. Lonas vitres, de boas dimensões. Ajustadas aos grandes navios da carreira da Índia. Vitré é uma localidade da Bretanha, outrora famosa pelas velas que produzia desde a Idade Média, despachadas pelo porto de Saint-Malô, e conhecidas na maior parte dos estaleiros europeus. A toponímia passou a designar as velas e o aportuguesamento da expressão resultou neste tipo de pano: lona vitre. No início do reinado de D. João III, homens do mar, construtores navais, secretários e conselheiros do rei perceberam a dependência do reino das importações de materiais de construção naval e da fragilidade dos ritmos de

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Já aqui referido; ver FERREIRA, Ana Maria – Problemas marítimos entre Portugal e a França na primeira metade do século XVI. Redondo: Patrimonia Historica, 1995. 27 Ver apêndice documental, documento n.º 3. 28 De acordo com o documento da Contadoria, em Gestaçô o trato dos bordates fora arrendado a um titular (Tristão Dias) e a quatro feitores a que se atribui a categoria genérica de “oficiaes macanicos”. No caso de Lamego, em 1530, Rui Fernandes era sócio, em igual parte, do sogro no referido trato; não se sabe se havia mais ou quantos seriam os restantes parceiros, nem qual a sua parte nesse trato. 21


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abastecimento, exigindo uns e incentivando outros a produção interna, para o que foram criadas as feitorias: a de Lamego, que parece ser a mais antiga, e a de Gestaçô, de que há notícias pelo menos até perto dos anos de 1540. De Lamego saíam, como os documentos nos indicam, cerca de 550 a 600 lonas anuais para Lisboa, a 1450 reais cada uma, que o rei pagava tarde e mal, recorrendo, como era então costume, às rendas dos concelhos em redor (no caso, São João da Pesqueira, Castanheiro e sisas de Lamego e Viseu). Possivelmente, estas dilações, que se parecem repetir, terão estado na base de dificuldades sentidas pela feitoria. A somar aos atrasos nos pagamentos, na altura em que Rui Fernandes escreveu o seu tratado decorria um período de tréguas entre os dois reinos e as importações foram retomadas com evidente prejuízo para a feitoria lamecense, cujas lonas rendiam, até aí, 800 mil reais e “este anno passado, que não ouve contrato pollas pazes de França, ficão desbaratados”29. O dado sobre o rendimento da instituição é real e atesta a qualidade de muitas informações deste texto: em 1529, a Contadoria da comarca devia a Rui Fernandes 797500 reais30.

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Descripção…, cit., fl. 18. Ver apêndice documental, documento n.º 2.

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O primeiro quadro de Lamego

Este breve estudo introdutório poderia ter sido iniciado com a citação do matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, contemporâneo de Rui Fernandes, sobre as diferenças entre a Geografia e a Corografia. Escreveu o cientista: “o proprio da Geographia he amostrar que a terra conhecida he hũa e continua: e ho sitio naturall della: e trata somente das mayores partes e mais principais que nella ha [...]. Porque ho fim do Corographo consiste em representar bem hũa parte: como quem quisesse somente arremedar hum olho ou hũa orelha. E ho Geographo olha somente ao todo: como quem pinta a cabeça. [...] E portanto na corographia ha necessidade da pintura dos lugares: e nenhũ homem sera Corographo: se não for pintor”31. Com a sua corografia, Rui Fernandes mostrou-se bom observador e excelente “pintor” legando-nos relevantes “quadros” sobre variada temática das terras ao redor da sua cidade, abrangendo freguesias dos actuais concelhos de Resende, Lamego, Castro Daire, Armamar, Tarouca, Moimenta da Beira, Tabuaço, São João da Pesqueira e Penedono. Desde logo, deixou-nos pertinentes informações de carácter demográfico. Diligente ou apenas curioso, teve o cuidado de percorrer os lugares do aro de Lamego e deixar registado o número dos seus vizinhos. No fólio 17 indicanos a totalidade dos filhos da terra: 25 580, ou seja, cerca de cinco crianças por cada casa de família. Mas, neste particular, não resistiu a “retocar demasiadamente a pintura”, comentando: “e isto mais se ham-de achar de sinco para sima, que de sinco para baixo porque nesta cidade ouve molher que avera vinte e quatro annos que he falecida, e hoje são vivos della bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a mor parte destes são femeas e ella nom teve mais de hum só marido”. Se a cifra dos filhos de Lamego acima indicada não parece ser exagerada conhecemos as dificuldades em encontrar coeficientes multiplicadores, que variam segundo as épocas e os lugares, e por isso ela deve ser testada através do confronto com outros estudos de Demografia histórica. De qualquer modo, a tendência parece ser de crescimento e os números de Fernandes aceitáveis. Numa panorâmica geral, e com os devidos cuidados, explicam-nos os historiadores da Demografia que desde o último quartel do século XV, cidades e campos conheceram uma recuperação dos efectivos e um aumento da população, propensão que se manterá durante uma boa parte do século de Quinhentos32.

31 Pedro Nunes – Obras. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1940, p. 92-93, cit. por GUERREIRO, Manuel Viegas e MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero – Duas Descrições do Algarve do Século XVI, cit, p. 3. 32 Sigo de perto o rigoroso estudo de João José Alves Dias – Gentes e Espaços (em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI), vol. I. S/l.: Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1996, bem como a síntese do mesmo investigador publicada no vol. V da Nova História de Portugal (dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques), Portugal. Do Renascimento à Crise Dinástica (coordenação de João José Alves Dias). Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 11-52.

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Século que foi também de movimentações. Dos campos para as cidades, dos portos para o Ultramar ou para os domínios castelhanos. Temporárias ou permanentes. No conjunto das inúmeras migrações internas registadas no século XVI, uma delas teve particular significado nesta região e Rui Fernandes não deixou de a mencionar: a das gentes da montanha para a planície e para os centros populacionais mais prósperos. Em busca de trabalho. São testemunhos como este que nos levam a um vale do Douro onde havia amplo recurso à mão-de-obra montanhesa, particularmente em alturas sazonais de labor mais intenso no campo. A confirmá-lo, a análise dos diversos fundos documentais revela-nos transferências, não apenas para a cidade de Lamego mas, também, para os povoados do seu termo. Encontraremos mais adiante estes trabalhadores da “serra”. Em relação a indicadores de população diga-se que, entre 1496-97 (inquéritos manuelinos da Beira e Estremadura) e 1527-32 (“numeramento” do Reino) registou-se um forte crescimento em localidades não muito distantes daquela que nos ocupa: Pinhel (119%), Trancoso (156%), Linhares (66%), Longroiva (92%), Muxagata (120%) e Casteição (132%)33. Quanto a Lamego, possuímos os números relativos aos fogos existentes em 1532: 20 70734. Portanto, a estimativa que o tratador de bordates registou, porque é disso que se trata, de uma estimativa, parece verosímil. Como a demografia, os temas económicos, que estudarei mais adiante, integravam esta necessidade de listar, esta necessidade de informar (ou propagandear35) moderna. Por motivos fiscais, eficácia da governação e dos negócios arrolavam-se os recursos existentes, com rigor, ou com o rigor possível. Essas preocupações levaram Rui Fernandes a descrever com algum pormenor os diferentes tipos de produção, quantidades36 e formas de distribuição. Pelas mesmas razões interessou-se por conhecer a posse da terra e a disponibilidade dos meios produtivos. Também nesta matéria importa comparar as informações de Fernandes com dados publicados por investigadores dedicados ao tema37. Na generalidade é possível aceitar como válidos os elementos por si avançados sobre a propriedade do aro de Lamego registados entre os fólios 2 e 7v. Outros assuntos deverão ser considerados com maior cautela. É que apesar da nova mentalidade e da modernidade do texto em grande parte da sua redacção, ainda havia uma atracção irresistível por registar para a posteridade as “abundâncias e bondades” da terra. E assim, numa das poucas ocasiões em que a sua imaginação entrou em conflito com a realidade, diz-nos que uma espiga de “milho marroco” era capaz de dar uma quarta de alqueire (mais de quatro kg.) e que de uma nogueira se colhessem cinquenta alqueires de nozes (mais de 800 kg)38. Em contrapartida é muito útil a informação sobre o milho recém-chegado à Europa e, em todo

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DIAS, João José Alves – “População”, in vol. V da Nova História de Portugal ..., cit. na nota anterior, p. 14-15. Idem, Gentes e Espaços..., cit., p. 247. De acordo com as investigações deste autor este número deverá ser multiplicado por uma cifra entre 4,3 e 4,8 (talvez por esta última dado que a zona envolvente do Douro terá sido das que mais beneficiou com a expansão demográfica), ou seja, o valor, em média, do agregado familiar doméstico. Idem. Ibidem, p. 61. 35 GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – o.c., p. 5. 36 Ver quadros sintéticos sobre as cifras das produções no valioso estudo de Gonçalves Guimarães, citado. 37 Alguns exemplos: FERNANDES, Almeida – Censual da Sé de Lamego (Século XVI). Arouca: Associação de Defesa do património arouquense/ Câmara Municipal de Lamego, 1999; COELHO, Maria Helena da Cruz – “S. João de Tarouca em tempos de Quinhentos”, in Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI. II – Domínio Senhorial. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 173-220; BARROS, Amândio; LEAL, Paula Montes – Os pergaminhos da Quinta da Pacheca. I. Porto: Edições Afrontamento/Associação “Beira Douro”, 2000. Neste último caso, ficamos com uma primeira impressão acerca do processo de posse da terra e dos meios de produção no bispado de Lamego, com destaque para a intervenção judaica na produção de vinhos. 38 Ver, respectivamente, fl. 4v, 5v. 34

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o caso, ainda hoje não são raros os exemplos em que “um pé de vide amaral” produza uma pipa de vinho (cerca de 550 l) e que haja castanheiros a cuja “sombra se podem acolher mais de 300 homens”39. Também os aspectos sociais estão bem presentes neste texto. Com uma pincelada muito sugestiva, o corógrafopintor deixa-nos (fólio 12) um retrato vivo de uma comunidade rural montanhesa quando nos fala da Serra de Montemuro e do jeito de viver das suas gentes: “a gente desta Serra são gentes lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras. Vestem burel e calçam avarcas que são feitas de correia de vaca, e alguns andam sem carapuças”; gente endurecida pelo rigor do clima, “e nunca em suas doenças se curam com médicos” e pela frugalidade da alimentação, vivia na maior parte do tempo isolada e apenas descia à cidade para vender o gado que criava e trabalhar no que na cidade lhe era oferecido. Também fala dos caseiros, apontando o exemplo dos de Mosteirô, para dizer que sonegavam as rendas e insinuar que os proprietários eram descuidados porque o admitiam. Com estes grupos humanos contrastava a sociedade de Lamego, mais cosmopolita, à qual Fernandes pertencia e da qual nos deixou igualmente um bom retrato, mostrando como ela, por intermédio do gosto difundido desde os portos do litoral e dos viajantes, começava a ser influenciada pelo novo mundo criado pelos descobrimentos e pelo Renascimento. Uma influência que se reconhecia, por exemplo, nos melhoramentos materiais e no arranjo urbano que os notáveis lhe procuravam imprimir. Visível, por exemplo, quando o texto é dirigido (na forma de conselho ou de adulação, conforme as circunstâncias) à figura daquele a quem dedica a obra: o Bispo D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, bispo-fidalgo, primo de D. João III, seu capelão-mor40 e futuro Arcebispo de Lisboa (entre 1540 e 1564). Constantemente lembrado como protector e patrocinador de obras de vulto (assinalemos o facto de ter sido sob o seu patronato de tipo renascentista que foram atraídos a Lamego alguns artistas do gabarito de um pintor como Diogo Lopes), aparece, como não podia deixar de ser, como figura central da cidade, mecenas de variadas obras no burgo, e isto apesar de ter passado a maior parte do seu tempo junto da corte e dos ambientes mais mundanos de Coimbra e Lisboa, onde residia habitualmente. Rui Fernandes gaba-lhe a “formosura” da horta que mandou cultivar e manter a cargo de um hortelão permanente ou a iniciativa de ter aberto o célebre Poço da Bomba, equipamento de evidente valor social, bem como o arranjo do Paço41 para o qual se deslocou o leito do rio Coura de junto da Sé para próximo do hospital, que ficava onde hoje se situa o teatro42. Fernandes reconhecia também o valor da proximidade do poder e dos jogos de influências que ali se desenrolavam. Por isso, não hesitava em dirigir-se ao bispo e solicitava-lhe que fizesse uso da sua influência na Coroa. Pedia-lhe, por exemplo, para interceder junto do rei para que este dotasse a cidade de uma “casa do peso da farinha”43,

39

O. c., respectivamente, fls. 7v e 5v. Recordemos as informações avançadas por ALVES, Francisco Manuel (abade de Baçal) – Memórias arqueológicohistóricas do distrito de Bragança, vol. IV. Porto: Edições Afrontamento/GEHVID, 2000, segundo as quais a Vereação de Ansiães se reunia debaixo de um castanheiro. De qualquer modo, as Vereações, mesmo em casos excepcionais, dificilmente reuniriam tal número de pessoas. E o mesmo se pode dizer sobre qualquer ajuntamento de pessoas nestes tempos. 40 Sobre este bispo e a sua actuação em Lamego, podem colher-se informações úteis nos três primeiros volumes da obra de COSTA, M. Gonçalves da – História do Bispado e Cidade de Lamego. Lamego: s/e, respectivamente, 1977, 1979, 1980. Também Augusto Dias, na obra que tenho vindo a citar, p. XVI-XVII deixa algumas notas sobre este prelado. 41 Idem, respectivamente, fl. 7v e 19v. Ver também o estudo de RESENDE, Nuno – A diocese de Lamego no contexto do património religioso e cultural português, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 22, 2007, p. 155-159. 42 COSTA, M. Gonçalves da – o.c., vol. III, p. 18, 358. 43 Idem. Ibidem, fl. 13v. 25


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

reputada como estrutura essencial. Ainda em termos sociais elogia-o pelo cuidado que teve na promoção educativa dos jovens do seu bispado, quer os das aldeias, quer os da cidade, quer ainda os que andavam com o gado no monte, dentro dos moldes culturais e mentais da época, pré-tridentinos mas preparatórios da reforma católica que se aproximava. A este propósito aponta no fólio 17 que não há moço nem moça “que não saybão o Pater Noster, Ave Maria, e o Credo, e a Salva Regina, e os Mandamentos, e ajudar a missa em modo que os filhos ensinão os paes e as mãis [...] pellos mestres, e cartilhas, que Vossa Senhoria mandou poer em todas as igrejas do seu Bispado”. A sua opinião já não é tão positiva em relação ao governo dos “oficiais mecânicos”, que não se inibe de censurar, considerando-o descuidado e, com isso, responsável pelas dificuldades de crescimento do termo da cidade, que era muito necessário ao seu desenvolvimento. Como entender este posicionamento? Como o que resulta de rivalidades entre grupos que disputam o poder municipal? Entre elites? Entre elites e gente dos ofícios que procurava os mesmos privilégios? Note-se que a certa altura lamenta-se do facto de os homens "baixos" serem nomeados almotacés só porque estão ligados a gente poderosa. A somar a todas essas hipóteses, o grupo de pertença de Rui Fernandes, ainda há pouco discutido, posicionava-o em termos políticos e sociais no centro de um jogo de poderes complexo que, por vezes, se mascarava de problema religioso para eliminar adversários tidos como poderosos. É a questão dos cristãos-novos, no fundo da ascensão de mais uma elite, forte, que se procurava afirmar buscando apoios junto de quem podia apoiar: junto do bispo humanista? Do Cabido? Em Lamego, como no Porto, ou em Braga. Só estudos mais aprofundados sobre esta faceta da vida urbana lamecense – desde logo procurando saber quem financiou as obras públicas e privadas que os prelados, sobretudo desde D. Fernando de Meneses, ordenaram – nos poderão dar indicações mais precisas acerca do assunto que, de resto, passa por um conhecimento detalhado dos grupos sociais, dos seus quadros culturais e mentais, daquilo que os unia e os afastava, de que ainda não dispomos. De alguma maneira, as críticas de Rui Fernandes aos mesteirais44 poder-se-ão também explicar pelos bloqueios que eventualmente sentia a partir da feitoria e do conhecimento que tinha da realidade do seu tempo. A estreita ligação ao Porto, desde logo realizada ao sabor dos movimentos comerciais e muito através das redes cristãs-novas, deu-lhe a observar a forma como esta cidade dependia, de forma estreita, do domínio que exercia sobre o seu termo. É natural que as suas afirmações tenham como base a noção das potencialidades que Lamego poderia explorar com a concretização de um processo semelhante e com a recuperação da economia local em articulação com o tráfico rumo ao litoral. Para finalizar esta nota relativa ao exame da realidade social do seu tempo, note-se o facto de, à semelhança de outros lugares do Reino, também em Lamego se fazer sentir o fenómeno do ingresso de muitos nas fileiras mercantis. Que aparece como uma novidade, mas que se tornou uma regra social quase universal na sociedade portuguesa do século XVI, na qual se nota uma forte tendência para a pluriactividade e correlativa dispersão de investimentos45. O dinheiro fluía, em circuitos mais ou menos fechados – tendencialmente burgueses – e estimulados pelo negócio

44

Importa perceber que as organizações de mesteres que chegaram ao poder municipal em várias localidades do reino desde finais da Idade Média (tornando também uma elite) eram – se assim as podemos considerar – bastante conservadoras e constituíram-se, por vezes, em forças de bloqueio de iniciativas sugeridas por outros grupos, como os mercantis. 45 BARROS, Amândio – Fortune de mer et pluriactivité dans le Nord-Ouest du Portugal au XVe et XVIe siècles, in «Seminaire d’Histoire Economique et Maritime: Ports er Littoraux de l’Europe Atlantique au Moyen Age», La pluriactivité, forme de gestion des risques économiques chez les sociétés littorales en Europe atlantique (XIe-XVIe siècles)? La Rochelle/Nantes, 2007, no prelo. 26


Estudo Introdutório

determinado desde os centros costeiros. Os proventos da actividade primária (na qual investiam através do emprazamento de terras junto de instituições monásticas e casas senhoriais) eram reinvestidos na compra e venda de mercadorias. Trata-se de um processo impelido pela expansão ultramarina e pela integração dos negócios das redes nos mercados internacionais, e sentido com maior vigor nos portos embora estes, como vimos, cada vez mais articulassem os seus interesses com o mercado interior. E assim, quem conseguisse amealhar algum dinheiro tratava logo de o tentar rentabilizar através do comércio46. Na região de Lamego, escreve Rui Fernandes, “qualquer alfayate, ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil reis logo se fazem mercadores”. Mas, ao que parece, com vantagens sobre outros: “e para estes he milhor o trato da terra, que para os homens de fazenda grossa pollas mercadorias serem meudas, porque como hum mercador a que tem dous, tres mil cruzados parece que he mais rico que [quem] em outra parte tem quinze, vinte mil cruzados, e nom duvido porque nesta terra valem mais duzentos mil reis que em outra parte quatrocentos mil reis”47.

46

Trata-se de uma prática corrente no Porto. Há um registo imenso de mesteirais, ourives, sapateiros, ferreiros ou cordoeiros envolvidos em diversas actividades ligadas ao comércio, desde a simples compra e venda de mercadorias às complexas operações bancárias. 47 FERNANDES, Rui – Descrição …, fl. 22. Além disso, estes mercadores estavam bem escorados pela posse de “campos, vinhas, soutos, ollivais e assi outras erdades mais que em outras partes”. E não precisa de as ter muito grandes pois “hum cazal, por pequeno que seja” é suficiente dado que dele “colhe todos os renovos”. O problema é de quem não tem terra. Aquele que a não possui “he mais pobre que em nehũa parte porque nom tem mais que dez reis de jornal e comer e beber”. Idem. Ibidem. 27


Os vinhos e o Porto

Uma das ideias fortes deste estudo, levantada pelo estudo do documento de Rui Fernandes, é a da articulação entre o centro consumidor/exportador portuense e a região produtora do vale do Douro. Já aqui invoquei motivos que explicam a prosperidade comercial e marítima do Porto, em concreto a capacidade de atrair e canalizar para o seu porto uma grande parte da produção das comarcas ao redor, estendendo a sua influência ao Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras. Os cuidados com a manutenção e melhoria das comunicações, fluviais, marítimas e terrestres eram inseparáveis de ambições jurisdicionais e económicas48. Uma ligação evidente foi aquela concretizada com o vale do Douro, traduzida na circulação de barcas e recovas de almocreves; entre estes, os de Lamego mereceram palavras elogiosas de Rui Fernandes pela sua diligência e capacidade de movimentação. Não é possível desenvolver aqui a composição deste comércio nem avaliar o papel de cada agente – os almocreves, por exemplo, eram usados pelas redes comerciais como correios e transportadores até Medina del Campo, Valladolid ou Burgos – pelo que me limito a apontar os grandes volumes de vinhos e sumagres durienses trazidos para o Porto, alimentadores do seu comércio marítimo, e, em sentido inverso, o peixe da costa, as especiarias, o açúcar quando for caso disso, as obras de arte e as ideias que a cidade difundia. E é aqui que vale a pena observar a história dos vinhos do Douro acompanhando dois estudos recentes que escrevi com Gaspar Martins Pereira49. A geografia do vinho do tempo de Rui Fernandes era bastante diferente daquela que hoje conhecemos. Grande parte dos vinhos conduzidos para o Porto vinha da zona conhecida nos documentos como Riba-Douro, e esta grosso modo ficava na mancha que abarcava as regiões dos cursos inferiores dos rios Douro e Tâmega até Mesão Frio. Na área da actual região demarcada destacavam-se os vinhos de Santa Marta de Penaguião e Lamego, áreas que virão a ser mais beneficiadas na demarcação do século XVIII. Da zona de Lamego merecem ser citadas as remessas de vinhos do vale do Varosa expedidos desde os domínios Salzedas e São João de Tarouca. Mosteiros cistercienses, também eles integrados numa rede de saberes de tipo internacional que circulavam entre as diferentes casas europeias através de monges peregrinos, o investimento

48

Enquadram-se no primeiro caso as iniciativas de destruição das pesqueiras do Douro, no segundo o serviço de barcas para Matosinhos, Leça, Aveiro, e terceiro a construção da ponte de Lagoncinha sobre o rio Ave na estrada que ligava a cidade a Braga, entre outros exemplos. 49 O comércio de vinho na Época Moderna: uma perspectiva comparativa a partir do Porto, in Conferencia Internacional “Patrimonio Cultural de la Vid y el Vino”, Almendralejo, 8-11 de Fevereiro de 2011 (Actas no prelo); Port-wine and the Douro region in the Early Modern Period, in “9th European Social Science History Conference”, Glasgow, 11-14 de Abril de 2012. 28


Estudo Introdutório

Para uma geografia dos vinhos na Idade Média – Mosteiros e regiões produtoras

9

Porto

5 6 20 15

2

18 10

14 1

17 11 4 3

7

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

13

Alpendurada e Matos Amarante Ancede Barqueiros (Mesão Frio) Eja Entre-os-Rios Espadanedo (Cinfães) Lamego Mancelos Marco de Canaveses Mesão Frio Nespereira (Cinfães) Oliveira do Douro (Cinfães) Paço de Sousa Pedorido Salzedas Santa Marta de Penaguião Sta. Cruz de Riba Tâmega (actual Sobretâmega) São João de Tarouca São Martinho de Sardoura

Norte

8 16 Mosteiros e regiões produtoras

12 19

RDD Rede hidrográfica 0

Fonte: AHMP - Vereações do século XV.

11 km

miguel nogueira / 2004

que fizeram na vitivinicultura duriense, desde o século XII, “terá contribuído, decisivamente, para a especialização regional”50. Desde muito cedo, ainda em tempos medievais, os viticultores durienses, a começar nos mosteiros, prestaram atenção às questões do solo e às condições naturais que favoreciam a produção de vinhos. De forma empírica, e sigo de perto os estudos em cima indicados, a viticultura tradicional duriense seleccionava os terrenos pobres, de xisto, nas zonas de encosta e de melhor exposição solar fugindo das áreas húmidas, reservadas a hortas e outros cultivos, e dos terrenos de maior altitude, abandonados à floresta. Na época em que Rui Fernandes escreveu era evidente o conflito de interesses entre as necessidades de subsistência das populações e a expansão do vinhedo. Nos espaços onde era possível combinar vinhas e cereais, aquelas eram constituídas apenas pelas videiras plantadas em pilheiros nas paredes dos socalcos deixando-se a terra do geio livre para o cultivo de cereais. Com alguma precaução é possível acreditar que Rui Fernandes começava a ver os contornos dos socalcos, e que alguns deles fossem já destinados à vinha. No fólio 18v afirma o seguinte: “Item: esta terra he muito montuoza, pella mor parte he toda muito aproveitada, que em ella nom ha pedaço que nom seja aproveitada, principalmente para o Douro; e os homens são tão bemfeitores, que ás fragas altas levão o cesto da terra ás costas para plantarem parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieyras, e todo outro arvoredo”, alusão que me parece nítida quanto à edificação do geio duriense, embora a técnica de construção dos socalcos não coincida exactamente com o método descrito – a terra que cobre o terraço não é levada às costas, antes é retirada da própria montanha.

50

PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – Port-wine and the Douro region, cit., p. 3. 29


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Por outro lado, a forte diversidade do território determinou igual diversidade dos terroirs vitícolas. Antes do século XVIII, algumas zonas dos vales dos rios Varosa e Pinhão eram afamadas pela excelência dos vinhos brancos, enquanto outras, como Covas do Douro, o eram pelos seus vinhos retintos. Na região, as casas religiosas que se ligaram ao projecto económico vitivinícola introduziram formas de organização e gestão patrimonial eficazes e novidades tecnológicas. As primeiras grandes quintas vinhateiras foram equipadas com lagares, tonéis e adegas onde eram produzidos e se conservavam vinhos cada vez melhores. Rui Fernandes cita algumas delas, como a Folgosa (actual Quinta dos Frades), Paço de Monsul e Mosteirô, ainda hoje em actividade. Desta última, a Quinta de Mosteiró, propriedade de São João de Tarouca, diz que saíam anualmente entre quinze a dezasseis mil almudes de vinho, ou seja, cerca de 650 pipas, e “dalli todos vão de carregação”. De resto, este mosteiro cisterciense tinha ao seu dispor uma pequena frota de barcas vinhateiras que percorriam o Douro até ao Porto levando vinhos e trazendo sal, tal como acontecia com o vizinho de Salzedas. A atitude modernizadora destas instituições monásticas foi seguida por outros proprietários. Desde finais do século XV podem ser detectados movimentos interessantes de burgueses que, desde as cidades, entravam na posse de propriedades vitivinícolas, muitas delas a partir de antigas parcelas de domínios eclesiásticos aforadas em casais onde implantaram lagares e adegas, e estabeleceram esquemas de escoamento. Vinham do Porto, caso mais documentado e referente à elite camarária, mas também de Lamego e de Viseu. Introduziram na região duriense uma dinâmica de mercado inserindo o vinho em redes e circuitos comerciais mais distantes. Esta tendência viria a ser acentuada desde meados do século XVI, à medida que estes agentes – mosteiros incluídos – ligaram os seus interesses aos das elites mercantis dominadas pelos cristãos-novos, que detinham interesses em vários pontos do território do vinho, desde os portos, e o introduziram nos esquemas da economia-mundo51. Nos séculos XV e XVI, o melhor vinho do Douro estava ainda longe da qualidade e do sucesso comercial internacional que viria a alcançar no século XVIII. Na sua maior parte, não era ainda um vinho doce. Mas isto não quer dizer que “não se produzissem vinhos doces no Douro, nem que não existisse um comércio significativo em torno desses vinhos, nem que não tivessem já qualidades distintas de aroma e sabor, e sobretudo, capacidade de envelhecimento”52. No final dos anos de 1460, o barão Leão de Rosmital, em viagem pelo Douro, encontrou entre Freixo de Espada à Cinta e Moncorvo “vinho de uvas passas, a que na Boémia se chama vinho grego”53. Pouco mais de um século depois, um contrato de vinhos no Porto refere a venda de 32 pipas de “vinhos maduros, doces e sem saybro” de Canelas54. Ainda no século XIX, Teixeira Girão falava dos vinhos de Candedo, Freixo de Espada à Cinta,

51 Estes interesses não devem estar separados dos interesses de judeus de Lamego que, desde o século XV, foram notados a arrematar várias propriedades de vinho em zonas como Samudães, Valdigem, Penude, Avões, Paredes, Vale de Vacas, etc. Ver as referências a judeus e a vinhas em BARROS, Amândio; LEAL, Paula Montes – Os pergaminhos da Quinta da Pacheca, cit. A imensa quantidade de contratos notariais sobre parcerias para venda de vinhos desde o Porto (envolvendo mercadores cristãos-novos, e outros), com vinhateiros de Baião, Amarante, Canelas, Régua, Rede, Tourais, Lamego, etc., na segunda metade do século XVI, comprova o interesse destes “capitalistas” no negócio do vinho. 52 PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – O comércio do vinho na Época Moderna, cit., p. 6. 53 A viagem do barão boémio em GARCÍA MERCADAL, J. – Viajes de extranjeros por España y Portugal. 2 volumes. Madrid: Aguilar, 1952-1959 e em Camilo Castelo Branco – Cousas levas e pesadas (“Portugal ha quatrocentos annos”). 2.ª ed. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1908, p. 63-96. 54 BARROS, Amândio – “Vinho maduro, doce e sem saybro”. Algumas notas a propósito de um contrato de compra e venda de vinhos de finais do século XVI, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 8, 1999, p. 119-138.

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Estudo Introdutório

como sendo feitos à maneira de Málaga55. A prática de vindimas tardias, com uvas muito maduras – que nos nossos dias alguns produtores durienses se esforçam por recuperar – poderia ter dado origem a vinhos desse tipo, que os mercados apreciavam. No entanto, os mais correntes seriam vinhos secos e aromáticos, brancos ou tintos, que desciam o rio Douro até ao Porto, o principal mercado. Desde o século XV, senão antes, os rendimentos dos tributos lançados sobre os vinhos – como a sisa dos vinhos – eram a maior fonte de receita da cidade. Essa perspectiva de lucro teve efeitos sobre a região produtora, suscitando renovados investimentos. Rui Fernandes não se cansa de o notar (fólio 4v) apressando-se a registar produções e tipos. Uma das grandes novidades deste documento é a informação, a que os historiadores recorrem muito, sobre as castas: bastardo, trincadente e outro semelhante chamado agudelho, alvaro de sousa (equiparado ao delicado malvasia), catelão, que é de certeza o castelão, conhecido desde a Idade Média, lourelo, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal e burral, çamarrinho tinto, vários tipos de ferral, ceitão, mourisco, felgosão. Segundo as suas próprias palavras apenas teve o cuidado de descrever as castas de que resultavam vinhos de boa ou excelente qualidade. Porque muitas mais havia. Uma produção muito elevada de 15 mil pipas anuais de néctares, definidos deste modo: “são os mais excelentes vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar, e mais cheirantes, porque há aí vinhos de quatro, cinco e sete anos, e de quantos mais anos é, tanto mais excelentes e mais cheiroso”. Estes “maravilhosos vinhos de pé”, que Fernandes distinguia dos vinhos “amarais”, inferiores, baratos e destinados a “beberragens de mar” (fólio 5), representavam cerca de 90% da produção de Lamego, eram vendidos a bom preço e embarcados desde a cidade: “a maior parte dos vinhos de todo este compasso se carregam pelo Douro em barcas para o Porto e para Entre Douro e Minho, para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas e para as armadas de El Rei nosso senhor”. Os melhores vinhos eram vinhos de elites. Fernandes não deixa de o sublinhar que “os vinhos cheirosos e de maior quantia vão por terra para muitos senhores e para a corte de Castela e assim alguns para a corte de Portugal”. Isso devia-se à sua capacidade de conservação. Ao contrário da maioria dos vinhos de então, que se degradavam em pouco tempo, os melhores vinhos durienses distinguiam-se pela forma como envelheciam, o que também justificava os preços altos a que eram transaccionados: “há alguns anos – garantia Rui Fernandes – que aqui se vende muito vinho a 400 réis e a 500 réis o almude do velho que cheira e também muitos anos se vende muito vinho para Guarda, para Viseu, para Riba Côa, para a Beira”. Foi este vinho, o vinho do Douro capaz de viajar, que alimentou o comércio marítimo e abasteceu as armadas, às quais, como se viu, Fernandes reservava os amarais, feitos de “de muito más uvas”; mas é de crer que nem todos os que se destinavam aos navios fossem tão vis. A relação vinho-actividade marítima, com destaque para os abastecimentos às armadas explicou modificações estruturais. Explicou, por exemplo, a ultrapassagem das fortes limitações ao comércio conhecidas desde a Idade Média. Até finais deste período, a maior percentagem da produção de vinhos durienses destinava-se ao consumo urbano e ficava, na sua maior parte, na cidade do Porto. O vinho era indispensável na dieta dos homens da Idade Média e da Época Moderna. Toda a Europa influenciada pela matriz cultural mediterrânica prestava atenção à produção, distribuição e consumo de vinhos submetendo-os a numerosa legislação.

55

GIRÃO, António Lobo de Barbosa Teixeira – Memoria historica e analytica sobre a Companhia dos Vinhos denominada da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Lisboa: Imprensa Nacional, 1833, p. 310. 31


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

A dificuldade de conservação, além de explicar a extensa geografia vitivinícola 56, justificava a aprovação de medidas restritivas à comercialização. Essas medidas eram particularmente complexas nos centros urbanos, dependentes das remessas enviadas das regiões produtoras. As prioridades eram, por um lado, o combate ao contrabando e à especulação, e, por outro, a manutenção de reservas suficientes para assegurar o abastecimento da cidade. No caso do Porto, somente os vizinhos tinham liberdade de vender os vinhos das suas terras (“de sua lavra e cutelo”) mas o terço destes vinhos ficava retido na cidade, para ser vendido ao povo, nas tabernas e no cais da Ribeira, “à prancha”. Durante os séculos XV e XVI, portugueses e castelhanos puseram em marcha uma expansão marítima que daria origem a um sistema mundial. Embora o coração desse sistema viesse a situar-se desde finais do século XVI na Europa do Norte, nas Províncias Unidas e na Inglaterra, “a abertura do mundo marítimo e as condições para a entrada de novos concorrentes ao comércio internacional de vinhos foram de criação ibérica”57. Os estímulos à produção chegaram do mar. Os armadores e os mercadores precisavam de fornecer as suas naus e caravelas, e garantir carregamentos para vender no estrangeiro. As frotas reais tinham de ser abastecidas, como abastecidas tinham de ser as comunidades portuguesas do Ultramar. As embarcações estrangeiras que aferravam na cidade solicitavam vinhos para sustentar a equipagem. O Douro começava a ser percorrido por agentes comerciais ao serviço dos navios e das armadas. Não havia navio que saísse do Porto sem embarcar pipas de vinho, para consumo dos marinheiros e para venda; não havia armada que zarpasse para a Índia, para o Atlântico ou para qualquer expedição militar, que não fosse precedida de requisições régias de vinhos nos portos. Se para o Porto predominavam os carregamentos que transitavam pelo Douro, para outros portos o trânsito fazia-se em percursos terrestres que aproveitavam a rede viária existente – por mais deficiente que ela fosse – por intermédio de mercadores itinerantes como os almocreves e carroceiros, que levavam uma parte dos vinhos a Viana ou Aveiro, ancoradouros onde a venda de vinho de Lamego é documentada por toda a Época Moderna. Desde o sul da Península, a eliminação dos últimos redutos mouriscos em finais do século XV trouxe para o mercado os valiosos vinhos de Jerez e de Málaga e do espaço insular vieram os vinhos (“de escala”) das Canárias e da Madeira. Com os do Douro e, em casos específicos, os ribatejanos e os da ribeira do Lima, criava-se uma dinâmica que, sem colocar em causa o domínio do mercado por parte dos vinhos franceses, integrava os vinhos ibéricos nas listas de compras dos negociantes europeus.

56 57

Produziam-se vinhos – de escassa ou nenhuma qualidade – nas zonas mais impensáveis, inclusivamente no interior das cidades. PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – O comércio do vinho na Época Moderna, cit., p. 7-8.

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Outras gentes, outros produtos

A estrada, a recova de almocreves, o labor dos carreteiros e os passos de barcas, de que Fernandes dá abundante informação, foram vitais para a sobrevivência e promoção da economia duriense. Entre os muitos trilhos percorridos chamam à atenção os que atravessavam as zonas montanhosas. Caminhos velhos de séculos por onde vinham, sabe-se lá em que condições, as tradicionais “rogas” nas alturas das grandes fainas agrícolas. Desde o Sul transitava-se pela antiga “estrada da Beira”, ramificada por caminhos que chegavam a povoações secundárias, unidas pelo labor dos recoveiros. Do Norte vinha a estrada da Galiza, conhecida e movimentada na Idade Média, com passagem obrigatória no Douro, em barcas. Será por ela que no século XVIII chegarão ao Douro das vinhas ranchos de trabalhadores galegos, aos quais a terra ficará a dever o impressionante cenário dos socalcos. Muito da construção do Douro fez-se, desde esse tempo, em torno da exploração de vinhedos e de vinhos. Mas os campos do Douro tinham mais frutos para oferecer. Outro dos produtos já referido, que seguia para o Porto, e daí principalmente para os mercados flamengos, era o sumagre. O documento fala-nos de uma produção à roda das 165 toneladas no aro de Lamego. O sumagre chegou a rivalizar com os vinhos. Crescendo mais ou menos naturalmente pelas terras transmontanas e durienses, o sumagre (Rhus coriaria) era uma relevante fonte de taninos para as indústrias de curtumes e foi utilizado até ao início do século XX; aplicado nas peles e nos couros retirava-lhes as gorduras, conferia-lhes textura e durabilidade e preparava-os para a recepção de tintas; de resto, alguns tipos eram tintureiros e tinham aplicação na indústria têxtil. O sumagre era colhido no fim do Verão, seco e moinho nas atafonas e objecto de uma intensa comercialização, em crescimento por todo o século XVI58. Se a tradição aponta os judeus como os principais mercadores deste produto, os registos notariais mostram uma fortíssima intervenção dos cristãos-novos neste trato tornando-o negócio internacional. Como exemplo, retirado de um dos capítulos da História de São João da Pesqueira, que em breve será publicada, num pequeno quadro de relações económicas entre esta vila e o Porto encontram-se quatro dezenas de contratos de compra e venda de sumagre. Entre estes pode-se citar um de 1586 pelo qual o poderoso mercador do Porto Lopo Nunes Vitória (mais um caso de uma rede de negócios internacional gerida a partir daquela cidade com interesses no Douro em vinhos e sumagres) comprou a Gonçalo Fernandes, morador em São João da Pesqueira, 700 arrobas de sumagre de Valença do Douro e Trevões, no valor de 87 mil reais. O mesmo mercador e outro tão ou mais rico do

58

A referência de Rui Fernandes ao sumagre no fólio 5v. Francisco Ribeiro da Silva, em diversos trabalhos, tem chamado a atenção para a importância desta planta tintureira na estrutura comercial destas regiões. Veja-se, por exemplo, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder vol. I. Porto: Arquivo Histórico Municipal do Porto/Câmara Municipal, 1988, p. 180 e seguintes. 33


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

que ele, Henrique Gomes, foram sócios noutro contrato idêntico, destinado a vender pastel e sumagre para Castela. Porém, tal com atrás já notei, a maior parte do sumagre levado ao Porto em barcas e almadias era destinado à Flandres e habitualmente tinha à sua espera, no cais, navios flamengos/holandeses/hamburgueses onde era embarcado59. Por esta altura começava também a ganhar alguma importância a exportação de fruta do Douro havendo notícias de embarcações que a levavam para a Flandres. A descrição dos diferentes tipos frutícolas, da sua qualidade e do tempo da sua maturação, ocupa espaço considerável na obra de Rui Fernandes. Algumas frutas, como as cerejas e os figos, mantêm, ainda hoje, uma qualidade e uma capacidade de colocação no mercado que conviria explorar mais intensamente. Além disso, variadas castas de maçãs, peras, marmelos, romãs, ameixas, sôrvas, nêsperas, pêssegos e melões tinham como destino os mercados em redor ou as barcas do Douro. Parte desta fruta criava-se nos terraços dos socalcos, introduzindo-se na paisagem como elemento cada vez mais distintivo. Por toda a região irão nascer numerosos pomares, hoje quase inexistentes e que, quando subsistem, são verdadeiras peças patrimoniais a preservar e a valorizar. A fruta será, durante largo tempo, objecto de um comércio de relativo interesse, com destaque para as chamadas “frutas de espinho”, limões e laranjas, particularmente estas últimas, que nesta região encontravam as condições climatéricas ideais para se desenvolverem, sendo mais doces que na maior parte dos lugares onde eram produzidas. Outro dos produtos-chave desta economia era a castanha. Quer na terra, compensando as esterilidades de pão – e lá encontramos Rui Fernandes a aludir ao tradicional “falacho”, ou falacha – quer no abastecimento dos navios e sua exportação (nos vários géneros: fresca, pilada e picada) por via marítima. Basta analisar a lista dos navios que em 1552 se preparam para zarpar do Porto e lá a achamos em grande quantidade60. Acerca dela, Rui Fernandes deixa outra interessante informação, de grande valor etnográfico: a castanha, no Antigo Regime, era essencial no alimento de homens. Mas, pelas terras de Lamego, a sua abundância fez dela ração para os porcos – para os milhares de porcos que se encontravam pelos soutos e por aí se cevavam, “ mui formosos porcos das mais saborosas e mais carnes que há em todo o Reino” (e que, de acordo com esta mesma descrição, também comiam figos), dando origem a outro produto de enorme qualidade: o renomado presunto de Lamego, objecto de exportação, em navios, pelo menos desde o século XVI61 e consumo da corte portuguesa: “e muitos presuntos vão para a corte e para outros lugares”, escreve no fólio 17v. Importante no contexto do Portugal do século XVI era a exportação de madeira, tão necessária na construção civil (num período de crescimento urbano sentido por todo o Reino) como na construção naval (evidente desde a Baixa Idade Média). De acordo com este texto, entre as muitas madeiras que eram transportadas pelo Douro, importa reter a informação relativa “aos muitos e mui formozos mastros de castinheiros e muito tavoado” da zona

59 Trato deste assunto no meu estudo Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores dos Tempos Modernos. Edição da Academia de Marinha (no prelo), e nos capítulos que escrevi para a citada história de São João da Pesqueira (no prelo). 60 Arquivo Histórico Municipal do Porto – Livro do despacho das naos e navios que forem desta cydade que ham de hir armados, publicado por FERREIRA, J. A. Pinto – Certas providências régias respeitantes à guarda da costa do Reino e ao comércio ultramarino, no século de Quinhentos, in “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, vol. XXX. Porto: Câmara Municipal, 1967, p. 331-392. 61 No século XVII Jorge de Amaral e Vasconcelos, juiz do Crime na Índia, pedia aos seus familiares que lhe mandassem da sua quinta da Várzea, Britiande, Lamego, linguiças e presuntos; BARROS, Amândio J. M. – Cartas da Índia. Correspondência privada de Jorge de Amaral e Vasconcelos (1649-1656). Porto: CITCEM/Edições Afrontamento, 2011, p. 51.

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Estudo Introdutório

de S. Martinho de Mouros, “que todo se vai carregar ao Douro”62. Penso, no entanto, que este negócio apenas progredirá no século XVII pois até então o grosso da madeira transportada pelo rio vinha das terras adjacentes ao seu curso final, mais próximas da cidade do Porto. Em parte relacionado com este tema e com o da navegação fluvial duriense, o autor regista o grande trânsito de almadias, espécie de jangadas, “feitas de cortiça que trazem cem duzias de cortiça e mais, leadas com paus, e esta cortiça se vende a pescadores pera boyas, e a çapateiros, e sobre ellas trazem muitos odres de vinho, vinagre, e mel, e muitos sacos de sumagre, e vem homens nellas que as governão; são mais seguras de prigo, que as barcas”63. A cortiça tinha bom mercado na cidade e a do Douro era de boa qualidade sendo, por isso, objecto de especulação. No dia 7 de Março de 1548, chegava à Câmara portuense uma queixa dos mesteres contra “hum remendão sapateiro que nem lavrando nehũa cousa de cortiça, ele hia pello rio acima e a cortiça que vinha pera esta cydade asi pera os çapateiros como pera os pescadores ele atravesava e trazia e regatava nella por honde os çapateiros nam podiam aver nehũa cortiça”64. Concluo com o tema que iniciei esta introdução: o trânsito fluvial, sem dúvida um dos assuntos mais pertinentes abordado por Rui Fernandes. O Douro era percorrido num e noutro sentido por centenas de barcas, levando e trazendo gente, levando e trazendo as mercadorias descritas no texto e mais algumas. Estas embarcações, como já escrevi noutros estudos, nesta altura já se podiam identificar com os conhecidos barcos rabelos, em especial pelo uso da espadela65. O intenso movimento do rio fez com que, um pouco por todo o seu curso, mas com destaque para a zona de Cima-Douro, fossem surgindo localidades dedicadas à navegação do rio, como Barqueiros ou Porto de Rei. Nelas, o interessado encontrava embarcações e tripulações com quem celebrava contratos de fretamento até ao Porto, ou pilotos do rio, “mestres de descer barcos”, conhecedores dos pontos mais perigosos e cuja função era fazer passar a embarcação em segurança por eles66. Levavam um tostão por o fazer. A navegação do Douro era perigosa e não deixava de preocupar. Pontos, poços, galeiras, penedos, secos, correntes, faziam da viagem uma aventura arriscada67. E não eram apenas os obstáculos naturais a dificultar esta navegação. A todo o momento, os incontáveis caneiros, açudes e pesqueiras que enxameavam o rio, a irregularidade das correntes do rio nesses pontos e um simples momento de distracção dos arrais e marinheiros podiam deitar tudo a perder. Na memória do rio Douro é grande o espaço ocupado pelas histórias de tragédia. Rui Fernandes sabia-o e tinha consciência da importância do tráfego fluvial. Por isso pedia a destruição de toda a espécie de pesqueiros, fazendo coro com os protestos da cidade do Porto que pretendia o rio livre deste tipo de

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FERNANDES, Rui – Descrição ..., fl. 15v. Idem, fl. 10v. 64 Arquivo Histórico Municipal do Porto – Vereações, liv. 16, fl. 21v. 65 No naufrágio da nau S. Francisco, 1596, procura-se salvar o navio, que perdera o leme, fazendo-se uma espécie de espadela com duas vergas, “ao modo com que se governam os barcos de Riba-Douro”; BRITO, Bernardo Gomes de – História Trágico-marítima, ed. de Neves Águas, vol. II. Mem Martins: Europa-América, s/d, p. 174. 66 “Neste Douro ha alguns passos maos que se podião correger; e nestes passos a que chamão gálleiras ha hi pilotos no rio que passão as barcas convém a saber: des os Peares ate Porto Manço que são tres legoas, e leva o piloto hum tostão por decer a dita barca”. Idem, fl. 10. 67 Sobre este assunto ver: DUARTE, Luís Miguel; BARROS, Amândio – Corações Aflitos: navegação e travessia do Douro na Idade Média e no início da Época Moderna, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. II (4). Porto: GEHVID, 1997 (2.º), p. 77-118 e, especialmente, PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio Morais – Memória do rio. Para uma história da navegação no Douro. Porto: Instituto de Navegabilidade do Douro/ Edições Afrontamento, 2000. 63

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

obstáculos. A discussão acerca da destruição de tais engenhos de pesca durou séculos. Foi, porventura, o primeiro grande debate sobre a navegabilidade do Douro. O tratador de bordates chegou mesmo a reclamar a nomeação de um “provedor do rio” com a função de zelar pela segurança e limpeza do mesmo, bem como o lançamento de um imposto sobre as mercadorias que por ele fossem transportadas para o mesmo efeito68. Mas o nosso autor era também um homem de contradições. Naturalmente, apetece dizer. Ao mesmo tempo que reclama o fim das pesqueiras, não deixa de exaltar a riqueza do pescado aí recolhido. A captura de lampreias, sáveis, bogas, barbos, muges, e muitos outros peixes, suscitou algumas das mais inspiradas páginas que escreveu. Através delas ficamos a saber que no Douro se pescavam solhos, isto é, esturjões. Não admira, por isso, que estes fossem declarados “peixes reais”. As suas ovas, o caviar, adornavam a mesa dos reis e dos seus cavaleiros. Mas não eram só estes que apreciavam esta iguaria; nem sequer eram os que mais a aproveitavam. É que os pescadores, refere no fólio 8v, “quando os achão [...] furtam-nos, e vendem-nos, e delles comem”.

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FERNANDES, Rui – Descrição …, fl. 10-10v.

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Conclusão

No ano de 1532, Rui Fernandes, tratador das lonas e bordates de Lamego, casado no Porto e cidadão de Lamego, concluía a sua Descripção do terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas. Inspirada na Descrição do Entre Douro e Minho de Mestre António e antecessora das do Algarve de Fr. João de S. José e Henrique Fernandes Sarrão integrou-se num estilo e espírito próprios do Renascimento e da comprometida e controvertida relação deste movimento com os clássicos e a novidade. Dedicada ao Bispo D. Fernando, a obra é uma importante interpretação do Douro e um pequeno retrato do Portugal de Quinhentos, muito usada, e, no meu entender, ainda a aguardar melhores estudos. Que devem ser feitos com cautelas, pois se a corografia isola um lugar, mesmo que chame outros como exemplo, o historiador que a utiliza deve recusar fazê-lo e procurar a comparação. Com esta análise introdutória não pretendi julgar o que é bom, ou mau, na obra de Rui Fernandes; antes preferi tentar compreender o que ele escreveu, integrá-lo no condicionamento geral do mundo e da Península e a partir daí levantar problemas e propor pistas de investigação. Ao longo de quase três dezenas de folhas manuscritas, o feitor e rendeiro das lonas descreveu e exaltou as riquezas da terra onde viveu. Com maior ou menor argúcia, com maior ou menor comprometimento com quem o patrocinou, preocupou-se em nos informar sobre as gentes e os seus viveres, sobre o que se produzia, o que se vendia e se comprava. Mostrou-nos a cidade eclesiástica, mas também a cidade dos mercadores. À luz de uma viva descrição informou-nos sobre os bairros diferenciados, sobre os paços dos bispos, as casas da nobreza ou sobre os arruamentos de mesterais. Falou-nos das fontes de águas frescas, das hortas viçosas e das laboriosas oficinas de ferreiros, tosadores ou barbeiros. Devolveu-nos, enfim, o quotidiano de Lamego, a existência de uma cidade do interior nas primeiras décadas de Quinhentos. A obra suscita várias leituras. Ignorando, simplificando ou apenas indiciando aquilo que era complexo, os dilemas sociais introduzidos pela questão dos conversos ou a transformação do quadro económico, foram esses assuntos que a mim mais me interessaram e procurei fazer a análise de cada um deles destacando a articulação entre a região de Lamego e o centro portuário portuense. Não que Fernandes desconhecesse essas transformações e sequer que não tivesse parte activa no processo. Mas tratava-se de temas intrincados, decididamente pouco agradáveis aos leitores que ele pretendia cativar e mesmo ainda hoje não totalmente esclarecidos. Mas enxergam-se no texto. Sobretudo quando fala do intenso trânsito de pessoas e de mercadorias nos dois sentidos do rio Douro. E quando se refere aos vinhos, indiciando as suas potencialidades comerciais. Numa época em que os néctares durienses se afirmavam como produto estratégico desta economia, o texto da Descrição é um precioso indicador dessa importância. Os inéditos detalhes acerca da sua qualidade e das castas são testemunhos 37


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

singulares, de inestimável valor. Nos vinhos “velhos e cheirantes” de Lamego pressentimos o futuro do vinho do Porto, e nos carregamentos rio abaixo a construção de uma autêntica feitoria pois se o destinatário destes vinhos começou por bebê-los na sua maior parte não tardou a interessar-se por exportá-los em igual quantidade. Percebem-se também os temas e os dilemas sociais. Indirectamente, mas percebem-se. Na associação que tem na exploração da feitoria das lonas com gente das redes cristãs-novas ou na forma como se acolhe à protecção de um Bispo humanista. Além disso, e como referi no devido lugar é possível ver neste texto uma intenção informativa, um enunciado de potenciais parceiros e de mercadorias endereçado ao interesse dos mercadores. A relação (económica) com o Porto não viveu somente dos vinhos que as barcas do rio transportavam nem os mercadores, cristãos-novos ou de outra extracção, se interessaram exclusivamente por eles. À cidade chegavam de Lamego, do Douro e de Trás-os-Montes que dele é inseparável, sumagres, azeites, frutas, cereais e muitos outros produtos. Parte deles era aí consumida pelas gentes e pelas oficinas; a outra era destinada aos navios e seguia para activos portos do Reino e do comércio internacional. Em sentido contrário subiam para Riba Douro as mercadorias que lá faltavam: os artigos do artesanato portuense ou importado, os têxteis flamengos, o sal, os couros, o pescado fresco ou seco e os produtos mais requintados da Expansão: as especiarias e os açúcares. De tudo isto nos dá Rui Fernandes notícia. Sem muitos pormenores, sem grandes adornos literários mas isento dos maneirismos que o barroco irá preferir, o seu “Tratado de hum rico panno de fina verdura que há neste Reyno de Portugal” permanece como um verdadeiro balanço dos tempos medievos e, para além disso, como um anúncio da época moderna. Através dele, assistimos ao entardecer do Douro dos casais e ao nascimento do Douro das quintas. À interferência da cidade no campo, à chegada de novos mercadores e novos recursos financeiros, à modificação do regime de propriedade e à aposta nas culturas que alimentavam o comércio. Se o tratador das lonas ainda pode enaltecer a multiplicidade das produções da sua terra, o tempo fará dela, do Douro, uma região de quase monocultura do vinho, celebrizado em todo o mundo com o nome da cidade que o exportou: o Porto.

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Textos e Documentos


Critérios de transcrição

Como repetidamente foi dito, a presente edição tem como base o documento manuscrito já identificado e conservado na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Na sua transcrição, bem como na dos documentos da Contadoria conservado no ADP, e do Corpo Cronológico, da Torre do Tombo, publicados em apêndice, adoptei as normas da Comissão Internacional de Paleografia e Diplomática, sistematizadas, para Portugal, pelo Pe Avelino de Jesus da Costa – Normas Gerais para a Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos, 3.ª edição, muito melhorada, Braga, 1993 que, para comodidade dos leitores, sintetizo de seguida: 1) Respeito pela grafia e pontuação dos documentos, embora com a introdução das seguintes alterações: a) desdobramento de todas as abreviaturas, com excepção, nalguns casos, das actualmente em uso; b) regularização do uso das maiúsculas e minúsculas de acordo com as regras actuais; c) em geral separação das sílabas que aparecem unidas nos originais; d) substituição do “u” e do “i” com valor consonântico por “v” e “j” respectivamente; e) substituição do “j” com valor vocálico por “i”; f) substituição do “z” com valor oclusivo por “s”; g) regularização do uso do “ç”, de acordo com a ortografia actual; h) com algumas excepções, omissão das letras duplas no início das palavras, mantendo-as no meio e no final; i) abertura de alguns parágrafos;

2) colocação entre [] e em itálico de todas as palavras que tenham sido acrescentadas aos textos originais e que resultam de uma interpretação ou correcção do transcritor; 3) colocação entre [] e em letra de forma normal de todas as palavras que tenham sido acrescentadas ao texto da Descrição de Rui Fernandes provenientes do cotejo com o documento publicado pela Academia das Ciências, quando tal se justificou, com o objectivo de enriquecer a informação do texto que utilizei: 4) colocação entre <> de todas as palavras que surjam entrelinhadas nos textos originais; 5) colocação da palavra (sic) a seguir aos erros dos próprios originais.

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Textos e documentos

De acordo com a metodologia adoptada, tive a preocupação de cotejar as duas versões do texto de Rui Fernandes existentes. O leitor não terá dificuldade em perceber qual a informação introduzida retirada de uma ou de outra fonte pois quando isso sucedeu assinalei esse facto em nota explicativa colocada em pé de página. Porque não se trata de um texto original, tive oportunidade de detectar palavras mal copiadas ou adaptadas ao estilo de escrita e linguagem da época de quem copiou. Por esse motivo, quando me surgiram dúvidas que seriam mais satisfatoriamente esclarecidas pela consulta da cópia publicada nos Inéditos da Academia, não hesitei em introduzir palavras ou expressões desta edição entre [] assinalando e explicando essa opção em nota de rodapé. Com isto, foi minha intenção fornecer aos investigadores interessados o maior número possível de elementos para melhor compreensão dos documentos e, porventura, do próprio texto original hoje desconhecido. Relativamente à versão actualizada devo dizer ainda que, na maior parte dos casos, limitei-me a modernizar a grafia das palavras para que o texto continuasse a ser o mais possível fiel ao original. Assim, salvo excepções, que explico em nota, mantive arcaísmos que o manuscrito inclui do tipo Afonsecas por Fonsecas, peixotas por pescadas, soia por costumava, acerta por calha, apréstamos por renda e benefício, almadia por jangada, etc.

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Transcrição actualizada

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Tratado de um rico pano de fina verdura que há neste Reino de Portugal de compasso de duas léguas ao redor da cidade de Lamego que é situada em Riba Douro da comarca da Beira, dirigido ao Muito Ilustre e Magnífico Senhor, o Senhor Dom Fernando bispo da dita cidade e primo de El Rei Nosso Senhor e seu capelão-mor, feito por Rui Fernandes, cidadão da dita cidade e tratador das lonas e bordates de El Rei nosso senhor que se em ela fazem69. Feito no ano de 1532.

Ao redor desta cidade de Lamego deitando um compasso da Cruz e Miradouro que Vossa Senhoria mandou fazer na Franzia duas léguas em redor as quais se todas podem ver do dito miradouro para uma parte e outra em torno do dito compasso, ainda que a terra é montuosa se vê o dito circuito; a qual terra é mui viçosa e perfeita de todos os renovos do dito compasso de duas léguas, porque parece no Verão um mui formoso parque ou excelente pano de fina verdura. E porque Mestre António de Guimarães fez um tratado das coisas de Entre Douro e Minho que assaz é bom e tido em muito, quanto mais é de ter tão pequeno circuito e tão viçoso e abastado, porque ousarei dizer que em Espanha se não mostrará tal compasso de duas léguas; nem as Arribas de Alenquer muito gabadas, nem as catorze léguas de Santarém a Lisboa porque ainda que se façam muito viçosas e o porto de mar as favoreça, não são tão perfeitas em todas as coisas como estas, que dezasseis léguas estão metidas no sertão e as outras terão outras coisas muito mais em abastança, mas não que tenham tudo como estas como Vossa Senhoria verá pelos capítulos deste tratado, de muitos renovos em grande abastança para o compasso da terra; e ousarei dizer que sendo ilha nunca se tomará por cerco. Primeiramente determinei a somar quanto pão e vinho e castanha e legumes e noz e pano de linho, sumagre, seda se pode colher neste compasso de duas léguas, e para melhor declaração assentei por extenso os dízimos que há nas Igrejas e

69 No texto publicado pela Academia este título prosseguia: “que me favoreça revelando-me quaisquer faltas que nelas disser aceitando minha boa vontade que fica muito maior para outros maiores serviços lhe fazer.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

Mosteiros deste circuito (ainda que por nossos pecados aos quatro, aos dois se não dizimam bem) e por isso determinei pôr as ditas Igrejas e dízimos na maior cópia e rendimento; e ainda que seja prolixo as nomearei todas per si sem pôr os foros sabidos somente, só os dízimos; as quais Igrejas e Mosteiros são os seguintes, e os rendimentos, e alguns destes lugares pagam quartos e quintos e sesmos sem dizimo e sem a conta os tornei a dízimos direitos. [Cabido70] Item primeiramente a tulha do Cabido e miunças dela e terra, de pão 8 000, de vinho 1 600, de castanha 3 500, de azeite 80 alqueires. [Deão] Item Almacave e apréstamos e terça, de pão 1 500, de vinho 400, de castanha 2 000, de azeite 50. [Cristo] Item Britiande, de pão 1 000, de vinho 500, de castanha 1 500. [De El Rei] Item Meiginhos, de pão 450, de vinho 100, de castanha 600. [Infante Dom Fernando] Item Mós, de pão 300, de vinho 250, de castanha 600. [Recião] Item Melcões que é do mosteiro de Recião, de pão 300, vinho 100, de castanha 400. [Do Morgado de Alvarenga] Item Lalim com apréstamos, de pão 1 000, de vinho 500, de castanha 1 000. [De São João] Item: Lazarim de pão 1 000, de castanha 1 000; não tem vinho. [O Tesoureiro] Item Várzeas, de pão 300, de vinho 300, de castanha 1 000, de azeite 40. [Vossa Senhoria] Item Santa Maria de Alvelos, de pão 50, de vinho 50, de castanha 100. [Santa Clara do Porto] Item Belães, de pão 300, de vinho 300, de castanha 300. [O Tesoureiro] Item Calvilhe, de pão 50, de vinho 50, de castanha 300. [O Cabido] Item Figueira, de pão 700, de vinho 100, de castanha 500, de azeite 50. [De El Rei] Item Queimada é a terça, de pão 600, de vinho 50, de castanhas 600. [Pero da Cunha] Item Armamar é apréstamos, de pão 5 500, de vinho 1 500, de castanha, com clérigos, 2 500, de azeite 50 alqueires. [Cristo] Item Santa Cruz, de pão 600, de vinho 200, de castanha 600. [Cristo] Item São Martinho das Chãs, de pão 1 000, de vinho 100, de castanha 400. [Salzedas] Item a Ucanha, de pão 200, de vinho 600, de castanha 1 500. [Salzedas] Item Gouviães e o mosteiro de Salzedas e outros lugares, de pão 3 500, de vinho 2 000, de castanha 1 500. [Salzedas] Item a Granja Nova, de pão 800, vinho 400, de castanha 700. [Salzedas] Item Tarouca com apréstamos, de pão 3 000, vinho 1 500, castanha 3 000. [São João de Tarouca] Item Mondim, com o mosteiro de São João de Tarouca, de pão 1 000, de vinho 2 000, de castanha 1 000. [Do Infante Dom Fernando] Item Penude com terça, de pão 1 500, de castanha 1 000. [Cabido] Item Magueija, o pão vai à tulha do Cabido, tem castanha 700. [Deão] Item Pretarouca, de pão 300. [Infante Dom Fernando] Item Gosende anexa a São Martinho de Mouros onde tem um jantar por tributo que se dirá adiante, de pão 1 500, tirando a terça que vem à tulha do Cabido que aqui não pertence. [Infante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros com apréstamos e terça, de pão 3 000, de vinho 1 600, de castanha 3 000. [Rodes] Item a comenda de Barrô de dízimos com terça, de pão 1 300, de vinho 1 300, de castanha 1 000. [Dom Luís] Item Ferreiros, de pão 200, de vinho 150, de castanha 300. [O Tesourado] Item Avões, de pão 300, de vinho 50, de castanha 300. [De Santa Clara do Porto] Item Penajóia, de pão 700, de vinho 2 000, de castanha 2 500, azeite 160.

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Estes parêntesis rectos e os que se seguem até final do documento, apontando a posse das terras e a definição dos capítulos, resultam do cotejo com o texto publicado pela Academia. Optei por esta solução tendo em conta o enriquecimento da informação. 43


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Além Douro [De El Rei] Item Barqueiros, de pão 300, de vinho 300, castanha 500. [Mosteiro de Vila Cova] Item Tresouras, de pão 350, vinho 200, castanha 250. [Moura Morta] Item Frende, de pão 300, de vinho 300, de castanha 500. [Item] os Loivos, de pão 300, de vinho 300, de castanha 550. [De El Rei] Item Mesão Frio, de pão 100, de vinho 100, de castanha 150, de azeite 20. [Cristo] Item Vila Marim, de pão 1 200, de vinho 300, castanha 1 500, de azeite 180. [Rodes] Item Moura Morta, de pão 400, de vinho 300, de castanha 700. [Pero da Cunha] Item Sedielos, de pão 1 500, de vinho 600, de castanha 1600. [De Moura Morta] Item Fontes, de pão 600, de vinho 400, de castanha 1 000. [Padroeiros] Item Lobrigos, de pão 1 600, de vinho 400, de azeite 100, de castanha 1 000. [São João de Tarouca] Item Oliveira e Bamba, de pão 300, de vinho 200, de castanha 100, de azeite 40. [Dos Guedes] Item Loureiro, de pão 40071, de vinho 30072, de castanha 600, de azeite 20. Item São Pisco da Régua, de pão 800, de vinho 400, de castanha 150, azeite 300. [Bispo do Porto] Item a camara do bispo do Porto que se chama o Peso da Régua de pão 1 000, de vinho 400, de castanha 150 e de azeite 300. [De El Rei] Item Fontelas, de pão 300, de vinho 100, de castanha 150, de azeite 50. [Rodes] Item a comenda de Poiares, de pão 5 000, vinho 1 000, azeite 500, fora foros, castanha 1 000. [De Cristo] Item São Martinho de Cambres e apréstamos, de pão 500, de vinho 500, de castanha 700, de azeite 120. Item Sande, de pão 150, de vinho 300, azeite 50, castanha 600. [São João de Tarouca] Item Samudães, de pão 150, de vinho 300, de castanha 400, de azeite 50. Item Valdigem, de pão 1 000, de vinho 1 000 e de azeite 400 com a terça; castanha 700. [De Vossa Senhoria] Item Parada, de pão 150, de vinho 120, de castanha 50, de azeite 20. [De Vossa Senhoria] Item a câmara de São Domingos, de pão 1 000, de vinho 350, castanha 500, azeite 20. [Rodes] Item a comenda de Fontelo, de pão 1 000, vinho 400, castanha 400, de azeite 20. [De Salzedas] Item a quinta de Monsul, de pão 150, de vinho 250, de azeite 1 000 (?), de castanha 300, e isto tornado a dízimo. [... em Douro] Item Medrões, de pão 300, de vinho 250, de castanha 600, azeite 20. [São João de Tarouca] Item a quintã de Mosteiró feito a dízimo, de pão 100, de vinho 1 500, de azeite 250, de castanha 50. Quinta de Mosteiró Esta quinta de Mosteiró é de São João de Tarouca e está junto do Douro. Parte com a ribeira de Varosa, é pequena terra, que com cinco tiros de besta posto um homem no meio chega a todas as partes dela; em a qual quinta se colhem cada ano quinze mil, dezasseis mil almudes de vinho. A conta é esta, que a quinta rende 1 500 almudes de quinto, e sexto, e de sétimo e outras, que são sabidas, e fora o que escondem. Rende mais a dita quinta em anno de ceifa 2 000, 2 500 alqueires de azeite, porque a quinta rende ao mosteiro 1 200, ano de ceifa, e é de mais, e alguns olivais de quarto, dado que deles se recolhem também pela casa; mas contando os roubos dos caseiros rende os ditos 2 500 alqueires de azeite. Renderá de pão 1 000 alqueires e de castanha 600 alqueires e de legumes 300 alqueires; renderá 300 cargas de cerejas e 500 cargas de outras frutas e 800 arrobas de sumagre, e os vinhos dali todos vão de carregação. Poucas quintas deste compasso se acham no Reino tão boas.

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Por cima deste valor escreveu-se, como que o actualizando, “600”. Tal como no caso anterior, escreveu-se por cima “600”. Num e noutro caso, como se trata de um documento copiado possivelmente no século XVIII, não sei se se trata de correcções deste século ou de correcções detectadas no documento original.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

As quais Igrejas somam no rendimento: do pão 59 250 alqueires de dízimo que são soma 592 500, o qual pão é o seguinte, convém a saber: trigo galego e trigo tremês e centeio e milho e painço e cevada tremês e cevada cavalar e milho marroco; o qual milho marroco se dá na areia do Douro em canas muito altas; e há espiga que dá uma quarta de alqueire, e é milho branco de grandura de confeitos de coentro. Estes géneros de pão nunca desfalecem nesta terra, dado que alguns anos há mais que outros porque o tempo que é contrário ao centro, é proveitoso ao milho e ao painço; e o tempo que é contrário ao trigo temporão, algumas vezes é proveitoso ao trigo tremês e ao milho marroco; assim que desta maneira quando erra um pão de não haver muito acerta outros por haver tantos géneros de sementes de pão; e desta maneira nunca pode haver fome nesta terra. E neste compasso destas duas léguas há muitos campos que dão três novidades no ano, como são os campos de Coura e outros muitos, convém a saber: dão nabos e rabãos na primeira semeadura, e depois dão trigo; e tirado o trigo, ou cevada, dão linho, ou também, se querem, dão painço ou milho, e isto em muita quantidade, que há aí campo quanto um homem lavra num dia na Ribeira de Coura e em outros lugares, que dá 120 alqueires. E estes campos dão também muito formosos alcáceres em uma das tres sementes ou novidades, e são estes regados e estercados, e destes há aí muitos campos neste compasso. Item de vinho somam os dízimos que há neste compasso de duas léguas 30 670 almudes; assim que se colhe de lavrança no dito compasso 306 700 almudes. E são os mais excelentes vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar, e mais cheirantes, porque há aí vinhos de quatro, cinco, e sete anos, e de quantos mais anos é, tanto mais excelente e mais cheiroso. E há aí alguns amarais, ainda que pouco, de árvores, que pode ser a décima parte do outro. E a maior73 parte dos vinhos de todo este compasso se carregam pelo Douro em barcas para o Porto e para Entre Douro e Minho, para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas e para as armadas de El Rei nosso senhor; e compram desses vinhos amarais e outros de baixo preço; e os vinhos cheirosos e de maior quantia vão por terra para muitos senhores e para a Corte de Castela e assim alguns para a Corte de Portugal. E há alguns anos que se aqui vende muito vinho a 400 e a 500 réis o almude do velho que cheira e também muitos anos se vende muito vinho para Guarda, Viseu, para Riba Côa, para a Beira, porque há muitos anos, como é este presente em Viseu, que há esterilidade de vinho, que aqui ainda que a haja, por a soma dos vinhos ser muita e as uvas de muitas castas, que se não vingam umas vingam outras; e a terra tem vinhas em terra fria e em terra quente se dá vinho; e quando não vence a terra fria o vinho, vence a terra quente, de maneira que sempre há muita soma de vinho. Item soma a castanha de dízimos 47 660 alqueires, de maneira que soma o que se colhe na terra 476 600 alqueires; a qual castanha muita dela se enterra e se vende na Quaresma e outras secam e a picam, que chamam castanha picada. Desta castanha picada se faz grande carregação pelo Douro para Lisboa e para o Algarve e para as Ilhas; e quando o ano é estéril os homens pobres moem a dita castanha e fazem dela pão, e é muito farto e muito doce, que chamam falacho; e de outra castanha seca cascuda cevam muitos e mui formosos porcos das mais saborosas e mais carnes que há em todo o Reino. O preço desta castanha verde [é] em ano de bonança a três e quatro réis o alqueire da rebordã, e da longal a cinco e a seis pela medida grande desta terra, e da picada a 20 e a 25 e a 30 o alqueire. E no tempo dela todos os caminhos e estradas são cobertos; e por as não poderem apanhar trazem os porcos pelos soutos, que as comam, e todos os caminhantes e pessoas que passam fazem magustos sem lhe ser proibido. E há castanheiros que dão 60 alqueires de castanha e há destes muitos; e há castanheiros que debaixo dele se colherão 300 homens à sombra. Item: soma o azeite de dízimo que há nas Igrejas 2 900 alqueires de maneira que soma o que se colhe neste compasso 29 000 alqueires, e é dos bons do reino; o qual azeite se gasta em parte de Entre Douro e Minho, e Trás-os-Montes, que o não há lá, e levam-no almocreves, que andam a isso, à maior74 parte da Galiza, e daqui à maior parte da Beira, que o levam almocreves e regatães para nele ganharem, até à Guarda. E há neste circuito 42 lagares de azeite para a parte do Douro.

73 74

No documento: “mor”. Ver a nota anterior. 45


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sumagre] Item se colhem neste circuito das sobre ditas léguas 15 000 arrobas de sumagre que se carregam para Lisboa e o Algarve e as Ilhas e para todo o Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes e para toda a Beira. Título da noz e legumes deste compasso E por não ser prolixo não quis aqui pôr por miúdo a noz e legumes que há, somente fica pelo miúdo como vão estas outras75 coisas. E soma a noz que há neste compasso e se colhe cada ano 10 000 alqueires, porque há de dízimo 1 000 alqueires; e há nogueira que dá 50 alqueires. E legumes, convém a saber: favas, feijões, ervilhas ceitãs e das outras, e lentilhas, e ervanços76 soma 9 000 alqueires; e isto se for necessário dá-lo-ei pelo miúdo, que fica em meu poder. Os feijões vão muitos para Trásos-Montes e para Castela; rende cada alqueire em Castela 500, 600 réis, e vale aqui o alqueire 20 e 30; em Castela vende-se a arráteis. [Pano de linho] Item outrossim, há por soma no dito compasso, de linho, convém a saber: pano de linho que se faz nestas duas léguas, de dízimo 18 000 varas, as quais, sendo necessário, também mostrarei pelo miúdo, de cada igreja, entre o qual é pano de linho e estopa e treu77; e há estopa que se vende a 12 e a 13 e a 14, 15 réis até 20, e o pano de linho de 15 até 100 e 120 a vara. E vende-se este pano a mercadores e vai para Castela muita soma, e para Lisboa e para Alentejo e para o Algarve e para as Ilhas, e outro se gasta na terra, e fitas em (?) peças. [Seda] Item se colhe no dito compasso de dízimo, convém a saber: de seda 5 000 onças, assim que se colhe 50 000 onças; a qual seda se gasta parte dela em esta cidade, em Tarouca, em veludo, satis, tafetás e toucaria, e a mais vai para fora. [Mel] Item de mel pode haver quanto baste para a terra de sua colheita, dado que não é muita quantidade, e de água rosada 80 almudes. [Cerejas] Item há mais no dito circuito muitas e mui formosas cerejas, que vêm a vender a esta cidade, as quais cerejas começam em Abril e acabam em Setembro. E a causa é porque esta cidade há como sempre três novidades no ano, de cada renovo; e a causa é esta: a primeira novidade, que são as cerejas que começam na Ribeira do Douro, no mês de Abril e duram até Maio; e acabado Maio começam as desta cidade, que é terra temperada em meio, e duram até todo Junho; e acabadas as desta cidade começam as da terra fria da parte do Sul, e duram Julho e Agosto até Setembro. E de todos os lugares se vem vender a esta cidade por estar no meio. E pelo mesmo teor dá ginjas. O preço delas são comummente o arrátel a real e a quatro ceitis e a meio real e as temporãs a dois réis e a três réis.

75

No documento “estoutras”. Isto é, gravanços. 77 No documento: “tres”. 76

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

As quais castas de cerejas são as seguintes, convém a saber: as trigais, bastezes, soldares, bicais, agostinhas, pedrais pretas e outras pedrais bicudas, que levam cargas para fora, amargosinhas, ginjas muito boas. [Árvores de espinho] Há neste circuito muitas árvores de espinho, convém a saber: desta parte da cidade para o Douro em abastança, convém a saber: muitas laranjas, limões e algumas limas, muitas cidras e zamboas, que bastam a terra e carregam os almocreves para toda esta Beira. Valem oito e dez laranjas ao real, e quatro e seis limões um real, e uma cidra um real. Título das maçãs Item há muitas maçãs em abastança, de muitas castas, convém a saber: camoesas, repinaldos, veloso, sirgaínho, doçares, pevidães, baioneses, rostibons, rustimãos, sam martinhas, sapães, negraínhas, ozães, sodracãs e nanos, e outras muitas castas, dado que mais há Entre Douro e Minho; aqui há abastança delas; dão oito, dez, doze a real e segundo a fruta é, seis, quatro. Peras Item há muitas peras de engoxa, e as mais formosas do Reino, coxa de dona, pera-pão, peras de Baguim, peras doçares, codornos, peras trigais, peras sorvas, peras ruivais, peras longais, peras junhais, sormenhos, peras de Vila Verde, peras botelhas, peras de sobrego, e há algumas peras manosinhas que não há em todas as partes, que vêm por Maio; e isto tudo se vende a bom preço. Dos marmelos e romãs Há muitos marmelos bárbaros e muitos galegos, seis e quatro a real, e há muitas romãs doçares e agras e agras doces do mesmo preço que vão daqui para muitas partes. [Figos] Item há muitos figos e mui formosos figos em tanta quantidade que os dão aos porcos por serem sobejos; e duram desde Maio até ao Natal e isto porque os figos lampãos na Ribeira começam por Maio, e como eles acabam começam os desta cidade, e como acabam os da cidade começam os da terra fria, de maneira que ainda os figos lampãos não são acabados na terra fria quando começam já os vendimos na Ribeira e corre outras três novidades e duram até Natal. Como digo de todas as frutas nesta cidade se comem três renovos. E as castas dos figos são as seguintes, convém a saber: pedrais, alvares, verdeais, negraínhos, bugalhais, donegrais, castanhais, longais, burjaçotes. E em muitos anos há nesta terra certas figueiras que no mês de Abril dão figos burjaçotes maduros e muitas pessoas os têm por artificiais, os que não sabem o modo do seu nascer. O preço deles são três e quatro dúzias a real, e seis, oito burjaçotes a real; e assim há outros figos de muitas castas a que não sei o nome. [Ameixas] E também há muitas e mui formosas ameixas, convém a saber: bicais, reinóis, manosinhas e saragoçãs e outras muitas castas, e abrunhos e ameixiais e verdeais e esgana-cão; dão quatro e seis dúzias ao real.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sorvas e nêsperas] Item há muitas sorvas e nêsperas que vêm depois das vindimas; estas nunca amadurecem nas árvores senão nos madureiros. [Pêssegos] Item há muitos e muito formosos pêssegos, convém a saber: durázeos, romãos, e pêssegos durázeos romãos, e molares e molares calvos e pêssegos durázeos calvos romãos que em Lisboa chamam maracotões; há outros pêssegos, que chamam albocorques, que em outras partes chamam alperces, e outros muitos géneros de pêssegos que aqui não ponho. Uvas [Amaral] Item há muitas e mui formosas uvas, e muito boas castas, e que se têm dependuradas umas às outras, digo, dependuradas de um ano a outro; e assim há outras que chamam amaral em algumas partes, que é da qualidade do vinho de Entre Douro e Minho, e são muito más uvas e o vinho destas vale menos preço do vinho bom a metade; e há pé de vide que dá uma pipa. O qual vinho seu natural é em ramadas altas ou em árvores, dado que é proveitoso para lavradores e para beberrajens de mar vai muito, e nesta terra não se faz dele muita qualidade, e a casta destas uvas deste vinho chamam amaral. [Uvas de casta] Item a casta do outro maravilhoso vinho de pé são de muita soma, convém a saber: bastardo, trincadente, agudelho, que é outro de jeito de trincadente, há outro que chamam Álvaro de Sousa que em outra parte chamam malvasia, castelão, lourelo, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal, e buoval, samarrinho, mourisco, ferral de muitas castas, ceitão, felgosão; e valem em tempo que há razoadamente uvas a real o arrátel das uvas que são boas. [Melões] Item há muitos e mui formosos melões e muito temporãos. E são tantos melões e em tanta quantidade, que nenhum por grande que seja não passa de dois réis, e isto no princípio, e depois de farta a cidade vão daqui muitos temporãos para a Guarda e Viseu e Trancoso e Pinhel, Riba Côa, e assim todas as outras frutas; e há alguns cogombros78, ainda que são poucos, e há muitas abóboras. [Hortaliça] Item neste dito compasso há muitas boas hortaliças, convém a saber: rabãos todo o ano, couves de muitas castas e alguns repolhos, cardos, cenouras e outros muitos géneros de hortaliça dado que noutras partes há mais porque os homens desta terra não se deitam a ela. Porque se fizessem hortas a terra é muito excelente para isso, como Vossa Senhoria sabera pela sua formosa horta onde se dá muito formosa hortaliça de todos os géneros e maneiras que se possam nomear, por ter aí hortelão que o bem sabe fazer com muita abastança de água.

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Isto é, pepinos.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Fontes] Item no dito compasso há as mais excelentes fontes perenais que se podem achar e eu as quisera escrever por número mas não há maneira para se poderem contar; somente com homens que bem sabem o circuito da terra, as apodaram a 5 000 fontes em que há muitas destas fontes que o nascer onde nascem pode moer um moinho ou azenha. E muitas destas fontes são monstruosas para ver por algumas nascerem em penedos e outras em pés de árvores, e algumas nascem em alguns lugares em pés de nogueiras por onde os homens e as mulheres onde nascem e as continuam a beber são papudos. E uma fonte nasce em uma serra sobre esta cidade a que chamam a Fonte da Esguicha, e nasce em uma laje que jaz alastrada no chão e lança para o ar como um torno de pipa, e outras muitas deste jeito em penedos. E a principal destas fontes é a Fonte da Almedina desta cidade, que é das mais excelentes águas que se possam achar e quer-se bebida em fresco porque é a contra do tempo, que no Verão é tão fria que a não podem aturar, e no Inverno é muito quente; e é água muito sadia. E há outras muitas fontes que quase conformam79 a esta. E destas fontes neste compasso há muitas e muito formosas lameiras que dão três, quatro camas de erva de segar no ano e a maior parte de toda esta terra é regada das sobreditas fontes. [Ribeiras] Item há algumas ribeiras cabedais e tem muitos ribeiros e de mui excelentes e graciosas águas e de muitos seixos brancos e muitas levadas e muitas ervas verdes e muito cheirosas e medicinais, e algumas delas levam para muitas partes para boticários e alguns destes ribeiros moem todo o ano. Título do peixe do Douro Item primeiramente o Douro onde morrem muitas lampreias e muitos sáveis e muitas bogas e muitos barbos. Há aí outro pescado que chamam mugens de água doce os quais não morrem senão pelas primeiras águas de Setembro, é muito saboroso peixe e muito estimado; e outros mugens morrem das Caldas de Aregos até ao Porto porém não chegam a estes. Outrossim morrem no dito Douro muitos e muito formosos iroses que são tão grandes como safios e muito grossos e saborosos. O morrer destes iroses é depois da castanha caída dos castanheiros, porque a enxurrada leva os ouriços dos soutos ao Douro e os ouriços entram nos remansos do Douro nos lodos onde os iroses estão e os picam e se erguem no Douro e vão caír em uns canais que estão no Douro com uns caniços e aí caem em seco, principalmente de noite, onde os aguardam com paus e matam a maior parte deles, e há noite que matam três, quatro iroses. Há aí algumas savelhas. Há também alguns solhos80 ainda que a maior quantidade morrem daqui para cima em Vila Nova de Foz Côa. Estes solhos que aqui morrem são peixes de dez, catorze, quinze palmos, e muito grossos e são peixes reais, e quando morrem é por serem grandes dorminhocos e dormindo, por acerto vão dar em os canais onde dão em seco. E os outros que matam no dito Douro em Vila Nova morrem pelo mesmo teor em armadilhas e os pescadores que os tomam em armadilhas os têm à sirga atados no Douro quinze, vinte dias e quanto querem, até que vêm pessoas que os compram. São peixes que vale cada um 1 000, 1 200, 1 500 réis porque há aí peixes que pesão 50, 60, 80 arráteis cada um e dão um arrátel por vinte réis. E quando os tiram da água deitam-lhe uma canada de vinho branco pela boca com que os levam dois dias vivos. E os que morrem neste circuito em canais, que são poucos, são do senhor da terra por serem peixes reais, ainda que eles comem os menos porque quando os acham os pescadores furtam-nos e vendem-nos e deles comem. E assim há algumas trutas, ainda que poucas, e entre estas acerta alguma tamanha como sável por acerto.

79 80

Isto é, que quase a igualam. Isto é, esturjões. 49


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Das barcas de passagem Item no dito compasso no dito Douro passam seis barcas, que são as seguintes: Bagaúste, que é de Vossa Senhoria, a Régua, que é do bispo do Porto e do Ilustríssimo Dom Fernando, o Carvalho, que é de uma quintã, o Moledo, que foi posta pela rainha Dona Mafalda, o Bernaldo, que é de uma quintã, a de Porto de Rei outrossim feita pela rainha Dona Mafalda. As quais barcas do Moledo e Porto de Rei a dita rainha mandou pôr e deixou certas quintãs e casais para mantimento dos barqueiros que passam as ditas barcas sem levarem dinheiro, por grande, nem fora de marca que o Douro vá, e tem dois reais de pena, e da cadeia, se se provar pedirem eles dinheiro a alguma pessoa; todavia, se lho querem dar os que passam, [seja] por cortesia, mas não que o peçam. Na barca do Moledo deixou a dita rainha um hospital em que manda que dêm cama, fogo e sal e água aos caminhantes, e a governança do dito hospital e barca pertence a esta cidade. Dos “piares” do Douro Item entre esta barca do Bernaldo e a de Porto de Rei estão uns formosos peares81 de uma ponte que a rainha Dona Mafalda dizem que mandava fazer os quais são dois no meio do Douro de muito grande altura e muito largo fundamento, que os dois que estão no rio, neste mês de Maio irão bem dez palmos descobertos, e no Verão irão bem vinte palmos e mais, e estão outros dois de fora: um da parte daquém e outro da parte dalém. Estes pilares foram já de dobrada altura e os derrubaram e fizeram deles pesqueiras, e ainda agora os lavradores os descobrem cada dia por dizerem, digo, os derrubam cada dia por dizerem que criam neles as gralhas que lhe comem os trigos. O arco da parte daquém volvia já. Está aí muita pedra quebrada pelo monte, que ficou quebrada, e acharam ainda pelos montes muitas marras e cunhas e alavancas que por aí ficaram. Dizem nesta terra que a rainha Dona Mafalda tinha um filho o qual filho lhe diziam astrólogos que havia de morrer em água; e por isso mandava fazer aquela ponte. E que fazendo-se aquela ponte morrera o filho em uma pegada de boi cheia de água, e que deixou de a mandar acabar de fazer. O que certo não me parece, senão que a rainha morreu estando a ponte nesta altura, e por isso cessou a obra, porque na maneira que ela estaria se não poderia deixar de fazer por outro jeito. Certamente me parece que se El Rei nosso senhor vira os ditos pilares mandara acabar a dita ponte porque a maior parte é feito pois é o do fundo da água, e tem muito bom fundamento para subir toda a altura que quiserem, e tem muita pedraria quebrada e muita para quebrar à borda da ponte, e tem muito grandes soutos de mui e mui formosas vigas, e madeira para armação dos arcos tudo junto com o edifício. E o pilar que começa a volver da parte daquém nunca o rio o cobre. El Rei nosso senhor podia muito bem mandar fazer esta meia ponte que está por fazer com deitar dez réis a cada morador vinte léguas ao redor e em seis ou sete anos ou em menos se podia fazer sem opressão e seria uma coisa muito nobre neste Reino haver uma ponte no Douro porque por ser fragoso é mui perigoso nas passagens e, sobretudo, seria grande enobrecimento desta cidade. [Mesão Frio] Dizem que uma vila que está meia légua desta ponte, que se chama Mesão Frio, foi povoada por pedreiros que faziam esta ponte. E certamente me parece que deve ser assim, porque o lugar tem um rego pelo meio da rua, de fundo acima, e de uma parte é um concelho e de outra é outro concelho. E dizem que um mestre vivia de uma parte e outro mestre de outra, e de cada parte tem um juiz e oficiais apartados um do outro. Esta obra está abaixo de um lugar que chamam Barqueiros, aliás, que chamam Barrô e está em terra para onde a maior parte das estradas de Entre Douro e Minho e algumas de Trás-os-Montes e as da Beira podiam ir ter para passagem da dita ponte.

81

Isto é, pilares, como passarei a referir no corpo do texto.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Ponte de Canaveses] Esta rainha Dona Mafalda mandou fazer uma ponte de Canaveses que está em Tâmega e uma gafaria ao pé da ponte e um hospital no meio do lugar, com muitas terras, e paga de portagem cada besta carregada que passa pela ponte dois réis e meio para o hospital. Esta rainha dizem que fez a Sé do Porto e outras muitas benfeitorias neste Riba do Douro. Jaz enterrada em um mosteiro que está em um lugar que chamam Vila Boa do Bispo em Riba do Douro, ao qual mosteiro dizem que deixou sete mosteiros anexos, convém a saber: São João de Alpendurada e Ancede e Cárquere, Bustelo e outros que depois El Rei Dom Dinis desanexou. Título da navegação do Douro Esta ribeira do Douro se navega 25 léguas, convém a saber: de São João da Foz, que é a barra do Porto pelo rio arriba até São João da Pesqueira, que são as sobreditas 25 léguas, com barcas que carregam 1 600 até 1 800 alqueires de pão pela grande medida. E de São João da Pesqueira não podem passar por uma mui alta fraga que aí está onde é a pesqueira donde não podem passar sável, nem lampreia, nem outro peixe para cima. E no mês de Maio tomam naquela pesqueira muitos sáveis um homem que está atado com uma corda por baixo dos braços na fraga e com uma rede que deita em baixo tira muita soma de peixe. Esta fraga manda agora quebrar o Doutor Martim de Figueiredo, a qual quebra com fogo de vinagre; tem muita parte quebrada. Se a acabar de quebrar farão grande navegação até Vilvestre, que daí para cima não podem passar, que aí passa o Douro por baixo de um penedo. E ainda que isto seja fora do compasso das duas léguas se pôs aqui por fazer ao caso. Dos canais do Douro Item nesta navegação deste rio há agora alguns canais que perturbam a passagem das barcas como o rio abaixa, porque elles têm paredes que atravessam o rio de parte a parte, e com míngua não podem passar as barcas. E os canais que danam estas passagens estão no circuito destas duas léguas e são de mui pouco proveito e muito dano, porque tomando-se conta do que custam a consertar e do que rendem acharão que passa a despesa pela receita. E já os principais são derrubados, que eram os de Bagaúste, de Vossa Senhoria, e do Conde de Marialva, [os] do Moledo. E para a navegação ser de todo o ano devia El Rei nosso senhor mandar abrir a veia do rio, que é sua, e logo não teria canais nenhuns como as veias fossem abertas, e já agora não há mais de quatro açudes porque os mais levou o rio. Título das pesqueiras do Douro E também há algumas pesqueiras que fazem somente para sáveis e lampreias, que algumas delas são prejudiciais à navegação, e cada dia fazem mais porque se houvesse provedor no rio para ver isso seria melhor navegação porque o Douro tem todo o ano água em abastança porque afirmam ter dobrada a água abaixo de Entre-os-Rios do que o Tejo tem até onde chega a maré. Certo que vem o Douro de Verão tão grande em Zamora como o Tejo vem em Santarém, pois de Zamora até Entre-os-Rios colhe o Douro dobrada água da de que em Zamora trás. Neste Douro há alguns passos maus que se podiam consertar e nestes passos, a que chamam galeiras, há aí pilotos no rio que passam as barcas, convém a saber: desde os Peares até Porto Manso que são três léguas, e leva o piloto um tostão por descer a dita barca. Outros pilotos há que descem outros passos ruins desde São João da Pesqueira outras duas ou três léguas. Deste São João da Pesqueira também vêm ao Porto almadias feitas de cortiça que trazem 100 dúzias de cortiça e mais, ligadas (?) com paus, e esta cortiça se vende a pescadores para bóias e a sapateiros. E sobre ela trazem muitos odres de vinho, vinagre e mel e muitos sacos de sumagre, e vem homens nelas que as governam. São mais seguras de perigo que as barcas. Neste rio, entre os Peares e as Caldas, estava um penedo que chamavam o Touro, e era o mais perigoso passo que havia nesta navegação onde são perdidas muitas barcas e morta muita gente e haverá quatro ou cinco anos que um homem o quebrou com 51


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

despesa de 1 200 réis, onde não mais perigou barca nem gente. E muitos passos há aí que se podiam consertar82 com pouca despesa, para o que El Rei nosso senhor podia deitar uma portagem às mercadorias que descem, para arranjo e reparação destes maus passos e seria muito santa coisa. [Largura e altura do Douro] E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os criados de Vossa Senhoria à barca da Régua, que é uma légua desta cidade, e aos 28 de Maio de 1532 achámos de largura no rio 230 varas. A altura não se pôde tomar pela grande corrente da água e achámos que fora no ano de 1520 uma grande cheia e assim em outros anos em que levou de largo além da água que agora leva da parte dalém 150 varas e da parte daquém 50 varas e de altura vinte varas, fora a altura que agora tem. Assim que somou toda a largura no tempo das cheias com a que agora leva 450 varas, e tomando a altura do que vai com água a respeito da largura que foi vem por regra da geometria 21 varas e meia, que para 23 varas falta meia avos de vara que é a altura que agora pode levar e a altura das cheias junta com esta são 42 varas e 21, 22 avos de vara. Da Ribeira de Varosa Há aí outra ribeira que chamam Varosa que se mete no Douro [a] uma légua desta cidade e nasce em uma serra que se chama Almofala, que é [a] três léguas e meia desta cidade, e de onde se mete no Douro a onde nasce são quatro léguas e meia. Esta ribeira é de muito formosas águas contínuas e passa-se a maior parte do ano ali onde se mete no Douro em barcas. Há nesta ribeira muito grandes pegos e muito altos de muito infindo pescado, convém a saber: muitas e boas trutas e muitas bogas e barbos. As bogas desta ribeira sobrelevam em sabor a todo outro pescado doutras ribeiras. Tem muitas e mui formosas moendas de todo o ano e de seis, sete léguas, vêm nela a moer no Verão. [São João de Tarouca] Esta ribeira passa ao redor de São João de Tarouca que é da Ordem de São Bernardo. Nele está enterrado um conde que chamavam Dom Pedro, conde de Barcelos. Dizem é filho bastardo de El Rei Dom Afonso Henriques, posto que a Crónica de El Rei D. Afonso Henriques não diga de tal filho. O qual conde Dom Pedro dizem ser homem como gigante de corpo. E assim está enterrado no dito mosteiro um seu filho que dizem ser de seis meses. E as canas dos seus ossos são de quatro palmos. Este mosteiro rende 600 mil réis. Quem o ordenou não se acha, somente dizem que um ermitão, por esmolas e com ajuda de El Rei de Castela, o edificou. Foi feito na era de 1134 quando em Espanha foi interdito pelo casamento de El Rei Dom Afonso de Leão com Dona Teresa83, filha de El Rei Dom Sancho de Portugal, o qual interdito foi feito pelo Papa Celestino terceiro, que então era, porquanto El Rei Dom Afonso de Leão era sobrinho de El Rei Dom Sancho, seu sogro, filho de sua irmã. E porque este mosteiro tinha então um grande privilégio que, sem embargo de excomunhão do Papa, pudesse celebrar os Ofícios Divinos e por este caso, nesse interdito, se vieram a enterrar grandes senhores de Castela ao dito mosteiro e deixarão muita renda que o dito mosteiro tinha em Castela e pelas guerras a perdeu. E os testamentos destes senhores estão no dito mosteiro e todos têm esculpidas suas armas nas sepulturas. E ao sagrar deste mosteiro foi um bispo de Lamego e o bispo de Coimbra e o bispo de Viseu e o arcebispo de Braga, segundo achei em um letreiro que está no dito mosteiro, e assim um bispo do Porto. Neste mosteiro jazem enterrados um mestre de Calatrava de Castela e um Joane Mendes de Berredo e sua mulher Dona Urraca Afonso que eram ambos de Portugal, os quais deixaram ao dito mosteiro a aldeia de Martinhanes e a quinta de Mosteiró. E no dito mosteiro está ainda uma colcha que dizem foi do conde Dom Pedro a qual tem por memória84.

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No documento, “correger”. No documento, “Tareja”. 84 Sic. A frase parece estar incompleta, não se chegando a descrever a referida “memória”. Não se encontra em nenhuma das versões que consultámos, o 83

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Mosteiro de Salzedas] E vai o dito rio também pela Ucanha que é do mosteiro de Salzedas, e vai por muitas terras que pertencem ao dito mosteiro o qual mosteiro, diz no letreiro, dizem que mandou fazer Dona Teresa85, mulher de Dom Egas Moniz que em ele está enterrada, e o marido jaz em Paço de Sousa. E jazem enterrados no dito mosteiro de Salzedas os Coutinhos, e pouco mais ou menos é da renda do mosteiro de São João. Este mosteiro foi feito na era de 1148 anos86. As terras deste mosteiro e do mosteiro de São João partem ambas, assim na serra como na ribeira, ambos rego por rego. Ambos estes mosteiros estão [a] duas léguas desta cidade e ambos são da mesma Ordem. E daí vem o dito rio ao longo do mosteiro de Recião, que é [a] meia légua desta cidade, e é de São Jorge da Ordem de Santo Elói dos hábitos azuis e é um mosteiro pequeno e mui viçoso de todos os viços. Esta ribeira, uma légua ao redor desta cidade, de uma parte e outra toda é olivais e vinhas de mui excelentes vinhos, os melhores da terra, e nogueiras e outras muitas árvores, e outra légua para cima é toda soutos onde se mete no Douro. E na quinta de Mosteiró de que atrás faço menção, tem um canal em que morrem muitas bogas e outro muito pescado. Esta ribeira vem a maior parte por terra fragosa e daqui a duas léguas se junta com ela outra ribeira que vem por Lalim, e tem muitas trutas e muito saborosas, e vem junto de Tarouca e em Mondim se junta. Da Ribeira de Balsemão Há outra ribeira que chamam Balsemão que passa por redor desta cidade, nasce daqui três léguas. [Montemuro87] Esta ribeira atravessa o Montemuro, digo, atravessa a Serra de Montemuro toda e nela nasce, a qual Serra é neste circuito a principal dele. A gente desta Serra são gentes lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras. Vestem burel e calçam avarcas que são feitas de correia de vaca, e alguns andam sem carapuças. E os homens e as mulheres pela maior parte são de consciência e casam assim homens como mulheres de trinta anos para riba e isto pela maior parte, e enquanto não são casados não têm sobrenome, e ainda muito depois de casados. Pela maior88 parte vivem muito homens de noventa, cem89 e cento e vinte anos e destes muitos, e nunca em suas doenças se curam com médicos. Não bebem vinho por na terra não se dar, somente alguma hora se o bebem é por acerto90. Não comem senão leite e pão de centeio o mais das vezes, dado que outras vezes comem carne porque na dita Serra não se dá senão muitos e mui formosos centeios, e da eira tiram o pão para semear, e eles semeam no fim de Julho e as mulheres malham, de maneira que o pão esta sempre um ano nos campos. São grandes lutadores, os homens e as mulheres, de muita força. Nesta Serra houve uma mulher que chamavam a Pinta, que era de 120 anos e trazia do mato feixe de lenha com que se cozia uma fornada de pão. Os homens e as mulheres desta Serra são grandes criadores de muitas vacas.

que pode indiciar que não estivesse no documento original de Rui Fernandes, que não terá, assim, concretizado essa informação. 85 Ver a nota anterior. 86 Ou seja, no ano de 1110. 87 No documento, “Monte de Muro”. Passarei a usar a forma actualizada deste nome. 88 No documento, “mor”. 89 No documento, “cento”. 90 Esta expressão pode ter dois significados. Por um lado, pode querer dizer “por acaso”. Por outro lado, pode evocar um costume ancestral que dá conta do facto de duas pessoas beberem vinho quando “acertam” algum negócio. 53


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Vacas e touros] Há homens de 120, 150 reses vacuns, de vacas e touros, as quais vacas têm esta maneira: que do mês de Maio até ao mês de Setembro pastam na dita Serra de Montemuro, e do mês de Setembro até Maio pastam na Gândara junto do mar entre Aveiro e Coimbra que são 16, 17 léguas da dita Serra do Montemuro. E são já tão sentidas no tempo que se o tempo é quente e se os donos as não vão buscar muitas se vem por si, e se o tempo é frio e as não levam por si se vão, e têm lugares deputados91 no caminho que chamam malhadas onde dormem, e ainda que cheguem cedo aí se aposentam. Estas vacas são de peso de cinco, seis, sete arrobas. Dão os mais formosos touros que se podem haver deste peso. São mui ligeiros em correr e muito destros em ferir. Nunca homem de cavalo entrou com eles em curro e mui poucos livres os podem apanhar que os não matem. Onde estes touros andam não ousa lobo cometer a manada. Como vêem homem de perto a tiro de besta apartam das vacas alguns para o cometer. Estes homens desta Serra também criam muitas cabras, e carneiros poucos. O gado desta Serra e as carnes têm avantagem em sabor a todas as carnes. Os homens nesta Serra têm muitos filhos e filhas e mais são as filhas que os filhos. E as filhas não têm linhos para fiar por a terra não os dar e vêm a esta cidade e [a] esta feitoria das lonas de El Rei nosso senhor e leva um lavrador uma carga de linho cânhamo que torna a trazer fiado em dia de mercado a esta cidade que as filhas fiam andando com os gados e levam azeite, sal e pescado e outras coisas para seu sustento. [Caça] Nesta Serra há muita caça, convém a saber: perdizes, galinholas, coelhos, lebres, que vêm vender a esta cidade, e assim leite, nata, manteiga e também trazem a vender carvão e lenha. Esta Serra tem muitas e mui excelentes fontes perenes, mui excelentes lameiras, uma mui formosa veiga por o meio dela por onde vem esta ribeira que é de uma légua em comprido, e três tiros de besta em largo, e é toda lameiras e pastos sem outro nenhum renovo, mas aqui por a terra ser fria não pastam senão de Verão. Nesta Serra não há nenhuma casa de telha, senão todas de colmo, e todas terreiras. Tem outras pequenas ribeiras de trutas pequenas de que não faço menção. [Das neves] Nesta Serra há muita neve. E ao fazer deste tratado no ano de trinta e um, em dia de São Tomé, no mês de Dezembro, caiu uma neve muito grande nesta Serra, e maior, que nunca se recordou homem de 90, 100 anos que nasceram na dita Serra. Foi a neve de tal maneira, que o dia que começou cobriu as casas e muita gente ficou dentro nelas sem terem caminho nem saida, somente os outros de fora lhe iam a fazer caminho às portas por onde saíssem, e a neve continuou três ou quatro dias. Os homens e mulheres da dita Serra tinham bem que fazer com rodos e enxadas para tirar a dita neve de cima das ditas casas colmaças, que não quebrassem as latas das ditas casas e os matarem dentro. E em lugares houve que foi de 10, 12, 15, 20, 30 palmos segundo o vale era, e isto por alto. E aos 26 de Janeiro caiu outra grande neve e morreu muito gado, e todavia não puderam tanta neve tirar que não caíssem muitas casas nesta Serra. E nas Dornas se aconteceu ficar uma corte de bois coberta de neve e a esmo saberem onde estava a corte e minaram por baixo dez palmos por a neve estar tão rija da geada e codão que que sobre ela caíra, e pela dita mina tiraram os bois, e para os gados se não perderem cavaram às enxadas e rodos meia légua e a légua para fazerem caminho por onde os ditos gados fossem para terra quente por se não perderem como de feito se perderiam se os ditos lavradores lhe não acudiram com feitos (?92) de que tem feitos palheiros para o gado miúdo comer no semelhante tempo. Todavia esta neve não coalha senão a uma légua desta cidade para o Sul e para outras partes, e o circuito da cidade e daqui a Mesão Frio fica sem cobrir [de] neve. E se neste tempo que a dita neve estava na Serra acertara de se alagarem todas as moendas desta cidade, e a ribeira fizera muito dano porquanto a ribeira atravessa toda esta Serra e

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Isto é, demarcados. Por fenos?

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

fizeram-se quinze dias que os homens que vinham de Coimbra e de Viseu para esta cidade aguardavam que baixasse a dita neve por não poderem passar. [Moendas] Esta ribeira de Balsemão vem logo por Magueija, que é do infante Dom Fernando, e vem dar na falda desta cidade onde tem 28 rodas de moinhos muito bons fora outras tantas, e mais que terá para cima, das quais moendas a cidade é mui bem regida, porque a ribeira mói todo o ano e os moleiros são obrigados a vir buscar o pão a casa e joeirarem-no e levarem-no ao moinho e trazerem-no de um dia até ao outro e continuadamente andam com asnos pela dita cidade a buscar o dito pão. Somente tem muita necessidade de haver peso da farinha de que a cidade tem pedido a Vossa Senhoria para que lho haja de El Rei. [Aldeia de Balsemão do bispo Dom Afonso] E daqui vai a dita ribeira ter à aldeia de Balsemão, que é de sete vizinhos93, de onde ela tem o nome, que é da cidade meia légua, e toda esta meia légua é de um formoso bosque a que chamam a Pisca, que todo é souto e pomares de diferentes árvores de fruto. [Do bispo Dom Afonso que jaz em Balsemão] Nesta aldeia de Balsemão jaz enterrado o bispo Dom Afonso, que foi bispo do Porto, em uma capela que mandou fazer nas casas de seu pai onde nasceu, a qual capela é pequena e muito bem obrada de pedraria onde está a sua sepultura. E também fez muito bom aposentamento em que viveu e comprou muitas terras que anexou à capela que agora rendem 40, 50 mil réis. Deixou-a muito bem fornecida94 de vestimentas e mantos de brocado e de seda e de cálices e de outros ornamentos, e fez um honrado testamento e estatuto para a dita capela para seus herdeiros se regerem. E na segunda oitava do Espírito Santo em que a bandeira do sinal de El Rei nosso senhor desta cidade vai a São Domingos, como adiante se dirá, pelo dito estatuto dão ali ao Alferes umas ferraduras para o cavalo e ao juiz dez réis e a cada cónego três réis fora outra renda que deixou ao Cabido para lhe dizerem um responso sobre a sua sepultura no dito dia. E outro de seu irmão que chamavam Dom Domingos Martins dizem que fez o mosteiro de Recião, de que atrás faz menção, o qual mosteiro de Recião dizem ser primeiro de freiras e um bispo desta cidade que veio de Roma o mudou à Ordem de Santo Elói porque novamente se acostumava em Roma95. Este bispo Dom Afonso era sobrinho de Dom Vasco, bispo de Lisboa, que, dizem, fez o morgado de Medelo e a Torre do Bispo. Este bispo Dom Afonso morreu na era de 130096, segundo letreiro da capela, o qual sendo bispo do Porto, que é uma tão nobre cidade neste Reino, sua própria mãe que é a terra o chamou como no prólogo deste tratado tenho dito, e ele, deixando seu bispado, sujeito como filho obediente à dita mãe, se veio àquela aldeia de sete vizinhos comer suas rendas onde faleceu. E deste bispado procedem os Afonsecas os quais administram a dita capela, e de Medelo descenderam estes bispos como adiante faço menção. Couto de Medelo Medelo foi uma aldeia termo desta cidade em a qual aldeia viveu um lavrador que chamavam Afonso Domingues e houve um filho, que chamavam Vasco Domingues. Este, por seu saber, veio a ser mestre do Príncipe filho de El Rei Dom Sancho e depois

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Ou seja, agregado familiar; os investigadores da demografia variam na interpretação desta expressão, considerando, consoante os critérios, que o número de vizinhos deve ser multiplicado por 4, 4.5 ou 5. 94 No documento, “repairada”. 95 Ou seja, que era um novo costume importado de Roma. Hoje, quando utilizamos o advérbio novamente, reportamo-nos ao retomar de algo. Na linguagem portuguesa do período medieval e moderno esta expressão é usada para referir uma novidade. 96 Ou seja, no ano de 1262. 55


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

foi bispo de Lisboa ao qual chamavam Dom Vasco. E sendo bispo pediu a El Rei que lhe fizesse aquele lugar do seu nascimento couto para honra de sua geração. El Rei houve sobre isso conselho e saiu que não podia ser provido por ser muito prejudicial o dito couto à sua cidade de Lamego. Tornou a fazer outra petição alegando que tinha feito muito serviço ao Reino, e que fora a Roma certas vezes, que aquele tempo haviam por muito ir a Roma, e outros serviços que alegou, e com a segunda petição lhe fizeram couto. Depois disto morreu o dito bispo Dom Vasco e fez um testamento [em] que ele, por não ter herdeiros, deixava sua alma por sua herdeira, à qual deixava que lhe fizessem uma capela na Sé de Lamego de sua pátria, e é do orago de Santa Catarina e deixou à Torre do Bispo certos bens que tinha em Torres Novas e o couto de Medelo, e que na dita capela se dissessem cada semana duas missas, e fosse administrador dela Geraldo Domingues seu sobrinho, filho de sua irmã, cónego na Sé de Évora, e por morte do dito Geraldo Domingues a administração se tornasse aos herdeiros da linha de sua mãe, e havendo clérigo se desse antes que a leigo, e não havendo barão a herdasse mulher, aquela que mais chegada fosse ao parentesco. O qual Geraldo Domingues, cónego de Évora, foi depois bispo de Évora. E ao tempo da sua morte fez outro testamento em que mandou que se cumprisse o testamento de seu tio Dom Vasco, e mandava que na dita capela de Santa Catarina se dissesse cada dia uma missa, e houvesse dois capelães, e mais deixava à dita capela a apresentação do mosteiro de Bouças, que era sua capela, se tornasse à linha de seu tio, a qual capela e couto depois tiveram muitos herdeiros, e veio ter a um pobre escudeiro que vivia no dito couto de Medelo e administrava a capela de Santa Catarina, ao qual por sua pobreza se lhe levantaram com a Torre do Bispo, e com as terras de Torres Novas e outras da capela e ele era senhor do couto. E estando assim, veio Gonçalo Vaz Coutinho, que então era Marechal de Portugal, o qual veio ter a esta cidade, e não sei se era já alcaide-mor dela, e falou com o dito escudeiro e lhe disse que ele não podia resistir para haver as terras e rendas da dita capela, que se ele lho quisesse satisfazer e deixar o dito couto e capela, que ele resistiria e haveria a dita capela, digo, haveria as terras e coisas que a ele pertenciam, o qual escudeiro lhe deixou a dita administração do dito couto e capela. O descambo como foi se arrendasse a dinheiro, não o achei somente o dito Marechal houve a sobre dita capela e tirou a Torre do Bispo e as terras de Torres Novas e a apresentação de Bouças que andava sonegado, e ficou aos Coutinhos com o antigo couto de Leomil que já tinha. E o dito morgado de Medelo e capela terá de renda perto de três contos de réis. E acho que deste Afonso Domingues, lavrador desta nossa aldeia, descenderam três bispos, convém a saber: seu filho Dom Vasco, bispo de Lisboa, e seu neto Dom Geraldo, bispo de Évora, e Dom Afonso, que foi bispo do Porto, que também dizem ser seu neto, que jaz em Balsemão e fez o estatuto da capela de Balsemão pelo modo da de Medelo e diz em ele não havendo herdeiros de sua linha se volva aos herdeiros de seu tio Dom Vasco, bispo de Lisboa, e assim diz que os responsos e missas que lhe disserem na dita capela seja por sua alma e pela alma de seu tio Dom Vasco, bispo de Lisboa. Por este lugar de Medelo passa o ribeiro de Fafel de que adiante faço menção. Esta ribeira de Balsemão se vai meter em Varosa [a] três ou quatro tiros de besta da dita aldeia e dizem que um Bispo a quisera mudar por esta cidade na ribeira da Magueija para vir dar em Fafel, o que se poderá fazer com ajuda de El Rei, e fora grande enobrecimento desta cidade. Esta ribeira tem muitos bons bordalos e muitas trutas, as mais saborosas de toda a Beira, ainda que são pequenas, e também tem alguns pegos em que andam grandes trutas. Do ribeiro de Fafel Ha outro pequeno ribeiro que vem pelo meio desta cidade que chamam Fafel, de onde se regam os renovos e hortas da maior parte desta cidade e doutras aldeias. Nasce daqui a meia légua em Penude e vem pelo lugar de Medelo, cabeça do morgado, que é perto desta cidade. Entra pela povoação da Sé em redor dos paços de Vossa Senhoria e do seu formoso terreiro. Este ribeiro ainda que é pequeno é mui furioso quando vai de cheia, e depois da partida de Vossa Senhoria tem dados fortes combates ao seu muro do terreiro em tanta maneira que o derrubou por três lugares desejando-se tornar ao lugar de onde Vossa Senhoria o mandou mudar por onde o seu terreiro fixou de longo 106 varas e de largo 86, que autoriza bem e enobrece esta cidade. Este rio, pela maior parte, é de fontes mui excelentes e de todo o ano. Mói somente quando lhe tomam a água para regar e não por não ter água. Tem quatro lagares de azeite e oito rodas de pão além dos que digo da ribeira de Balsemão e tem dois pisões dos bordates de El Rei nosso senhor. O qual rio é a melhor água para curar panos que outro, e com ele se curam os ditos bordates e alguns fustões que se aqui também fazem nos engenhos dos bordates, onde também se fazem bocachins. 56


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Este ribeiro se vai meter no rio de Balsemão a três tiros de besta dos paços de Vossa Senhoria. De onde nasce até onde se mete em Balsemão tudo é de uma parte e doutra soutos e nogueiras e olivais e pomares e hortas. Este rega os famosos campos de Coura e tem alguns poucos escalos pequenos. Do ribeiro de São Martinho Há outro ribeiro no concelho de São Martinho de Mouros que nasce no cimo do concelho, convém a saber: águas vertentes da Serra de Montemuro para o Douro, o qual ribeiro de onde nasce a onde se mete no Douro é uma légua, e é pelo mais fresco vale que se pode achar, todo muito cerrado, e parece-se muito com Sintra, somente tem mais arvoredo. Todo este vale não é senão castanheiros e nogueiras e aveleiras e laranjeiras e outras árvores de espinho mui excelentes, e muitos bons pomares e lameiras. Dá o mais formoso trigo que há em toda a Beira, muitas uveiras, homem há que colhe 400, 500 almudes de vinho amaral de árvores, e grande soma de noz e castanha e dali saem muitos e mui formosos mastros de castanheiros e muito tabuado que todo se vai carregar ao Douro. [Morgado dos Cardosos] No dito vale está um lugar que chamam Cardoso onde está um morgado de onde procedem os Cardosos deste reino. Tem muitas e mui honradas quintas e casais no dito vale e em outras partes da Beira e agora é de Azoil (sic) Cardoso e Vasco Cardoso seu filho. Neste vale há as mais fontes que em todo o Reino se podem achar em tão pequeno compasso e isto é no concelho de São Martinho de Mouros que é do Ilustríssimo infante Dom Fernando, e a igreja é da sua capela de Santa Catarina e é a igreja muito antiga segundo parece em seus edifícios e tem uma torre mui honrada e a igreja é edificada como Sé e me parece edifícios mouriscos. A esta igreja é anexa outra de Montemuro da principal parte da dita Serra a que chamam Gosende. [Jantar de Montemuro] Têm todos os moradores de Montemuro, pais e filhos, em dia de São Martinho, que se faz uma festa na dita igreja, um jantar em que hão-de dar a cada um três iguarias. Se é dia de carne, vaca, carneiro, marrã e mostarda e magusto. Se é dia de pescado hão-de dar peixota, raia e sardinhas e azeite e vinagre e nozes e vinho que os farte. E em dia de Natal para beberem na sua igreja treze almudes de vinho. E este partido me parece que fizeram por darem o padroado à dita igreja de São Martinho por fazerem a sua igreja anexa à dita igreja de São Martinho. Este ribeiro de que acima faço menção que passa pelo vale de São Martinho se chama Bestança. Este ribeiro tem nesta légua 25 moendas que moem todo o ano. [Córrego] Item na parte dalém Douro no dito compasso há outra ribeira que chamam o Córrego, da grandura da Varosa, e também se passa em barca ao tempo que passa Varosa. Esta ribeira nasce dentro em Vila Pouca de Aguiar em uma fonte no cima do lugar. Vem por todo o vale de Aguiar, que é bom e grande, e vem ao redor de Vila Real e vem-se a meter no Douro em a Régua defronte da Varosa a uma légua desta cidade e de onde nasce a onde se mete no Douro são sete léguas. Não faço menção doutros ribeiros, digo, léguas; trás muitas trutas e bogas. Não faço menção doutros ribeiros que neste se metem por serem pequenos, e ainda que trazem algumas trutas pequenas. Da ribeira de Sermenha Item há outra ribeira que chamam Sermenha que nasce na Serra do Marão. Mete-se no Douro entre o barco do Moledo e do Carvalho e trás trutas e bordalos muito bons. 57


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Há outra ribeira que chamam Teixeiró que vem por um lugar a que chamam a Teixeira, e nasce arriba do lugar caminho de São Gonçalo de Amarante o qual vem por Mesão Frio por muito fragosa terra. É muito viçosa ribeira de pomares, árvores de espinho, soutos, nogueiras, e tem muito boas trutas e muito boas bogas, bordalos e vem-se a meter no Douro. Título do número e soma dos moradores deste compasso Item determinei a somar quantos povoadores há neste compasso e para o melhor saber pus os concelhos todos cada um por si e quantos moradores têm, os quais concelhos tirei alguns deles por as somas que El Rei nosso senhor mandou fazer, e outros por informação dos sobreditos concelhos e moradores deles. São 5 116 moradores neste compasso e por razão e nobreamento todos houveram de ser termo desta cidade e fora uma bem nobre cidade e maior e mais rica se tivera este termo. E a renda das terças que rende a este concelho renderá a ela para seu enobrecimento. E muita parte destes concelhos em tempo antigo foram do termo da dita cidade, e por ela andar então regida por oficiais mecânicos se perderam por não acudirem a isso. E para esta cidade ser maior e mais bem consertada de muitas benfeitorias devia El Rei nosso senhor fazer mercê das terças destes concelhos para obras desta cidade, as quais terças rendem bem pouco dinheiro, que pode ser até 40 mil réis, e com este rendimento cada ano se faria uma benfeitoria, assim para fazer rossios de que tem muita necessidade, como de praça, que há três anos que nela fazem e por a renda ser pequena se não pode acabar, porque a cidade tinha de renda 10 mil réis, e agora com os tombos que fez o licenciado Francisco Sanches rende 31 mil réis e daqui se tira a terça. E achou-se por uma inquirição que tiraram que o mosteiro de São João lhe tem tomados 40 ou 50 mil réis de renda dos seus maninhos. E por a cidade não ser bastante para suprir a demanda, e assim por porem suspeições ao Licenciado, não se seguiu a demanda. E para finta não tem maneira porque a maior parte dos povoadores são privilegiados e os pobres que não têm privilégio pagam tudo, para o que El Rei nosso senhor devia pôr estas fintas em imposição de um ceitil na carne para ricos e pobres pagarem antes que em fintas do concelho por a muita opressão dos pobres. Os quais concelhos e povoadores são os seguintes. Título do numero da gente deste circuito [De El Rei] Item a cidade e termo [têm] ............................................................................................................................. 1 411 vizinhos [De São João] Item Sande tem ................................................................................................................................................. 56 [vizinhos] [De El Rei] [Item] Valdigem [tem] .................................................................................................................................... 146 [vizinhos] [De Pero da Cunha] Item Armamar [tem] ....................................................................................................................................... 341 [vizinhos] [De El Rei] Item Vila Seca [tem] ......................................................................................................................................... 36 [vizinhos]

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[De António Pereira] Item Lumiares [tem] ....................................................................................................................................... 189 [vizinhos] Além Douro [De Vossa Senhoria] Item Canelas [tem] . ........................................................................................................................................ 100 [vizinhos] [Do bispo do Porto] Item o Peso [tem] .............................................................................................................................................. 60 [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Fontes [tem] . ............................................................................................................................................ 25 [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Penaguião [tem] . .................................................................................................................................... 570 [vizinhos] [De El Rei] Item Oliveira [tem] ........................................................................................................................................... 20 [vizinhos] [Beatria] Item Cidadelhe [tem] ........................................................................................................................................ 20 [vizinhos] [Beatria] Item Mesão Frio [tem] .................................................................................................................................... 200 [vizinhos] [Beatria] Item Vila Marim [tem] ...................................................................................................................................... 80 [vizinhos] Aquém Douro [Do infante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros [tem] ............................................................................................................... 570 [vizinhos] [Do infante Dom Fernando] Item Magueija [tem] ......................................................................................................................................... 36 [vizinhos] 59


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Do infante Dom Fernando] Item Medelo [tem] ..............................................................................................................................................................

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[De El Rei] Item Gosende [tem] .......................................................................................................................................... 40 [vizinhos] [Beatria] Item Campo Benfeito [tem] ................................................................................................................................................

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[Beatria] Item o Mesio [tem] . .......................................................................................................................................... 30 [vizinhos] [Beatria] Item Britiande [tem] ....................................................................................................................................... 120 [vizinhos] [De El Rei] Item o couto de Salzedas [tem] . ...................................................................................................................... 280 [vizinhos] [De El Rei] Item Tarouca [tem] . ........................................................................................................................................ 540 [vizinhos] [De El Rei] Item Lalim [tem] . ............................................................................................................................................. 50 [vizinhos] [Do infante Dom Fernando] Item Mondim [tem] . ....................................................................................................................................... 221[vizinhos] Da soma dos aí moradores Assim que somam os moradores deste circuito de duas léguas em compasso e de arredor a soma sobredita os quais, tantos por tantos, não se achará no Reino nem em Espanha que tenham tantos filhos e filhas. E são mais as filhas que os filhos porque em nenhuma parte se achará onde as mulheres tanto pairam nem que tanto se criem, porque no dito circuito há mulheres que pariram três crianças de uma emprenhidão. Há muitas pessoas que têm dez, quinze, e dezasseis filhos e filhas de um marido.

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Em branco nas duas versões. Em branco nas duas versões.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

E deitando ao dito compasso a um por outro a cinco filhos somam 20 580 filhos, e isto mais se hão-de achar de cinco para cima que de cinco para baixo porque nesta cidade houve mulher, que haverá vinte e quatro anos que é falecida, e hoje são vivos dela bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a maior parte destes são fêmeas, e ela não teve mais de um só marido. Do ensino dos moços e moças do Bispado Tem outra coisa, que os moços e moças da parte daquém do Douro, e assim todos os outros deste bispado de Vossa Senhoria, de cinco anos para cima todos sabem e são mui sabidos nos feitos de Deus que não há moço nem moça assim das aldeias como da cidade como os que andam com o gado no monte que não saibam o Padre Nosso, Ave Maria, e o Credo, e Salve Rainha, e os Mandamentos, e ajudar à missa em modo que os filhos ensinam aos pais e mães e isto no bispado de Vossa Senhoria pelos mestres e cartilhas que Vossa Senhoria mandou pôr em todas as igrejas do seu bispado, que todos os dias à Vésperas fazem vir todos os moços e moças da freguesia e os ensinam. O qual é uma obra mui santa que não há pessoa que não folgue de ver o ensino e o saber das crianças principalmente nas aldeias e nos montes onde não sabiam o Padre Nosso senão desde que Vossa Senhoria os mandou ensinar. E Vossa Senhoria tem visto ser assim porque à sua mesa os mandava vir, os da cidade e termo, e via todos como eram ensinados tão pequenas crianças e acerca desse teor são todos os do seu bispado. Dos porcos Item no dito compasso podem criar cada morador dois porcos um por outro, e uma marrã e isto é o menos porque há muitos homens que cria cada um dez, doze porcos, e quatro e cinco mais por menos. Deito isto porque alguns não criam a dois porcos e uma marrã que somam 10 232 porcos os quais se criam no dito compasso e 5 116 marrãs. São as mais saborosas carnes do Reino por serem cevados com castanha. Estes porcos os mais deles se vêm a vender a esta cidade em um mercado que se faz cada semana à segunda feira, e vendem-se desde dia de Santo André até dia de Janeiro (sic); e assim vão alguns a uma feira de São Nicolau que se faz em um lugar que chamam Canaveses que é daqui sete léguas que se vendem para Entre Douro e Minho e para a Beira e também vão porcos e marrãs para a cozinha de El Rei nosso senhor e também muitas marrãs e muitos presuntos vão para a corte e para outros lugares. Item rendem os dízimos foros das novidades destas duas léguas aos prelados e senhorios (?) dela cinco contos de réis pouco mais ou menos, que também fica pelo miúdo e no meu poder, contando as rendas que tem o infante Dom Fernando neste compasso; o ano [passado] as arrendou Nicolau Rodrigues que é o maior crescimento que nunca tiveram. Dos rendimentos dos portos e sisas a El Rei nosso senhor Item rende a El Rei nosso senhor as sisas e portos desta terra convém a saber: os mercadores que vão a Castela três contos de réis nas sobreditas duas léguas, ainda que já agora não rende tanto, que diminuiram bem o terço pelas rendas que Sua Alteza mandou dar em tributo real, as outras abateram, e os que têm os tributos todos trabalham por se tirar deles, e não são contentes, e El Rei nosso senhor nisso perde porque uma sisa de tributo dará quatro de arredor. Porque ou todas houveram de ser tributo, ou todas arrendadas, porque no tributo mal pelos que pouco podem, porque os poderosos pagam o que querem e aliviam a que querem, e o ano que o homem é lançador é bem servido. Assim que somam oito, oito contos o destas duas léguas. E este rendimento que digo são afora o mais que com isto se aqui recolhe de fora por ser cabeça do almoxarifado e do bispado.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item o almoxarife de El Rei nosso senhor quatro contos de réis .............................................................................. 4 contos. Item o almoxarife [do infante] Dom Fernando ........................................................................................................ 4 contos. Item o feitor de Vossa Senhoria dois contos e trezentos mil réis .............................................................. 4 contos e 300 000. Item os mosteiros de São João de Tarouca e Salzedas um conto e duzentos mil réis ................................................... 1 conto e 200 000. Item o Cabido com o grosso ............................................................................................................................................... 99. Afora comendas de Rodes e outras comendas e igrejas que aqui não faço menção, porque entram na conta dos cinco contos de réis. E todo este dinheiro vai para fora tirando se é algum de alguns, poucos, abades e do Cabido porque o Daiado e Tesourado que é do Cabido se come fora, e assim do mosteiro de Salzedas se come aqui, e todo o mais dinheiro se vai daqui para fora, somente até agora se comia nesta cidade 800 000 réis de lonas que se faziam para El Rei nosso senhor que saía das sisas do dito compasso e se repartia por fiadeiras e tascadeiras e dobadeiras todo pelo miúdo, que é regateiras e panadeiras. Até os presos nisto ganhavam de comer em dobar e almocreves em carretos, e homens pobres que não tinham ofícios aprenderam a tecelães das ditas lonas com que até agora se mantinha. E este ano passado, que não houve contrato pelas pazes de França, ficaram desbaratados e se as obras que Vossa Senhoria mandou fazer [não foram,] muitos pereceram por a terra ser muito pobre de dinheiro e os mais dos anos lhe levam os mantimentos para Lisboa e para outras partes. Do tratado (sic) dos bordates, fustões e bocachins Item há outro trato de El Rei nosso senhor de bordates que costumavam trazer de França e agora se fazem nesta cidade e circuito, que é muito bom para a dita terra. Porque na dita cidade e circuito haverá 2 000 tecedeiras de pano de linho e estopa as quais tecem aqui os ditos bordates, e está aqui na casa da Feitoria um formoso brunhidor dos bordates e pisoas monstruosas para ver andar, e assim há dois pisões que Vossa Senhoria viu, no qual brunhidor se fazem também bocachins e fustões como atrás digo. Do sítio da terra e povoadores dela Item esta terra é muito montuosa pela maior parte e toda é muito aproveitada, que em ela não há pedaço que não seja aproveitada, principalmente para o Douro. E os homens são tão benfeitores que às fragas altas levam o cesto da terra às costas para plantarem as parreiras e figueiras, pereiras, ameixoeiras, e todo outro arvoredo. E todas as estradas estão cobertas de fruteiras e videiras onde desde o mês de Abril até ao mês de Outubro os homens têm sempre em que deitar a mão de frutas e é sabido que nestes meses a despesa é muito menor de pão nesta terra que em outros meses. Há também muitas ervilhas e favas semeadas que também é mantenença, e os caminhantes comem de tudo isto largamente pelas estradas sem dinheiro porque os povoadores desta terra são muito maviosos e de agasalhado e dão-lhe largamente de comer do que têm e melhor que nenhum outro de Alentejo nem da Estremadura. Em este circuito não poderá homem andar que a tiro de besta não ache água e sombra de árvores de fruto para comer. E por esta terra ser tão fragosa serve-se com bestas de almocreveria, que haverá bem 1 500 bestas muares de carga de que a cidade é bem servida de pescados frescos e doutras coisas como ao diante [se] dirá, e assim há muitas aves convém a saber: rouxinóis, calhandras, estorninhos, melros, milheiras, e outras muitas de mui suaves e doces cantares que de noite e de dia não deixam de cantar no V[e]rão.

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Em branco nas duas versões.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

Das trovoadas Esta terra é muito perigosa de trovoadas principalmente no mês de Maio que acerta dia muito sereno em que vem toda a escuridade do mundo e cai mui grande pedra, pedras que são delas tamanhas como ovos de pássara, e cai tanta, e em tanta quantidade, que no lugar onde cai destrói todos [os] pães dos agros e todas as árvores e todas as vinhas, e onde acerta leva o ramo ao chão. E estas trovoadas não vêm senão no Verão e cai com elas muitos raios e coriscos, que matam gente, e acerta em castanheiro que o queima até ao chão e não dura senão uma hora, hora e meia, e quando dura duas horas é muito e ela passada fica o tempo sereno como que nunca chovera. E esta trovoada muitas vezes nem empece mais de uma freguesia ou um tiro de besta ao redor, mas o lugar onde chega fica destruído por todo aquele ano de todos os renovos e muitos lavradores ficam perdidos. E estas trovoadas é certo que não podem mais vir, que do dia que a primeira começa ate nove dias, e está experimentado e é certo, e muitas vezes acertam cinco, seis trovoadas nestes nove dias. E em diversos lugares há muito grandes nevoeiros nesta terra e Riba do Douro principalmente nesta cidade que nunca no mês de Dezembro e parte do de Janeiro nenhum ano erra, e é névoa encerrada, que a um jogo de barreira se não vê um homem ao outro. E alguns anos acerta de vir outra névoa tão cerrada quando os trigos começam a engraecer. Esta névoa acerta que se o Douro vem barrento naquele tempo, por via das águas de Castela, se perdem todos os trigos de Riba do Douro por causa daquela névoa trazer o barro do Douro e se meter no casulo da espiga do trigo onde havia de estar o grão, e quando o vêm segar acham a espiga cheia de barro sem grão. E isto não faz mais dano que águas vertentes ao Douro, e isto indo o Douro barrento, porque se não vai barrento ainda que haja névoa não faz dano, e assim destrói os vinhos e azeites. Do assento desta cidade Esta cidade conquanto é abastada está o assento dela muito mal concertado convém a saber: o assento das vivendas, dado que esteja em bom sítio porque está em três bairros: uma é a principal vivenda da Praça onde acodem todas as mercadorias e vivem os mercadores e se fazem os mercados e onde é o trato todo, e onde está a Audiência e Relação sobre ela e pousam as justiças seculares; outro é o Bairro da Sé, que de antiguidade se costumava chamar100 o Couto da Sé porque é dos bispos, onde vivem os cónegos e beneficiados e outras nobres pessoas, onde estam os Paços de Vossa Senhoria e com o formoso jardim e grande terreiro e cerco de muro que Vossa Senhoria mandou fazer, e assim como o poço e carreira e com outras mui formosas benfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas, que é a melhor coisa da cidade, e também lhe dá muita graça o rio neste Bairro da Sé, e em cada parte que cavam, por pouco espaço, achão muita água como Vossa Senhoria sabe pella água do seu muito formoso Poço da Bomba que mandou abrir, onde achou dois muito grandes tornos de água para o tanque. Há outro Bairro no meio destes em mais alto onde está a fortaleza desta cidade em que moraram cinquenta vizinhos; é muito forte, tem alguns edifícios dentro, convém a saber: uma muito grande cisterna de abóbada de muita água e um muito alto poço, que chamam o Poço do Engenho, muito alto, que se tirou terra, segundo parece, de que se encheu uma torre da Relação e tem para uma parte um muito formoso castelo em que o infante Dom Fernando tem o seu alcaide, porque ele é alcaide-mor desta cidade, e dentro do dito castelo estão os presos. Este castelo tem uma muito forte torre da menagem. No meio desta torre está uma muito formosa janela de assento que o Conde de Marialva mandou fazer e vindo El Rei Dom João, que Deus tem, a esta cidade o Conde lhe perguntou que parecia a Sua Alteza daquela janela. EL Rei lhe respondeu que mais soubera quem a abrira, que quem a mandara abrir. O Infante dá a alcaidaria dela e as coisas necessárias para as prisões. Tem muito grandes direitos da alcaidaria e muita renda. Ao pé do Castelo estão os açougues de que o Infante tem os direitos que em seu título se dirão, e de suas rendas se fazem e reparam e põem talhos. Dentro da cerca estão uns muito formosos paços caídos. Foram do Conde de Marialva.

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Nos documentos: “se soia de chamão”. 63


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Do regimento dos almocreves Nesta cidade há [um] muito bom regimento, que não há outro tal em Portugal, acerca dos almocreves. Nesta cidade e termo haverá bem cem almocreves. Todos são inscritos na Câmara e cada um deles é repartido a dar no ano seis dias de giro cada dois meses, um de pescado fresco, de maneira que são repartidos para cada dia de todo o ano dois almocreves e estes hão-de trazer todos os dias pescado fresco dos portos do mar, que são a quinze, dezasseis e dezoito léguas, e se não acham fresco trazem seco e certidão como não havia fresco. E são repartidos por todos os portos do mar de maneira que muitas vezes não há [peixe] fresco no Porto e em Matosinhos e o temos nesta cidade de Galiza e de Aveiro, e muita sardinha fresca, como agora temos aqui de Galiza e no Porto não a há. E isto é além doutros almocreves que continuadamente andam a ganhar e quando não têm seus giros por seu proveito o vão a buscar porque nesta terra, como atrás disse, há muito sumagre e muito vinho e muita castanha e muita noz e muito azeite que os almocreves levam aos portos de Portugal e de Galiza e trazem retornos, que nunca se acha porto de mar sem almocreve de Lamego. Os pescados que aqui vêm do mar são os seguintes: mui formosas pescadas frescas e secas, muitos ruivos, muitos robalos da costa e mui grandes congros, congro de duas arrobas, pescada de vinte arráteis, muitas raias, muitos cações, muita toninha, e linguados, e solhas, e badejos, e muito marisco. O preço dos pescados não ponho aqui. Achar-se-á no tratado, na taxa e regimento da Câmara que aqui pus. Do regimento das carnes No regimento das carnes há outro modo que não vi em este Reino porque aqui se cortam mui grossas carnes de bois de Baião, que levam todas as carnes de boi em sabor, que é daqui a três léguas e outros de Entre Douro e Minho. A taxa destes é a três réis por arrátel e por provisão de El Rei que para isso tem a cidade para poder comer as carnes daquelas partes pela taxa de lá. Há outra taxa de El Rei nosso senhor da comarca da Beira a dezasseis ceitis o [a]rrátel e sem embargo disto não se corta toda a este preço ainda que seja a dezasseis ceitis, se não está em alvidro dos almotacés, e a carne boa dão a dezasseis ceitis e a outra daí para baixo, segundo é, a catorze ceitis e a quinze e a dezoito, digo, e a treze, e isto não vejo em nenhuma parte senão todas a um preço, as gordas e as magras. Talha-se carneiro de Outubro até ao S. João a três réis e meio o arrátel, e de S. João até Outubro a três réis. Talham-se os crestões capados a catorze ceitis e a cabra a dois réis. Nesta cidade há dez ou doze carniceiros, que todos são obrigados na Câmara darem carnes em abastança ainda que neste ano o não fazem por não lhe quererem dar as carnes gordas e magras todas a um preço. Há aí três açougues convém a saber: um da cidade em que há sete, oito carniceiros, e outro do Cabido que tem um carniceiro, e outro dos mesteres que tem outro carniceiro. O Cabido e mesteres têm repartidores no açougue, convém a saber: o Cabido põe um cónego que reparte cada semana e os mesteres um dos vinte e quatro dos mesteres que reparte cada mês e todavia nenhum deles não pode repartir sem o almotacé da cidade lhe ir pôr o preço das carnes. As mais coisas do regimento desta cidade não falo aqui porque vão adiante no título das taxas e regimento desta cidade. Os cidadãos dela os mais são de antigo género e de boa linhagem, e deles fidalgos que têm renda e vivem por suas lavranças ao modo dos antigos Romanos. Os quais renovos são os que neste tratado digo e não duvido que alguns homens baixos se metem às vezes por almotacés por aderência o que em todas as partes já vejo fazer. [De onde a cidade tem o nome] Esta cidade dizem os antigos que se chama Lamego por em ela haver uma árvore no Castelo a que chamam Lamegueiro e certamente bem o demo[n]stra pelas armas dela que são um lamegueiro metido em um castelo e doutra parte o Sol e doutra a Lua com umas estrelas. As mais coisas dela são feitas de mouros, e tem alguns nomes arábicos como é uma igreja nesta cidade a que chamam Almacave que é nome arábico e há muitos edifícios antigos em quintas de redor mouriscos.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[São Domingos de Queimada] Há em esta cidade a uma légua uma igreja mui nobre que vem a ser a ermida de São Domingos de mui formoso talho de pedra em um mui alto monte de onde se ve muita parte de formosa terra. A qual ermida dizem que mandou fazer El Rei Dom João, que Deus tem, o segundo deste nome. É de muitos milagres. Há aí pessoas que não podem haver filhos e a ele veio El Rei Dom Afonso antes que houvesse o Principe Dom João, e depois veio El Rei Dom João antes que houvesse o Principe Dom Afonso, e assim vêm muito grandes senhores. Tem muitos votos nas oitavas do Santo Espírito, principalmente desta cidade, que cada Rei que reina dá uma bandeira das armas da cidade com uma mui formosa batalha. Vão lá com todos os moradores da cidade, ainda que privilegiados sejam, muita gente de cavalo e muita de pé. Lá tinham um grande jantar que agora se tirou pela Ordenação. Vai o Cabido e raçoeiros de Almacave e Frades onde todos têm renda para esse dia comerem e assim vão de todos os concelhos a duas e três léguas deste circuito cada um seu voto. [Foros do Infante] Um só erro contarei deste circuito, que há muito foreiro por muitas partes, convém a saber: do infante Dom Fernando tem muita parte nesta cidade, que não acharão homem de raiz em ela que não seja seu foreiro, e tem muitos direitos de alcaidaria. Tem seis arráteis de carne de direito de todo boi ou vaca que em esta cidade ou termo se matar, e isto de tempo antigo, e por foral eram costas de cada boi ou vaca de uma mão travessa e isto da açougagem101 e se concertaram que fossem seis arráteis de carne de qualquer parte ou lugar do boi o pedissem. E à custa das rendas do Infante se fazem os açougues e talhos na cidade. Tem mais Sua Alteza de renda no termo desta cidade, convém a saber: em Arneirós, os Chãos, Penude, Sucres, a Póvoa, uma posta de carne de porco. So[i]a de ser grande, agora são onze ceitis. Estes pagam este foro sem nenhuma coisa que pertença ao Infante somente de certo real. Tem mais de um lugar que chamam Lamelas de foro antigo uma trava de codesso para travar a mula. Tem mais de um lugar a que chamam Casal do Nabo um magusto de castanha, hum pichel de água da veia da Ribeira de Varosa que é a uma légua e meia. Estes antigos foros dizem muitos que foi uma grande vinha que um senhor pos onde chamam o Morgado, perto desta cidade, que é seu, e que lhe trouxeram serviços que depois ficaram por foros. Tem mais de direitos o seu alcaide de todo o sangue sobre os olhos, convém a saber: do olho para cima 500 réis. Tem mais de cada inchaço ou pisadura que alguma pessoa fizer a outra, de cada polegada 140 réis e uma vara de bragal. Tem mais o dito Infante relego no mês de Agosto, que outra pessoa não pode vender vinho senão aos seus rendeiros. Tem mais a apresentação do mordomo da vara o que [dá?] as execuções das sentenças que serve nas audiências, e assim tem a dada dos direitos reais, convém a saber: do juiz. [Da feira de Santa Marinha] Em esta cidade se fazia antigamente uma feira por Santa Marinha, no mês de Julho, que durava quinze dias, onde vinham muitos mouros de Arévolo e de Granada, os quais traziam esp[e]ciaria de onde se abastecia todo o Reino por então não haver ainda trato da Índia e pelas grandes sisas se desfez. E agora que a cidade tem a sisa em tributo a tornou a reformar em que se fez um ano, e levava bom começo, e os da Guarda, por dizerem que se lhes danava sua feira, houveram um alvará de El Rei nosso senhor que esta feira se não fizesse e por os oficiais daquele ano não acudirem a requerer a justiça da cidade se desfez a dita feira e que Vossa Senhoria devia reformar por ser enobrecimento da terra, porque esta feira era do melhor sítio da terra por todas as mercadorias haver neste compasso.

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Nos documentos: “augagem”. 65


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Estas duas léguas deste compasso é a mais sadia terra e dos mais excelentes ares que há no Reino tirando o Peso que é na barca da Régua, que é terra muito doentia, e tem os ares carregados e as águas muito más por a terra ser de qualidade da terra de Alentejo. O mais compasso da terra é muito são de mui poucas febres e de poucas maleitas e desde que os Judeus de Castela entraram em Portugal, que então foram mui grandes pestilências, nunca mais houve peste. Os homens desta terra não são sobejamente muito ricos como em outras partes nem há muito grossa fazenda de tratantes por a terra ser pobre de trato e nas coisas de trato, que é seda, pano, fitas, retrós, couramas e panos de Castela. Qualquer alfaiate ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil réis logo se fazem mercadores e para estes é melhor o trato da terra que para os homens de fazenda grossa por as mercadorias serem miúdas, porque como um mercador a que tem dois, três mil cruzados parece que é mais rico que em outra parte tem (sic) quinze, vinte mil cruzados, e não duvido porque nesta terra valem mais 200 mil réis que em outra parte 400 mil réis. Todas [as] pessoas, e assim mercadores, são bem arreigados de campos, vinhas, soutos, olivais e assim outras herdades mais que em outras partes. E o homem pobre que aqui não tem casal é mais pobre que em nenhuma parte porque não tem mais que dez réis de jornal e comer e beber. E qualquer que tem um casal por pequeno que seja se mantém muito bem porque colhe de todos os renovos, convém a saber: pão e vinho, azeite, castanha, sumagre, e de todos outros legumes, e frutos. E a gente desta terra é da melhor conversação e amizade que em todo este Reino se possa achar. E assim vem aqui estrangeiro que como está aqui dois meses logo se não deseja tornar e isto pela conversação da gente como pelos viços da terra. E pera Vossa Senhoria saber o regimento e taxa dos preços dos frutos e serviços da cidade, o pus aqui tirado dos acordos da Câmara ainda que seja prolixo, e porem por me parecer que a dita taxa fazia ao caso, e também para Vossa Senhoria o ver, o mandei aqui tresladar e é o seguinte. Treslado da taxa que aprovaram o juiz e oficiais este ano de mil quinhentos e trinta Item primeiramente sapateiros e coisas que a seu ofício pertencem Item um couro em cabelo de dezasseis arrobas até dezoito não passará de .......................................................................................................................................................... 700 réis. Item o[s] de doze arrobas até treze não passarão de .................................................................................................. 600 réis. Item de nove arrobas até dez e até doze não passarão de............................................................................................ 500 réis. Item couros de bois, vacas, de sete até oito arrobas, e até nove não passarão de .......................................................................................................................................... 400 réis. Item os que fizerem tamoeiros não poderão vender cada tamoeiro mais do que até . .......................................................................................................................................... 30 réis. Item sendo os primeiros quatro tamoeiros de lombo não passarão de ................................................................................................................................................................ 25 réis. Item se os quiserem levar para fora da cidade e termo o farão a saber a um almotacé, que com um procurador dos mesteres lhes vão quartejar os ditos tamoeiros e deixarão um quarto na terra para se venderem pela dita taxa, e os três quartos levarão onde quiserem. Item uma dúzia de peles de machos curtidas não passarão de ................................................................................ 1 400 réis. Item uma dúzia de cou[ro] maior, não sendo machos, não passarão de mil réis ............................................................................................................................................. 1 000 [reis]. Item uma dúzia de couro redondo não passarão de ................................................................................................... 800 réis. 66


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Item qualquer pessoa, assim curtidor como tratante de courama, não a poderão tirar para fora até o fazer saber aos sapateiros se lhos querem comprar ou não, e não lho querendo comprar o fará saber a um dos almotacés e a um procurador dos mesteres para que lho vão ver e quartejar, o qual quarto ficará na terra três meses e os três quartos levará para onde quiser. O que todo ficará por receita pelo escrivão da almotaçaria ou da Câmara às custas do dono do couro. Título dos preços das obras do dito cordovão Item borzeguins pretos de couro dos machos não passarão de .............................................................................................................................................................. 140 réis. Item doutro couro maior não sendo macho não passarão de .............................................................................................................................................................. 120 réis. Item borzeguins doutro couro rendo (sic) não passarão de 110 réis sendo estes borzeguins de qualquer cor outra tirando baio levara mais por cada par dez réis. Item sapatos de cordovão de dez pontos ate doze não passarão de . ................................................................................................................................................ 50 réis. Item sendo os ditos sapatos ou gaspas, ou qualquer outra obra mais pequena e de moços, o juiz dos oficiais o mandará pagar a respeito dos preços acima ditos havendo discussão102 entre os oficiais e as partes. Item tropilargos bem feitos com circos bem fortes de vaca, e bem furados, e bem acabados, de dez, nove até doze pontos não passarão de ........................................................................................................................................................ 100 réis. Item pantufos de homem até ...................................................................................................................................... 80 réis. Item chapins de homem não passarão de .................................................................................................................... 70 réis. Item botinas de bom cordovão não passarão de 65 réis as melhores que puderem ser e não sendo tão boas ........................................................................................................................ 60 réis. Item chapins de mulher até quatro dedos de altura não passarão de ................................................................................................................................................ 80 réis. Item cervilhas boas de cordovão não passarão de . ..................................................................................................... 20 réis. Item solas na mão da primeira fiada do lombo não passarão, de dez pontos até doze, de .................................................................................................................... 18 réis. Item daí para baixo, segundo os pontos e a solaria for. Item de lançar as ditas solas pondo o sapateiro o fio não levará [mais de] ............................................................................................................................................. 6 réis. Item nenhuns sapatos de vaca sendo boa de dez pontos até doze não passarão de cinquenta réis .......................................................................................................... 50 réis. Item de oito, nove pontos não passarão de . ................................................................................................................ 40 réis. Item cabeças de vaca de dez até doze pontos não passarão de . ............................................................................................................................................. 45 réis. Item ilhargas de boa vaca, boas e largas que dêm empenha inteira não passarão de cento e oitenta reis e daí para baixo segundo for . ................................................................................................................................... 180 réis. Item umas muito boas botas de machos não passarão de ........................................................................................................................................... 240 réis, sendo de cor e de dez até doze pontos.

102

Na expressão do autor: “deferença”. 67


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item botas de couro maior não sendo machos do dito tamanho não passarão de duzentos e dez réis ........................................................................................................... 210 réis, sendo de cor. Item couro mais baixo redondo não passarão de ...................................................................................................... 160 réis. Sendo todas estas botas soladas e sobressoladas com seus tacões de dentro, segundo costume. Item sendo as ditas botas pretas levarão menos de dez réis por cada par sendo tamanho; e assim sendo as ditas botas mais pequenas ficará em alvidro do juiz dos oficiais como já é dito. Título dos alfaiates Item de calças de pear forradas sendo finas, não levarão mais de . .................................................................................................................................................. 40 réis. Item de umas calças por forrar ................................................................................................................................... 20 réis. Item umas calças forradas de pano de Castela ............................................................................................................ 30 réis. Item um gibão de seda de dois forros bem acabado .................................................................................................... 60 réis. Item sendo de solia . ................................................................................................................................................... 50 réis. Item sendo de pano ou fustão ..................................................................................................................................... 40 réis. Item um pelote chão de homem . ................................................................................................................................ 40 réis. Item sendo barrado de dentro e de redor e meias mangas ........................................................................................... 70 réis. Item pelote de homem cortado de uma pestana .......................................................................................................... 60 réis. Item se for de duas pestanas ....................................................................................................................................... 80 réis. Item uma chamarra103 pregada bem feita .................................................................................................................... 60 réis. Item sendo cada um destes pelotes e chamarra de solia, tafetá ou chamalote levarão . ...................................................................................................................... 100 réis. Item um tabardo de pano fino tosado ou frisado levarão . ........................................................................................... 60 réis. Item sendo pano de Castela ........................................................................................................................................ 50 réis. Item uma loba fina tosada ou frisada .......................................................................................................................... 50 réis. Item não sendo fina .................................................................................................................................................... 40 réis. Item um capuz pelo mesmo preço de . ........................................................................................................................ 40 réis. Item capinhas e mantéus finos ou quaisquer outros .................................................................................................... 30 réis. Item gibões com um debrum ou com uma barra ......................................................................................................... 50 réis. Item sendo chãos . ...................................................................................................................................................... 40 réis. Item casa e botão lavrados a seda ................................................................................................................................. 3 réis. Item um hábito104 fino ................................................................................................................................................ 50 réis. Item sendo de Castela ................................................................................................................................................ 40 réis. Item sendo de solia ou chamalote . ........................................................................................................................... 100 réis. Item uma faldrilha barrada de seda com forro por baixo e com um debrum por cima da barra dela . .................................................................................................. 50 réis. Item sendo fina e chã . ................................................................................................................................................ 30 réis. Item sendo de pano de Castela ................................................................................................................................... 20 réis. Item de um sainho fino . ............................................................................................................................................. 20 réis.

103 104

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Samarra? No documento: “âbéto”.


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Item não sendo de pano fino . ..................................................................................................................................... 15 réis. Item sendo de um debrum e de um forro . ................................................................................................................... 40 réis. Item um cós com mangas ........................................................................................................................................... 20 réis. Item mantilhinha de um debrum ................................................................................................................................ 10 réis. Item uma verdugada de dez verdugos ........................................................................................................................ 80 réis. Item não sendo mais que seis até sete verdugos . ........................................................................................................ 60 réis. Item sendo estas faldrilhas de chamalote, cem réis . ................................................................................................. 100 réis. Item um mogi fino de homem ou mulher.................................................................................................................... 40 réis. Item sendo de pano de Castela ................................................................................................................................... 30 réis. Item de um capelo para clérigo . ................................................................................................................................. 10 réis. Item das obras de moços e de servos e doutras quaisquer pessoas aqui não declaradas havendo discussão entre os oficiais e os donos das obras serão alvitradas pelo juiz dos oficiais os quais as julgarão havendo respeito às obras acima declaradas. Título dos tosadores Item de tosar todo o pano de Castela frisado do avesso por covado .............................................................................. 2 réis. Item de pano da serra por vara ........................................................................................................................... 1 real e meio. Item de frisar pano de Castela ...................................................................................................................................... 4 réis. Item de frisar arbim e contray por cada côvado ............................................................................................................ 6 réis. Item de tosar contrai meynim e outro semelhante pano por côvado . ............................................................................ 7 réis. Item de tosar o covado de londres ou ypre .................................................................................................................... 4 réis. Título dos carpinteiros Item carpinteiros de obra limpa desde a Páscoa até ao Entrudo não levarão por dia mais de................................................................................................................. 25 réis. Item de Novembro até por todo Fevereiro não levarão mais que . ................................................................................................................................................ 20 réis. Item sendo mestres de obra mais ................................................................................................................................... 5 réis por dia em cada um dos ditos tempos acima ditos. Item outros carpinteiros que não sabem mais que de enchó e machado levarão menos por dia .................................................................................................................. 5 réis. Título dos pedreiros Item aos pedreiros se pagará pelo modo e preços dos carpinteiros atrás dito. Item jornaleiros servidores de oficiais, desde Março até São Miguel a 12 [réis] por dia e andarão de sol a sol e não vindo às horas ser-lhe-á descontado soldo à libra .............................................................................................................................. 12 réis. Item desde Outubro até perto de Fevereiro levarão a .................................................................................................. 10 réis.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Título da lenha e carvão Item carga de lenha de azêmola de carvalho rachado sendo boa não passará de ........................................................................................................................... 12 [reis]. [Item] e sendo carvalho redondo................................................................................................................................. 10 réis. Item carga de carvalho de asno . ................................................................................................................................... 8 réis. [Item] e sendo doutra qualquer lenha ........................................................................................................................... 6 réis. E estes preços se levarão desde o mês de Outubro até perto do mês de Março, e desde Abril até perto de Setembro levarão menos dois réis por carga. Título dos cordoeiros digo carvoeiros Item carga de mulo e rocim de três sacos cada carga de cinco alqueires cada saco não levarão mais por eles que ............................................................................................ 18 réis. [Item] sendo no Inverno, convém a saber: de Outubro até perto do mês de Fevereiro levarão por cada uma das ditas cargas............................................................................. 24 [reis]. Item sendo de asnos, em estes quatro meses a 20 [réis] por carga sendo de três sacos, sendo os sacos mais pequenos .................................................................................. 20 [réis]. Item em o Verão a 15 [réis] por carga de asno de três sacos sendo mais pequenos que os de cinco alqueires ............................................................................................. [15 réis]. Título dos ferradores Item de uma ferradura cavalar por a lançar . ................................................................................................... 8 [réis] e meio. Item bestas muares de quatro craveiras .......................................................................................................... 7 [reis] e meio. Item ferraduras asnas de três craveiras ......................................................................................................................... 6 réis. Item cravos lançados arcal ........................................................................................................................................... 4 réis. E destes preços não passarão nenhum. Título dos ferreiros Item uma enxada nova bem feita e fornida .............................................................................................................. 65 [réis]. Item de calçar a dita enxada a trolho . ...................................................................................................................... 35 [réis]. Item de umas agriais ............................................................................................................................................... 35 [réis]. Item de calço de aceiro................................................................................................................................................ 20 réis. Item sendo de escumalho ........................................................................................................................................ 16 [réis]. Item de um enxadão bem feito ................................................................................................................................... 80 réis. Item o mais pelo preço das enxadas. Item um ferro de arado ............................................................................................................................................... 45 réis. Item das agriais .......................................................................................................................................................... 25 réis. Item do calço . ......................................................................................................................................................... 15 [réis]. Item pregos caibrais, convém a saber: o cento a real o par .......................................................................................... 50 réis. Item pregos tabuares não passarão o cento sendo bons de .......................................................................................... 30 réis. Item pregos faiares o cento . ....................................................................................................................................... 24 réis. Item pregos coitares o cento a cem ........................................................................................................................ 100 [réis]. E destes preços não passarão. 70


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Título das pessoas que vendem pescado Item toda a pessoa que vender peixota105 a não poderá vender senão a peso, e não passará o arrátel da seca de ....................................................................................................... 10 [réis]. E sendo a dita peixota de molho não passará o arrátel de .............................................................................................. 8 réis. Item as pessoas que tiverem tabernas poderão somente vender em suas tabernas aos reais106 às pessoas que em suas casas e tabernas derem e a quiserem, que primeiro e todavia serão obrigados a venderem por preço às pessoas que lho pedirem. Item o arrátel do ruivo seco não passará de seis réis ..................................................................................................... 6 réis. Item: todo o sável fresco se não poderá vender senão a peso, o qual não passará o arrátel de oito réis, e daí para baixo segundo for o tempo, o qual será almotaçado porque os de oito réis se entenderá nos primeiros . ............................................... 8 réis. Item sável seco salgado não passará o arrátel de seis réis ............................................................................................. 6 réis. Item lampreias por boas que sejam não passará de quarenta réis e daí para baixo segundo forem e segundo o tempo ............................................................................... 40 réis. Item marisco, convém a saber: mexilhões 24 ao real, carangueijos por 15 a real, berbigões 40 a real. Título dos oleiros Item um cântaro de alqueire e meio até dois alqueires não passará de ............................................................................................................................................... 8 réis. Item púcaro ou cântaro que leve um alqueire não passará de ........................................................................................ 5 réis. Item de meio alqueire . ...................................................................................................................................... 3 réis e meio. Item de uma can[a]da ................................................................................................................................................... 2 réis. E daí para baixo segundo for um real . .......................................................................................................................... 1 real. Item trinchos, tigelas, não passarão de ...................................................................................................................... 5 ceitis. Item servidores e fogareiros ......................................................................................................................................... 8 réis. E toda esta obra será de muito bom barro e bem cozido e não sendo bem cozida se perderá, a metade para [a] cidade, e [a] outra para os presos pobres. Título dos lavradores Item um homem com uma junta de boi por um dia não levará mais que ............................................................................................................................... 20 [réis]. Item trazendo carro, por dia .................................................................................................................................... 25 [réis]. Item uma carrada de pedra de São Martinho do Monte levará .................................................................................... 20 réis. Item sendo da Pegada para baixo ............................................................................................................................... 10 réis. Item de Rio de Asnos ................................................................................................................................................... 8 réis. Item daí para baixo serão as carradas da dita pedra segundo a distância da terra.

105 106

Isto é, pescada. A palavra equivale a “réis”. No contexto do século XVI começa a usar-se indiscriminadamente um e outro termo. 71


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Título dos barbeiros Item levarão de guarnecer uma espada, convém a saber: limpá-la e envernizar cabos e punho e bem acabada . ................................................................................................. 60 réis. Item de guarnecer uma espada nova em preto com sua bainha e bem acabado de todo ...................................................................................................................... 90 réis. Título das candeeiras Item toda a pessoa que vender candeias de sebo farão candeias, convém a saber: desde o primeiro dia de Maio até Natal pesará o arrátel das ditas candeias lavradas 20 candeias por arrátel que são dez réis, e desde Natal até Maio pesará o arrátel das candeias lavradas 24 candeias que são a doze réis por arrátel; as quais candeias terão os pavios bem cosidos e de seis fios. Título dos farelos Item o alqueire dos farelos trigos não passará de ........................................................................................................ 10 réis. Item sendo centeios, que não passará de . .................................................................................................................. 8 [réis]. Item um par de boas galinhas .................................................................................................................................. 34 [réis]. Item um par de perdizes .......................................................................................................................................... 14 [réis]. Item um par de coelhos até ......................................................................................................................................... 10 réis. Item um bom cabrito não passará de .......................................................................................................................... 50 réis. Item quem o vender aos quartos não passará o quarto sendo bom de .......................................................................... 10 réis. Item toda a pessoa que vender ovos dará cinco por . ..................................................................................................... 2 réis. Item: qualquer oficial que quiser abrir tenda107 não a poderá pôr sem primeiro ser examinado pelo juiz dos oficiais de seu ofício, e os ditos examinadores levarão por fazerem o dito exame cem réis, convém a saber: metade para a cidade e a outra para eles . ............................................................................................................... [100 réis]. Item um muito bom porco vivo não passará de . ......................................................................................................... 40 réis. Item sendo depenado sem cabedela não passará de .................................................................................................... 32 réis. Item vale nesta cidade um arrátel de peixota fresca, ou ruivo, ou congro, cinco, seis réis o arrátel. Item o arrátel de raia, ou cação ou toninha fresca a três, e a quatro réis. Item o cambo dos linguados, de oito, nove, e dez linguados a dez e a doze réis. As quais taxas acima descritas se guardam nesta cidade. Esta cidade sempre é abastada de muito pão e de muitas partes se socorrem dela posto que é de carreto, de cinco, seis, sete, oito, dez léguas, porque está entre três comarcas, convém a saber: a comarca da Beira, a de Entre Douro e Minho e Trás-osMontes. E acerta não haver pão [em] Entre Douro e Minho, convém a saber: quando se acabam os milhos a maior parte de Entre Douro e Minho come desta praça, de pão da Beira e Trás-os-Montes que aqui vêm a um antigo e formoso mercado mui abastado que se faz cada segunda feira. E alguns anos não há pão na Beira e há muitos milhos [em] Entre Douro e Minho, e os da Beira vêm comprar a esta cidade o milho que vem de Entre Douro e Minho e assim Trás-os-Montes. E também vêm comprar azeites e frutas temporãs, de maneira que a maior parte desta cidade, digo, de maneira que nesta cidade a maior parte

107 No texto: “que quizer poer tenda novamente”. Optei por esta solução pois, de forma diversa em relação ao uso que hoje fazemos da expressão, novamente, nesta altura quer dizer “pela primeira vez” e não “de novo”, “outra vez” como hoje em dia, conforme já observei em nota anterior.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

do pão destas três comarcas e nela são seus contratos por onde está sempre bem abastecida. E o porto desta comarca é a maior parte de sua mantenença porque é em barcas. Depois de ter feito este tratado trabalhei por saber quem tomou esta cidade ou como ela foi havida. E por ter novas que certos cavaleiros que morreram na tomada dela jaziam no mosteiro de Salzedas fui ao dito mosteiro e me mostraram o cartório onde achei em um livro de pergaminho em Latim como fora tomada aos mouros; e porque em partes se não podia ler estava tresladada em linguagem108 e segundo me parece foi povoada por Asturianos como Vossa Senhoria verá em esta folha que do livro treladei na verdade como a achei a qual é a seguinte. Título de quem tomou esta cidade Em nome de Deus amem109. Quem quiser saber de onde esta terra foi tomada, que era toda de mouros do Douro, a quem tomoua110 o Conde Dom Henrique, com Elche111 Martim que era mouro e era Rei de Lamego, e desta terra toda, [e] fez-se [cristão] e veio com Dom Henrique, cavaleiro, e com outros muitos ricos homens que vieram das Astúrias. Era um Egas Moniz que se vê foi casado com Meana Dona Teresa112 que fez Salzedas. E Dom Henrique por se haver113 melhor com os mouros deixou-lhes haver quanto tomavam114 e coutava-lho. Como se fez o Couto de Leomil E assim fez a Dom Garcia Rodrigues, e a Dom Paião, seu irmão, que lhes coutou o Couto de Leomil, que tomaram115 a mouros. Dom Egas Moniz, quando tomou116 esta terra aqui toda logo povoou a Britiande e fez aí uma quinta e morada e capela em que lhe cantavam missa, e dali moveu a Salzedas Meana Dona Teresa117 na Abadia Velha e viu cá seria melhor ali um mosteiro, digo, ali onde está, e levou lá um cavaleiro que havia nome Pai Cortês e veio com Egas Moniz que era seu vassalo, e seu monteiro. E com Dona Meana andava uma donzela que chamavam Dona Ximena118 e casaram-nos ambos. E um119 agora é Gouviães era mata de porcos e de corços, e aquele monteiro de Dom Egas Moniz matou um porco ali onde está a fonte, e levou-lho e pediu-lhe aquele lugar em que fizesse uma quinta para si e para sua geração e rogou-lhe que a coutasse e honrasse. E deu-lha, como parte pelo Outeiro da Fraga, e desde aí pelo rio adiante120 abaixo como parte Salzedas e tem aí cruzes e está 121 uma sobre a ponte da Cucanha122, e daí como parte pela Relva, como parte pelo rio adiante123, e desde aí como se vai pela vinha de Miguel Ramires, e desde aí como se vai direito por sob os Outeiros, e dali como se vai ao Lameiro Redondo, e desde aí por aí acima124

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Isto é: em língua portuguesa. No documento: “In nomine Domini Amem.” 110 No documento: “filhou-a”. 111 No documento: “Exche”. 112 No documento: “Tareija”. 113 No documento: “filhar”. 114 No documento: “filhavam”. 115 No documento: “filharão”. 116 No documento: “filhou”. 117 Ver nota n.º 18. 118 No documento: “Eixemenia”. 119 Ou seja: onde. 120 No documento: “ampro”. 121 No documento: “s’e hua”. 122 Isto é, Ucanha. 123 Ver nota n.º 25. 124 No documento: “anfesto”. 109

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

como se vai por ali a Santa Maria da Córrega direito pelo Outeiro da Fraga. Que Dom Pai Cortês, sendo naquela quinta que fez, fez em ela três filhos cavaleiros e uma filha que se vê casada em Vila Seca de onde saíram dois filhos: Maria Pais e Miguel Pais. Daqueles três filhos que fez Pai Cortês foi um Rui Pais, e de Rui Pais saiu Maria Rodrigues, e de Maria Rodrigues saiu Afonso Martins e seus irmãos. Outro irmão havia nome Mem Pais, e de Mem Pais saiu Mem Mendes, e de Mem Mendes saiu Soeiro Mendes e foi casado em Rabelo com Dona Boa Fernandes. De Boa Fernandes saiu Pero Soares abade de Valadares, e Maria Soares de Gouviães de onde saiu esta geração que aí há. Teresa125 Soares, mãe de Catarina Rodrigues de Rebelo, de Egas Pais, filho de Pai Cortês, e saiu Gonçalo Viegas. De Gonçalo Viegas saiu Sancha Gonçalves e Pero Gonçalves e Rui Gonçalves e Domingos Gonçalves, o que mataram, e outras gerações que deles descenderam. E Vila Meã era da honra de Gouviães e requeria-a126 Gonçalo Gonçalves por sua e houveram sobre ela conselho, e vieram a pelejar e morreram muitos e ficou Vila Meã aos de Gouviães, e quando partiram os filhos de Pai Cortês em Gouviães ficaram aí dois e um em Vila Meã e daqui saiu esta linhagem de Dona Catarina de Pinhel. Os quais Dom Paião e os outros cavaleiros aqui nomeados, com outros, jazem enterrados no dito mosteiro da parte de fora à mão esquerda, onde esteve uma capela com um alpendre, e no chão da dita capela jazem os ditos cavaleiros e me parece que os Dom Abades passados desfizeram a capela e agora está um mato sobre suas sepulturas. E na parede da Igreja esta a sepultura de Dona Teresa127 que era na dita capela em a qual sepultura está este letreiro em Latim, que se segue, e a ossada sua se mudou ao mosteiro: Hoc loco latet hec cujus per secula latere fama nequit sollita perpetuare bonus fama mori claros nec morte sunt, sed et ipsa claro que meritis vivere semper habet multis domina modis juvit Tarasia famas sanguine progenie moribus ac opere, ex ducibus sanguis sobeles clarissima Regni absque nota mores est opus. Ista domus de bis sex centis et denis monade depta inveniens eraz que sepelevit heraz. Há mais neste circuito dois mosteiros de São Francisco, um claustral nesta cidade, que não acho quem o mandou fazer, outro da observância em Ferreirim a uma légua desta cidade, que Dom Francisco Coutinho conde de Marialva, que Deus tem, mandou fazer em seus paços, onde está uma sepultura para se meter sua ossada, e o Infante Dom Francisco128 o manda agora acabar. [Madeira] Há mais neste circuito muita madeira de castanho. É [a mais] formosa que há em todo o Reino e a maior parte dela se carrega para Lisboa e para outras partes. Há tabuado que é mais formoso que bordo e vale uma dúzia de tabuado de doze palmos em comprido e dois de largo, 150, 160 réis. Há mui formosos mastros de castanheiros de quinze, dezasseis e dezassete braças que estão onde se podem carregar no Douro para o Porto e daí para outras partes, e os que estão mais no sertão se faz deles madeira e há muito tabuado de quatro, cinco palmos de largo.

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No documento: “Tareja”. No documento: “demandava”. 127 Ver nota n.º 30. 128 Sic? Por Fernando? 126

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

De um monstro Uma coisa monstruosa determinei aqui de assentar ainda que seja fora da substância do tratado e é que a doze dias do mês de Maio deste ano de 1532 nasceu a Vasco Cardoso, fidalgo de que atrás faço menção do Morgado de Cardoso, pariu uma sua vaca um bezerro de um corpo e um muito grosso pescoço com duas cabeças e cada cabeça duas orelhas, e uma boca, e duas línguas; uma delas tinha dois olhos e a outra um só olho na testa. Ao nascimento, nasceu às avessas e nasceu embarrada nas cabeças. Nasceu morto, a vaca viria a morrer129. A qual pele do monstro mando a Vossa Senhoria com este tratado. As coisas contidas neste tratado são muito verdadeiras. Somente das fontes e filhos e povoadores e porcos e outras coisas, que por conta não podia tirar, vão postas antes em menos soma, que mais, e assim a sepultura de Dona Mafalda, que digo estar em Vila Boa do Bispo, outros dizem que a ossada está no mosteiro de Arouca. Dela não sou bem certeficado [mas] por ser fora do compasso de duas léguas a não fui ver como estas outras sepulturas. Quanto ao vinho e azeite que parecerá pouca soma é porque a metade deste compasso não dá azeite como nas igrejas verá Vossa Senhoria e o terço dele não dá vinho nem legumes. Portanto, é mais do que parece por se dar em uma só légua. E o pão e vinho e azeite creia Vossa Senhoria que pode ser mais um terço por ser contado por dízimos. Laus Deo.

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No documento: “a vaca ouvera de morrer”. 75


Transcrição crítica

[[fl. 1] Tratado de hum rico panno de fina verdura que há em este Reyno de Portugal de compasso de duas legoas arredor da cidade de Lamego, que he cituada em Riba do Douro da comarca da Beira, derigida (sic) ao Muito Illustre, e Magnifico Senhor, o Senhor Dom Fernando Bispo da dita cidade, e primo de El Rey nosso senhor, e seu capellão mor, feito por Ruy Fernandes cidadão da dita cidade, e tratador das lonas, e bordattes d’El Rey nosso senhor que se em ella fazem [que favoreça revelando-me quaesquer faltas que nellas diser. Aceitando minha booa vontade que fica muito maior para outros maiores serviços lhe fazer]. Feito no anno de 1532130.

Arredor desta cidade de Lamego deitando hum compaz da Cruz, e Miradouro que Vossa Senhoria mandou fazer á Franzia duas legoas em redor, as quais se todas podem ver do dito miradouro para hũa parte, e outra, em torno do dito compaz: inda que a terra he montuoza se ve o dito circuito; a qual terra he mui viçoza, e perfeita de todos os renovos do dito compaz de duas legoas; porque parece em Verão hum muy fermozo parque, ou excelente panno de fina verdura. E porque Mestre Antonio de Guimaraiz fez hum tratado das couzas d’Antre Douro, [fl. 1v] e Minho, que assáz he bom, e tido em muito, quanto mais he de ter tão pequeno circuito, e tão viçozo, e abastado, porque ouzarei dizer, que em Espanha se nom mostrará tal compaz de duas legoaz; nem as Ribas d’Alemquer muito gabadas, nem as catorze legoas de Santarem a Lisboa, porque ainda que se fação131 muito viçozas, e o porto de mar as favoreça, nom são tam perfeitas em todas as couzas como estas, que dezaceis legoas estão metidas no sertão, e as outras terão outras couzas muito

130 Na edição da Academia das Ciências, já citada, e à qual me passarei a referir de forma abreviada, p. 546, o título surge da seguinte forma: “Descripção do terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas: Suas producções, e outras muitas cousas notaveis: dirigida ao Sr. D. Fernando, Bispo da dita Cidade, Primo de El Rei, e seu Capellão Mor; e feita por Rui Fernandes, Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas (sic) de El Rei, no anno de 1531 para 1532”. 131 Na edição da Academia, p. 547, esta frase aparece deste modo: “ainda que sejam”.

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Textos e documentos – Transcrição crítica

mais em abastança, mas nom que tenhão tudo como estas como Vossa Senhoria verá pellos capitolos deste tratado de muitos renovos em grande abastança para o compas da terra; e ouzarei dizer, que sendo ilha nunca se tomara por cerco. Primeiramente detreminei a somar quanto pão, e vinho, e azeite, e castanha, e legumes, e nós, e panno de linho, sumagre, seda se pode colher em este compaz de duas legoas, e para melhor declaração assentei por estenço os dizimos, que há nas Igrejas e Mosteiros deste circuito (ainda que por nossos peccados os quatro, os dous se nom dezimão bem132) e por isso detreminei poer as ditas Igrejas, e dizimos na mayor copia, e133 rendimento; e inda que seja prolluxo, as nomearei todas per si sem poer os foros sabudos somente, só134 os dizimos; as quais Igrejas e Mosteiros são [fl. 2] os seguintez e os rendimentos, e alguns destes lugares pagão quartos, e quintos, e sesmos sem dizimo, e [feita135] a conta os tornei a dizimos direitos. [Cabido.] Item primeiramente a tulha do Cabbido, e meunças136 della, e terra de pão, viii mil, de vinho mil vic, de castanha iiii mil vc, d’azeite Lxxx alqueires. [Dayão.] Item Almacave, e aprestimos, e terça, de pão mil vc, de vinho iiiic137 de castanha ii mil, d’azeite Lta. [Christus.] Item Britiande, de pão mil, de vinho bc138, de castanha mil bc. [D’El Rei.] Item Meiginhos, de pão iiiic Lta, de vinho cto, de castanha vic. [Ifante Dom Fernando.] Item Móz, de pão iiic, de vinho iic L, de castanha vic. [Recião.] Item Melcois que he do Mosteiro de Recião, de pão iiic, vinho cto, de castanha iiiic. [Do Morgado d’Elvarengua.] Item Lalim com aprestimos, de pão mil, de vinho bc, de castanha mil. [De São João.] Item Lazarim, de pão mil, de [castanha139] mil, nom tem vinho. [O Tissoureiro.] Item Varzeas140, de pão iiic, de vinho iiic de castanha mil, d’azeite quarenta. [Vossa Senhoria.] Item Sancta Maria d’Alvellos, de pão Lta, de vinho Lta, de castanha cto. [Santa Clara do Porto.] Item Belaens, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha iiic. [O Tissoureiro.] Item Calvilhe, de pão Lta, de vinho Lta, de castanha iiiic141. [O Cabido.] Item Figueira, de pão viic 142,de vinho cto, de castanha vc, d’azeite Lta. [fl. 2v] [D’El Rei.] Item Queimada, e a terça, de pão seis centos, de vinho sinquenta, de castanhas seis centos. [Pero da Cunha.] Item Armamar, e aprestimos, de pão sinco mil e quinhentos, de vinho mil bc, de castanha com clerigos ii mil bc, d’azeite sinquenta alqueires. [Christus.] Item Sancta Cruz, de pão bic, de vinho iic, de castanha vic.

132

Na edição da Academia, p. 547, para além de não se incluír esta frase entre parêntesis, notam-se as seguintes diferenças: “Ainda que per nossos peccados de quatro ou dous se nom dizimam bem”. 133 Na edição da Academia, p. 547, lê-se: “de”. 134 Na edição da Academia, p. 547 é omitida esta palavra. 135 No manuscrito está “e sem a conta”. 136 Na edição da Academia, p. 547, escreve-se, erradamente, “e meu e as”. 137 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “4:000”. 138 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “5:000”. 139 No manuscrito repete-se a palavra “pão”. 140 Na edição da Academia, p. 548, está “Várzea”. 141 Na edição da Academia, p. 548, regista-se: “300”. 142 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “600”. 77


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Christus.] Item São Martinho das Chans, de pão mil, de vinho cento, de castanha iiiic. [Salzeda.] Item a Cucanha, de pão iic, de vinho vic de castanha mil vc. [Salzeda.] Item Gouviãis, e o Mosteiro de Salzeda e143 outros lugares, de pão iii mil vc, de vinho ii mil, de castanha mil vc. [Salzeda.] Item a Granja Nova, de pão viiic, vinho iiiic, de castanha viic. [Salzeda.] Item Tarouca com aprestimos, de pão iii mil, vinho mil vc, castanha iii mil. [Sam João de Tarouca.] Item Mondim, com o Mosteiro de São João de Tarouca, de pão mil, de vinho ii mil, de castanha mil. [Do Ifante Dom Fernando.] Item Penude com terça, de pão mil vc, de castanha mil. [Cabido.] Item Magueija, o pão vay a tulha do Cabbido, tem castanha viic. [Dayão.] Item Portarouca144, de pão iiic. [Ifante Dom Fernando.] Item Gozende annexa a São Martinho de Mouros donde tem hum gentar, per trebuto, que se dirá adiante, de pão mil bc, tirando a terça, que vem a tulha do Cabbido que aqui nom pertence145. [fl. 3] [Ifante Dom Fernando.] Item São Martinho de Mouros, com aprestimos, e terça de pão iii mil, de vinho mil vic, de castanha iii mil. [Rodes.] Item a comenda de Barró de dizimos com terça, de pão mil iiic, de vinho mil iiic de castanha mil. [Dom Luis.] Item Ferreiros, de pão iic, de vinho cto Lta, de castanha iiic. [O Tesourado.] Item Avois146, de pão iiic de vinho Lta de castanha iiic. [De Sancta Clara do Porto.] Item Pennajoya, de pão viic, de vinho ii mil, de castanha ii mil vc, azeite cto Lx. Allem Douro [D’El Rey.] Item Barqueiros, de pão iiic, de vinho iiic, castanha vc. [Mosteiro de Vila Cova.] [Item] Threzouras147, de pão iiic, Lta, vinho iic, castanha duzentos sincoenta. [Moura Morta.] Item Frende, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha vc. [Item] os Louvos, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha vc L148. [D’El Rey.] Item Meijão Frio, de pão cto, de vinho cento, de castanha c Lta, d’azeite XX. [Christus.] Item Villa Marim, de pão mil, e duzentos, de vinho iiic149, castanha mil vc, d’azeite ctº L xxx. [Rodes.] Item Moura Morta, de pão iiiic, de vinho iiic, de castanha viic. [Pedro da Cunha.] Item Cidiellos, de pão mil vc, de vinho vic, de castanha mil vic. [De Moura Morta.] Item Fontes, de pão vic, de vinho iiiic, de castanha mil. [Padroeiros.] Item Lobrigos, de pão mil vic, de vinho iiiic [fl. 3v] d’azeite cto, de castanha mil. [Sam João de Tarouca.] Item Oliveira, e Bamba, de pão iiic, de vinho iic, de castanha cto, de azeite Rta.

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Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 549, “por tarouca”. Trata-se da actual Pretarouca”. 145 Na edição da Academia, p. 549, lê-se: “que aqui nom entra”. 146 Isto é, Avões. Na edição da Academia, p. 550, lê-se: “anoes”. 147 Na edição da Academia, p. 550, lê-se: “tisouras”. 148 Na edição da Academia, p. 550, regista-se “500”. 149 Na edição da Academia, p. 550, regista-se: “3 000” o que, tendo em conta o valor da vizinha Mesão Frio, não se nos afigura correcto. 144

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[Dos Guedez.] Item Loureiro, de pão iiiic150, de vinho iiic151, de castanha vic, d’azeite xx. Item São Pisco da Regoa, de pão viiic, de vinho iiiic, de castanha cento Lta, azeite iiic. [Bispo do Porto.] Item a camara do Bispo do Porto, que se chama o Pezo da Regoa152, de pão mil, de vinho iiiic, de castanha cto L, e de azeite iiic. [D’El Rey.] Item Fontellas, de pão iiic, de vinho cto, de castanha cto Lta, de azeite Lta. [Rodes.] Item a Comenda de Poyares, de pão sinco mil, vinho mil, azeite quinhentos, afora foros, castanha mil. [De Christus.] Item São Martinho de Cambres, e aprestimos, de pão vc, de vinho vc, de castanha viic, d’azeite cto xx. Item Sande, de pão cto Lta, de vinho iiic, azeite Lta153, castanha vic. [Sam João de Tarouca.] Item Semudais, de pão cto Lta154, de vinho iiic, de castanha iiiic, d’azeite Lta. Item Valdigem, de pão mil, de vinho mil e de azeite iiiic com a terça, castanha viic. [De Vossa Senhoria.] Item Parada, de pão cto Lta, de vinho cto xx, de castanha Lta d’azeite xx. [De Vossa Senhoria.] Item a camara de São Domingos, de pão mil, de vinho iii[c] Lta castanha v[c], azeite XX. [Rodes.] Item a Comenda de Fontello, [fl. 4] de pão mil, vinho iiiic, castanha iiiic d’azeite XX. [Da Salzeda.] Item a Quintã do Musuro155, de pão cto Lta156, de vinho iic Lta, d’azeite mil157, de castanha iiic, e isto tornado a dizimo. [... em Douro.] Item São João de Medim, de pão iiic, de vinho iic, de castanha cto, azeite Rta. [... em Douro.] Item Medrois, de pão iiic, de vinho iic Lta, de castanha vic, azeite xx. [Sam João de Tarouca.] Item a Quintã de Mosteiró feito a dizimo, de pão cto, de vinho mil vc, d’azeite iic Lta, de castanha Lta158. Quinta de Mosteiró159 Esta Q[u]inta de Mosteiró hé de São João de Tarouca, e está junto do Douro; parte com a Ribeira de Baroza, he pequena terra, que com sinco tiros de besta posto hum homem no meyo chega[rá] a todas as partes della, em a qual quinta se colhem cada anno quinze mil, dezaceis [mil] almudes de vinho, [e] a conta he esta, que a quinta rende mil e vc almudes, de quinto, e sexto he de setimo e outras, que são sabudas, e afora o que escondem. Rende mais a dita quinta em anno de seifa dous mil, dous mil e quinhentos [alqueires] d’azeite, porque a quinta rende ao Mosteiro mil e duzentos, anno de seifa, e hé de mais160, e alguns olivais de quarto dado, que delles se recolhem tãobem polla caza, mas contando os roubos dos cazeiros rende161 os

150

Por cima deste valor escreveu-se, como que o actualizando, “600”. Tal como no caso anterior pareceu haver uma actualização e, por cima deste valor, escreveu-se “600”. Num e noutro este acrescento foi efectuado pela mesma mão que escreve o resto do texto. Na edição da Academia não se faz menção a qualquer actualização e os valores apontados são, respectivamente, “400” e “300”; ver p. 550. 152 Na edição da Academia, p. 551, lê-se, simplesmente: “que se chama o pesso”. 153 Na edição da Academia, p. 551, regista-se: “60”. 154 Na edição da Academia, p. 551, regista-se: “300”. 155 Na edição da Academia, p. 551, refere-se “quintã do mucuro”. Trata-se da actual quinta de Paço de Monsul. 156 Na edição da Academia, p. 551, regista-se : “50”. 157 Na edição da Academia, p. 251, regista-se: “200”. 158 Na edição da Academia, p. 551, regista-se “60”. 159 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “Mosteiros”. 160 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “meas”. 161 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “rendem”. 151

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

ditos dous mil e quinhentos [alqueires] d’azeite. Renderá de pão mil alqueires, e de castanha [seiscentos alqueires] e de legumes trezentos alqueires; renderá iiic cargas de serejas e quinhentas cargas de outras frutas, e viiic arobas de sumagre, e os vinhos dalli todos vão de carregação. Poucas quintas deste compaz se achão no Regno tão boas. [fl. 4v] As quais Igrejas somão no rendimento, do pão L ix mil iic Lta alqueires de dizimo que são soma vcL R ii mil vc162, o qual pão he o seguinte comvem a saber: trigo galego, e trigo tremes, e centeo, e milho, e painço, e cevada tremes, e cevada cavalar, e milho marroco o qual milho marroco se dá na area do Douro em canas muito altas, e ha espiga que da hua quarta de alqueire, e he milho branco de grandura de confeitos de [coentro]163. Estes generos de pão nunca desfalece nesta terra, dado que alguns annos ha mais que outros porque o tempo que he contrairo ao centeo, he proveitozo ao milho, e ao painço; e o tempo que he contrairo ao trigo temporão alguas vezes he proveitozo ao trigo tremes, e ao milho marroco, assim que desta maneira quando erra hum pão de não aver muito164, acerta outros165 por aver tantos generos de sementes de pão, e desta maneira nunca pode aver fome nesta terra, e neste compasso destas duas legoas há muitos campos, que dão tres novidades no anno, como são os campos de Coura, e outros muitos silicet dão nabos, e rabãos na primeira sementeira, e depois dão trigo, e tirado o trigo, ou cevada dão linho, ou tãobem se querem dão painço, ou milho, e isto em muita quantidade, que ha hi campo quanto hum homem lavra em hum dia na Ribeira de Coura, e em outros lugares, que da cento e vinte alqueires; [e] estes campos dão tãobem muito fermozos alcaceres em hũa das tres sementes ou166 novidades, e são estes regados, e estercados, e destes ha hi muitos campos em este compasso. Item de vinho somão os dizimos, que ha neste compasso de duas legoas trinta mil vic Lx[x]ª almudes; assi que se colhe de lavrança no dito compasso iiic vi(mil) viic almudes e soom os mais excelentes vinhos, e de mais dura, que no Regno se podem achar, e mais cheirantes, porque ha vinhos de quatro, sinco, e sete167 annos, e de quantos mais annos he, tanto mais excelente, e mais cheirozo, e ha hi alguns amarais ainda, que pouco d’arvores, que pode ser a decima parte do outro; e168 a mor parte dos vinhos de todo este compasso169 se carregão pello Douro em barcas para o Porto, e para Entre Douro, e Minho, [fl. 5] para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas, e para as armadas d’El Rey nosso senhor, e comprão destes vinhos amaraes, e outros de baixo preço, e os vinhos cheirozos, e de moor contia vão por terra para muitos senhores, e para a corte de Castella, e assim alguns para a corte de Portugal; e há alguns annos, que se aqui vende muito vinho a iiiic, e a vc [réis] o almude do velho que cheira, e tãobem muitos annos se vende muito vinho para Guarda, Vizeu, para Riba de Coa, para a Beira, porque há muitos170 annos como he este prezente, em Vizeu que há esterlidade de vinho, que aqui ainda que a haja polla soma dos vinhos ser muita, e as uvas de muitas castas, que se não vingão hũas vingão outras, e a terra tem171 vinhas em terra fria, e em terra quente se da vinho, e quando nom vence a terra fria o vinho, vence a terra quente de maneira que sempre ha muita soma de vinho.

162

Emendado este valor. Isto de acordo com a versão dos Inéditos, p. 552. Neste documento repetia-se a palavra “confeitos”. 164 Na edição da Academia, p. 553, refere-se “tanto”. 165 Na edição da Academia, p. 553, refere-se “outros”. 166 Na edição da Academia, p. 553, omite-se “sementes ou”. 167 Na edição da Academia, p. 553, regista-se “6”. 168 Na edição da Academia, p. 553, omite-se esta palavra. 169 Na edição da Academia, p. 553, esta frase está da seguinte forma: “A mór parte de todos os vinhos deste compasso”. 170 Na edição da Academia, p. 554, refere-se: “algũa”. 171 Na edição da Academia, p. 554, lê-se: “ter”. 163

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Item: soma a castanha de dizimos Rvii(mil) vic LX. alqueires, de maneira que somão o que se colhe na terra iiiic Lxx vi(mil) [vic] alqueires a qual castanha muita della se enterra, [e] se vende172 na Coresma, e outras secão e a picão, que chamão castanha picada; desta castanha picada se fas grande carregação pello Douro para Lisboa, e para o Algarve, e para as Ilhas; e quando o anno he esterle os homens pobres moem a dita castanha, e fazem della pão, e he muito fartum, e muito doce, que chamão falacha, e de outra castanha seca cascuda173 cevão muitos, e mui fermozos porcos das mais saborozas, e mais carnes (sic) que ha em todo o Regno. O preço desta castanha174 verde em anno de bonança a tres, e quatro175 reis o alqueire da rebordam, e da longal, a sinco, e a seis pella medida [fl. 5v] grande desta terra, e da picada a xx, e a xx b, e a trinta o alqueire, e no tempo della todolos caminhos, e estradas são cobertas, e polas não poderem apanhar trazem os porcos pellos soutos, que as comão, e todolos caminhantes, e pessoas que passão fazem magustos sem lhe ser defesso, e ha castinheiros [muitos] que dão LX alqueires de castanha, e ha destes muitos, e ha castinheiro176 que debaixo delle se colherão iiic homens á sombra. Item: soma o azeite de dizimo que ha nas Igrejas dous mil ixc alqueires de maneira que soma o que se colhe neste compasso vinte e nove mil alqueires, e he dos bons do Regno; o qual azeite se gasta em parte de Entre Douro, e Minho, e Traslos Montes, que o nom há lá, e levam-no almocreves, que andão a isso, e [á] mor parte de Galiza, e daqui a mor parte da Beira, que o levão almocreves, e regatães para nelle ganharem até a Guarda; e ha neste dito circuito Rtª ii lagares d’azeite para a parte do Douro. [Çumagre] Item se colhem177 neste circuito das sobreditas legoas xv mil arobas de sumagre, que se carregam para Lixboa, e o178 Algarve, e as Ilhas e para todo Antre Douro, e Minho, e Traslos Montes e para toda a Beira. Titulo da nós, e legumes deste compaço E por não ser prelluxo nom quis aqui poer por meudo a nós, e legumes, que ha somente fica per o meudo como vão estoutras couzas; e soma a nós que há neste compasso, e se colhe cada anno des mil alqueires, porque há de dizimo mil alqueires, e há nogueira que dá sincoenta alqueires. E lugumes silicet favas, feijois, ervilhas ceitans, e das outras, e lentilhas, e ervanços soma nove mil alqueires; e isto se for necessario [fl. 6] da-lo-ey pello meudo, que fica em meu poder: os feijois vão muitos para Traslos Montes e para Castella, [e] rende cada alqueire em Castella vc, vic reis, e val aqui o alqueire xx, e xxx; em Castella vende-se a arrates.

172

Neste caso optei por seguir a edição da Academia, p. 554, pois no manuscrito não se refere a conjunção “e” e, por isso, a forma verbal aparecia como “vendem”. 173 Na edição da Academia, p. 554, diz-se “cascada”. 174 Emendada esta palavra. 175 Na edição da Academia, p. 554, regista-se “quatrocentos”, o que nos parece ser errado. 176 No plural no manuscrito. Preferi seguir a versão da Academia, p. 554, colocando esta palavra no singular, que me parece mais correcto. 177 Na edição da Academia, p. 555, refere-se “se colherá”. 178 Na edição da Academia, p. 555, lê-se: “ao”. 81


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Pano do linho] Item outrossim ha por soma no dito compasso de linho, silicet panno de linho, que se fas nestas duas legoas de dizimo dezoito mil varas, de maneira que se colhem no dito compasso, e se fião cento, e outenta mil varas, as quaes sendo necessario tãobem mostrarei polo meudo de cada Igreja antre o qual he pano de linho, e estopa e t[r]ez179, e ha estopa que se vende a xii, e a xiiii, xb reis ate xx e o pano de linho de xv ate cento, e cento e vinte [reis] a vara; e vende-se este pano a mercadores, e vai para Castella muita soma, e para Lisboa, e para Alem Tejo, e para o Algarve, e para as Ilhas, e outro se gasta na terra, e fitas em (?) pessas. [Sêda] Item se colhe no dito compasso de dizimo silicet de seda sinco mil onças, assim que se colhe sincoenta mil onças; a qual ceda se gasta parte della em a terra, a dada em Tarouca180, em veludo181 çatiis, tafetás, e toucaria, e a mais vai para fora. [Mel] Item de mel pode aver quanto abaste para a terra de sua colheita, dado, que não hé muita cantidade; e de agoa rozada L xxx almudes. [Cerejas] Item ha mais no dito circuito muitas, e mui fermozas serejas, que vem a vender a esta cidade, as quais serejas comessão em Abril, e acabão em Setembro; e a cauza he porque esta cidade [tem] como sempre tres novidades no anno de cada renovo, e a cauza he esta, a primeira novidade, que são as serejas começão na Ribeira do Douro no mes de Abril, e durão ate Mayo; e acabado Mayo comessão as desta cidade, que he terra temperada em meyo, e durão ate todo Junho; e acabadas as desta cidade comessão as da terra fria da parte do Sul, e durão Julho, e Agosto ate Setembro; e de todos estes lugares se vem vender a esta cidade por estar no meyo, e pello mesmo [fl. 6v] teor ha ginjas, o preço dellas são cómummente o aratel a real, e a quatro ceitis, e a meyo real e as [muito] temporans a dous reis, e a tres reis, as quais castas de serejas são as seguintes silicet as trigais, bastezas, soldares, bicaes, agostinhas, pedraes pretas, e outras pedraes bicudas que levão em cargas para fora, amargozinhas, ginjas muito boas. [Arvores d’espinho] Há neste circuito muitas arvores de espinho silicet desta parte da cidade para o Douro em abastança silicet muitas laranjas, limois, e alguas limas, muitas cidras e zamboas, que abastão a terra e carregão os almocreves para toda esta Beira, valem outo e des laranjas ao real, e quatro, e seis limois hum real, e hũa cidra hum real.

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Isto é, treu. Na edição da Academia, p. 556, lê-se: “se gasta parte dela em esta cidade, e Tarouca...”. 181 No plural na edição da Academia, p. 556. 180

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo das maçans Item ha muitas maçans em bastança de muitas castas, silicet camoezas, repinaldos, veloso, sirgainho, doçares, pevidaes, bayonezes, rostiboons, rustimão, Sam Martinhas, sapãez, negrainhas, ozães182, sodracãs, e nanos, e outras de muitas castas, dado, que mais ha Entre Douro, e Minho, aqui há abastança dellas, dão, outo, dés, doze a real, e segundo a fruta hé, seiz, quatro. Peras Item: ha muitas peras de emgox[a], e as maiz fermozas do Regno, [c]oxa de donna, pera-pão, peras de Baguim, peras doçares, codornos, peras trigais, peras sorvas, peras ruivais, peras longaes, peras junhaes, sormenhos, peras de Villa Verde, peras botelhas, peras de sobrego, e ha alguas peras manosinhas, que nom há em todas partes, que vem por Mayo, e esto todo se vende a bom preço. Dos marmellos, e romanz Ha muitos marmellos barbaros183, e muitos galegos bi e iiii a real, e há muitas romãas doçares, e ágras, e agras doces do mesmo preço que vão daqui para muitas partes. [Figos] Item há muitos figos, e mui fermozos [fl. 7] figos184 em tanta quantidade, que os dão aos porcos por serem sobejos, e durão des Mayo ate o185 Natal, e isto porque os figos lampãos na Ribeira começão por Mayo, e como elles acabão começão os desta cidade, e como acabão os da cidade começão os da terra fria, de maneira que ainda os figos la[m]pãos nom som acabados na terra fria, quando comessão já os vendimos na Ribeira, e corre outras tres novidades, e durão ate Natal. Como digo de todas as frutas nesta cidade se comem tres renovos. E as castas dos figos são os seguintes silicet pedraes, alvares186, verdeaes, negrainhos, bugalhais, donegraes187, castanhaes, longais, burjaçotes; e em muitos annos há nesta terra certas figueiras que no mes de Abril dão figos burjaçotes maduros, e muitas pessoas os tem por arteficiais, os que nom sabem o modo de seu nacer. O presso delles são tres, e quatro duzias a real, e seis, outo burjaçotes a real; e assi ha outros figos de muitas castas, a que nom sei o nome. [Ameijas] E tãobem há muitas188, e mui fermozas ameijas silicet bicais, reinois, manosinhas, e saragoçãs e outras muitas castas, e abrunhos duçares, e ameixiais, e verdeaes, e esgana cão; dão quatro, e seis duzias ao real.

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Sic? Na edição da Academia, p. 557, lê-se: “orjaees”. Na edição da Academia, p. 558, talvez devido a gralha tipográfica (?), lê-se: “babaros”. 184 Embora tenha mantido esta forma, parece-me que a frase transcrita na edição da Academia, p. 558, esteja mais correcta, dado coincidir, neste texto, com outras idênticas: “Item ha muitos e mui fermosos figos”. 185 Na edição da Academia, p. 558, omite-se esta palavra. 186 Na edição da Academia, p. 558, lê-se: “alvarões”. 187 Na edição da Academia, p. 558, lê-se: “donegães”. 188 Na edição da Academia, p. 558, esta frase começa assim: “Item ha muitas”. 183

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sorvas e nesperas] Item há muitas sorvas, e nespras, que vem dispois das vendimas, estas nunca amadurecem nas arvores, senom nos madureiros. [Pessegos] Item há muitos, e mui fermozos pessegos silicet dorazeos, romãos, e pesegos durazeos romãos189, e mollares, e molares calvos, e pesegos duraseos calvos romaos, que em Lisboa chamão malecotões, ha outros pesegos, que chamão albocorques, que em outras partes chamão alperches, e outros muitos generos de pesegos, que aqui nom ponho. Uvas [Amaral] Item ha muitas, e mui fermozas uvas, e muito boas castas, e que se tem dependuradas huas as outras digo dependuradas de hum anno a outro, e assi ha outras que chamão amaral em alguas partes, que he da qualidade do vinho de Entre Douro, e Minho, e são muito mas uvas, e o vinho destas valle menos preço [fl. 7v] do vinho bom a metade, e há pe de vide que da hũa pipa o qual vinho seu natural hé em ramadas altas, ou em arvores, dado que he proveitozo para lavradores, e para beberagens de mar vai muito, e nesta terra não se fas dele muita qualidade, e a casta das uvas deste vinho chamão amaral. [Uvas de casta] Item a casta do outro maravilhozo vinho de pé são de muita soma silicet bastardo, trincadente, agudelho, que he outro de geito de trincadente, ha outro, que chamão Alvaro de Souza, que em outra parte chamão malvazia, catelão190, lourello, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal, e buoval191, samarrinho [tinto], mourisco, ferral de muitas castas, ceitão, felgosão192; e valem em tempo que ha rasoadamente uvas a real o arratel das uvas que são boas. [Melões] Item ha muitos, e mui fermozos meloes, e muito temporaos, e são tantos meloes, e em tanta quantidade, que nenhum por grande que seja não passa de dous reis, e isto no principio, e depois de farta a cidade vão daqui muitos temporãos para a Guarda, e Vizeu, e Trancozo, e Pinhel, Riba de Coa, e assi todas as outras frutas; e há alguns cogombros, ainda que são poucos, e há muitas aboboras.

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Emendada esta palavra. Assim nas duas versões. Poderá tratar-se da casta “castelão”, uma das poucas conhecidas, desde a Idade Média, na viticultura de Portugal. 191 Na edição da Academia, p. 560, lê-se: “burral”. 192 Remeto o leitor para a edição da Academia, p. 560, pois, apesar de aí se encontrarem todas estas castas, a ordem de apresentação é ligeiramente diferente. 190

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[Ortaliça] Item neste dito compasso ha muitas [e] boas urteliças convém a saber: rabãos todo o anno, couves de muitas castas, e alguns repolhos, cardos, cenouras, e outros muitos generos de ortaliça, dado, que em outras partes ha mais porque os homens desta terra não se deitam a ella porque se fizecem ortas a terra hé muito excelente para isso, como Vossa Senhoria sabera pella sua fermoza orta onde se dá muito fermoza ortalliça de todolos generos, e maneiras, que se posão nomear por ter ahi ortellão, que o bem sabe fazer com muita abastança d’agoa. [Fontes] Item no dito compasso há as maiz excellentes fontes perenaes, que se podem achar, e eu as quizera escrever por numero, mas193 não há maneira para se poderem contar somente com homens que bem sabem o circuito da terra as apodarão a cinco mil fontes em que ha muitas destas fontes [fl. 8] que o nacer aonde nacem pode moer hum moinho, ou azenha. E muitas destas fontes são monstruozas pera ver por alguas nacerem em penedos, e outras em pés de arvores, e algumas nacem em alguns lugares em pes de nogueiras por onde os homens, e as molheres onde nacem, e as continuão a beber são papudos, e hua fonte nasce em hua serra (?) sobre esta cidade a que chamão a Fonte da Esguicha, e nace em hua laja que jaz allastrada no chão, e lansa para o ar como hum torno de pipa, e outras muitas deste geito em penedos, e a principal destas fontes he a Fonte d’Almedina desta cidade, que hé das mais excelentes agoas, que se possão achar, e quer-se bebida em fresco porque he a contra do tempo, que no Verão he tão fria que a não podem aturar, e no Inverno he muito quente, e he agoa muito sádia. E ha outras muitas fontes, que quazi194 conformão a esta, e destas fontes neste compasso ha muitas, e mui fermozas lameiras, que dão tres, quatro camas de erva de segar no anno, e a mor parte de toda esta terra he regada das sobreditas fontes. [Ribeiras] Item ha alguas ribeiras cabedais e tem muitos ribeiros de mui excelentes, e graciosas agoas, e de muitos seixos brancos, e muitas levadas e muitas ervas verdes, e mui cheirozas, e [medicinaes195], e alguas dellas levão para muitas partes para boticairos, e alguns destes ribeiros moem todo o anno. Titulo do peixe do Douro Item primeiramente o Douro aonde morrem muitas lampreyas, e muitos sabens, e muitas bogas, e muitos barbos; ha hi outro pescado, que chamão mugens d’agoa doce os quaes nam morrem senão pollas primeiras agoas de Setembro, hé muito saborozo peixe, e muito estimado; e outros muitos mugens morrem das Caldas d’Aregos ate o Porto porem não chegão a estes. Outrossim morrem no dito Douro muitos, e mui fermozos eyrois, que são tão grandes como safios, e mui grossos, e saborozos; o morrer destes eyrois hé depois da castanha caida dos castinheiros, porque a inxurrada leva os ouriços dos

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Na edição da Academia, p. 560, lê-se: “mais”. Na edição da Academia, p. 561, lê-se “caise”. 195 De acordo com a edição da Academia, p. 561. No manuscrito estava “medianais”. 194

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

soutos ao Douro, e os ouriços entrão em os remances196 do Douro nos lodos onde os eyrois estão, e os picão, e se erguem no Douro, e vão cahir em huns canaes que estão [fl. 8v] no Douro com huns caniços, e ahi caem em seco principalmente de noute onde os aguardão com paos, e matão a mor parte deles, e ha noute que matão tres, quatro eyrós197. Há hi alguas savelhas, há tãobem alguns solhos ainda que a mor quantidade morrem daqui para sima em Villa Nova de Fos Coa; estes solhos que aqui morrem são peixes de dez, [treze,] catorze, quinze palmos, e mui grosos e são peixes reaes, e quando morrem he por serem grandes dorminhocos, e dormindo por acerto198 vão dar em os canaes onde dão em seco, e os outros que matão no dito Douro em Villa Nova morrem pello mesmo teor em armadilhas, e os pescadores, que os tomão em armadilhas os tem á serga atados no Douro quinze, vinte dias, e quanto querem até que vem pessoas que os comprão; sam peixes que val cada hum, mil, mil iic, mil vc reis porque ha hi peixe[s], que pezão Lta, Lx, Lxxx arrates cada hum, e dão hum arratel por vinte reis, e quando os tirão da augua deitão-lhe hua canada de vinho branco pella boca com que os levão dous dias vivos, e os que morrem neste circuito em canaes, que são poucos, são do senhor da terra por serem peixes reaes, ainda que elles comem os menos porque quando os achão os pescadores furtam-nos, e vendem-nos, e delles comem. E assi ha alguas trutas ainda que poucas, e antre estas acerta algua tamanha como savel por acerto. Das barcas de pasagem Item no dito compasso no dito Douro pasão seis barcas de passagem, que são as seguintes: Bagauste, que he de Vossa Senhoria, a Regoa, que he do Bispo do Porto, e do Illustrissimo199 Dom Fernando, o Carvalho que he de hua quintã, o Moledo, que foi posta pella Rainha Donna Mafalda, o Bernaldo, que he de hua quintã, a de Porto de Rey outrossi feita pella Rainha Donna Mafalda, as quais barcas do Moledo, e Porto de Rey a dita Rainha mandou poer, e leixou certas quintãs e cazaes para mantença dos barqueiros que passão as ditas barcas sem levarem dinheiro por grande, nem fora de marca, que o Douro vá, e tem dous mil reis de pena, e da cadeya se se provar pedirem elles dinheiro a algua pessoa, todavia se lho querem dar os que pasão por cortezia, mas nom que o pessão. Na barca do Moledo leixou a dita Rainha hum ospital em que [fl. 9] manda que dem cama, fogo, e sal, e agoa aos caminhantes, e a governança do dito espital, e barca pertence a esta cidade. Dos piares do Douro Item entre esta barca do Bernaldo, e a de Porto de Rey estão huns fermozos peares de hua ponte que a Rainha Donna Mafalda dizem que mandava fazer os quais sam dois no meyo do Douro de muito grande altura, e mui largo fundamento, que os dous que estão no rio, neste mes de Mayo hirão bem dez palmos descobertos, e no Verão hirão bem vinte palmos e mais, e estão outros dous de fora hum da parte daquem, e outro da parte dalem. Estes poyares foram já de dobrada altura, e os derribarão, e fizerão delles pesqueiras, e inda agora os lavradores os descobrem cada dia por dizerem - digo os derribão cada dia por dizerem que c<r>iam nelles as gralhas, que lhe comem os trigos. O arco da parte daquem volvia já. Esta hi muita pedra quebrada polo monte, que ficou quebrada, e acharão ainda polos montes muitas marras, e cunhas, e lavancas,

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Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “remãsos”. Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “e ha noute que matam 300, 400 eirõs”. 198 Que se nos afigura correcto. Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “por certo”. 199 Na edição da Academia, p. 563, é omitida esta palavra. 197

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Textos e documentos – Transcrição crítica

que por hi ficarão. Dizem nesta terra que a Raynha Donna Mafalda tinha hum filho o qual filho lhe dezião estrolicos que avia de morrer em agoa, e por isso mandava fazer aquella ponte, e que fazendo-se aquella ponte morrera o filho em hua pégada de boy cheia de agoa, e que leixou de a mandar acabar de fazer, o que certo me não parece, senom, que a Raynha morreu estando a ponte nesta altura, e por isso cessou a obra, porque na maneira que ella estaria se nom podia leixar de fazer por outro geito. [E] certamente me parece, que se El Rey nosso senhor vira os ditos peares mandara acabar a dita ponte porque a mor parte hé feito pois he o do fundo d’agoa, e tem muito bom fundamento para sobir toda a altura que quizerem, e tem muita pedraria quebrada, e muita para quebrar á borda da ponte, e tem mui grandes soutos de muy[tas] e muy fermozas vigas, e madeira para armação dos arcos todo junto com o edificio, e o pear que comessa a volver da parte daquem nunca o rio o cubre. El Rey nosso senhor podia mui bem mandar fazer esta meya ponte que esta por fazer com deitar des reis a cada morador vinte legoas arredor, e em seis, ou sete annos, ou em menos se podia fazer sem operssão (sic), e seria hua couza mui nobre [fl. 9v] neste Regno aver hua ponte no Douro porque por ser fragozo he mui prigozo nas pasagens, e sobretudo seria grande nobrecimento desta cidade. [Meijão Frio200] Dizem que hua vila que esta mea legoa desta ponte, que se chama Meijão Frio foi povorado por pedreiros que fazião esta ponte, e certamente me parece que deve ser assim, porque o lugar tem hum rego pello meo da rua de fundo assima, e de hua parte he201 hum concelho, e doutra parte he outro concelho, e dizem que hum meestre vivia de hua parte, e outro mestre doutra, e de cada parte tem hum juiz, e offeciais apartados hum do outro. Esta obra esta abaixo de hum lugar, que chamão Barqueiros aliás que chamão Barrô, e esta em terra para onde a mor parte das estradas d’Antre Douro, e Minho, e alguas de Traslos Montes, e as da Beira podião hir ter para passagem da dita ponte. [Ponte de Canaveses] Esta Raynha Dona Mafalda mandou fazer hua ponte de Canavezes que está em Tamega, e hua gafaria ao pé da ponte, e hum esprital no meyo do lugar com muitas terras, e paga de portagem cada besta carregada, que passa pola ponte dous reis e meyo para o esprital. Esta Raynha dizem, que fes a Sé do Porto, e outras muitas bemfeitorias neste Riba do Douro. Jaz emterrada em hum mosteiro que esta em hum lugar que chamão Vila Boa do Bispo em Riba do Douro, ao qual moesteiro dizem, que leixou sete mosteiros anexos silicet São João d’Alpendorada, e Ancede, e Carquere, e Bostello, e outros que depois El Rey Dom Dinis desanexou202. Titulo da navegação do Douro Esta Ribeira do Douro se navega vinte e sinco legoas silicet de S. João da Fóz, que he a barra do Porto pello rio arriba ‘té S. João da Pesqueira, que são as sobreditas vinte e sinco legoas com barcas que carregão [1:500 até 1:800203] alqueires de pão

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Na edição da Academia, p. 564, lê-se: “Menja frio”. Introduzi a informação desta forma pois adequa-se mais ao modo utilizado pelo transcritor deste manuscrito, como adiante se pode verificar. 201 Emendada esta palavra. 202 Na edição da Academia, p. 565, lê-se: “dom denis os desanexou”. 203 De acordo com a edição da Academia, p. 565. No manuscrito estava: “mil 60 ‘té mil outenta”. Esta forma poderá estar de acordo - e estou simplesmente a especular - com algum valor em vigor na época em que foi copiado o manuscrito. Contudo, na época de Rui Fernandes, e um pouco por todo o século 87


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

pella grande medida, e de S. João da Pesqueira nom podem passar por hua mui alta fraga que hi esta onde he a pesqueira donde nom podem passar savel, nem lamprea, nem outro peixe para sima. E no mes de [fl. 10] Mayo tomão naquella pesqueira muitos saveis hum homem, que está atado com hua corda per baixo dos brassos na fraga, e com hua rede que deita em baixo tira muita soma de peixe. Esta fraga manda ora quebrar o Doutor Martim de Figueiredo a qual quebra com fogo de vinagre; tem muita parte quebrada. Se a acabar de quebrar farão grande navegação até Valvestre, que dahi para sima nom podem passar, que hi passa o Douro por baixo de hum penedo, e ainda que isto seja fora do compasso das duas legoas se pos aqui por fazer ao cazo. Dos canaes do Douro Item nesta navegação deste rio ha agora alguns canais que perturbão a passagem das barcas como o rio abaixa porque elles tem paredes que atravessão o rio de parte a parte, e com ming[u]a nom podem passar as barcas, e os canaes que danão estas passagens estão no circuito destas duas legoas, e são de mui pouco proveito, e muito damno, porque tomando-se conta do que custão a correger, e do que rendem acharão que pasa a despeza pella recepta, e ja os principaes204 são derribados, que erão os de Bagauste de Vossa Senhoria, e do Conde de Maria Alva, do Moledo, e para a navegação ser de todo o anno devia El Rey nosso senhor mandar abrir a vea do rio, que he sua, e logo nom teria canaes nenhuns como as veas fosem abertas; e ja agora nom205 ha mais de quatro assudes porque os mais levou o rio. Titulo das pesqueiras do Douro E tãobem ha algumas pesqueiras que fazem somente para saveis, e lampreas, que alguas dellas sam prejudeciais a��������� [�������� a������� ]������ navegação, e cada dia fazem mais porque se ouvece provedor no rio para ver isso seria melhor navegação porque o Douro tem todo o anno agoa em abastança porque afirmão ter dobrada a agoa abaixo d’Antre Ambos os Rios do que o Tejo tem ate onde chega a maré. [E] certo que vem o Douro de Verão tão grande em Samora como o Tejo vem em Santarem, pois de Samora ate Antre Ambolos Rios colhe o Douro dobrada augoa da de206 que em Samora tras. Neste Douro ha alguns passos maos que se podião correger, e nestes passos a que chamão gálleiras ha hi pilotos no rio que passão as barcas silicet des os Peares ate Porto Manço que são tres legoas, e leva o piloto hum tostão por decer a dita barca. [fl. 10v] Outros pilotos há que decem outros passos ruins des S. João da Pesqueira outras duas ou tres legoas. Deste São João207 da Pesqueira tãobem vem ao Porto almadias feitas de cortiça que trazem cem duzias de cortiça, e mais, leadas com paus, e esta cortiça se vende a pescadores para boyas, e a çapateiros; e sobre ella trazem muitos odres de vinho, vinagre208, e mel, e muitos sacos de sumagre, e vem homens nellas que as governão; são mais seguras de prigo, que as barcas.

XVI, as barcas do Douro definiam-se exactamente por carregarem de 1 500 a 1 800 alqueires. Sobre este assunto ver DUARTE, Luís Miguel; BARROS, Amândio - Corações Aflitos ..., cit., p. 115. 204 Emendada esta palavra. 205 Emendada esta palavra. 206 Na edição da Academia, p. 567, é omitida esta palavra. 207 Na edição da Academia, p. 567, certamente por lapso, omite-se esta palavra. 208 Emendada esta palavra; estava escrita a palavra “sumagre”. 88


Textos e documentos – Transcrição crítica

Neste rio antre os Peares e as Caldas estava hum penedo que chamavão o Touro, e era o mais prigozo passo que avia nesta navegação onde sam perdidas muitas barcas, e morta muita gente, e avera quatro, ou sinco annos que hum homem ho [quebrou209] com despeza de mil e dozentos reis, onde mais nom prigou barca, nem gente, e muitos passos ha hi que se podião correger com pouca despeza, para o que El Rey nosso senhor podia deitar hua portagem ás mercadorias que decem para corregimento e repairo destes máos passos e seria muito santa couza. [Largura e altura do Douro] E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os creados de Vossa Senhoria á barca da Regoa, que he hũa legoa desta cidade e aos vinte e outo210 de Mayo de mil quinhentos e trinta e dois211 achámos de largura no rio duzentas e trinta varas; [a] altura nom se pode tomar pola grande corrente da agoa, e achamos que fora no anno de quinhentos e vinte hũa grande cheya, e assim em outros annos em que levou de largo allem da agoa que agora leva da parte dallem cento sincoenta varas e da parte daquem sincoenta varas212 e d’altura vinte varas213, afora a altura que agora tem assim que somou toda a largura no tempo das cheyas com a que agora leva quatrocentas sincoenta varas, e tomando a altura do que vai com agoa a respeito da largura [que foy] vem por regra da geometria vinte e hua varas e mea, que para vinte e tres varas falta mea ávos de vara que he a altura que agora pode levar e a altura das cheas junta com esta são quarenta e duas varas e vinte e hum, vinte e dous ávos de vara214. [fl. 11] Da Ribeira de Baroza Há hi outra ribeira, a que chamão Baroza que se mete no Douro hua legoa desta cidade e nace em hua serra que se chama Almoffala, que he tres legoas e meya desta cidade, e donde se mete no Douro adonde nace são quatro legoas e meya. Esta ribeira hé de mui fermozas ágoas continuas, e215 passa-se a mor parte do anno ali onde se mete no Douro em barcas216; há nesta ribeira mui grandes pégos, e mui altos de muito infindo pescado silicet muitas e boas trutas, e muitas bogas, e barbos; as bogas desta ribeira sobrellevão em sabor a todo outro pescado doutras ribeiras. Tem muitas e mui fermozas moendas de todo o anno, e de seis, sete legoas vem nella a moer no Verão. [Sam João de Tarouca] Esta ribeira pasa arredor de São João de Tarouca que he da Ordem de São Bernardo217. Nelle esta emterrado hum conde que chamavão Dom Pedro Conde de Barcellos. Dizem he218 filho bastardo de El Rey Dom Affonso Henriques, posto que a

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No manuscrito estava a palavra “cobrou”. Emendadas estas duas últimas palavras. 211 Na edição da Academia, p. 567, certamente por lapso, lê-se: “28 de Maio de 582”. 212 Na edição da Academia, p. 568, lê-se “e da parte d’aquem 70 varas”. 213 Na edição da Academia, p. 568, lê-se: “e de altura 21 varas”. 214 Remeto o leitor para a consulta da edição da Academia, p. 568, onde se regista o seguinte: “E tomando a altura do que vay com agoa a respeito da largura que foy, vem por regra de geometria 21 varas e 21/22, que pera 22 varas falta 1/22 ávos de vara, que he a altura que agora pode levar; e a altura das chêas junta com esta são 42 21/22 de vara, digo, 42 varas, e 21, 22 ávos de vara. 215 Na edição da Academia, p. 568, é omitida esta palavra. 216 Na edição da Academia, p. 568, lê-se “barca”. 217 Na edição da Academia, p. 568, tal como sucede, como se pode ver, neste manuscrito, a frase inicial deste capítulo está truncada: “Esta ribeira passa a redor de sam Joam de tarouca, que no dito compaso; o qual moesteiro he da ordem de sam bernardo”. 218 Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “ser”. 210

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Coronica d’El Rey Dom Affonso Henriques não diga de tal filho, o qual Conde Dom Pedro dizem ser homem como gigante de corpo, e assim está emterrado no dito mosteiro hum seu filho219, que dizem ser de seis mezes, e as canas dos seos ossos som de quatro palmos. Este mosteiro rende seis centos mil reis. Quem o ordenou nom se acha, somente dizem, que hum irmitão por esmollas e com ajuda d’El Rey de Castella o edeficou. Foi feito na era de mil cento trinta e quatro annos quando em Espanha foi antredito pello cazamento d’El Rey Dom Affonso de Leão com Donna Tareja filha d’El Rey Dom Sancho de Portugal, o qual antredito foi feito pello Papa Clestino220 terceiro, que então era, porquanto El Rey [fl. 11v] Dom Affonso de Leão era sobrinho d’El Rey Dom Sancho, seu sogro filho de sua irmam. E porque este mosteiro tinha então hum grande previllegio, que sem embargo de excomunhão do Papa podece celebrar os Officios Divinos, e por este cazo nesse221 interdito se vierão enterrar grandes senhores de Castella ao dito mosteiro, e leixarão muita renda que o dito mosteiro tinha em Castella, e pellas guerras a perdeo, e os testamentos destes senhores estão no dito mosteiro, e todos tem esculpidas suas armas nas sepulturas. E ao sagrar deste mosteiro foi hum Bispo de Lamego, e o Bispo de Coimbra, e o Bispo de Vizeu, e [o]Arcebispo de Braga segundo achei em hum letreiro que esta no dito mosteiro, e assi hum Bispo do Porto. Neste mosteiro jazem enterrados hum Mestre de Calatrava de Castella, e hum Joanne Mendes de Berredo222, e sua molher Donna Orraca Affonso, que erão ambos de Portugal, os quais leixarão ao dito moesteiro a aldeya de Martinhanes e a Quinta de Mosteiró. E no dito moesteiro esta ainda hua colcha que dizem que foi do Conde Dom Pedro, a qual tem por memoria (sic223). [Moesteiro de Sarzeda] E vai o dito rio tãobem pela Cucanha que he do moesteiro de Sarzeda, e vay per muitas terras que pertencem ao dito mosteiro, o qual mosteiro224 dis no letreiro dizem que mandou fazer Donna Tareja molher de Dom Egas Monis que em elle está enterrada, e o marido jás em Paço de Souza. E jazem emterrados no dito mosteiro de Serzeda os Coutinhos, e pouco mais ou menos he da renda do mosteiro de S. João. Este mosteiro foi feito na era de mil cento e quarenta e outo annos. As terras deste mosteiro e do mosteiro de Sam João partem ambas assim na serra como na ribeira ambos rego por rego; ambos estes mosteiros estão duas legoas desta cidade, e ambos são de hua Ordem. E dahi vem o dito rio ao longo do [fl. 12] Mosteiro de Recião, que he meya legoa desta cidade, e hé de S. Jorge da Ordem de Santo Loy dos abitos azues, e he hum mosteiro pequeno e muy viçoso de todos os viços. Esta ribeira hua legoa ao redor desta cidade de hua parte e outra todo he ollivais e vinhas de muy excelentes vinhos os melhores da terra, e nogueiras, e outras muitas arvores; e outra legoa para sima he toda soutos onde se mete no Douro, e na Quinta de Mosteiró de que atras faço menção, tem hum canal em que morrem muitas bogas e outro muito pescado. Esta

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Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “(...) no dito mosteiro, e hum seu filho”. Sic. Nas duas versões. 221 Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “neste”. 222 Na edição da Academia, p. 569, regista-se o nome “Berreto”. 223 É muito possível que o original do documento estivesse em branco. Parece que há por parte de Rui Fernandes a intenção, que não deve ter concretizado, de descrever aquilo que estaria representado na dita colcha. 224 Na edição da Academia, p. 570, omitem-se as três últimas palavras. 220

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Textos e documentos – Transcrição crítica

ribeira vem a mor parte por terra fragoza, e daqui a duas legoas se ajunta com ella outra ribeira, que vem por Lalim, e tem muitas truitas, e mui saborozas, e vem junto de Tarouca, e em Mondim se ajumtam225. Da Ribeira de Balsemão Ha outra ribeira que chamão Balsemão que passa por redor desta cidade, nasce daqui tres legoas. [Monte de Muro] Esta ribeira atravessa o Monte de Muro digo atravessa a Serra de Monte de Muro toda, e nella nace, a qual serra he neste circuito a principal della. A gente desta Serra são gentes226 lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras, vestem burel, e calção avarcas, que são feitas de correa de vaca, e alguns andão sem carapussas, e os homens e as mulheres pola mor parte são de conciencia, e cazão assim homens, como molheres de trinta annos para riba, e isto pola mor parte, e emquanto nom som cazados nom tem sobrenome, e ainda muito depois de cazados. Polla mor parte vivem muito homem de noventa, cento, e cento e vinte annos, e destes muitos, e nunca em suas doenças se curão com medicos; nom bebem vinho por na terra nom se dar, somente algua ora se o bebem hé por acerto; nom comem senom leite, e pão de centeo o mais das vezes, dado que outras vezes comem carne porque na dita serra nom se da senom muitos e mui fermozos centeos, e da eyra tirão o pão para semear, e elles semeão no fim de Julho, e as molheres malhão, de maneira que o pão esta sempre hum anno nos campos. São grandes lutadores, os homens [fl. 12v] e as molheres, de muita força. Nesta serra ouve hua molher, que chamavão a Pinta, que era de cento e vinte annos, e trazia do mato feixe de lenha com que se cozia hua fornada de pão. Os homens, e as molheres desta serra são grandes creadores de muitas vacas. [Vacas e touros] Ha homens de cento [, cento] e vinte227, cento [e] sincoenta rezes vacuns, de vacas e touros, as quais vacas tem esta maneira: que do mes de Mayo até o mes de Setembro pastão na dita Serra de Monte de Muro, e do mes de Setembro até Mayo pastão na Guandara junto do mar êntre Aveyro e Coimbra que são dezaseis e228 dezacete legoas da dita Serra do Monte de Muro, e são já tão sentidas no tempo, que se o tempo he quente, e seos donos as nom vão buscar muitas se vem por si, e se o tempo he frio, e as não levão per si se vão, e tem lugares deputados no caminho que chamão malhadas onde dormem, e ainda que cheguem sedo ahi se apozentão. Estas vacas são de pezo de sinco, seis, sete arrobas dão os mais fermozos touros que se podem aver, deste pezo; são mui ligeiros em correr, e muito destros em ferir; nunca homem de cavallo entrou com eles em curro, e mui poucos livres os podem filhar, que os nom matem; onde estes touros andão não ouza lobo cometer a manada, como vem homem de préto a tiro de besta se apartão das vacas alguns para o cometer. Estes homens desta serra tãobem crião muitas cabras, e carneiros poucos. O gado desta serra, e as carnes tem avantagem em sabor a todallas carnes.

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Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 571, é omitida esta palavra. 227 Riscada(s) uma ou duas palavras ilegíveis. 228 Na edição da Academia, p. 572, é omitida esta palavra. 226

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Os homens nesta serra tem muitos filhos e filhas, e mais são as filhas que os filhos, e as filhas nom tem linho[s] para fiar polla terra nom os dar, e vem a esta cidade a esta feitoria das lonas d’El Rey nosso senhor e leva hum lavrador hua carrega de linho canimo que torna a trazer fiado em dia de mercado a esta cidade, que as filhas fião andando com os gados, e levão azeite, e sal, e pescado, e outras couzas para sua mantença. [Caça] Nesta serra ha muita cassa silicet perdizes, galinhollas, coelhos, lebres, que vem vender a esta cidade, e assi leite, nata, e manteiga, e tãobem229 trazem a vender [fl. 13] carvão, e lenha. Esta serra tem muitas, e muy excelentes fontes peren[a]es, muy excelentes lameiras, hua mui fermoza veiga por o meo della por onde vem esta ribeira que he de hua legoa em comprido, e tres tiros de besta em largo, e he toda lameiras, e pastos230 sem outro nenhum renovo, mas aqui polla terra ser fria nom pastão senom de Verão; nesta serra não ha nenhua caza de telha, senom todas de colmo, e todas terreiras; tem outras pequenas ribeiras de truitas pequenas de que nom faço menção. [Das neves] Nesta serra ha muita neve, e ao fazer deste tratado no anno de [531231] em dia de São Thome no mes de Dezembro cahio hua neve muito grande nesta serra, e mor, que nunca acordou homem232 de LR, cem annos, que nacerão na dita serra. Foi a neve de tal maneira, que o dia que comessou cobrio as cazas, e muita gente ficou dentro nellas sem terem caminho nem saida, somente os outros de fora lhe hião a fazer caminho ás portas por onde saissem, e a neve continuou tres, ou quatro dias. Os homens e molheres da dita serra tinhão bem que fazer com rodos, e eixadas para tirar a dita neve de sima das ditas cazas colmaças, que nom quebrasem as latas das ditas cazas, e os matarem dentro, e em lugares ouve que foi de dez, doze, quinze, vinte, trinta233 palmos sogundo (sic234) o valle era, e isto d’alto, e aos vinte e seis de Janeiro cahio outra grande neve, e morreu muito gado, e todavia nom poderom tanta neve tirar, que nom caissem muitas cazas nesta serra, e nas Dornas se aconteceo ficar hua corte de bois coberta de neve, e a esmo saberem aonde estava a córte, e minarão per baixo dez palmos polla neve estar rija da geada e codom que so235 sobre ella caira, e polla dita mina tirarão os bois, e pollos gados se nom perderem cavarão as eixadas, e rodos meya legoa, e a legoa para fazerem caminho por onde os ditos gados focem para terra quente por se nom perderem, como de feito se perderom se os ditos lavradores lhe nom acudirão com fenos (?236), de que tem feitos palheiros para o gado meudo comer no semelhante tempo. Todavia esta neve nom coalha237 senom a hua legoa desta cidade para o Sul, e para outras partes, e o circuito da cidade e daqui a Meijão Frio fica sem cobrir neve. E se neste tempo que a dita neve estava na serra acertara de chover se alagarão todas as moendas desta cidade, e a ribeira fizera muito dano porquanto a ribeira atravessa toda esta serra e fizeram-se

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Emendadas estas duas últimas palavras. Na edição da Academia, p. 573, lê-se: “pasto”. 231 No manuscrito regista-se, erradamente, “outenta e hum”. 232 Na edição da Academia, p. 573, está escrito “homens”. 233 Na edição da Academia, p. 573, certamente por lapso, regista-se “300”. 234 Na edição da Academia está escrito “segumdo”. 235 Na edição da Academia, p. 573, é omitida esta palavra que deve estar aqui por lapso. 236 Na edição da Academia, p. 574, está “com feitos”. 237 Na edição da Academia, p. 574, lê-se: “calha”. 230

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 13v] quinze dias que os homens, que vinhão de Coimbra e de Vizeu para esta cidade agardavão que abaixase a dita neve por nom poderem passar. [Moendas] Esta Ribeira de Balsamão vem logo por Magueija, que he do Infante Dom Fernando, e vem dar na faldra desta cidade onde tem vinte e oito rodas de moinhos muito bons afora outras tantas, e mais, que terá para sima, das quaes moendas a cidade he mui bem regida, porque a ribeira moe todo o anno e os molleiros são obrigados a vir buscar o pão a caza, e joeyraremno, e levarem-no ao moinho, e trazerem-no de hum dia ate o outro, e continoadamente andão com asnos polla dita cidade a buscar o dito pão. Somente tem muita ne[ce]cidade d’aver pezo da farinha de que a cidade tem pedido a Vossa Senhoria para que lho aja d’El Rey. [Aldea de Balsamão do Bispo Dom Affonso] E daqui vai a dita ribeira ter a aldea de Balsamão, que he de sete vezinhos donde ella tem o nome, que he da cidade mea legoa, e toda esta mea legoa hé de hum fermozo bosque a que chamão a Pisca, que todo he souto[s] e pumares de diferentes arvores de fruto. [Do Bispo Dom Affonso que jas em Balsamão] Nesta aldea de Balsamão jas emterrado o Bispo Dom Affonso, que foi bispo do Porto em hũa cappella, que mandou fazer nas cazas de seu pay onde naceo, a qual cappella he pequena, e muito bem obrada de pedraria onde está a sua sepultura, e tãobem fez muito bom apozentamento em que viveu e comprou muitas terras que anexou á cappella que ora rendem corenta, sincoenta mil reis. Leixou-a muito bem repairada de vestimentas e mantos de borcado, e de seda, e de calles, e de outros ornamentos, e fes hum honrado testamento e estatuto para a dita cappela para seos herdeiros se regerem. E na segunda outava do Sancto Spirito em que a bandeira da sina d’El Rey nosso senhor desta cidade vai a S. Domingos como adeante [se] dira pollo dito estatuto dão alli ao Alferes huas ferraduras para o cavallo e ao Juis des reis, e a cada conego tres reis affora outra renda que leixou ao Cabbido por lhe dizerem hum responsso sobre sua sepultura no dito dia. E outro seu irmão que chamavão Dom Domingos Martins dizem que fes o Mosteiro de Recião, de que atras fas menção, o qual Mosteiro de Receão dizem ser primeiro de freiras, e hum bispo desta [fl. 14] cidade que veo de Roma o mudou á Ordem de Santo Loy porque novamente se acostumava em Roma. Este Bispo Dom Affonso era sobrinho de Dom Vasco Bispo de Lisboa, que dizem que fez o Morgado de Medello e a Torre do Bispo; este Bispo Dom Affonso morreu na era de mil [e] trezentos segundo o letreiro da cappella, o qual sendo Bispo do Porto, que he hua tão nobre cidade neste Reino, sua propria may, que he a terra, o chamou como no prologo deste tratado tenho dito, e elle leixando seu bispado, sogeito como filho obediente á dita may, se veo áquella aldea de sete vezinhos comer suas rendas, onde faleceo. E deste bispo procedem os Affoncecas os quaes ministrão a dita cappella, e de Medello descenderom estes bispos como adiante faço menção.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Couto de Medello Medello foi hua aldeya termo desta cidade em a qual238 aldeya viveu hum lavrador que chamavão Affonso Domingues, e ouve hum filho, que chamavão Vasco Dominguez; este por seu saber veyo a ser mestre do Principe filho d’El Rey Dom Sancho e dipois foi Bispo de Lixboa ao qual chamavão Dom Vasco. E sendo bispo pedio a El Rey que lhe fizece aquele lugar do seu nacimento couto para onra de sua geração. El Rey ouve sobre isso concelho, e saio que nom podia ser provido por ser muito prejudicial o dito couto á sua cidade de Lamego. Tornou a fazer outra petição allegando que tinha feito muito serviço ao Regno, e que fora a Roma certas vezes, que ‘aquele tempo avião por muito hir a Roma, e outros servissos que allegou, e239 com a segunda petição lho fizerom couto. Dipois disto morreo o dito Bispo Dom Vasco, e fes hum testamento, que elle por nam ter herdeiros leixava sua alma por sua herdeira á qual leixava que lhe fizesem hũa cappella na Se de Lamego de sua patria, e he do ourago de Santa Catarina, e leixou aa Torre do Bispo certos bens que tinha em Torres Novas, e o Couto de Medello, e que na dita cappella se dicesem cada somana duas missas, e fosse ministrador della Giraldo Domingues seu sobrinho filho de hua sua irmam conego na Se d’Evora, e por morte do dito Giraldo Domingues a amenistração se tornace aos herdeiros da linha de sua [fl. 14v] may, e avendo cllerigo se dese antes que a leigo, e nom avendo barão a herdace molher, aquella que mais chegada fosse ao parentesco, o qual Giraldo Domingues conego d’Evora foi dipois Bispo d’Evora; e ao tempo de sua morte fez outro testamento, em que mandou que se cumprisse o testamento de seu tio Dom Vasco, e mandava que na dita cappela de Sancta Catarina se dissesse cada dia hua missa, e ouvece dous cappellais, e mais leixava a dita cappela a apresentação do Mosteiro de Bouças que era sua cappella, se tornace á linha de seu tio a qual cappela e couto depois teverão muitos herdeiros, e veo ter a hum pobre escudeiro que vivia no dito couto de Medello, e manistrava a cappella de Santa Caterina, ao qual por sua pobreza se lhe levantarão com a Torre do Bispo, e com as terras de Torres Novas, e outras da cappella, e elle era senhor do couto, e estando assim veo Gonçallo Vas Coutinho, que antão era Marichal de Portugal, o qual veo ter a esta cidade, e240 nom sei se era já alcaide mor della, e falou com o dito escudeiro e lhe disse que elle não podia rezistir para aver as terras e rendas da dita cappella, que se elle lho quizese satisfazer e leixar o dito couto e cappella, que elle rezistiria e averia a dita cappella digo averia as terras e couzas que a elle pertencião241, o qual escudeiro lhe leixou a dita amenistração do dito couto e cappella. O descambo como foi se arrendasse a dinheiro não o achei somente o dito marichal ouve a sobredita cappella e tirou a Torre do Bispo, e terras de Torres Novas, e a aprezentação de Bouças que andava sonegado e ficou aos Coutinhos com o antigo couto de Loumil que ja tinha242, e o dito Morgado de Medello e cappella terá de renda perto de tres contos de reis. E acho que deste Affonso Domingues lavrador desta nossa aldea descenderom243 tres bispos silicet seu filho Dom Vasco Bispo de Lixboa, e seu neto Dom Giraldo Bispo d’Evora, e Dom Affonso que foi Bispo do Porto, que tãobem dizem ser244 seu netto, que jas em Balsamão, e fez o estatuto da cappella de Balsamão pello modo do de Medello e diz em elle nom avendo herdeiros245 de sua linha se volva aos herdeiros de seu tio Dom Vasco Bispo de Lixboa, e assi diz que os responsos e missas que lhe disserem na dita cappella seja por sua alma, e polla alma de seu tio Dom Vasco Bispo de Lixboa. Por este lugar de Medello passa o Ribeiro de Fafel de que adiante faço menção.

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Na edição da Academia, p. 576, a frase está escrita deste modo: “(...) desta cidade. A qual (...)”. Na edição da Academia, p. 576, é omitida esta palavra. 240 Na edição da Academia, p. 577, é omitida esta palavra. 241 Na edição da Academia, p. 577, lê-se: “pertencia”. 242 Na edição da Academia, p. 577, lê-se: “tinhão”. 243 Emendada esta palavra. 244 Na edição da Academia, p. 577 a frase é assim: “(...) que tambem me dizem ser (...)”. 245 No singular na edição da Academia, p. 577. 239

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 15] Esta Ribeira de Balsamão se vai meter em Baroza trez ou quatro tiros de bêsta da dita aldeya, e dizem que hum bispo a quizera mudar por esta cidade na Ribeira da Magueija para vir dar em Fafel, o que se poderá fazer com ajuda d’El Rey, e fara grande nobrecimento desta cidade. Esta ribeira tem muitos bons bordallos e muitas truitas as mais saborozas de toda a Beira, ainda que sam pequenas e tambem tem alguns pégos em que andão grandes truitas. Do Ribeiro de Fafel Ha outro pequeno ribeiro que vem pelo meo desta cidade que chamão Fafel donde se regão os renovos e ortas da mor parte desta cidade e doutras aldeyas; nace daqui a mea legoa em Penude, e vem pollo lugar de Medello cabeça do morgado, que he perto desta cidade entra polla povoração da Sé arredor dos Paços de Vossa Senhoria e do seu fermozo terreiro. Este ribeiro ainda que he pequeno he mui furiozo quando vay de cheya, e depois da partida de Vossa Senhoria tem dados fortes combates ao seu muro do terreiro, em tanta maneira que o derribou por tres lugares dezejando-se tornar ao lugar donde o Vossa Senhoria o246 mandou mudar por onde o seu terreiro ficou de lomgo cento e seis varas, e de largo outenta e seis, que autoriza bem, e emnobrece esta cidade. Este rio polla mór parte he de fontes mui excelentes, e todo o anno moe somente quando lhe tomão a agoa para regar e nom por nom ter agoa. Tem quatro lagares d’azeite e outo rodas de pão, allem dos que digo da Ribeira de Balsamão, e tem dous pizois dos bordates d’El Rey nosso senhor. O qual rio he a melhor agoa para curar pannos que outro, e com elle se curão os ditos bordates, e alguns fustães, que se aqui tambem fazem nos emgenhos dos bordates, omde se tãobem fazem bocachins. Este ribeiro se vai meter no Rio de Balsamão tres tiros de bêsta dos passos de Vossa Senhoria; donde nace, ate onde se mete em Balsamão todo he de hũa parte e doutra soutos, e nogueiras, e ollivais, e pumares, e órtas; este rega os fermozos campos de Coura, e247 tem alguns poucos escallos pequenos. [fl. 15v] Do Ribeiro de S. Martinho Ha outro ribeiro em o concelho de S. Martinho de Mouros que nace no simo do concelho silicet agoas vertentes da Serra do Monte do Muro para o Douro. O qual ribeiro donde nace aonde se mete no Douro he hua legoa, e he pollo mais fresco valle que se pode achar, todo muito cerrado, e parece-se muito com Cintra, somente tem mais basto arvoredo. Todo este valle nom he senom castinheiros, e nogueiras, e aveleiras, e larangeiras, e outras arvores d’espinho mui excelentes, e muitos bons pumares, e lameiras. Dá o mais fermozo trigo que ha em toda a Beyra, muitas uveiras; homem [há] que colhe quatrocentos, quinhentos almudes de vinho amaral d’arvores, e grande soma de nós, e castanha e dali saem muitos e mui fermozos mastros de castinheiros, e muito tavoado, que todo se vai carregar ao Douro. [Morgado dos Cardozos] No dito valle esta hum lugar que chamão Cardozo onde está hum morgado donde procedem os Cardozos deste Reyno, tem muitas e muy honradas quintas, e cazais no dito valle, e em outras partes da Beira, e agora hé de Azoil (sic?248) Cardozo, e Vasco Cardozo seu filho. Neste valle há as mais fontes que em todo o Regno se podem achar em tão pequeno compasso; e isto

246

Na edição da Academia, p. 578, é omitida esta palavra. Na edição da Academia, p. 579, é omitida esta palavra. 248 Na edição da Academia, p. 580, lê-se “Aznil”, o que também é duvidoso. 247

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

hé no concelho de São Martinho de Mouros, que he do Illustrissimo249 [Infante] Dom Fernando, e a igreja he da sua cappella de Santa Caterina e he a igreja muito antiga segundo parece em seos edificios, e tem hũa torre muy honrada e a igreja he edificada como Sé, e me parece[m] edificeos mouriscos. A esta igreja hé annexa outra de Monte de Muro da principal parte da dita serra, a que chamão Gozende. [Jantar de Monte de Muro] Tem todos os moradores de Monte de Muro, paes e filhos, em dia de São Martinho, que se fas hua festa250 na dita igreja hum gentar em que hão de dar a cada hum tres igoarias: se he dia de carne, vaca, carneiro, marram, e mostarda, e magusto, se hé dia de pescado hão lhe [de] dar peixota, raya, e sardinhas, e azeite, e vinagre, e nozes, e vinho que os farte, e em dia de Natal para beberem na sua igreja treze almudes de vinho, e este partido me parece que fizerão por darem o padroado a dita igreja de São Martinho por fazerem a sua igreja annexa á dita igreja de São Martinho. Este ribeiro de que assima faço [fl. 16] menção que passa pello valle de S. Martinho se chama Bastança. Este ribeiro tem nesta legoa vinte e sinco moendas que moem todo anno. [Córrego] Item na parte dallem Douro no dito compasso ha outra ribeira que chamão o Córrego da grandura da251 Baroza, e tãobem se passa em barca ao tempo que pasa Baroza. Esta ribeira nace dentro em Villa Pouca d’Aguiar em hua fonte no sima do lugar, vem por todo o Valle d’Aguiar, que he bom e grande, e vem o252 redor de Villa Real, e vem-se a meter no Douro em a Regoa defronte da253 Baroza hua legoa desta cidade, e donde nace, adonde se mete no Douro são sete legoas. Nom faço menção doutros ribeiros digo legoas; tras muitas truitas e bogas. Nom faço menção doutros ribeiros que neste se metem por serem pequenos, e254 ainda que trazem alguas truitas pequenas. Da Ribeira de Sermanha255 Item ha outra ribeira que chamão Sermanha que nace na Serra do Marão, mete-se no Douro entre o barco do Moledo e do Carvalho, e tras truitas, e bordallos muito bos. Ha outra ribeira que chamão Teixeiróo, que vem por hum lugar a que chamão a Teixeira, e nace arriba do lugar, caminho de São Gonçallo d’Amarante, o qual vem por Meijão Frio por muito fragoza terra. Hé muito viçosa ribeira de pumares, arvores de espinho, soutos, nogueiras e tem muito boas truitas, e muito boas bogas, bordallos, e vem-se a meter no Douro.

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Na edição da Academia, p. 580, é omitida esta palavra. Na edição da Academia, p. 580, lê-se “feira”, o que não nos parece correcto dado o sentido do texto. 251 Na edição da Academia, p. 580, lê-se: “de”. 252 Na edição da Academia, p. 580, lê-se “a”. 253 Ver nota 123. 254 Na edição da Academia, p. 581, é omitida esta palavra. 255 Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “Cermenha” e continua coma mesma forma no corpo do texto. 250

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titullo do numero e soma dos moradores deste compasso Item determinei a somar quantos povoadores ha neste compasso, e para o melhor saber pus os concelhos todos cada hum por si e quantos moradores tem, os quais concelhos tirei alguns delles por as somas que El Rey nosso senhor mandou fazer, e outros por informação dos sobreditos concelhos dos moradores delles. [E] são v mil cto e dezasseys moradores neste compasso, e por razão e novreamento256 todos ouverão de ser termo desta cidade, e fora hua bem nobre cidade, e mayor, e mais rica se tivera este termo, e a renda das terças que rende257 a este concelho rendera a ella para seu nobrecimento, e muita parte destes concelhos em tempo antigo forom do termo da dita cidade, e por ella andar então regida por offeciais macanicos se perderom por nom acudirem [fl. 16v] a isso; e pera esta cidade ser mayor, e mais bem concertada de muitas bemfeitorias devia El Rey nosso senhor fazer merce das terças destes concelhos para obras desta cidade, as quais terças rendem bem pouco dinheiro, que pode ser ate corenta mil reis, e com este rendimento cada anno se faria hua bemfeitoria assim para fazer recios de que tem muita necesidade, como de praça que ha tres annos que nella fazem e polla renda ser pequena se nom pode acabar, porque a cidade tinha de renda dez mil reis e agora com os tombos que fes o Lecenciado Francisco Sanchez rende xxxi mil258 reis, e daqui se tira ainda a terça, e achou-se por hua inquirição que tirarão que o moesteiro de S. João lhe tem tomados quarenta ou sincoenta mil reis de renda dos seos maninhos, e polla cidade nom ser bastante para suprir a demanda, e assim por poerem suspeiçois ao Lecenciado nom se seguio a demanda e pera finta nom tem maneira porque a mayor parte dos povoadores som previligiados e os pobres, que nam tem previlegio pagão todo, para o que El Rey nosso senhor devia poer estas fintas em impozição de hum ceitil na carne para ricos e pobres pagarem antes que em fintas do concelho polla muita opressom dos pobres. Os quais concelhos e povoadores sam os seguintes. Titulo do numero da gente deste circuito [D’El Rei] Item a cidade e termo [tem] ..................................................................................................................... mil iiiic xi vizinhos [De Sam Joham] Item Sande tem . .............................................................................................................................................. Lvi [vizinhos] [D’El Rei] [Item] Valdigem [tem] ............................................................................................................................... cto Rvi [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Armamar [tem] .................................................................................................................................... iiic Ri [vizinhos]

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Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “nobrecimento”. Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “rendem”. 258 Na edição da Academia, p. 582, a cifra indicada é: “36:000”. 257

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[D’El Rei] Item Villa Seca [tem] . .................................................................................................................................. xxxvi [vizinhos] [D’Antonio Pereira] Item Lumiares [tem] ............................................................................................................................. cto L xxxix [vizinhos] Alem Douro [De Vossa Senhoria] Item Canellas [tem] ......................................................................................................................................... cto [vizinhos] [Do Bispo do Porto] Item o Pezo [tem] .............................................................................................................................................. Lx [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Fontes [tem] ........................................................................................................................................... xxv [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Penaguião [tem] .................................................................................................................................. vc Lta [vizinhos] [D’El Rei] Item Oliveira [tem] ........................................................................................................................................... xx [vizinhos] [Beatria] Item Cidadelhe [tem] ........................................................................................................................................ xx [vizinhos] [Beatria] Item Meijão Frio [tem] ..................................................................................................................................... iic [vizinhos] [Beatria] Item Villa Marim [tem] ................................................................................................................................ L xxx [vizinhos] Aquem Douro [Do Ifante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros [tem] ............................................................................................................ vc Lta [vizinhos] 98


Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 17] [Do Ifante Dom Fernando] Item Magueija [tem] .................................................................................................................................... xxxvi [vizinhos] [Do Ifante Dom Fernando] Item Medello [tem] ............................................................................................................................................................

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[D’El Rey] Item Gozende [tem] ......................................................................................................................................... Rta [vizinhos] [Beatria] Item Campo Bemfeito [tem] ...............................................................................................................................................

260

[Beatria] Item o Mezio [tem] .......................................................................................................................................... xxx [vizinhos] [Beatria] Item Britiande [tem] .................................................................................................................................... cto xx [vizinhos] [D’El Rei] Item o couto da Çarzeda [tem] . ............................................................................................................... iic L xxx [vizinhos] [D’El Rei] Item Tarouca [tem] ...................................................................................................................................... vc Rta [vizinhos] [D’El Rei] Item Lalim [tem] .............................................................................................................................................. Lta [vizinhos] [Do Ifante Dom Fernando] Item Mondim [tem] ....................................................................................................................................... iic xx [vizinhos]

259 260

Em branco. Em branco. 99


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Da soma dos hi moradores Assim que somão os moradores deste circuito de duas legoas em compaço, e261 d’arredor a soma sobredita os quais tantos por tantos nom se achara no Regno nem em Espanha que tenhão tantos filhos e filhas, e são mais as filhas que os filhos porque em nenhua parte se achara onde as molheres tanto pairão, nem que tanto se criem, porque no dito circuito há molheres que parirão tres creanças de hua emprinhidão. Ha muitas pessoas que tem dez, quinze, e dezaceis262 filhos e filhas de hum marido. E deitando ao dito compasso a hum por outro a sinco filhos somão xx[v] mil vc L xxx263 filhos, e isto mais se ham de achar de sinco para sima que de sinco para baixo porque nesta cidade ouve molher que avera vinte e quatro annos que he falecida, e hoje são vivos della bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a mor parte destes são femeas, e ella nom teve mais de hum só marido. Do insino dos mossos, e moças do Bispado Tem outra cousa, que os mossos e moças da parte daquem do Douro, e assi todos os outros deste Bispado de Vossa Senhoria de sinco annos para sima todos sabem e são mui sabidos nos feitos de Deos que nom ha moço nem moça assim das aldeyas como da cidade como os que andão com o gado no monte que não saibão o Pater Noster, [e] Ave Maria, e o Credo, e a Salva Regina, e os Mandamentos, e ajudar á missa em modo que os filhos ensinão aos paes e mãis e isto no Bispado de Vossa Senhoria pellos mestres e cartilhas que Vossa Senhoria mandou poer em todas as igrejas do seu Bispado, que todolos dias á Vespora fazem vir todos os moços e moças da freguesia, e os ensinão. O qual he hũa obra mui [fl. 17v] santa que nom há pessoa que nom folgue de ver o ensino e o saber das crianças principalmente nas aldeas e nos montes onde nom sabião o Pater Noster senom des que Vossa Senhoria os mandou ensinar e Vossa Senhoria tem visto ser assim porque a sua meza os mandava vir os da cidade e termo264, e via todos como erão ensinados tão pequenas criansas, e acerca desse teor sam todos os do seu Bispado. Dos porcos Item no dito compasso podem criar cada morador dois porcos hum por outro e hua marram, e isto he o menos, porque ha muitos homens que cria cada hum déz, doze porcos, e quatro e sinco mais por menos; deito isto porque alguns não crião a dous porcos e hua marram, que somão x mil iic xxxii porcos os quais se crião no dito compasso, e v mil cto xvi marrans, são as mais saborozas carnes do Regno por serem cevados com castanha. Estes porcos os mais delles se vem a vender a esta cidade em hum mercado que se fas cada somana á segunda feira, e vendem-se desde dia de Santo Andre ate dia de Janeiro (sic), e assim vão alguns a hua feira de São Nicoláo que se fas em hum lugar que chamão Canavezes, que he daqui sete legoas, que se vendem para Entre Douro e Minho, e para a Beira, e tãobem vão porcos e marrans para a cozinha d’El Rey nosso senhor, e tãobem muitas marrans e muitos prezuntos vão para a corte e pera outros lugares.

261

Na edição da Academia, p. 585, omite-se esta palavra. Na edição da Academia, p. 586, lê-se, “18”. 263 Esta cifra poder-se-á explicar pela soma de algum dos valores que no documento aparece em branco (como Medelo ou Campo Benfeito). Se somarmos os vizinhos indicados por Rui Fernandes chegaremos à cifra de 5 099 o que, multiplicado por 5 dá um total de 25 495 habitantes, o que se aproxima bastante do número por ele indicado. 264 Na edição da Academia, p. 586, lê-se: “termos”. 262

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Item rendem os dizimos foros das novidades destas duas legoas aos prellados e senhorios della sinco contos de reis pouco mais ou menos, que tambem fica polo meudo e no265 meu poder; contando as rendas que tem o Infante Dom Fernando neste compaço o anno que as arrendou Nicolao Rodriguez que he o mor crecimento que nunca tiverão. Dos rendimentos dos portos e sizas a El Rey nosso senhor Item rende a El Rey nosso senhor as sizas e portos desta terra silicet os mercadores que vão a Castella tres contos de reis nas sobreditas duas legoas, ainda que jaa agora nom rende tanto, que diminuirão bem o terço [fl. 18] pollas rendas que Sua Alteza mandou dar em trebuto real, as outras abaterom, e os que tem os tributos todos trabalhão por se tirar delles e nom som contentes, e El Rey nosso senhor nisso perde porque hua siza de tributo dava quatro d’arredor. Porque ou todas ouverão de ser de tributo ou todas arrendadas, porque no tributo mal pollos que pouco podem, porque os poderozos pagão o que querem e alivião a que[m] querem, e o anno que o homem hé lansador he bem servido, assim que somão viiiº (?) outo (sic?266) contos o destas duas legoas; e este rendimento que digo são affora o mais que com isto se aqui recolhe de fora por ser cabeça do Almoxarifado e do Bispado. Item o almoxarife de El Rey nosso senhor quatro contos de reis267 ............................................................................. iiii ctos. Item o almoxarife [do Infante] Dom Fernando [quatro contos] . ............................................................................... iiii ctos. Item o feitor de Vossa Senhoria dous contos e trezentos mil reis ........................................................................ ii ctos iiic mil. Item: os mosteiros de São João de Tarouca e [da] Sarzeda hum Conto e duzentos mil reis ..................................................................................................................................... i cto iic mil. Item o Cabbido com o grosso ............................................................................................................................................ 268, afora Comendas de Rodes, e outras comendas e igrejas que aqui nom faço menção porque entrão na conta dos sinco contos de reis. E todo este dinheiro vai para fora tirando se he algum de alguns poucos abbades e do Cabbido porque o Dayado e Tizourado, que he do Cabbido se come fora, e assi do mosteiro de Sarzeda se come269 aqui, e todo o mais dinheiro se vai daqui para fora somente ate agora se comia nesta cidade outocentos mil reis de lonas que se fazião para El Rey nosso senhor, que saya das sizas do dito compasso e se repartia por fiadeiras, e tascadeiras, e debadeiras todo pello meudo, que hé regateiras, e panadeiras, ate os prezos nisto ganhavão de comer em debar, e almocreves em carretos, e homens pobres, que não tinhão officios aprenderão a tecelães das ditas lonas com que ate ‘gora se mantinha e este anno passado, que não ouve contrato pollas pazes de França, ficão desbaratados, e se as obras que Vossa Senhoria mandou fazer [nam foram,] muitos pereceram polla terra ser muito pobre de dinheiro, e os mais dos annos lhe levão os mantimentos para Lixboa e para outras partes. [fl. 18v]

265

Na edição da Academia, p. 587, está assim: “(...) polo meudo em meu poder”. Na edição da Academia, p. 588, não se repetem os valores. 267 Na edição da Academia, p. 588, são omitidas estas duas últimas palavras. 268 Em branco. 269 Na edição da Academia, p. 588 lê-se: “comer”. 266

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Do tratado (sic) dos bordates, fostoes, e bocachins Item ha outro tracto de El Rey nosso senhor de bordates que [se] soiaom a trazer de França, e agora se fazem nesta270 cidade e circuito, que he muito bom para a dita terra porque na dita cidade e circuito averá duas mil tecedeiras de pano de linho e [de] estopa as quais tecem aqui os ditos bordates; e esta aqui na caza da dita feitoria hum fermozo bronhidor dos bordates e [presas271] monstruozas, para ver andar, e assi ha dous pizoes, que Vossa Senhoria vio, em o qual bronhidor se fazem tãobem bocachins, e fustois como atras digo. Do citio da terra e povoradores della Item esta terra he muito montuoza pella mor parte he toda muito aproveitada, que em ella nom ha pedaço que nom seja aproveitada, principalmente para o Douro, e os homens são tão bemfeitores272 que ás fragas altas levão o cesto da terra ás costas para plantarem as parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieyras, e todo outro arvoredo e todas as estradas estão cobertas de fruiteiras, e videiras onde desde o mes de Abril ate o mes de Outubro os homens tem sempre em que deitar mão de fruitas; e hé sabido, que nestes mezes ha despeza he muito menor de pão nesta terra que em outros mezes. Há tambem muitas ervilhas e favas semeadas, que tãobem hé mantença. E os caminhantes comem de tudo isto largamente pollas estradas sem dinheiro, porque os povoadores desta terra são muito maviozos e de muito guasalhado, e dam-lhe largamente de comer do que tem, e melhor que nenhum de Alentejo, nem da Estremadura. Em este circuito não poderá homem andar, que a tiro de bêsta nom ache agoa e sombra de arvores de fruito pera comer. E por esta terra ser tão fragoza serve-se com bestas d’almocrevaria que averá bem mil e quinhentas bestas muares de carga de que a cidade hé bem servida de pescados frescos e doutras couzas como ao diante [se] dirá. E assi há muitas aves silicet roisinois, calhandras, estorninhos, melros, milheiras e outras muitas, de mui soaves e doces cantares [fl. 19] que de noute e de dia nom leixão de cantar em o V[e]rão. Das trevoadas Esta terra he muito perigoza de trevoadas principalmente no mes de Mayo, que acerta dia muito sereno em que vem toda a escuridade273 do mundo e cae mui grande pedra, pedras que sam dellas tamanhas como óvos de passara, e cai tanta274, e em tanta cantidade, que no lugar onde cae estrui todos pães dos agros, e todas arvores, e todas as vinhas, e onde acerta leva o ramo ao chão, e estas trevoadas nom vem senom no Verão, e cai com ellas muitos rayos de coriscos, que matão gente, e acerta em castinheiro que o queima até o chão, e nom dura senom hua ora, ora e meya, e quando dura duas oras he muito, e ella pasada fica o tempo sereno como que nunca chovera. E esta trevoada muitas vezes nem empece mais de hũa freguezia ou hum tiro de bêsta arredor, mas o lugar onde chega fica estroido por todo aquelle anno de todos os renovos, e muitos lavradores ficão perdidos. E estas trevoadas hé certo, que nom podem mais vir que do dia que a primeira começa ate nove dias, e está exprementado, e hé certo, e muitas vezes acertão sinco, seis trevoadas nestes nove dias.

270

Na edição da Academia, p. 589 lê-se: “na dita”. Opto por seguir aqui a lição da Academia, p. 589, em vez de “pisoas” como está no manuscrito, pois, logo de imediato, o autor refere-se a estas. 272 Na edição da Academia, p. 589, lê-se: “tambem feitores” o que se me afigura menos correcto. 273 Na edição da Academia, p. 590, lê-se: “escuridão”. 274 Na edição da Academia, p. 590, são omitidas estas três últimas palavras. 271

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Textos e documentos – Transcrição crítica

E em diversos lugares ha muito grandes navoeiros nesta terra, e Riba do Douro principalmente nesta cidade que nunca no mes de Dezembro, e parte do de Janeiro, nenhum anno erra, e hé nevoa emcerrada, que a hum jogo de barreira se nom ve hum homem ao outro. E alguns annos acerta de vir outra nevoa tão cerrada quando os trigos comessão a emgraecer. Esta nevoa acerta, que se o Douro vem barrento naquelle tempo por via das agoas de Castella se perdem todollos trigos de Riba do Douro por cazo daquella nevoa trazer o bárro do Douro e se meter no cazulo da espiga do trigo onde havia de estar o grão. E quando vem a o segar acham a espiga chea de barro sem grão, e isto nom faz mais nojo que agoas vertentes ao Douro, e isto indo o Douro barrento, porque se nom vai barrento ainda que ája nevoa nom fas nojo, e assi estroi os vinhos, e azeites. Do assento desta cidade Esta cidade comquanto hé abastada esta o assento della muito mal concertado silicet [fl. 19v] o acento das vivendas, dado que este em bom citio porque está em tres bairros: hua he a principal vivenda da Praça onde acodem todas as mercadorias e vivem os mercadores, e se fazem os mercados, e onde hé o trato todo e onde está a Audiencia, e Rollação sobr’ella, e pouzão as justiças seculares. Outro he o bairro da Sé que d’antiguidade se soia de [chamar275] o Couto da Se porque [era276] dos bispos, onde vivem os conegos, e benifficiados, e outras nobres pessoas, onde estão os Paços de Vossa Senhoria, e com o fermozo jardim, e grande terreiro, e cerco de muro que Vossa Senhoria mandou fazer, e assim com o posso e carreira, e com outras mui fermozas bemfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas, que he a melhor couza da cidade, e tãobem lhe da muita graça o rio neste bairro da Sé, e em cada parte que cavão por pouco espaço achão muita agoa, como Vossa Senhoria sabe polla agoa do seu muy fermozo Poço da Bomba que mandou abrir, onde achou dous muy grandes tornos d’agoa para o tanque. Ha outro bairro no meyo destes em mais alto aonde está a fortalleza desta cidade em que morarão cincoênta vezinhos; he muito forte, tem alguns edifficios dentro silicet hua muy grande cisterna d’aboboda de muita agoa, e hum mui alto poço, que chamão o Poço do Emgenho mui alto, que se tirou terra segundo parece de que se encheo hua torre da Rollação, e tem pera hua parte hum muy fermozo castello em que o Inffante Dom Fernando tem seu alcaide, porque elle he alcaide mór desta cidade, e dentro do dito castello estão os prezos. Este castello tem hua muy forte torre da menagem; no meyo desta torre está hua muy fermoza janella d’assento que o Conde de Marialva mandou fazer; e vindo El Rey Dom João que Deos tem, a esta cidade o conde lhe perguntou que parecia a Sua Alteza daquella janella. El Rey lhe respondeu que mais soubera quem a abrira, que quem’na mandara abrir. O Inffante da ‘alcaidaria della e as couzas necesarias para as prizois; tem muy grandes dereitos d’alcaidaria, e muita renda. Ao pé do castello estão os assougues de que o Inffante tem os dereitos que em seu [fl. 20] titulo se dirão, e de suas rendas se fazem, e repairão, e poem talhos. Dentro da cerca estão huns muy fermozos paços caidos; forão do Conde de Marialva. Do regimento dos almocreves Nesta cidade há [hum] muito bom regimento que nom ha outro tal em Portugal ácerca dos almocreves. Nesta cidade e termo avera bem cem almocreves, todos são iscriptos na Camara, e cada hum delles he repartido a dar no anno seis dias de giro cada dous mezes hum de pescado fresco, de maneira que são repartidos para cada dia de todo o anno dous almocreves, e

275 276

De acordo com a edição da Academia, p. 591. No manuscrito está “chamão”. De acordo com a edição da Academia, p. 591. No manuscrito está: “hé”. 103


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

estes hão-de trazer todos os dias pescado fresco dos portos do már que são a quinze, dezasseis, e dezoito legoas, e se nom achão fresco trazem seco e certidão como nom havia fresco, e som repartidos per todos os portos do mar, de maneira, que muitas vezes nom há [���������������������������������������������������������������������������������������������������� ����������������������������������������������������������������������������������������������������� peixe����������������������������������������������������������������������������������������������� ]���������������������������������������������������������������������������������������������� fresco no Porto, e em Matozinhos, e o temos nesta cidade de Galiza, e de Aveiro, e muita sardinha fresca, como ora temos aqui de Galiza, e no Porto a nom há, e isto he allem doutros almocreves que continuamente andam a ganhar, e quando nom tem seos giros por seu proveito o vão a buscar, porque nesta terra, como atras disse há muito sumagre, e muito vinho, e muita castanha, e muita nóz, e muito azeite que os almocreves levão aos portos de Portugal e de Galiza, e trazem retornos que nunca se acha porto de mar sem almocreve de Lamego. Os pescados que aqui vem do mar sam os seguintes: mui fermozas pescadas frescas e secas, muitos ruyvos, muitos roballos da costa, e muy grandes congros, congro de duas arrobas, pescada de vinte arrates, muitas rayas, muitos caçois, muita toninha, e lingoados, e solhas, e badejos, e muito marisco. O preço dos pescados nom ponho aqui; achar-se-há no tratado na taxa e regimento da Camara que aqui pus. Do regimento das carnes No regimento das carnes ha outro modo que nom vi em este Reino, porque aqui se cortão mui grossas carnes de bois de Bayão que levão todas as carnes de boy em sabor, que he daqui a tres legoas, e outros d’Antre Douro e Minho; a taixa [fl. 20v] destes hé a tres reis por arratel, e por provizão d’El Rey que para isso tem a cidade, para poder comer as carnes daquellas partes277 pella taxa de lá. Ha outra taixa d’El Rey nosso senhor da comarca da Beira a dezaceis ceitis o [a]rratel, e sem embargo disto nom se corta toda a este preço, ainda que seja a dezaceis seitis se nom está em alvidro dos almotaces, e a carne boa dão a dezaceis seitis, e a outra d’i para baixo segundo he a catorze septis, e a quinze, e a dezoito, digo, e a treze; e isto nom vejo em nenhua parte senom todas a hum preço as gordas e magras. Talha-se carneiro d’Outubro ate São João a tres reis e meyo o arratel, e de São João ate Outubro a tres reis. Talhão-se crestões capados a catorze ceptis e a cabra a dous reis. Nesta cidade ha dez ou doze carniceiros que todos sam obrigados na Camara darem carnes em ‘bastança, ainda que neste anno o nom fazem por nom lhe quererem dar as carnes gordas e magras todas a hum preço. Ha hi tres assougues silicet hum da cidade em que ha sete, outo carniceiros e outro do Cabbido, que tem hum carniceiro e outro dos mesteres que tem outro carniceiro. O Cabbido e mesteres tem repartidores no assougue silicet o Cabbido poem hum conego que reparte cada somana, e os mesteres hum dos vinte e quatro dos mesteres que reparte cada mes, e todavia nem hum delles nom pode repartir sem o almotace da cidade lhe ir poer o preço das carnes. As mais couzas do regimento desta cidade nom falo aqui porque vão adiante no titulo das taxas e regimento desta cidade. Os cidadãos della os mais são de antigo genero e de boa linhagem, e delles fidalgos, que tem renda e vivem por suas lavranças ao modo dos antigos Romãos. Os quais renovos são os que neste tratado digo e nom duvido que alguns homens baixos se metem ás vezes por almotaces por aderencia o que em todas partes já vejo fazer. [fl. 21] [Donde a cidade tem o nome] Esta cidade dizem os antigos que se chama Lamego por em ella aver hua arvore no castello a que chamão Lamegueiro, e certamente bem o demo[n]stra pollas armas delle que são hum lamegueiro metido em hum castello, e doutra parte o Sol,

277

Na edição da Academia, p. 593, lê-se: “daquella parte”.

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Textos e documentos – Transcrição crítica

e doutra a Lua com humas estrellas. As mais couzas delle sam feitas de mouros, e tem alguns nomes aravicos como he hua igreja nesta cidade a que chamão Almacave que he nome aravico, e ha muitos edificios antigos em quintas de redor mouriscos. [Sam Domingos de Queimada] Ha em esta cidade a hua legoa hua igreja mui nobre que vem a ser278 a Ermida de São Domingos de mui fermozo talho de pedra em hum muy alto monte donde se ve muita parte de formoza terra. A qual ermida dizem que mandou fazer El Rey Dom João, que Deus tem, o segundo deste nome. He de muitos millagres. Ha hi pessoas que nom podem aver filhos, e a elle veo El Rey Dom Affonso antes que ouvece o Principe Dom João, e depois veyo El Rey Dom João antes que ouvece o Principe Dom Affonso, e assim vem muito grandes senhores. [Tem279] muitos votos nas outavas do Sancto Espirito, principalmente desta cidade, que cada rey que reyna dá hua bandeira das armas da cidade com hua muy fermoza batalha. Vão la com todos os moradores da cidade, ainda que previlligiados sejão, muita gente de cavallo e muita de pé. Lá tinhão hum grande jantar que ora se tirou polla Ordenação; vai o Cabbido, e raçoeiros d’Almacave, e frades onde todos tem renda para esse280 dia comerem, e assim vão de todos os concelhos a duas e tres legoas deste circuito cada hum a seu voto. [Foros do Infante] Hum so erro contarei deste circuito, que he muito foreiro per muitas partes, silicet ho281 Inffante Dom Fernando tem muita parte nesta cidade, que não acharão homem de raiz em ella que nom seja seu foreiro, e tem muitos direitos d’alcaidaria; tem seis arrates de carne de direito de todo boy ou vaca que em esta cidade ou termo se matar, e isto de tempo antigo, e per foral erão nove costas de cada boy ou vaca de hua mão [fl. 21v] travessa e isto da augagem282, e se concertarão que focem seis arrates de carne de qualquer parte ou logar do boy o pedisem283; e a custa das rendas do Infante se fazem os assougues e talhos na cidade. Tem mais Sua Alteza de renda no termo desta cidade silicet em Arneiros, os Chãos, Penude, Assucres, a Povoa hua apósta284 de carne de porco, so[y]a de ser grande, agora são onze ceptis; estes pagão este foro sem nenhua couza que pertença ao Infante somente he dereito real; tem mais de hum lugar que chamão Lamellas de foro antigo hua trava de codesso pera travar a mulla; tem mais de hum lugar a que chamão Cazal de Nabo hum magusto de castanha, hum pichel d’agoa da vea da Ribeira de Baroza que he hũa legoa e meya. Estes antigos foros dizem muitos que foi de hua grande vinha que hum senhor pos onde chamão o Morgado perto desta cidade que he seu, e que lhe trouxerão serviços que dipois ficarão por fóros. Tem mais de dereitos o seu alcaide de todo o sangue sobre os olhos silicet do olho para cima vc reis; tem mais de cada inchaço ou pizadura que algua pessoa fezer a outra, de cada pulgada cento e quarenta reis, e hua vara de bragal. Tem mais o dito Infante relego no mes de Agosto que outra pessoa nom pode vender vinho senom os seos rendeiros; tem mais ‘apresentação do mordomo da vara o que faz as execussois das sentenças que285 serve nas audiencias, e assim tem a dada dos dereitos reaes silicet do juis.

278

“Comvem a saber”, de acordo com a edição da Academia, p. 595. De acordo com a edição da Academia, p. 595; no manuscrito está “Vem”. 280 Emendada esta palavra. 281 Emendada esta palavra. 282 Assim nas duas versões. Sic?, por “açougagem”? 283 Na edição da Academia, p. 596, esta frase é assim: “de qual lugar do boi o pedissem”. 284 Na edição da Academia, p. 596, lê-se: “posta”. 285 Na edição da Academia, p. 596, lê-se: “e”. 279

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Da feira de Santa Marinha] Em esta cidade se fazia antigamente hua feira per Santa Marinha em o mes de Julho que durava quinze dias, onde vinhão muitos mouros d’Arevollo, e de Gra[na]da, os quais trazião esp[e]cearia donde se bastecia todo Regno, por entom nom aver ainda tracto da India, e pollas grandes sizas se dezfez; e agora que a cidade tem a siza em trebuto a tornou a reformar em que se fes hum anno, e levava bom comesso, e os da Guarda por dizerem que se lhes danava sua feira [fl. 22] ouverão hum alvara d’El Rey nosso senhor que esta feira se nom fezece, e pollos officiaes daquelle anno nom acudirem a requerer a justiça da cidade se dezfez a dita feira, e que Vossa Senhoria devia reformar por ser nobrecimento da terra, porque esta feira era do melhor citio da terra por todallas mercadorias aver neste compasso. Estas duas legoas deste compasso hé a mais sadia terra e dos mais excelentes ares que ha no Regno tirando o Pezo que hé na barca da Regoa, que hé terra muito doentia e tem os ares carregados, e as agoas muito mas polla terra ser de qualidade da terra d’Alemtéjo. O mais compasso da terra he muito são de mui poucas febres e de poucas maleitas, e des que os Judeos de Castella entrarão em Portugal, que então forom mui grandes pestellenças, nunca mais ouve peste. Os homens desta terra nom sam sobejamente muito286 ricos como em outras partes, nem ha muito grossa fazenda de tratantes polla terra ser pobre de trato. E nas couzas de trato, que hé seda, pano, fitas, retrós, couramas, e panos de Castella, qualquer alfayate ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil reis logo se fazem mercadores, e para estes he milhor o trato da terra que para os homens de fazenda grossa pollas mercadorias serem meudas; porque como hum mercador a que tem dous, tres mil cruzados parece que he mais rico que em outra parte [com287] quinze, vinte mil cruzados e nom duvido porque nesta terra valem mais duzentos mil reis que em outra parte quatrocentos mil reis. Todas pessoas, e assim mercadores são bem reigados de campos, vinhas, soutos, ollivais e assi outras erdades mais que em outras partes. E o homem pobre que aqui nom tem cazal he mais pobre que em nenhua parte porque nom tem mais que dez reis de jornal, e comer, e beber; e qualquer que tem hum cazal por pequeno que seja se mantem muito bem porque colhe de todos os renovos silicet pão e vinho, azeite, castanha, sumagre, e de todos outros legumes [fl. 22v] e fruitos. E a gente desta terra he da milhor conversasão e amizade que em todo este Regno se possa achar. E assim vem aqui estrangeiro que como esta aqui dous mezes logo se nom dezeja de tornar, e isto pella conversassão da gente como pellos viços da terra. E pera Vossa Senhoria saber o regimento e taxa dos preços dos fruitos288 e serviços da cidade o pus aqui tirado dos acordos da Camara ainda que seja preluxo, e porem por me parecer que a dita taxa fazia ao cazo, e tãobem para Vossa Senhoria o ver o mandei aqui tresladar e he o seguinte.

286

“Muitos” na edição da Academia, p. 597. No manuscrito está a palavra “tem”. 288 Na edição da Academia, p. 598, lê-se: “mantimentos”, o que talvez seja mais correcto. 287

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Traslado da taxa que aprovarão o juis e offeciais este anno de mil quinhentos e trinta Item primeiramente sapateiros e couzas que a seu officio pertencem Item hum couro em cabello de dezaceis arrobas ate dezoito não passara de .......................................................................................................................................................... viic reis. Item o[s] de doze arrobas ate treze nom passarão de ................................................................................................. vic reis. Item de nove arrobas ate dez e ate doze nom passarão de ........................................................................................... vc reis. Item couros de bois, vacas de sete ate outo arrobas, e ate nove nom passarão de . ............................................................................................................................................ iiiic reis. Item os que fizerem tamoeyros nom poderão vender cada tamoeyro mais que ate [trinta reis] ....................................................................................................................... trinta reis. Item sendo os primeiros quatro tamoeyros de lombo nom passarão de . ........................................................................................................................................................... xxxv reis. Item se os quizerem levar para fora da cidade e termo o farão a saber a hum almotace que com hum procurador dos mesteres lhes vão quartejar os ditos tamoeyros e leixarão hum quarto em a terra para se venderem polla dita taxa e os tres quartos levarão onde quizerem. Item hua duzia de pelles de machos cortidas nom passarão289 de ....................................................................... mil iiiic reis. Item hua duzia de cou[ro] mayor, nom sendo machos nom passarão290 de mil reis............................................................................................................................................. mil [reis.] Item hua duzia de couro redondo nom passarão de ................................................................................................. viiic reis. [fl. 23] Item qualquer pessoa, assim cortidor como tratante de courama nom a poderão tirar para fora até o fazer a saber aos sapateiros se lhos querem comprar ou nom, e nom lho querendo comprar o fará saber a hum dos almotaces e a hum procurador dos mesteres para que lho vão ver e quartejar, o qual quarto ficará na terra tres mezes, e os trez quartos levará para onde quizer. O que todo ficara per receita feita pello escrivão da almotaçaria ou da Camara as custas do dono do couro. Titullo dos pressos das obras do dito cordavão Item brozeguins pretos de couro dos machos nom passarão de . ........................................................................................................................................................ cto Rta reis. Item doutro couro mayor nom sendo macho nom passarão de . ......................................................................................................................................................... cto xx reis. Item borzeguins doutro couro rendondo nom passarão de cento e dez reis [................................................................................................................................................. cto X reis] sendo estes borzeguins de qualquer cor outra291 tirando bayo levara mais por cada par des reis292. Item sapatos de bom cordavão de dez pontos ate

289

Na edição da Academia, p. 599, lê-se: “pasará”. Ver nota anterior. 291 Emendadas estas duas últimas palavras. 292 Na edição da Academia, p. 599, repete, no fim deste registo, a cifra “110 reis”. 290

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

doze nom passarão de ............................................................................................................................................... Lta reis. Item sendo os ditos sapatos ou gazpaz ou qualquer outra obra mais pequena, e de mossos, o juis dos officiais o mandara pagar a respeito dos preços acima ditos avendo deferença antre os oficiais e as partes. Item tropilargos bem feitos com circos bem fortes de vaca, e bem furados, e bem acabados, de dez, nove ate doze pontos não passarão de ......................................................................................................................................................... cto reis. Item pantufos de homem até . ................................................................................................................................. L xxx reis. Item chapins de homem nom passarão de ............................................................................................................... L xx reis. Item botinnas de bom cordavão nom passarão de L xv reis as melhores que poderem ser e nom sendo tam boas ...... L x reis. Item chapins de molher ate quatro dedos d’altura nom passarão de .................................................................................................................................................... L xxx reis. Item cervilhas boas de cordavão nom passarão de .................................................................................................... xx reis. Item solas na mão da primeira fiada do lombo nom passarão de des pontos ate doze de ........................................................................................................................................ xviii reis. [fl. 23v] Item dahi para baixo segundo os pontos e a sollaria for. Item de lansar as ditas sollas poendo o sapateiro o fio não levará [mais de] ................................................................................................................................................... vi reis. Item nenhuns sapatos de vaca sendo boa de dez pontos ate doze nom passarão de sincoenta reis ........................................................................................................................ Lta reis. Item de outo, nove pontos nom passarão de .............................................................................................................. Rta reis. Item cabeças de vaca de dez ate doze pontos nom passarão de ..................................................................................................................................................... Rta v reis. Item ilhargas293 de boa vaca boas e largas, que dem empenha inteira nom passarão de cento outenta reis e dahi para baixo segundo for ....................................................................................................................................................... ctº L xxx reis. Item huas muito boas botas de machos não passarão de ..................................................................................................................................................... iic Rta reis sendo de cor, e de dez ate doze pontos. Item botas de couro mayor nom sendo machos do dito tamanho nom pasarão de duzentos e dez reis ..................................................................................................... iic x reis sendo de cor. Item couro mais baixo redondo nom passarão de . ............................................................................................... cto L x reis. Sendo todas estas botas solladas e sobressoladas com seos tacois de dentro, segundo costume. Item sendo as ditas botas pretas levarão menos dez reis por cada par sendo tamanho, e assim sendo as ditas botas mais pequenas ficara em alvidro do juis dos offeciais como ja hé dito. Titulo dos alfayates Item de calsas de pear <forradas> sendo finas, nom levarom mais de ........................................................................................................................................................ Rta reis.

293

Na edição da Academia, p. 600, lê-se: “Bilhargas”.

108


Textos e documentos – Transcrição crítica

Item de huas calsas por forrar ................................................................................................................................... xx reis. Item huas calsas forradas de pano de Castella ......................................................................................................... xxx reis. Item hum gibão de seda de dous forros bem acabado . ........................................................................................................................................................... L x reis. Item sendo de sollia .................................................................................................................................................. Lta reis. Item sendo de panno ou [de] fustão . ......................................................................................................................... Rta reis. Item hum pellote chão de homem .............................................................................................................................. Rta reis. Item sendo barrado de dentro e de redor e meyas mangas .......................................................................................................................................... Lta reis. [fl. 24] Item pellote de homem cortado de hua pestana ......................................................................................................... L x reis. Item se for de duas pestanas . ................................................................................................................................. L xxx reis. Item hua chamara pregada bem feita ........................................................................................................................ L x reis. Item sendo cada hum destes pellotes chamarra de solia, tafetá ou chamallote levarão . .................................................................................................................. cto294 reis. Item hum tabardo de pano fino tuzado ou frizado levarão ......................................................................................................................................................... L x reis. Item sendo de pano de Castella ................................................................................................................................. Lta reis. Item hua loba fina tuzada ou frizada ......................................................................................................................... Lta reis. Item nom sendo fina .................................................................................................................................................. Rta reis. Item hum capuz pello mesmo preço de ...................................................................................................................... Rta reis. Item capinhas e manteos finos ou quaisquer outros .................................................................................................. xxx reis. Item gibois com hum debrum ou com hua barra . ...................................................................................................... Lta reis. Item sendo chãos . ..................................................................................................................................................... Rta reis. Item caza e botão lavrados de seda ............................................................................................................................. iii reis. Item hum âbéto fino .................................................................................................................................................. Lta reis. Item sendo de Castella .............................................................................................................................................. Rta reis. Item sendo de solia ou chamalote . ............................................................................................................................. cto reis. Item hua faldrilha barrada de seda com forro per baixo, e com hum debrum per sima da barra della . ............................................................................................................. Lta reis. Item sendo fina e cham . ............................................................................................................................................ xxx reis. Item sendo de pano de Castella .................................................................................................................................. xx reis. Item de hum sainho fino ............................................................................................................................................. xx reis. Item nam sendo de pano fino ...................................................................................................................................... xv reis. Item sendo de hum debrum e de hum forro ................................................................................................................ Rta reis. Item hum cos com mangas ......................................................................................................................................... xx reis. Item mantilhina de hum debrum . ................................................................................................................................. x reis. Item hua verdugada de des295 verdugos .................................................................................................................. L xxx reis. Item nom sendo mais que seis ‘te sete verdugos ........................................................................................................ L x reis.

294 295

Emendada esta cifra. Na edição da Academia, p. 602, regista-se: “9”. 109


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item sendo estas faldrilhas de chamalote cem reis ..................................................................................................... cto reis. Item hum mogi fino de homem ou de molher ............................................................................................................. Rta reis. Item sendo de panno de Castella ............................................................................................................................... xxx reis. Item de hum capello para clerigo . ............................................................................................................................... x reis. Item das obras de moços e de servos e doutras quaisquer pessoas aqui nom declaradas avendo deferensa entre os offeciais e os donos das obras serão alvitradas per o juis dos offeciais, os quais as julgarão avendo respeito as obras assima declaradas. Titulo dos tozadores Item de tuzar todo o panno de Castella frisado do avesso por covado ................................................................................................................................................................... ii reis. [fl. 24v] Item de panno da serra per vara ........................................................................................................................ i real e meo. Item de frizar pano de Castela ................................................................................................................................. iiiiº reis. Item de frizar arbim e contray por cada covado ......................................................................................................... . vi reis. Item de tozar contrai, meynim296 e outro semelhante pano por covado ........................................................................................................................................................ vii reis. Item de tozar o covado de londres297 ou hipre ........................................................................................................... iiiiº reis. Titulo dos carpinteiros Item carpinteiros d’obra limpa desd’a Paschoa ate o Intruido nom levarão por dia mais de ....................................................................................................................... xxv reis. Item de Novembro ate per todo Fevereiro nom levarão mais que ................................................................................................................................................ xx reis. Item sendo mestres de obra mais . ................................................ v reis por dia em cada hum dos ditos tempos assima ditos. Item outros carpinteiros que nom sabem mays que d’eixó e machado levarão menos por dia ..................................................................................................................... v reis. Titulo dos pedreiros Item os pedreiros se pagará pello modo, e preços dos carpinteiros atras dito. Item jornalleiros servidores de officiais, desde Março ate São Miguel a xii [reis] por dia, e andarão de sol a sol, e nom vindo as horas ser-lhe-ha descontado soldo a livra ........................................................................................................................... xii reis. Item desde Outubro ate [per todo298] Fevereiro levarão a . .................................................................................................................................................................... x reis.

296

Na edição da Academia, p. 603, está “contraimeinym”, o que não me parece correcto. Na edição da Academia, p. 603, certamente por gralha, está “lombres”. 298 De acordo com a edição da Academia, p. 603, o que se me afigura mais correcto; no manuscrito está: “ate perto de”. 297

110


Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo da lenha e carvão Item carrega de lenha de azemella de carvalho rachado sendo boa nom passara de ........................................................................................................................ xii [reis.] [Item] e sendo carvalho redondo ................................................................................................................................. x reis. Item carga de carvalho d’asno [oito reis] ................................................................................................................. viii reis. [Item] e sendo doutra qualquer lenha ......................................................................................................................... vi reis. E estes preços se levarão des o mes de Outubro ate [per todo299] mes de Março, e desde Abril ate [per todo300] Setembro levarão menos dous reis per carrega. Titulo dos cardoeiros digo carvoeyros Item carga de [mu301], e rocim de tres sacos cada carrega de sinco alqueires cada saco nom levarão mais por elles que ................................................................................. xviii reis. [Item] sendo no Inverno scillicet d’Outubro ate [per todo o302] mes de Fevereiro levarão por cada hũa das ditas cargas .................................................................................................................................................. xxiiii [reis]. [fl. 25] Item sendo d’asnos, em estes quatro mezes a xx [reis] per carga sendo de tres sacos, sendo os sacos mais pequenos ........ xx [reis]. Item em o Verão a xv [reis] por carga d’asno de tres sacos sendo mais pequenos que os de sinco alqueires . .......... [xv reis]. Titulo dos ferradores Item de hũa ferradura cavalar polla lansar ................................................................................................. viii [reis] e meo. Item bestas muares de quatro craveiras ........................................................................................................ vii [reis] e meo. Item ferraduras [asnaes303] de tres craveiras .............................................................................................................. vi reis. Item cravos lansados arcal ....................................................................................................................................... iiii reis. E destes preços nom passarão nem hum.

Titulo dos ferreiros Item hua eixada nova bem feita e fornida ............................................................................................................. L xv [reis]. Item de calsar a dita eixada [até o olho304] ........................................................................................................... xxx[v reis]. Item de huas agriaes ............................................................................................................................................ xxxv [reis].

299

Ver nota anterior; neste caso, segui a lição da Academia, p. 604. Ver nota anterior. 301 De acordo com a edição da Academia, p. 604, que me parece mais de acordo com as expressões usadas na época; no manuscrito está: “mulo”. 302 Ver notas 171 e 172. 303 De acordo com a edição da Academia, p. 604; no manuscrito está “ásnas”. 304 De acordo com a edição da Academia, p. 604; no manuscrito está “a trolho”, o que me parece ser incorrecto. 300

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item de calço d’aceiro . .............................................................................................................................................. xx reis. Item sendo d’escumalho ........................................................................................................................................ xvi [reis]. Item de hum eixadão bem feito ............................................................................................................................... L xxx reis. Item o mais pello preço das eixadas. Item hum ferro d’arado ........................................................................................................................................... Rta v reis. Item das agriaes . ...................................................................................................................................................... xxv reis. Item do calço . ......................................................................................................................................................... xv [reis]. Item pregos caibrays silicet o cento a real o par . .............................................................................................................................................................. Lta reis. Item pregos tavoares nom passarão o cento sendo bons de . .......................................................................................................................................................... xxx reis. Item pregos fayares o cento . .................................................................................................................................. xxiiii reis. Item pregos coitares o cto a cem305 ........................................................................................................................... cto [reis]. E destes preços nom passarão. Titulo das pessoas que vendem pescado Item toda a pessoa que vender peixota a nom podera vender senom a pezo, e nom passara o arratel da seca de ......................................................................................... x [reis]. E sendo a dita peixota de molho nom passara o arratel de ............................................................................................................................................................... viii reis. Item as pessoas que tiverem tavernas poderão somente vender em suas tavernas aos reais as pessoas que em suas cazas e tavernas derem306 comer e a quizerem [comprar], que primeiro307 e todavia serão obrigados a venderem por [peso308] as pessoas que lho pedirem. Item o arratel do ruivo seco nom passara de seis reis [o arratel] ................................................................................................................................................. vi reis. Item todo o savel fresco se nom podera vender senom a pezo, o qual nom passará o arratel de outo reis e dahi para baixo segundo for o tempo, o qual sera almoteçado [fl. 25v] porque os de outo reis se entendera nos primeiros .................................................................................................... viii reis. Item savel seco salgado nom passara o arratel de vi reis ....................................................................................................................................................... vi reis. Item lampreas por boas que sejão nom passará de quarenta reis, e dahi para baixo segundo forem e segundo o tempo . ................................................................................................................................................... Rta reis. Item marisco silicet meixilhões xxiiii ao real, carangueijos por xv a real, brig[u]igois quarenta a real.

305

Na edição da Academia, p. 605, são omitidas estas duas últimas palavras. Na edição da Academia, p. 605, lê-se: “fforem”. 307 Na edição da Academia, p. 605, são omitidas estas duas últimas palavras. 308 De acordo com a edição da Academia, p. 605, o que me parece ser mais correcto; no manuscrito está “preço”. 306

112


Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo dos olleyros Item hum cantaro d’alqueire e meo ate dois alqueires nom passará de . ........................................................................................................................................ viii reis. Item pucaro ou cantaro que leve hum alqueire nom passara de .............................................................................................................................................. v reis. Item de meo alqueire ......................................................................................................................................... iii reis e meo. Item de hua can[a]da ................................................................................................................................................... ii reis. E dahi para baixo segundo for hum real . ..................................................................................................................... i real. Item trinchos, tigellas nom passarão de [cinquo ceitis] ............................................................................................. v ceitis. Item servidores e fugareiros ...................................................................................................................................... viii reis. E toda esta obra sera de muito309 bom barro e bem cozido e nom sendo bem cozida se perderá ametade para [a] cidade e [a] outra para os prezos pobres. Titulo dos lavradores Item hum homem com hũa junta de bois por hum dia nom levara mais que . ................................................................................................................................ xx [reis]. Item trazendo carro por dia .................................................................................................................................. xxv [reis]. Item hua carrada de pedra de São Martinho do Monte levara ......................................................................................................................................................... xx reis. Item sendo da Pêgada para baixo ................................................................................................................................ x reis. Item de Rio d’Asnos .................................................................................................................................................. viii reis. Item dahi para baixo serão as carradas da dita pedra segundo a distancia da terra. Titulo dos barbeiros Item levarão de guarnecer hua espada silicet alimpa-la e invernizar cabos e punho e bem acabada ............................................................................................... L x reis. Item de guarnecer hua espada nova em preto com sua bainha e bem acabada de todo . .......................................................................................................................... LR reis. Titulo das candeeiras Item toda a pessoa que vender candeas de sevo [fl. 26] farão candeas silicet des o primeiro dia de Mayo ate Natal pezará o arratel das ditas candeas lavradas xx candeas por aratel que são x reis, e desde Natal ate Mayo pezara o arratel das candeas lavradas vinte e quatro candeas que são a doze reis por arratel, as quais candeas teram os pavios bem cozidos e de seis fios.

309

Emendada esta palavra. 113


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Titulo dos farellos Item o alqueire dos farellos trigos nom passará de ...................................................................................................... x reis. Item sendo centeos que nom passara de ................................................................................................................. viii [reis]. Item hum par de boas galinhas . ........................................................................................................................ xxxiiii [reis]. Item hum par de perdizes ...................................................................................................................................... xiiii [reis]. Item hum par de coelhos ate . ....................................................................................................................................... x reis. Item hum boom cabrito nom passara de [cincoenta reis] .......................................................................................... Lta reis. Item quem o vender aos quartos nom passara o quarto sendo bom de ................................................................................................................................................. x reis. Item toda a pessoa que vender ovos dara sinco por . .................................................................................................... ii reis. Item qualquer ofecial que quizer poer310 tenda novamente nom a poderá poer sem primeiro ser examinado pollo juis311 dos offeciais de seu officio e os ditos examinadores levarão por fazerem o dito exame cem reis silicet ametade para a cidade e a outra para elles . ...................................................................................................................................................... [C reis]. Item hum muito bom [pato312] vivo nom passara de .................................................................................................. Rta reis. Item sendo depenado sem cabedella nom passará de ...................................................................................................................................................... xxxii reis. Item valle nesta cidade hum arratel de peixota fresca, ou ruyvo, ou congro, sinco, seis reis o arratel. Item o arratel de raya, ou cação, ou toninha fresca a tres, e a quatro reis. Item o cambo dos lingoados, de outo, nove, e dez lingoados a dez, e a doze reis. As quais taxas assima escritas se guardão nesta cidade. Esta cidade sempre hé abastada de muito pão e de muitas partes se socorrem della posto, que he de carretto, de sinco, seis, sete, outo, des legoas porque esta entre tres comarcas silicet a comarca da Beira, a d’Antre Douro e Minho, e Traslos Montes. E acerta nom aver pão [em] Entre Douro e Minho silicet quando se acabão os milhos, a mór parte d’Antre Douro, e Minho come desta praça de pão da Beira e Traslos Montes, que aqui vem a hum antigo e fermozo mercado muy abastado que se aqui faz cada segunda feira; e alguns annos nom há pão na Beira e ha muitos milhos [em] Antre Douro e Minho, e os da Beira vem comprar a esta cidade o milho [fl. 26v] que vem d’Antre Douro e Minho, e assim Traslos Montes. E tambem vem comprar azeites e frutas temporans de maneira que a mor parte desta cidade digo, de maneira que nesta cidade a mor parte do pão destas tres comarcas e nella são seos contratos por onde está sempre bem abastecida. E o porto desta comarca he a mor parte de sua mantença porque he em barcas. Depois de ter feito este tratado travalhey por saber quem tomou esta cidade ou como foi avida, e por ter por novas que certos cavalleiros que morrerão na tomada della jazião no mosteiro da Salzeda fui ao dito mosteiro e me mostrarão o cartorio onde achei em hum livro de porgaminho em Latim como fora tomada aos mouros; e porque em partes se não podia ler estava tresladada em lingoagem, e segundo me parece foi povorada por Esturiannos como Vossa Senhoria vera em esta folha que do livro treladei na verdade como a achei a qual hé a seguinte.

310

Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 608, lê-se: “pollos Juizes”. 312 De acordo com a edição da Academia, p. 608; no manuscrito está “porco”. 311

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo de quem tomou esta cidade In nomine Domini Amem. Quem quizer saber donde esta terra foi tomada que era toda de mouros do Douro a quem filhou-a o Conde Dom Henrique com Exche Martim que era mouro, e era Rey de Lamego e desta terra toda, [e] fes-se313 christão, e veo com Dom Henrique cavaleiro e com outros muitos ricos homens que vierão das Esturias. Era hum Egas Monis, que se ve foi cazado com Meanna Donna Tareija que fes a Salzeda. E Dom Anrique por se filhar melhor com os mouros leixou-lhes aver quanto filhavam e coutava-lho. [Como se fez o Couto de Liomil] E assim314 fez a Dom Garcia Rodrigues e a Dom Payam seu irmão, que lhes coutou o Couto de Loimil, que filharão a mouros. Dom Egas Monis quando filhou esta terra aqui toda logo povoou a315 Bertiande e fes hi hua quinta e morada e capella em que lhe cantavão missa. E dali moveu a Salzeda Meana Donna Tareja na Abadia Velha e vio ca seria melhor ali hum mosteiro digo ali hu esta e levou alaá hum cavaleiro que avia nome Pay Cortes e veo com Egas Monis que era seu vassallo e seu monteiro e com Donna Meana andava hua donzella que [fl. 27] chamavão Donna Eixemia e cazarão-nos ambos; e [hu316] agora he Gouviaes era mata de porcos e de corsos, e aquelle monteiro de Dom Egas Monis matou hum porco, ali hu esta a fonte, e levou-lho e pedio-lhe aquelle lugar em que fizese hua quinta para si e para sua geração, e rogou-lhe que a coutasse e honrasse, e deu-lha, como parte pollo Outeiro da Fraga e des hi pollo rio ampro abaixo, como parte com a Salzeda, e sem317 hi cruzes e s’e hua sobre a ponte da Cucanha, e dahi como parte polla Relva como parte pollo rio ampro, e desi como se vai polla vinha de Miguel Ramires, e desi como se vai derreito per sob os Outeiros, e dali como se vai ao Lameiro Redondo, e desi per hi anfesto como se vai per ali a Santa Maria da Correga [e de Santa Maria da Correga] direito pollo Outeiro da Fraga que esta sobre o rio. Dom Pay Cortes sendo naquella quinta que fez, fez em ella tres filhos cavalleiros e hua filha que se ve cazada em Villa Seca donde sairão dous filhos, Maria Paes e Miguel Paes; daqueles tres filhos que fes Pay Cortes foi hum Ruy Paes, e de Ruy Paes sahio Maria Rodrigues, e de Maria Rodrigues sahio Affonso Martins e seos irmãos; outro irmão avia nome Men Paes, e de Men Paes saio Men Mendes, e de Men Mendes saio Soeyro Mendes e foi cazado em Rabello com Donna Boa Fernandez. De Boa Fernandes saio Pero Soares abbade de Valadares e Maria Soares de Gouviaez donde saio esta geração que hi ha, Tareja Soares madre de Caterina Rodriguez de Rabêllo, de Egas Paes filho de Pay Cortes e saio Gonçalo Viegas; de Gonçalo Viegas saio Sancha Gonçalves e Pero Gonsalves, e Ruy Gonçalves, e Domingos Gonçalves, o que matarão, e outras geraçois, que delles descenderão. E Villa Meam era da honra de Gouvyaens e demandava Gonçalo Gonçalves por sua e ouverão sobre ella concelho, e vierão a peleijar, e morrerão muitos, e ficou Villa Meam aos de Gouviães, e quando partirão os filhos de Pay Cortes em Gouviães ficarão hi dous, e hum em Villa Meam, e daqui sahio esta linhagem de Dona Caterina de Pinhel.

313

Na edição da Academia, cit., p. 609, lê-se: “fizesse”. Na edição da Academia, p. 609, lê-se: “Cási”, que significará “Cá assim”? 315 Na edição da Academia, p. 609, a frase é assim: “povoou logo a”. 316 De acordo com a edição da Academia, p. 609, o que me parece mais de acordo com as expressões usadas na época; no manuscrito está “hum”. 317 Assim nas duas versões. Sic? Por “tem”? 314

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Os quaes Dom Payam e os outros cavalleiros aqui nomeados com outros jazem enterrados no dito mosteiro da parte de fora a mão esquerda onde esteve hua cappella com hum alpendre, e no chão da dita capella jazem318 os ditos cavalleiros; e me parece que os Dom Abbades [fl. 27v] passados desfizerão a cappella e agora está hum mato sobre suas sepulturas, e na parede da igreja esta a sepultura de Donna Tareja que era na dita cappella em a qual sepultura está este letreiro em Latim, que se segue, e a ossada sua se mudou ao mosteiro: Hoc loco latet hec cujus per secula latere fama nequit sollita perpetuare bonus fama mori claros nec morte sunt319, sed et ipsa claro320 que321 meritis vivere semper habet multis domina modis juvit Tarasia famas sanguine progenie moribus ac opere, ex ducibus sanguis sobeles clarissima Regni absque nota mores est opus. Ista domus de bis sex centis et denis monade de[m]pta inveniens eras que sepelevit heras. Ha mais neste circuito dois mosteiros de São Francisco, hum craustal nesta cidade, que não acho quem o mandou fazer, outro d’oservancia322 em Ferreirim a hua legoa desta cidade que Dom Francisco Coutinho conde de Marialva, que Deos tem, mandou fazer em huns seos paços onde esta hua sepultura para se meter sua ossada e o Infante Dom [Fernando323] o manda ora acabar. [Madeira] Ha mais neste circuito muita madeira de castanho e [a mais] fermoza324 que ha em todo o Reyno e a mor parte della se carrega para Lisboa e para outras partes; ha tavoado que he mais fermozo que bordo, e val hua duzia de tavoado de doze palmos em comprido e dous [em325] largo, cento [e] sincoenta, cento [e] secenta reis. Ha muitos e mui fermozos mastros de castinheiros de quinze, dezasseis e dezacete braças que estão onde se podem carregar no Douro para o Porto e dahi para outras partes, e os que estão mais ao sertão se fas delles madeira, e há muito tavoado de quatro, sinco palmos [em326] largo. De hum monstruo Hua couza monstruoza determinei aqui

318

Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “securit”. 320 Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “clarorum”. 321 Na edição da Academia, p. 611, é omitida esta palavra. 322 Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “de sorvancia”. 323 De acordo com a versão da Academia, p. 611; no manuscrito está “Francisco”. 324 Na versão da Academia, p. 611, esta frase é diferente: “Ha mais neste cercohito a mais madeira de castanho, e fermosa ...”. 325 De acordo com a edição da Academia, p. 611, que se me afigura mais correcto; no manuscrito está “de”. 326 Ver nota anterior. 319

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 28] de assentar ainda que seja fora da sustancia do tratado, e he que a doze dias do mes de Mayo deste anno de mil quinhentos [e] trinta e dous naceo a Vasco Cardozo, fidalgo de que atras fasso menção do Morgado de Cardozo, pario hua sua vaca hum bezerro de hum corpo, e hum muito groso pescoço com duas cabeças, e cada cabeça duas orelhas, e hua boca, e duas lingoas, hua dellas tinha dous olhos, e a outra hum só olho na testa. Ao nacimento naceo as ‘vessas, e naceo embarrada nas cabeças; naceo morto; a vaca ouvera de morrer. A qual pelle do monstruo mando a Vossa Senhoria com este tratado. As couzas conteudas neste tratado som muy verdadeiras, somente das fontes, e filhos, e povoadores, e porcos, e outras couzas que por conta não podia tirar vão postas antes em menos soma que [em] mais, e assi a sepultura de Donna Mafalda, que digo estar em Villa Boa do Bispo, outros dizem que a ossada esta no Mosteiro d’Arouca, della nom som bem certeficado [e] por ser fora do compas de duas legoas a nom fui ver como estas outras sepulturas. Quanto ao vinho e azeite que parecera pouca soma he porque ametade deste compas nom da azeite como nas igrejas vera Vossa Senhoria e o terço delle nom dá vinho nem legumes portanto he mais do que parece por se dar em so hũa legoa, e o pão, e vinho e azeite, crea Vossa Senhoria que pode ser mais hum terço por ser contado por dizimos. Laus Deo.

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ApĂŞndice documental


Documento 1

1529. Outubro. 25. S/l [Lamego?] - Mandado do contador Diogo Borges de Castro aos recebedores das sisas de Lamego e Viseu, para que paguem a Rui Fernandes, tratador das lonas de Lamego, aquilo que lhe é devido de pagamentos já vencidos. Torre do Tombo – Corpo Cronológico, parte II, maço 159, doc. 67 Recebedores das sysas desta cidade de Lameguo e seus ramos asy aos do ano pasado de Vc XXVIII como do presemte de Vc XXIX Dieguo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu comtador nos allmoxarifados de Vyseu e Lameguo etc. Vos faço saber que por parte de Ruy Fernandez tratador das lonas me foy apresemtado huum allvara d’El Rey noso senhor per que me manda que demandasse327 ao dito Ruy Fernandez conta do recebymento que recebeo dos anos pasados de Vc XXVI, XXVII e fyamça pera os anos de XXVIII e vymte e nove o leixase receber o remdymento das sysas da dita cidade e ramos os ditos anos de Vc XXVIII e XXIX pera fazer cumprimento das lonas que he obrigado a Sua Allteza. E porquanto o dito Ruy Fernandez tem satisfeito com a dita comta e fyamça segundo forma do dito alvara de Sua Alteza vos mamdo que tanto que vos este meu mandado for apresemtado façaes loguo pagamento ao dito Ruy Fernandez ou a quem seu carreguo e poder tever ou precuraçam pera receber o dito dinheiro convém a saber todo o que lhe for devido do ano pasado e os dous quartees do presente ano e mais nam e asy mesmo mando ao escryvam do allmoxarifado e porteyros asy das sysas como do allmoxarifado que penhorem to[1v] dos os recebedores que nom quiserem pagar em maneira que o dito Ruy Fernandez seja paguo do dito dinheiro que he devido do dito ano de Vc XXVIII e asy dos dous carteis do presemte de Vc XXIX e por certeza dello mandey ser feito este meu mandado per mim asynado. Francisco d’Allmeida tabaliam o fez por meu mandado aos XXV dias de Outubro de Vc XXIX anos// [assinatura:] Diogo Borjes de Castro. Pagou XX reaes. [Letra do século XVI:] mandado do contador pera receberem Letra do século XVIII:] Mandado para os contadores das cazas de Lamego, e Vizeu pagarem ao contratador das lonas os seus quarteis vencidos. Em 25 de Outubro de 1529.

327

Muito manchado o papel dificultando a leitura. Dúvidas, portanto, nesta palavra.

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Documento 2

1530. Setembro. 23. Lamego - Traslado de alvarás régios apresentados aos Contos e almoxarifados de Lamego e Viseu (de 25 de Fevereiro de 1530, 26 de Julho de 1530, 4 de Agosto de 1528, na ordem em que são registados) autorizando Rui Fernandes, tratador das lonas daquela cidade, a cobrar do rendimento das sisas o dinheiro que lhe é devido das lonas que deve mandar ao armazém régio de Lisboa. TT – Corpo Cronológico, parte II, maço 165, doc. 25 Saybham quamtos este trellado de hua carta d’El Rey noso senhor dado per mamdado e autoridade de justiça vyrem como no ano do nacymento de Noso Senhor Jhesuus Christo de mill e quinhemtos e trinta anos aos aos (sic) XXIII dias do mes de Setembro na cydade de Lameguo peramte Joham Cardoso escudeyro e escripvam dos Comtos em estes allmoxarifados de Lameguo e Vyseu e que ora tem carreguo de comtador ‘ausencya de Dieguo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu comtador em ellos etc. pareceo Ruy Fernandez tratador das lonas que se fazem na dita cidade e dise ao dito contador que em poder de mim escripvam era hua carta d’El Rey noso senhor que elle Ruy Fernandez lhe apresemtara per a quall Sua Allteza mamdava a elle comtador que damdo elle Ruy Fernandez fyamça segundo forma de seu comtrato o leixase receber o remdymento da sysa da dicta cidade e certos ramos convém a saber do ano de Vc e vymte e nove por lhe ser dado em pagamento pera o dito trato das lonas e que ora lhe era necesario o trelado da dita [1v] carta em pubrico328 com a fee de mim escripvam como tinha satisfeito com a dita fyamça e como elle comtador mandara comprir ha dita carta de Sua Alteza e loguo o dito comtador mandou a mim escripvam que com todo lhe dese este estromento de certydam e trelado da dita carta da qual lho teor he o seguimte. «Comtador Dieguo Borges eu El Rey vos envio muito saudar. Nese allmoxarifado de Lameguo forom despachados o ano pasado de vynte e nove setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes a Ruy Fernandez tratador das lonas pera quinhemtas e cyncoemta peças de lonas vytres que he obrigado dar pera o allmazem segundo foy decrarado no caderno do asemtamento dos quaes ha d’aver pagamento dos recebedores de Lameguo e seus ramos e nos comcelhos de Sam Joham da Pesqueyra e do Castynheyro como vos per outra ja tenho escripto e por que me elle dise ora que tinha emtregues as lonas e dada conta dos primeyros dous anos de vymte e seis e vymte e sete segundo mostrou per vosa certidão a quall comta lhe vos tomastes per meu mamdado e nom podia acabar de fazer comprimemto dos outros dous anos pelos maos pagamentos que lhe [2] faziam por que lhe era devido muyto dinheiro dos anos pasados de que nom podia aver execuçam e bem asy que temdo nomeado a receber seu pagamento o almoxarife Symão de Figueyredo lho empidira e mandara aos recebedores que lhe nom acudisem e recebera per sy o remdymento de Sam Joham e do Castynheyro no que era muyto agravado e por ello nom

328

Isto é, em pública forma. 121


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

podia comprir com sua obrigaçom vos mamdo que vos lhe façaes loguo acudir com os ditos dinheiros e lhos leyxay receber dos recebedores da maneira que tenho mamdado e ao allmoxarife mamdareis que lhe nom ponha nyso duvida nem impydymento algum os quaes dinheiros recebera o dito Ruy Fernandez ou a pesoa que pera yso seu poder tever porquamto elle amda em minha corte em cousas do meu serviço e elle dara fiamça se a dada nam tem segundo forma de seu comtrato e se o dito almoxarife tever recebido allgum dos ditos comcelhos dareis ao dito Ruy Fernandez outro tamto remdymento em outros comcelhos e nyso lhe fazey dar toda ajuda e favor que lhe comprir mamdamdo executar os recebedores e fazer quallquer dilligemcya necesaria de maneira [2v] que lhe seja feito seu pagamento com brevidade. Manoell da Costa a fez em Lixboa a XXV dias de Fevereyro de mill e Vc XXX. Fernam d’Alvarez a fez escrever// Pera o Comtador dos allmoxarifados de Viseu e Lamego sobre os dinheiros que o ano pasado la forom despachados a Ruy Fernandez tratador das lonas. E porquamto o comtador Dieguo Borges esta ora sospemso mamdo a pessoa que seu careguo tever que cumpra esta carta imteyramente como se nella comtem com toda dylligemcia. Manoell da Costa o fez em Lixboa a vymte e sete d’Abrill de mill e quinhemtos e trymta// A quall carta foy apresemtada ao dito Joham Cardoso loguo temte329 de Comtador pelo dito Ruy Fernandez aos vymte e seis dias do mes de Julho do ano de Vc XXX anos e com ella hum estromento de fyamça feito per Amtonio Lopez pubrico tabaliam na dita cidade a qual fyamça o dito Ruy Fernandez deu ao recebymento segundo forma da dita carta. E visto todo pelo dito Joham Cardoso mamdou que se comprise a dita carta como em ella era comtheudo e mandou pasar mandado ao dito Ruy Fernandez pera o recebedor da dita cidade pera pagar ao dito Ruy Fernandez os dous quarteis derradeyros do dito ano de Vc XXIX e mandou ao almoxarife que lhos leixase receber e o dito Ruy Fernandez [3] dise ao dito Comtador que pera comprimemto dos ditos setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes comtheudos na dita carta lhe faltavam dozemtos e oytemta e dous mill e quinhemtos reaes os quaes ele Ruy Fernandez ouvera d’aver per os comcelhos de Sam Joham da Pesqueyra e Castynheiro e que por ho almoxarife os ter recebidos que lhe mandase fazer emtrega per outros comcelhos e per Symão de Figueyredo allmoxarife lhe forom dados per outros comcelhos segundo todo mais compridamente se comtem em hos autos d’apresemtaçom da dita carta que estam em poder de mim tabaliam em maneira que ao dito Ruy Fernandez forom cheos os ditos setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes dizendo loguo o dito Ruy Fernandez ao dito Joham Cardoso que de todo lhe era necesario huum estromento que requeria a elle loguo temte de comtador que lho mandase dar com o que dito he e o dito Joham Cardoso lho mamdou dar em pubrico e per elle asynado. Testemunhas que presemtes estavom Joham Diaz morador na villa do Souto e Francisco Afomso morador na villa de Cedavym e Joham Gonçallvez Cordeyro morador na [3v] villa de Penedono e eu Francisco d’Almeida pubrico tabaliam por El Rey noso senhor na dita cydade de Lameguo e seus termos que ora330 tenho carreguo de escripvão dos Comtos pelo dito Joham Cardoso servir de contador que este estromento escrepvi e asiney com o dito Joham Cardoso de meu pubrico synall que tal lhe. [Sinal do tabelião e assinatura:] Joham Cardoso. Pague destes LX reaes». «Saybham quantos este estromento de trelado de hum allvara d’El Rey noso senhor dada per mandado e autoridade de justiça vyrem como no ano do nacymento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhentos e trymta anos aos VI dias do mes de Outubro em Allvellos na quintãa da Torre que [he] termo da cidade de Lameguo estamdo hy Joham Cardoso escudeyro e escripvam dos Comtos nestes almoxarifados de Vyseu e Lameguo e que ora tem careguo de Comtador em eles ‘ausencya de

329 330

Isto é, interino, no lugar de, lugar-tenente. Emendada esta palavra.

122


Apêndice documental

Diogo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu Comtador nos ditos almoxarifados etc. peramte o dito Joham Cardoso pareceo Symão de Figueyredo almoxarife de Lameguo e dise ao dito Joham Cardoso que Ruy Fernandez tratador das lonas lhe tynha apresemtado huum allvara d’El Rey noso senhor em que lhe [4] reformara huum ano mais no trato das lonas o quall allvara era em poder de mim escripvam e que a elle lhe era necesario o trelado do dito alvara em pubrica forma que lhe requeria que lho mandase dar e visto pelo dito Joham Cardoso mandou a mim tabaliam que lhe dese huum estromento com o trelado do dito alvara do qual alvara o teor he o seguinte// Eu El Rey faço saber a vos vedores de minha fazemda que alem do tempo que Ruy Fernandez tratador das lonas que se fazem na cydade de Lameguo por seu comtrato per que he obrigado a emtregar no meu almazem desta cidade de Lixboa mill e seiscemtas e cymcoenta peças de lonas vitres convém a saber cada ano quinhemtas e cyncoenta peças a rezam de mill e quatrocemtos e cyncoenta reaes cada peça segundo forma de seu comtrato e provisões o quall comtrato se acaba em fym deste ano presemte de quinhemtos e vymte e oyto hey por bem em meu serviço lhe reformar o dito comtrato por tempo de huum ano mais que começara acabamdo os tres anos delle no quall sera obrigado a emtregar no dito almazem quinhentas e cymcoenta peças das ditas lonas vytres ao dito preço de mill e quatrocentos e cymcoenta reaes peça aos tempos e da largura e vomdade que pelo dito comtrato he obrigado porquanto pela maneira e comdições dele hey por bem lhe sejam tomadas e feitos os pagamentos do dinheiro que nellas montar nas rendas da dita cidade de Lameguo e seus ramos asy como ate’guora lhe foy paguo por bem do dito comtrato noteficovolo asy e vos mando que asy o [4v] cumpraes e façaes comprir e guardar em todo e per todo como331 se nelle comtem sem duvida que a ello ponhaes. Cosme Anes o fez em Lixboa aos quatro dias d’Agosto de mill e quinhentos e vymte e oyto e este allvara se resistara no lyvro dos comtratos de minha fazemda omde o dito comtrato esta treladado omde o dito Ruy Fernandez asynara e se obrigara a este comprir como dito he. Fernam d’Alvarez o fez escrepver// O quall alvara he asynado per Sua Alteza segundo per ele parece e resistado pelo dito Fernam d’Alvarez ao pee do contrato segundo parece nas costas delle per seu asynado. E com todo o dito Joham Cardoso mandou que lhe fose dado o dito estromento e manda que valha e faça fee como o proprio originall e por verdade o asynou aqui. Testemunhas que forom presemtes Joham Gonçallvez Cordeiro morador em Penedono e Francisco Afonso morador em Cedavim e eu Francisco d’Almeida pubrico tabaliam por El Rey noso senhor em a dita cydade de Lamego e seus termos em que ora tenho careguo de escripvam332 dos Comtos pelo dito Joham Cardoso que este estromento escrepvi e em ele meu pubrico synall fyz que tal lhe// [assinatura e sinal do tabelião:] Joham Cardoso. Pague Rta reaes»”. [Nas costa do documento, em letra do século XVIII]: Parte 2ª, Maço 165, Doc. 25, Nº suc. 28686. Trelado de huns Alvarez de El Rey para a Ruy Fernandez se dezembargarem e deixarem cobrar o rendimento das cizas de Lamego etc. na forma do contrato feito com o dito sobre as lonas que se fazião na dita cidade. A 23 de Setembro de 1530. Ver ainda TT – CC, parte I, maço 46, doc. 49 e doc. 123, respectivamente de 24 de Janeiro de 1531 e 17 de Julho do mesmo ano. Alvará do rei ordenando a D. António de Almeida, do seu conselho e contador-mor da fazenda que não constranja por tempo de seis meses Rui Fernandes pelas 550 peças de lonas vitres que devia entregar nos armazéns e estaleiro de Lixboa porque ainda não lhe haviam sido pagas. Em Julho, alvará ao mesmo António de Almeida e a Fernando de Alcáçova provedor dos Contos, para não constrangerem Rui Fernandes por não meter neste ano nos armazéns régios de Lixboa 600 peças que devia ter metido, pois ainda não lhe fora pago o dinheiro delas.

331 332

Rasurada esta palavra. Emendada esta palavra. 123


Documento 3

1530, Dezembro, 29, [Porto] – Mestre Dinis, morador na cidade do Porto, apresenta nos Contos da cidade o treslado de uma carta de privilégio régia dando-o como tratador das lonas e bordates de Lamego, juntamente com o seu genro Rui Fernandes, ali morador, e outros mercadores. (inclui carta da Câmara de Lamego, de 10 de Dezembro de 1530, referindo Rui Fernandes como titular desse ofício juntamente com o sogro e outros mercadores – desde 20 de Julho desse ano –, onde se transcreve o privilégio real do trato dos bordates de Gestaçô, Baião, outorgado em Lisboa a 6 de Julho de 1528).

Arquivo Distrital do Porto – Contadoria da Comarca do Porto, liv. 4, fl. 50v-51v.

[fl. 50v] “Estormento que apresentou o licenciado mestre Donis com ho trelado do privilegeo da feitoria das lonas”. “Saibam quantos este estormento de trelado de privilegyo em pubrica forma dado por mandado e autoridade de justiça virem que no ano do nacimento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhentos e trimta anos aos dez dias do mes de Dezembro na cidade de Lameguo na Camara della estamdo hy ho licemciado Luis d’Almeida juiz de fora com alçada por El Rey noso senhor na dita cidade e seus termos peramte ele juiz e mim tabaliam ao diamte nomeado pareceo Ruy Fernandez escudeiro da casa d’El Rey noso senhor cidadão da dita cidade e morador nella. [E] loguo per ele Ruy Fernandez foy dito ao dito juiz que El Rey noso senhor lhe tinha comcedydo hum privilegyo pera ele e feitores seus parceiros oficiaes das lonas [e] bordates / o quall loguo hy apresemtou em purgamynho fecto por Amtonio Marquez aos vimte dias do mes de Julho de bc. xxx anos e asynado pelo doutor Allvaro Fernandez do desembarguo do dito senhor e seu chamçarell (sic) mor e pasado por a chamcelaria com sello de cera vermelha pemdemte per linha bramca e vermelha segundo todo eu tabaliam vy e no dito privilegyo mais largamente esto e outras cousas sam comtheudas requeremdo ao dito juiz que em pubrica forma lhe mandase dar ho trelado pera dele guozar o lecemceado mestre Donis cidadão da cidade do Porto e morador nela sogro dele Ruy Fernandez porquanto era seu parceiro em yguoall parte no dito trauto dos bordates pera mandar por em boa arrecadação os ditos bordates na dita cidade e os feitorizar e fazer careguar pera El Rey noso senhor com mais seguramça e brevydade ser servido. E visto pelo dito juiz seu requerer mandou a mym tabaliam que lho dese ho quall eu treladey de verbo a verbo e he ho seguimte: «Dom Joam por graça de Deus Rey de Portuguall e dos Algarves d’Aquem e d’Alem mar em Africa senhor de Guine e da comquista, naveguação, comercio de E<t>hiopia, Arabia, Persya e da Imdia. A quantos esta minha carta virem faço saber que no livro do registo dos privillejos que esta em a minha chamcelaria do ano de mil bc. xxbiiiº anos he escripto e registado hũa carta de privilejos que por mim foram comcedidos a Tristam Diaz tratador das lonas e bordates e fio da quall ho trelado de verbo a verbo he o seguimte: “Dom Joham etc. A quantos esta minha carta virem faço saber que queremdo eu fazer graça e merce a Tristam Diaz tratador das lonas e bordates e fio que se faz no comcelho de Gestaço tenho por bem e me praz que ele e quatro feitores 124


Apêndice documental

[fl. 51] seus e todos os oficiaes macanicos do dito trauto e que nele servirem daquy em diamte enquanto durar ho dito trauto sejam escusos de servirem em cousas algũas com suas pesoas e asy ajam e guozem de todalas liberdades que tem os oficiaes de minha armaria; e quero e me praz que em todos os seus feitos cives e crimes seja juiz o meu comtador da cidade do Porto ou ho juiz de fora da dita cidade quall os ditos tratadores mais quiserem; outrosy me praz que as casas que tiverem aluguadas e ao diamte aluguarem nom sejam tomadas d’aposemtadaria e eles posam nelas estar e pousar lyvremente posto que eu vaa aho dito comcelho ou ho Primcipe e Imffamtes meus filhos ou posto que no dito comcelho este a mynha corte; e mamdo ao meu aposemtador moor e333 aposemtadores que asy ho cumprão; e asy ey por bem que ho dito Tristam Diaz e seus feitores e oficiaes do dito trato posam trazer armas deffesas de dia e de noute, não fazemdo com elas mall; e asy mesmo posam amdar em mulas e facas seladas e enfreadas sem embarguo de não terem cavalos e da Ordenação em contrairo; e ey por bem que lhe sejam dadas por homde quer que forem pera eles e pera os seus pousadas, estreberias, camas e mantimentos, bestas, carros e todo ho mais que lhe for necesario por seu dinheiro segundo ho estado da terra. Item: outrosy ey por bem que o sobredito Tristam Diaz, feitores, ofeciaes do dito trato vemçam custas como vemciam os besteiros do comto quando os hy avia e asy lhe sejam comtadas; e mais me apraz que semdo cada hum deles culpado em tall maleficio per que pena de justiça mereça não posam ser açoutados pubricamente nem degradados com baraço salvo como sam os escudeiros; e asy ey por bem que ho dito tratador nem os ditos feitores e offeciaes do dito trato nam paguem peitas algũas, fimtas nem talhas nem outros alguns encarguos nem servidoes que por mym ou por os comcelhos sam ou forem lamçados por quallquer guisa e maneira que seja334 nem yso mesmo serviram nem iram servir em matos, pomtes, fomtes, caminhos, calçadas soomente nas testadas de suas casas / nem iram com presos nem com dinheiros nem seram titores nem curadores de pesoas allgũas que sejam salvo se as titorias forem lidemas; nem yso mesmo serviram em alguns oficios nem carguos meus nem do comcelho comtra suas vomtades posto que pera yso sejam pertemcemtes nem paguarão oytavo de vinho, lynho e legumes que ouverem de suas novidades e lavoiras; e asy me apraz que não paguem sysa nem outro algum dereito d’armas nem de bestas de sela nem d’albarda que comprarem pera seus serviços. Porem o netefico asi a todos os meus coregedores e juizes, justiças, ofeciais e pesoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela pertemcer e lhes mando que imteiramente cumpram e guardem e façam comprir e guardar esta carta ao dito Tristam [fl. 51v] Diaz e mais feitores seus e ofeciaes do dito trato como dito he asy e da maneira que acima he comteudo por que asi ho ey por bem. E por firmeza delo lhe mandey dar esta minha carta por mym asinada e aselada do meu selo pemdemte. Dada em a minha cidade de Lixboa a seis dias do mes de Julho do ano do nacimento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhemtos e vimt’oito anos. E deste theor tynha outra carta feita a tres dias de Setembro de bc. xxbii e por se em alguas partes nom poder ler se fez esta. Manoell de Moura a fez”. Da quall carta que asy no dito livro esta escripta e registada me pedio Ruy Fernandez morador na minha cidade de Lameguo e tratador das lonas [e] bordates que se fazem na dicta cidade que lhe mamdase dar ho trelado em hũa minha carta porquamto no comtrato que ora fezera em a minha fazenda per que tomara ho dito trato por certos anos metera por comdição que ele e os seus feitores e offeciaes que tivese pera ho trato dos ditos bordates guozasem dos privilegios comcedidos ao dito Tristão Diaz e seus feitores e ofeciaes e lhe fora por mym comcedido segundo ho ver poderia pelo dito comtrato que me apresemtou em ho quall se mostra lhe comceder os ditos previlejos duramdo ho tempo do dito comtrato em que o meu chamçarell mor lhe mandase dar ho trelado em pubrica forma. E portamto lha mandey dar toda encorporada nesta minha carta a quall mando que lhe seja imteiramente guardada como se nela comtem duramdo o tempo de seu arremdamemto e comtrato vysto a comdição

333 334

Emendada esta palavra. Riscado: “nem yso mesmo”. 125


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

dele per mym comffirmada sem lhe a ello ser posto duvida nem embarguo algum. Dada em Lixboa aos vimte dias do mes de Julho El Rey ho mandou per o doutor Allvaro Fernandez do seu desembarguo que por seu especiall mamdado tem carguo de seu chamçarell mor; Amtonio Marquez a fez. Ano de Noso Senhor Jhesus Christo de mil bc. xxx anos». O quall privilejo eu Amtonio Lopez pubrico tabaliam por El Rey noso senhor na dita cidade e seus termos bem e fielmente de verbo a verbo do propio tirey por mandado do dito juiz como dito he que esto escrepvi e aqui meu pubrico synall fiz que tall he. Nom faça duvida no riscado omde diz yso mesmo”. “O quall estormento foi apresentado a Diogo Leite contador per o lecenceado mestre Denis aos vinte e nove dias de Dezembro do ano de mil bc. Xxxi. O quall trelado eu escripvam fiz tirar do propio que parecia ser feito e asinado do sinall pubrico do tabaliam nelle conteudo e eu ho fiz aqui treladar de verbo a verbo do dito estromento e ho propio tornei ao dito lecenciado. Luis Gonçalvez o escrevi”.

126




Rui Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental


título

Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532) autor

Rui Fernandes estudo introdutório, transcrição actualizada e fixação crítica do texto

Amândio Jorge Morais Barros Coordenação Editorial

Luís Sebastian Fotografia da capa

Biblioteca Pública Municipal do Porto composição gráfica

Ana Sarmento data de edição

1.ª edição, Outubro de 2012 ISBN

978-989-658-188-6 depósito legal

??????/?? edição

Caleidoscópio – Edição e Artes Gráficas, S.A. Rua de Estrasburgo, 26 – R/c Drt.º 2605-756 Casal de Cambra · Portugal Tel.: (+351) 21 981 79 60 · Fax: (+351) 21 981 79 55 e-mail: caleidoscopio@caleidoscopio.pt www.caleidoscopio.pt

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Sumário

Prefácio. ..................................................................................................................................................................................................................... 5 Agradecimentos. ..................................................................................................................................................................................................... 7 Estudo Introdutório

Saudades da terra: o pintor de Lamego......................................................................................................................................... 9

Introdução. .............................................................................................................................................................................................................. 10 O texto....................................................................................................................................................................................................................... 13 O autor. ..................................................................................................................................................................................................................... 16 A feitoria. ................................................................................................................................................................................................................. 20

O primeiro quadro de Lamego. ........................................................................................................................................................................ 23 Os vinhos e o Porto............................................................................................................................................................................................... 28 Outras gentes, outros produtos......................................................................................................................................................................... 33 Conclusão................................................................................................................................................................................................................ 37 Textos e documentos........................................................................................................................................................................ 39 Critérios de transcrição....................................................................................................................................................................................... 40 Transcrição actualizada. ..................................................................................................................................................................................... 42 Transcrição crítica. ............................................................................................................................................................................................... 76 Apêndice documental.................................................................................................................................................................... 119 Documento 1. ....................................................................................................................................................................................................... 120 Documento 2. ....................................................................................................................................................................................................... 121 Documento 3. ....................................................................................................................................................................................................... 124



Prefácio

Conhecer Portugal

De Lamego para o Douro e em torno das serras, dos declives, de um ou outro trecho de planalto mais a sul, nas encostas, caminhos, córregos que há séculos os homens abriram no dorso das montanhas ou no vale profundo onde corre o rio mais antigo. Assim se poderia, como numa monografia romanesca, delimitar o território onde circula o livro de Rui Fernandes, que Amândio Jorge Morais Barros anota e apresenta para nosso deleite. O contato direto com as fontes da nossa história é uma vantagem incomparável; neste caso, a leitura do texto de Rui Fernandes oferece-nos um retrato da sua época e a oportunidade de verificar como o tempo esculpiu mudanças essenciais no território e nas comunicações, como a economia local evoluiu e se transformou, como o bem precioso das vinhas da região era tratado, mas também como a genealogia do nosso tempo se preparava já no século XVI. O viajante que hoje se comove diante de uma paisagem tão rara, ou sabe distinguir e valorizar os vinhos desta região, não pode ignorar os sacrifícios, nem o engenho, a criatividade, o génio ou a sabedoria dos que, desde a época de Rui Fernandes, não construíram apenas uma paisagem ou uma economia, mas também legaram uma cultura que, ao longo dos séculos, mudou o mundo e conquistou a nossa admiração. Amândio Jorge Morais Barros evoca justamente essa outra obra monumental, Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, uma monografia do Descobrimento, contemporânea de Rui Fernandes: as terras da Beira Douro são, de facto, uma parte notável do paraíso original da Terra. O seu penoso isolamento foi, também, o pilar onde assentou a originalidade e a força dos seus habitantes, obrigados a procurar caminhos para tornar a vida possível e mais humana. Este esforço faz parte da história da região e devia comover-nos com sinceridade, e é ele que permite que saboreemos os vinhos esplêndidos do Douro, que apreciemos a forma como a paisagem foi sendo transformada ou como gerações de portugueses antigos souberam romper o isolamento e contornar as dificuldades. Conhecer Portugal é contatar de perto com as raízes, e o texto de Rui Fernandes transporta-nos nessa viagem. Francisco José Viegas (Secretário de Estado da Cultura)

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Agradecimentos

Em 2001 publiquei uma edição crítica da obra de Rui Fernandes Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas.Tal como naquela altura, o objectivo que aqui se apresenta continua a ser o de revelar a um vasto público um texto fundamental para o conhecimento de uma cidade e de uma região que desempenharam um importante papel no contexto do Portugal do século XVI. O estudo introdutório e a bibliografia nele citada são exemplos – entre muitos – das abordagens historiográficas que o texto nos permite fazer. As opções da edição continuam a ser minhas e naturalmente sujeitas a eventuais reparos. Procurei um compromisso entre a simplificação de uma transcrição actualizada e o aparato de uma transcrição crítica. A primeira destina-se ao grande público curioso das coisas do passado e, sendo caso disso, da sua terra. A segunda, como se compreende, destina-se a toda a comunidade científica. Surge imediatamente a seguir à versão actualizada do texto de Rui Fernandes. Escrevi um novo estudo introdutório, enriquecido com notas de investigação actualizadas. Tal como na anterior publicação continuei a receber o apoio da “Beira Douro” – Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro na pessoa de Rui Oliveira, com quem há muito tempo trabalho e a quem mais uma vez agradeço. Mantenho, como não podia deixar de ser, os agradecimentos a Gaspar Martins Pereira e a Luís Miguel Duarte, amigos de muitos anos, atentos revisores dos meus textos e colegas no Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória. Nesta edição o destaque e os maiores agradecimentos vão para Luís Sebastian e para a Direcção Regional de Cultura do Norte, prestigiada instituição à qual ele se encontra ligado, pelo convite que me foi dirigido para reeditar o livro. Há muito tempo ligado ao Douro e com obra feita a partir do mosteiro de S. João de Tarouca, o seu apoio e o seu entusiasmo foram inexcedíveis, e espero que esta seja a primeira de muitas iniciativas que possamos realizar conjuntamente. A.J.M.B.

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Estudo Introdutório Saudades da terra: o pintor de Lamego

Amândio Jorge Morais Barros*

Esta Ribeira do Douro se navega vinte e sinco legoas convém a saber: de São João da Fóz, que he a barra do Porto pello rio arriba ‘té São João da Pesqueira (...) com barcas que carregão mil 600 ‘té mil out[ocentos] alqueires de pão pella grande medida. […] e soom os mais excelentes vinhos, e de mais dura, que no Regno se podem achar, e mais cheirantes, porque ha vinhos de quatro, sinco, e sete annos, e de quantos mais annos he, tanto mais excelente, e mais cheirozo1

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Politécnico do Porto-Escola Superior de Educação. Investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar, Cultura, Espaço e Memória (CITCEM), membro da Academia de Marinha. 1 FERNANDES, Rui – Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas, manuscrito n.º 547 da Biblioteca Pública Municipal do Porto (=BPMP), fl. 9v. 9


Introdução

Quando se conta a história da navegabilidade do Douro, Rui Fernandes que escreveu no início da terceira década do século XVI é um dos primeiros autores citados. Os menos de 150 quilómetros de distância entre o Porto e São João da Pesqueira, então limite navegável do rio no Cachão da Valeira, haviam-se transformado na mais percorrida “estrada” de todo o vale do Douro e num decisivo factor de desenvolvimento de toda a zona norte do Reino. Essa condição justifica que o rio domine na descrição que aquele autor quinhentista fez de Lamego e da sua região. Objecto de história, o rio foi determinante na organização do território e na ligação entre o mundo urbano e marítimo e a ruralidade duriense que o tempo haveria de identificar com a produção de vinhos, “os mais excelentes que no Reino se podem achar”. Vinhedos em Lamego, junto ao Douro e ao Varosa, zonas privilegiadas com produção de qualidade, exploradas por mosteiros cistercienses, estiveram na base de um animado comércio, responsável pelo crescimento do trânsito fluvial e pelo estabelecimento de rotas marítimas desde o Porto. Estas primeiras impressões sobre o rio e os vinhos do Douro introduzem os temas que pretendo analisar nas notas que antecedem a publicação do documento de Rui Fernandes. Com alguns dados de arquivo e a corografia de Fernandes procurarei mostrar aspectos que me parecem relevantes na evolução económica do vale do Douro, a partir das suas produções, dos agentes que as comercializaram e da estreita ligação com a cidade e espaço portuário do Porto. No século XVI, esta cidade baseava a sua economia num activo comércio marítimo. Os circuitos estabelecidos durante a Idade Média em direcção a portos do Reino como Lisboa, ou do estrangeiro, como os das Ilhas Britânicas e os da Flandres continuavam a ter um peso muito grande, sobretudo numa altura em que se requeriam mercados para escoamento das mercadorias provenientes dos domínios ultramarinos atlânticos que entretanto afluíam ao seu porto. Mas o século XVI não decorreu sempre da mesma forma. Enquanto não se afirmou a economia do açúcar brasileiro (a partir dos anos 1570), enquanto não se consolidou a elite mercantil cristã-nova responsável por ela (a partir de meados do século), enquanto não se definiram as estratégias políticas que valorizaram os pequenos e médios portos nacionais defendendo a sua navegação (com D. Sebastião e os primeiros Filipes) sucederam-se períodos de dificuldades e impasses que exigiram resoluções satisfatórias. Arredado da rota do Cabo com a generalidade dos centros costeiros nacionais em razão das políticas monopolistas da Coroa, o Porto foi obrigado a encontrar alternativas, outros rumos para a sua actividade. Desse processo resultaria uma aposta atlântica bem-sucedida, primeiro com a exploração das Ilhas e do tráfico de escravos para as Índias de Castela e, mais tarde, com o Brasil dos canaviais de açúcar. A consolidação destes rumos valeu-se, numa grande percentagem, dos recursos económicos gerados na sua região envolvente. A cidade manter-se-ia fiel a essa matriz pelos séculos fora. A ligação ao Entre Douro e Minho garantia-lhe carnes e couros; a ligação às terras da Feira 10


Estudo Introdutório

e a Aveiro as madeiras para a sua construção naval e o sal para os seus tratos internacionais; por fim, a ligação ao vale do Douro assegurava-lhe vinhos, sumagres e azeites destinados ao consumo local mas também à exportação. Por isso se explica a preocupação, desde sempre manifestada pela Vereação e pelos mercadores, em manter uma navegação de cabotagem forte e atrair navios estrangeiros. Num dado passo do seu “tratado de um rico pano de fina verdura”, Rui Fernandes fala-nos de tréguas com os franceses evocando a dura concorrência e o conflito que então se travava no mar com os estados da Europa do Norte, responsáveis por uma quebra acentuada das frotas mercantes portuguesas, a do Porto incluída. Será a pressão dos homens do trato, entretanto organizados em companhias comerciais de dimensão internacional, junto da Coroa a forçar negociações, a assegurar o fim da contenda e a fazer prosseguir os negócios. Quando a corografia de Lamego foi escrita vivia-se um período de transição em que os velhos modelos económicos medievais davam mostras de ceder à economia moderna, ao capitalismo comercial, ao tempo dos mercadores. Ainda no Porto, tal opção passou pelo domínio do hinterland, processo amparado pela Coroa, impelido pela atracção exercida pela cidade, e resultou na canalização das produções de áreas extensas para o seu mercado. O caso do território de Lamego, embora geograficamente mais distanciado, enquadra este movimento, concretizado em toda a extensão do rio e das estradas que o marginavam por frotas de barcos, recovas de almocreves e carretos de cargas. Não é aconselhável menosprezar o significado deste trato interno. Os grandes produtos vulgarizados pelos descobrimentos, como a pimenta, a canela e outras especiarias só em ínfima parte eram transaccionados por mãos portuguesas, e o açúcar, que os cristãos-novos se encarregarão de tornar bem de consumo de massas, dependia de financiamentos e mercados muito instáveis durante a Época Moderna. A competição e a associação com poderosas companhias comerciais castelhanas, flamengas, alemãs ou italianas exigiram recursos e formas de actuação que protegessem os interesses das redes nacionais. Parte desses recursos resultava da exploração sistemática das produções do Reino através de esquemas de intervenção que passavam pela formação de parcerias e modelos de financiamento agrícola e comercial acertados entre o mundo urbano e o mundo rural. Característico da Época Moderna, este fenómeno da penetração do capital urbano no campo constituiu um exemplo de como os mercadores e os proprietários rurais puderam retirar vantagens do investimento nos produtos tradicionais da nossa economia, tornando-a mercantil de base agrícola, como a definiu Jaime Cortesão, e apoiada no tráfico de sal e nas pescarias, como a explicou V. M. Godinho. Como já foi dito foram os investimentos no vinho, azeite, sal ou sumagre os que mais se fizeram sentir. Ao mesmo tempo, fenómenos peninsulares, como o das navegações oceânicas, as armadas e a vida portuária foram oportunidades para as associações mercantis que dominavam o comércio trazendo para si e para os produtores com elas envolvidos lucros elevados. Será neste quadro que nos situaremos. Fruto da necessidade ou resultado de uma estratégia pensada, devemos interpretar este período como um momento de transformação favorável à evolução económica do Douro e à economia marítima portuense, dependente das rotas comerciais e do labor das redes de negócios. A actuação destas fez crescer como nunca o movimento dos portos, alimentado pelo tráfico de mercadorias. A sua vitalidade dependeu da intensidade e valor dos contactos por elas estabelecidos, bem como da manutenção de relações com diferentes áreas de interesse. Como a estabelecida com o hinterland, desde muito cedo tida como fundamental para a afirmação económica e, mesmo, sobrevivência, de alguns desses portos. 11


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

É esse tipo de relação que aqui se descreve. Se o intercâmbio entre o Porto e as regiões envolventes determinou a sua estrutura comercial-marítima, também ajudou a perceber a estratégia das redes mercantis na aquisição e controlo da distribuição daqueles produtos. Enfim, tal negócio – e isso é revelador do peso económico das redes – determinou uma parte da organização da estrutura portuária com a edificação de cais e postos de fiscalização adequados ao trânsito fluvial/marítimo e à supervisão do comércio. Em vários momentos do seu texto Rui Fernandes escreve acerca dessa animação fluvial, desse intercâmbio, certificando a importância da relação entre o Douro e o litoral. Produzida num contexto de crescente gosto pelo saber e de necessidade de informação próprios do Renascimento e do incipiente estado moderno, também esta descrição articula saberes2 e informa: o Rei, ao qual o autor se dirige constantemente através do bispo de Lamego, a quem dedica a obra, e os mercadores, aos quais se encontra ligado por relações que conheceremos adiante.

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GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – Duas Descrições do Algarve do século XVI. Lisboa: Sá da Costa, 1983, p. 3.

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O texto

É ocioso justificar a importância do texto escrito por Rui Fernandes entre 1531 e 1532. Tal como outros do género efectuados na época percorre os temas que esperamos encontrar nestas obras: as origens da terra, o número e distribuição dos seus moradores, a variedade e valor das suas produções, a posse da propriedade e algumas curiosidades históricas e naturais. Porém, e como aconteceu com outros escritos corográficos sobre o Entre Douro e Minho, Trásos-Montes, Lisboa e Algarve concluídos no século XVI, o texto de Fernandes sobre Lamego não aproveitaria aos seus contemporâneos. O seu destino foi permanecer inédito durante séculos pois o fulgor humanista foi efémero e o tempo adverso à corografia, que perdeu espaço em favor dos “secos relatórios de fogos, ruas, igrejas, conventos, rendimentos” mais interessantes à administração3. O manuscrito só viria a ser publicado pela Academia Real das Ciências em 18244, a partir de um documento, muito provavelmente o original, pertencente à biblioteca do Visconde de Balsemão, e abria da seguinte forma: “Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas; Suas producções, e outras muitas cousas notaveis: dirigida ao Sr. D. Fernando, Bispo da dita Cidade, Primo de El Rei, e seu Capellão Mor; e feita por Rui Fernandes, Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei, no anno de 1531 para 1532”5. Em 1947, Augusto Dias trabalhou o manuscrito que fora entretanto integrado na Biblioteca Pública Municipal do Porto, no seu projecto de monografia da cidade de Lamego quinhentista6. Quer o texto da Academia quer o de Augusto Dias há muito que estão esgotados e nem sempre se encontram acessíveis nas bibliotecas. Por isso impunha-se colocar à disposição dos interessados uma edição do texto, que é importante não apenas para a cidade de Lamego e a região envolvente, mas igualmente para o conhecimento de muitas facetas da vida económica e social do Portugal de Quinhentos. Em 2001 encarreguei-me disso apoiado pela Associação Beira-Douro, aproveitando o ensejo para fazer uma edição crítica do mesmo, cotejando as duas versões conhecidas7. Essa edição encontra-se hoje também praticamente esgotada, facto que levou a Direcção Regional de Cultura do Norte a interessar-se pela sua

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Idem, p. 4. Neste caso, utilizei a 2.ª edição da mesma obra, da qual retirei a citação completa: FERNANDES, Rui – Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas, in “Collecção de Ineditos de Historia Portugueza”, 2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1936, Tomo V, p. 546-613. 5 Idem. Ibidem, p. 546. 6 DIAS, Augusto – Lamego do século XVI. S/l.: Edições “Beira Douro”, 1947. 7 Rui Fernandes – Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas (1531-1532). Edição crítica de Amândio Morais Barros. Lamego: Beira-Douro, 2001. Procurava-se dar a conhecer a descrição de Rui Fernandes a um público alargado. Assim, depois da introdução seguia-se uma versão ortograficamente actualizada do documento e numa terceira parte surgia a transcrição paleográfica do texto. Como aqui acontece. 4

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

republicação, que aqui se faz, com novo estudo introdutório e apêndice mais desenvolvido, que inclui novos dados sobre a vida profissional de Fernandes à frente da feitoria de Lamego. Tal como em 2001, o documento base do presente trabalho é o manuscrito número 547 da Biblioteca portuense. Trata-se de uma cópia do original executada entre os finais do século XVII e inícios do século XVIII. Como aquele que foi objecto de publicação por parte da Academia das Ciências é provável que tenha pertencido ao Visconde de Balsemão, cujo espólio se conserva na Biblioteca Pública Municipal do Porto e inclui o manuscrito. Em relação ao documento editado pela Academia há algumas diferenças, quer na grafia das palavras, quer na disposição dos títulos – algumas vezes inexistentes8. Assim, procurei fazer o confronto dos dois textos, que o leitor poderá verificar pela consulta das notas críticas. O documento não é muito extenso. Compõe-se de vinte e oito fólios e o texto apresenta menor subdivisão de capítulos relativamente à publicação dos Inéditos da Academia9. Foi copiado pela mesma mão e a letra é característica do período atrás mencionado: finais do século XVII, inícios do século XVIII10. À boa maneira quinhentista/renascentista, Rui Fernandes dedicou a obra à figura do Bispo de Lamego, D. Fernando, que governou a diocese até 1540. É também provável que, de acordo com uma prática vulgar nessa altura, tenha sido o prelado a financiar o trabalho e a fornecer meios para a sua execução. Isso mesmo pode ser comprovado no capítulo sobre a “largura e altura do Douro”, fólio 10v, no qual Fernandes presta contas referindo: “E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os creados de Vossa Senhoria à barca da Regoa”. Conforme menção do autor, o texto foi terminado em 1532, mas, de certeza que o trabalho de recolha de informação, para além de provir do conhecimento de quem era natural da região e a percorria em função dos negócios e do cargo que ocupava, foi tarefa que lhe demorou alguns anos. O que leu para se informar, não sabemos; mas perguntou e foi ver quando pôde. Basta atentar no pormenor das descrições e na profusão de informações registadas. Que, segundo o próprio, ainda poderiam ter sido ampliadas pois, como diz no fólio 28, “as couzas conteudas neste tratado som muy verdadeiras, somente das fontes, e filhos, e povoadores e porcos, e outras couzas que por conta não podia tirar, vão postas antes em menos soma que mais, e assi a sepultura de Donna Mafalda que digo estar em Villa Boa do Bispo, outros dizem que a ossada esta no Mosteiro d’Arouca, della nom som bem certeficado [e] por ser fora do compas de duas legoas a nom fui ver”. Tal como atrás afirmei, não há memória de que tenha sido publicado em vida do seu autor. Quase de certeza que não11. Mas estes textos circulavam; desconhecemos a que ritmo nem com que alcance, mas circulavam, inspirando

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Sobre eles, refere Augusto Dias: “Eis-nos, pois, à face de textos diferentes. O 547 [manuscrito da BPMP] é um códice encadernado a carneira, no formato 30X20 cm. A lombada, a ouro, tem os ferros usados nos fins do século XVII, princípios do século XVIII. A marca de água do papel é da oficina de António Pedroso, de Lisboa: - escudo tendo no campo uma faixa com a palavra Libertas sob coroa. Não há pois dúvida de que se trata de um volume encadernado na primeira metade do século XVIII. Demais, o erro de data a que se refere a nota final da publicação da Academia de Ciências não se verifica no códice onde está escrito sem rasuras ou emendas o ano de 1532”. O. c., p. XV. Mesmo assim, ficam dúvidas por esclarecer. Por exemplo, se estamos perante duas cópias diferentes do original; ou se alguém reproduziu uma cópia já existente – sendo que, num dos casos (no da Academia) há mais informação, nomeadamente acerca da propriedade de algumas terras mencionadas; além disso, pelo tipo de linguagem reproduzida no texto dos Inéditos, mais de acordo com a que se utilizava no século XVI, acredito que os académicos, apesar de alguns equívocos na transcrição, terão trabalhado a partir do original. 9 De qualquer modo, o texto é, basicamente, o mesmo. 10 Mantenho esta cronologia por uma mera questão de segurança, pois parece-me tratar-se de letra setecentista. 11 GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – o.c., p. 4. 14


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trabalhos semelhantes e, porventura, a discussão de alguns temas por eles suscitados. Neste caso, a riqueza do relato que o tratador de lonas e bordates de Lamego nos legou é indiscutível. E os historiadores não o ignoram. A frequência com que usam este texto e a diversidade de temas sobre os quais ele informa – por exemplo, Gonçalves Guimarães utilizou-no num interessante estudo sobre gastronomia duriense antiga12 – provam a importância dos conteúdos registados, testemunhos valiosos sobre o quotidiano duriense e nacional do século XVI.

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GUIMARÃES, J.A. Gonçalves – Produtos alimentares da Beira Douro no século XVI: persistências e abandonos gastronómicos da região, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 21, 2006, p. 107-130. 15


O autor

De Rui Fernandes pouco se sabe para além das raras informações sobre a sua pessoa que o próprio registou em algumas passagens desta obra, embora estudo recente de Carlos Manuel Valentim esclareça algumas das suas origens familiares e contactos desenvolvidos ao longo da vida. Natural de Lamego, era irmão de Jerónimo Fernandes, mercador e rendeiro dessa cidade, e de Jácome e António da Fonseca, netos de Mestre Rodrigo13. Casou no Porto com uma filha de Mestre Dinis, com quem viria a partilhar o trato das lonas e bordates de Lamego. Cidadão desta cidade, protegido do Bispo D. Fernando, Rui Fernandes ocupava o ofício de feitor das lonas e bordates do Rei desde meados dos anos 1520 e, a partir de 1530 fazia-o em parceria com o sogro e outros mercadores. Pelos documentos pouco podemos dizer em concreto acerca do conhecimento que tinha de outras terras e de outras culturas. De qualquer modo, dado o ambiente em que se movimentava e o tipo de contactos que mantinha por força da sua ocupação e posição social, não ignorava o que se passava para além das duas léguas em torno de Lamego. Pelo documento de 23 de Setembro de 153014 sabemos que andava por Lisboa: “porquanto elle amda em minha corte em cousas do meu serviço” entenda-se, tratando de assuntos relacionados com a gestão da feitoria – e bem precisava de o fazer – aproveitando para visitar o Bispo, que aí passava muito tempo. A instalação da feitoria das lonas e a economia da cidade baseada na exploração das potencialidades da terra imprimiam uma forte dinâmica à região – que também estava então à procura de um modelo sustentável de desenvolvimento – suscitando movimentações constantes, responsáveis pela animação do rio, das estradas e dos mercados, quer em direcção ao interior, ao resto do território nacional, quer às terras raianas e às feiras de Castela, quer ainda em direcção às cidades e vilas portuárias, e daí com prolongamentos a centros do comércio europeu. Num tempo em que a circulação de obras de arte e de cultura se fazia ao ritmo do comércio e das disponibilidades dos mecenas, as belas tapeçarias flamengas do Museu de Lamego, outrora no paço episcopal, aí estão para o comprovar15. Não é por este texto que conseguimos dizer muito sobre o seu grau de cultura. Já que nos falta original do documento nem sequer podemos avaliar a prática de escrita que tinha ou o seu domínio do Latim, que utiliza quando reproduz a epígrafe inscrita no túmulo de D. Teresa, mulher de Egas Moniz, em Salzedas. O que afirma sobre os Romanos – pequeno tributo pago aos clássicos, parafraseando Romero Magalhães e Viegas Guerreiro – é

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VALENTIM, Carlos Manuel – Uma família de cristãos-novos do Entre Douro e Minho: os Paz. Reprodução familiar, formas de mobilidade social, mercancia e poder (1495-1598). Dissertação de Mestrado em História Moderna, policopiada. Lisboa: Universidade de Lisboa, 2007, p. 58. 14 Apêndice documental, documento n.º 2. 15 Sobre estes panos de armar ver QUINA, Maria Antónia; MOREIRA, Rafael; PESSOA, José – Tapeçarias flamengas do Museu de Lamego. Lisboa: IPM, 2005. 16


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demasiado ligeiro para aferirmos o seu nível de conhecimento sobre os saberes da Antiguidade que começavam a ser largamente divulgados entre os espíritos mais esclarecidos. Fernandes escreveu alguns anos depois de Mestre António de Guimarães e conhecia a descrição do Entre Douro e Minho do autor vimaranense, dando prova de que estes textos eram resgatados ao anonimato através da circulação de traslados oferecidos à curiosidade de familiares, amigos ou associados, que os liam e discutiam16. Tal como se infere da leitura desta corografia, foi o trabalho de Mestre António que motivou Fernandes a escrever a descrição da sua terra. Finalmente regista alguns dados históricos, comum ou convenientemente divulgados no seu tempo, não deixando de associar a entrada no Reino dos judeus de Castela à ocorrência de pestes que, juntamente com o caso, que poderíamos dizer endémico, da Régua, utiliza como excepção à regra do panorama sadio da sua terra natal17. Um documento que encontrei nos registos da Alfândega do Porto18 fornece-nos mais alguns elementos sobre ele. De acordo com esse registo, datado de 1530, Rui Fernandes, confirmado como cidadão de Lamego, já obtivera o título de escudeiro da casa do rei e usufruía de outros privilégios por intermédio do trato de lonas e bordates. Esses atributos tinham significado na época integrando-o nos quadros de um elite local, de uma aristocracia influente de variada extracção, composta por abastados mercadores e cavaleiros. Cidadão de Lamego, escudeiro e feitor das lonas e bordates. Para além dos benefícios inerentes às duas primeiras condições, a última dava-lhe a possibilidade de desfrutar de uma série de privilégios sociais não negligenciáveis no seu tempo. Na protecção aos feitores das lonas o rei decretava que “sejam escusos de servirem em cousas algũas com suas pesoas e asy ajam e guozem de todalas liberdades que tem os oficiaes de minha armaria”. Mais: em todos os pleitos cíveis ou crimes podiam escolher juiz e alçada; no caso de Gestaçô, onde havia feitoria idêntica, podiam recorrer para o contador da cidade do Porto ou o juiz de fora da mesma cidade, e essa prerrogativa passava também a beneficiar os de Lamego. Eram dispensados do indesejado direito de aposentadoria. Mas podiam fazer uso dele. Estavam autorizados a trazer “armas defesas”, isto é, proibidas, de dia ou de noite desde que as não utilizassem para fazer mal. Podiam andar em mulas e animais de albarda, regalia muito solicitada por todos quantos, pela sua categoria social, eram obrigados a ter cavalo, animal dispendioso. Tinham também direito a uma soldada, espécie de ajudas de custo equiparadas às que eram pagas anteriormente aos besteiros do conto19. Sendo considerados culpados em qualquer tribunal, eram protegidos da humilhação social não podendo ser açoitados publicamente nem degredados com baraço, recebendo apenas punição como a que era aplicada aos escudeiros. Eram dispensados de pagar nas mais variadas fintas e talhas lançadas pelos concelhos ou pelo rei. Não serviam “em matos, pomtes, fomtes, caminhos, calçadas soomente nas testadas de suas casas”. Também não serviriam com presos nem transportariam

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Tal como o de Lamego, o texto de Mestre António esteve inédito até 1959. Foi primeiramente publicado por RIBEIRO, Luciano – Uma descrição de Entre Douro e Minho por Mestre António, in “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, vol. XXII, fasc. 3-4 (Setembro-Dezembro). Porto: Câmara Municipal do Porto, 1959, p. 440-460. Sobre esta obra ver VALENTIM, Carlos Manuel – Uma corografia renascentista útil ao poder e aos poderes, in “NW. Noroeste. Revista de História” (Actas do Congresso Internacional de História, Territórios, Culturas e Poderes). S/l: Núcleo de Estudos Históricos/Universidade do Minho, 2006, p. 433-451. 17 “O mais compasso da terra he muito são de mui poucas febres, e de poucas maleitas; e des que os Judeos de Castella entrarão em Portugal, que então forom mui grandes pestellenças, nunca mais ouve peste”. Idem, fl. 22. 18 Arquivo Distrital do Porto – Contadoria da Comarca do Porto, liv. 4, fl. 50v-51v; publico-o em apêndice, documento n.º 3. 19 “Quando os hy avia”. Este documento dá-nos uma informação preciosa sobre a extinção deste serviço militar; no caso, na cidade do Porto, mas possivelmente, também em Lamego. 17


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

dinheiros. Nem participariam em trabalhos públicos ordenados pelo monarca ou pelos municípios. Por fim, estavam isentos do pagamento de uma série de tributos que incidiam sobre as produções das suas terras ou de pagamentos de impostos, como a sisa sobre algumas mercadorias, à fazenda pública. Esta elite evidenciava-se na abertura da Época Moderna, aliada ao Rei que a privilegiava e a utilizava como apoio das suas políticas de controlo dos poderes locais. A ela deveu-se, em certa medida, a construção do Douro dos vinhedos. As suas raízes encontram-se na Baixa Idade Média. Mantendo relações com todo o vale do Douro até ao Porto, e com prolongamentos até à fronteira, aos povoados e cidades da raia de Castela, às feiras de dinheiro e aos portos do norte da Península, estabeleceu uma série de redes bem articuladas e responsáveis por um intenso trânsito mercantil sentido em todos os portos, secos e molhados, de Portugal. O exemplo de Rui Fernandes ilustra a capacidade de relacionamento dos centros mais activos da economia nortenha, tendência a que se assistia nesta altura um pouco por toda a região. Como muitos antes e depois dele, ligou-se por laços familiares com outras sociedades mercantis. É no já mencionado documento da Contadoria do Porto que se sabe ser casado com uma portuense, filha de um certo Mestre Dinis, licenciado, e, como outros, identificado pela documentação como um físico e homem de negócios do Porto ligado aos tráficos com o Douro. Os seus recursos, decerto gerados no comércio, permitiam-lhe ser “parceiro em yguoall parte no dito trato dos bordates” com o seu genro. E, ao que parece, com outros mercadores. Este dado sobre a sociedade no trato das lonas merece melhor reflexão. A carta de privilégio mostra-nos Rui Fernandes associado por matrimónio a uma família de cristãos-novos. De acordo com Carlos Valentim, que atrás citei, o mesmo acontecia com o seu irmão Jerónimo, que casara em Lamego com uma cristã-nova da abastada família Paz que geria uma rede internacional desde o Entre Douro e Minho e, mais concretamente, do Porto. Não é impossível que Fernandes fosse também um cristão-novo20. O seu percurso familiar e mesmo a sua participação no trato dos bordates como feitor (e rendeiro) enquadram modelos de intervenção seguidos por esta elite ocupando cargos lucrativos, prestigiados e influentes que, desde logo, lhe permitiam aceder a domínios sociais e económicos, dentro e fora do Reino. Além disso, a cidade de Lamego e o seu bispado eram conhecidos pela sua extensa e movimentada comunidade de cristãos-novos, protagonista de volumosos empreendimentos mercantis e financeiros nos séculos XVI e XVII em Portugal e no estrangeiro21. Neste período de afirmação da economia-mundo,

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O que não impede que tenha escrito o que atrás foi dito a propósito da relação entre a entrada dos judeus no reino e as pestilências. Num tempo tão complicado, com anúncios de estabelecimento da Inquisição e um clima de tensão que a qualquer momento poderia resultar em ataques à comunidade, era indispensável não dar nas vistas e sustentar publicamente uma opinião que caísse bem entre a ortodoxia. Em 1532 esteve a ponto de rebentar em Lamego um tumulto anti-judaico, circulando panfletos que incitavam ao holocausto; NAZARIO, Luiz – Autos de fé como espetáculos de massas. São Paulo: Editorial da Universidade de São Paulo, 2005, p. 65. 21 Basta pensar nos Coronel, família de cristãos-novos de Baiona com um importante ramo em Lamego, ligado ao financiamento da Coroa dual no século XVII; SANZ AYÁN, Carmen – Los banqueros de Carlos II. Valladolid: Universidade de Valladolid, 1989, p. 365-366. Estou neste momento a estudar um processo da Inquisição de Cartagena das Índias onde estas ligações familiares, que se estendem aos portos do Noroeste português e à Andaluzia são descritas. Ou nos Mendes, que começaram por vender vinhos e sumagres desde a Folgosa, Gogim e Vila Seca para o Porto e acabaram por exportá-los para a Europa graças às ligações geradas pelas redes cristãs-novas em que se integravam, nomeadamente a de Mestre Isidro. Ou ainda João Nunes Correia, contratador de Pau Brasil no início do século XVII, com origens em Lamego e Castro Daire; Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses. Mercadores e gente do trato, dir, de A.A. Marques de Almeida. Lisboa: Campo da Comunicação, 2009, p. 425-427. Os percursos de uma parte destes homens podem ser acompanhados em NOVOA, James Nelson; BASTOS, Susana Mateus – De Lamego para a Toscana: o périplo do médico Pedro Furtado, cristão-novo português, in “Cadernos de Estudos Sefarditas”, n.º 5, 2006, p. 313-338. Sobre os cristãos-novos de Lamego e as suas questões com a Inquisição foi recentemente defendida uma tese de doutoramento da autoria de Maria Manuela de Sousa Vaquero Freitas Ferreira, que ainda não me foi possível 18


Estudo Introdutório

a capacidade financeira e de organização dos cristãos-novos deu-lhes o controlo de alguns sectores fundamentais da economia portuguesa. E assim, graças ao texto de R. Fernandes, vemos como uma região periférica participa neste processo. Talvez seja lógico supô-lo dentro da mesma rede que compreendia os Paz como figuras de primeiro plano de articulação económica e de transformação das relações entre os agentes envolvidos, Mestre Dinis e ele como membros (aparentemente) secundários, e todos eles protegendo-se através da integração em instituições poderosas: os Paz, procurando prestigiar-se pela via das alfândegas do Entre Douro e Minho22, Fernandes e o sogro pela posse da feitoria das lonas e o patrocínio do Bispo. Sem certezas quanto a essa origem é, no entanto, inegável a associação de Rui Fernandes aos meios mercantis conversos e, desse modo, aquilo que escreveu integra-se também num processo de acumulação de informação e de saberes que interessavam a estes homens de negócios, como mais tarde fará Bento Fernandes, no Porto, com o seu “tratado de Aritmética” (1555).

consultar mas que parece trazer dados impostantes para o conhecimento desta comunidade dado ter sido investigação realizada sobre documentação de arquivo, nomeadamente o Livro das Denúncias, e complementada com a consulta dos processos respectivos. 22 Entre muitos documentos, ver Torre do Tombo – Corpo Cronológico, parte II, maço 25, documento 50. 19


A feitoria

A feitoria das lonas e bordates era um dos espaços ideais para a intervenção de mercadores, cristãos-novos ou apenas com eles relacionados, de Lamego. A sua existência revestia-se de especial interesse económico não só para a cidade como para toda a região norte do Reino. Ela era a face mais visível de uma “indústria” têxtil já esboçada na Idade Média e importante nos tempos modernos, sobretudo na faceta de produção de lonas e panos interessantes à indústria naval, papel reforçado pela existência de outra estrutura similar igualmente próxima do rio Douro, em Gestaçô, Baião23. No documento que atrás citei, de privilégio a Mestre Dinis, constata-se a articulação entre as duas feitorias e percebe-se que o modelo de funcionamento da de Lamego (assim como os privilégios de que desfrutavam os feitores e os oficiais que nela laboravam) reproduzia o de Gestaçô. Como se disse, representava uma mais-valia em todo este território. Para ela foram canalizados capitais necessários para a construção de estruturas do tipo de pisões no activo lugar do Vau, no rio de Balsemão, junto das atafonas dos moleiros, bem como no ribeiro de Fafel, “o qual rio he a melhor agoa para curar pannos [...] e com elle se curão os ditos bordates, e alguns fustães, que se aqui tambem fazem nos emgenhos dos bordates”24. Com estes engenhos, e com outros de que o texto dá nota, é-nos revelada uma estrutura de algum modo complexa que anunciava as posteriores manufacturas notando-se uma diferenciação produtiva e uma concentração de operações que iam desde a tecelagem à tinturaria. Além disso, a feitoria tinha um importante peso social. Mantendo o tradicional domestic system envolvia uma abundante mão-de-obra que dela retirava o seu sustento. Assim: “e se repartia por fiadeiras, e tascadeiras, e debadeiras todo pollo meudo, que hé regateiras, e panadeiras; ate os prezos nisto ganhavão de comer em debar, e almocreves em carretos, e homens pobres, que não tinhão officios aprenderão a tecelães das ditas lonas”25. Esta breve incursão de Fernandes ao mundo do trabalho na Época Moderna revela, indirectamente, a mencionada penetração do capital urbano no campo e a dependência dos trabalhadores rurais face aos capitalistas, neste caso representados por ele próprio e pelos demais rendeiros da feitoria. Os documentos que publico após a descrição de Rui Fernandes dão a perceber como os rendeiros da feitoria obtinham (ou esperavam obter) lucro: em regime de contratação com o rei, negociando com a Coroa um acordo para entrega das lonas a um determinado preço por peça e produzi-la por um custo menor e ganhar com esse diferencial.

23

Aí o tratador era, pelo menos desde 1528, Tristão Dias – mais um cristão-novo relacionado com o Porto e os seus tratos – e outros. FERNANDES, Rui – Descrição ..., fl. 15. 25 Idem, fl. 18. 24

20


Estudo Introdutório

Por outro lado, e até pela cronologia em que esta acção decorria, assistimos aqui às movimentações características dos cristãos-novos e seus associados que, desde os portos, começavam a ocupar posições influentes em organismos que se pretendia funcionassem em articulação: alfândegas, do mar e da terra, contratação naval e centros de produção no interior, por exemplo, aqueles que alimentavam a construção naval e logística das armadas. No caso dos portos nortenhos e das suas ramificações, este processo iniciou-se na abertura da Época Moderna e concluiu-se em meados do século XVI, alcançando lucros muito elevados no último quartel da centúria e primeiras décadas do século XVII. Os panos manufacturados nessas feitorias, para além de se destinarem ao consumo das populações, respondiam na sua maior parte, às solicitações da política naval dos portos e da Coroa. Nos dois exemplos citados, Lamego e Gestaçô, a principal motivação do seu estabelecimento foi a produção de equipamentos para as armadas, aproveitando as potencialidades têxteis das terras. Além disso, a produção nelas obtida destinava-se a colmatar a quebra das importações originárias de França numa altura em que Portugal mantinha com esse reino um conflito aceso no mar, com roubos, apresamento de navios e represálias de parte a parte26. Com oscilações, características da economia de Antigo Regime, o trato era habitualmente proveitoso e, como acontecia na época em casos semelhantes, o rei arrendava-o. Essas rendas, que solicitavam muito capital mas antecipavam melhores lucros, eram objecto de especulação e arrematadas pelo grupo com maior disponibilidade financeira: o dos mercadores. O dos cristãos-novos. Surgiam assim associações, parcerias de homens de negócios, tendo em vista a sua exploração. Aos feitores competia “por em boa arrecadação os ditos bordates [...] e os feitorizar e fazer carregar pera El Rey noso senhor com mais seguramça e brevydade ser servido”27. Era aqui que Rui Fernandes fazia uma parte da sua vida. De acordo com os manuscritos que apresento no apêndice documental, Fernandes está ligado à feitoria pelo menos desde 1526, quando já tinha o contrato. Desconhece-se se nesse ano já tinha sociedade com o sogro – ou sequer se já era então casado – como aconteceria de certeza a partir de 1530 ano em que se sabe que essa feitoria das lonas e bordates era explorada pelos dois (e talvez com outros mais28) em parceria. Estudar os documentos publicados em apêndice (principalmente os dois alvarás) é apreender uma parte interessante da história do Douro a partir de Lamego: a da sua participação por via das lonas na Expansão marítima portuguesa, fornecendo velas para os navios das armadas, entregues, como se pode ver, anualmente, no armazém régio de Lisboa, estrutura ligada à Ribeira das Naus. Lonas vitres, de boas dimensões. Ajustadas aos grandes navios da carreira da Índia. Vitré é uma localidade da Bretanha, outrora famosa pelas velas que produzia desde a Idade Média, despachadas pelo porto de Saint-Malô, e conhecidas na maior parte dos estaleiros europeus. A toponímia passou a designar as velas e o aportuguesamento da expressão resultou neste tipo de pano: lona vitre. No início do reinado de D. João III, homens do mar, construtores navais, secretários e conselheiros do rei perceberam a dependência do reino das importações de materiais de construção naval e da fragilidade dos ritmos de

26

Já aqui referido; ver FERREIRA, Ana Maria – Problemas marítimos entre Portugal e a França na primeira metade do século XVI. Redondo: Patrimonia Historica, 1995. 27 Ver apêndice documental, documento n.º 3. 28 De acordo com o documento da Contadoria, em Gestaçô o trato dos bordates fora arrendado a um titular (Tristão Dias) e a quatro feitores a que se atribui a categoria genérica de “oficiaes macanicos”. No caso de Lamego, em 1530, Rui Fernandes era sócio, em igual parte, do sogro no referido trato; não se sabe se havia mais ou quantos seriam os restantes parceiros, nem qual a sua parte nesse trato. 21


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

abastecimento, exigindo uns e incentivando outros a produção interna, para o que foram criadas as feitorias: a de Lamego, que parece ser a mais antiga, e a de Gestaçô, de que há notícias pelo menos até perto dos anos de 1540. De Lamego saíam, como os documentos nos indicam, cerca de 550 a 600 lonas anuais para Lisboa, a 1450 reais cada uma, que o rei pagava tarde e mal, recorrendo, como era então costume, às rendas dos concelhos em redor (no caso, São João da Pesqueira, Castanheiro e sisas de Lamego e Viseu). Possivelmente, estas dilações, que se parecem repetir, terão estado na base de dificuldades sentidas pela feitoria. A somar aos atrasos nos pagamentos, na altura em que Rui Fernandes escreveu o seu tratado decorria um período de tréguas entre os dois reinos e as importações foram retomadas com evidente prejuízo para a feitoria lamecense, cujas lonas rendiam, até aí, 800 mil reais e “este anno passado, que não ouve contrato pollas pazes de França, ficão desbaratados”29. O dado sobre o rendimento da instituição é real e atesta a qualidade de muitas informações deste texto: em 1529, a Contadoria da comarca devia a Rui Fernandes 797500 reais30.

29 30

Descripção…, cit., fl. 18. Ver apêndice documental, documento n.º 2.

22


O primeiro quadro de Lamego

Este breve estudo introdutório poderia ter sido iniciado com a citação do matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, contemporâneo de Rui Fernandes, sobre as diferenças entre a Geografia e a Corografia. Escreveu o cientista: “o proprio da Geographia he amostrar que a terra conhecida he hũa e continua: e ho sitio naturall della: e trata somente das mayores partes e mais principais que nella ha [...]. Porque ho fim do Corographo consiste em representar bem hũa parte: como quem quisesse somente arremedar hum olho ou hũa orelha. E ho Geographo olha somente ao todo: como quem pinta a cabeça. [...] E portanto na corographia ha necessidade da pintura dos lugares: e nenhũ homem sera Corographo: se não for pintor”31. Com a sua corografia, Rui Fernandes mostrou-se bom observador e excelente “pintor” legando-nos relevantes “quadros” sobre variada temática das terras ao redor da sua cidade, abrangendo freguesias dos actuais concelhos de Resende, Lamego, Castro Daire, Armamar, Tarouca, Moimenta da Beira, Tabuaço, São João da Pesqueira e Penedono. Desde logo, deixou-nos pertinentes informações de carácter demográfico. Diligente ou apenas curioso, teve o cuidado de percorrer os lugares do aro de Lamego e deixar registado o número dos seus vizinhos. No fólio 17 indicanos a totalidade dos filhos da terra: 25 580, ou seja, cerca de cinco crianças por cada casa de família. Mas, neste particular, não resistiu a “retocar demasiadamente a pintura”, comentando: “e isto mais se ham-de achar de sinco para sima, que de sinco para baixo porque nesta cidade ouve molher que avera vinte e quatro annos que he falecida, e hoje são vivos della bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a mor parte destes são femeas e ella nom teve mais de hum só marido”. Se a cifra dos filhos de Lamego acima indicada não parece ser exagerada conhecemos as dificuldades em encontrar coeficientes multiplicadores, que variam segundo as épocas e os lugares, e por isso ela deve ser testada através do confronto com outros estudos de Demografia histórica. De qualquer modo, a tendência parece ser de crescimento e os números de Fernandes aceitáveis. Numa panorâmica geral, e com os devidos cuidados, explicam-nos os historiadores da Demografia que desde o último quartel do século XV, cidades e campos conheceram uma recuperação dos efectivos e um aumento da população, propensão que se manterá durante uma boa parte do século de Quinhentos32.

31

Pedro Nunes – Obras. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1940, p. 92-93, cit. por GUERREIRO, Manuel Viegas e MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero – Duas Descrições do Algarve do Século XVI, cit, p. 3. 32 Sigo de perto o rigoroso estudo de João José Alves Dias – Gentes e Espaços (em torno da população portuguesa na primeira metade do século XVI), vol. I. S/l.: Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1996, bem como a síntese do mesmo investigador publicada no vol. V da Nova História de Portugal (dir. de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques), Portugal. Do Renascimento à Crise Dinástica (coordenação de João José Alves Dias). Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 11-52. 23


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Século que foi também de movimentações. Dos campos para as cidades, dos portos para o Ultramar ou para os domínios castelhanos. Temporárias ou permanentes. No conjunto das inúmeras migrações internas registadas no século XVI, uma delas teve particular significado nesta região e Rui Fernandes não deixou de a mencionar: a das gentes da montanha para a planície e para os centros populacionais mais prósperos. Em busca de trabalho. São testemunhos como este que nos levam a um vale do Douro onde havia amplo recurso à mão-de-obra montanhesa, particularmente em alturas sazonais de labor mais intenso no campo. A confirmá-lo, a análise dos diversos fundos documentais revela-nos transferências, não apenas para a cidade de Lamego mas, também, para os povoados do seu termo. Encontraremos mais adiante estes trabalhadores da “serra”. Em relação a indicadores de população diga-se que, entre 1496-97 (inquéritos manuelinos da Beira e Estremadura) e 1527-32 (“numeramento” do Reino) registou-se um forte crescimento em localidades não muito distantes daquela que nos ocupa: Pinhel (119%), Trancoso (156%), Linhares (66%), Longroiva (92%), Muxagata (120%) e Casteição (132%)33. Quanto a Lamego, possuímos os números relativos aos fogos existentes em 1532: 20 70734. Portanto, a estimativa que o tratador de bordates registou, porque é disso que se trata, de uma estimativa, parece verosímil. Como a demografia, os temas económicos, que estudarei mais adiante, integravam esta necessidade de listar, esta necessidade de informar (ou propagandear35) moderna. Por motivos fiscais, eficácia da governação e dos negócios arrolavam-se os recursos existentes, com rigor, ou com o rigor possível. Essas preocupações levaram Rui Fernandes a descrever com algum pormenor os diferentes tipos de produção, quantidades36 e formas de distribuição. Pelas mesmas razões interessou-se por conhecer a posse da terra e a disponibilidade dos meios produtivos. Também nesta matéria importa comparar as informações de Fernandes com dados publicados por investigadores dedicados ao tema37. Na generalidade é possível aceitar como válidos os elementos por si avançados sobre a propriedade do aro de Lamego registados entre os fólios 2 e 7v. Outros assuntos deverão ser considerados com maior cautela. É que apesar da nova mentalidade e da modernidade do texto em grande parte da sua redacção, ainda havia uma atracção irresistível por registar para a posteridade as “abundâncias e bondades” da terra. E assim, numa das poucas ocasiões em que a sua imaginação entrou em conflito com a realidade, diz-nos que uma espiga de “milho marroco” era capaz de dar uma quarta de alqueire (mais de quatro kg.) e que de uma nogueira se colhessem cinquenta alqueires de nozes (mais de 800 kg)38. Em contrapartida é muito útil a informação sobre o milho recém-chegado à Europa e, em todo

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DIAS, João José Alves – “População”, in vol. V da Nova História de Portugal ..., cit. na nota anterior, p. 14-15. Idem, Gentes e Espaços..., cit., p. 247. De acordo com as investigações deste autor este número deverá ser multiplicado por uma cifra entre 4,3 e 4,8 (talvez por esta última dado que a zona envolvente do Douro terá sido das que mais beneficiou com a expansão demográfica), ou seja, o valor, em média, do agregado familiar doméstico. Idem. Ibidem, p. 61. 35 GUERREIRO, Manuel Viegas; MAGALHÃES, Joaquim Romero – o.c., p. 5. 36 Ver quadros sintéticos sobre as cifras das produções no valioso estudo de Gonçalves Guimarães, citado. 37 Alguns exemplos: FERNANDES, Almeida – Censual da Sé de Lamego (Século XVI). Arouca: Associação de Defesa do património arouquense/ Câmara Municipal de Lamego, 1999; COELHO, Maria Helena da Cruz – “S. João de Tarouca em tempos de Quinhentos”, in Homens, Espaços e Poderes. Séculos XI-XVI. II – Domínio Senhorial. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, p. 173-220; BARROS, Amândio; LEAL, Paula Montes – Os pergaminhos da Quinta da Pacheca. I. Porto: Edições Afrontamento/Associação “Beira Douro”, 2000. Neste último caso, ficamos com uma primeira impressão acerca do processo de posse da terra e dos meios de produção no bispado de Lamego, com destaque para a intervenção judaica na produção de vinhos. 38 Ver, respectivamente, fl. 4v, 5v. 34

24


Estudo Introdutório

o caso, ainda hoje não são raros os exemplos em que “um pé de vide amaral” produza uma pipa de vinho (cerca de 550 l) e que haja castanheiros a cuja “sombra se podem acolher mais de 300 homens”39. Também os aspectos sociais estão bem presentes neste texto. Com uma pincelada muito sugestiva, o corógrafopintor deixa-nos (fólio 12) um retrato vivo de uma comunidade rural montanhesa quando nos fala da Serra de Montemuro e do jeito de viver das suas gentes: “a gente desta Serra são gentes lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras. Vestem burel e calçam avarcas que são feitas de correia de vaca, e alguns andam sem carapuças”; gente endurecida pelo rigor do clima, “e nunca em suas doenças se curam com médicos” e pela frugalidade da alimentação, vivia na maior parte do tempo isolada e apenas descia à cidade para vender o gado que criava e trabalhar no que na cidade lhe era oferecido. Também fala dos caseiros, apontando o exemplo dos de Mosteirô, para dizer que sonegavam as rendas e insinuar que os proprietários eram descuidados porque o admitiam. Com estes grupos humanos contrastava a sociedade de Lamego, mais cosmopolita, à qual Fernandes pertencia e da qual nos deixou igualmente um bom retrato, mostrando como ela, por intermédio do gosto difundido desde os portos do litoral e dos viajantes, começava a ser influenciada pelo novo mundo criado pelos descobrimentos e pelo Renascimento. Uma influência que se reconhecia, por exemplo, nos melhoramentos materiais e no arranjo urbano que os notáveis lhe procuravam imprimir. Visível, por exemplo, quando o texto é dirigido (na forma de conselho ou de adulação, conforme as circunstâncias) à figura daquele a quem dedica a obra: o Bispo D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, bispo-fidalgo, primo de D. João III, seu capelão-mor40 e futuro Arcebispo de Lisboa (entre 1540 e 1564). Constantemente lembrado como protector e patrocinador de obras de vulto (assinalemos o facto de ter sido sob o seu patronato de tipo renascentista que foram atraídos a Lamego alguns artistas do gabarito de um pintor como Diogo Lopes), aparece, como não podia deixar de ser, como figura central da cidade, mecenas de variadas obras no burgo, e isto apesar de ter passado a maior parte do seu tempo junto da corte e dos ambientes mais mundanos de Coimbra e Lisboa, onde residia habitualmente. Rui Fernandes gaba-lhe a “formosura” da horta que mandou cultivar e manter a cargo de um hortelão permanente ou a iniciativa de ter aberto o célebre Poço da Bomba, equipamento de evidente valor social, bem como o arranjo do Paço41 para o qual se deslocou o leito do rio Coura de junto da Sé para próximo do hospital, que ficava onde hoje se situa o teatro42. Fernandes reconhecia também o valor da proximidade do poder e dos jogos de influências que ali se desenrolavam. Por isso, não hesitava em dirigir-se ao bispo e solicitava-lhe que fizesse uso da sua influência na Coroa. Pedia-lhe, por exemplo, para interceder junto do rei para que este dotasse a cidade de uma “casa do peso da farinha”43,

39

O. c., respectivamente, fls. 7v e 5v. Recordemos as informações avançadas por ALVES, Francisco Manuel (abade de Baçal) – Memórias arqueológicohistóricas do distrito de Bragança, vol. IV. Porto: Edições Afrontamento/GEHVID, 2000, segundo as quais a Vereação de Ansiães se reunia debaixo de um castanheiro. De qualquer modo, as Vereações, mesmo em casos excepcionais, dificilmente reuniriam tal número de pessoas. E o mesmo se pode dizer sobre qualquer ajuntamento de pessoas nestes tempos. 40 Sobre este bispo e a sua actuação em Lamego, podem colher-se informações úteis nos três primeiros volumes da obra de COSTA, M. Gonçalves da – História do Bispado e Cidade de Lamego. Lamego: s/e, respectivamente, 1977, 1979, 1980. Também Augusto Dias, na obra que tenho vindo a citar, p. XVI-XVII deixa algumas notas sobre este prelado. 41 Idem, respectivamente, fl. 7v e 19v. Ver também o estudo de RESENDE, Nuno – A diocese de Lamego no contexto do património religioso e cultural português, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 22, 2007, p. 155-159. 42 COSTA, M. Gonçalves da – o.c., vol. III, p. 18, 358. 43 Idem. Ibidem, fl. 13v. 25


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

reputada como estrutura essencial. Ainda em termos sociais elogia-o pelo cuidado que teve na promoção educativa dos jovens do seu bispado, quer os das aldeias, quer os da cidade, quer ainda os que andavam com o gado no monte, dentro dos moldes culturais e mentais da época, pré-tridentinos mas preparatórios da reforma católica que se aproximava. A este propósito aponta no fólio 17 que não há moço nem moça “que não saybão o Pater Noster, Ave Maria, e o Credo, e a Salva Regina, e os Mandamentos, e ajudar a missa em modo que os filhos ensinão os paes e as mãis [...] pellos mestres, e cartilhas, que Vossa Senhoria mandou poer em todas as igrejas do seu Bispado”. A sua opinião já não é tão positiva em relação ao governo dos “oficiais mecânicos”, que não se inibe de censurar, considerando-o descuidado e, com isso, responsável pelas dificuldades de crescimento do termo da cidade, que era muito necessário ao seu desenvolvimento. Como entender este posicionamento? Como o que resulta de rivalidades entre grupos que disputam o poder municipal? Entre elites? Entre elites e gente dos ofícios que procurava os mesmos privilégios? Note-se que a certa altura lamenta-se do facto de os homens "baixos" serem nomeados almotacés só porque estão ligados a gente poderosa. A somar a todas essas hipóteses, o grupo de pertença de Rui Fernandes, ainda há pouco discutido, posicionava-o em termos políticos e sociais no centro de um jogo de poderes complexo que, por vezes, se mascarava de problema religioso para eliminar adversários tidos como poderosos. É a questão dos cristãos-novos, no fundo da ascensão de mais uma elite, forte, que se procurava afirmar buscando apoios junto de quem podia apoiar: junto do bispo humanista? Do Cabido? Em Lamego, como no Porto, ou em Braga. Só estudos mais aprofundados sobre esta faceta da vida urbana lamecense – desde logo procurando saber quem financiou as obras públicas e privadas que os prelados, sobretudo desde D. Fernando de Meneses, ordenaram – nos poderão dar indicações mais precisas acerca do assunto que, de resto, passa por um conhecimento detalhado dos grupos sociais, dos seus quadros culturais e mentais, daquilo que os unia e os afastava, de que ainda não dispomos. De alguma maneira, as críticas de Rui Fernandes aos mesteirais44 poder-se-ão também explicar pelos bloqueios que eventualmente sentia a partir da feitoria e do conhecimento que tinha da realidade do seu tempo. A estreita ligação ao Porto, desde logo realizada ao sabor dos movimentos comerciais e muito através das redes cristãs-novas, deu-lhe a observar a forma como esta cidade dependia, de forma estreita, do domínio que exercia sobre o seu termo. É natural que as suas afirmações tenham como base a noção das potencialidades que Lamego poderia explorar com a concretização de um processo semelhante e com a recuperação da economia local em articulação com o tráfico rumo ao litoral. Para finalizar esta nota relativa ao exame da realidade social do seu tempo, note-se o facto de, à semelhança de outros lugares do Reino, também em Lamego se fazer sentir o fenómeno do ingresso de muitos nas fileiras mercantis. Que aparece como uma novidade, mas que se tornou uma regra social quase universal na sociedade portuguesa do século XVI, na qual se nota uma forte tendência para a pluriactividade e correlativa dispersão de investimentos45. O dinheiro fluía, em circuitos mais ou menos fechados – tendencialmente burgueses – e estimulados pelo negócio

44

Importa perceber que as organizações de mesteres que chegaram ao poder municipal em várias localidades do reino desde finais da Idade Média (tornando também uma elite) eram – se assim as podemos considerar – bastante conservadoras e constituíram-se, por vezes, em forças de bloqueio de iniciativas sugeridas por outros grupos, como os mercantis. 45 BARROS, Amândio – Fortune de mer et pluriactivité dans le Nord-Ouest du Portugal au XVe et XVIe siècles, in «Seminaire d’Histoire Economique et Maritime: Ports er Littoraux de l’Europe Atlantique au Moyen Age», La pluriactivité, forme de gestion des risques économiques chez les sociétés littorales en Europe atlantique (XIe-XVIe siècles)? La Rochelle/Nantes, 2007, no prelo. 26


Estudo Introdutório

determinado desde os centros costeiros. Os proventos da actividade primária (na qual investiam através do emprazamento de terras junto de instituições monásticas e casas senhoriais) eram reinvestidos na compra e venda de mercadorias. Trata-se de um processo impelido pela expansão ultramarina e pela integração dos negócios das redes nos mercados internacionais, e sentido com maior vigor nos portos embora estes, como vimos, cada vez mais articulassem os seus interesses com o mercado interior. E assim, quem conseguisse amealhar algum dinheiro tratava logo de o tentar rentabilizar através do comércio46. Na região de Lamego, escreve Rui Fernandes, “qualquer alfayate, ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil reis logo se fazem mercadores”. Mas, ao que parece, com vantagens sobre outros: “e para estes he milhor o trato da terra, que para os homens de fazenda grossa pollas mercadorias serem meudas, porque como hum mercador a que tem dous, tres mil cruzados parece que he mais rico que [quem] em outra parte tem quinze, vinte mil cruzados, e nom duvido porque nesta terra valem mais duzentos mil reis que em outra parte quatrocentos mil reis”47.

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Trata-se de uma prática corrente no Porto. Há um registo imenso de mesteirais, ourives, sapateiros, ferreiros ou cordoeiros envolvidos em diversas actividades ligadas ao comércio, desde a simples compra e venda de mercadorias às complexas operações bancárias. 47 FERNANDES, Rui – Descrição …, fl. 22. Além disso, estes mercadores estavam bem escorados pela posse de “campos, vinhas, soutos, ollivais e assi outras erdades mais que em outras partes”. E não precisa de as ter muito grandes pois “hum cazal, por pequeno que seja” é suficiente dado que dele “colhe todos os renovos”. O problema é de quem não tem terra. Aquele que a não possui “he mais pobre que em nehũa parte porque nom tem mais que dez reis de jornal e comer e beber”. Idem. Ibidem. 27


Os vinhos e o Porto

Uma das ideias fortes deste estudo, levantada pelo estudo do documento de Rui Fernandes, é a da articulação entre o centro consumidor/exportador portuense e a região produtora do vale do Douro. Já aqui invoquei motivos que explicam a prosperidade comercial e marítima do Porto, em concreto a capacidade de atrair e canalizar para o seu porto uma grande parte da produção das comarcas ao redor, estendendo a sua influência ao Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Beiras. Os cuidados com a manutenção e melhoria das comunicações, fluviais, marítimas e terrestres eram inseparáveis de ambições jurisdicionais e económicas48. Uma ligação evidente foi aquela concretizada com o vale do Douro, traduzida na circulação de barcas e recovas de almocreves; entre estes, os de Lamego mereceram palavras elogiosas de Rui Fernandes pela sua diligência e capacidade de movimentação. Não é possível desenvolver aqui a composição deste comércio nem avaliar o papel de cada agente – os almocreves, por exemplo, eram usados pelas redes comerciais como correios e transportadores até Medina del Campo, Valladolid ou Burgos – pelo que me limito a apontar os grandes volumes de vinhos e sumagres durienses trazidos para o Porto, alimentadores do seu comércio marítimo, e, em sentido inverso, o peixe da costa, as especiarias, o açúcar quando for caso disso, as obras de arte e as ideias que a cidade difundia. E é aqui que vale a pena observar a história dos vinhos do Douro acompanhando dois estudos recentes que escrevi com Gaspar Martins Pereira49. A geografia do vinho do tempo de Rui Fernandes era bastante diferente daquela que hoje conhecemos. Grande parte dos vinhos conduzidos para o Porto vinha da zona conhecida nos documentos como Riba-Douro, e esta grosso modo ficava na mancha que abarcava as regiões dos cursos inferiores dos rios Douro e Tâmega até Mesão Frio. Na área da actual região demarcada destacavam-se os vinhos de Santa Marta de Penaguião e Lamego, áreas que virão a ser mais beneficiadas na demarcação do século XVIII. Da zona de Lamego merecem ser citadas as remessas de vinhos do vale do Varosa expedidos desde os domínios Salzedas e São João de Tarouca. Mosteiros cistercienses, também eles integrados numa rede de saberes de tipo internacional que circulavam entre as diferentes casas europeias através de monges peregrinos, o investimento

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Enquadram-se no primeiro caso as iniciativas de destruição das pesqueiras do Douro, no segundo o serviço de barcas para Matosinhos, Leça, Aveiro, e terceiro a construção da ponte de Lagoncinha sobre o rio Ave na estrada que ligava a cidade a Braga, entre outros exemplos. 49 O comércio de vinho na Época Moderna: uma perspectiva comparativa a partir do Porto, in Conferencia Internacional “Patrimonio Cultural de la Vid y el Vino”, Almendralejo, 8-11 de Fevereiro de 2011 (Actas no prelo); Port-wine and the Douro region in the Early Modern Period, in “9th European Social Science History Conference”, Glasgow, 11-14 de Abril de 2012. 28


Estudo Introdutório

Para uma geografia dos vinhos na Idade Média – Mosteiros e regiões produtoras

9

Porto

5

15

2

18 10

14

6 20

1

17

3

7

13 12

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20

11 4 8

Alpendurada e Matos Amarante Ancede Barqueiros (Mesão Frio) Eja Entre-os-Rios Espadanedo (Cinfães) Lamego Mancelos Marco de Canaveses Mesão Frio Nespereira (Cinfães) Oliveira do Douro (Cinfães) Paço de Sousa Pedorido Salzedas Santa Marta de Penaguião Sta. Cruz de Riba Tâmega (actual Sobretâmega) São João de Tarouca São Martinho de Sardoura

Norte

16 19

Mosteiros e regiões produtoras RDD Rede hidrográfica 0

Fonte: AHMP - Vereações do século XV.

11 km

miguel nogueira / 2004

que fizeram na vitivinicultura duriense, desde o século XII, “terá contribuído, decisivamente, para a especialização regional”50. Desde muito cedo, ainda em tempos medievais, os viticultores durienses, a começar nos mosteiros, prestaram atenção às questões do solo e às condições naturais que favoreciam a produção de vinhos. De forma empírica, e sigo de perto os estudos em cima indicados, a viticultura tradicional duriense seleccionava os terrenos pobres, de xisto, nas zonas de encosta e de melhor exposição solar fugindo das áreas húmidas, reservadas a hortas e outros cultivos, e dos terrenos de maior altitude, abandonados à floresta. Na época em que Rui Fernandes escreveu era evidente o conflito de interesses entre as necessidades de subsistência das populações e a expansão do vinhedo. Nos espaços onde era possível combinar vinhas e cereais, aquelas eram constituídas apenas pelas videiras plantadas em pilheiros nas paredes dos socalcos deixando-se a terra do geio livre para o cultivo de cereais. Com alguma precaução é possível acreditar que Rui Fernandes começava a ver os contornos dos socalcos, e que alguns deles fossem já destinados à vinha. No fólio 18v afirma o seguinte: “Item: esta terra he muito montuoza, pella mor parte he toda muito aproveitada, que em ella nom ha pedaço que nom seja aproveitada, principalmente para o Douro; e os homens são tão bemfeitores, que ás fragas altas levão o cesto da terra ás costas para plantarem parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieyras, e todo outro arvoredo”, alusão que me parece nítida quanto à edificação do geio duriense, embora a técnica de construção dos socalcos não coincida exactamente com o método descrito – a terra que cobre o terraço não é levada às costas, antes é retirada da própria montanha.

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PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – Port-wine and the Douro region, cit., p. 3. 29


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Por outro lado, a forte diversidade do território determinou igual diversidade dos terroirs vitícolas. Antes do século XVIII, algumas zonas dos vales dos rios Varosa e Pinhão eram afamadas pela excelência dos vinhos brancos, enquanto outras, como Covas do Douro, o eram pelos seus vinhos retintos. Na região, as casas religiosas que se ligaram ao projecto económico vitivinícola introduziram formas de organização e gestão patrimonial eficazes e novidades tecnológicas. As primeiras grandes quintas vinhateiras foram equipadas com lagares, tonéis e adegas onde eram produzidos e se conservavam vinhos cada vez melhores. Rui Fernandes cita algumas delas, como a Folgosa (actual Quinta dos Frades), Paço de Monsul e Mosteirô, ainda hoje em actividade. Desta última, a Quinta de Mosteiró, propriedade de São João de Tarouca, diz que saíam anualmente entre quinze a dezasseis mil almudes de vinho, ou seja, cerca de 650 pipas, e “dalli todos vão de carregação”. De resto, este mosteiro cisterciense tinha ao seu dispor uma pequena frota de barcas vinhateiras que percorriam o Douro até ao Porto levando vinhos e trazendo sal, tal como acontecia com o vizinho de Salzedas. A atitude modernizadora destas instituições monásticas foi seguida por outros proprietários. Desde finais do século XV podem ser detectados movimentos interessantes de burgueses que, desde as cidades, entravam na posse de propriedades vitivinícolas, muitas delas a partir de antigas parcelas de domínios eclesiásticos aforadas em casais onde implantaram lagares e adegas, e estabeleceram esquemas de escoamento. Vinham do Porto, caso mais documentado e referente à elite camarária, mas também de Lamego e de Viseu. Introduziram na região duriense uma dinâmica de mercado inserindo o vinho em redes e circuitos comerciais mais distantes. Esta tendência viria a ser acentuada desde meados do século XVI, à medida que estes agentes – mosteiros incluídos – ligaram os seus interesses aos das elites mercantis dominadas pelos cristãos-novos, que detinham interesses em vários pontos do território do vinho, desde os portos, e o introduziram nos esquemas da economia-mundo51. Nos séculos XV e XVI, o melhor vinho do Douro estava ainda longe da qualidade e do sucesso comercial internacional que viria a alcançar no século XVIII. Na sua maior parte, não era ainda um vinho doce. Mas isto não quer dizer que “não se produzissem vinhos doces no Douro, nem que não existisse um comércio significativo em torno desses vinhos, nem que não tivessem já qualidades distintas de aroma e sabor, e sobretudo, capacidade de envelhecimento”52. No final dos anos de 1460, o barão Leão de Rosmital, em viagem pelo Douro, encontrou entre Freixo de Espada à Cinta e Moncorvo “vinho de uvas passas, a que na Boémia se chama vinho grego”53. Pouco mais de um século depois, um contrato de vinhos no Porto refere a venda de 32 pipas de “vinhos maduros, doces e sem saybro” de Canelas54. Ainda no século XIX, Teixeira Girão falava dos vinhos de Candedo, Freixo de Espada à Cinta,

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Estes interesses não devem estar separados dos interesses de judeus de Lamego que, desde o século XV, foram notados a arrematar várias propriedades de vinho em zonas como Samudães, Valdigem, Penude, Avões, Paredes, Vale de Vacas, etc. Ver as referências a judeus e a vinhas em BARROS, Amândio; LEAL, Paula Montes – Os pergaminhos da Quinta da Pacheca, cit. A imensa quantidade de contratos notariais sobre parcerias para venda de vinhos desde o Porto (envolvendo mercadores cristãos-novos, e outros), com vinhateiros de Baião, Amarante, Canelas, Régua, Rede, Tourais, Lamego, etc., na segunda metade do século XVI, comprova o interesse destes “capitalistas” no negócio do vinho. 52 PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – O comércio do vinho na Época Moderna, cit., p. 6. 53 A viagem do barão boémio em GARCÍA MERCADAL, J. – Viajes de extranjeros por España y Portugal. 2 volumes. Madrid: Aguilar, 1952-1959 e em Camilo Castelo Branco – Cousas levas e pesadas (“Portugal ha quatrocentos annos”). 2.ª ed. Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1908, p. 63-96. 54 BARROS, Amândio – “Vinho maduro, doce e sem saybro”. Algumas notas a propósito de um contrato de compra e venda de vinhos de finais do século XVI, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. 8, 1999, p. 119-138. 30


Estudo Introdutório

como sendo feitos à maneira de Málaga55. A prática de vindimas tardias, com uvas muito maduras – que nos nossos dias alguns produtores durienses se esforçam por recuperar – poderia ter dado origem a vinhos desse tipo, que os mercados apreciavam. No entanto, os mais correntes seriam vinhos secos e aromáticos, brancos ou tintos, que desciam o rio Douro até ao Porto, o principal mercado. Desde o século XV, senão antes, os rendimentos dos tributos lançados sobre os vinhos – como a sisa dos vinhos – eram a maior fonte de receita da cidade. Essa perspectiva de lucro teve efeitos sobre a região produtora, suscitando renovados investimentos. Rui Fernandes não se cansa de o notar (fólio 4v) apressando-se a registar produções e tipos. Uma das grandes novidades deste documento é a informação, a que os historiadores recorrem muito, sobre as castas: bastardo, trincadente e outro semelhante chamado agudelho, alvaro de sousa (equiparado ao delicado malvasia), catelão, que é de certeza o castelão, conhecido desde a Idade Média, lourelo, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal e burral, çamarrinho tinto, vários tipos de ferral, ceitão, mourisco, felgosão. Segundo as suas próprias palavras apenas teve o cuidado de descrever as castas de que resultavam vinhos de boa ou excelente qualidade. Porque muitas mais havia. Uma produção muito elevada de 15 mil pipas anuais de néctares, definidos deste modo: “são os mais excelentes vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar, e mais cheirantes, porque há aí vinhos de quatro, cinco e sete anos, e de quantos mais anos é, tanto mais excelentes e mais cheiroso”. Estes “maravilhosos vinhos de pé”, que Fernandes distinguia dos vinhos “amarais”, inferiores, baratos e destinados a “beberragens de mar” (fólio 5), representavam cerca de 90% da produção de Lamego, eram vendidos a bom preço e embarcados desde a cidade: “a maior parte dos vinhos de todo este compasso se carregam pelo Douro em barcas para o Porto e para Entre Douro e Minho, para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas e para as armadas de El Rei nosso senhor”. Os melhores vinhos eram vinhos de elites. Fernandes não deixa de o sublinhar que “os vinhos cheirosos e de maior quantia vão por terra para muitos senhores e para a corte de Castela e assim alguns para a corte de Portugal”. Isso devia-se à sua capacidade de conservação. Ao contrário da maioria dos vinhos de então, que se degradavam em pouco tempo, os melhores vinhos durienses distinguiam-se pela forma como envelheciam, o que também justificava os preços altos a que eram transaccionados: “há alguns anos – garantia Rui Fernandes – que aqui se vende muito vinho a 400 réis e a 500 réis o almude do velho que cheira e também muitos anos se vende muito vinho para Guarda, para Viseu, para Riba Côa, para a Beira”. Foi este vinho, o vinho do Douro capaz de viajar, que alimentou o comércio marítimo e abasteceu as armadas, às quais, como se viu, Fernandes reservava os amarais, feitos de “de muito más uvas”; mas é de crer que nem todos os que se destinavam aos navios fossem tão vis. A relação vinho-actividade marítima, com destaque para os abastecimentos às armadas explicou modificações estruturais. Explicou, por exemplo, a ultrapassagem das fortes limitações ao comércio conhecidas desde a Idade Média. Até finais deste período, a maior percentagem da produção de vinhos durienses destinava-se ao consumo urbano e ficava, na sua maior parte, na cidade do Porto. O vinho era indispensável na dieta dos homens da Idade Média e da Época Moderna. Toda a Europa influenciada pela matriz cultural mediterrânica prestava atenção à produção, distribuição e consumo de vinhos submetendo-os a numerosa legislação.

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GIRÃO, António Lobo de Barbosa Teixeira – Memoria historica e analytica sobre a Companhia dos Vinhos denominada da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Lisboa: Imprensa Nacional, 1833, p. 310. 31


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

A dificuldade de conservação, além de explicar a extensa geografia vitivinícola 56, justificava a aprovação de medidas restritivas à comercialização. Essas medidas eram particularmente complexas nos centros urbanos, dependentes das remessas enviadas das regiões produtoras. As prioridades eram, por um lado, o combate ao contrabando e à especulação, e, por outro, a manutenção de reservas suficientes para assegurar o abastecimento da cidade. No caso do Porto, somente os vizinhos tinham liberdade de vender os vinhos das suas terras (“de sua lavra e cutelo”) mas o terço destes vinhos ficava retido na cidade, para ser vendido ao povo, nas tabernas e no cais da Ribeira, “à prancha”. Durante os séculos XV e XVI, portugueses e castelhanos puseram em marcha uma expansão marítima que daria origem a um sistema mundial. Embora o coração desse sistema viesse a situar-se desde finais do século XVI na Europa do Norte, nas Províncias Unidas e na Inglaterra, “a abertura do mundo marítimo e as condições para a entrada de novos concorrentes ao comércio internacional de vinhos foram de criação ibérica”57. Os estímulos à produção chegaram do mar. Os armadores e os mercadores precisavam de fornecer as suas naus e caravelas, e garantir carregamentos para vender no estrangeiro. As frotas reais tinham de ser abastecidas, como abastecidas tinham de ser as comunidades portuguesas do Ultramar. As embarcações estrangeiras que aferravam na cidade solicitavam vinhos para sustentar a equipagem. O Douro começava a ser percorrido por agentes comerciais ao serviço dos navios e das armadas. Não havia navio que saísse do Porto sem embarcar pipas de vinho, para consumo dos marinheiros e para venda; não havia armada que zarpasse para a Índia, para o Atlântico ou para qualquer expedição militar, que não fosse precedida de requisições régias de vinhos nos portos. Se para o Porto predominavam os carregamentos que transitavam pelo Douro, para outros portos o trânsito fazia-se em percursos terrestres que aproveitavam a rede viária existente – por mais deficiente que ela fosse – por intermédio de mercadores itinerantes como os almocreves e carroceiros, que levavam uma parte dos vinhos a Viana ou Aveiro, ancoradouros onde a venda de vinho de Lamego é documentada por toda a Época Moderna. Desde o sul da Península, a eliminação dos últimos redutos mouriscos em finais do século XV trouxe para o mercado os valiosos vinhos de Jerez e de Málaga e do espaço insular vieram os vinhos (“de escala”) das Canárias e da Madeira. Com os do Douro e, em casos específicos, os ribatejanos e os da ribeira do Lima, criava-se uma dinâmica que, sem colocar em causa o domínio do mercado por parte dos vinhos franceses, integrava os vinhos ibéricos nas listas de compras dos negociantes europeus.

56 57

Produziam-se vinhos – de escassa ou nenhuma qualidade – nas zonas mais impensáveis, inclusivamente no interior das cidades. PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio – O comércio do vinho na Época Moderna, cit., p. 7-8.

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Outras gentes, outros produtos

A estrada, a recova de almocreves, o labor dos carreteiros e os passos de barcas, de que Fernandes dá abundante informação, foram vitais para a sobrevivência e promoção da economia duriense. Entre os muitos trilhos percorridos chamam à atenção os que atravessavam as zonas montanhosas. Caminhos velhos de séculos por onde vinham, sabe-se lá em que condições, as tradicionais “rogas” nas alturas das grandes fainas agrícolas. Desde o Sul transitava-se pela antiga “estrada da Beira”, ramificada por caminhos que chegavam a povoações secundárias, unidas pelo labor dos recoveiros. Do Norte vinha a estrada da Galiza, conhecida e movimentada na Idade Média, com passagem obrigatória no Douro, em barcas. Será por ela que no século XVIII chegarão ao Douro das vinhas ranchos de trabalhadores galegos, aos quais a terra ficará a dever o impressionante cenário dos socalcos. Muito da construção do Douro fez-se, desde esse tempo, em torno da exploração de vinhedos e de vinhos. Mas os campos do Douro tinham mais frutos para oferecer. Outro dos produtos já referido, que seguia para o Porto, e daí principalmente para os mercados flamengos, era o sumagre. O documento fala-nos de uma produção à roda das 165 toneladas no aro de Lamego. O sumagre chegou a rivalizar com os vinhos. Crescendo mais ou menos naturalmente pelas terras transmontanas e durienses, o sumagre (Rhus coriaria) era uma relevante fonte de taninos para as indústrias de curtumes e foi utilizado até ao início do século XX; aplicado nas peles e nos couros retirava-lhes as gorduras, conferia-lhes textura e durabilidade e preparava-os para a recepção de tintas; de resto, alguns tipos eram tintureiros e tinham aplicação na indústria têxtil. O sumagre era colhido no fim do Verão, seco e moinho nas atafonas e objecto de uma intensa comercialização, em crescimento por todo o século XVI58. Se a tradição aponta os judeus como os principais mercadores deste produto, os registos notariais mostram uma fortíssima intervenção dos cristãos-novos neste trato tornando-o negócio internacional. Como exemplo, retirado de um dos capítulos da História de São João da Pesqueira, que em breve será publicada, num pequeno quadro de relações económicas entre esta vila e o Porto encontram-se quatro dezenas de contratos de compra e venda de sumagre. Entre estes pode-se citar um de 1586 pelo qual o poderoso mercador do Porto Lopo Nunes Vitória (mais um caso de uma rede de negócios internacional gerida a partir daquela cidade com interesses no Douro em vinhos e sumagres) comprou a Gonçalo Fernandes, morador em São João da Pesqueira, 700 arrobas de sumagre de Valença do Douro e Trevões, no valor de 87 mil reais. O mesmo mercador e outro tão ou mais rico do

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A referência de Rui Fernandes ao sumagre no fólio 5v. Francisco Ribeiro da Silva, em diversos trabalhos, tem chamado a atenção para a importância desta planta tintureira na estrutura comercial destas regiões. Veja-se, por exemplo, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder vol. I. Porto: Arquivo Histórico Municipal do Porto/Câmara Municipal, 1988, p. 180 e seguintes. 33


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

que ele, Henrique Gomes, foram sócios noutro contrato idêntico, destinado a vender pastel e sumagre para Castela. Porém, tal com atrás já notei, a maior parte do sumagre levado ao Porto em barcas e almadias era destinado à Flandres e habitualmente tinha à sua espera, no cais, navios flamengos/holandeses/hamburgueses onde era embarcado59. Por esta altura começava também a ganhar alguma importância a exportação de fruta do Douro havendo notícias de embarcações que a levavam para a Flandres. A descrição dos diferentes tipos frutícolas, da sua qualidade e do tempo da sua maturação, ocupa espaço considerável na obra de Rui Fernandes. Algumas frutas, como as cerejas e os figos, mantêm, ainda hoje, uma qualidade e uma capacidade de colocação no mercado que conviria explorar mais intensamente. Além disso, variadas castas de maçãs, peras, marmelos, romãs, ameixas, sôrvas, nêsperas, pêssegos e melões tinham como destino os mercados em redor ou as barcas do Douro. Parte desta fruta criava-se nos terraços dos socalcos, introduzindo-se na paisagem como elemento cada vez mais distintivo. Por toda a região irão nascer numerosos pomares, hoje quase inexistentes e que, quando subsistem, são verdadeiras peças patrimoniais a preservar e a valorizar. A fruta será, durante largo tempo, objecto de um comércio de relativo interesse, com destaque para as chamadas “frutas de espinho”, limões e laranjas, particularmente estas últimas, que nesta região encontravam as condições climatéricas ideais para se desenvolverem, sendo mais doces que na maior parte dos lugares onde eram produzidas. Outro dos produtos-chave desta economia era a castanha. Quer na terra, compensando as esterilidades de pão – e lá encontramos Rui Fernandes a aludir ao tradicional “falacho”, ou falacha – quer no abastecimento dos navios e sua exportação (nos vários géneros: fresca, pilada e picada) por via marítima. Basta analisar a lista dos navios que em 1552 se preparam para zarpar do Porto e lá a achamos em grande quantidade60. Acerca dela, Rui Fernandes deixa outra interessante informação, de grande valor etnográfico: a castanha, no Antigo Regime, era essencial no alimento de homens. Mas, pelas terras de Lamego, a sua abundância fez dela ração para os porcos – para os milhares de porcos que se encontravam pelos soutos e por aí se cevavam, “ mui formosos porcos das mais saborosas e mais carnes que há em todo o Reino” (e que, de acordo com esta mesma descrição, também comiam figos), dando origem a outro produto de enorme qualidade: o renomado presunto de Lamego, objecto de exportação, em navios, pelo menos desde o século XVI61 e consumo da corte portuguesa: “e muitos presuntos vão para a corte e para outros lugares”, escreve no fólio 17v. Importante no contexto do Portugal do século XVI era a exportação de madeira, tão necessária na construção civil (num período de crescimento urbano sentido por todo o Reino) como na construção naval (evidente desde a Baixa Idade Média). De acordo com este texto, entre as muitas madeiras que eram transportadas pelo Douro, importa reter a informação relativa “aos muitos e mui formozos mastros de castinheiros e muito tavoado” da zona

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Trato deste assunto no meu estudo Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores dos Tempos Modernos. Edição da Academia de Marinha (no prelo), e nos capítulos que escrevi para a citada história de São João da Pesqueira (no prelo). 60 Arquivo Histórico Municipal do Porto – Livro do despacho das naos e navios que forem desta cydade que ham de hir armados, publicado por FERREIRA, J. A. Pinto – Certas providências régias respeitantes à guarda da costa do Reino e ao comércio ultramarino, no século de Quinhentos, in “Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto”, vol. XXX. Porto: Câmara Municipal, 1967, p. 331-392. 61 No século XVII Jorge de Amaral e Vasconcelos, juiz do Crime na Índia, pedia aos seus familiares que lhe mandassem da sua quinta da Várzea, Britiande, Lamego, linguiças e presuntos; BARROS, Amândio J. M. – Cartas da Índia. Correspondência privada de Jorge de Amaral e Vasconcelos (1649-1656). Porto: CITCEM/Edições Afrontamento, 2011, p. 51. 34


Estudo Introdutório

de S. Martinho de Mouros, “que todo se vai carregar ao Douro”62. Penso, no entanto, que este negócio apenas progredirá no século XVII pois até então o grosso da madeira transportada pelo rio vinha das terras adjacentes ao seu curso final, mais próximas da cidade do Porto. Em parte relacionado com este tema e com o da navegação fluvial duriense, o autor regista o grande trânsito de almadias, espécie de jangadas, “feitas de cortiça que trazem cem duzias de cortiça e mais, leadas com paus, e esta cortiça se vende a pescadores pera boyas, e a çapateiros, e sobre ellas trazem muitos odres de vinho, vinagre, e mel, e muitos sacos de sumagre, e vem homens nellas que as governão; são mais seguras de prigo, que as barcas”63. A cortiça tinha bom mercado na cidade e a do Douro era de boa qualidade sendo, por isso, objecto de especulação. No dia 7 de Março de 1548, chegava à Câmara portuense uma queixa dos mesteres contra “hum remendão sapateiro que nem lavrando nehũa cousa de cortiça, ele hia pello rio acima e a cortiça que vinha pera esta cydade asi pera os çapateiros como pera os pescadores ele atravesava e trazia e regatava nella por honde os çapateiros nam podiam aver nehũa cortiça”64. Concluo com o tema que iniciei esta introdução: o trânsito fluvial, sem dúvida um dos assuntos mais pertinentes abordado por Rui Fernandes. O Douro era percorrido num e noutro sentido por centenas de barcas, levando e trazendo gente, levando e trazendo as mercadorias descritas no texto e mais algumas. Estas embarcações, como já escrevi noutros estudos, nesta altura já se podiam identificar com os conhecidos barcos rabelos, em especial pelo uso da espadela65. O intenso movimento do rio fez com que, um pouco por todo o seu curso, mas com destaque para a zona de Cima-Douro, fossem surgindo localidades dedicadas à navegação do rio, como Barqueiros ou Porto de Rei. Nelas, o interessado encontrava embarcações e tripulações com quem celebrava contratos de fretamento até ao Porto, ou pilotos do rio, “mestres de descer barcos”, conhecedores dos pontos mais perigosos e cuja função era fazer passar a embarcação em segurança por eles66. Levavam um tostão por o fazer. A navegação do Douro era perigosa e não deixava de preocupar. Pontos, poços, galeiras, penedos, secos, correntes, faziam da viagem uma aventura arriscada67. E não eram apenas os obstáculos naturais a dificultar esta navegação. A todo o momento, os incontáveis caneiros, açudes e pesqueiras que enxameavam o rio, a irregularidade das correntes do rio nesses pontos e um simples momento de distracção dos arrais e marinheiros podiam deitar tudo a perder. Na memória do rio Douro é grande o espaço ocupado pelas histórias de tragédia. Rui Fernandes sabia-o e tinha consciência da importância do tráfego fluvial. Por isso pedia a destruição de toda a espécie de pesqueiros, fazendo coro com os protestos da cidade do Porto que pretendia o rio livre deste tipo de

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FERNANDES, Rui – Descrição ..., fl. 15v. Idem, fl. 10v. 64 Arquivo Histórico Municipal do Porto – Vereações, liv. 16, fl. 21v. 65 No naufrágio da nau S. Francisco, 1596, procura-se salvar o navio, que perdera o leme, fazendo-se uma espécie de espadela com duas vergas, “ao modo com que se governam os barcos de Riba-Douro”; BRITO, Bernardo Gomes de – História Trágico-marítima, ed. de Neves Águas, vol. II. Mem Martins: Europa-América, s/d, p. 174. 66 “Neste Douro ha alguns passos maos que se podião correger; e nestes passos a que chamão gálleiras ha hi pilotos no rio que passão as barcas convém a saber: des os Peares ate Porto Manço que são tres legoas, e leva o piloto hum tostão por decer a dita barca”. Idem, fl. 10. 67 Sobre este assunto ver: DUARTE, Luís Miguel; BARROS, Amândio – Corações Aflitos: navegação e travessia do Douro na Idade Média e no início da Época Moderna, in “Douro – Estudos & Documentos”, vol. II (4). Porto: GEHVID, 1997 (2.º), p. 77-118 e, especialmente, PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio Morais – Memória do rio. Para uma história da navegação no Douro. Porto: Instituto de Navegabilidade do Douro/ Edições Afrontamento, 2000. 63

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

obstáculos. A discussão acerca da destruição de tais engenhos de pesca durou séculos. Foi, porventura, o primeiro grande debate sobre a navegabilidade do Douro. O tratador de bordates chegou mesmo a reclamar a nomeação de um “provedor do rio” com a função de zelar pela segurança e limpeza do mesmo, bem como o lançamento de um imposto sobre as mercadorias que por ele fossem transportadas para o mesmo efeito68. Mas o nosso autor era também um homem de contradições. Naturalmente, apetece dizer. Ao mesmo tempo que reclama o fim das pesqueiras, não deixa de exaltar a riqueza do pescado aí recolhido. A captura de lampreias, sáveis, bogas, barbos, muges, e muitos outros peixes, suscitou algumas das mais inspiradas páginas que escreveu. Através delas ficamos a saber que no Douro se pescavam solhos, isto é, esturjões. Não admira, por isso, que estes fossem declarados “peixes reais”. As suas ovas, o caviar, adornavam a mesa dos reis e dos seus cavaleiros. Mas não eram só estes que apreciavam esta iguaria; nem sequer eram os que mais a aproveitavam. É que os pescadores, refere no fólio 8v, “quando os achão [...] furtam-nos, e vendem-nos, e delles comem”.

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FERNANDES, Rui – Descrição …, fl. 10-10v.

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Conclusão

No ano de 1532, Rui Fernandes, tratador das lonas e bordates de Lamego, casado no Porto e cidadão de Lamego, concluía a sua Descripção do terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas. Inspirada na Descrição do Entre Douro e Minho de Mestre António e antecessora das do Algarve de Fr. João de S. José e Henrique Fernandes Sarrão integrou-se num estilo e espírito próprios do Renascimento e da comprometida e controvertida relação deste movimento com os clássicos e a novidade. Dedicada ao Bispo D. Fernando, a obra é uma importante interpretação do Douro e um pequeno retrato do Portugal de Quinhentos, muito usada, e, no meu entender, ainda a aguardar melhores estudos. Que devem ser feitos com cautelas, pois se a corografia isola um lugar, mesmo que chame outros como exemplo, o historiador que a utiliza deve recusar fazê-lo e procurar a comparação. Com esta análise introdutória não pretendi julgar o que é bom, ou mau, na obra de Rui Fernandes; antes preferi tentar compreender o que ele escreveu, integrá-lo no condicionamento geral do mundo e da Península e a partir daí levantar problemas e propor pistas de investigação. Ao longo de quase três dezenas de folhas manuscritas, o feitor e rendeiro das lonas descreveu e exaltou as riquezas da terra onde viveu. Com maior ou menor argúcia, com maior ou menor comprometimento com quem o patrocinou, preocupou-se em nos informar sobre as gentes e os seus viveres, sobre o que se produzia, o que se vendia e se comprava. Mostrou-nos a cidade eclesiástica, mas também a cidade dos mercadores. À luz de uma viva descrição informou-nos sobre os bairros diferenciados, sobre os paços dos bispos, as casas da nobreza ou sobre os arruamentos de mesterais. Falou-nos das fontes de águas frescas, das hortas viçosas e das laboriosas oficinas de ferreiros, tosadores ou barbeiros. Devolveu-nos, enfim, o quotidiano de Lamego, a existência de uma cidade do interior nas primeiras décadas de Quinhentos. A obra suscita várias leituras. Ignorando, simplificando ou apenas indiciando aquilo que era complexo, os dilemas sociais introduzidos pela questão dos conversos ou a transformação do quadro económico, foram esses assuntos que a mim mais me interessaram e procurei fazer a análise de cada um deles destacando a articulação entre a região de Lamego e o centro portuário portuense. Não que Fernandes desconhecesse essas transformações e sequer que não tivesse parte activa no processo. Mas tratava-se de temas intrincados, decididamente pouco agradáveis aos leitores que ele pretendia cativar e mesmo ainda hoje não totalmente esclarecidos. Mas enxergam-se no texto. Sobretudo quando fala do intenso trânsito de pessoas e de mercadorias nos dois sentidos do rio Douro. E quando se refere aos vinhos, indiciando as suas potencialidades comerciais. Numa época em que os néctares durienses se afirmavam como produto estratégico desta economia, o texto da Descrição é um precioso indicador dessa importância. Os inéditos detalhes acerca da sua qualidade e das castas são testemunhos 37


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

singulares, de inestimável valor. Nos vinhos “velhos e cheirantes” de Lamego pressentimos o futuro do vinho do Porto, e nos carregamentos rio abaixo a construção de uma autêntica feitoria pois se o destinatário destes vinhos começou por bebê-los na sua maior parte não tardou a interessar-se por exportá-los em igual quantidade. Percebem-se também os temas e os dilemas sociais. Indirectamente, mas percebem-se. Na associação que tem na exploração da feitoria das lonas com gente das redes cristãs-novas ou na forma como se acolhe à protecção de um Bispo humanista. Além disso, e como referi no devido lugar é possível ver neste texto uma intenção informativa, um enunciado de potenciais parceiros e de mercadorias endereçado ao interesse dos mercadores. A relação (económica) com o Porto não viveu somente dos vinhos que as barcas do rio transportavam nem os mercadores, cristãos-novos ou de outra extracção, se interessaram exclusivamente por eles. À cidade chegavam de Lamego, do Douro e de Trás-os-Montes que dele é inseparável, sumagres, azeites, frutas, cereais e muitos outros produtos. Parte deles era aí consumida pelas gentes e pelas oficinas; a outra era destinada aos navios e seguia para activos portos do Reino e do comércio internacional. Em sentido contrário subiam para Riba Douro as mercadorias que lá faltavam: os artigos do artesanato portuense ou importado, os têxteis flamengos, o sal, os couros, o pescado fresco ou seco e os produtos mais requintados da Expansão: as especiarias e os açúcares. De tudo isto nos dá Rui Fernandes notícia. Sem muitos pormenores, sem grandes adornos literários mas isento dos maneirismos que o barroco irá preferir, o seu “Tratado de hum rico panno de fina verdura que há neste Reyno de Portugal” permanece como um verdadeiro balanço dos tempos medievos e, para além disso, como um anúncio da época moderna. Através dele, assistimos ao entardecer do Douro dos casais e ao nascimento do Douro das quintas. À interferência da cidade no campo, à chegada de novos mercadores e novos recursos financeiros, à modificação do regime de propriedade e à aposta nas culturas que alimentavam o comércio. Se o tratador das lonas ainda pode enaltecer a multiplicidade das produções da sua terra, o tempo fará dela, do Douro, uma região de quase monocultura do vinho, celebrizado em todo o mundo com o nome da cidade que o exportou: o Porto.

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Textos e Documentos


Critérios de transcrição

Como repetidamente foi dito, a presente edição tem como base o documento manuscrito já identificado e conservado na Biblioteca Pública Municipal do Porto. Na sua transcrição, bem como na dos documentos da Contadoria conservado no ADP, e do Corpo Cronológico, da Torre do Tombo, publicados em apêndice, adoptei as normas da Comissão Internacional de Paleografia e Diplomática, sistematizadas, para Portugal, pelo Pe Avelino de Jesus da Costa – Normas Gerais para a Transcrição e Publicação de Documentos e Textos Medievais e Modernos, 3.ª edição, muito melhorada, Braga, 1993 que, para comodidade dos leitores, sintetizo de seguida: 1) Respeito pela grafia e pontuação dos documentos, embora com a introdução das seguintes alterações: a) desdobramento de todas as abreviaturas, com excepção, nalguns casos, das actualmente em uso; b) regularização do uso das maiúsculas e minúsculas de acordo com as regras actuais; c) em geral separação das sílabas que aparecem unidas nos originais; d) substituição do “u” e do “i” com valor consonântico por “v” e “j” respectivamente; e) substituição do “j” com valor vocálico por “i”; f) substituição do “z” com valor oclusivo por “s”; g) regularização do uso do “ç”, de acordo com a ortografia actual; h) com algumas excepções, omissão das letras duplas no início das palavras, mantendo-as no meio e no final; i) abertura de alguns parágrafos;

2) colocação entre [] e em itálico de todas as palavras que tenham sido acrescentadas aos textos originais e que resultam de uma interpretação ou correcção do transcritor; 3) colocação entre [] e em letra de forma normal de todas as palavras que tenham sido acrescentadas ao texto da Descrição de Rui Fernandes provenientes do cotejo com o documento publicado pela Academia das Ciências, quando tal se justificou, com o objectivo de enriquecer a informação do texto que utilizei: 4) colocação entre <> de todas as palavras que surjam entrelinhadas nos textos originais; 5) colocação da palavra (sic) a seguir aos erros dos próprios originais.

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Textos e documentos

De acordo com a metodologia adoptada, tive a preocupação de cotejar as duas versões do texto de Rui Fernandes existentes. O leitor não terá dificuldade em perceber qual a informação introduzida retirada de uma ou de outra fonte pois quando isso sucedeu assinalei esse facto em nota explicativa colocada em pé de página. Porque não se trata de um texto original, tive oportunidade de detectar palavras mal copiadas ou adaptadas ao estilo de escrita e linguagem da época de quem copiou. Por esse motivo, quando me surgiram dúvidas que seriam mais satisfatoriamente esclarecidas pela consulta da cópia publicada nos Inéditos da Academia, não hesitei em introduzir palavras ou expressões desta edição entre [] assinalando e explicando essa opção em nota de rodapé. Com isto, foi minha intenção fornecer aos investigadores interessados o maior número possível de elementos para melhor compreensão dos documentos e, porventura, do próprio texto original hoje desconhecido. Relativamente à versão actualizada devo dizer ainda que, na maior parte dos casos, limitei-me a modernizar a grafia das palavras para que o texto continuasse a ser o mais possível fiel ao original. Assim, salvo excepções, que explico em nota, mantive arcaísmos que o manuscrito inclui do tipo Afonsecas por Fonsecas, peixotas por pescadas, soia por costumava, acerta por calha, apréstamos por renda e benefício, almadia por jangada, etc.

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Transcrição actualizada

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Tratado de um rico pano de fina verdura que há neste Reino de Portugal de compasso de duas léguas ao redor da cidade de Lamego que é situada em Riba Douro da comarca da Beira, dirigido ao Muito Ilustre e Magnífico Senhor, o Senhor Dom Fernando bispo da dita cidade e primo de El Rei Nosso Senhor e seu capelão-mor, feito por Rui Fernandes, cidadão da dita cidade e tratador das lonas e bordates de El Rei nosso senhor que se em ela fazem69. Feito no ano de 1532.

Ao redor desta cidade de Lamego deitando um compasso da Cruz e Miradouro que Vossa Senhoria mandou fazer na Franzia duas léguas em redor as quais se todas podem ver do dito miradouro para uma parte e outra em torno do dito compasso, ainda que a terra é montuosa se vê o dito circuito; a qual terra é mui viçosa e perfeita de todos os renovos do dito compasso de duas léguas, porque parece no Verão um mui formoso parque ou excelente pano de fina verdura. E porque Mestre António de Guimarães fez um tratado das coisas de Entre Douro e Minho que assaz é bom e tido em muito, quanto mais é de ter tão pequeno circuito e tão viçoso e abastado, porque ousarei dizer que em Espanha se não mostrará tal compasso de duas léguas; nem as Arribas de Alenquer muito gabadas, nem as catorze léguas de Santarém a Lisboa porque ainda que se façam muito viçosas e o porto de mar as favoreça, não são tão perfeitas em todas as coisas como estas, que dezasseis léguas estão metidas no sertão e as outras terão outras coisas muito mais em abastança, mas não que tenham tudo como estas como Vossa Senhoria verá pelos capítulos deste tratado, de muitos renovos em grande abastança para o compasso da terra; e ousarei dizer que sendo ilha nunca se tomará por cerco. Primeiramente determinei a somar quanto pão e vinho e castanha e legumes e noz e pano de linho, sumagre, seda se pode colher neste compasso de duas léguas, e para melhor declaração assentei por extenso os dízimos que há nas Igrejas e

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No texto publicado pela Academia este título prosseguia: “que me favoreça revelando-me quaisquer faltas que nelas disser aceitando minha boa vontade que fica muito maior para outros maiores serviços lhe fazer. 42


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Mosteiros deste circuito (ainda que por nossos pecados aos quatro, aos dois se não dizimam bem) e por isso determinei pôr as ditas Igrejas e dízimos na maior cópia e rendimento; e ainda que seja prolixo as nomearei todas per si sem pôr os foros sabidos somente, só os dízimos; as quais Igrejas e Mosteiros são os seguintes, e os rendimentos, e alguns destes lugares pagam quartos e quintos e sesmos sem dizimo e sem a conta os tornei a dízimos direitos. [Cabido70] Item primeiramente a tulha do Cabido e miunças dela e terra, de pão 8 000, de vinho 1 600, de castanha 3 500, de azeite 80 alqueires. [Deão] Item Almacave e apréstamos e terça, de pão 1 500, de vinho 400, de castanha 2 000, de azeite 50. [Cristo] Item Britiande, de pão 1 000, de vinho 500, de castanha 1 500. [De El Rei] Item Meiginhos, de pão 450, de vinho 100, de castanha 600. [Infante Dom Fernando] Item Mós, de pão 300, de vinho 250, de castanha 600. [Recião] Item Melcões que é do mosteiro de Recião, de pão 300, vinho 100, de castanha 400. [Do Morgado de Alvarenga] Item Lalim com apréstamos, de pão 1 000, de vinho 500, de castanha 1 000. [De São João] Item: Lazarim de pão 1 000, de castanha 1 000; não tem vinho. [O Tesoureiro] Item Várzeas, de pão 300, de vinho 300, de castanha 1 000, de azeite 40. [Vossa Senhoria] Item Santa Maria de Alvelos, de pão 50, de vinho 50, de castanha 100. [Santa Clara do Porto] Item Belães, de pão 300, de vinho 300, de castanha 300. [O Tesoureiro] Item Calvilhe, de pão 50, de vinho 50, de castanha 300. [O Cabido] Item Figueira, de pão 700, de vinho 100, de castanha 500, de azeite 50. [De El Rei] Item Queimada é a terça, de pão 600, de vinho 50, de castanhas 600. [Pero da Cunha] Item Armamar é apréstamos, de pão 5 500, de vinho 1 500, de castanha, com clérigos, 2 500, de azeite 50 alqueires. [Cristo] Item Santa Cruz, de pão 600, de vinho 200, de castanha 600. [Cristo] Item São Martinho das Chãs, de pão 1 000, de vinho 100, de castanha 400. [Salzedas] Item a Ucanha, de pão 200, de vinho 600, de castanha 1 500. [Salzedas] Item Gouviães e o mosteiro de Salzedas e outros lugares, de pão 3 500, de vinho 2 000, de castanha 1 500. [Salzedas] Item a Granja Nova, de pão 800, vinho 400, de castanha 700. [Salzedas] Item Tarouca com apréstamos, de pão 3 000, vinho 1 500, castanha 3 000. [São João de Tarouca] Item Mondim, com o mosteiro de São João de Tarouca, de pão 1 000, de vinho 2 000, de castanha 1 000. [Do Infante Dom Fernando] Item Penude com terça, de pão 1 500, de castanha 1 000. [Cabido] Item Magueija, o pão vai à tulha do Cabido, tem castanha 700. [Deão] Item Pretarouca, de pão 300. [Infante Dom Fernando] Item Gosende anexa a São Martinho de Mouros onde tem um jantar por tributo que se dirá adiante, de pão 1 500, tirando a terça que vem à tulha do Cabido que aqui não pertence. [Infante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros com apréstamos e terça, de pão 3 000, de vinho 1 600, de castanha 3 000. [Rodes] Item a comenda de Barrô de dízimos com terça, de pão 1 300, de vinho 1 300, de castanha 1 000. [Dom Luís] Item Ferreiros, de pão 200, de vinho 150, de castanha 300. [O Tesourado] Item Avões, de pão 300, de vinho 50, de castanha 300. [De Santa Clara do Porto] Item Penajóia, de pão 700, de vinho 2 000, de castanha 2 500, azeite 160.

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Estes parêntesis rectos e os que se seguem até final do documento, apontando a posse das terras e a definição dos capítulos, resultam do cotejo com o texto publicado pela Academia. Optei por esta solução tendo em conta o enriquecimento da informação. 43


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Além Douro [De El Rei] Item Barqueiros, de pão 300, de vinho 300, castanha 500. [Mosteiro de Vila Cova] Item Tresouras, de pão 350, vinho 200, castanha 250. [Moura Morta] Item Frende, de pão 300, de vinho 300, de castanha 500. [Item] os Loivos, de pão 300, de vinho 300, de castanha 550. [De El Rei] Item Mesão Frio, de pão 100, de vinho 100, de castanha 150, de azeite 20. [Cristo] Item Vila Marim, de pão 1 200, de vinho 300, castanha 1 500, de azeite 180. [Rodes] Item Moura Morta, de pão 400, de vinho 300, de castanha 700. [Pero da Cunha] Item Sedielos, de pão 1 500, de vinho 600, de castanha 1600. [De Moura Morta] Item Fontes, de pão 600, de vinho 400, de castanha 1 000. [Padroeiros] Item Lobrigos, de pão 1 600, de vinho 400, de azeite 100, de castanha 1 000. [São João de Tarouca] Item Oliveira e Bamba, de pão 300, de vinho 200, de castanha 100, de azeite 40. [Dos Guedes] Item Loureiro, de pão 40071, de vinho 30072, de castanha 600, de azeite 20. Item São Pisco da Régua, de pão 800, de vinho 400, de castanha 150, azeite 300. [Bispo do Porto] Item a camara do bispo do Porto que se chama o Peso da Régua de pão 1 000, de vinho 400, de castanha 150 e de azeite 300. [De El Rei] Item Fontelas, de pão 300, de vinho 100, de castanha 150, de azeite 50. [Rodes] Item a comenda de Poiares, de pão 5 000, vinho 1 000, azeite 500, fora foros, castanha 1 000. [De Cristo] Item São Martinho de Cambres e apréstamos, de pão 500, de vinho 500, de castanha 700, de azeite 120. Item Sande, de pão 150, de vinho 300, azeite 50, castanha 600. [São João de Tarouca] Item Samudães, de pão 150, de vinho 300, de castanha 400, de azeite 50. Item Valdigem, de pão 1 000, de vinho 1 000 e de azeite 400 com a terça; castanha 700. [De Vossa Senhoria] Item Parada, de pão 150, de vinho 120, de castanha 50, de azeite 20. [De Vossa Senhoria] Item a câmara de São Domingos, de pão 1 000, de vinho 350, castanha 500, azeite 20. [Rodes] Item a comenda de Fontelo, de pão 1 000, vinho 400, castanha 400, de azeite 20. [De Salzedas] Item a quinta de Monsul, de pão 150, de vinho 250, de azeite 1 000 (?), de castanha 300, e isto tornado a dízimo. [... em Douro] Item Medrões, de pão 300, de vinho 250, de castanha 600, azeite 20. [São João de Tarouca] Item a quintã de Mosteiró feito a dízimo, de pão 100, de vinho 1 500, de azeite 250, de castanha 50. Quinta de Mosteiró Esta quinta de Mosteiró é de São João de Tarouca e está junto do Douro. Parte com a ribeira de Varosa, é pequena terra, que com cinco tiros de besta posto um homem no meio chega a todas as partes dela; em a qual quinta se colhem cada ano quinze mil, dezasseis mil almudes de vinho. A conta é esta, que a quinta rende 1 500 almudes de quinto, e sexto, e de sétimo e outras, que são sabidas, e fora o que escondem. Rende mais a dita quinta em anno de ceifa 2 000, 2 500 alqueires de azeite, porque a quinta rende ao mosteiro 1 200, ano de ceifa, e é de mais, e alguns olivais de quarto, dado que deles se recolhem também pela casa; mas contando os roubos dos caseiros rende os ditos 2 500 alqueires de azeite. Renderá de pão 1 000 alqueires e de castanha 600 alqueires e de legumes 300 alqueires; renderá 300 cargas de cerejas e 500 cargas de outras frutas e 800 arrobas de sumagre, e os vinhos dali todos vão de carregação. Poucas quintas deste compasso se acham no Reino tão boas.

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Por cima deste valor escreveu-se, como que o actualizando, “600”. Tal como no caso anterior, escreveu-se por cima “600”. Num e noutro caso, como se trata de um documento copiado possivelmente no século XVIII, não sei se se trata de correcções deste século ou de correcções detectadas no documento original. 72

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

As quais Igrejas somam no rendimento: do pão 59 250 alqueires de dízimo que são soma 592 500, o qual pão é o seguinte, convém a saber: trigo galego e trigo tremês e centeio e milho e painço e cevada tremês e cevada cavalar e milho marroco; o qual milho marroco se dá na areia do Douro em canas muito altas; e há espiga que dá uma quarta de alqueire, e é milho branco de grandura de confeitos de coentro. Estes géneros de pão nunca desfalecem nesta terra, dado que alguns anos há mais que outros porque o tempo que é contrário ao centro, é proveitoso ao milho e ao painço; e o tempo que é contrário ao trigo temporão, algumas vezes é proveitoso ao trigo tremês e ao milho marroco; assim que desta maneira quando erra um pão de não haver muito acerta outros por haver tantos géneros de sementes de pão; e desta maneira nunca pode haver fome nesta terra. E neste compasso destas duas léguas há muitos campos que dão três novidades no ano, como são os campos de Coura e outros muitos, convém a saber: dão nabos e rabãos na primeira semeadura, e depois dão trigo; e tirado o trigo, ou cevada, dão linho, ou também, se querem, dão painço ou milho, e isto em muita quantidade, que há aí campo quanto um homem lavra num dia na Ribeira de Coura e em outros lugares, que dá 120 alqueires. E estes campos dão também muito formosos alcáceres em uma das tres sementes ou novidades, e são estes regados e estercados, e destes há aí muitos campos neste compasso. Item de vinho somam os dízimos que há neste compasso de duas léguas 30 670 almudes; assim que se colhe de lavrança no dito compasso 306 700 almudes. E são os mais excelentes vinhos e de mais dura que no Reino se podem achar, e mais cheirantes, porque há aí vinhos de quatro, cinco, e sete anos, e de quantos mais anos é, tanto mais excelente e mais cheiroso. E há aí alguns amarais, ainda que pouco, de árvores, que pode ser a décima parte do outro. E a maior73 parte dos vinhos de todo este compasso se carregam pelo Douro em barcas para o Porto e para Entre Douro e Minho, para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas e para as armadas de El Rei nosso senhor; e compram desses vinhos amarais e outros de baixo preço; e os vinhos cheirosos e de maior quantia vão por terra para muitos senhores e para a Corte de Castela e assim alguns para a Corte de Portugal. E há alguns anos que se aqui vende muito vinho a 400 e a 500 réis o almude do velho que cheira e também muitos anos se vende muito vinho para Guarda, Viseu, para Riba Côa, para a Beira, porque há muitos anos, como é este presente em Viseu, que há esterilidade de vinho, que aqui ainda que a haja, por a soma dos vinhos ser muita e as uvas de muitas castas, que se não vingam umas vingam outras; e a terra tem vinhas em terra fria e em terra quente se dá vinho; e quando não vence a terra fria o vinho, vence a terra quente, de maneira que sempre há muita soma de vinho. Item soma a castanha de dízimos 47 660 alqueires, de maneira que soma o que se colhe na terra 476 600 alqueires; a qual castanha muita dela se enterra e se vende na Quaresma e outras secam e a picam, que chamam castanha picada. Desta castanha picada se faz grande carregação pelo Douro para Lisboa e para o Algarve e para as Ilhas; e quando o ano é estéril os homens pobres moem a dita castanha e fazem dela pão, e é muito farto e muito doce, que chamam falacho; e de outra castanha seca cascuda cevam muitos e mui formosos porcos das mais saborosas e mais carnes que há em todo o Reino. O preço desta castanha verde [é] em ano de bonança a três e quatro réis o alqueire da rebordã, e da longal a cinco e a seis pela medida grande desta terra, e da picada a 20 e a 25 e a 30 o alqueire. E no tempo dela todos os caminhos e estradas são cobertos; e por as não poderem apanhar trazem os porcos pelos soutos, que as comam, e todos os caminhantes e pessoas que passam fazem magustos sem lhe ser proibido. E há castanheiros que dão 60 alqueires de castanha e há destes muitos; e há castanheiros que debaixo dele se colherão 300 homens à sombra. Item: soma o azeite de dízimo que há nas Igrejas 2 900 alqueires de maneira que soma o que se colhe neste compasso 29 000 alqueires, e é dos bons do reino; o qual azeite se gasta em parte de Entre Douro e Minho, e Trás-os-Montes, que o não há lá, e levam-no almocreves, que andam a isso, à maior74 parte da Galiza, e daqui à maior parte da Beira, que o levam almocreves e regatães para nele ganharem, até à Guarda. E há neste circuito 42 lagares de azeite para a parte do Douro.

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No documento: “mor”. Ver a nota anterior. 45


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sumagre] Item se colhem neste circuito das sobre ditas léguas 15 000 arrobas de sumagre que se carregam para Lisboa e o Algarve e as Ilhas e para todo o Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes e para toda a Beira. Título da noz e legumes deste compasso E por não ser prolixo não quis aqui pôr por miúdo a noz e legumes que há, somente fica pelo miúdo como vão estas outras75 coisas. E soma a noz que há neste compasso e se colhe cada ano 10 000 alqueires, porque há de dízimo 1 000 alqueires; e há nogueira que dá 50 alqueires. E legumes, convém a saber: favas, feijões, ervilhas ceitãs e das outras, e lentilhas, e ervanços76 soma 9 000 alqueires; e isto se for necessário dá-lo-ei pelo miúdo, que fica em meu poder. Os feijões vão muitos para Trásos-Montes e para Castela; rende cada alqueire em Castela 500, 600 réis, e vale aqui o alqueire 20 e 30; em Castela vende-se a arráteis. [Pano de linho] Item outrossim, há por soma no dito compasso, de linho, convém a saber: pano de linho que se faz nestas duas léguas, de dízimo 18 000 varas, as quais, sendo necessário, também mostrarei pelo miúdo, de cada igreja, entre o qual é pano de linho e estopa e treu77; e há estopa que se vende a 12 e a 13 e a 14, 15 réis até 20, e o pano de linho de 15 até 100 e 120 a vara. E vende-se este pano a mercadores e vai para Castela muita soma, e para Lisboa e para Alentejo e para o Algarve e para as Ilhas, e outro se gasta na terra, e fitas em (?) peças. [Seda] Item se colhe no dito compasso de dízimo, convém a saber: de seda 5 000 onças, assim que se colhe 50 000 onças; a qual seda se gasta parte dela em esta cidade, em Tarouca, em veludo, satis, tafetás e toucaria, e a mais vai para fora. [Mel] Item de mel pode haver quanto baste para a terra de sua colheita, dado que não é muita quantidade, e de água rosada 80 almudes. [Cerejas] Item há mais no dito circuito muitas e mui formosas cerejas, que vêm a vender a esta cidade, as quais cerejas começam em Abril e acabam em Setembro. E a causa é porque esta cidade há como sempre três novidades no ano, de cada renovo; e a causa é esta: a primeira novidade, que são as cerejas que começam na Ribeira do Douro, no mês de Abril e duram até Maio; e acabado Maio começam as desta cidade, que é terra temperada em meio, e duram até todo Junho; e acabadas as desta cidade começam as da terra fria da parte do Sul, e duram Julho e Agosto até Setembro. E de todos os lugares se vem vender a esta cidade por estar no meio. E pelo mesmo teor dá ginjas. O preço delas são comummente o arrátel a real e a quatro ceitis e a meio real e as temporãs a dois réis e a três réis.

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No documento “estoutras”. Isto é, gravanços. 77 No documento: “tres”. 76

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

As quais castas de cerejas são as seguintes, convém a saber: as trigais, bastezes, soldares, bicais, agostinhas, pedrais pretas e outras pedrais bicudas, que levam cargas para fora, amargosinhas, ginjas muito boas. [Árvores de espinho] Há neste circuito muitas árvores de espinho, convém a saber: desta parte da cidade para o Douro em abastança, convém a saber: muitas laranjas, limões e algumas limas, muitas cidras e zamboas, que bastam a terra e carregam os almocreves para toda esta Beira. Valem oito e dez laranjas ao real, e quatro e seis limões um real, e uma cidra um real. Título das maçãs Item há muitas maçãs em abastança, de muitas castas, convém a saber: camoesas, repinaldos, veloso, sirgaínho, doçares, pevidães, baioneses, rostibons, rustimãos, sam martinhas, sapães, negraínhas, ozães, sodracãs e nanos, e outras muitas castas, dado que mais há Entre Douro e Minho; aqui há abastança delas; dão oito, dez, doze a real e segundo a fruta é, seis, quatro. Peras Item há muitas peras de engoxa, e as mais formosas do Reino, coxa de dona, pera-pão, peras de Baguim, peras doçares, codornos, peras trigais, peras sorvas, peras ruivais, peras longais, peras junhais, sormenhos, peras de Vila Verde, peras botelhas, peras de sobrego, e há algumas peras manosinhas que não há em todas as partes, que vêm por Maio; e isto tudo se vende a bom preço. Dos marmelos e romãs Há muitos marmelos bárbaros e muitos galegos, seis e quatro a real, e há muitas romãs doçares e agras e agras doces do mesmo preço que vão daqui para muitas partes. [Figos] Item há muitos figos e mui formosos figos em tanta quantidade que os dão aos porcos por serem sobejos; e duram desde Maio até ao Natal e isto porque os figos lampãos na Ribeira começam por Maio, e como eles acabam começam os desta cidade, e como acabam os da cidade começam os da terra fria, de maneira que ainda os figos lampãos não são acabados na terra fria quando começam já os vendimos na Ribeira e corre outras três novidades e duram até Natal. Como digo de todas as frutas nesta cidade se comem três renovos. E as castas dos figos são as seguintes, convém a saber: pedrais, alvares, verdeais, negraínhos, bugalhais, donegrais, castanhais, longais, burjaçotes. E em muitos anos há nesta terra certas figueiras que no mês de Abril dão figos burjaçotes maduros e muitas pessoas os têm por artificiais, os que não sabem o modo do seu nascer. O preço deles são três e quatro dúzias a real, e seis, oito burjaçotes a real; e assim há outros figos de muitas castas a que não sei o nome. [Ameixas] E também há muitas e mui formosas ameixas, convém a saber: bicais, reinóis, manosinhas e saragoçãs e outras muitas castas, e abrunhos e ameixiais e verdeais e esgana-cão; dão quatro e seis dúzias ao real.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sorvas e nêsperas] Item há muitas sorvas e nêsperas que vêm depois das vindimas; estas nunca amadurecem nas árvores senão nos madureiros. [Pêssegos] Item há muitos e muito formosos pêssegos, convém a saber: durázeos, romãos, e pêssegos durázeos romãos, e molares e molares calvos e pêssegos durázeos calvos romãos que em Lisboa chamam maracotões; há outros pêssegos, que chamam albocorques, que em outras partes chamam alperces, e outros muitos géneros de pêssegos que aqui não ponho. Uvas [Amaral] Item há muitas e mui formosas uvas, e muito boas castas, e que se têm dependuradas umas às outras, digo, dependuradas de um ano a outro; e assim há outras que chamam amaral em algumas partes, que é da qualidade do vinho de Entre Douro e Minho, e são muito más uvas e o vinho destas vale menos preço do vinho bom a metade; e há pé de vide que dá uma pipa. O qual vinho seu natural é em ramadas altas ou em árvores, dado que é proveitoso para lavradores e para beberrajens de mar vai muito, e nesta terra não se faz dele muita qualidade, e a casta destas uvas deste vinho chamam amaral. [Uvas de casta] Item a casta do outro maravilhoso vinho de pé são de muita soma, convém a saber: bastardo, trincadente, agudelho, que é outro de jeito de trincadente, há outro que chamam Álvaro de Sousa que em outra parte chamam malvasia, castelão, lourelo, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal, e buoval, samarrinho, mourisco, ferral de muitas castas, ceitão, felgosão; e valem em tempo que há razoadamente uvas a real o arrátel das uvas que são boas. [Melões] Item há muitos e mui formosos melões e muito temporãos. E são tantos melões e em tanta quantidade, que nenhum por grande que seja não passa de dois réis, e isto no princípio, e depois de farta a cidade vão daqui muitos temporãos para a Guarda e Viseu e Trancoso e Pinhel, Riba Côa, e assim todas as outras frutas; e há alguns cogombros78, ainda que são poucos, e há muitas abóboras. [Hortaliça] Item neste dito compasso há muitas boas hortaliças, convém a saber: rabãos todo o ano, couves de muitas castas e alguns repolhos, cardos, cenouras e outros muitos géneros de hortaliça dado que noutras partes há mais porque os homens desta terra não se deitam a ela. Porque se fizessem hortas a terra é muito excelente para isso, como Vossa Senhoria sabera pela sua formosa horta onde se dá muito formosa hortaliça de todos os géneros e maneiras que se possam nomear, por ter aí hortelão que o bem sabe fazer com muita abastança de água.

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Isto é, pepinos.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Fontes] Item no dito compasso há as mais excelentes fontes perenais que se podem achar e eu as quisera escrever por número mas não há maneira para se poderem contar; somente com homens que bem sabem o circuito da terra, as apodaram a 5 000 fontes em que há muitas destas fontes que o nascer onde nascem pode moer um moinho ou azenha. E muitas destas fontes são monstruosas para ver por algumas nascerem em penedos e outras em pés de árvores, e algumas nascem em alguns lugares em pés de nogueiras por onde os homens e as mulheres onde nascem e as continuam a beber são papudos. E uma fonte nasce em uma serra sobre esta cidade a que chamam a Fonte da Esguicha, e nasce em uma laje que jaz alastrada no chão e lança para o ar como um torno de pipa, e outras muitas deste jeito em penedos. E a principal destas fontes é a Fonte da Almedina desta cidade, que é das mais excelentes águas que se possam achar e quer-se bebida em fresco porque é a contra do tempo, que no Verão é tão fria que a não podem aturar, e no Inverno é muito quente; e é água muito sadia. E há outras muitas fontes que quase conformam79 a esta. E destas fontes neste compasso há muitas e muito formosas lameiras que dão três, quatro camas de erva de segar no ano e a maior parte de toda esta terra é regada das sobreditas fontes. [Ribeiras] Item há algumas ribeiras cabedais e tem muitos ribeiros e de mui excelentes e graciosas águas e de muitos seixos brancos e muitas levadas e muitas ervas verdes e muito cheirosas e medicinais, e algumas delas levam para muitas partes para boticários e alguns destes ribeiros moem todo o ano. Título do peixe do Douro Item primeiramente o Douro onde morrem muitas lampreias e muitos sáveis e muitas bogas e muitos barbos. Há aí outro pescado que chamam mugens de água doce os quais não morrem senão pelas primeiras águas de Setembro, é muito saboroso peixe e muito estimado; e outros mugens morrem das Caldas de Aregos até ao Porto porém não chegam a estes. Outrossim morrem no dito Douro muitos e muito formosos iroses que são tão grandes como safios e muito grossos e saborosos. O morrer destes iroses é depois da castanha caída dos castanheiros, porque a enxurrada leva os ouriços dos soutos ao Douro e os ouriços entram nos remansos do Douro nos lodos onde os iroses estão e os picam e se erguem no Douro e vão caír em uns canais que estão no Douro com uns caniços e aí caem em seco, principalmente de noite, onde os aguardam com paus e matam a maior parte deles, e há noite que matam três, quatro iroses. Há aí algumas savelhas. Há também alguns solhos80 ainda que a maior quantidade morrem daqui para cima em Vila Nova de Foz Côa. Estes solhos que aqui morrem são peixes de dez, catorze, quinze palmos, e muito grossos e são peixes reais, e quando morrem é por serem grandes dorminhocos e dormindo, por acerto vão dar em os canais onde dão em seco. E os outros que matam no dito Douro em Vila Nova morrem pelo mesmo teor em armadilhas e os pescadores que os tomam em armadilhas os têm à sirga atados no Douro quinze, vinte dias e quanto querem, até que vêm pessoas que os compram. São peixes que vale cada um 1 000, 1 200, 1 500 réis porque há aí peixes que pesão 50, 60, 80 arráteis cada um e dão um arrátel por vinte réis. E quando os tiram da água deitam-lhe uma canada de vinho branco pela boca com que os levam dois dias vivos. E os que morrem neste circuito em canais, que são poucos, são do senhor da terra por serem peixes reais, ainda que eles comem os menos porque quando os acham os pescadores furtam-nos e vendem-nos e deles comem. E assim há algumas trutas, ainda que poucas, e entre estas acerta alguma tamanha como sável por acerto.

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Isto é, que quase a igualam. Isto é, esturjões. 49


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Das barcas de passagem Item no dito compasso no dito Douro passam seis barcas, que são as seguintes: Bagaúste, que é de Vossa Senhoria, a Régua, que é do bispo do Porto e do Ilustríssimo Dom Fernando, o Carvalho, que é de uma quintã, o Moledo, que foi posta pela rainha Dona Mafalda, o Bernaldo, que é de uma quintã, a de Porto de Rei outrossim feita pela rainha Dona Mafalda. As quais barcas do Moledo e Porto de Rei a dita rainha mandou pôr e deixou certas quintãs e casais para mantimento dos barqueiros que passam as ditas barcas sem levarem dinheiro, por grande, nem fora de marca que o Douro vá, e tem dois reais de pena, e da cadeia, se se provar pedirem eles dinheiro a alguma pessoa; todavia, se lho querem dar os que passam, [seja] por cortesia, mas não que o peçam. Na barca do Moledo deixou a dita rainha um hospital em que manda que dêm cama, fogo e sal e água aos caminhantes, e a governança do dito hospital e barca pertence a esta cidade. Dos “piares” do Douro Item entre esta barca do Bernaldo e a de Porto de Rei estão uns formosos peares81 de uma ponte que a rainha Dona Mafalda dizem que mandava fazer os quais são dois no meio do Douro de muito grande altura e muito largo fundamento, que os dois que estão no rio, neste mês de Maio irão bem dez palmos descobertos, e no Verão irão bem vinte palmos e mais, e estão outros dois de fora: um da parte daquém e outro da parte dalém. Estes pilares foram já de dobrada altura e os derrubaram e fizeram deles pesqueiras, e ainda agora os lavradores os descobrem cada dia por dizerem, digo, os derrubam cada dia por dizerem que criam neles as gralhas que lhe comem os trigos. O arco da parte daquém volvia já. Está aí muita pedra quebrada pelo monte, que ficou quebrada, e acharam ainda pelos montes muitas marras e cunhas e alavancas que por aí ficaram. Dizem nesta terra que a rainha Dona Mafalda tinha um filho o qual filho lhe diziam astrólogos que havia de morrer em água; e por isso mandava fazer aquela ponte. E que fazendo-se aquela ponte morrera o filho em uma pegada de boi cheia de água, e que deixou de a mandar acabar de fazer. O que certo não me parece, senão que a rainha morreu estando a ponte nesta altura, e por isso cessou a obra, porque na maneira que ela estaria se não poderia deixar de fazer por outro jeito. Certamente me parece que se El Rei nosso senhor vira os ditos pilares mandara acabar a dita ponte porque a maior parte é feito pois é o do fundo da água, e tem muito bom fundamento para subir toda a altura que quiserem, e tem muita pedraria quebrada e muita para quebrar à borda da ponte, e tem muito grandes soutos de mui e mui formosas vigas, e madeira para armação dos arcos tudo junto com o edifício. E o pilar que começa a volver da parte daquém nunca o rio o cobre. El Rei nosso senhor podia muito bem mandar fazer esta meia ponte que está por fazer com deitar dez réis a cada morador vinte léguas ao redor e em seis ou sete anos ou em menos se podia fazer sem opressão e seria uma coisa muito nobre neste Reino haver uma ponte no Douro porque por ser fragoso é mui perigoso nas passagens e, sobretudo, seria grande enobrecimento desta cidade. [Mesão Frio] Dizem que uma vila que está meia légua desta ponte, que se chama Mesão Frio, foi povoada por pedreiros que faziam esta ponte. E certamente me parece que deve ser assim, porque o lugar tem um rego pelo meio da rua, de fundo acima, e de uma parte é um concelho e de outra é outro concelho. E dizem que um mestre vivia de uma parte e outro mestre de outra, e de cada parte tem um juiz e oficiais apartados um do outro. Esta obra está abaixo de um lugar que chamam Barqueiros, aliás, que chamam Barrô e está em terra para onde a maior parte das estradas de Entre Douro e Minho e algumas de Trás-os-Montes e as da Beira podiam ir ter para passagem da dita ponte.

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Isto é, pilares, como passarei a referir no corpo do texto.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Ponte de Canaveses] Esta rainha Dona Mafalda mandou fazer uma ponte de Canaveses que está em Tâmega e uma gafaria ao pé da ponte e um hospital no meio do lugar, com muitas terras, e paga de portagem cada besta carregada que passa pela ponte dois réis e meio para o hospital. Esta rainha dizem que fez a Sé do Porto e outras muitas benfeitorias neste Riba do Douro. Jaz enterrada em um mosteiro que está em um lugar que chamam Vila Boa do Bispo em Riba do Douro, ao qual mosteiro dizem que deixou sete mosteiros anexos, convém a saber: São João de Alpendurada e Ancede e Cárquere, Bustelo e outros que depois El Rei Dom Dinis desanexou. Título da navegação do Douro Esta ribeira do Douro se navega 25 léguas, convém a saber: de São João da Foz, que é a barra do Porto pelo rio arriba até São João da Pesqueira, que são as sobreditas 25 léguas, com barcas que carregam 1 600 até 1 800 alqueires de pão pela grande medida. E de São João da Pesqueira não podem passar por uma mui alta fraga que aí está onde é a pesqueira donde não podem passar sável, nem lampreia, nem outro peixe para cima. E no mês de Maio tomam naquela pesqueira muitos sáveis um homem que está atado com uma corda por baixo dos braços na fraga e com uma rede que deita em baixo tira muita soma de peixe. Esta fraga manda agora quebrar o Doutor Martim de Figueiredo, a qual quebra com fogo de vinagre; tem muita parte quebrada. Se a acabar de quebrar farão grande navegação até Vilvestre, que daí para cima não podem passar, que aí passa o Douro por baixo de um penedo. E ainda que isto seja fora do compasso das duas léguas se pôs aqui por fazer ao caso. Dos canais do Douro Item nesta navegação deste rio há agora alguns canais que perturbam a passagem das barcas como o rio abaixa, porque elles têm paredes que atravessam o rio de parte a parte, e com míngua não podem passar as barcas. E os canais que danam estas passagens estão no circuito destas duas léguas e são de mui pouco proveito e muito dano, porque tomando-se conta do que custam a consertar e do que rendem acharão que passa a despesa pela receita. E já os principais são derrubados, que eram os de Bagaúste, de Vossa Senhoria, e do Conde de Marialva, [os] do Moledo. E para a navegação ser de todo o ano devia El Rei nosso senhor mandar abrir a veia do rio, que é sua, e logo não teria canais nenhuns como as veias fossem abertas, e já agora não há mais de quatro açudes porque os mais levou o rio. Título das pesqueiras do Douro E também há algumas pesqueiras que fazem somente para sáveis e lampreias, que algumas delas são prejudiciais à navegação, e cada dia fazem mais porque se houvesse provedor no rio para ver isso seria melhor navegação porque o Douro tem todo o ano água em abastança porque afirmam ter dobrada a água abaixo de Entre-os-Rios do que o Tejo tem até onde chega a maré. Certo que vem o Douro de Verão tão grande em Zamora como o Tejo vem em Santarém, pois de Zamora até Entre-os-Rios colhe o Douro dobrada água da de que em Zamora trás. Neste Douro há alguns passos maus que se podiam consertar e nestes passos, a que chamam galeiras, há aí pilotos no rio que passam as barcas, convém a saber: desde os Peares até Porto Manso que são três léguas, e leva o piloto um tostão por descer a dita barca. Outros pilotos há que descem outros passos ruins desde São João da Pesqueira outras duas ou três léguas. Deste São João da Pesqueira também vêm ao Porto almadias feitas de cortiça que trazem 100 dúzias de cortiça e mais, ligadas (?) com paus, e esta cortiça se vende a pescadores para bóias e a sapateiros. E sobre ela trazem muitos odres de vinho, vinagre e mel e muitos sacos de sumagre, e vem homens nelas que as governam. São mais seguras de perigo que as barcas. Neste rio, entre os Peares e as Caldas, estava um penedo que chamavam o Touro, e era o mais perigoso passo que havia nesta navegação onde são perdidas muitas barcas e morta muita gente e haverá quatro ou cinco anos que um homem o quebrou com 51


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

despesa de 1 200 réis, onde não mais perigou barca nem gente. E muitos passos há aí que se podiam consertar82 com pouca despesa, para o que El Rei nosso senhor podia deitar uma portagem às mercadorias que descem, para arranjo e reparação destes maus passos e seria muito santa coisa. [Largura e altura do Douro] E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os criados de Vossa Senhoria à barca da Régua, que é uma légua desta cidade, e aos 28 de Maio de 1532 achámos de largura no rio 230 varas. A altura não se pôde tomar pela grande corrente da água e achámos que fora no ano de 1520 uma grande cheia e assim em outros anos em que levou de largo além da água que agora leva da parte dalém 150 varas e da parte daquém 50 varas e de altura vinte varas, fora a altura que agora tem. Assim que somou toda a largura no tempo das cheias com a que agora leva 450 varas, e tomando a altura do que vai com água a respeito da largura que foi vem por regra da geometria 21 varas e meia, que para 23 varas falta meia avos de vara que é a altura que agora pode levar e a altura das cheias junta com esta são 42 varas e 21, 22 avos de vara. Da Ribeira de Varosa Há aí outra ribeira que chamam Varosa que se mete no Douro [a] uma légua desta cidade e nasce em uma serra que se chama Almofala, que é [a] três léguas e meia desta cidade, e de onde se mete no Douro a onde nasce são quatro léguas e meia. Esta ribeira é de muito formosas águas contínuas e passa-se a maior parte do ano ali onde se mete no Douro em barcas. Há nesta ribeira muito grandes pegos e muito altos de muito infindo pescado, convém a saber: muitas e boas trutas e muitas bogas e barbos. As bogas desta ribeira sobrelevam em sabor a todo outro pescado doutras ribeiras. Tem muitas e mui formosas moendas de todo o ano e de seis, sete léguas, vêm nela a moer no Verão. [São João de Tarouca] Esta ribeira passa ao redor de São João de Tarouca que é da Ordem de São Bernardo. Nele está enterrado um conde que chamavam Dom Pedro, conde de Barcelos. Dizem é filho bastardo de El Rei Dom Afonso Henriques, posto que a Crónica de El Rei D. Afonso Henriques não diga de tal filho. O qual conde Dom Pedro dizem ser homem como gigante de corpo. E assim está enterrado no dito mosteiro um seu filho que dizem ser de seis meses. E as canas dos seus ossos são de quatro palmos. Este mosteiro rende 600 mil réis. Quem o ordenou não se acha, somente dizem que um ermitão, por esmolas e com ajuda de El Rei de Castela, o edificou. Foi feito na era de 1134 quando em Espanha foi interdito pelo casamento de El Rei Dom Afonso de Leão com Dona Teresa83, filha de El Rei Dom Sancho de Portugal, o qual interdito foi feito pelo Papa Celestino terceiro, que então era, porquanto El Rei Dom Afonso de Leão era sobrinho de El Rei Dom Sancho, seu sogro, filho de sua irmã. E porque este mosteiro tinha então um grande privilégio que, sem embargo de excomunhão do Papa, pudesse celebrar os Ofícios Divinos e por este caso, nesse interdito, se vieram a enterrar grandes senhores de Castela ao dito mosteiro e deixarão muita renda que o dito mosteiro tinha em Castela e pelas guerras a perdeu. E os testamentos destes senhores estão no dito mosteiro e todos têm esculpidas suas armas nas sepulturas. E ao sagrar deste mosteiro foi um bispo de Lamego e o bispo de Coimbra e o bispo de Viseu e o arcebispo de Braga, segundo achei em um letreiro que está no dito mosteiro, e assim um bispo do Porto. Neste mosteiro jazem enterrados um mestre de Calatrava de Castela e um Joane Mendes de Berredo e sua mulher Dona Urraca Afonso que eram ambos de Portugal, os quais deixaram ao dito mosteiro a aldeia de Martinhanes e a quinta de Mosteiró. E no dito mosteiro está ainda uma colcha que dizem foi do conde Dom Pedro a qual tem por memória84.

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No documento, “correger”. No documento, “Tareja”. 84 Sic. A frase parece estar incompleta, não se chegando a descrever a referida “memória”. Não se encontra em nenhuma das versões que consultámos, o 83

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[Mosteiro de Salzedas] E vai o dito rio também pela Ucanha que é do mosteiro de Salzedas, e vai por muitas terras que pertencem ao dito mosteiro o qual mosteiro, diz no letreiro, dizem que mandou fazer Dona Teresa85, mulher de Dom Egas Moniz que em ele está enterrada, e o marido jaz em Paço de Sousa. E jazem enterrados no dito mosteiro de Salzedas os Coutinhos, e pouco mais ou menos é da renda do mosteiro de São João. Este mosteiro foi feito na era de 1148 anos86. As terras deste mosteiro e do mosteiro de São João partem ambas, assim na serra como na ribeira, ambos rego por rego. Ambos estes mosteiros estão [a] duas léguas desta cidade e ambos são da mesma Ordem. E daí vem o dito rio ao longo do mosteiro de Recião, que é [a] meia légua desta cidade, e é de São Jorge da Ordem de Santo Elói dos hábitos azuis e é um mosteiro pequeno e mui viçoso de todos os viços. Esta ribeira, uma légua ao redor desta cidade, de uma parte e outra toda é olivais e vinhas de mui excelentes vinhos, os melhores da terra, e nogueiras e outras muitas árvores, e outra légua para cima é toda soutos onde se mete no Douro. E na quinta de Mosteiró de que atrás faço menção, tem um canal em que morrem muitas bogas e outro muito pescado. Esta ribeira vem a maior parte por terra fragosa e daqui a duas léguas se junta com ela outra ribeira que vem por Lalim, e tem muitas trutas e muito saborosas, e vem junto de Tarouca e em Mondim se junta. Da Ribeira de Balsemão Há outra ribeira que chamam Balsemão que passa por redor desta cidade, nasce daqui três léguas. [Montemuro87] Esta ribeira atravessa o Montemuro, digo, atravessa a Serra de Montemuro toda e nela nasce, a qual Serra é neste circuito a principal dele. A gente desta Serra são gentes lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras. Vestem burel e calçam avarcas que são feitas de correia de vaca, e alguns andam sem carapuças. E os homens e as mulheres pela maior parte são de consciência e casam assim homens como mulheres de trinta anos para riba e isto pela maior parte, e enquanto não são casados não têm sobrenome, e ainda muito depois de casados. Pela maior88 parte vivem muito homens de noventa, cem89 e cento e vinte anos e destes muitos, e nunca em suas doenças se curam com médicos. Não bebem vinho por na terra não se dar, somente alguma hora se o bebem é por acerto90. Não comem senão leite e pão de centeio o mais das vezes, dado que outras vezes comem carne porque na dita Serra não se dá senão muitos e mui formosos centeios, e da eira tiram o pão para semear, e eles semeam no fim de Julho e as mulheres malham, de maneira que o pão esta sempre um ano nos campos. São grandes lutadores, os homens e as mulheres, de muita força. Nesta Serra houve uma mulher que chamavam a Pinta, que era de 120 anos e trazia do mato feixe de lenha com que se cozia uma fornada de pão. Os homens e as mulheres desta Serra são grandes criadores de muitas vacas.

que pode indiciar que não estivesse no documento original de Rui Fernandes, que não terá, assim, concretizado essa informação. 85 Ver a nota anterior. 86 Ou seja, no ano de 1110. 87 No documento, “Monte de Muro”. Passarei a usar a forma actualizada deste nome. 88 No documento, “mor”. 89 No documento, “cento”. 90 Esta expressão pode ter dois significados. Por um lado, pode querer dizer “por acaso”. Por outro lado, pode evocar um costume ancestral que dá conta do facto de duas pessoas beberem vinho quando “acertam” algum negócio. 53


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Vacas e touros] Há homens de 120, 150 reses vacuns, de vacas e touros, as quais vacas têm esta maneira: que do mês de Maio até ao mês de Setembro pastam na dita Serra de Montemuro, e do mês de Setembro até Maio pastam na Gândara junto do mar entre Aveiro e Coimbra que são 16, 17 léguas da dita Serra do Montemuro. E são já tão sentidas no tempo que se o tempo é quente e se os donos as não vão buscar muitas se vem por si, e se o tempo é frio e as não levam por si se vão, e têm lugares deputados91 no caminho que chamam malhadas onde dormem, e ainda que cheguem cedo aí se aposentam. Estas vacas são de peso de cinco, seis, sete arrobas. Dão os mais formosos touros que se podem haver deste peso. São mui ligeiros em correr e muito destros em ferir. Nunca homem de cavalo entrou com eles em curro e mui poucos livres os podem apanhar que os não matem. Onde estes touros andam não ousa lobo cometer a manada. Como vêem homem de perto a tiro de besta apartam das vacas alguns para o cometer. Estes homens desta Serra também criam muitas cabras, e carneiros poucos. O gado desta Serra e as carnes têm avantagem em sabor a todas as carnes. Os homens nesta Serra têm muitos filhos e filhas e mais são as filhas que os filhos. E as filhas não têm linhos para fiar por a terra não os dar e vêm a esta cidade e [a] esta feitoria das lonas de El Rei nosso senhor e leva um lavrador uma carga de linho cânhamo que torna a trazer fiado em dia de mercado a esta cidade que as filhas fiam andando com os gados e levam azeite, sal e pescado e outras coisas para seu sustento. [Caça] Nesta Serra há muita caça, convém a saber: perdizes, galinholas, coelhos, lebres, que vêm vender a esta cidade, e assim leite, nata, manteiga e também trazem a vender carvão e lenha. Esta Serra tem muitas e mui excelentes fontes perenes, mui excelentes lameiras, uma mui formosa veiga por o meio dela por onde vem esta ribeira que é de uma légua em comprido, e três tiros de besta em largo, e é toda lameiras e pastos sem outro nenhum renovo, mas aqui por a terra ser fria não pastam senão de Verão. Nesta Serra não há nenhuma casa de telha, senão todas de colmo, e todas terreiras. Tem outras pequenas ribeiras de trutas pequenas de que não faço menção. [Das neves] Nesta Serra há muita neve. E ao fazer deste tratado no ano de trinta e um, em dia de São Tomé, no mês de Dezembro, caiu uma neve muito grande nesta Serra, e maior, que nunca se recordou homem de 90, 100 anos que nasceram na dita Serra. Foi a neve de tal maneira, que o dia que começou cobriu as casas e muita gente ficou dentro nelas sem terem caminho nem saida, somente os outros de fora lhe iam a fazer caminho às portas por onde saíssem, e a neve continuou três ou quatro dias. Os homens e mulheres da dita Serra tinham bem que fazer com rodos e enxadas para tirar a dita neve de cima das ditas casas colmaças, que não quebrassem as latas das ditas casas e os matarem dentro. E em lugares houve que foi de 10, 12, 15, 20, 30 palmos segundo o vale era, e isto por alto. E aos 26 de Janeiro caiu outra grande neve e morreu muito gado, e todavia não puderam tanta neve tirar que não caíssem muitas casas nesta Serra. E nas Dornas se aconteceu ficar uma corte de bois coberta de neve e a esmo saberem onde estava a corte e minaram por baixo dez palmos por a neve estar tão rija da geada e codão que que sobre ela caíra, e pela dita mina tiraram os bois, e para os gados se não perderem cavaram às enxadas e rodos meia légua e a légua para fazerem caminho por onde os ditos gados fossem para terra quente por se não perderem como de feito se perderiam se os ditos lavradores lhe não acudiram com feitos (?92) de que tem feitos palheiros para o gado miúdo comer no semelhante tempo. Todavia esta neve não coalha senão a uma légua desta cidade para o Sul e para outras partes, e o circuito da cidade e daqui a Mesão Frio fica sem cobrir [de] neve. E se neste tempo que a dita neve estava na Serra acertara de se alagarem todas as moendas desta cidade, e a ribeira fizera muito dano porquanto a ribeira atravessa toda esta Serra e

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Isto é, demarcados. Por fenos?

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

fizeram-se quinze dias que os homens que vinham de Coimbra e de Viseu para esta cidade aguardavam que baixasse a dita neve por não poderem passar. [Moendas] Esta ribeira de Balsemão vem logo por Magueija, que é do infante Dom Fernando, e vem dar na falda desta cidade onde tem 28 rodas de moinhos muito bons fora outras tantas, e mais que terá para cima, das quais moendas a cidade é mui bem regida, porque a ribeira mói todo o ano e os moleiros são obrigados a vir buscar o pão a casa e joeirarem-no e levarem-no ao moinho e trazerem-no de um dia até ao outro e continuadamente andam com asnos pela dita cidade a buscar o dito pão. Somente tem muita necessidade de haver peso da farinha de que a cidade tem pedido a Vossa Senhoria para que lho haja de El Rei. [Aldeia de Balsemão do bispo Dom Afonso] E daqui vai a dita ribeira ter à aldeia de Balsemão, que é de sete vizinhos93, de onde ela tem o nome, que é da cidade meia légua, e toda esta meia légua é de um formoso bosque a que chamam a Pisca, que todo é souto e pomares de diferentes árvores de fruto. [Do bispo Dom Afonso que jaz em Balsemão] Nesta aldeia de Balsemão jaz enterrado o bispo Dom Afonso, que foi bispo do Porto, em uma capela que mandou fazer nas casas de seu pai onde nasceu, a qual capela é pequena e muito bem obrada de pedraria onde está a sua sepultura. E também fez muito bom aposentamento em que viveu e comprou muitas terras que anexou à capela que agora rendem 40, 50 mil réis. Deixou-a muito bem fornecida94 de vestimentas e mantos de brocado e de seda e de cálices e de outros ornamentos, e fez um honrado testamento e estatuto para a dita capela para seus herdeiros se regerem. E na segunda oitava do Espírito Santo em que a bandeira do sinal de El Rei nosso senhor desta cidade vai a São Domingos, como adiante se dirá, pelo dito estatuto dão ali ao Alferes umas ferraduras para o cavalo e ao juiz dez réis e a cada cónego três réis fora outra renda que deixou ao Cabido para lhe dizerem um responso sobre a sua sepultura no dito dia. E outro de seu irmão que chamavam Dom Domingos Martins dizem que fez o mosteiro de Recião, de que atrás faz menção, o qual mosteiro de Recião dizem ser primeiro de freiras e um bispo desta cidade que veio de Roma o mudou à Ordem de Santo Elói porque novamente se acostumava em Roma95. Este bispo Dom Afonso era sobrinho de Dom Vasco, bispo de Lisboa, que, dizem, fez o morgado de Medelo e a Torre do Bispo. Este bispo Dom Afonso morreu na era de 130096, segundo letreiro da capela, o qual sendo bispo do Porto, que é uma tão nobre cidade neste Reino, sua própria mãe que é a terra o chamou como no prólogo deste tratado tenho dito, e ele, deixando seu bispado, sujeito como filho obediente à dita mãe, se veio àquela aldeia de sete vizinhos comer suas rendas onde faleceu. E deste bispado procedem os Afonsecas os quais administram a dita capela, e de Medelo descenderam estes bispos como adiante faço menção. Couto de Medelo Medelo foi uma aldeia termo desta cidade em a qual aldeia viveu um lavrador que chamavam Afonso Domingues e houve um filho, que chamavam Vasco Domingues. Este, por seu saber, veio a ser mestre do Príncipe filho de El Rei Dom Sancho e depois

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Ou seja, agregado familiar; os investigadores da demografia variam na interpretação desta expressão, considerando, consoante os critérios, que o número de vizinhos deve ser multiplicado por 4, 4.5 ou 5. 94 No documento, “repairada”. 95 Ou seja, que era um novo costume importado de Roma. Hoje, quando utilizamos o advérbio novamente, reportamo-nos ao retomar de algo. Na linguagem portuguesa do período medieval e moderno esta expressão é usada para referir uma novidade. 96 Ou seja, no ano de 1262. 55


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

foi bispo de Lisboa ao qual chamavam Dom Vasco. E sendo bispo pediu a El Rei que lhe fizesse aquele lugar do seu nascimento couto para honra de sua geração. El Rei houve sobre isso conselho e saiu que não podia ser provido por ser muito prejudicial o dito couto à sua cidade de Lamego. Tornou a fazer outra petição alegando que tinha feito muito serviço ao Reino, e que fora a Roma certas vezes, que aquele tempo haviam por muito ir a Roma, e outros serviços que alegou, e com a segunda petição lhe fizeram couto. Depois disto morreu o dito bispo Dom Vasco e fez um testamento [em] que ele, por não ter herdeiros, deixava sua alma por sua herdeira, à qual deixava que lhe fizessem uma capela na Sé de Lamego de sua pátria, e é do orago de Santa Catarina e deixou à Torre do Bispo certos bens que tinha em Torres Novas e o couto de Medelo, e que na dita capela se dissessem cada semana duas missas, e fosse administrador dela Geraldo Domingues seu sobrinho, filho de sua irmã, cónego na Sé de Évora, e por morte do dito Geraldo Domingues a administração se tornasse aos herdeiros da linha de sua mãe, e havendo clérigo se desse antes que a leigo, e não havendo barão a herdasse mulher, aquela que mais chegada fosse ao parentesco. O qual Geraldo Domingues, cónego de Évora, foi depois bispo de Évora. E ao tempo da sua morte fez outro testamento em que mandou que se cumprisse o testamento de seu tio Dom Vasco, e mandava que na dita capela de Santa Catarina se dissesse cada dia uma missa, e houvesse dois capelães, e mais deixava à dita capela a apresentação do mosteiro de Bouças, que era sua capela, se tornasse à linha de seu tio, a qual capela e couto depois tiveram muitos herdeiros, e veio ter a um pobre escudeiro que vivia no dito couto de Medelo e administrava a capela de Santa Catarina, ao qual por sua pobreza se lhe levantaram com a Torre do Bispo, e com as terras de Torres Novas e outras da capela e ele era senhor do couto. E estando assim, veio Gonçalo Vaz Coutinho, que então era Marechal de Portugal, o qual veio ter a esta cidade, e não sei se era já alcaide-mor dela, e falou com o dito escudeiro e lhe disse que ele não podia resistir para haver as terras e rendas da dita capela, que se ele lho quisesse satisfazer e deixar o dito couto e capela, que ele resistiria e haveria a dita capela, digo, haveria as terras e coisas que a ele pertenciam, o qual escudeiro lhe deixou a dita administração do dito couto e capela. O descambo como foi se arrendasse a dinheiro, não o achei somente o dito Marechal houve a sobre dita capela e tirou a Torre do Bispo e as terras de Torres Novas e a apresentação de Bouças que andava sonegado, e ficou aos Coutinhos com o antigo couto de Leomil que já tinha. E o dito morgado de Medelo e capela terá de renda perto de três contos de réis. E acho que deste Afonso Domingues, lavrador desta nossa aldeia, descenderam três bispos, convém a saber: seu filho Dom Vasco, bispo de Lisboa, e seu neto Dom Geraldo, bispo de Évora, e Dom Afonso, que foi bispo do Porto, que também dizem ser seu neto, que jaz em Balsemão e fez o estatuto da capela de Balsemão pelo modo da de Medelo e diz em ele não havendo herdeiros de sua linha se volva aos herdeiros de seu tio Dom Vasco, bispo de Lisboa, e assim diz que os responsos e missas que lhe disserem na dita capela seja por sua alma e pela alma de seu tio Dom Vasco, bispo de Lisboa. Por este lugar de Medelo passa o ribeiro de Fafel de que adiante faço menção. Esta ribeira de Balsemão se vai meter em Varosa [a] três ou quatro tiros de besta da dita aldeia e dizem que um Bispo a quisera mudar por esta cidade na ribeira da Magueija para vir dar em Fafel, o que se poderá fazer com ajuda de El Rei, e fora grande enobrecimento desta cidade. Esta ribeira tem muitos bons bordalos e muitas trutas, as mais saborosas de toda a Beira, ainda que são pequenas, e também tem alguns pegos em que andam grandes trutas. Do ribeiro de Fafel Ha outro pequeno ribeiro que vem pelo meio desta cidade que chamam Fafel, de onde se regam os renovos e hortas da maior parte desta cidade e doutras aldeias. Nasce daqui a meia légua em Penude e vem pelo lugar de Medelo, cabeça do morgado, que é perto desta cidade. Entra pela povoação da Sé em redor dos paços de Vossa Senhoria e do seu formoso terreiro. Este ribeiro ainda que é pequeno é mui furioso quando vai de cheia, e depois da partida de Vossa Senhoria tem dados fortes combates ao seu muro do terreiro em tanta maneira que o derrubou por três lugares desejando-se tornar ao lugar de onde Vossa Senhoria o mandou mudar por onde o seu terreiro fixou de longo 106 varas e de largo 86, que autoriza bem e enobrece esta cidade. Este rio, pela maior parte, é de fontes mui excelentes e de todo o ano. Mói somente quando lhe tomam a água para regar e não por não ter água. Tem quatro lagares de azeite e oito rodas de pão além dos que digo da ribeira de Balsemão e tem dois pisões dos bordates de El Rei nosso senhor. O qual rio é a melhor água para curar panos que outro, e com ele se curam os ditos bordates e alguns fustões que se aqui também fazem nos engenhos dos bordates, onde também se fazem bocachins. 56


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Este ribeiro se vai meter no rio de Balsemão a três tiros de besta dos paços de Vossa Senhoria. De onde nasce até onde se mete em Balsemão tudo é de uma parte e doutra soutos e nogueiras e olivais e pomares e hortas. Este rega os famosos campos de Coura e tem alguns poucos escalos pequenos. Do ribeiro de São Martinho Há outro ribeiro no concelho de São Martinho de Mouros que nasce no cimo do concelho, convém a saber: águas vertentes da Serra de Montemuro para o Douro, o qual ribeiro de onde nasce a onde se mete no Douro é uma légua, e é pelo mais fresco vale que se pode achar, todo muito cerrado, e parece-se muito com Sintra, somente tem mais arvoredo. Todo este vale não é senão castanheiros e nogueiras e aveleiras e laranjeiras e outras árvores de espinho mui excelentes, e muitos bons pomares e lameiras. Dá o mais formoso trigo que há em toda a Beira, muitas uveiras, homem há que colhe 400, 500 almudes de vinho amaral de árvores, e grande soma de noz e castanha e dali saem muitos e mui formosos mastros de castanheiros e muito tabuado que todo se vai carregar ao Douro. [Morgado dos Cardosos] No dito vale está um lugar que chamam Cardoso onde está um morgado de onde procedem os Cardosos deste reino. Tem muitas e mui honradas quintas e casais no dito vale e em outras partes da Beira e agora é de Azoil (sic) Cardoso e Vasco Cardoso seu filho. Neste vale há as mais fontes que em todo o Reino se podem achar em tão pequeno compasso e isto é no concelho de São Martinho de Mouros que é do Ilustríssimo infante Dom Fernando, e a igreja é da sua capela de Santa Catarina e é a igreja muito antiga segundo parece em seus edifícios e tem uma torre mui honrada e a igreja é edificada como Sé e me parece edifícios mouriscos. A esta igreja é anexa outra de Montemuro da principal parte da dita Serra a que chamam Gosende. [Jantar de Montemuro] Têm todos os moradores de Montemuro, pais e filhos, em dia de São Martinho, que se faz uma festa na dita igreja, um jantar em que hão-de dar a cada um três iguarias. Se é dia de carne, vaca, carneiro, marrã e mostarda e magusto. Se é dia de pescado hão-de dar peixota, raia e sardinhas e azeite e vinagre e nozes e vinho que os farte. E em dia de Natal para beberem na sua igreja treze almudes de vinho. E este partido me parece que fizeram por darem o padroado à dita igreja de São Martinho por fazerem a sua igreja anexa à dita igreja de São Martinho. Este ribeiro de que acima faço menção que passa pelo vale de São Martinho se chama Bestança. Este ribeiro tem nesta légua 25 moendas que moem todo o ano. [Córrego] Item na parte dalém Douro no dito compasso há outra ribeira que chamam o Córrego, da grandura da Varosa, e também se passa em barca ao tempo que passa Varosa. Esta ribeira nasce dentro em Vila Pouca de Aguiar em uma fonte no cima do lugar. Vem por todo o vale de Aguiar, que é bom e grande, e vem ao redor de Vila Real e vem-se a meter no Douro em a Régua defronte da Varosa a uma légua desta cidade e de onde nasce a onde se mete no Douro são sete léguas. Não faço menção doutros ribeiros, digo, léguas; trás muitas trutas e bogas. Não faço menção doutros ribeiros que neste se metem por serem pequenos, e ainda que trazem algumas trutas pequenas. Da ribeira de Sermenha Item há outra ribeira que chamam Sermenha que nasce na Serra do Marão. Mete-se no Douro entre o barco do Moledo e do Carvalho e trás trutas e bordalos muito bons. 57


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Há outra ribeira que chamam Teixeiró que vem por um lugar a que chamam a Teixeira, e nasce arriba do lugar caminho de São Gonçalo de Amarante o qual vem por Mesão Frio por muito fragosa terra. É muito viçosa ribeira de pomares, árvores de espinho, soutos, nogueiras, e tem muito boas trutas e muito boas bogas, bordalos e vem-se a meter no Douro. Título do número e soma dos moradores deste compasso Item determinei a somar quantos povoadores há neste compasso e para o melhor saber pus os concelhos todos cada um por si e quantos moradores têm, os quais concelhos tirei alguns deles por as somas que El Rei nosso senhor mandou fazer, e outros por informação dos sobreditos concelhos e moradores deles. São 5 116 moradores neste compasso e por razão e nobreamento todos houveram de ser termo desta cidade e fora uma bem nobre cidade e maior e mais rica se tivera este termo. E a renda das terças que rende a este concelho renderá a ela para seu enobrecimento. E muita parte destes concelhos em tempo antigo foram do termo da dita cidade, e por ela andar então regida por oficiais mecânicos se perderam por não acudirem a isso. E para esta cidade ser maior e mais bem consertada de muitas benfeitorias devia El Rei nosso senhor fazer mercê das terças destes concelhos para obras desta cidade, as quais terças rendem bem pouco dinheiro, que pode ser até 40 mil réis, e com este rendimento cada ano se faria uma benfeitoria, assim para fazer rossios de que tem muita necessidade, como de praça, que há três anos que nela fazem e por a renda ser pequena se não pode acabar, porque a cidade tinha de renda 10 mil réis, e agora com os tombos que fez o licenciado Francisco Sanches rende 31 mil réis e daqui se tira a terça. E achou-se por uma inquirição que tiraram que o mosteiro de São João lhe tem tomados 40 ou 50 mil réis de renda dos seus maninhos. E por a cidade não ser bastante para suprir a demanda, e assim por porem suspeições ao Licenciado, não se seguiu a demanda. E para finta não tem maneira porque a maior parte dos povoadores são privilegiados e os pobres que não têm privilégio pagam tudo, para o que El Rei nosso senhor devia pôr estas fintas em imposição de um ceitil na carne para ricos e pobres pagarem antes que em fintas do concelho por a muita opressão dos pobres. Os quais concelhos e povoadores são os seguintes. Título do numero da gente deste circuito [De El Rei] Item a cidade e termo [têm] ............................................................................................................................. 1 411 vizinhos [De São João] Item Sande tem ................................................................................................................................................. 56 [vizinhos] [De El Rei] [Item] Valdigem [tem] .................................................................................................................................... 146 [vizinhos] [De Pero da Cunha] Item Armamar [tem] ....................................................................................................................................... 341 [vizinhos] [De El Rei] Item Vila Seca [tem] ......................................................................................................................................... 36 [vizinhos]

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[De António Pereira] Item Lumiares [tem] ....................................................................................................................................... 189 [vizinhos] Além Douro [De Vossa Senhoria] Item Canelas [tem] . ........................................................................................................................................ 100 [vizinhos] [Do bispo do Porto] Item o Peso [tem] .............................................................................................................................................. 60 [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Fontes [tem] . ............................................................................................................................................ 25 [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Penaguião [tem] . .................................................................................................................................... 570 [vizinhos] [De El Rei] Item Oliveira [tem] ........................................................................................................................................... 20 [vizinhos] [Beatria] Item Cidadelhe [tem] ........................................................................................................................................ 20 [vizinhos] [Beatria] Item Mesão Frio [tem] .................................................................................................................................... 200 [vizinhos] [Beatria] Item Vila Marim [tem] ...................................................................................................................................... 80 [vizinhos] Aquém Douro [Do infante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros [tem] ............................................................................................................... 570 [vizinhos] [Do infante Dom Fernando] Item Magueija [tem] ......................................................................................................................................... 36 [vizinhos] 59


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Do infante Dom Fernando] Item Medelo [tem] ..............................................................................................................................................................

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[De El Rei] Item Gosende [tem] .......................................................................................................................................... 40 [vizinhos] [Beatria] Item Campo Benfeito [tem] ................................................................................................................................................

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[Beatria] Item o Mesio [tem] . .......................................................................................................................................... 30 [vizinhos] [Beatria] Item Britiande [tem] ....................................................................................................................................... 120 [vizinhos] [De El Rei] Item o couto de Salzedas [tem] . ...................................................................................................................... 280 [vizinhos] [De El Rei] Item Tarouca [tem] . ........................................................................................................................................ 540 [vizinhos] [De El Rei] Item Lalim [tem] . ............................................................................................................................................. 50 [vizinhos] [Do infante Dom Fernando] Item Mondim [tem] . ....................................................................................................................................... 221[vizinhos] Da soma dos aí moradores Assim que somam os moradores deste circuito de duas léguas em compasso e de arredor a soma sobredita os quais, tantos por tantos, não se achará no Reino nem em Espanha que tenham tantos filhos e filhas. E são mais as filhas que os filhos porque em nenhuma parte se achará onde as mulheres tanto pairam nem que tanto se criem, porque no dito circuito há mulheres que pariram três crianças de uma emprenhidão. Há muitas pessoas que têm dez, quinze, e dezasseis filhos e filhas de um marido.

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Em branco nas duas versões. Em branco nas duas versões.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

E deitando ao dito compasso a um por outro a cinco filhos somam 20 580 filhos, e isto mais se hão-de achar de cinco para cima que de cinco para baixo porque nesta cidade houve mulher, que haverá vinte e quatro anos que é falecida, e hoje são vivos dela bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a maior parte destes são fêmeas, e ela não teve mais de um só marido. Do ensino dos moços e moças do Bispado Tem outra coisa, que os moços e moças da parte daquém do Douro, e assim todos os outros deste bispado de Vossa Senhoria, de cinco anos para cima todos sabem e são mui sabidos nos feitos de Deus que não há moço nem moça assim das aldeias como da cidade como os que andam com o gado no monte que não saibam o Padre Nosso, Ave Maria, e o Credo, e Salve Rainha, e os Mandamentos, e ajudar à missa em modo que os filhos ensinam aos pais e mães e isto no bispado de Vossa Senhoria pelos mestres e cartilhas que Vossa Senhoria mandou pôr em todas as igrejas do seu bispado, que todos os dias à Vésperas fazem vir todos os moços e moças da freguesia e os ensinam. O qual é uma obra mui santa que não há pessoa que não folgue de ver o ensino e o saber das crianças principalmente nas aldeias e nos montes onde não sabiam o Padre Nosso senão desde que Vossa Senhoria os mandou ensinar. E Vossa Senhoria tem visto ser assim porque à sua mesa os mandava vir, os da cidade e termo, e via todos como eram ensinados tão pequenas crianças e acerca desse teor são todos os do seu bispado. Dos porcos Item no dito compasso podem criar cada morador dois porcos um por outro, e uma marrã e isto é o menos porque há muitos homens que cria cada um dez, doze porcos, e quatro e cinco mais por menos. Deito isto porque alguns não criam a dois porcos e uma marrã que somam 10 232 porcos os quais se criam no dito compasso e 5 116 marrãs. São as mais saborosas carnes do Reino por serem cevados com castanha. Estes porcos os mais deles se vêm a vender a esta cidade em um mercado que se faz cada semana à segunda feira, e vendem-se desde dia de Santo André até dia de Janeiro (sic); e assim vão alguns a uma feira de São Nicolau que se faz em um lugar que chamam Canaveses que é daqui sete léguas que se vendem para Entre Douro e Minho e para a Beira e também vão porcos e marrãs para a cozinha de El Rei nosso senhor e também muitas marrãs e muitos presuntos vão para a corte e para outros lugares. Item rendem os dízimos foros das novidades destas duas léguas aos prelados e senhorios (?) dela cinco contos de réis pouco mais ou menos, que também fica pelo miúdo e no meu poder, contando as rendas que tem o infante Dom Fernando neste compasso; o ano [passado] as arrendou Nicolau Rodrigues que é o maior crescimento que nunca tiveram. Dos rendimentos dos portos e sisas a El Rei nosso senhor Item rende a El Rei nosso senhor as sisas e portos desta terra convém a saber: os mercadores que vão a Castela três contos de réis nas sobreditas duas léguas, ainda que já agora não rende tanto, que diminuiram bem o terço pelas rendas que Sua Alteza mandou dar em tributo real, as outras abateram, e os que têm os tributos todos trabalham por se tirar deles, e não são contentes, e El Rei nosso senhor nisso perde porque uma sisa de tributo dará quatro de arredor. Porque ou todas houveram de ser tributo, ou todas arrendadas, porque no tributo mal pelos que pouco podem, porque os poderosos pagam o que querem e aliviam a que querem, e o ano que o homem é lançador é bem servido. Assim que somam oito, oito contos o destas duas léguas. E este rendimento que digo são afora o mais que com isto se aqui recolhe de fora por ser cabeça do almoxarifado e do bispado.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item o almoxarife de El Rei nosso senhor quatro contos de réis .............................................................................. 4 contos. Item o almoxarife [do infante] Dom Fernando ........................................................................................................ 4 contos. Item o feitor de Vossa Senhoria dois contos e trezentos mil réis .............................................................. 4 contos e 300 000. Item os mosteiros de São João de Tarouca e Salzedas um conto e duzentos mil réis ................................................... 1 conto e 200 000. Item o Cabido com o grosso ............................................................................................................................................... 99. Afora comendas de Rodes e outras comendas e igrejas que aqui não faço menção, porque entram na conta dos cinco contos de réis. E todo este dinheiro vai para fora tirando se é algum de alguns, poucos, abades e do Cabido porque o Daiado e Tesourado que é do Cabido se come fora, e assim do mosteiro de Salzedas se come aqui, e todo o mais dinheiro se vai daqui para fora, somente até agora se comia nesta cidade 800 000 réis de lonas que se faziam para El Rei nosso senhor que saía das sisas do dito compasso e se repartia por fiadeiras e tascadeiras e dobadeiras todo pelo miúdo, que é regateiras e panadeiras. Até os presos nisto ganhavam de comer em dobar e almocreves em carretos, e homens pobres que não tinham ofícios aprenderam a tecelães das ditas lonas com que até agora se mantinha. E este ano passado, que não houve contrato pelas pazes de França, ficaram desbaratados e se as obras que Vossa Senhoria mandou fazer [não foram,] muitos pereceram por a terra ser muito pobre de dinheiro e os mais dos anos lhe levam os mantimentos para Lisboa e para outras partes. Do tratado (sic) dos bordates, fustões e bocachins Item há outro trato de El Rei nosso senhor de bordates que costumavam trazer de França e agora se fazem nesta cidade e circuito, que é muito bom para a dita terra. Porque na dita cidade e circuito haverá 2 000 tecedeiras de pano de linho e estopa as quais tecem aqui os ditos bordates, e está aqui na casa da Feitoria um formoso brunhidor dos bordates e pisoas monstruosas para ver andar, e assim há dois pisões que Vossa Senhoria viu, no qual brunhidor se fazem também bocachins e fustões como atrás digo. Do sítio da terra e povoadores dela Item esta terra é muito montuosa pela maior parte e toda é muito aproveitada, que em ela não há pedaço que não seja aproveitada, principalmente para o Douro. E os homens são tão benfeitores que às fragas altas levam o cesto da terra às costas para plantarem as parreiras e figueiras, pereiras, ameixoeiras, e todo outro arvoredo. E todas as estradas estão cobertas de fruteiras e videiras onde desde o mês de Abril até ao mês de Outubro os homens têm sempre em que deitar a mão de frutas e é sabido que nestes meses a despesa é muito menor de pão nesta terra que em outros meses. Há também muitas ervilhas e favas semeadas que também é mantenença, e os caminhantes comem de tudo isto largamente pelas estradas sem dinheiro porque os povoadores desta terra são muito maviosos e de agasalhado e dão-lhe largamente de comer do que têm e melhor que nenhum outro de Alentejo nem da Estremadura. Em este circuito não poderá homem andar que a tiro de besta não ache água e sombra de árvores de fruto para comer. E por esta terra ser tão fragosa serve-se com bestas de almocreveria, que haverá bem 1 500 bestas muares de carga de que a cidade é bem servida de pescados frescos e doutras coisas como ao diante [se] dirá, e assim há muitas aves convém a saber: rouxinóis, calhandras, estorninhos, melros, milheiras, e outras muitas de mui suaves e doces cantares que de noite e de dia não deixam de cantar no V[e]rão.

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Em branco nas duas versões.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

Das trovoadas Esta terra é muito perigosa de trovoadas principalmente no mês de Maio que acerta dia muito sereno em que vem toda a escuridade do mundo e cai mui grande pedra, pedras que são delas tamanhas como ovos de pássara, e cai tanta, e em tanta quantidade, que no lugar onde cai destrói todos [os] pães dos agros e todas as árvores e todas as vinhas, e onde acerta leva o ramo ao chão. E estas trovoadas não vêm senão no Verão e cai com elas muitos raios e coriscos, que matam gente, e acerta em castanheiro que o queima até ao chão e não dura senão uma hora, hora e meia, e quando dura duas horas é muito e ela passada fica o tempo sereno como que nunca chovera. E esta trovoada muitas vezes nem empece mais de uma freguesia ou um tiro de besta ao redor, mas o lugar onde chega fica destruído por todo aquele ano de todos os renovos e muitos lavradores ficam perdidos. E estas trovoadas é certo que não podem mais vir, que do dia que a primeira começa ate nove dias, e está experimentado e é certo, e muitas vezes acertam cinco, seis trovoadas nestes nove dias. E em diversos lugares há muito grandes nevoeiros nesta terra e Riba do Douro principalmente nesta cidade que nunca no mês de Dezembro e parte do de Janeiro nenhum ano erra, e é névoa encerrada, que a um jogo de barreira se não vê um homem ao outro. E alguns anos acerta de vir outra névoa tão cerrada quando os trigos começam a engraecer. Esta névoa acerta que se o Douro vem barrento naquele tempo, por via das águas de Castela, se perdem todos os trigos de Riba do Douro por causa daquela névoa trazer o barro do Douro e se meter no casulo da espiga do trigo onde havia de estar o grão, e quando o vêm segar acham a espiga cheia de barro sem grão. E isto não faz mais dano que águas vertentes ao Douro, e isto indo o Douro barrento, porque se não vai barrento ainda que haja névoa não faz dano, e assim destrói os vinhos e azeites. Do assento desta cidade Esta cidade conquanto é abastada está o assento dela muito mal concertado convém a saber: o assento das vivendas, dado que esteja em bom sítio porque está em três bairros: uma é a principal vivenda da Praça onde acodem todas as mercadorias e vivem os mercadores e se fazem os mercados e onde é o trato todo, e onde está a Audiência e Relação sobre ela e pousam as justiças seculares; outro é o Bairro da Sé, que de antiguidade se costumava chamar100 o Couto da Sé porque é dos bispos, onde vivem os cónegos e beneficiados e outras nobres pessoas, onde estam os Paços de Vossa Senhoria e com o formoso jardim e grande terreiro e cerco de muro que Vossa Senhoria mandou fazer, e assim como o poço e carreira e com outras mui formosas benfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas, que é a melhor coisa da cidade, e também lhe dá muita graça o rio neste Bairro da Sé, e em cada parte que cavam, por pouco espaço, achão muita água como Vossa Senhoria sabe pella água do seu muito formoso Poço da Bomba que mandou abrir, onde achou dois muito grandes tornos de água para o tanque. Há outro Bairro no meio destes em mais alto onde está a fortaleza desta cidade em que moraram cinquenta vizinhos; é muito forte, tem alguns edifícios dentro, convém a saber: uma muito grande cisterna de abóbada de muita água e um muito alto poço, que chamam o Poço do Engenho, muito alto, que se tirou terra, segundo parece, de que se encheu uma torre da Relação e tem para uma parte um muito formoso castelo em que o infante Dom Fernando tem o seu alcaide, porque ele é alcaide-mor desta cidade, e dentro do dito castelo estão os presos. Este castelo tem uma muito forte torre da menagem. No meio desta torre está uma muito formosa janela de assento que o Conde de Marialva mandou fazer e vindo El Rei Dom João, que Deus tem, a esta cidade o Conde lhe perguntou que parecia a Sua Alteza daquela janela. EL Rei lhe respondeu que mais soubera quem a abrira, que quem a mandara abrir. O Infante dá a alcaidaria dela e as coisas necessárias para as prisões. Tem muito grandes direitos da alcaidaria e muita renda. Ao pé do Castelo estão os açougues de que o Infante tem os direitos que em seu título se dirão, e de suas rendas se fazem e reparam e põem talhos. Dentro da cerca estão uns muito formosos paços caídos. Foram do Conde de Marialva.

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Nos documentos: “se soia de chamão”. 63


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Do regimento dos almocreves Nesta cidade há [um] muito bom regimento, que não há outro tal em Portugal, acerca dos almocreves. Nesta cidade e termo haverá bem cem almocreves. Todos são inscritos na Câmara e cada um deles é repartido a dar no ano seis dias de giro cada dois meses, um de pescado fresco, de maneira que são repartidos para cada dia de todo o ano dois almocreves e estes hão-de trazer todos os dias pescado fresco dos portos do mar, que são a quinze, dezasseis e dezoito léguas, e se não acham fresco trazem seco e certidão como não havia fresco. E são repartidos por todos os portos do mar de maneira que muitas vezes não há [peixe] fresco no Porto e em Matosinhos e o temos nesta cidade de Galiza e de Aveiro, e muita sardinha fresca, como agora temos aqui de Galiza e no Porto não a há. E isto é além doutros almocreves que continuadamente andam a ganhar e quando não têm seus giros por seu proveito o vão a buscar porque nesta terra, como atrás disse, há muito sumagre e muito vinho e muita castanha e muita noz e muito azeite que os almocreves levam aos portos de Portugal e de Galiza e trazem retornos, que nunca se acha porto de mar sem almocreve de Lamego. Os pescados que aqui vêm do mar são os seguintes: mui formosas pescadas frescas e secas, muitos ruivos, muitos robalos da costa e mui grandes congros, congro de duas arrobas, pescada de vinte arráteis, muitas raias, muitos cações, muita toninha, e linguados, e solhas, e badejos, e muito marisco. O preço dos pescados não ponho aqui. Achar-se-á no tratado, na taxa e regimento da Câmara que aqui pus. Do regimento das carnes No regimento das carnes há outro modo que não vi em este Reino porque aqui se cortam mui grossas carnes de bois de Baião, que levam todas as carnes de boi em sabor, que é daqui a três léguas e outros de Entre Douro e Minho. A taxa destes é a três réis por arrátel e por provisão de El Rei que para isso tem a cidade para poder comer as carnes daquelas partes pela taxa de lá. Há outra taxa de El Rei nosso senhor da comarca da Beira a dezasseis ceitis o [a]rrátel e sem embargo disto não se corta toda a este preço ainda que seja a dezasseis ceitis, se não está em alvidro dos almotacés, e a carne boa dão a dezasseis ceitis e a outra daí para baixo, segundo é, a catorze ceitis e a quinze e a dezoito, digo, e a treze, e isto não vejo em nenhuma parte senão todas a um preço, as gordas e as magras. Talha-se carneiro de Outubro até ao S. João a três réis e meio o arrátel, e de S. João até Outubro a três réis. Talham-se os crestões capados a catorze ceitis e a cabra a dois réis. Nesta cidade há dez ou doze carniceiros, que todos são obrigados na Câmara darem carnes em abastança ainda que neste ano o não fazem por não lhe quererem dar as carnes gordas e magras todas a um preço. Há aí três açougues convém a saber: um da cidade em que há sete, oito carniceiros, e outro do Cabido que tem um carniceiro, e outro dos mesteres que tem outro carniceiro. O Cabido e mesteres têm repartidores no açougue, convém a saber: o Cabido põe um cónego que reparte cada semana e os mesteres um dos vinte e quatro dos mesteres que reparte cada mês e todavia nenhum deles não pode repartir sem o almotacé da cidade lhe ir pôr o preço das carnes. As mais coisas do regimento desta cidade não falo aqui porque vão adiante no título das taxas e regimento desta cidade. Os cidadãos dela os mais são de antigo género e de boa linhagem, e deles fidalgos que têm renda e vivem por suas lavranças ao modo dos antigos Romanos. Os quais renovos são os que neste tratado digo e não duvido que alguns homens baixos se metem às vezes por almotacés por aderência o que em todas as partes já vejo fazer. [De onde a cidade tem o nome] Esta cidade dizem os antigos que se chama Lamego por em ela haver uma árvore no Castelo a que chamam Lamegueiro e certamente bem o demo[n]stra pelas armas dela que são um lamegueiro metido em um castelo e doutra parte o Sol e doutra a Lua com umas estrelas. As mais coisas dela são feitas de mouros, e tem alguns nomes arábicos como é uma igreja nesta cidade a que chamam Almacave que é nome arábico e há muitos edifícios antigos em quintas de redor mouriscos.

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

[São Domingos de Queimada] Há em esta cidade a uma légua uma igreja mui nobre que vem a ser a ermida de São Domingos de mui formoso talho de pedra em um mui alto monte de onde se ve muita parte de formosa terra. A qual ermida dizem que mandou fazer El Rei Dom João, que Deus tem, o segundo deste nome. É de muitos milagres. Há aí pessoas que não podem haver filhos e a ele veio El Rei Dom Afonso antes que houvesse o Principe Dom João, e depois veio El Rei Dom João antes que houvesse o Principe Dom Afonso, e assim vêm muito grandes senhores. Tem muitos votos nas oitavas do Santo Espírito, principalmente desta cidade, que cada Rei que reina dá uma bandeira das armas da cidade com uma mui formosa batalha. Vão lá com todos os moradores da cidade, ainda que privilegiados sejam, muita gente de cavalo e muita de pé. Lá tinham um grande jantar que agora se tirou pela Ordenação. Vai o Cabido e raçoeiros de Almacave e Frades onde todos têm renda para esse dia comerem e assim vão de todos os concelhos a duas e três léguas deste circuito cada um seu voto. [Foros do Infante] Um só erro contarei deste circuito, que há muito foreiro por muitas partes, convém a saber: do infante Dom Fernando tem muita parte nesta cidade, que não acharão homem de raiz em ela que não seja seu foreiro, e tem muitos direitos de alcaidaria. Tem seis arráteis de carne de direito de todo boi ou vaca que em esta cidade ou termo se matar, e isto de tempo antigo, e por foral eram costas de cada boi ou vaca de uma mão travessa e isto da açougagem101 e se concertaram que fossem seis arráteis de carne de qualquer parte ou lugar do boi o pedissem. E à custa das rendas do Infante se fazem os açougues e talhos na cidade. Tem mais Sua Alteza de renda no termo desta cidade, convém a saber: em Arneirós, os Chãos, Penude, Sucres, a Póvoa, uma posta de carne de porco. So[i]a de ser grande, agora são onze ceitis. Estes pagam este foro sem nenhuma coisa que pertença ao Infante somente de certo real. Tem mais de um lugar que chamam Lamelas de foro antigo uma trava de codesso para travar a mula. Tem mais de um lugar a que chamam Casal do Nabo um magusto de castanha, hum pichel de água da veia da Ribeira de Varosa que é a uma légua e meia. Estes antigos foros dizem muitos que foi uma grande vinha que um senhor pos onde chamam o Morgado, perto desta cidade, que é seu, e que lhe trouxeram serviços que depois ficaram por foros. Tem mais de direitos o seu alcaide de todo o sangue sobre os olhos, convém a saber: do olho para cima 500 réis. Tem mais de cada inchaço ou pisadura que alguma pessoa fizer a outra, de cada polegada 140 réis e uma vara de bragal. Tem mais o dito Infante relego no mês de Agosto, que outra pessoa não pode vender vinho senão aos seus rendeiros. Tem mais a apresentação do mordomo da vara o que [dá?] as execuções das sentenças que serve nas audiências, e assim tem a dada dos direitos reais, convém a saber: do juiz. [Da feira de Santa Marinha] Em esta cidade se fazia antigamente uma feira por Santa Marinha, no mês de Julho, que durava quinze dias, onde vinham muitos mouros de Arévolo e de Granada, os quais traziam esp[e]ciaria de onde se abastecia todo o Reino por então não haver ainda trato da Índia e pelas grandes sisas se desfez. E agora que a cidade tem a sisa em tributo a tornou a reformar em que se fez um ano, e levava bom começo, e os da Guarda, por dizerem que se lhes danava sua feira, houveram um alvará de El Rei nosso senhor que esta feira se não fizesse e por os oficiais daquele ano não acudirem a requerer a justiça da cidade se desfez a dita feira e que Vossa Senhoria devia reformar por ser enobrecimento da terra, porque esta feira era do melhor sítio da terra por todas as mercadorias haver neste compasso.

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Nos documentos: “augagem”. 65


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Estas duas léguas deste compasso é a mais sadia terra e dos mais excelentes ares que há no Reino tirando o Peso que é na barca da Régua, que é terra muito doentia, e tem os ares carregados e as águas muito más por a terra ser de qualidade da terra de Alentejo. O mais compasso da terra é muito são de mui poucas febres e de poucas maleitas e desde que os Judeus de Castela entraram em Portugal, que então foram mui grandes pestilências, nunca mais houve peste. Os homens desta terra não são sobejamente muito ricos como em outras partes nem há muito grossa fazenda de tratantes por a terra ser pobre de trato e nas coisas de trato, que é seda, pano, fitas, retrós, couramas e panos de Castela. Qualquer alfaiate ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil réis logo se fazem mercadores e para estes é melhor o trato da terra que para os homens de fazenda grossa por as mercadorias serem miúdas, porque como um mercador a que tem dois, três mil cruzados parece que é mais rico que em outra parte tem (sic) quinze, vinte mil cruzados, e não duvido porque nesta terra valem mais 200 mil réis que em outra parte 400 mil réis. Todas [as] pessoas, e assim mercadores, são bem arreigados de campos, vinhas, soutos, olivais e assim outras herdades mais que em outras partes. E o homem pobre que aqui não tem casal é mais pobre que em nenhuma parte porque não tem mais que dez réis de jornal e comer e beber. E qualquer que tem um casal por pequeno que seja se mantém muito bem porque colhe de todos os renovos, convém a saber: pão e vinho, azeite, castanha, sumagre, e de todos outros legumes, e frutos. E a gente desta terra é da melhor conversação e amizade que em todo este Reino se possa achar. E assim vem aqui estrangeiro que como está aqui dois meses logo se não deseja tornar e isto pela conversação da gente como pelos viços da terra. E pera Vossa Senhoria saber o regimento e taxa dos preços dos frutos e serviços da cidade, o pus aqui tirado dos acordos da Câmara ainda que seja prolixo, e porem por me parecer que a dita taxa fazia ao caso, e também para Vossa Senhoria o ver, o mandei aqui tresladar e é o seguinte. Treslado da taxa que aprovaram o juiz e oficiais este ano de mil quinhentos e trinta Item primeiramente sapateiros e coisas que a seu ofício pertencem Item um couro em cabelo de dezasseis arrobas até dezoito não passará de .......................................................................................................................................................... 700 réis. Item o[s] de doze arrobas até treze não passarão de .................................................................................................. 600 réis. Item de nove arrobas até dez e até doze não passarão de............................................................................................ 500 réis. Item couros de bois, vacas, de sete até oito arrobas, e até nove não passarão de .......................................................................................................................................... 400 réis. Item os que fizerem tamoeiros não poderão vender cada tamoeiro mais do que até . .......................................................................................................................................... 30 réis. Item sendo os primeiros quatro tamoeiros de lombo não passarão de ................................................................................................................................................................ 25 réis. Item se os quiserem levar para fora da cidade e termo o farão a saber a um almotacé, que com um procurador dos mesteres lhes vão quartejar os ditos tamoeiros e deixarão um quarto na terra para se venderem pela dita taxa, e os três quartos levarão onde quiserem. Item uma dúzia de peles de machos curtidas não passarão de ................................................................................ 1 400 réis. Item uma dúzia de cou[ro] maior, não sendo machos, não passarão de mil réis ............................................................................................................................................. 1 000 [reis]. Item uma dúzia de couro redondo não passarão de ................................................................................................... 800 réis. 66


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Item qualquer pessoa, assim curtidor como tratante de courama, não a poderão tirar para fora até o fazer saber aos sapateiros se lhos querem comprar ou não, e não lho querendo comprar o fará saber a um dos almotacés e a um procurador dos mesteres para que lho vão ver e quartejar, o qual quarto ficará na terra três meses e os três quartos levará para onde quiser. O que todo ficará por receita pelo escrivão da almotaçaria ou da Câmara às custas do dono do couro. Título dos preços das obras do dito cordovão Item borzeguins pretos de couro dos machos não passarão de .............................................................................................................................................................. 140 réis. Item doutro couro maior não sendo macho não passarão de .............................................................................................................................................................. 120 réis. Item borzeguins doutro couro rendo (sic) não passarão de 110 réis sendo estes borzeguins de qualquer cor outra tirando baio levara mais por cada par dez réis. Item sapatos de cordovão de dez pontos ate doze não passarão de . ................................................................................................................................................ 50 réis. Item sendo os ditos sapatos ou gaspas, ou qualquer outra obra mais pequena e de moços, o juiz dos oficiais o mandará pagar a respeito dos preços acima ditos havendo discussão102 entre os oficiais e as partes. Item tropilargos bem feitos com circos bem fortes de vaca, e bem furados, e bem acabados, de dez, nove até doze pontos não passarão de ........................................................................................................................................................ 100 réis. Item pantufos de homem até ...................................................................................................................................... 80 réis. Item chapins de homem não passarão de .................................................................................................................... 70 réis. Item botinas de bom cordovão não passarão de 65 réis as melhores que puderem ser e não sendo tão boas ........................................................................................................................ 60 réis. Item chapins de mulher até quatro dedos de altura não passarão de ................................................................................................................................................ 80 réis. Item cervilhas boas de cordovão não passarão de . ..................................................................................................... 20 réis. Item solas na mão da primeira fiada do lombo não passarão, de dez pontos até doze, de .................................................................................................................... 18 réis. Item daí para baixo, segundo os pontos e a solaria for. Item de lançar as ditas solas pondo o sapateiro o fio não levará [mais de] ............................................................................................................................................. 6 réis. Item nenhuns sapatos de vaca sendo boa de dez pontos até doze não passarão de cinquenta réis .......................................................................................................... 50 réis. Item de oito, nove pontos não passarão de . ................................................................................................................ 40 réis. Item cabeças de vaca de dez até doze pontos não passarão de . ............................................................................................................................................. 45 réis. Item ilhargas de boa vaca, boas e largas que dêm empenha inteira não passarão de cento e oitenta reis e daí para baixo segundo for . ................................................................................................................................... 180 réis. Item umas muito boas botas de machos não passarão de ........................................................................................................................................... 240 réis, sendo de cor e de dez até doze pontos.

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Na expressão do autor: “deferença”. 67


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item botas de couro maior não sendo machos do dito tamanho não passarão de duzentos e dez réis ........................................................................................................... 210 réis, sendo de cor. Item couro mais baixo redondo não passarão de ...................................................................................................... 160 réis. Sendo todas estas botas soladas e sobressoladas com seus tacões de dentro, segundo costume. Item sendo as ditas botas pretas levarão menos de dez réis por cada par sendo tamanho; e assim sendo as ditas botas mais pequenas ficará em alvidro do juiz dos oficiais como já é dito. Título dos alfaiates Item de calças de pear forradas sendo finas, não levarão mais de . .................................................................................................................................................. 40 réis. Item de umas calças por forrar ................................................................................................................................... 20 réis. Item umas calças forradas de pano de Castela ............................................................................................................ 30 réis. Item um gibão de seda de dois forros bem acabado .................................................................................................... 60 réis. Item sendo de solia . ................................................................................................................................................... 50 réis. Item sendo de pano ou fustão ..................................................................................................................................... 40 réis. Item um pelote chão de homem . ................................................................................................................................ 40 réis. Item sendo barrado de dentro e de redor e meias mangas ........................................................................................... 70 réis. Item pelote de homem cortado de uma pestana .......................................................................................................... 60 réis. Item se for de duas pestanas ....................................................................................................................................... 80 réis. Item uma chamarra103 pregada bem feita .................................................................................................................... 60 réis. Item sendo cada um destes pelotes e chamarra de solia, tafetá ou chamalote levarão . ...................................................................................................................... 100 réis. Item um tabardo de pano fino tosado ou frisado levarão . ........................................................................................... 60 réis. Item sendo pano de Castela ........................................................................................................................................ 50 réis. Item uma loba fina tosada ou frisada .......................................................................................................................... 50 réis. Item não sendo fina .................................................................................................................................................... 40 réis. Item um capuz pelo mesmo preço de . ........................................................................................................................ 40 réis. Item capinhas e mantéus finos ou quaisquer outros .................................................................................................... 30 réis. Item gibões com um debrum ou com uma barra ......................................................................................................... 50 réis. Item sendo chãos . ...................................................................................................................................................... 40 réis. Item casa e botão lavrados a seda ................................................................................................................................. 3 réis. Item um hábito104 fino ................................................................................................................................................ 50 réis. Item sendo de Castela ................................................................................................................................................ 40 réis. Item sendo de solia ou chamalote . ........................................................................................................................... 100 réis. Item uma faldrilha barrada de seda com forro por baixo e com um debrum por cima da barra dela . .................................................................................................. 50 réis. Item sendo fina e chã . ................................................................................................................................................ 30 réis. Item sendo de pano de Castela ................................................................................................................................... 20 réis. Item de um sainho fino . ............................................................................................................................................. 20 réis.

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Samarra? No documento: “âbéto”.


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Item não sendo de pano fino . ..................................................................................................................................... 15 réis. Item sendo de um debrum e de um forro . ................................................................................................................... 40 réis. Item um cós com mangas ........................................................................................................................................... 20 réis. Item mantilhinha de um debrum ................................................................................................................................ 10 réis. Item uma verdugada de dez verdugos ........................................................................................................................ 80 réis. Item não sendo mais que seis até sete verdugos . ........................................................................................................ 60 réis. Item sendo estas faldrilhas de chamalote, cem réis . ................................................................................................. 100 réis. Item um mogi fino de homem ou mulher.................................................................................................................... 40 réis. Item sendo de pano de Castela ................................................................................................................................... 30 réis. Item de um capelo para clérigo . ................................................................................................................................. 10 réis. Item das obras de moços e de servos e doutras quaisquer pessoas aqui não declaradas havendo discussão entre os oficiais e os donos das obras serão alvitradas pelo juiz dos oficiais os quais as julgarão havendo respeito às obras acima declaradas. Título dos tosadores Item de tosar todo o pano de Castela frisado do avesso por covado .............................................................................. 2 réis. Item de pano da serra por vara ........................................................................................................................... 1 real e meio. Item de frisar pano de Castela ...................................................................................................................................... 4 réis. Item de frisar arbim e contray por cada côvado ............................................................................................................ 6 réis. Item de tosar contrai meynim e outro semelhante pano por côvado . ............................................................................ 7 réis. Item de tosar o covado de londres ou ypre .................................................................................................................... 4 réis. Título dos carpinteiros Item carpinteiros de obra limpa desde a Páscoa até ao Entrudo não levarão por dia mais de................................................................................................................. 25 réis. Item de Novembro até por todo Fevereiro não levarão mais que . ................................................................................................................................................ 20 réis. Item sendo mestres de obra mais ................................................................................................................................... 5 réis por dia em cada um dos ditos tempos acima ditos. Item outros carpinteiros que não sabem mais que de enchó e machado levarão menos por dia .................................................................................................................. 5 réis. Título dos pedreiros Item aos pedreiros se pagará pelo modo e preços dos carpinteiros atrás dito. Item jornaleiros servidores de oficiais, desde Março até São Miguel a 12 [réis] por dia e andarão de sol a sol e não vindo às horas ser-lhe-á descontado soldo à libra .............................................................................................................................. 12 réis. Item desde Outubro até perto de Fevereiro levarão a .................................................................................................. 10 réis.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Título da lenha e carvão Item carga de lenha de azêmola de carvalho rachado sendo boa não passará de ........................................................................................................................... 12 [reis]. [Item] e sendo carvalho redondo................................................................................................................................. 10 réis. Item carga de carvalho de asno . ................................................................................................................................... 8 réis. [Item] e sendo doutra qualquer lenha ........................................................................................................................... 6 réis. E estes preços se levarão desde o mês de Outubro até perto do mês de Março, e desde Abril até perto de Setembro levarão menos dois réis por carga. Título dos cordoeiros digo carvoeiros Item carga de mulo e rocim de três sacos cada carga de cinco alqueires cada saco não levarão mais por eles que ............................................................................................ 18 réis. [Item] sendo no Inverno, convém a saber: de Outubro até perto do mês de Fevereiro levarão por cada uma das ditas cargas............................................................................. 24 [reis]. Item sendo de asnos, em estes quatro meses a 20 [réis] por carga sendo de três sacos, sendo os sacos mais pequenos .................................................................................. 20 [réis]. Item em o Verão a 15 [réis] por carga de asno de três sacos sendo mais pequenos que os de cinco alqueires ............................................................................................. [15 réis]. Título dos ferradores Item de uma ferradura cavalar por a lançar . ................................................................................................... 8 [réis] e meio. Item bestas muares de quatro craveiras .......................................................................................................... 7 [reis] e meio. Item ferraduras asnas de três craveiras ......................................................................................................................... 6 réis. Item cravos lançados arcal ........................................................................................................................................... 4 réis. E destes preços não passarão nenhum. Título dos ferreiros Item uma enxada nova bem feita e fornida .............................................................................................................. 65 [réis]. Item de calçar a dita enxada a trolho . ...................................................................................................................... 35 [réis]. Item de umas agriais ............................................................................................................................................... 35 [réis]. Item de calço de aceiro................................................................................................................................................ 20 réis. Item sendo de escumalho ........................................................................................................................................ 16 [réis]. Item de um enxadão bem feito ................................................................................................................................... 80 réis. Item o mais pelo preço das enxadas. Item um ferro de arado ............................................................................................................................................... 45 réis. Item das agriais .......................................................................................................................................................... 25 réis. Item do calço . ......................................................................................................................................................... 15 [réis]. Item pregos caibrais, convém a saber: o cento a real o par .......................................................................................... 50 réis. Item pregos tabuares não passarão o cento sendo bons de .......................................................................................... 30 réis. Item pregos faiares o cento . ....................................................................................................................................... 24 réis. Item pregos coitares o cento a cem ........................................................................................................................ 100 [réis]. E destes preços não passarão. 70


Textos e documentos – Transcrição actualizada

Título das pessoas que vendem pescado Item toda a pessoa que vender peixota105 a não poderá vender senão a peso, e não passará o arrátel da seca de ....................................................................................................... 10 [réis]. E sendo a dita peixota de molho não passará o arrátel de .............................................................................................. 8 réis. Item as pessoas que tiverem tabernas poderão somente vender em suas tabernas aos reais106 às pessoas que em suas casas e tabernas derem e a quiserem, que primeiro e todavia serão obrigados a venderem por preço às pessoas que lho pedirem. Item o arrátel do ruivo seco não passará de seis réis ..................................................................................................... 6 réis. Item: todo o sável fresco se não poderá vender senão a peso, o qual não passará o arrátel de oito réis, e daí para baixo segundo for o tempo, o qual será almotaçado porque os de oito réis se entenderá nos primeiros . ............................................... 8 réis. Item sável seco salgado não passará o arrátel de seis réis ............................................................................................. 6 réis. Item lampreias por boas que sejam não passará de quarenta réis e daí para baixo segundo forem e segundo o tempo ............................................................................... 40 réis. Item marisco, convém a saber: mexilhões 24 ao real, carangueijos por 15 a real, berbigões 40 a real. Título dos oleiros Item um cântaro de alqueire e meio até dois alqueires não passará de ............................................................................................................................................... 8 réis. Item púcaro ou cântaro que leve um alqueire não passará de ........................................................................................ 5 réis. Item de meio alqueire . ...................................................................................................................................... 3 réis e meio. Item de uma can[a]da ................................................................................................................................................... 2 réis. E daí para baixo segundo for um real . .......................................................................................................................... 1 real. Item trinchos, tigelas, não passarão de ...................................................................................................................... 5 ceitis. Item servidores e fogareiros ......................................................................................................................................... 8 réis. E toda esta obra será de muito bom barro e bem cozido e não sendo bem cozida se perderá, a metade para [a] cidade, e [a] outra para os presos pobres. Título dos lavradores Item um homem com uma junta de boi por um dia não levará mais que ............................................................................................................................... 20 [réis]. Item trazendo carro, por dia .................................................................................................................................... 25 [réis]. Item uma carrada de pedra de São Martinho do Monte levará .................................................................................... 20 réis. Item sendo da Pegada para baixo ............................................................................................................................... 10 réis. Item de Rio de Asnos ................................................................................................................................................... 8 réis. Item daí para baixo serão as carradas da dita pedra segundo a distância da terra.

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Isto é, pescada. A palavra equivale a “réis”. No contexto do século XVI começa a usar-se indiscriminadamente um e outro termo. 71


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Título dos barbeiros Item levarão de guarnecer uma espada, convém a saber: limpá-la e envernizar cabos e punho e bem acabada . ................................................................................................. 60 réis. Item de guarnecer uma espada nova em preto com sua bainha e bem acabado de todo ...................................................................................................................... 90 réis. Título das candeeiras Item toda a pessoa que vender candeias de sebo farão candeias, convém a saber: desde o primeiro dia de Maio até Natal pesará o arrátel das ditas candeias lavradas 20 candeias por arrátel que são dez réis, e desde Natal até Maio pesará o arrátel das candeias lavradas 24 candeias que são a doze réis por arrátel; as quais candeias terão os pavios bem cosidos e de seis fios. Título dos farelos Item o alqueire dos farelos trigos não passará de ........................................................................................................ 10 réis. Item sendo centeios, que não passará de . .................................................................................................................. 8 [réis]. Item um par de boas galinhas .................................................................................................................................. 34 [réis]. Item um par de perdizes .......................................................................................................................................... 14 [réis]. Item um par de coelhos até ......................................................................................................................................... 10 réis. Item um bom cabrito não passará de .......................................................................................................................... 50 réis. Item quem o vender aos quartos não passará o quarto sendo bom de .......................................................................... 10 réis. Item toda a pessoa que vender ovos dará cinco por . ..................................................................................................... 2 réis. Item: qualquer oficial que quiser abrir tenda107 não a poderá pôr sem primeiro ser examinado pelo juiz dos oficiais de seu ofício, e os ditos examinadores levarão por fazerem o dito exame cem réis, convém a saber: metade para a cidade e a outra para eles . ............................................................................................................... [100 réis]. Item um muito bom porco vivo não passará de . ......................................................................................................... 40 réis. Item sendo depenado sem cabedela não passará de .................................................................................................... 32 réis. Item vale nesta cidade um arrátel de peixota fresca, ou ruivo, ou congro, cinco, seis réis o arrátel. Item o arrátel de raia, ou cação ou toninha fresca a três, e a quatro réis. Item o cambo dos linguados, de oito, nove, e dez linguados a dez e a doze réis. As quais taxas acima descritas se guardam nesta cidade. Esta cidade sempre é abastada de muito pão e de muitas partes se socorrem dela posto que é de carreto, de cinco, seis, sete, oito, dez léguas, porque está entre três comarcas, convém a saber: a comarca da Beira, a de Entre Douro e Minho e Trás-osMontes. E acerta não haver pão [em] Entre Douro e Minho, convém a saber: quando se acabam os milhos a maior parte de Entre Douro e Minho come desta praça, de pão da Beira e Trás-os-Montes que aqui vêm a um antigo e formoso mercado mui abastado que se faz cada segunda feira. E alguns anos não há pão na Beira e há muitos milhos [em] Entre Douro e Minho, e os da Beira vêm comprar a esta cidade o milho que vem de Entre Douro e Minho e assim Trás-os-Montes. E também vêm comprar azeites e frutas temporãs, de maneira que a maior parte desta cidade, digo, de maneira que nesta cidade a maior parte

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No texto: “que quizer poer tenda novamente”. Optei por esta solução pois, de forma diversa em relação ao uso que hoje fazemos da expressão, novamente, nesta altura quer dizer “pela primeira vez” e não “de novo”, “outra vez” como hoje em dia, conforme já observei em nota anterior. 72


Textos e documentos – Transcrição actualizada

do pão destas três comarcas e nela são seus contratos por onde está sempre bem abastecida. E o porto desta comarca é a maior parte de sua mantenença porque é em barcas. Depois de ter feito este tratado trabalhei por saber quem tomou esta cidade ou como ela foi havida. E por ter novas que certos cavaleiros que morreram na tomada dela jaziam no mosteiro de Salzedas fui ao dito mosteiro e me mostraram o cartório onde achei em um livro de pergaminho em Latim como fora tomada aos mouros; e porque em partes se não podia ler estava tresladada em linguagem108 e segundo me parece foi povoada por Asturianos como Vossa Senhoria verá em esta folha que do livro treladei na verdade como a achei a qual é a seguinte. Título de quem tomou esta cidade Em nome de Deus amem109. Quem quiser saber de onde esta terra foi tomada, que era toda de mouros do Douro, a quem tomoua110 o Conde Dom Henrique, com Elche111 Martim que era mouro e era Rei de Lamego, e desta terra toda, [e] fez-se [cristão] e veio com Dom Henrique, cavaleiro, e com outros muitos ricos homens que vieram das Astúrias. Era um Egas Moniz que se vê foi casado com Meana Dona Teresa112 que fez Salzedas. E Dom Henrique por se haver113 melhor com os mouros deixou-lhes haver quanto tomavam114 e coutava-lho. Como se fez o Couto de Leomil E assim fez a Dom Garcia Rodrigues, e a Dom Paião, seu irmão, que lhes coutou o Couto de Leomil, que tomaram115 a mouros. Dom Egas Moniz, quando tomou116 esta terra aqui toda logo povoou a Britiande e fez aí uma quinta e morada e capela em que lhe cantavam missa, e dali moveu a Salzedas Meana Dona Teresa117 na Abadia Velha e viu cá seria melhor ali um mosteiro, digo, ali onde está, e levou lá um cavaleiro que havia nome Pai Cortês e veio com Egas Moniz que era seu vassalo, e seu monteiro. E com Dona Meana andava uma donzela que chamavam Dona Ximena118 e casaram-nos ambos. E um119 agora é Gouviães era mata de porcos e de corços, e aquele monteiro de Dom Egas Moniz matou um porco ali onde está a fonte, e levou-lho e pediu-lhe aquele lugar em que fizesse uma quinta para si e para sua geração e rogou-lhe que a coutasse e honrasse. E deu-lha, como parte pelo Outeiro da Fraga, e desde aí pelo rio adiante120 abaixo como parte Salzedas e tem aí cruzes e está 121 uma sobre a ponte da Cucanha122, e daí como parte pela Relva, como parte pelo rio adiante123, e desde aí como se vai pela vinha de Miguel Ramires, e desde aí como se vai direito por sob os Outeiros, e dali como se vai ao Lameiro Redondo, e desde aí por aí acima124

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Isto é: em língua portuguesa. No documento: “In nomine Domini Amem.” 110 No documento: “filhou-a”. 111 No documento: “Exche”. 112 No documento: “Tareija”. 113 No documento: “filhar”. 114 No documento: “filhavam”. 115 No documento: “filharão”. 116 No documento: “filhou”. 117 Ver nota n.º 18. 118 No documento: “Eixemenia”. 119 Ou seja: onde. 120 No documento: “ampro”. 121 No documento: “s’e hua”. 122 Isto é, Ucanha. 123 Ver nota n.º 25. 124 No documento: “anfesto”. 109

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

como se vai por ali a Santa Maria da Córrega direito pelo Outeiro da Fraga. Que Dom Pai Cortês, sendo naquela quinta que fez, fez em ela três filhos cavaleiros e uma filha que se vê casada em Vila Seca de onde saíram dois filhos: Maria Pais e Miguel Pais. Daqueles três filhos que fez Pai Cortês foi um Rui Pais, e de Rui Pais saiu Maria Rodrigues, e de Maria Rodrigues saiu Afonso Martins e seus irmãos. Outro irmão havia nome Mem Pais, e de Mem Pais saiu Mem Mendes, e de Mem Mendes saiu Soeiro Mendes e foi casado em Rabelo com Dona Boa Fernandes. De Boa Fernandes saiu Pero Soares abade de Valadares, e Maria Soares de Gouviães de onde saiu esta geração que aí há. Teresa125 Soares, mãe de Catarina Rodrigues de Rebelo, de Egas Pais, filho de Pai Cortês, e saiu Gonçalo Viegas. De Gonçalo Viegas saiu Sancha Gonçalves e Pero Gonçalves e Rui Gonçalves e Domingos Gonçalves, o que mataram, e outras gerações que deles descenderam. E Vila Meã era da honra de Gouviães e requeria-a126 Gonçalo Gonçalves por sua e houveram sobre ela conselho, e vieram a pelejar e morreram muitos e ficou Vila Meã aos de Gouviães, e quando partiram os filhos de Pai Cortês em Gouviães ficaram aí dois e um em Vila Meã e daqui saiu esta linhagem de Dona Catarina de Pinhel. Os quais Dom Paião e os outros cavaleiros aqui nomeados, com outros, jazem enterrados no dito mosteiro da parte de fora à mão esquerda, onde esteve uma capela com um alpendre, e no chão da dita capela jazem os ditos cavaleiros e me parece que os Dom Abades passados desfizeram a capela e agora está um mato sobre suas sepulturas. E na parede da Igreja esta a sepultura de Dona Teresa127 que era na dita capela em a qual sepultura está este letreiro em Latim, que se segue, e a ossada sua se mudou ao mosteiro: Hoc loco latet hec cujus per secula latere fama nequit sollita perpetuare bonus fama mori claros nec morte sunt, sed et ipsa claro que meritis vivere semper habet multis domina modis juvit Tarasia famas sanguine progenie moribus ac opere, ex ducibus sanguis sobeles clarissima Regni absque nota mores est opus. Ista domus de bis sex centis et denis monade depta inveniens eraz que sepelevit heraz. Há mais neste circuito dois mosteiros de São Francisco, um claustral nesta cidade, que não acho quem o mandou fazer, outro da observância em Ferreirim a uma légua desta cidade, que Dom Francisco Coutinho conde de Marialva, que Deus tem, mandou fazer em seus paços, onde está uma sepultura para se meter sua ossada, e o Infante Dom Francisco128 o manda agora acabar. [Madeira] Há mais neste circuito muita madeira de castanho. É [a mais] formosa que há em todo o Reino e a maior parte dela se carrega para Lisboa e para outras partes. Há tabuado que é mais formoso que bordo e vale uma dúzia de tabuado de doze palmos em comprido e dois de largo, 150, 160 réis. Há mui formosos mastros de castanheiros de quinze, dezasseis e dezassete braças que estão onde se podem carregar no Douro para o Porto e daí para outras partes, e os que estão mais no sertão se faz deles madeira e há muito tabuado de quatro, cinco palmos de largo.

125

No documento: “Tareja”. No documento: “demandava”. 127 Ver nota n.º 30. 128 Sic? Por Fernando? 126

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Textos e documentos – Transcrição actualizada

De um monstro Uma coisa monstruosa determinei aqui de assentar ainda que seja fora da substância do tratado e é que a doze dias do mês de Maio deste ano de 1532 nasceu a Vasco Cardoso, fidalgo de que atrás faço menção do Morgado de Cardoso, pariu uma sua vaca um bezerro de um corpo e um muito grosso pescoço com duas cabeças e cada cabeça duas orelhas, e uma boca, e duas línguas; uma delas tinha dois olhos e a outra um só olho na testa. Ao nascimento, nasceu às avessas e nasceu embarrada nas cabeças. Nasceu morto, a vaca viria a morrer129. A qual pele do monstro mando a Vossa Senhoria com este tratado. As coisas contidas neste tratado são muito verdadeiras. Somente das fontes e filhos e povoadores e porcos e outras coisas, que por conta não podia tirar, vão postas antes em menos soma, que mais, e assim a sepultura de Dona Mafalda, que digo estar em Vila Boa do Bispo, outros dizem que a ossada está no mosteiro de Arouca. Dela não sou bem certeficado [mas] por ser fora do compasso de duas léguas a não fui ver como estas outras sepulturas. Quanto ao vinho e azeite que parecerá pouca soma é porque a metade deste compasso não dá azeite como nas igrejas verá Vossa Senhoria e o terço dele não dá vinho nem legumes. Portanto, é mais do que parece por se dar em uma só légua. E o pão e vinho e azeite creia Vossa Senhoria que pode ser mais um terço por ser contado por dízimos. Laus Deo.

129

No documento: “a vaca ouvera de morrer”. 75


Transcrição crítica [[fl. 1] Tratado de hum rico panno de fina verdura que há em este Reyno de Portugal de compasso de duas legoas arredor da cidade de Lamego, que he cituada em Riba do Douro da comarca da Beira, derigida (sic) ao Muito Illustre, e Magnifico Senhor, o Senhor Dom Fernando Bispo da dita cidade, e primo de El Rey nosso senhor, e seu capellão mor, feito por Ruy Fernandes cidadão da dita cidade, e tratador das lonas, e bordattes d’El Rey nosso senhor que se em ella fazem [que favoreça revelando-me quaesquer faltas que nellas diser. Aceitando minha booa vontade que fica muito maior para outros maiores serviços lhe fazer]. Feito no anno de 1532130. Arredor desta cidade de Lamego deitando hum compaz da Cruz, e Miradouro que Vossa Senhoria mandou fazer á Franzia duas legoas em redor, as quais se todas podem ver do dito miradouro para hũa parte, e outra, em torno do dito compaz: inda que a terra he montuoza se ve o dito circuito; a qual terra he mui viçoza, e perfeita de todos os renovos do dito compaz de duas legoas; porque parece em Verão hum muy fermozo parque, ou excelente panno de fina verdura. E porque Mestre Antonio de Guimaraiz fez hum tratado das couzas d’Antre Douro, [fl. 1v] e Minho, que assáz he bom, e tido em muito, quanto mais he de ter tão pequeno circuito, e tão viçozo, e abastado, porque ouzarei dizer, que em Espanha se nom mostrará tal compaz de duas legoaz; nem as Ribas d’Alemquer muito gabadas, nem as catorze legoas de Santarem a Lisboa, porque ainda que se fação131 muito viçozas, e o porto de mar as favoreça, nom são tam perfeitas em todas as couzas como estas, que dezaceis legoas estão metidas no sertão, e as outras terão outras couzas muito

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Na edição da Academia das Ciências, já citada, e à qual me passarei a referir de forma abreviada, p. 546, o título surge da seguinte forma: “Descripção do terreno em roda da cidade de Lamego duas leguas: Suas producções, e outras muitas cousas notaveis: dirigida ao Sr. D. Fernando, Bispo da dita Cidade, Primo de El Rei, e seu Capellão Mor; e feita por Rui Fernandes, Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas (sic) de El Rei, no anno de 1531 para 1532”. 131 Na edição da Academia, p. 547, esta frase aparece deste modo: “ainda que sejam”. 76


Textos e documentos – Transcrição crítica

mais em abastança, mas nom que tenhão tudo como estas como Vossa Senhoria verá pellos capitolos deste tratado de muitos renovos em grande abastança para o compas da terra; e ouzarei dizer, que sendo ilha nunca se tomara por cerco. Primeiramente detreminei a somar quanto pão, e vinho, e azeite, e castanha, e legumes, e nós, e panno de linho, sumagre, seda se pode colher em este compaz de duas legoas, e para melhor declaração assentei por estenço os dizimos, que há nas Igrejas e Mosteiros deste circuito (ainda que por nossos peccados os quatro, os dous se nom dezimão bem132) e por isso detreminei poer as ditas Igrejas, e dizimos na mayor copia, e133 rendimento; e inda que seja prolluxo, as nomearei todas per si sem poer os foros sabudos somente, só134 os dizimos; as quais Igrejas e Mosteiros são [fl. 2] os seguintez e os rendimentos, e alguns destes lugares pagão quartos, e quintos, e sesmos sem dizimo, e [feita135] a conta os tornei a dizimos direitos. [Cabido.] Item primeiramente a tulha do Cabbido, e meunças136 della, e terra de pão, viii mil, de vinho mil vic, de castanha iiii mil vc, d’azeite Lxxx alqueires. [Dayão.] Item Almacave, e aprestimos, e terça, de pão mil vc, de vinho iiiic137 de castanha ii mil, d’azeite Lta. [Christus.] Item Britiande, de pão mil, de vinho bc138, de castanha mil bc. [D’El Rei.] Item Meiginhos, de pão iiiic Lta, de vinho cto, de castanha vic. [Ifante Dom Fernando.] Item Móz, de pão iiic, de vinho iic L, de castanha vic. [Recião.] Item Melcois que he do Mosteiro de Recião, de pão iiic, vinho cto, de castanha iiiic. [Do Morgado d’Elvarengua.] Item Lalim com aprestimos, de pão mil, de vinho bc, de castanha mil. [De São João.] Item Lazarim, de pão mil, de [castanha139] mil, nom tem vinho. [O Tissoureiro.] Item Varzeas140, de pão iiic, de vinho iiic de castanha mil, d’azeite quarenta. [Vossa Senhoria.] Item Sancta Maria d’Alvellos, de pão Lta, de vinho Lta, de castanha cto. [Santa Clara do Porto.] Item Belaens, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha iiic. [O Tissoureiro.] Item Calvilhe, de pão Lta, de vinho Lta, de castanha iiiic141. [O Cabido.] Item Figueira, de pão viic 142,de vinho cto, de castanha vc, d’azeite Lta. [fl. 2v] [D’El Rei.] Item Queimada, e a terça, de pão seis centos, de vinho sinquenta, de castanhas seis centos. [Pero da Cunha.] Item Armamar, e aprestimos, de pão sinco mil e quinhentos, de vinho mil bc, de castanha com clerigos ii mil bc, d’azeite sinquenta alqueires. [Christus.] Item Sancta Cruz, de pão bic, de vinho iic, de castanha vic.

132

Na edição da Academia, p. 547, para além de não se incluír esta frase entre parêntesis, notam-se as seguintes diferenças: “Ainda que per nossos peccados de quatro ou dous se nom dizimam bem”. 133 Na edição da Academia, p. 547, lê-se: “de”. 134 Na edição da Academia, p. 547 é omitida esta palavra. 135 No manuscrito está “e sem a conta”. 136 Na edição da Academia, p. 547, escreve-se, erradamente, “e meu e as”. 137 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “4:000”. 138 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “5:000”. 139 No manuscrito repete-se a palavra “pão”. 140 Na edição da Academia, p. 548, está “Várzea”. 141 Na edição da Academia, p. 548, regista-se: “300”. 142 Na edição da Academia, p. 548, regista-se “600”. 77


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Christus.] Item São Martinho das Chans, de pão mil, de vinho cento, de castanha iiiic. [Salzeda.] Item a Cucanha, de pão iic, de vinho vic de castanha mil vc. [Salzeda.] Item Gouviãis, e o Mosteiro de Salzeda e143 outros lugares, de pão iii mil vc, de vinho ii mil, de castanha mil vc. [Salzeda.] Item a Granja Nova, de pão viiic, vinho iiiic, de castanha viic. [Salzeda.] Item Tarouca com aprestimos, de pão iii mil, vinho mil vc, castanha iii mil. [Sam João de Tarouca.] Item Mondim, com o Mosteiro de São João de Tarouca, de pão mil, de vinho ii mil, de castanha mil. [Do Ifante Dom Fernando.] Item Penude com terça, de pão mil vc, de castanha mil. [Cabido.] Item Magueija, o pão vay a tulha do Cabbido, tem castanha viic. [Dayão.] Item Portarouca144, de pão iiic. [Ifante Dom Fernando.] Item Gozende annexa a São Martinho de Mouros donde tem hum gentar, per trebuto, que se dirá adiante, de pão mil bc, tirando a terça, que vem a tulha do Cabbido que aqui nom pertence145. [fl. 3] [Ifante Dom Fernando.] Item São Martinho de Mouros, com aprestimos, e terça de pão iii mil, de vinho mil vic, de castanha iii mil. [Rodes.] Item a comenda de Barró de dizimos com terça, de pão mil iiic, de vinho mil iiic de castanha mil. [Dom Luis.] Item Ferreiros, de pão iic, de vinho cto Lta, de castanha iiic. [O Tesourado.] Item Avois146, de pão iiic de vinho Lta de castanha iiic. [De Sancta Clara do Porto.] Item Pennajoya, de pão viic, de vinho ii mil, de castanha ii mil vc, azeite cto Lx. Allem Douro [D’El Rey.] Item Barqueiros, de pão iiic, de vinho iiic, castanha vc. [Mosteiro de Vila Cova.] [Item] Threzouras147, de pão iiic, Lta, vinho iic, castanha duzentos sincoenta. [Moura Morta.] Item Frende, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha vc. [Item] os Louvos, de pão iiic, de vinho iiic, de castanha vc L148. [D’El Rey.] Item Meijão Frio, de pão cto, de vinho cento, de castanha c Lta, d’azeite XX. [Christus.] Item Villa Marim, de pão mil, e duzentos, de vinho iiic149, castanha mil vc, d’azeite ctº L xxx. [Rodes.] Item Moura Morta, de pão iiiic, de vinho iiic, de castanha viic. [Pedro da Cunha.] Item Cidiellos, de pão mil vc, de vinho vic, de castanha mil vic. [De Moura Morta.] Item Fontes, de pão vic, de vinho iiiic, de castanha mil. [Padroeiros.] Item Lobrigos, de pão mil vic, de vinho iiiic [fl. 3v] d’azeite cto, de castanha mil. [Sam João de Tarouca.] Item Oliveira, e Bamba, de pão iiic, de vinho iic, de castanha cto, de azeite Rta.

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Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 549, “por tarouca”. Trata-se da actual Pretarouca”. 145 Na edição da Academia, p. 549, lê-se: “que aqui nom entra”. 146 Isto é, Avões. Na edição da Academia, p. 550, lê-se: “anoes”. 147 Na edição da Academia, p. 550, lê-se: “tisouras”. 148 Na edição da Academia, p. 550, regista-se “500”. 149 Na edição da Academia, p. 550, regista-se: “3 000” o que, tendo em conta o valor da vizinha Mesão Frio, não se nos afigura correcto. 144

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[Dos Guedez.] Item Loureiro, de pão iiiic150, de vinho iiic151, de castanha vic, d’azeite xx. Item São Pisco da Regoa, de pão viiic, de vinho iiiic, de castanha cento Lta, azeite iiic. [Bispo do Porto.] Item a camara do Bispo do Porto, que se chama o Pezo da Regoa152, de pão mil, de vinho iiiic, de castanha cto L, e de azeite iiic. [D’El Rey.] Item Fontellas, de pão iiic, de vinho cto, de castanha cto Lta, de azeite Lta. [Rodes.] Item a Comenda de Poyares, de pão sinco mil, vinho mil, azeite quinhentos, afora foros, castanha mil. [De Christus.] Item São Martinho de Cambres, e aprestimos, de pão vc, de vinho vc, de castanha viic, d’azeite cto xx. Item Sande, de pão cto Lta, de vinho iiic, azeite Lta153, castanha vic. [Sam João de Tarouca.] Item Semudais, de pão cto Lta154, de vinho iiic, de castanha iiiic, d’azeite Lta. Item Valdigem, de pão mil, de vinho mil e de azeite iiiic com a terça, castanha viic. [De Vossa Senhoria.] Item Parada, de pão cto Lta, de vinho cto xx, de castanha Lta d’azeite xx. [De Vossa Senhoria.] Item a camara de São Domingos, de pão mil, de vinho iii[c] Lta castanha v[c], azeite XX. [Rodes.] Item a Comenda de Fontello, [fl. 4] de pão mil, vinho iiiic, castanha iiiic d’azeite XX. [Da Salzeda.] Item a Quintã do Musuro155, de pão cto Lta156, de vinho iic Lta, d’azeite mil157, de castanha iiic, e isto tornado a dizimo. [... em Douro.] Item São João de Medim, de pão iiic, de vinho iic, de castanha cto, azeite Rta. [... em Douro.] Item Medrois, de pão iiic, de vinho iic Lta, de castanha vic, azeite xx. [Sam João de Tarouca.] Item a Quintã de Mosteiró feito a dizimo, de pão cto, de vinho mil vc, d’azeite iic Lta, de castanha Lta158. Quinta de Mosteiró159 Esta Q[u]inta de Mosteiró hé de São João de Tarouca, e está junto do Douro; parte com a Ribeira de Baroza, he pequena terra, que com sinco tiros de besta posto hum homem no meyo chega[rá] a todas as partes della, em a qual quinta se colhem cada anno quinze mil, dezaceis [mil] almudes de vinho, [e] a conta he esta, que a quinta rende mil e vc almudes, de quinto, e sexto he de setimo e outras, que são sabudas, e afora o que escondem. Rende mais a dita quinta em anno de seifa dous mil, dous mil e quinhentos [alqueires] d’azeite, porque a quinta rende ao Mosteiro mil e duzentos, anno de seifa, e hé de mais160, e alguns olivais de quarto dado, que delles se recolhem tãobem polla caza, mas contando os roubos dos cazeiros rende161 os

150

Por cima deste valor escreveu-se, como que o actualizando, “600”. Tal como no caso anterior pareceu haver uma actualização e, por cima deste valor, escreveu-se “600”. Num e noutro este acrescento foi efectuado pela mesma mão que escreve o resto do texto. Na edição da Academia não se faz menção a qualquer actualização e os valores apontados são, respectivamente, “400” e “300”; ver p. 550. 152 Na edição da Academia, p. 551, lê-se, simplesmente: “que se chama o pesso”. 153 Na edição da Academia, p. 551, regista-se: “60”. 154 Na edição da Academia, p. 551, regista-se: “300”. 155 Na edição da Academia, p. 551, refere-se “quintã do mucuro”. Trata-se da actual quinta de Paço de Monsul. 156 Na edição da Academia, p. 551, regista-se : “50”. 157 Na edição da Academia, p. 251, regista-se: “200”. 158 Na edição da Academia, p. 551, regista-se “60”. 159 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “Mosteiros”. 160 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “meas”. 161 Na edição da Academia, p. 552, refere-se “rendem”. 151

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

ditos dous mil e quinhentos [alqueires] d’azeite. Renderá de pão mil alqueires, e de castanha [seiscentos alqueires] e de legumes trezentos alqueires; renderá iiic cargas de serejas e quinhentas cargas de outras frutas, e viiic arobas de sumagre, e os vinhos dalli todos vão de carregação. Poucas quintas deste compaz se achão no Regno tão boas. [fl. 4v] As quais Igrejas somão no rendimento, do pão L ix mil iic Lta alqueires de dizimo que são soma vcL R ii mil vc162, o qual pão he o seguinte comvem a saber: trigo galego, e trigo tremes, e centeo, e milho, e painço, e cevada tremes, e cevada cavalar, e milho marroco o qual milho marroco se dá na area do Douro em canas muito altas, e ha espiga que da hua quarta de alqueire, e he milho branco de grandura de confeitos de [coentro]163. Estes generos de pão nunca desfalece nesta terra, dado que alguns annos ha mais que outros porque o tempo que he contrairo ao centeo, he proveitozo ao milho, e ao painço; e o tempo que he contrairo ao trigo temporão alguas vezes he proveitozo ao trigo tremes, e ao milho marroco, assim que desta maneira quando erra hum pão de não aver muito164, acerta outros165 por aver tantos generos de sementes de pão, e desta maneira nunca pode aver fome nesta terra, e neste compasso destas duas legoas há muitos campos, que dão tres novidades no anno, como são os campos de Coura, e outros muitos silicet dão nabos, e rabãos na primeira sementeira, e depois dão trigo, e tirado o trigo, ou cevada dão linho, ou tãobem se querem dão painço, ou milho, e isto em muita quantidade, que ha hi campo quanto hum homem lavra em hum dia na Ribeira de Coura, e em outros lugares, que da cento e vinte alqueires; [e] estes campos dão tãobem muito fermozos alcaceres em hũa das tres sementes ou166 novidades, e são estes regados, e estercados, e destes ha hi muitos campos em este compasso. Item de vinho somão os dizimos, que ha neste compasso de duas legoas trinta mil vic Lx[x]ª almudes; assi que se colhe de lavrança no dito compasso iiic vi(mil) viic almudes e soom os mais excelentes vinhos, e de mais dura, que no Regno se podem achar, e mais cheirantes, porque ha vinhos de quatro, sinco, e sete167 annos, e de quantos mais annos he, tanto mais excelente, e mais cheirozo, e ha hi alguns amarais ainda, que pouco d’arvores, que pode ser a decima parte do outro; e168 a mor parte dos vinhos de todo este compasso169 se carregão pello Douro em barcas para o Porto, e para Entre Douro, e Minho, [fl. 5] para Lisboa, para Aveiro, para as Ilhas, e para as armadas d’El Rey nosso senhor, e comprão destes vinhos amaraes, e outros de baixo preço, e os vinhos cheirozos, e de moor contia vão por terra para muitos senhores, e para a corte de Castella, e assim alguns para a corte de Portugal; e há alguns annos, que se aqui vende muito vinho a iiiic, e a vc [réis] o almude do velho que cheira, e tãobem muitos annos se vende muito vinho para Guarda, Vizeu, para Riba de Coa, para a Beira, porque há muitos170 annos como he este prezente, em Vizeu que há esterlidade de vinho, que aqui ainda que a haja polla soma dos vinhos ser muita, e as uvas de muitas castas, que se não vingão hũas vingão outras, e a terra tem171 vinhas em terra fria, e em terra quente se da vinho, e quando nom vence a terra fria o vinho, vence a terra quente de maneira que sempre ha muita soma de vinho.

162

Emendado este valor. Isto de acordo com a versão dos Inéditos, p. 552. Neste documento repetia-se a palavra “confeitos”. 164 Na edição da Academia, p. 553, refere-se “tanto”. 165 Na edição da Academia, p. 553, refere-se “outros”. 166 Na edição da Academia, p. 553, omite-se “sementes ou”. 167 Na edição da Academia, p. 553, regista-se “6”. 168 Na edição da Academia, p. 553, omite-se esta palavra. 169 Na edição da Academia, p. 553, esta frase está da seguinte forma: “A mór parte de todos os vinhos deste compasso”. 170 Na edição da Academia, p. 554, refere-se: “algũa”. 171 Na edição da Academia, p. 554, lê-se: “ter”. 163

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Item: soma a castanha de dizimos Rvii(mil) vic LX. alqueires, de maneira que somão o que se colhe na terra iiiic Lxx vi(mil) [vic] alqueires a qual castanha muita della se enterra, [e] se vende172 na Coresma, e outras secão e a picão, que chamão castanha picada; desta castanha picada se fas grande carregação pello Douro para Lisboa, e para o Algarve, e para as Ilhas; e quando o anno he esterle os homens pobres moem a dita castanha, e fazem della pão, e he muito fartum, e muito doce, que chamão falacha, e de outra castanha seca cascuda173 cevão muitos, e mui fermozos porcos das mais saborozas, e mais carnes (sic) que ha em todo o Regno. O preço desta castanha174 verde em anno de bonança a tres, e quatro175 reis o alqueire da rebordam, e da longal, a sinco, e a seis pella medida [fl. 5v] grande desta terra, e da picada a xx, e a xx b, e a trinta o alqueire, e no tempo della todolos caminhos, e estradas são cobertas, e polas não poderem apanhar trazem os porcos pellos soutos, que as comão, e todolos caminhantes, e pessoas que passão fazem magustos sem lhe ser defesso, e ha castinheiros [muitos] que dão LX alqueires de castanha, e ha destes muitos, e ha castinheiro176 que debaixo delle se colherão iiic homens á sombra. Item: soma o azeite de dizimo que ha nas Igrejas dous mil ixc alqueires de maneira que soma o que se colhe neste compasso vinte e nove mil alqueires, e he dos bons do Regno; o qual azeite se gasta em parte de Entre Douro, e Minho, e Traslos Montes, que o nom há lá, e levam-no almocreves, que andão a isso, e [á] mor parte de Galiza, e daqui a mor parte da Beira, que o levão almocreves, e regatães para nelle ganharem até a Guarda; e ha neste dito circuito Rtª ii lagares d’azeite para a parte do Douro. [Çumagre] Item se colhem177 neste circuito das sobreditas legoas xv mil arobas de sumagre, que se carregam para Lixboa, e o178 Algarve, e as Ilhas e para todo Antre Douro, e Minho, e Traslos Montes e para toda a Beira. Titulo da nós, e legumes deste compaço E por não ser prelluxo nom quis aqui poer por meudo a nós, e legumes, que ha somente fica per o meudo como vão estoutras couzas; e soma a nós que há neste compasso, e se colhe cada anno des mil alqueires, porque há de dizimo mil alqueires, e há nogueira que dá sincoenta alqueires. E lugumes silicet favas, feijois, ervilhas ceitans, e das outras, e lentilhas, e ervanços soma nove mil alqueires; e isto se for necessario [fl. 6] da-lo-ey pello meudo, que fica em meu poder: os feijois vão muitos para Traslos Montes e para Castella, [e] rende cada alqueire em Castella vc, vic reis, e val aqui o alqueire xx, e xxx; em Castella vende-se a arrates.

172

Neste caso optei por seguir a edição da Academia, p. 554, pois no manuscrito não se refere a conjunção “e” e, por isso, a forma verbal aparecia como “vendem”. 173 Na edição da Academia, p. 554, diz-se “cascada”. 174 Emendada esta palavra. 175 Na edição da Academia, p. 554, regista-se “quatrocentos”, o que nos parece ser errado. 176 No plural no manuscrito. Preferi seguir a versão da Academia, p. 554, colocando esta palavra no singular, que me parece mais correcto. 177 Na edição da Academia, p. 555, refere-se “se colherá”. 178 Na edição da Academia, p. 555, lê-se: “ao”. 81


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Pano do linho] Item outrossim ha por soma no dito compasso de linho, silicet panno de linho, que se fas nestas duas legoas de dizimo dezoito mil varas, de maneira que se colhem no dito compasso, e se fião cento, e outenta mil varas, as quaes sendo necessario tãobem mostrarei polo meudo de cada Igreja antre o qual he pano de linho, e estopa e t[r]ez179, e ha estopa que se vende a xii, e a xiiii, xb reis ate xx e o pano de linho de xv ate cento, e cento e vinte [reis] a vara; e vende-se este pano a mercadores, e vai para Castella muita soma, e para Lisboa, e para Alem Tejo, e para o Algarve, e para as Ilhas, e outro se gasta na terra, e fitas em (?) pessas. [Sêda] Item se colhe no dito compasso de dizimo silicet de seda sinco mil onças, assim que se colhe sincoenta mil onças; a qual ceda se gasta parte della em a terra, a dada em Tarouca180, em veludo181 çatiis, tafetás, e toucaria, e a mais vai para fora. [Mel] Item de mel pode aver quanto abaste para a terra de sua colheita, dado, que não hé muita cantidade; e de agoa rozada L xxx almudes. [Cerejas] Item ha mais no dito circuito muitas, e mui fermozas serejas, que vem a vender a esta cidade, as quais serejas comessão em Abril, e acabão em Setembro; e a cauza he porque esta cidade [tem] como sempre tres novidades no anno de cada renovo, e a cauza he esta, a primeira novidade, que são as serejas começão na Ribeira do Douro no mes de Abril, e durão ate Mayo; e acabado Mayo comessão as desta cidade, que he terra temperada em meyo, e durão ate todo Junho; e acabadas as desta cidade comessão as da terra fria da parte do Sul, e durão Julho, e Agosto ate Setembro; e de todos estes lugares se vem vender a esta cidade por estar no meyo, e pello mesmo [fl. 6v] teor ha ginjas, o preço dellas são cómummente o aratel a real, e a quatro ceitis, e a meyo real e as [muito] temporans a dous reis, e a tres reis, as quais castas de serejas são as seguintes silicet as trigais, bastezas, soldares, bicaes, agostinhas, pedraes pretas, e outras pedraes bicudas que levão em cargas para fora, amargozinhas, ginjas muito boas. [Arvores d’espinho] Há neste circuito muitas arvores de espinho silicet desta parte da cidade para o Douro em abastança silicet muitas laranjas, limois, e alguas limas, muitas cidras e zamboas, que abastão a terra e carregão os almocreves para toda esta Beira, valem outo e des laranjas ao real, e quatro, e seis limois hum real, e hũa cidra hum real.

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Isto é, treu. Na edição da Academia, p. 556, lê-se: “se gasta parte dela em esta cidade, e Tarouca...”. 181 No plural na edição da Academia, p. 556. 180

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo das maçans Item ha muitas maçans em bastança de muitas castas, silicet camoezas, repinaldos, veloso, sirgainho, doçares, pevidaes, bayonezes, rostiboons, rustimão, Sam Martinhas, sapãez, negrainhas, ozães182, sodracãs, e nanos, e outras de muitas castas, dado, que mais ha Entre Douro, e Minho, aqui há abastança dellas, dão, outo, dés, doze a real, e segundo a fruta hé, seiz, quatro. Peras Item: ha muitas peras de emgox[a], e as maiz fermozas do Regno, [c]oxa de donna, pera-pão, peras de Baguim, peras doçares, codornos, peras trigais, peras sorvas, peras ruivais, peras longaes, peras junhaes, sormenhos, peras de Villa Verde, peras botelhas, peras de sobrego, e ha alguas peras manosinhas, que nom há em todas partes, que vem por Mayo, e esto todo se vende a bom preço. Dos marmellos, e romanz Ha muitos marmellos barbaros183, e muitos galegos bi e iiii a real, e há muitas romãas doçares, e ágras, e agras doces do mesmo preço que vão daqui para muitas partes. [Figos] Item há muitos figos, e mui fermozos [fl. 7] figos184 em tanta quantidade, que os dão aos porcos por serem sobejos, e durão des Mayo ate o185 Natal, e isto porque os figos lampãos na Ribeira começão por Mayo, e como elles acabão começão os desta cidade, e como acabão os da cidade começão os da terra fria, de maneira que ainda os figos la[m]pãos nom som acabados na terra fria, quando comessão já os vendimos na Ribeira, e corre outras tres novidades, e durão ate Natal. Como digo de todas as frutas nesta cidade se comem tres renovos. E as castas dos figos são os seguintes silicet pedraes, alvares186, verdeaes, negrainhos, bugalhais, donegraes187, castanhaes, longais, burjaçotes; e em muitos annos há nesta terra certas figueiras que no mes de Abril dão figos burjaçotes maduros, e muitas pessoas os tem por arteficiais, os que nom sabem o modo de seu nacer. O presso delles são tres, e quatro duzias a real, e seis, outo burjaçotes a real; e assi ha outros figos de muitas castas, a que nom sei o nome. [Ameijas] E tãobem há muitas188, e mui fermozas ameijas silicet bicais, reinois, manosinhas, e saragoçãs e outras muitas castas, e abrunhos duçares, e ameixiais, e verdeaes, e esgana cão; dão quatro, e seis duzias ao real.

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Sic? Na edição da Academia, p. 557, lê-se: “orjaees”. Na edição da Academia, p. 558, talvez devido a gralha tipográfica (?), lê-se: “babaros”. 184 Embora tenha mantido esta forma, parece-me que a frase transcrita na edição da Academia, p. 558, esteja mais correcta, dado coincidir, neste texto, com outras idênticas: “Item ha muitos e mui fermosos figos”. 185 Na edição da Academia, p. 558, omite-se esta palavra. 186 Na edição da Academia, p. 558, lê-se: “alvarões”. 187 Na edição da Academia, p. 558, lê-se: “donegães”. 188 Na edição da Academia, p. 558, esta frase começa assim: “Item ha muitas”. 183

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Sorvas e nesperas] Item há muitas sorvas, e nespras, que vem dispois das vendimas, estas nunca amadurecem nas arvores, senom nos madureiros. [Pessegos] Item há muitos, e mui fermozos pessegos silicet dorazeos, romãos, e pesegos durazeos romãos189, e mollares, e molares calvos, e pesegos duraseos calvos romaos, que em Lisboa chamão malecotões, ha outros pesegos, que chamão albocorques, que em outras partes chamão alperches, e outros muitos generos de pesegos, que aqui nom ponho. Uvas [Amaral] Item ha muitas, e mui fermozas uvas, e muito boas castas, e que se tem dependuradas huas as outras digo dependuradas de hum anno a outro, e assi ha outras que chamão amaral em alguas partes, que he da qualidade do vinho de Entre Douro, e Minho, e são muito mas uvas, e o vinho destas valle menos preço [fl. 7v] do vinho bom a metade, e há pe de vide que da hũa pipa o qual vinho seu natural hé em ramadas altas, ou em arvores, dado que he proveitozo para lavradores, e para beberagens de mar vai muito, e nesta terra não se fas dele muita qualidade, e a casta das uvas deste vinho chamão amaral. [Uvas de casta] Item a casta do outro maravilhozo vinho de pé são de muita soma silicet bastardo, trincadente, agudelho, que he outro de geito de trincadente, ha outro, que chamão Alvaro de Souza, que em outra parte chamão malvazia, catelão190, lourello, verdelho preto, verdelho branco, donzelinho, terrantes, abelhal, e buoval191, samarrinho [tinto], mourisco, ferral de muitas castas, ceitão, felgosão192; e valem em tempo que ha rasoadamente uvas a real o arratel das uvas que são boas. [Melões] Item ha muitos, e mui fermozos meloes, e muito temporaos, e são tantos meloes, e em tanta quantidade, que nenhum por grande que seja não passa de dous reis, e isto no principio, e depois de farta a cidade vão daqui muitos temporãos para a Guarda, e Vizeu, e Trancozo, e Pinhel, Riba de Coa, e assi todas as outras frutas; e há alguns cogombros, ainda que são poucos, e há muitas aboboras.

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Emendada esta palavra. Assim nas duas versões. Poderá tratar-se da casta “castelão”, uma das poucas conhecidas, desde a Idade Média, na viticultura de Portugal. 191 Na edição da Academia, p. 560, lê-se: “burral”. 192 Remeto o leitor para a edição da Academia, p. 560, pois, apesar de aí se encontrarem todas estas castas, a ordem de apresentação é ligeiramente diferente. 190

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[Ortaliça] Item neste dito compasso ha muitas [e] boas urteliças convém a saber: rabãos todo o anno, couves de muitas castas, e alguns repolhos, cardos, cenouras, e outros muitos generos de ortaliça, dado, que em outras partes ha mais porque os homens desta terra não se deitam a ella porque se fizecem ortas a terra hé muito excelente para isso, como Vossa Senhoria sabera pella sua fermoza orta onde se dá muito fermoza ortalliça de todolos generos, e maneiras, que se posão nomear por ter ahi ortellão, que o bem sabe fazer com muita abastança d’agoa. [Fontes] Item no dito compasso há as maiz excellentes fontes perenaes, que se podem achar, e eu as quizera escrever por numero, mas193 não há maneira para se poderem contar somente com homens que bem sabem o circuito da terra as apodarão a cinco mil fontes em que ha muitas destas fontes [fl. 8] que o nacer aonde nacem pode moer hum moinho, ou azenha. E muitas destas fontes são monstruozas pera ver por alguas nacerem em penedos, e outras em pés de arvores, e algumas nacem em alguns lugares em pes de nogueiras por onde os homens, e as molheres onde nacem, e as continuão a beber são papudos, e hua fonte nasce em hua serra (?) sobre esta cidade a que chamão a Fonte da Esguicha, e nace em hua laja que jaz allastrada no chão, e lansa para o ar como hum torno de pipa, e outras muitas deste geito em penedos, e a principal destas fontes he a Fonte d’Almedina desta cidade, que hé das mais excelentes agoas, que se possão achar, e quer-se bebida em fresco porque he a contra do tempo, que no Verão he tão fria que a não podem aturar, e no Inverno he muito quente, e he agoa muito sádia. E ha outras muitas fontes, que quazi194 conformão a esta, e destas fontes neste compasso ha muitas, e mui fermozas lameiras, que dão tres, quatro camas de erva de segar no anno, e a mor parte de toda esta terra he regada das sobreditas fontes. [Ribeiras] Item ha alguas ribeiras cabedais e tem muitos ribeiros de mui excelentes, e graciosas agoas, e de muitos seixos brancos, e muitas levadas e muitas ervas verdes, e mui cheirozas, e [medicinaes195], e alguas dellas levão para muitas partes para boticairos, e alguns destes ribeiros moem todo o anno. Titulo do peixe do Douro Item primeiramente o Douro aonde morrem muitas lampreyas, e muitos sabens, e muitas bogas, e muitos barbos; ha hi outro pescado, que chamão mugens d’agoa doce os quaes nam morrem senão pollas primeiras agoas de Setembro, hé muito saborozo peixe, e muito estimado; e outros muitos mugens morrem das Caldas d’Aregos ate o Porto porem não chegão a estes. Outrossim morrem no dito Douro muitos, e mui fermozos eyrois, que são tão grandes como safios, e mui grossos, e saborozos; o morrer destes eyrois hé depois da castanha caida dos castinheiros, porque a inxurrada leva os ouriços dos

193

Na edição da Academia, p. 560, lê-se: “mais”. Na edição da Academia, p. 561, lê-se “caise”. 195 De acordo com a edição da Academia, p. 561. No manuscrito estava “medianais”. 194

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

soutos ao Douro, e os ouriços entrão em os remances196 do Douro nos lodos onde os eyrois estão, e os picão, e se erguem no Douro, e vão cahir em huns canaes que estão [fl. 8v] no Douro com huns caniços, e ahi caem em seco principalmente de noute onde os aguardão com paos, e matão a mor parte deles, e ha noute que matão tres, quatro eyrós197. Há hi alguas savelhas, há tãobem alguns solhos ainda que a mor quantidade morrem daqui para sima em Villa Nova de Fos Coa; estes solhos que aqui morrem são peixes de dez, [treze,] catorze, quinze palmos, e mui grosos e são peixes reaes, e quando morrem he por serem grandes dorminhocos, e dormindo por acerto198 vão dar em os canaes onde dão em seco, e os outros que matão no dito Douro em Villa Nova morrem pello mesmo teor em armadilhas, e os pescadores, que os tomão em armadilhas os tem á serga atados no Douro quinze, vinte dias, e quanto querem até que vem pessoas que os comprão; sam peixes que val cada hum, mil, mil iic, mil vc reis porque ha hi peixe[s], que pezão Lta, Lx, Lxxx arrates cada hum, e dão hum arratel por vinte reis, e quando os tirão da augua deitão-lhe hua canada de vinho branco pella boca com que os levão dous dias vivos, e os que morrem neste circuito em canaes, que são poucos, são do senhor da terra por serem peixes reaes, ainda que elles comem os menos porque quando os achão os pescadores furtam-nos, e vendem-nos, e delles comem. E assi ha alguas trutas ainda que poucas, e antre estas acerta algua tamanha como savel por acerto. Das barcas de pasagem Item no dito compasso no dito Douro pasão seis barcas de passagem, que são as seguintes: Bagauste, que he de Vossa Senhoria, a Regoa, que he do Bispo do Porto, e do Illustrissimo199 Dom Fernando, o Carvalho que he de hua quintã, o Moledo, que foi posta pella Rainha Donna Mafalda, o Bernaldo, que he de hua quintã, a de Porto de Rey outrossi feita pella Rainha Donna Mafalda, as quais barcas do Moledo, e Porto de Rey a dita Rainha mandou poer, e leixou certas quintãs e cazaes para mantença dos barqueiros que passão as ditas barcas sem levarem dinheiro por grande, nem fora de marca, que o Douro vá, e tem dous mil reis de pena, e da cadeya se se provar pedirem elles dinheiro a algua pessoa, todavia se lho querem dar os que pasão por cortezia, mas nom que o pessão. Na barca do Moledo leixou a dita Rainha hum ospital em que [fl. 9] manda que dem cama, fogo, e sal, e agoa aos caminhantes, e a governança do dito espital, e barca pertence a esta cidade. Dos piares do Douro Item entre esta barca do Bernaldo, e a de Porto de Rey estão huns fermozos peares de hua ponte que a Rainha Donna Mafalda dizem que mandava fazer os quais sam dois no meyo do Douro de muito grande altura, e mui largo fundamento, que os dous que estão no rio, neste mes de Mayo hirão bem dez palmos descobertos, e no Verão hirão bem vinte palmos e mais, e estão outros dous de fora hum da parte daquem, e outro da parte dalem. Estes poyares foram já de dobrada altura, e os derribarão, e fizerão delles pesqueiras, e inda agora os lavradores os descobrem cada dia por dizerem - digo os derribão cada dia por dizerem que c<r>iam nelles as gralhas, que lhe comem os trigos. O arco da parte daquem volvia já. Esta hi muita pedra quebrada polo monte, que ficou quebrada, e acharão ainda polos montes muitas marras, e cunhas, e lavancas,

196

Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “remãsos”. Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “e ha noute que matam 300, 400 eirõs”. 198 Que se nos afigura correcto. Na edição da Academia, p. 562, lê-se: “por certo”. 199 Na edição da Academia, p. 563, é omitida esta palavra. 197

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Textos e documentos – Transcrição crítica

que por hi ficarão. Dizem nesta terra que a Raynha Donna Mafalda tinha hum filho o qual filho lhe dezião estrolicos que avia de morrer em agoa, e por isso mandava fazer aquella ponte, e que fazendo-se aquella ponte morrera o filho em hua pégada de boy cheia de agoa, e que leixou de a mandar acabar de fazer, o que certo me não parece, senom, que a Raynha morreu estando a ponte nesta altura, e por isso cessou a obra, porque na maneira que ella estaria se nom podia leixar de fazer por outro geito. [E] certamente me parece, que se El Rey nosso senhor vira os ditos peares mandara acabar a dita ponte porque a mor parte hé feito pois he o do fundo d’agoa, e tem muito bom fundamento para sobir toda a altura que quizerem, e tem muita pedraria quebrada, e muita para quebrar á borda da ponte, e tem mui grandes soutos de muy[tas] e muy fermozas vigas, e madeira para armação dos arcos todo junto com o edificio, e o pear que comessa a volver da parte daquem nunca o rio o cubre. El Rey nosso senhor podia mui bem mandar fazer esta meya ponte que esta por fazer com deitar des reis a cada morador vinte legoas arredor, e em seis, ou sete annos, ou em menos se podia fazer sem operssão (sic), e seria hua couza mui nobre [fl. 9v] neste Regno aver hua ponte no Douro porque por ser fragozo he mui prigozo nas pasagens, e sobretudo seria grande nobrecimento desta cidade. [Meijão Frio200] Dizem que hua vila que esta mea legoa desta ponte, que se chama Meijão Frio foi povorado por pedreiros que fazião esta ponte, e certamente me parece que deve ser assim, porque o lugar tem hum rego pello meo da rua de fundo assima, e de hua parte he201 hum concelho, e doutra parte he outro concelho, e dizem que hum meestre vivia de hua parte, e outro mestre doutra, e de cada parte tem hum juiz, e offeciais apartados hum do outro. Esta obra esta abaixo de hum lugar, que chamão Barqueiros aliás que chamão Barrô, e esta em terra para onde a mor parte das estradas d’Antre Douro, e Minho, e alguas de Traslos Montes, e as da Beira podião hir ter para passagem da dita ponte. [Ponte de Canaveses] Esta Raynha Dona Mafalda mandou fazer hua ponte de Canavezes que está em Tamega, e hua gafaria ao pé da ponte, e hum esprital no meyo do lugar com muitas terras, e paga de portagem cada besta carregada, que passa pola ponte dous reis e meyo para o esprital. Esta Raynha dizem, que fes a Sé do Porto, e outras muitas bemfeitorias neste Riba do Douro. Jaz emterrada em hum mosteiro que esta em hum lugar que chamão Vila Boa do Bispo em Riba do Douro, ao qual moesteiro dizem, que leixou sete mosteiros anexos silicet São João d’Alpendorada, e Ancede, e Carquere, e Bostello, e outros que depois El Rey Dom Dinis desanexou202. Titulo da navegação do Douro Esta Ribeira do Douro se navega vinte e sinco legoas silicet de S. João da Fóz, que he a barra do Porto pello rio arriba ‘té S. João da Pesqueira, que são as sobreditas vinte e sinco legoas com barcas que carregão [1:500 até 1:800203] alqueires de pão

200

Na edição da Academia, p. 564, lê-se: “Menja frio”. Introduzi a informação desta forma pois adequa-se mais ao modo utilizado pelo transcritor deste manuscrito, como adiante se pode verificar. 201 Emendada esta palavra. 202 Na edição da Academia, p. 565, lê-se: “dom denis os desanexou”. 203 De acordo com a edição da Academia, p. 565. No manuscrito estava: “mil 60 ‘té mil outenta”. Esta forma poderá estar de acordo - e estou simplesmente a especular - com algum valor em vigor na época em que foi copiado o manuscrito. Contudo, na época de Rui Fernandes, e um pouco por todo o século 87


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

pella grande medida, e de S. João da Pesqueira nom podem passar por hua mui alta fraga que hi esta onde he a pesqueira donde nom podem passar savel, nem lamprea, nem outro peixe para sima. E no mes de [fl. 10] Mayo tomão naquella pesqueira muitos saveis hum homem, que está atado com hua corda per baixo dos brassos na fraga, e com hua rede que deita em baixo tira muita soma de peixe. Esta fraga manda ora quebrar o Doutor Martim de Figueiredo a qual quebra com fogo de vinagre; tem muita parte quebrada. Se a acabar de quebrar farão grande navegação até Valvestre, que dahi para sima nom podem passar, que hi passa o Douro por baixo de hum penedo, e ainda que isto seja fora do compasso das duas legoas se pos aqui por fazer ao cazo. Dos canaes do Douro Item nesta navegação deste rio ha agora alguns canais que perturbão a passagem das barcas como o rio abaixa porque elles tem paredes que atravessão o rio de parte a parte, e com ming[u]a nom podem passar as barcas, e os canaes que danão estas passagens estão no circuito destas duas legoas, e são de mui pouco proveito, e muito damno, porque tomando-se conta do que custão a correger, e do que rendem acharão que pasa a despeza pella recepta, e ja os principaes204 são derribados, que erão os de Bagauste de Vossa Senhoria, e do Conde de Maria Alva, do Moledo, e para a navegação ser de todo o anno devia El Rey nosso senhor mandar abrir a vea do rio, que he sua, e logo nom teria canaes nenhuns como as veas fosem abertas; e ja agora nom205 ha mais de quatro assudes porque os mais levou o rio. Titulo das pesqueiras do Douro E tãobem ha algumas pesqueiras que fazem somente para saveis, e lampreas, que alguas dellas sam prejudeciais a��������� [�������� a������� ]������ navegação, e cada dia fazem mais porque se ouvece provedor no rio para ver isso seria melhor navegação porque o Douro tem todo o anno agoa em abastança porque afirmão ter dobrada a agoa abaixo d’Antre Ambos os Rios do que o Tejo tem ate onde chega a maré. [E] certo que vem o Douro de Verão tão grande em Samora como o Tejo vem em Santarem, pois de Samora ate Antre Ambolos Rios colhe o Douro dobrada augoa da de206 que em Samora tras. Neste Douro ha alguns passos maos que se podião correger, e nestes passos a que chamão gálleiras ha hi pilotos no rio que passão as barcas silicet des os Peares ate Porto Manço que são tres legoas, e leva o piloto hum tostão por decer a dita barca. [fl. 10v] Outros pilotos há que decem outros passos ruins des S. João da Pesqueira outras duas ou tres legoas. Deste São João207 da Pesqueira tãobem vem ao Porto almadias feitas de cortiça que trazem cem duzias de cortiça, e mais, leadas com paus, e esta cortiça se vende a pescadores para boyas, e a çapateiros; e sobre ella trazem muitos odres de vinho, vinagre208, e mel, e muitos sacos de sumagre, e vem homens nellas que as governão; são mais seguras de prigo, que as barcas.

XVI, as barcas do Douro definiam-se exactamente por carregarem de 1 500 a 1 800 alqueires. Sobre este assunto ver DUARTE, Luís Miguel; BARROS, Amândio - Corações Aflitos ..., cit., p. 115. 204 Emendada esta palavra. 205 Emendada esta palavra. 206 Na edição da Academia, p. 567, é omitida esta palavra. 207 Na edição da Academia, p. 567, certamente por lapso, omite-se esta palavra. 208 Emendada esta palavra; estava escrita a palavra “sumagre”. 88


Textos e documentos – Transcrição crítica

Neste rio antre os Peares e as Caldas estava hum penedo que chamavão o Touro, e era o mais prigozo passo que avia nesta navegação onde sam perdidas muitas barcas, e morta muita gente, e avera quatro, ou sinco annos que hum homem ho [quebrou209] com despeza de mil e dozentos reis, onde mais nom prigou barca, nem gente, e muitos passos ha hi que se podião correger com pouca despeza, para o que El Rey nosso senhor podia deitar hua portagem ás mercadorias que decem para corregimento e repairo destes máos passos e seria muito santa couza. [Largura e altura do Douro] E para mais declaração da altura e grandura de largo do Douro o fui medir com os creados de Vossa Senhoria á barca da Regoa, que he hũa legoa desta cidade e aos vinte e outo210 de Mayo de mil quinhentos e trinta e dois211 achámos de largura no rio duzentas e trinta varas; [a] altura nom se pode tomar pola grande corrente da agoa, e achamos que fora no anno de quinhentos e vinte hũa grande cheya, e assim em outros annos em que levou de largo allem da agoa que agora leva da parte dallem cento sincoenta varas e da parte daquem sincoenta varas212 e d’altura vinte varas213, afora a altura que agora tem assim que somou toda a largura no tempo das cheyas com a que agora leva quatrocentas sincoenta varas, e tomando a altura do que vai com agoa a respeito da largura [que foy] vem por regra da geometria vinte e hua varas e mea, que para vinte e tres varas falta mea ávos de vara que he a altura que agora pode levar e a altura das cheas junta com esta são quarenta e duas varas e vinte e hum, vinte e dous ávos de vara214. [fl. 11] Da Ribeira de Baroza Há hi outra ribeira, a que chamão Baroza que se mete no Douro hua legoa desta cidade e nace em hua serra que se chama Almoffala, que he tres legoas e meya desta cidade, e donde se mete no Douro adonde nace são quatro legoas e meya. Esta ribeira hé de mui fermozas ágoas continuas, e215 passa-se a mor parte do anno ali onde se mete no Douro em barcas216; há nesta ribeira mui grandes pégos, e mui altos de muito infindo pescado silicet muitas e boas trutas, e muitas bogas, e barbos; as bogas desta ribeira sobrellevão em sabor a todo outro pescado doutras ribeiras. Tem muitas e mui fermozas moendas de todo o anno, e de seis, sete legoas vem nella a moer no Verão. [Sam João de Tarouca] Esta ribeira pasa arredor de São João de Tarouca que he da Ordem de São Bernardo217. Nelle esta emterrado hum conde que chamavão Dom Pedro Conde de Barcellos. Dizem he218 filho bastardo de El Rey Dom Affonso Henriques, posto que a

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No manuscrito estava a palavra “cobrou”. Emendadas estas duas últimas palavras. 211 Na edição da Academia, p. 567, certamente por lapso, lê-se: “28 de Maio de 582”. 212 Na edição da Academia, p. 568, lê-se “e da parte d’aquem 70 varas”. 213 Na edição da Academia, p. 568, lê-se: “e de altura 21 varas”. 214 Remeto o leitor para a consulta da edição da Academia, p. 568, onde se regista o seguinte: “E tomando a altura do que vay com agoa a respeito da largura que foy, vem por regra de geometria 21 varas e 21/22, que pera 22 varas falta 1/22 ávos de vara, que he a altura que agora pode levar; e a altura das chêas junta com esta são 42 21/22 de vara, digo, 42 varas, e 21, 22 ávos de vara. 215 Na edição da Academia, p. 568, é omitida esta palavra. 216 Na edição da Academia, p. 568, lê-se “barca”. 217 Na edição da Academia, p. 568, tal como sucede, como se pode ver, neste manuscrito, a frase inicial deste capítulo está truncada: “Esta ribeira passa a redor de sam Joam de tarouca, que no dito compaso; o qual moesteiro he da ordem de sam bernardo”. 218 Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “ser”. 210

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Coronica d’El Rey Dom Affonso Henriques não diga de tal filho, o qual Conde Dom Pedro dizem ser homem como gigante de corpo, e assim está emterrado no dito mosteiro hum seu filho219, que dizem ser de seis mezes, e as canas dos seos ossos som de quatro palmos. Este mosteiro rende seis centos mil reis. Quem o ordenou nom se acha, somente dizem, que hum irmitão por esmollas e com ajuda d’El Rey de Castella o edeficou. Foi feito na era de mil cento trinta e quatro annos quando em Espanha foi antredito pello cazamento d’El Rey Dom Affonso de Leão com Donna Tareja filha d’El Rey Dom Sancho de Portugal, o qual antredito foi feito pello Papa Clestino220 terceiro, que então era, porquanto El Rey [fl. 11v] Dom Affonso de Leão era sobrinho d’El Rey Dom Sancho, seu sogro filho de sua irmam. E porque este mosteiro tinha então hum grande previllegio, que sem embargo de excomunhão do Papa podece celebrar os Officios Divinos, e por este cazo nesse221 interdito se vierão enterrar grandes senhores de Castella ao dito mosteiro, e leixarão muita renda que o dito mosteiro tinha em Castella, e pellas guerras a perdeo, e os testamentos destes senhores estão no dito mosteiro, e todos tem esculpidas suas armas nas sepulturas. E ao sagrar deste mosteiro foi hum Bispo de Lamego, e o Bispo de Coimbra, e o Bispo de Vizeu, e [o]Arcebispo de Braga segundo achei em hum letreiro que esta no dito mosteiro, e assi hum Bispo do Porto. Neste mosteiro jazem enterrados hum Mestre de Calatrava de Castella, e hum Joanne Mendes de Berredo222, e sua molher Donna Orraca Affonso, que erão ambos de Portugal, os quais leixarão ao dito moesteiro a aldeya de Martinhanes e a Quinta de Mosteiró. E no dito moesteiro esta ainda hua colcha que dizem que foi do Conde Dom Pedro, a qual tem por memoria (sic223). [Moesteiro de Sarzeda] E vai o dito rio tãobem pela Cucanha que he do moesteiro de Sarzeda, e vay per muitas terras que pertencem ao dito mosteiro, o qual mosteiro224 dis no letreiro dizem que mandou fazer Donna Tareja molher de Dom Egas Monis que em elle está enterrada, e o marido jás em Paço de Souza. E jazem emterrados no dito mosteiro de Serzeda os Coutinhos, e pouco mais ou menos he da renda do mosteiro de S. João. Este mosteiro foi feito na era de mil cento e quarenta e outo annos. As terras deste mosteiro e do mosteiro de Sam João partem ambas assim na serra como na ribeira ambos rego por rego; ambos estes mosteiros estão duas legoas desta cidade, e ambos são de hua Ordem. E dahi vem o dito rio ao longo do [fl. 12] Mosteiro de Recião, que he meya legoa desta cidade, e hé de S. Jorge da Ordem de Santo Loy dos abitos azues, e he hum mosteiro pequeno e muy viçoso de todos os viços. Esta ribeira hua legoa ao redor desta cidade de hua parte e outra todo he ollivais e vinhas de muy excelentes vinhos os melhores da terra, e nogueiras, e outras muitas arvores; e outra legoa para sima he toda soutos onde se mete no Douro, e na Quinta de Mosteiró de que atras faço menção, tem hum canal em que morrem muitas bogas e outro muito pescado. Esta

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Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “(...) no dito mosteiro, e hum seu filho”. Sic. Nas duas versões. 221 Na edição da Academia, p. 569, lê-se: “neste”. 222 Na edição da Academia, p. 569, regista-se o nome “Berreto”. 223 É muito possível que o original do documento estivesse em branco. Parece que há por parte de Rui Fernandes a intenção, que não deve ter concretizado, de descrever aquilo que estaria representado na dita colcha. 224 Na edição da Academia, p. 570, omitem-se as três últimas palavras. 220

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Textos e documentos – Transcrição crítica

ribeira vem a mor parte por terra fragoza, e daqui a duas legoas se ajunta com ella outra ribeira, que vem por Lalim, e tem muitas truitas, e mui saborozas, e vem junto de Tarouca, e em Mondim se ajumtam225. Da Ribeira de Balsemão Ha outra ribeira que chamão Balsemão que passa por redor desta cidade, nasce daqui tres legoas. [Monte de Muro] Esta ribeira atravessa o Monte de Muro digo atravessa a Serra de Monte de Muro toda, e nella nace, a qual serra he neste circuito a principal della. A gente desta Serra são gentes226 lavradores. Suas falas são diferentes das nossas, são falas muito grosseiras, vestem burel, e calção avarcas, que são feitas de correa de vaca, e alguns andão sem carapussas, e os homens e as mulheres pola mor parte são de conciencia, e cazão assim homens, como molheres de trinta annos para riba, e isto pola mor parte, e emquanto nom som cazados nom tem sobrenome, e ainda muito depois de cazados. Polla mor parte vivem muito homem de noventa, cento, e cento e vinte annos, e destes muitos, e nunca em suas doenças se curão com medicos; nom bebem vinho por na terra nom se dar, somente algua ora se o bebem hé por acerto; nom comem senom leite, e pão de centeo o mais das vezes, dado que outras vezes comem carne porque na dita serra nom se da senom muitos e mui fermozos centeos, e da eyra tirão o pão para semear, e elles semeão no fim de Julho, e as molheres malhão, de maneira que o pão esta sempre hum anno nos campos. São grandes lutadores, os homens [fl. 12v] e as molheres, de muita força. Nesta serra ouve hua molher, que chamavão a Pinta, que era de cento e vinte annos, e trazia do mato feixe de lenha com que se cozia hua fornada de pão. Os homens, e as molheres desta serra são grandes creadores de muitas vacas. [Vacas e touros] Ha homens de cento [, cento] e vinte227, cento [e] sincoenta rezes vacuns, de vacas e touros, as quais vacas tem esta maneira: que do mes de Mayo até o mes de Setembro pastão na dita Serra de Monte de Muro, e do mes de Setembro até Mayo pastão na Guandara junto do mar êntre Aveyro e Coimbra que são dezaseis e228 dezacete legoas da dita Serra do Monte de Muro, e são já tão sentidas no tempo, que se o tempo he quente, e seos donos as nom vão buscar muitas se vem por si, e se o tempo he frio, e as não levão per si se vão, e tem lugares deputados no caminho que chamão malhadas onde dormem, e ainda que cheguem sedo ahi se apozentão. Estas vacas são de pezo de sinco, seis, sete arrobas dão os mais fermozos touros que se podem aver, deste pezo; são mui ligeiros em correr, e muito destros em ferir; nunca homem de cavallo entrou com eles em curro, e mui poucos livres os podem filhar, que os nom matem; onde estes touros andão não ouza lobo cometer a manada, como vem homem de préto a tiro de besta se apartão das vacas alguns para o cometer. Estes homens desta serra tãobem crião muitas cabras, e carneiros poucos. O gado desta serra, e as carnes tem avantagem em sabor a todallas carnes.

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Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 571, é omitida esta palavra. 227 Riscada(s) uma ou duas palavras ilegíveis. 228 Na edição da Academia, p. 572, é omitida esta palavra. 226

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Os homens nesta serra tem muitos filhos e filhas, e mais são as filhas que os filhos, e as filhas nom tem linho[s] para fiar polla terra nom os dar, e vem a esta cidade a esta feitoria das lonas d’El Rey nosso senhor e leva hum lavrador hua carrega de linho canimo que torna a trazer fiado em dia de mercado a esta cidade, que as filhas fião andando com os gados, e levão azeite, e sal, e pescado, e outras couzas para sua mantença. [Caça] Nesta serra ha muita cassa silicet perdizes, galinhollas, coelhos, lebres, que vem vender a esta cidade, e assi leite, nata, e manteiga, e tãobem229 trazem a vender [fl. 13] carvão, e lenha. Esta serra tem muitas, e muy excelentes fontes peren[a]es, muy excelentes lameiras, hua mui fermoza veiga por o meo della por onde vem esta ribeira que he de hua legoa em comprido, e tres tiros de besta em largo, e he toda lameiras, e pastos230 sem outro nenhum renovo, mas aqui polla terra ser fria nom pastão senom de Verão; nesta serra não ha nenhua caza de telha, senom todas de colmo, e todas terreiras; tem outras pequenas ribeiras de truitas pequenas de que nom faço menção. [Das neves] Nesta serra ha muita neve, e ao fazer deste tratado no anno de [531231] em dia de São Thome no mes de Dezembro cahio hua neve muito grande nesta serra, e mor, que nunca acordou homem232 de LR, cem annos, que nacerão na dita serra. Foi a neve de tal maneira, que o dia que comessou cobrio as cazas, e muita gente ficou dentro nellas sem terem caminho nem saida, somente os outros de fora lhe hião a fazer caminho ás portas por onde saissem, e a neve continuou tres, ou quatro dias. Os homens e molheres da dita serra tinhão bem que fazer com rodos, e eixadas para tirar a dita neve de sima das ditas cazas colmaças, que nom quebrasem as latas das ditas cazas, e os matarem dentro, e em lugares ouve que foi de dez, doze, quinze, vinte, trinta233 palmos sogundo (sic234) o valle era, e isto d’alto, e aos vinte e seis de Janeiro cahio outra grande neve, e morreu muito gado, e todavia nom poderom tanta neve tirar, que nom caissem muitas cazas nesta serra, e nas Dornas se aconteceo ficar hua corte de bois coberta de neve, e a esmo saberem aonde estava a córte, e minarão per baixo dez palmos polla neve estar rija da geada e codom que so235 sobre ella caira, e polla dita mina tirarão os bois, e pollos gados se nom perderem cavarão as eixadas, e rodos meya legoa, e a legoa para fazerem caminho por onde os ditos gados focem para terra quente por se nom perderem, como de feito se perderom se os ditos lavradores lhe nom acudirão com fenos (?236), de que tem feitos palheiros para o gado meudo comer no semelhante tempo. Todavia esta neve nom coalha237 senom a hua legoa desta cidade para o Sul, e para outras partes, e o circuito da cidade e daqui a Meijão Frio fica sem cobrir neve. E se neste tempo que a dita neve estava na serra acertara de chover se alagarão todas as moendas desta cidade, e a ribeira fizera muito dano porquanto a ribeira atravessa toda esta serra e fizeram-se

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Emendadas estas duas últimas palavras. Na edição da Academia, p. 573, lê-se: “pasto”. 231 No manuscrito regista-se, erradamente, “outenta e hum”. 232 Na edição da Academia, p. 573, está escrito “homens”. 233 Na edição da Academia, p. 573, certamente por lapso, regista-se “300”. 234 Na edição da Academia está escrito “segumdo”. 235 Na edição da Academia, p. 573, é omitida esta palavra que deve estar aqui por lapso. 236 Na edição da Academia, p. 574, está “com feitos”. 237 Na edição da Academia, p. 574, lê-se: “calha”. 230

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 13v] quinze dias que os homens, que vinhão de Coimbra e de Vizeu para esta cidade agardavão que abaixase a dita neve por nom poderem passar. [Moendas] Esta Ribeira de Balsamão vem logo por Magueija, que he do Infante Dom Fernando, e vem dar na faldra desta cidade onde tem vinte e oito rodas de moinhos muito bons afora outras tantas, e mais, que terá para sima, das quaes moendas a cidade he mui bem regida, porque a ribeira moe todo o anno e os molleiros são obrigados a vir buscar o pão a caza, e joeyraremno, e levarem-no ao moinho, e trazerem-no de hum dia ate o outro, e continoadamente andão com asnos polla dita cidade a buscar o dito pão. Somente tem muita ne[ce]cidade d’aver pezo da farinha de que a cidade tem pedido a Vossa Senhoria para que lho aja d’El Rey. [Aldea de Balsamão do Bispo Dom Affonso] E daqui vai a dita ribeira ter a aldea de Balsamão, que he de sete vezinhos donde ella tem o nome, que he da cidade mea legoa, e toda esta mea legoa hé de hum fermozo bosque a que chamão a Pisca, que todo he souto[s] e pumares de diferentes arvores de fruto. [Do Bispo Dom Affonso que jas em Balsamão] Nesta aldea de Balsamão jas emterrado o Bispo Dom Affonso, que foi bispo do Porto em hũa cappella, que mandou fazer nas cazas de seu pay onde naceo, a qual cappella he pequena, e muito bem obrada de pedraria onde está a sua sepultura, e tãobem fez muito bom apozentamento em que viveu e comprou muitas terras que anexou á cappella que ora rendem corenta, sincoenta mil reis. Leixou-a muito bem repairada de vestimentas e mantos de borcado, e de seda, e de calles, e de outros ornamentos, e fes hum honrado testamento e estatuto para a dita cappela para seos herdeiros se regerem. E na segunda outava do Sancto Spirito em que a bandeira da sina d’El Rey nosso senhor desta cidade vai a S. Domingos como adeante [se] dira pollo dito estatuto dão alli ao Alferes huas ferraduras para o cavallo e ao Juis des reis, e a cada conego tres reis affora outra renda que leixou ao Cabbido por lhe dizerem hum responsso sobre sua sepultura no dito dia. E outro seu irmão que chamavão Dom Domingos Martins dizem que fes o Mosteiro de Recião, de que atras fas menção, o qual Mosteiro de Receão dizem ser primeiro de freiras, e hum bispo desta [fl. 14] cidade que veo de Roma o mudou á Ordem de Santo Loy porque novamente se acostumava em Roma. Este Bispo Dom Affonso era sobrinho de Dom Vasco Bispo de Lisboa, que dizem que fez o Morgado de Medello e a Torre do Bispo; este Bispo Dom Affonso morreu na era de mil [e] trezentos segundo o letreiro da cappella, o qual sendo Bispo do Porto, que he hua tão nobre cidade neste Reino, sua propria may, que he a terra, o chamou como no prologo deste tratado tenho dito, e elle leixando seu bispado, sogeito como filho obediente á dita may, se veo áquella aldea de sete vezinhos comer suas rendas, onde faleceo. E deste bispo procedem os Affoncecas os quaes ministrão a dita cappella, e de Medello descenderom estes bispos como adiante faço menção.

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Couto de Medello Medello foi hua aldeya termo desta cidade em a qual238 aldeya viveu hum lavrador que chamavão Affonso Domingues, e ouve hum filho, que chamavão Vasco Dominguez; este por seu saber veyo a ser mestre do Principe filho d’El Rey Dom Sancho e dipois foi Bispo de Lixboa ao qual chamavão Dom Vasco. E sendo bispo pedio a El Rey que lhe fizece aquele lugar do seu nacimento couto para onra de sua geração. El Rey ouve sobre isso concelho, e saio que nom podia ser provido por ser muito prejudicial o dito couto á sua cidade de Lamego. Tornou a fazer outra petição allegando que tinha feito muito serviço ao Regno, e que fora a Roma certas vezes, que ‘aquele tempo avião por muito hir a Roma, e outros servissos que allegou, e239 com a segunda petição lho fizerom couto. Dipois disto morreo o dito Bispo Dom Vasco, e fes hum testamento, que elle por nam ter herdeiros leixava sua alma por sua herdeira á qual leixava que lhe fizesem hũa cappella na Se de Lamego de sua patria, e he do ourago de Santa Catarina, e leixou aa Torre do Bispo certos bens que tinha em Torres Novas, e o Couto de Medello, e que na dita cappella se dicesem cada somana duas missas, e fosse ministrador della Giraldo Domingues seu sobrinho filho de hua sua irmam conego na Se d’Evora, e por morte do dito Giraldo Domingues a amenistração se tornace aos herdeiros da linha de sua [fl. 14v] may, e avendo cllerigo se dese antes que a leigo, e nom avendo barão a herdace molher, aquella que mais chegada fosse ao parentesco, o qual Giraldo Domingues conego d’Evora foi dipois Bispo d’Evora; e ao tempo de sua morte fez outro testamento, em que mandou que se cumprisse o testamento de seu tio Dom Vasco, e mandava que na dita cappela de Sancta Catarina se dissesse cada dia hua missa, e ouvece dous cappellais, e mais leixava a dita cappela a apresentação do Mosteiro de Bouças que era sua cappella, se tornace á linha de seu tio a qual cappela e couto depois teverão muitos herdeiros, e veo ter a hum pobre escudeiro que vivia no dito couto de Medello, e manistrava a cappella de Santa Caterina, ao qual por sua pobreza se lhe levantarão com a Torre do Bispo, e com as terras de Torres Novas, e outras da cappella, e elle era senhor do couto, e estando assim veo Gonçallo Vas Coutinho, que antão era Marichal de Portugal, o qual veo ter a esta cidade, e240 nom sei se era já alcaide mor della, e falou com o dito escudeiro e lhe disse que elle não podia rezistir para aver as terras e rendas da dita cappella, que se elle lho quizese satisfazer e leixar o dito couto e cappella, que elle rezistiria e averia a dita cappella digo averia as terras e couzas que a elle pertencião241, o qual escudeiro lhe leixou a dita amenistração do dito couto e cappella. O descambo como foi se arrendasse a dinheiro não o achei somente o dito marichal ouve a sobredita cappella e tirou a Torre do Bispo, e terras de Torres Novas, e a aprezentação de Bouças que andava sonegado e ficou aos Coutinhos com o antigo couto de Loumil que ja tinha242, e o dito Morgado de Medello e cappella terá de renda perto de tres contos de reis. E acho que deste Affonso Domingues lavrador desta nossa aldea descenderom243 tres bispos silicet seu filho Dom Vasco Bispo de Lixboa, e seu neto Dom Giraldo Bispo d’Evora, e Dom Affonso que foi Bispo do Porto, que tãobem dizem ser244 seu netto, que jas em Balsamão, e fez o estatuto da cappella de Balsamão pello modo do de Medello e diz em elle nom avendo herdeiros245 de sua linha se volva aos herdeiros de seu tio Dom Vasco Bispo de Lixboa, e assi diz que os responsos e missas que lhe disserem na dita cappella seja por sua alma, e polla alma de seu tio Dom Vasco Bispo de Lixboa. Por este lugar de Medello passa o Ribeiro de Fafel de que adiante faço menção.

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Na edição da Academia, p. 576, a frase está escrita deste modo: “(...) desta cidade. A qual (...)”. Na edição da Academia, p. 576, é omitida esta palavra. 240 Na edição da Academia, p. 577, é omitida esta palavra. 241 Na edição da Academia, p. 577, lê-se: “pertencia”. 242 Na edição da Academia, p. 577, lê-se: “tinhão”. 243 Emendada esta palavra. 244 Na edição da Academia, p. 577 a frase é assim: “(...) que tambem me dizem ser (...)”. 245 No singular na edição da Academia, p. 577. 239

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 15] Esta Ribeira de Balsamão se vai meter em Baroza trez ou quatro tiros de bêsta da dita aldeya, e dizem que hum bispo a quizera mudar por esta cidade na Ribeira da Magueija para vir dar em Fafel, o que se poderá fazer com ajuda d’El Rey, e fara grande nobrecimento desta cidade. Esta ribeira tem muitos bons bordallos e muitas truitas as mais saborozas de toda a Beira, ainda que sam pequenas e tambem tem alguns pégos em que andão grandes truitas. Do Ribeiro de Fafel Ha outro pequeno ribeiro que vem pelo meo desta cidade que chamão Fafel donde se regão os renovos e ortas da mor parte desta cidade e doutras aldeyas; nace daqui a mea legoa em Penude, e vem pollo lugar de Medello cabeça do morgado, que he perto desta cidade entra polla povoração da Sé arredor dos Paços de Vossa Senhoria e do seu fermozo terreiro. Este ribeiro ainda que he pequeno he mui furiozo quando vay de cheya, e depois da partida de Vossa Senhoria tem dados fortes combates ao seu muro do terreiro, em tanta maneira que o derribou por tres lugares dezejando-se tornar ao lugar donde o Vossa Senhoria o246 mandou mudar por onde o seu terreiro ficou de lomgo cento e seis varas, e de largo outenta e seis, que autoriza bem, e emnobrece esta cidade. Este rio polla mór parte he de fontes mui excelentes, e todo o anno moe somente quando lhe tomão a agoa para regar e nom por nom ter agoa. Tem quatro lagares d’azeite e outo rodas de pão, allem dos que digo da Ribeira de Balsamão, e tem dous pizois dos bordates d’El Rey nosso senhor. O qual rio he a melhor agoa para curar pannos que outro, e com elle se curão os ditos bordates, e alguns fustães, que se aqui tambem fazem nos emgenhos dos bordates, omde se tãobem fazem bocachins. Este ribeiro se vai meter no Rio de Balsamão tres tiros de bêsta dos passos de Vossa Senhoria; donde nace, ate onde se mete em Balsamão todo he de hũa parte e doutra soutos, e nogueiras, e ollivais, e pumares, e órtas; este rega os fermozos campos de Coura, e247 tem alguns poucos escallos pequenos. [fl. 15v] Do Ribeiro de S. Martinho Ha outro ribeiro em o concelho de S. Martinho de Mouros que nace no simo do concelho silicet agoas vertentes da Serra do Monte do Muro para o Douro. O qual ribeiro donde nace aonde se mete no Douro he hua legoa, e he pollo mais fresco valle que se pode achar, todo muito cerrado, e parece-se muito com Cintra, somente tem mais basto arvoredo. Todo este valle nom he senom castinheiros, e nogueiras, e aveleiras, e larangeiras, e outras arvores d’espinho mui excelentes, e muitos bons pumares, e lameiras. Dá o mais fermozo trigo que ha em toda a Beyra, muitas uveiras; homem [há] que colhe quatrocentos, quinhentos almudes de vinho amaral d’arvores, e grande soma de nós, e castanha e dali saem muitos e mui fermozos mastros de castinheiros, e muito tavoado, que todo se vai carregar ao Douro. [Morgado dos Cardozos] No dito valle esta hum lugar que chamão Cardozo onde está hum morgado donde procedem os Cardozos deste Reyno, tem muitas e muy honradas quintas, e cazais no dito valle, e em outras partes da Beira, e agora hé de Azoil (sic?248) Cardozo, e Vasco Cardozo seu filho. Neste valle há as mais fontes que em todo o Regno se podem achar em tão pequeno compasso; e isto

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Na edição da Academia, p. 578, é omitida esta palavra. Na edição da Academia, p. 579, é omitida esta palavra. 248 Na edição da Academia, p. 580, lê-se “Aznil”, o que também é duvidoso. 247

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

hé no concelho de São Martinho de Mouros, que he do Illustrissimo249 [Infante] Dom Fernando, e a igreja he da sua cappella de Santa Caterina e he a igreja muito antiga segundo parece em seos edificios, e tem hũa torre muy honrada e a igreja he edificada como Sé, e me parece[m] edificeos mouriscos. A esta igreja hé annexa outra de Monte de Muro da principal parte da dita serra, a que chamão Gozende. [Jantar de Monte de Muro] Tem todos os moradores de Monte de Muro, paes e filhos, em dia de São Martinho, que se fas hua festa250 na dita igreja hum gentar em que hão de dar a cada hum tres igoarias: se he dia de carne, vaca, carneiro, marram, e mostarda, e magusto, se hé dia de pescado hão lhe [de] dar peixota, raya, e sardinhas, e azeite, e vinagre, e nozes, e vinho que os farte, e em dia de Natal para beberem na sua igreja treze almudes de vinho, e este partido me parece que fizerão por darem o padroado a dita igreja de São Martinho por fazerem a sua igreja annexa á dita igreja de São Martinho. Este ribeiro de que assima faço [fl. 16] menção que passa pello valle de S. Martinho se chama Bastança. Este ribeiro tem nesta legoa vinte e sinco moendas que moem todo anno. [Córrego] Item na parte dallem Douro no dito compasso ha outra ribeira que chamão o Córrego da grandura da251 Baroza, e tãobem se passa em barca ao tempo que pasa Baroza. Esta ribeira nace dentro em Villa Pouca d’Aguiar em hua fonte no sima do lugar, vem por todo o Valle d’Aguiar, que he bom e grande, e vem o252 redor de Villa Real, e vem-se a meter no Douro em a Regoa defronte da253 Baroza hua legoa desta cidade, e donde nace, adonde se mete no Douro são sete legoas. Nom faço menção doutros ribeiros digo legoas; tras muitas truitas e bogas. Nom faço menção doutros ribeiros que neste se metem por serem pequenos, e254 ainda que trazem alguas truitas pequenas. Da Ribeira de Sermanha255 Item ha outra ribeira que chamão Sermanha que nace na Serra do Marão, mete-se no Douro entre o barco do Moledo e do Carvalho, e tras truitas, e bordallos muito bos. Ha outra ribeira que chamão Teixeiróo, que vem por hum lugar a que chamão a Teixeira, e nace arriba do lugar, caminho de São Gonçallo d’Amarante, o qual vem por Meijão Frio por muito fragoza terra. Hé muito viçosa ribeira de pumares, arvores de espinho, soutos, nogueiras e tem muito boas truitas, e muito boas bogas, bordallos, e vem-se a meter no Douro.

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Na edição da Academia, p. 580, é omitida esta palavra. Na edição da Academia, p. 580, lê-se “feira”, o que não nos parece correcto dado o sentido do texto. 251 Na edição da Academia, p. 580, lê-se: “de”. 252 Na edição da Academia, p. 580, lê-se “a”. 253 Ver nota 123. 254 Na edição da Academia, p. 581, é omitida esta palavra. 255 Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “Cermenha” e continua coma mesma forma no corpo do texto. 250

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titullo do numero e soma dos moradores deste compasso Item determinei a somar quantos povoadores ha neste compasso, e para o melhor saber pus os concelhos todos cada hum por si e quantos moradores tem, os quais concelhos tirei alguns delles por as somas que El Rey nosso senhor mandou fazer, e outros por informação dos sobreditos concelhos dos moradores delles. [E] são v mil cto e dezasseys moradores neste compasso, e por razão e novreamento256 todos ouverão de ser termo desta cidade, e fora hua bem nobre cidade, e mayor, e mais rica se tivera este termo, e a renda das terças que rende257 a este concelho rendera a ella para seu nobrecimento, e muita parte destes concelhos em tempo antigo forom do termo da dita cidade, e por ella andar então regida por offeciais macanicos se perderom por nom acudirem [fl. 16v] a isso; e pera esta cidade ser mayor, e mais bem concertada de muitas bemfeitorias devia El Rey nosso senhor fazer merce das terças destes concelhos para obras desta cidade, as quais terças rendem bem pouco dinheiro, que pode ser ate corenta mil reis, e com este rendimento cada anno se faria hua bemfeitoria assim para fazer recios de que tem muita necesidade, como de praça que ha tres annos que nella fazem e polla renda ser pequena se nom pode acabar, porque a cidade tinha de renda dez mil reis e agora com os tombos que fes o Lecenciado Francisco Sanchez rende xxxi mil258 reis, e daqui se tira ainda a terça, e achou-se por hua inquirição que tirarão que o moesteiro de S. João lhe tem tomados quarenta ou sincoenta mil reis de renda dos seos maninhos, e polla cidade nom ser bastante para suprir a demanda, e assim por poerem suspeiçois ao Lecenciado nom se seguio a demanda e pera finta nom tem maneira porque a mayor parte dos povoadores som previligiados e os pobres, que nam tem previlegio pagão todo, para o que El Rey nosso senhor devia poer estas fintas em impozição de hum ceitil na carne para ricos e pobres pagarem antes que em fintas do concelho polla muita opressom dos pobres. Os quais concelhos e povoadores sam os seguintes. Titulo do numero da gente deste circuito [D’El Rei] Item a cidade e termo [tem] ..................................................................................................................... mil iiiic xi vizinhos [De Sam Joham] Item Sande tem . .............................................................................................................................................. Lvi [vizinhos] [D’El Rei] [Item] Valdigem [tem] ............................................................................................................................... cto Rvi [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Armamar [tem] .................................................................................................................................... iiic Ri [vizinhos]

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Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “nobrecimento”. Na edição da Academia, p. 581, lê-se: “rendem”. 258 Na edição da Academia, p. 582, a cifra indicada é: “36:000”. 257

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[D’El Rei] Item Villa Seca [tem] . .................................................................................................................................. xxxvi [vizinhos] [D’Antonio Pereira] Item Lumiares [tem] ............................................................................................................................. cto L xxxix [vizinhos] Alem Douro [De Vossa Senhoria] Item Canellas [tem] ......................................................................................................................................... cto [vizinhos] [Do Bispo do Porto] Item o Pezo [tem] .............................................................................................................................................. Lx [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Fontes [tem] ........................................................................................................................................... xxv [vizinhos] [De Pedro da Cunha] Item Penaguião [tem] .................................................................................................................................. vc Lta [vizinhos] [D’El Rei] Item Oliveira [tem] ........................................................................................................................................... xx [vizinhos] [Beatria] Item Cidadelhe [tem] ........................................................................................................................................ xx [vizinhos] [Beatria] Item Meijão Frio [tem] ..................................................................................................................................... iic [vizinhos] [Beatria] Item Villa Marim [tem] ................................................................................................................................ L xxx [vizinhos] Aquem Douro [Do Ifante Dom Fernando] Item São Martinho de Mouros [tem] ............................................................................................................ vc Lta [vizinhos] 98


Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 17] [Do Ifante Dom Fernando] Item Magueija [tem] .................................................................................................................................... xxxvi [vizinhos] [Do Ifante Dom Fernando] Item Medello [tem] ............................................................................................................................................................

259

[D’El Rey] Item Gozende [tem] ......................................................................................................................................... Rta [vizinhos] [Beatria] Item Campo Bemfeito [tem] ...............................................................................................................................................

260

[Beatria] Item o Mezio [tem] .......................................................................................................................................... xxx [vizinhos] [Beatria] Item Britiande [tem] .................................................................................................................................... cto xx [vizinhos] [D’El Rei] Item o couto da Çarzeda [tem] . ............................................................................................................... iic L xxx [vizinhos] [D’El Rei] Item Tarouca [tem] ...................................................................................................................................... vc Rta [vizinhos] [D’El Rei] Item Lalim [tem] .............................................................................................................................................. Lta [vizinhos] [Do Ifante Dom Fernando] Item Mondim [tem] ....................................................................................................................................... iic xx [vizinhos]

259 260

Em branco. Em branco. 99


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Da soma dos hi moradores Assim que somão os moradores deste circuito de duas legoas em compaço, e261 d’arredor a soma sobredita os quais tantos por tantos nom se achara no Regno nem em Espanha que tenhão tantos filhos e filhas, e são mais as filhas que os filhos porque em nenhua parte se achara onde as molheres tanto pairão, nem que tanto se criem, porque no dito circuito há molheres que parirão tres creanças de hua emprinhidão. Ha muitas pessoas que tem dez, quinze, e dezaceis262 filhos e filhas de hum marido. E deitando ao dito compasso a hum por outro a sinco filhos somão xx[v] mil vc L xxx263 filhos, e isto mais se ham de achar de sinco para sima que de sinco para baixo porque nesta cidade ouve molher que avera vinte e quatro annos que he falecida, e hoje são vivos della bem trezentas pessoas todas descendentes filhos e filhas, netos, bisnetos, chisnetos, e a mor parte destes são femeas, e ella nom teve mais de hum só marido. Do insino dos mossos, e moças do Bispado Tem outra cousa, que os mossos e moças da parte daquem do Douro, e assi todos os outros deste Bispado de Vossa Senhoria de sinco annos para sima todos sabem e são mui sabidos nos feitos de Deos que nom ha moço nem moça assim das aldeyas como da cidade como os que andão com o gado no monte que não saibão o Pater Noster, [e] Ave Maria, e o Credo, e a Salva Regina, e os Mandamentos, e ajudar á missa em modo que os filhos ensinão aos paes e mãis e isto no Bispado de Vossa Senhoria pellos mestres e cartilhas que Vossa Senhoria mandou poer em todas as igrejas do seu Bispado, que todolos dias á Vespora fazem vir todos os moços e moças da freguesia, e os ensinão. O qual he hũa obra mui [fl. 17v] santa que nom há pessoa que nom folgue de ver o ensino e o saber das crianças principalmente nas aldeas e nos montes onde nom sabião o Pater Noster senom des que Vossa Senhoria os mandou ensinar e Vossa Senhoria tem visto ser assim porque a sua meza os mandava vir os da cidade e termo264, e via todos como erão ensinados tão pequenas criansas, e acerca desse teor sam todos os do seu Bispado. Dos porcos Item no dito compasso podem criar cada morador dois porcos hum por outro e hua marram, e isto he o menos, porque ha muitos homens que cria cada hum déz, doze porcos, e quatro e sinco mais por menos; deito isto porque alguns não crião a dous porcos e hua marram, que somão x mil iic xxxii porcos os quais se crião no dito compasso, e v mil cto xvi marrans, são as mais saborozas carnes do Regno por serem cevados com castanha. Estes porcos os mais delles se vem a vender a esta cidade em hum mercado que se fas cada somana á segunda feira, e vendem-se desde dia de Santo Andre ate dia de Janeiro (sic), e assim vão alguns a hua feira de São Nicoláo que se fas em hum lugar que chamão Canavezes, que he daqui sete legoas, que se vendem para Entre Douro e Minho, e para a Beira, e tãobem vão porcos e marrans para a cozinha d’El Rey nosso senhor, e tãobem muitas marrans e muitos prezuntos vão para a corte e pera outros lugares.

261

Na edição da Academia, p. 585, omite-se esta palavra. Na edição da Academia, p. 586, lê-se, “18”. 263 Esta cifra poder-se-á explicar pela soma de algum dos valores que no documento aparece em branco (como Medelo ou Campo Benfeito). Se somarmos os vizinhos indicados por Rui Fernandes chegaremos à cifra de 5 099 o que, multiplicado por 5 dá um total de 25 495 habitantes, o que se aproxima bastante do número por ele indicado. 264 Na edição da Academia, p. 586, lê-se: “termos”. 262

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Item rendem os dizimos foros das novidades destas duas legoas aos prellados e senhorios della sinco contos de reis pouco mais ou menos, que tambem fica polo meudo e no265 meu poder; contando as rendas que tem o Infante Dom Fernando neste compaço o anno que as arrendou Nicolao Rodriguez que he o mor crecimento que nunca tiverão. Dos rendimentos dos portos e sizas a El Rey nosso senhor Item rende a El Rey nosso senhor as sizas e portos desta terra silicet os mercadores que vão a Castella tres contos de reis nas sobreditas duas legoas, ainda que jaa agora nom rende tanto, que diminuirão bem o terço [fl. 18] pollas rendas que Sua Alteza mandou dar em trebuto real, as outras abaterom, e os que tem os tributos todos trabalhão por se tirar delles e nom som contentes, e El Rey nosso senhor nisso perde porque hua siza de tributo dava quatro d’arredor. Porque ou todas ouverão de ser de tributo ou todas arrendadas, porque no tributo mal pollos que pouco podem, porque os poderozos pagão o que querem e alivião a que[m] querem, e o anno que o homem hé lansador he bem servido, assim que somão viiiº (?) outo (sic?266) contos o destas duas legoas; e este rendimento que digo são affora o mais que com isto se aqui recolhe de fora por ser cabeça do Almoxarifado e do Bispado. Item o almoxarife de El Rey nosso senhor quatro contos de reis267 ............................................................................. iiii ctos. Item o almoxarife [do Infante] Dom Fernando [quatro contos] . ............................................................................... iiii ctos. Item o feitor de Vossa Senhoria dous contos e trezentos mil reis ........................................................................ ii ctos iiic mil. Item: os mosteiros de São João de Tarouca e [da] Sarzeda hum Conto e duzentos mil reis ..................................................................................................................................... i cto iic mil. Item o Cabbido com o grosso ............................................................................................................................................ 268, afora Comendas de Rodes, e outras comendas e igrejas que aqui nom faço menção porque entrão na conta dos sinco contos de reis. E todo este dinheiro vai para fora tirando se he algum de alguns poucos abbades e do Cabbido porque o Dayado e Tizourado, que he do Cabbido se come fora, e assi do mosteiro de Sarzeda se come269 aqui, e todo o mais dinheiro se vai daqui para fora somente ate agora se comia nesta cidade outocentos mil reis de lonas que se fazião para El Rey nosso senhor, que saya das sizas do dito compasso e se repartia por fiadeiras, e tascadeiras, e debadeiras todo pello meudo, que hé regateiras, e panadeiras, ate os prezos nisto ganhavão de comer em debar, e almocreves em carretos, e homens pobres, que não tinhão officios aprenderão a tecelães das ditas lonas com que ate ‘gora se mantinha e este anno passado, que não ouve contrato pollas pazes de França, ficão desbaratados, e se as obras que Vossa Senhoria mandou fazer [nam foram,] muitos pereceram polla terra ser muito pobre de dinheiro, e os mais dos annos lhe levão os mantimentos para Lixboa e para outras partes. [fl. 18v]

265

Na edição da Academia, p. 587, está assim: “(...) polo meudo em meu poder”. Na edição da Academia, p. 588, não se repetem os valores. 267 Na edição da Academia, p. 588, são omitidas estas duas últimas palavras. 268 Em branco. 269 Na edição da Academia, p. 588 lê-se: “comer”. 266

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Do tratado (sic) dos bordates, fostoes, e bocachins Item ha outro tracto de El Rey nosso senhor de bordates que [se] soiaom a trazer de França, e agora se fazem nesta270 cidade e circuito, que he muito bom para a dita terra porque na dita cidade e circuito averá duas mil tecedeiras de pano de linho e [de] estopa as quais tecem aqui os ditos bordates; e esta aqui na caza da dita feitoria hum fermozo bronhidor dos bordates e [presas271] monstruozas, para ver andar, e assi ha dous pizoes, que Vossa Senhoria vio, em o qual bronhidor se fazem tãobem bocachins, e fustois como atras digo. Do citio da terra e povoradores della Item esta terra he muito montuoza pella mor parte he toda muito aproveitada, que em ella nom ha pedaço que nom seja aproveitada, principalmente para o Douro, e os homens são tão bemfeitores272 que ás fragas altas levão o cesto da terra ás costas para plantarem as parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieyras, e todo outro arvoredo e todas as estradas estão cobertas de fruiteiras, e videiras onde desde o mes de Abril ate o mes de Outubro os homens tem sempre em que deitar mão de fruitas; e hé sabido, que nestes mezes ha despeza he muito menor de pão nesta terra que em outros mezes. Há tambem muitas ervilhas e favas semeadas, que tãobem hé mantença. E os caminhantes comem de tudo isto largamente pollas estradas sem dinheiro, porque os povoadores desta terra são muito maviozos e de muito guasalhado, e dam-lhe largamente de comer do que tem, e melhor que nenhum de Alentejo, nem da Estremadura. Em este circuito não poderá homem andar, que a tiro de bêsta nom ache agoa e sombra de arvores de fruito pera comer. E por esta terra ser tão fragoza serve-se com bestas d’almocrevaria que averá bem mil e quinhentas bestas muares de carga de que a cidade hé bem servida de pescados frescos e doutras couzas como ao diante [se] dirá. E assi há muitas aves silicet roisinois, calhandras, estorninhos, melros, milheiras e outras muitas, de mui soaves e doces cantares [fl. 19] que de noute e de dia nom leixão de cantar em o V[e]rão. Das trevoadas Esta terra he muito perigoza de trevoadas principalmente no mes de Mayo, que acerta dia muito sereno em que vem toda a escuridade273 do mundo e cae mui grande pedra, pedras que sam dellas tamanhas como óvos de passara, e cai tanta274, e em tanta cantidade, que no lugar onde cae estrui todos pães dos agros, e todas arvores, e todas as vinhas, e onde acerta leva o ramo ao chão, e estas trevoadas nom vem senom no Verão, e cai com ellas muitos rayos de coriscos, que matão gente, e acerta em castinheiro que o queima até o chão, e nom dura senom hua ora, ora e meya, e quando dura duas oras he muito, e ella pasada fica o tempo sereno como que nunca chovera. E esta trevoada muitas vezes nem empece mais de hũa freguezia ou hum tiro de bêsta arredor, mas o lugar onde chega fica estroido por todo aquelle anno de todos os renovos, e muitos lavradores ficão perdidos. E estas trevoadas hé certo, que nom podem mais vir que do dia que a primeira começa ate nove dias, e está exprementado, e hé certo, e muitas vezes acertão sinco, seis trevoadas nestes nove dias.

270

Na edição da Academia, p. 589 lê-se: “na dita”. Opto por seguir aqui a lição da Academia, p. 589, em vez de “pisoas” como está no manuscrito, pois, logo de imediato, o autor refere-se a estas. 272 Na edição da Academia, p. 589, lê-se: “tambem feitores” o que se me afigura menos correcto. 273 Na edição da Academia, p. 590, lê-se: “escuridão”. 274 Na edição da Academia, p. 590, são omitidas estas três últimas palavras. 271

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Textos e documentos – Transcrição crítica

E em diversos lugares ha muito grandes navoeiros nesta terra, e Riba do Douro principalmente nesta cidade que nunca no mes de Dezembro, e parte do de Janeiro, nenhum anno erra, e hé nevoa emcerrada, que a hum jogo de barreira se nom ve hum homem ao outro. E alguns annos acerta de vir outra nevoa tão cerrada quando os trigos comessão a emgraecer. Esta nevoa acerta, que se o Douro vem barrento naquelle tempo por via das agoas de Castella se perdem todollos trigos de Riba do Douro por cazo daquella nevoa trazer o bárro do Douro e se meter no cazulo da espiga do trigo onde havia de estar o grão. E quando vem a o segar acham a espiga chea de barro sem grão, e isto nom faz mais nojo que agoas vertentes ao Douro, e isto indo o Douro barrento, porque se nom vai barrento ainda que ája nevoa nom fas nojo, e assi estroi os vinhos, e azeites. Do assento desta cidade Esta cidade comquanto hé abastada esta o assento della muito mal concertado silicet [fl. 19v] o acento das vivendas, dado que este em bom citio porque está em tres bairros: hua he a principal vivenda da Praça onde acodem todas as mercadorias e vivem os mercadores, e se fazem os mercados, e onde hé o trato todo e onde está a Audiencia, e Rollação sobr’ella, e pouzão as justiças seculares. Outro he o bairro da Sé que d’antiguidade se soia de [chamar275] o Couto da Se porque [era276] dos bispos, onde vivem os conegos, e benifficiados, e outras nobres pessoas, onde estão os Paços de Vossa Senhoria, e com o fermozo jardim, e grande terreiro, e cerco de muro que Vossa Senhoria mandou fazer, e assim com o posso e carreira, e com outras mui fermozas bemfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas, que he a melhor couza da cidade, e tãobem lhe da muita graça o rio neste bairro da Sé, e em cada parte que cavão por pouco espaço achão muita agoa, como Vossa Senhoria sabe polla agoa do seu muy fermozo Poço da Bomba que mandou abrir, onde achou dous muy grandes tornos d’agoa para o tanque. Ha outro bairro no meyo destes em mais alto aonde está a fortalleza desta cidade em que morarão cincoênta vezinhos; he muito forte, tem alguns edifficios dentro silicet hua muy grande cisterna d’aboboda de muita agoa, e hum mui alto poço, que chamão o Poço do Emgenho mui alto, que se tirou terra segundo parece de que se encheo hua torre da Rollação, e tem pera hua parte hum muy fermozo castello em que o Inffante Dom Fernando tem seu alcaide, porque elle he alcaide mór desta cidade, e dentro do dito castello estão os prezos. Este castello tem hua muy forte torre da menagem; no meyo desta torre está hua muy fermoza janella d’assento que o Conde de Marialva mandou fazer; e vindo El Rey Dom João que Deos tem, a esta cidade o conde lhe perguntou que parecia a Sua Alteza daquella janella. El Rey lhe respondeu que mais soubera quem a abrira, que quem’na mandara abrir. O Inffante da ‘alcaidaria della e as couzas necesarias para as prizois; tem muy grandes dereitos d’alcaidaria, e muita renda. Ao pé do castello estão os assougues de que o Inffante tem os dereitos que em seu [fl. 20] titulo se dirão, e de suas rendas se fazem, e repairão, e poem talhos. Dentro da cerca estão huns muy fermozos paços caidos; forão do Conde de Marialva. Do regimento dos almocreves Nesta cidade há [hum] muito bom regimento que nom ha outro tal em Portugal ácerca dos almocreves. Nesta cidade e termo avera bem cem almocreves, todos são iscriptos na Camara, e cada hum delles he repartido a dar no anno seis dias de giro cada dous mezes hum de pescado fresco, de maneira que são repartidos para cada dia de todo o anno dous almocreves, e

275 276

De acordo com a edição da Academia, p. 591. No manuscrito está “chamão”. De acordo com a edição da Academia, p. 591. No manuscrito está: “hé”. 103


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

estes hão-de trazer todos os dias pescado fresco dos portos do már que são a quinze, dezasseis, e dezoito legoas, e se nom achão fresco trazem seco e certidão como nom havia fresco, e som repartidos per todos os portos do mar, de maneira, que muitas vezes nom há [���������������������������������������������������������������������������������������������������� ����������������������������������������������������������������������������������������������������� peixe����������������������������������������������������������������������������������������������� ]���������������������������������������������������������������������������������������������� fresco no Porto, e em Matozinhos, e o temos nesta cidade de Galiza, e de Aveiro, e muita sardinha fresca, como ora temos aqui de Galiza, e no Porto a nom há, e isto he allem doutros almocreves que continuamente andam a ganhar, e quando nom tem seos giros por seu proveito o vão a buscar, porque nesta terra, como atras disse há muito sumagre, e muito vinho, e muita castanha, e muita nóz, e muito azeite que os almocreves levão aos portos de Portugal e de Galiza, e trazem retornos que nunca se acha porto de mar sem almocreve de Lamego. Os pescados que aqui vem do mar sam os seguintes: mui fermozas pescadas frescas e secas, muitos ruyvos, muitos roballos da costa, e muy grandes congros, congro de duas arrobas, pescada de vinte arrates, muitas rayas, muitos caçois, muita toninha, e lingoados, e solhas, e badejos, e muito marisco. O preço dos pescados nom ponho aqui; achar-se-há no tratado na taxa e regimento da Camara que aqui pus. Do regimento das carnes No regimento das carnes ha outro modo que nom vi em este Reino, porque aqui se cortão mui grossas carnes de bois de Bayão que levão todas as carnes de boy em sabor, que he daqui a tres legoas, e outros d’Antre Douro e Minho; a taixa [fl. 20v] destes hé a tres reis por arratel, e por provizão d’El Rey que para isso tem a cidade, para poder comer as carnes daquellas partes277 pella taxa de lá. Ha outra taixa d’El Rey nosso senhor da comarca da Beira a dezaceis ceitis o [a]rratel, e sem embargo disto nom se corta toda a este preço, ainda que seja a dezaceis seitis se nom está em alvidro dos almotaces, e a carne boa dão a dezaceis seitis, e a outra d’i para baixo segundo he a catorze septis, e a quinze, e a dezoito, digo, e a treze; e isto nom vejo em nenhua parte senom todas a hum preço as gordas e magras. Talha-se carneiro d’Outubro ate São João a tres reis e meyo o arratel, e de São João ate Outubro a tres reis. Talhão-se crestões capados a catorze ceptis e a cabra a dous reis. Nesta cidade ha dez ou doze carniceiros que todos sam obrigados na Camara darem carnes em ‘bastança, ainda que neste anno o nom fazem por nom lhe quererem dar as carnes gordas e magras todas a hum preço. Ha hi tres assougues silicet hum da cidade em que ha sete, outo carniceiros e outro do Cabbido, que tem hum carniceiro e outro dos mesteres que tem outro carniceiro. O Cabbido e mesteres tem repartidores no assougue silicet o Cabbido poem hum conego que reparte cada somana, e os mesteres hum dos vinte e quatro dos mesteres que reparte cada mes, e todavia nem hum delles nom pode repartir sem o almotace da cidade lhe ir poer o preço das carnes. As mais couzas do regimento desta cidade nom falo aqui porque vão adiante no titulo das taxas e regimento desta cidade. Os cidadãos della os mais são de antigo genero e de boa linhagem, e delles fidalgos, que tem renda e vivem por suas lavranças ao modo dos antigos Romãos. Os quais renovos são os que neste tratado digo e nom duvido que alguns homens baixos se metem ás vezes por almotaces por aderencia o que em todas partes já vejo fazer. [fl. 21] [Donde a cidade tem o nome] Esta cidade dizem os antigos que se chama Lamego por em ella aver hua arvore no castello a que chamão Lamegueiro, e certamente bem o demo[n]stra pollas armas delle que são hum lamegueiro metido em hum castello, e doutra parte o Sol,

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Na edição da Academia, p. 593, lê-se: “daquella parte”.

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Textos e documentos – Transcrição crítica

e doutra a Lua com humas estrellas. As mais couzas delle sam feitas de mouros, e tem alguns nomes aravicos como he hua igreja nesta cidade a que chamão Almacave que he nome aravico, e ha muitos edificios antigos em quintas de redor mouriscos. [Sam Domingos de Queimada] Ha em esta cidade a hua legoa hua igreja mui nobre que vem a ser278 a Ermida de São Domingos de mui fermozo talho de pedra em hum muy alto monte donde se ve muita parte de formoza terra. A qual ermida dizem que mandou fazer El Rey Dom João, que Deus tem, o segundo deste nome. He de muitos millagres. Ha hi pessoas que nom podem aver filhos, e a elle veo El Rey Dom Affonso antes que ouvece o Principe Dom João, e depois veyo El Rey Dom João antes que ouvece o Principe Dom Affonso, e assim vem muito grandes senhores. [Tem279] muitos votos nas outavas do Sancto Espirito, principalmente desta cidade, que cada rey que reyna dá hua bandeira das armas da cidade com hua muy fermoza batalha. Vão la com todos os moradores da cidade, ainda que previlligiados sejão, muita gente de cavallo e muita de pé. Lá tinhão hum grande jantar que ora se tirou polla Ordenação; vai o Cabbido, e raçoeiros d’Almacave, e frades onde todos tem renda para esse280 dia comerem, e assim vão de todos os concelhos a duas e tres legoas deste circuito cada hum a seu voto. [Foros do Infante] Hum so erro contarei deste circuito, que he muito foreiro per muitas partes, silicet ho281 Inffante Dom Fernando tem muita parte nesta cidade, que não acharão homem de raiz em ella que nom seja seu foreiro, e tem muitos direitos d’alcaidaria; tem seis arrates de carne de direito de todo boy ou vaca que em esta cidade ou termo se matar, e isto de tempo antigo, e per foral erão nove costas de cada boy ou vaca de hua mão [fl. 21v] travessa e isto da augagem282, e se concertarão que focem seis arrates de carne de qualquer parte ou logar do boy o pedisem283; e a custa das rendas do Infante se fazem os assougues e talhos na cidade. Tem mais Sua Alteza de renda no termo desta cidade silicet em Arneiros, os Chãos, Penude, Assucres, a Povoa hua apósta284 de carne de porco, so[y]a de ser grande, agora são onze ceptis; estes pagão este foro sem nenhua couza que pertença ao Infante somente he dereito real; tem mais de hum lugar que chamão Lamellas de foro antigo hua trava de codesso pera travar a mulla; tem mais de hum lugar a que chamão Cazal de Nabo hum magusto de castanha, hum pichel d’agoa da vea da Ribeira de Baroza que he hũa legoa e meya. Estes antigos foros dizem muitos que foi de hua grande vinha que hum senhor pos onde chamão o Morgado perto desta cidade que he seu, e que lhe trouxerão serviços que dipois ficarão por fóros. Tem mais de dereitos o seu alcaide de todo o sangue sobre os olhos silicet do olho para cima vc reis; tem mais de cada inchaço ou pizadura que algua pessoa fezer a outra, de cada pulgada cento e quarenta reis, e hua vara de bragal. Tem mais o dito Infante relego no mes de Agosto que outra pessoa nom pode vender vinho senom os seos rendeiros; tem mais ‘apresentação do mordomo da vara o que faz as execussois das sentenças que285 serve nas audiencias, e assim tem a dada dos dereitos reaes silicet do juis.

278

“Comvem a saber”, de acordo com a edição da Academia, p. 595. De acordo com a edição da Academia, p. 595; no manuscrito está “Vem”. 280 Emendada esta palavra. 281 Emendada esta palavra. 282 Assim nas duas versões. Sic?, por “açougagem”? 283 Na edição da Academia, p. 596, esta frase é assim: “de qual lugar do boi o pedissem”. 284 Na edição da Academia, p. 596, lê-se: “posta”. 285 Na edição da Academia, p. 596, lê-se: “e”. 279

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

[Da feira de Santa Marinha] Em esta cidade se fazia antigamente hua feira per Santa Marinha em o mes de Julho que durava quinze dias, onde vinhão muitos mouros d’Arevollo, e de Gra[na]da, os quais trazião esp[e]cearia donde se bastecia todo Regno, por entom nom aver ainda tracto da India, e pollas grandes sizas se dezfez; e agora que a cidade tem a siza em trebuto a tornou a reformar em que se fes hum anno, e levava bom comesso, e os da Guarda por dizerem que se lhes danava sua feira [fl. 22] ouverão hum alvara d’El Rey nosso senhor que esta feira se nom fezece, e pollos officiaes daquelle anno nom acudirem a requerer a justiça da cidade se dezfez a dita feira, e que Vossa Senhoria devia reformar por ser nobrecimento da terra, porque esta feira era do melhor citio da terra por todallas mercadorias aver neste compasso. Estas duas legoas deste compasso hé a mais sadia terra e dos mais excelentes ares que ha no Regno tirando o Pezo que hé na barca da Regoa, que hé terra muito doentia e tem os ares carregados, e as agoas muito mas polla terra ser de qualidade da terra d’Alemtéjo. O mais compasso da terra he muito são de mui poucas febres e de poucas maleitas, e des que os Judeos de Castella entrarão em Portugal, que então forom mui grandes pestellenças, nunca mais ouve peste. Os homens desta terra nom sam sobejamente muito286 ricos como em outras partes, nem ha muito grossa fazenda de tratantes polla terra ser pobre de trato. E nas couzas de trato, que hé seda, pano, fitas, retrós, couramas, e panos de Castella, qualquer alfayate ou outro homem desta sorte como tem vinte, trinta mil reis logo se fazem mercadores, e para estes he milhor o trato da terra que para os homens de fazenda grossa pollas mercadorias serem meudas; porque como hum mercador a que tem dous, tres mil cruzados parece que he mais rico que em outra parte [com287] quinze, vinte mil cruzados e nom duvido porque nesta terra valem mais duzentos mil reis que em outra parte quatrocentos mil reis. Todas pessoas, e assim mercadores são bem reigados de campos, vinhas, soutos, ollivais e assi outras erdades mais que em outras partes. E o homem pobre que aqui nom tem cazal he mais pobre que em nenhua parte porque nom tem mais que dez reis de jornal, e comer, e beber; e qualquer que tem hum cazal por pequeno que seja se mantem muito bem porque colhe de todos os renovos silicet pão e vinho, azeite, castanha, sumagre, e de todos outros legumes [fl. 22v] e fruitos. E a gente desta terra he da milhor conversasão e amizade que em todo este Regno se possa achar. E assim vem aqui estrangeiro que como esta aqui dous mezes logo se nom dezeja de tornar, e isto pella conversassão da gente como pellos viços da terra. E pera Vossa Senhoria saber o regimento e taxa dos preços dos fruitos288 e serviços da cidade o pus aqui tirado dos acordos da Camara ainda que seja preluxo, e porem por me parecer que a dita taxa fazia ao cazo, e tãobem para Vossa Senhoria o ver o mandei aqui tresladar e he o seguinte.

286

“Muitos” na edição da Academia, p. 597. No manuscrito está a palavra “tem”. 288 Na edição da Academia, p. 598, lê-se: “mantimentos”, o que talvez seja mais correcto. 287

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Traslado da taxa que aprovarão o juis e offeciais este anno de mil quinhentos e trinta Item primeiramente sapateiros e couzas que a seu officio pertencem Item hum couro em cabello de dezaceis arrobas ate dezoito não passara de .......................................................................................................................................................... viic reis. Item o[s] de doze arrobas ate treze nom passarão de ................................................................................................. vic reis. Item de nove arrobas ate dez e ate doze nom passarão de ........................................................................................... vc reis. Item couros de bois, vacas de sete ate outo arrobas, e ate nove nom passarão de . ............................................................................................................................................ iiiic reis. Item os que fizerem tamoeyros nom poderão vender cada tamoeyro mais que ate [trinta reis] ....................................................................................................................... trinta reis. Item sendo os primeiros quatro tamoeyros de lombo nom passarão de . ........................................................................................................................................................... xxxv reis. Item se os quizerem levar para fora da cidade e termo o farão a saber a hum almotace que com hum procurador dos mesteres lhes vão quartejar os ditos tamoeyros e leixarão hum quarto em a terra para se venderem polla dita taxa e os tres quartos levarão onde quizerem. Item hua duzia de pelles de machos cortidas nom passarão289 de ....................................................................... mil iiiic reis. Item hua duzia de cou[ro] mayor, nom sendo machos nom passarão290 de mil reis............................................................................................................................................. mil [reis.] Item hua duzia de couro redondo nom passarão de ................................................................................................. viiic reis. [fl. 23] Item qualquer pessoa, assim cortidor como tratante de courama nom a poderão tirar para fora até o fazer a saber aos sapateiros se lhos querem comprar ou nom, e nom lho querendo comprar o fará saber a hum dos almotaces e a hum procurador dos mesteres para que lho vão ver e quartejar, o qual quarto ficará na terra tres mezes, e os trez quartos levará para onde quizer. O que todo ficara per receita feita pello escrivão da almotaçaria ou da Camara as custas do dono do couro. Titullo dos pressos das obras do dito cordavão Item brozeguins pretos de couro dos machos nom passarão de . ........................................................................................................................................................ cto Rta reis. Item doutro couro mayor nom sendo macho nom passarão de . ......................................................................................................................................................... cto xx reis. Item borzeguins doutro couro rendondo nom passarão de cento e dez reis [................................................................................................................................................. cto X reis] sendo estes borzeguins de qualquer cor outra291 tirando bayo levara mais por cada par des reis292. Item sapatos de bom cordavão de dez pontos ate

289

Na edição da Academia, p. 599, lê-se: “pasará”. Ver nota anterior. 291 Emendadas estas duas últimas palavras. 292 Na edição da Academia, p. 599, repete, no fim deste registo, a cifra “110 reis”. 290

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

doze nom passarão de ............................................................................................................................................... Lta reis. Item sendo os ditos sapatos ou gazpaz ou qualquer outra obra mais pequena, e de mossos, o juis dos officiais o mandara pagar a respeito dos preços acima ditos avendo deferença antre os oficiais e as partes. Item tropilargos bem feitos com circos bem fortes de vaca, e bem furados, e bem acabados, de dez, nove ate doze pontos não passarão de ......................................................................................................................................................... cto reis. Item pantufos de homem até . ................................................................................................................................. L xxx reis. Item chapins de homem nom passarão de ............................................................................................................... L xx reis. Item botinnas de bom cordavão nom passarão de L xv reis as melhores que poderem ser e nom sendo tam boas ...... L x reis. Item chapins de molher ate quatro dedos d’altura nom passarão de .................................................................................................................................................... L xxx reis. Item cervilhas boas de cordavão nom passarão de .................................................................................................... xx reis. Item solas na mão da primeira fiada do lombo nom passarão de des pontos ate doze de ........................................................................................................................................ xviii reis. [fl. 23v] Item dahi para baixo segundo os pontos e a sollaria for. Item de lansar as ditas sollas poendo o sapateiro o fio não levará [mais de] ................................................................................................................................................... vi reis. Item nenhuns sapatos de vaca sendo boa de dez pontos ate doze nom passarão de sincoenta reis ........................................................................................................................ Lta reis. Item de outo, nove pontos nom passarão de .............................................................................................................. Rta reis. Item cabeças de vaca de dez ate doze pontos nom passarão de ..................................................................................................................................................... Rta v reis. Item ilhargas293 de boa vaca boas e largas, que dem empenha inteira nom passarão de cento outenta reis e dahi para baixo segundo for ....................................................................................................................................................... ctº L xxx reis. Item huas muito boas botas de machos não passarão de ..................................................................................................................................................... iic Rta reis sendo de cor, e de dez ate doze pontos. Item botas de couro mayor nom sendo machos do dito tamanho nom pasarão de duzentos e dez reis ..................................................................................................... iic x reis sendo de cor. Item couro mais baixo redondo nom passarão de . ............................................................................................... cto L x reis. Sendo todas estas botas solladas e sobressoladas com seos tacois de dentro, segundo costume. Item sendo as ditas botas pretas levarão menos dez reis por cada par sendo tamanho, e assim sendo as ditas botas mais pequenas ficara em alvidro do juis dos offeciais como ja hé dito. Titulo dos alfayates Item de calsas de pear <forradas> sendo finas, nom levarom mais de ........................................................................................................................................................ Rta reis.

293

Na edição da Academia, p. 600, lê-se: “Bilhargas”.

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Item de huas calsas por forrar ................................................................................................................................... xx reis. Item huas calsas forradas de pano de Castella ......................................................................................................... xxx reis. Item hum gibão de seda de dous forros bem acabado . ........................................................................................................................................................... L x reis. Item sendo de sollia .................................................................................................................................................. Lta reis. Item sendo de panno ou [de] fustão . ......................................................................................................................... Rta reis. Item hum pellote chão de homem .............................................................................................................................. Rta reis. Item sendo barrado de dentro e de redor e meyas mangas .......................................................................................................................................... Lta reis. [fl. 24] Item pellote de homem cortado de hua pestana ......................................................................................................... L x reis. Item se for de duas pestanas . ................................................................................................................................. L xxx reis. Item hua chamara pregada bem feita ........................................................................................................................ L x reis. Item sendo cada hum destes pellotes chamarra de solia, tafetá ou chamallote levarão . .................................................................................................................. cto294 reis. Item hum tabardo de pano fino tuzado ou frizado levarão ......................................................................................................................................................... L x reis. Item sendo de pano de Castella ................................................................................................................................. Lta reis. Item hua loba fina tuzada ou frizada ......................................................................................................................... Lta reis. Item nom sendo fina .................................................................................................................................................. Rta reis. Item hum capuz pello mesmo preço de ...................................................................................................................... Rta reis. Item capinhas e manteos finos ou quaisquer outros .................................................................................................. xxx reis. Item gibois com hum debrum ou com hua barra . ...................................................................................................... Lta reis. Item sendo chãos . ..................................................................................................................................................... Rta reis. Item caza e botão lavrados de seda ............................................................................................................................. iii reis. Item hum âbéto fino .................................................................................................................................................. Lta reis. Item sendo de Castella .............................................................................................................................................. Rta reis. Item sendo de solia ou chamalote . ............................................................................................................................. cto reis. Item hua faldrilha barrada de seda com forro per baixo, e com hum debrum per sima da barra della . ............................................................................................................. Lta reis. Item sendo fina e cham . ............................................................................................................................................ xxx reis. Item sendo de pano de Castella .................................................................................................................................. xx reis. Item de hum sainho fino ............................................................................................................................................. xx reis. Item nam sendo de pano fino ...................................................................................................................................... xv reis. Item sendo de hum debrum e de hum forro ................................................................................................................ Rta reis. Item hum cos com mangas ......................................................................................................................................... xx reis. Item mantilhina de hum debrum . ................................................................................................................................. x reis. Item hua verdugada de des295 verdugos .................................................................................................................. L xxx reis. Item nom sendo mais que seis ‘te sete verdugos ........................................................................................................ L x reis.

294 295

Emendada esta cifra. Na edição da Academia, p. 602, regista-se: “9”. 109


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item sendo estas faldrilhas de chamalote cem reis ..................................................................................................... cto reis. Item hum mogi fino de homem ou de molher ............................................................................................................. Rta reis. Item sendo de panno de Castella ............................................................................................................................... xxx reis. Item de hum capello para clerigo . ............................................................................................................................... x reis. Item das obras de moços e de servos e doutras quaisquer pessoas aqui nom declaradas avendo deferensa entre os offeciais e os donos das obras serão alvitradas per o juis dos offeciais, os quais as julgarão avendo respeito as obras assima declaradas. Titulo dos tozadores Item de tuzar todo o panno de Castella frisado do avesso por covado ................................................................................................................................................................... ii reis. [fl. 24v] Item de panno da serra per vara ........................................................................................................................ i real e meo. Item de frizar pano de Castela ................................................................................................................................. iiiiº reis. Item de frizar arbim e contray por cada covado ......................................................................................................... . vi reis. Item de tozar contrai, meynim296 e outro semelhante pano por covado ........................................................................................................................................................ vii reis. Item de tozar o covado de londres297 ou hipre ........................................................................................................... iiiiº reis. Titulo dos carpinteiros Item carpinteiros d’obra limpa desd’a Paschoa ate o Intruido nom levarão por dia mais de ....................................................................................................................... xxv reis. Item de Novembro ate per todo Fevereiro nom levarão mais que ................................................................................................................................................ xx reis. Item sendo mestres de obra mais . ................................................ v reis por dia em cada hum dos ditos tempos assima ditos. Item outros carpinteiros que nom sabem mays que d’eixó e machado levarão menos por dia ..................................................................................................................... v reis. Titulo dos pedreiros Item os pedreiros se pagará pello modo, e preços dos carpinteiros atras dito. Item jornalleiros servidores de officiais, desde Março ate São Miguel a xii [reis] por dia, e andarão de sol a sol, e nom vindo as horas ser-lhe-ha descontado soldo a livra ........................................................................................................................... xii reis. Item desde Outubro ate [per todo298] Fevereiro levarão a . .................................................................................................................................................................... x reis.

296

Na edição da Academia, p. 603, está “contraimeinym”, o que não me parece correcto. Na edição da Academia, p. 603, certamente por gralha, está “lombres”. 298 De acordo com a edição da Academia, p. 603, o que se me afigura mais correcto; no manuscrito está: “ate perto de”. 297

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo da lenha e carvão Item carrega de lenha de azemella de carvalho rachado sendo boa nom passara de ........................................................................................................................ xii [reis.] [Item] e sendo carvalho redondo ................................................................................................................................. x reis. Item carga de carvalho d’asno [oito reis] ................................................................................................................. viii reis. [Item] e sendo doutra qualquer lenha ......................................................................................................................... vi reis. E estes preços se levarão des o mes de Outubro ate [per todo299] mes de Março, e desde Abril ate [per todo300] Setembro levarão menos dous reis per carrega. Titulo dos cardoeiros digo carvoeyros Item carga de [mu301], e rocim de tres sacos cada carrega de sinco alqueires cada saco nom levarão mais por elles que ................................................................................. xviii reis. [Item] sendo no Inverno scillicet d’Outubro ate [per todo o302] mes de Fevereiro levarão por cada hũa das ditas cargas .................................................................................................................................................. xxiiii [reis]. [fl. 25] Item sendo d’asnos, em estes quatro mezes a xx [reis] per carga sendo de tres sacos, sendo os sacos mais pequenos ........ xx [reis]. Item em o Verão a xv [reis] por carga d’asno de tres sacos sendo mais pequenos que os de sinco alqueires . .......... [xv reis]. Titulo dos ferradores Item de hũa ferradura cavalar polla lansar ................................................................................................. viii [reis] e meo. Item bestas muares de quatro craveiras ........................................................................................................ vii [reis] e meo. Item ferraduras [asnaes303] de tres craveiras .............................................................................................................. vi reis. Item cravos lansados arcal ....................................................................................................................................... iiii reis. E destes preços nom passarão nem hum. Titulo dos ferreiros Item hua eixada nova bem feita e fornida ............................................................................................................. L xv [reis]. Item de calsar a dita eixada [até o olho304] ........................................................................................................... xxx[v reis]. Item de huas agriaes ............................................................................................................................................ xxxv [reis].

299

Ver nota anterior; neste caso, segui a lição da Academia, p. 604. Ver nota anterior. 301 De acordo com a edição da Academia, p. 604, que me parece mais de acordo com as expressões usadas na época; no manuscrito está: “mulo”. 302 Ver notas 171 e 172. 303 De acordo com a edição da Academia, p. 604; no manuscrito está “ásnas”. 304 De acordo com a edição da Academia, p. 604; no manuscrito está “a trolho”, o que me parece ser incorrecto. 300

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Item de calço d’aceiro . .............................................................................................................................................. xx reis. Item sendo d’escumalho ........................................................................................................................................ xvi [reis]. Item de hum eixadão bem feito ............................................................................................................................... L xxx reis. Item o mais pello preço das eixadas. Item hum ferro d’arado ........................................................................................................................................... Rta v reis. Item das agriaes . ...................................................................................................................................................... xxv reis. Item do calço . ......................................................................................................................................................... xv [reis]. Item pregos caibrays silicet o cento a real o par . .............................................................................................................................................................. Lta reis. Item pregos tavoares nom passarão o cento sendo bons de . .......................................................................................................................................................... xxx reis. Item pregos fayares o cento . .................................................................................................................................. xxiiii reis. Item pregos coitares o cto a cem305 ........................................................................................................................... cto [reis]. E destes preços nom passarão. Titulo das pessoas que vendem pescado Item toda a pessoa que vender peixota a nom podera vender senom a pezo, e nom passara o arratel da seca de ......................................................................................... x [reis]. E sendo a dita peixota de molho nom passara o arratel de ............................................................................................................................................................... viii reis. Item as pessoas que tiverem tavernas poderão somente vender em suas tavernas aos reais as pessoas que em suas cazas e tavernas derem306 comer e a quizerem [comprar], que primeiro307 e todavia serão obrigados a venderem por [peso308] as pessoas que lho pedirem. Item o arratel do ruivo seco nom passara de seis reis [o arratel] ................................................................................................................................................. vi reis. Item todo o savel fresco se nom podera vender senom a pezo, o qual nom passará o arratel de outo reis e dahi para baixo segundo for o tempo, o qual sera almoteçado [fl. 25v] porque os de outo reis se entendera nos primeiros .................................................................................................... viii reis. Item savel seco salgado nom passara o arratel de vi reis ....................................................................................................................................................... vi reis. Item lampreas por boas que sejão nom passará de quarenta reis, e dahi para baixo segundo forem e segundo o tempo . ................................................................................................................................................... Rta reis. Item marisco silicet meixilhões xxiiii ao real, carangueijos por xv a real, brig[u]igois quarenta a real.

305

Na edição da Academia, p. 605, são omitidas estas duas últimas palavras. Na edição da Academia, p. 605, lê-se: “fforem”. 307 Na edição da Academia, p. 605, são omitidas estas duas últimas palavras. 308 De acordo com a edição da Academia, p. 605, o que me parece ser mais correcto; no manuscrito está “preço”. 306

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo dos olleyros Item hum cantaro d’alqueire e meo ate dois alqueires nom passará de . ........................................................................................................................................ viii reis. Item pucaro ou cantaro que leve hum alqueire nom passara de .............................................................................................................................................. v reis. Item de meo alqueire ......................................................................................................................................... iii reis e meo. Item de hua can[a]da ................................................................................................................................................... ii reis. E dahi para baixo segundo for hum real . ..................................................................................................................... i real. Item trinchos, tigellas nom passarão de [cinquo ceitis] ............................................................................................. v ceitis. Item servidores e fugareiros ...................................................................................................................................... viii reis. E toda esta obra sera de muito309 bom barro e bem cozido e nom sendo bem cozida se perderá ametade para [a] cidade e [a] outra para os prezos pobres. Titulo dos lavradores Item hum homem com hũa junta de bois por hum dia nom levara mais que . ................................................................................................................................ xx [reis]. Item trazendo carro por dia .................................................................................................................................. xxv [reis]. Item hua carrada de pedra de São Martinho do Monte levara ......................................................................................................................................................... xx reis. Item sendo da Pêgada para baixo ................................................................................................................................ x reis. Item de Rio d’Asnos .................................................................................................................................................. viii reis. Item dahi para baixo serão as carradas da dita pedra segundo a distancia da terra. Titulo dos barbeiros Item levarão de guarnecer hua espada silicet alimpa-la e invernizar cabos e punho e bem acabada ............................................................................................... L x reis. Item de guarnecer hua espada nova em preto com sua bainha e bem acabada de todo . .......................................................................................................................... LR reis. Titulo das candeeiras Item toda a pessoa que vender candeas de sevo [fl. 26] farão candeas silicet des o primeiro dia de Mayo ate Natal pezará o arratel das ditas candeas lavradas xx candeas por aratel que são x reis, e desde Natal ate Mayo pezara o arratel das candeas lavradas vinte e quatro candeas que são a doze reis por arratel, as quais candeas teram os pavios bem cozidos e de seis fios.

309

Emendada esta palavra. 113


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Titulo dos farellos Item o alqueire dos farellos trigos nom passará de ...................................................................................................... x reis. Item sendo centeos que nom passara de ................................................................................................................. viii [reis]. Item hum par de boas galinhas . ........................................................................................................................ xxxiiii [reis]. Item hum par de perdizes ...................................................................................................................................... xiiii [reis]. Item hum par de coelhos ate . ....................................................................................................................................... x reis. Item hum boom cabrito nom passara de [cincoenta reis] .......................................................................................... Lta reis. Item quem o vender aos quartos nom passara o quarto sendo bom de ................................................................................................................................................. x reis. Item toda a pessoa que vender ovos dara sinco por . .................................................................................................... ii reis. Item qualquer ofecial que quizer poer310 tenda novamente nom a poderá poer sem primeiro ser examinado pollo juis311 dos offeciais de seu officio e os ditos examinadores levarão por fazerem o dito exame cem reis silicet ametade para a cidade e a outra para elles . ...................................................................................................................................................... [C reis]. Item hum muito bom [pato312] vivo nom passara de .................................................................................................. Rta reis. Item sendo depenado sem cabedella nom passará de ...................................................................................................................................................... xxxii reis. Item valle nesta cidade hum arratel de peixota fresca, ou ruyvo, ou congro, sinco, seis reis o arratel. Item o arratel de raya, ou cação, ou toninha fresca a tres, e a quatro reis. Item o cambo dos lingoados, de outo, nove, e dez lingoados a dez, e a doze reis. As quais taxas assima escritas se guardão nesta cidade. Esta cidade sempre hé abastada de muito pão e de muitas partes se socorrem della posto, que he de carretto, de sinco, seis, sete, outo, des legoas porque esta entre tres comarcas silicet a comarca da Beira, a d’Antre Douro e Minho, e Traslos Montes. E acerta nom aver pão [em] Entre Douro e Minho silicet quando se acabão os milhos, a mór parte d’Antre Douro, e Minho come desta praça de pão da Beira e Traslos Montes, que aqui vem a hum antigo e fermozo mercado muy abastado que se aqui faz cada segunda feira; e alguns annos nom há pão na Beira e ha muitos milhos [em] Antre Douro e Minho, e os da Beira vem comprar a esta cidade o milho [fl. 26v] que vem d’Antre Douro e Minho, e assim Traslos Montes. E tambem vem comprar azeites e frutas temporans de maneira que a mor parte desta cidade digo, de maneira que nesta cidade a mor parte do pão destas tres comarcas e nella são seos contratos por onde está sempre bem abastecida. E o porto desta comarca he a mor parte de sua mantença porque he em barcas. Depois de ter feito este tratado travalhey por saber quem tomou esta cidade ou como foi avida, e por ter por novas que certos cavalleiros que morrerão na tomada della jazião no mosteiro da Salzeda fui ao dito mosteiro e me mostrarão o cartorio onde achei em hum livro de porgaminho em Latim como fora tomada aos mouros; e porque em partes se não podia ler estava tresladada em lingoagem, e segundo me parece foi povorada por Esturiannos como Vossa Senhoria vera em esta folha que do livro treladei na verdade como a achei a qual hé a seguinte.

310

Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 608, lê-se: “pollos Juizes”. 312 De acordo com a edição da Academia, p. 608; no manuscrito está “porco”. 311

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Textos e documentos – Transcrição crítica

Titulo de quem tomou esta cidade In nomine Domini Amem. Quem quizer saber donde esta terra foi tomada que era toda de mouros do Douro a quem filhou-a o Conde Dom Henrique com Exche Martim que era mouro, e era Rey de Lamego e desta terra toda, [e] fes-se313 christão, e veo com Dom Henrique cavaleiro e com outros muitos ricos homens que vierão das Esturias. Era hum Egas Monis, que se ve foi cazado com Meanna Donna Tareija que fes a Salzeda. E Dom Anrique por se filhar melhor com os mouros leixou-lhes aver quanto filhavam e coutava-lho. [Como se fez o Couto de Liomil] E assim314 fez a Dom Garcia Rodrigues e a Dom Payam seu irmão, que lhes coutou o Couto de Loimil, que filharão a mouros. Dom Egas Monis quando filhou esta terra aqui toda logo povoou a315 Bertiande e fes hi hua quinta e morada e capella em que lhe cantavão missa. E dali moveu a Salzeda Meana Donna Tareja na Abadia Velha e vio ca seria melhor ali hum mosteiro digo ali hu esta e levou alaá hum cavaleiro que avia nome Pay Cortes e veo com Egas Monis que era seu vassallo e seu monteiro e com Donna Meana andava hua donzella que [fl. 27] chamavão Donna Eixemia e cazarão-nos ambos; e [hu316] agora he Gouviaes era mata de porcos e de corsos, e aquelle monteiro de Dom Egas Monis matou hum porco, ali hu esta a fonte, e levou-lho e pedio-lhe aquelle lugar em que fizese hua quinta para si e para sua geração, e rogou-lhe que a coutasse e honrasse, e deu-lha, como parte pollo Outeiro da Fraga e des hi pollo rio ampro abaixo, como parte com a Salzeda, e sem317 hi cruzes e s’e hua sobre a ponte da Cucanha, e dahi como parte polla Relva como parte pollo rio ampro, e desi como se vai polla vinha de Miguel Ramires, e desi como se vai derreito per sob os Outeiros, e dali como se vai ao Lameiro Redondo, e desi per hi anfesto como se vai per ali a Santa Maria da Correga [e de Santa Maria da Correga] direito pollo Outeiro da Fraga que esta sobre o rio. Dom Pay Cortes sendo naquella quinta que fez, fez em ella tres filhos cavalleiros e hua filha que se ve cazada em Villa Seca donde sairão dous filhos, Maria Paes e Miguel Paes; daqueles tres filhos que fes Pay Cortes foi hum Ruy Paes, e de Ruy Paes sahio Maria Rodrigues, e de Maria Rodrigues sahio Affonso Martins e seos irmãos; outro irmão avia nome Men Paes, e de Men Paes saio Men Mendes, e de Men Mendes saio Soeyro Mendes e foi cazado em Rabello com Donna Boa Fernandez. De Boa Fernandes saio Pero Soares abbade de Valadares e Maria Soares de Gouviaez donde saio esta geração que hi ha, Tareja Soares madre de Caterina Rodriguez de Rabêllo, de Egas Paes filho de Pay Cortes e saio Gonçalo Viegas; de Gonçalo Viegas saio Sancha Gonçalves e Pero Gonsalves, e Ruy Gonçalves, e Domingos Gonçalves, o que matarão, e outras geraçois, que delles descenderão. E Villa Meam era da honra de Gouvyaens e demandava Gonçalo Gonçalves por sua e ouverão sobre ella concelho, e vierão a peleijar, e morrerão muitos, e ficou Villa Meam aos de Gouviães, e quando partirão os filhos de Pay Cortes em Gouviães ficarão hi dous, e hum em Villa Meam, e daqui sahio esta linhagem de Dona Caterina de Pinhel.

313

Na edição da Academia, cit., p. 609, lê-se: “fizesse”. Na edição da Academia, p. 609, lê-se: “Cási”, que significará “Cá assim”? 315 Na edição da Academia, p. 609, a frase é assim: “povoou logo a”. 316 De acordo com a edição da Academia, p. 609, o que me parece mais de acordo com as expressões usadas na época; no manuscrito está “hum”. 317 Assim nas duas versões. Sic? Por “tem”? 314

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Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

Os quaes Dom Payam e os outros cavalleiros aqui nomeados com outros jazem enterrados no dito mosteiro da parte de fora a mão esquerda onde esteve hua cappella com hum alpendre, e no chão da dita capella jazem318 os ditos cavalleiros; e me parece que os Dom Abbades [fl. 27v] passados desfizerão a cappella e agora está hum mato sobre suas sepulturas, e na parede da igreja esta a sepultura de Donna Tareja que era na dita cappella em a qual sepultura está este letreiro em Latim, que se segue, e a ossada sua se mudou ao mosteiro: Hoc loco latet hec cujus per secula latere fama nequit sollita perpetuare bonus fama mori claros nec morte sunt319, sed et ipsa claro320 que321 meritis vivere semper habet multis domina modis juvit Tarasia famas sanguine progenie moribus ac opere, ex ducibus sanguis sobeles clarissima Regni absque nota mores est opus. Ista domus de bis sex centis et denis monade de[m]pta inveniens eras que sepelevit heras. Ha mais neste circuito dois mosteiros de São Francisco, hum craustal nesta cidade, que não acho quem o mandou fazer, outro d’oservancia322 em Ferreirim a hua legoa desta cidade que Dom Francisco Coutinho conde de Marialva, que Deos tem, mandou fazer em huns seos paços onde esta hua sepultura para se meter sua ossada e o Infante Dom [Fernando323] o manda ora acabar. [Madeira] Ha mais neste circuito muita madeira de castanho e [a mais] fermoza324 que ha em todo o Reyno e a mor parte della se carrega para Lisboa e para outras partes; ha tavoado que he mais fermozo que bordo, e val hua duzia de tavoado de doze palmos em comprido e dous [em325] largo, cento [e] sincoenta, cento [e] secenta reis. Ha muitos e mui fermozos mastros de castinheiros de quinze, dezasseis e dezacete braças que estão onde se podem carregar no Douro para o Porto e dahi para outras partes, e os que estão mais ao sertão se fas delles madeira, e há muito tavoado de quatro, sinco palmos [em326] largo. De hum monstruo Hua couza monstruoza determinei aqui

318

Emendada esta palavra. Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “securit”. 320 Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “clarorum”. 321 Na edição da Academia, p. 611, é omitida esta palavra. 322 Na edição da Academia, p. 611, lê-se: “de sorvancia”. 323 De acordo com a versão da Academia, p. 611; no manuscrito está “Francisco”. 324 Na versão da Academia, p. 611, esta frase é diferente: “Ha mais neste cercohito a mais madeira de castanho, e fermosa ...”. 325 De acordo com a edição da Academia, p. 611, que se me afigura mais correcto; no manuscrito está “de”. 326 Ver nota anterior. 319

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Textos e documentos – Transcrição crítica

[fl. 28] de assentar ainda que seja fora da sustancia do tratado, e he que a doze dias do mes de Mayo deste anno de mil quinhentos [e] trinta e dous naceo a Vasco Cardozo, fidalgo de que atras fasso menção do Morgado de Cardozo, pario hua sua vaca hum bezerro de hum corpo, e hum muito groso pescoço com duas cabeças, e cada cabeça duas orelhas, e hua boca, e duas lingoas, hua dellas tinha dous olhos, e a outra hum só olho na testa. Ao nacimento naceo as ‘vessas, e naceo embarrada nas cabeças; naceo morto; a vaca ouvera de morrer. A qual pelle do monstruo mando a Vossa Senhoria com este tratado. As couzas conteudas neste tratado som muy verdadeiras, somente das fontes, e filhos, e povoadores, e porcos, e outras couzas que por conta não podia tirar vão postas antes em menos soma que [em] mais, e assi a sepultura de Donna Mafalda, que digo estar em Villa Boa do Bispo, outros dizem que a ossada esta no Mosteiro d’Arouca, della nom som bem certeficado [e] por ser fora do compas de duas legoas a nom fui ver como estas outras sepulturas. Quanto ao vinho e azeite que parecera pouca soma he porque ametade deste compas nom da azeite como nas igrejas vera Vossa Senhoria e o terço delle nom dá vinho nem legumes portanto he mais do que parece por se dar em so hũa legoa, e o pão, e vinho e azeite, crea Vossa Senhoria que pode ser mais hum terço por ser contado por dizimos. Laus Deo.

117



ApĂŞndice documental


Documento 1

1529. Outubro. 25. S/l [Lamego?] - Mandado do contador Diogo Borges de Castro aos recebedores das sisas de Lamego e Viseu, para que paguem a Rui Fernandes, tratador das lonas de Lamego, aquilo que lhe é devido de pagamentos já vencidos. Torre do Tombo – Corpo Cronológico, parte II, maço 159, doc. 67 Recebedores das sysas desta cidade de Lameguo e seus ramos asy aos do ano pasado de Vc XXVIII como do presemte de Vc XXIX Dieguo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu comtador nos allmoxarifados de Vyseu e Lameguo etc. Vos faço saber que por parte de Ruy Fernandez tratador das lonas me foy apresemtado huum allvara d’El Rey noso senhor per que me manda que demandasse327 ao dito Ruy Fernandez conta do recebymento que recebeo dos anos pasados de Vc XXVI, XXVII e fyamça pera os anos de XXVIII e vymte e nove o leixase receber o remdymento das sysas da dita cidade e ramos os ditos anos de Vc XXVIII e XXIX pera fazer cumprimento das lonas que he obrigado a Sua Allteza. E porquanto o dito Ruy Fernandez tem satisfeito com a dita comta e fyamça segundo forma do dito alvara de Sua Alteza vos mamdo que tanto que vos este meu mandado for apresemtado façaes loguo pagamento ao dito Ruy Fernandez ou a quem seu carreguo e poder tever ou precuraçam pera receber o dito dinheiro convém a saber todo o que lhe for devido do ano pasado e os dous quartees do presente ano e mais nam e asy mesmo mando ao escryvam do allmoxarifado e porteyros asy das sysas como do allmoxarifado que penhorem to[1v] dos os recebedores que nom quiserem pagar em maneira que o dito Ruy Fernandez seja paguo do dito dinheiro que he devido do dito ano de Vc XXVIII e asy dos dous carteis do presemte de Vc XXIX e por certeza dello mandey ser feito este meu mandado per mim asynado. Francisco d’Allmeida tabaliam o fez por meu mandado aos XXV dias de Outubro de Vc XXIX anos// [assinatura:] Diogo Borjes de Castro. Pagou XX reaes. [Letra do século XVI:] mandado do contador pera receberem Letra do século XVIII:] Mandado para os contadores das cazas de Lamego, e Vizeu pagarem ao contratador das lonas os seus quarteis vencidos. Em 25 de Outubro de 1529.

327

Muito manchado o papel dificultando a leitura. Dúvidas, portanto, nesta palavra.

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Documento 2

1530. Setembro. 23. Lamego - Traslado de alvarás régios apresentados aos Contos e almoxarifados de Lamego e Viseu (de 25 de Fevereiro de 1530, 26 de Julho de 1530, 4 de Agosto de 1528, na ordem em que são registados) autorizando Rui Fernandes, tratador das lonas daquela cidade, a cobrar do rendimento das sisas o dinheiro que lhe é devido das lonas que deve mandar ao armazém régio de Lisboa. TT – Corpo Cronológico, parte II, maço 165, doc. 25 Saybham quamtos este trellado de hua carta d’El Rey noso senhor dado per mamdado e autoridade de justiça vyrem como no ano do nacymento de Noso Senhor Jhesuus Christo de mill e quinhemtos e trinta anos aos aos (sic) XXIII dias do mes de Setembro na cydade de Lameguo peramte Joham Cardoso escudeyro e escripvam dos Comtos em estes allmoxarifados de Lameguo e Vyseu e que ora tem carreguo de comtador ‘ausencya de Dieguo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu comtador em ellos etc. pareceo Ruy Fernandez tratador das lonas que se fazem na dita cidade e dise ao dito contador que em poder de mim escripvam era hua carta d’El Rey noso senhor que elle Ruy Fernandez lhe apresemtara per a quall Sua Allteza mamdava a elle comtador que damdo elle Ruy Fernandez fyamça segundo forma de seu comtrato o leixase receber o remdymento da sysa da dicta cidade e certos ramos convém a saber do ano de Vc e vymte e nove por lhe ser dado em pagamento pera o dito trato das lonas e que ora lhe era necesario o trelado da dita [1v] carta em pubrico328 com a fee de mim escripvam como tinha satisfeito com a dita fyamça e como elle comtador mandara comprir ha dita carta de Sua Alteza e loguo o dito comtador mandou a mim escripvam que com todo lhe dese este estromento de certydam e trelado da dita carta da qual lho teor he o seguimte. «Comtador Dieguo Borges eu El Rey vos envio muito saudar. Nese allmoxarifado de Lameguo forom despachados o ano pasado de vynte e nove setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes a Ruy Fernandez tratador das lonas pera quinhemtas e cyncoemta peças de lonas vytres que he obrigado dar pera o allmazem segundo foy decrarado no caderno do asemtamento dos quaes ha d’aver pagamento dos recebedores de Lameguo e seus ramos e nos comcelhos de Sam Joham da Pesqueyra e do Castynheyro como vos per outra ja tenho escripto e por que me elle dise ora que tinha emtregues as lonas e dada conta dos primeyros dous anos de vymte e seis e vymte e sete segundo mostrou per vosa certidão a quall comta lhe vos tomastes per meu mamdado e nom podia acabar de fazer comprimemto dos outros dous anos pelos maos pagamentos que lhe [2] faziam por que lhe era devido muyto dinheiro dos anos pasados de que nom podia aver execuçam e bem asy que temdo nomeado a receber seu pagamento o almoxarife Symão de Figueyredo lho empidira e mandara aos recebedores que lhe nom acudisem e recebera per sy o remdymento de Sam Joham e do Castynheyro no que era muyto agravado e por ello nom

328

Isto é, em pública forma. 121


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

podia comprir com sua obrigaçom vos mamdo que vos lhe façaes loguo acudir com os ditos dinheiros e lhos leyxay receber dos recebedores da maneira que tenho mamdado e ao allmoxarife mamdareis que lhe nom ponha nyso duvida nem impydymento algum os quaes dinheiros recebera o dito Ruy Fernandez ou a pesoa que pera yso seu poder tever porquamto elle amda em minha corte em cousas do meu serviço e elle dara fiamça se a dada nam tem segundo forma de seu comtrato e se o dito almoxarife tever recebido allgum dos ditos comcelhos dareis ao dito Ruy Fernandez outro tamto remdymento em outros comcelhos e nyso lhe fazey dar toda ajuda e favor que lhe comprir mamdamdo executar os recebedores e fazer quallquer dilligemcya necesaria de maneira [2v] que lhe seja feito seu pagamento com brevidade. Manoell da Costa a fez em Lixboa a XXV dias de Fevereyro de mill e Vc XXX. Fernam d’Alvarez a fez escrever// Pera o Comtador dos allmoxarifados de Viseu e Lamego sobre os dinheiros que o ano pasado la forom despachados a Ruy Fernandez tratador das lonas. E porquamto o comtador Dieguo Borges esta ora sospemso mamdo a pessoa que seu careguo tever que cumpra esta carta imteyramente como se nella comtem com toda dylligemcia. Manoell da Costa o fez em Lixboa a vymte e sete d’Abrill de mill e quinhemtos e trymta// A quall carta foy apresemtada ao dito Joham Cardoso loguo temte329 de Comtador pelo dito Ruy Fernandez aos vymte e seis dias do mes de Julho do ano de Vc XXX anos e com ella hum estromento de fyamça feito per Amtonio Lopez pubrico tabaliam na dita cidade a qual fyamça o dito Ruy Fernandez deu ao recebymento segundo forma da dita carta. E visto todo pelo dito Joham Cardoso mamdou que se comprise a dita carta como em ella era comtheudo e mandou pasar mandado ao dito Ruy Fernandez pera o recebedor da dita cidade pera pagar ao dito Ruy Fernandez os dous quarteis derradeyros do dito ano de Vc XXIX e mandou ao almoxarife que lhos leixase receber e o dito Ruy Fernandez [3] dise ao dito Comtador que pera comprimemto dos ditos setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes comtheudos na dita carta lhe faltavam dozemtos e oytemta e dous mill e quinhemtos reaes os quaes ele Ruy Fernandez ouvera d’aver per os comcelhos de Sam Joham da Pesqueyra e Castynheiro e que por ho almoxarife os ter recebidos que lhe mandase fazer emtrega per outros comcelhos e per Symão de Figueyredo allmoxarife lhe forom dados per outros comcelhos segundo todo mais compridamente se comtem em hos autos d’apresemtaçom da dita carta que estam em poder de mim tabaliam em maneira que ao dito Ruy Fernandez forom cheos os ditos setecemtos e noventa e sete mill e quinhemtos reaes dizendo loguo o dito Ruy Fernandez ao dito Joham Cardoso que de todo lhe era necesario huum estromento que requeria a elle loguo temte de comtador que lho mandase dar com o que dito he e o dito Joham Cardoso lho mamdou dar em pubrico e per elle asynado. Testemunhas que presemtes estavom Joham Diaz morador na villa do Souto e Francisco Afomso morador na villa de Cedavym e Joham Gonçallvez Cordeyro morador na [3v] villa de Penedono e eu Francisco d’Almeida pubrico tabaliam por El Rey noso senhor na dita cydade de Lameguo e seus termos que ora330 tenho carreguo de escripvão dos Comtos pelo dito Joham Cardoso servir de contador que este estromento escrepvi e asiney com o dito Joham Cardoso de meu pubrico synall que tal lhe. [Sinal do tabelião e assinatura:] Joham Cardoso. Pague destes LX reaes». «Saybham quantos este estromento de trelado de hum allvara d’El Rey noso senhor dada per mandado e autoridade de justiça vyrem como no ano do nacymento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhentos e trymta anos aos VI dias do mes de Outubro em Allvellos na quintãa da Torre que [he] termo da cidade de Lameguo estamdo hy Joham Cardoso escudeyro e escripvam dos Comtos nestes almoxarifados de Vyseu e Lameguo e que ora tem careguo de Comtador em eles ‘ausencya de

329 330

Isto é, interino, no lugar de, lugar-tenente. Emendada esta palavra.

122


Apêndice documental

Diogo Borges de Castro fidalguo da casa d’El Rey noso senhor e seu Comtador nos ditos almoxarifados etc. peramte o dito Joham Cardoso pareceo Symão de Figueyredo almoxarife de Lameguo e dise ao dito Joham Cardoso que Ruy Fernandez tratador das lonas lhe tynha apresemtado huum allvara d’El Rey noso senhor em que lhe [4] reformara huum ano mais no trato das lonas o quall allvara era em poder de mim escripvam e que a elle lhe era necesario o trelado do dito alvara em pubrica forma que lhe requeria que lho mandase dar e visto pelo dito Joham Cardoso mandou a mim tabaliam que lhe dese huum estromento com o trelado do dito alvara do qual alvara o teor he o seguinte// Eu El Rey faço saber a vos vedores de minha fazemda que alem do tempo que Ruy Fernandez tratador das lonas que se fazem na cydade de Lameguo por seu comtrato per que he obrigado a emtregar no meu almazem desta cidade de Lixboa mill e seiscemtas e cymcoenta peças de lonas vitres convém a saber cada ano quinhemtas e cyncoenta peças a rezam de mill e quatrocemtos e cyncoenta reaes cada peça segundo forma de seu comtrato e provisões o quall comtrato se acaba em fym deste ano presemte de quinhemtos e vymte e oyto hey por bem em meu serviço lhe reformar o dito comtrato por tempo de huum ano mais que começara acabamdo os tres anos delle no quall sera obrigado a emtregar no dito almazem quinhentas e cymcoenta peças das ditas lonas vytres ao dito preço de mill e quatrocentos e cymcoenta reaes peça aos tempos e da largura e vomdade que pelo dito comtrato he obrigado porquanto pela maneira e comdições dele hey por bem lhe sejam tomadas e feitos os pagamentos do dinheiro que nellas montar nas rendas da dita cidade de Lameguo e seus ramos asy como ate’guora lhe foy paguo por bem do dito comtrato noteficovolo asy e vos mando que asy o [4v] cumpraes e façaes comprir e guardar em todo e per todo como331 se nelle comtem sem duvida que a ello ponhaes. Cosme Anes o fez em Lixboa aos quatro dias d’Agosto de mill e quinhentos e vymte e oyto e este allvara se resistara no lyvro dos comtratos de minha fazemda omde o dito comtrato esta treladado omde o dito Ruy Fernandez asynara e se obrigara a este comprir como dito he. Fernam d’Alvarez o fez escrepver// O quall alvara he asynado per Sua Alteza segundo per ele parece e resistado pelo dito Fernam d’Alvarez ao pee do contrato segundo parece nas costas delle per seu asynado. E com todo o dito Joham Cardoso mandou que lhe fose dado o dito estromento e manda que valha e faça fee como o proprio originall e por verdade o asynou aqui. Testemunhas que forom presemtes Joham Gonçallvez Cordeiro morador em Penedono e Francisco Afonso morador em Cedavim e eu Francisco d’Almeida pubrico tabaliam por El Rey noso senhor em a dita cydade de Lamego e seus termos em que ora tenho careguo de escripvam332 dos Comtos pelo dito Joham Cardoso que este estromento escrepvi e em ele meu pubrico synall fyz que tal lhe// [assinatura e sinal do tabelião:] Joham Cardoso. Pague Rta reaes»”. [Nas costa do documento, em letra do século XVIII]: Parte 2ª, Maço 165, Doc. 25, Nº suc. 28686. Trelado de huns Alvarez de El Rey para a Ruy Fernandez se dezembargarem e deixarem cobrar o rendimento das cizas de Lamego etc. na forma do contrato feito com o dito sobre as lonas que se fazião na dita cidade. A 23 de Setembro de 1530. Ver ainda TT – CC, parte I, maço 46, doc. 49 e doc. 123, respectivamente de 24 de Janeiro de 1531 e 17 de Julho do mesmo ano. Alvará do rei ordenando a D. António de Almeida, do seu conselho e contador-mor da fazenda que não constranja por tempo de seis meses Rui Fernandes pelas 550 peças de lonas vitres que devia entregar nos armazéns e estaleiro de Lixboa porque ainda não lhe haviam sido pagas. Em Julho, alvará ao mesmo António de Almeida e a Fernando de Alcáçova provedor dos Contos, para não constrangerem Rui Fernandes por não meter neste ano nos armazéns régios de Lixboa 600 peças que devia ter metido, pois ainda não lhe fora pago o dinheiro delas.

331 332

Rasurada esta palavra. Emendada esta palavra. 123


Documento 3

1530, Dezembro, 29, [Porto] – Mestre Dinis, morador na cidade do Porto, apresenta nos Contos da cidade o treslado de uma carta de privilégio régia dando-o como tratador das lonas e bordates de Lamego, juntamente com o seu genro Rui Fernandes, ali morador, e outros mercadores. (inclui carta da Câmara de Lamego, de 10 de Dezembro de 1530, referindo Rui Fernandes como titular desse ofício juntamente com o sogro e outros mercadores – desde 20 de Julho desse ano –, onde se transcreve o privilégio real do trato dos bordates de Gestaçô, Baião, outorgado em Lisboa a 6 de Julho de 1528).

Arquivo Distrital do Porto – Contadoria da Comarca do Porto, liv. 4, fl. 50v-51v. [fl. 50v] “Estormento que apresentou o licenciado mestre Donis com ho trelado do privilegeo da feitoria das lonas”. “Saibam quantos este estormento de trelado de privilegyo em pubrica forma dado por mandado e autoridade de justiça virem que no ano do nacimento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhentos e trimta anos aos dez dias do mes de Dezembro na cidade de Lameguo na Camara della estamdo hy ho licemciado Luis d’Almeida juiz de fora com alçada por El Rey noso senhor na dita cidade e seus termos peramte ele juiz e mim tabaliam ao diamte nomeado pareceo Ruy Fernandez escudeiro da casa d’El Rey noso senhor cidadão da dita cidade e morador nella. [E] loguo per ele Ruy Fernandez foy dito ao dito juiz que El Rey noso senhor lhe tinha comcedydo hum privilegyo pera ele e feitores seus parceiros oficiaes das lonas [e] bordates / o quall loguo hy apresemtou em purgamynho fecto por Amtonio Marquez aos vimte dias do mes de Julho de bc. xxx anos e asynado pelo doutor Allvaro Fernandez do desembarguo do dito senhor e seu chamçarell (sic) mor e pasado por a chamcelaria com sello de cera vermelha pemdemte per linha bramca e vermelha segundo todo eu tabaliam vy e no dito privilegyo mais largamente esto e outras cousas sam comtheudas requeremdo ao dito juiz que em pubrica forma lhe mandase dar ho trelado pera dele guozar o lecemceado mestre Donis cidadão da cidade do Porto e morador nela sogro dele Ruy Fernandez porquanto era seu parceiro em yguoall parte no dito trauto dos bordates pera mandar por em boa arrecadação os ditos bordates na dita cidade e os feitorizar e fazer careguar pera El Rey noso senhor com mais seguramça e brevydade ser servido. E visto pelo dito juiz seu requerer mandou a mym tabaliam que lho dese ho quall eu treladey de verbo a verbo e he ho seguimte: «Dom Joam por graça de Deus Rey de Portuguall e dos Algarves d’Aquem e d’Alem mar em Africa senhor de Guine e da comquista, naveguação, comercio de E<t>hiopia, Arabia, Persya e da Imdia. A quantos esta minha carta virem faço saber que no livro do registo dos privillejos que esta em a minha chamcelaria do ano de mil bc. xxbiiiº anos he escripto e registado hũa carta de privilejos que por mim foram comcedidos a Tristam Diaz tratador das lonas e bordates e fio da quall ho trelado de verbo a verbo he o seguimte: “Dom Joham etc. A quantos esta minha carta virem faço saber que queremdo eu fazer graça e merce a Tristam Diaz tratador das lonas e bordates e fio que se faz no comcelho de Gestaço tenho por bem e me praz que ele e quatro feitores 124


Apêndice documental

[fl. 51] seus e todos os oficiaes macanicos do dito trauto e que nele servirem daquy em diamte enquanto durar ho dito trauto sejam escusos de servirem em cousas algũas com suas pesoas e asy ajam e guozem de todalas liberdades que tem os oficiaes de minha armaria; e quero e me praz que em todos os seus feitos cives e crimes seja juiz o meu comtador da cidade do Porto ou ho juiz de fora da dita cidade quall os ditos tratadores mais quiserem; outrosy me praz que as casas que tiverem aluguadas e ao diamte aluguarem nom sejam tomadas d’aposemtadaria e eles posam nelas estar e pousar lyvremente posto que eu vaa aho dito comcelho ou ho Primcipe e Imffamtes meus filhos ou posto que no dito comcelho este a mynha corte; e mamdo ao meu aposemtador moor e333 aposemtadores que asy ho cumprão; e asy ey por bem que ho dito Tristam Diaz e seus feitores e oficiaes do dito trato posam trazer armas deffesas de dia e de noute, não fazemdo com elas mall; e asy mesmo posam amdar em mulas e facas seladas e enfreadas sem embarguo de não terem cavalos e da Ordenação em contrairo; e ey por bem que lhe sejam dadas por homde quer que forem pera eles e pera os seus pousadas, estreberias, camas e mantimentos, bestas, carros e todo ho mais que lhe for necesario por seu dinheiro segundo ho estado da terra. Item: outrosy ey por bem que o sobredito Tristam Diaz, feitores, ofeciaes do dito trato vemçam custas como vemciam os besteiros do comto quando os hy avia e asy lhe sejam comtadas; e mais me apraz que semdo cada hum deles culpado em tall maleficio per que pena de justiça mereça não posam ser açoutados pubricamente nem degradados com baraço salvo como sam os escudeiros; e asy ey por bem que ho dito tratador nem os ditos feitores e offeciaes do dito trato nam paguem peitas algũas, fimtas nem talhas nem outros alguns encarguos nem servidoes que por mym ou por os comcelhos sam ou forem lamçados por quallquer guisa e maneira que seja334 nem yso mesmo serviram nem iram servir em matos, pomtes, fomtes, caminhos, calçadas soomente nas testadas de suas casas / nem iram com presos nem com dinheiros nem seram titores nem curadores de pesoas allgũas que sejam salvo se as titorias forem lidemas; nem yso mesmo serviram em alguns oficios nem carguos meus nem do comcelho comtra suas vomtades posto que pera yso sejam pertemcemtes nem paguarão oytavo de vinho, lynho e legumes que ouverem de suas novidades e lavoiras; e asy me apraz que não paguem sysa nem outro algum dereito d’armas nem de bestas de sela nem d’albarda que comprarem pera seus serviços. Porem o netefico asi a todos os meus coregedores e juizes, justiças, ofeciais e pesoas a que esta minha carta for mostrada e o conhecimento dela pertemcer e lhes mando que imteiramente cumpram e guardem e façam comprir e guardar esta carta ao dito Tristam [fl. 51v] Diaz e mais feitores seus e ofeciaes do dito trato como dito he asy e da maneira que acima he comteudo por que asi ho ey por bem. E por firmeza delo lhe mandey dar esta minha carta por mym asinada e aselada do meu selo pemdemte. Dada em a minha cidade de Lixboa a seis dias do mes de Julho do ano do nacimento de Noso Senhor Jhesus Christo de mill e quinhemtos e vimt’oito anos. E deste theor tynha outra carta feita a tres dias de Setembro de bc. xxbii e por se em alguas partes nom poder ler se fez esta. Manoell de Moura a fez”. Da quall carta que asy no dito livro esta escripta e registada me pedio Ruy Fernandez morador na minha cidade de Lameguo e tratador das lonas [e] bordates que se fazem na dicta cidade que lhe mamdase dar ho trelado em hũa minha carta porquamto no comtrato que ora fezera em a minha fazenda per que tomara ho dito trato por certos anos metera por comdição que ele e os seus feitores e offeciaes que tivese pera ho trato dos ditos bordates guozasem dos privilegios comcedidos ao dito Tristão Diaz e seus feitores e ofeciaes e lhe fora por mym comcedido segundo ho ver poderia pelo dito comtrato que me apresemtou em ho quall se mostra lhe comceder os ditos previlejos duramdo ho tempo do dito comtrato em que o meu chamçarell mor lhe mandase dar ho trelado em pubrica forma. E portamto lha mandey dar toda encorporada nesta minha carta a quall mando que lhe seja imteiramente guardada como se nela comtem duramdo o tempo de seu arremdamemto e comtrato vysto a comdição

333 334

Emendada esta palavra. Riscado: “nem yso mesmo”. 125


Descrição do terreno em redor de Lamego duas léguas (1531-1532)

dele per mym comffirmada sem lhe a ello ser posto duvida nem embarguo algum. Dada em Lixboa aos vimte dias do mes de Julho El Rey ho mandou per o doutor Allvaro Fernandez do seu desembarguo que por seu especiall mamdado tem carguo de seu chamçarell mor; Amtonio Marquez a fez. Ano de Noso Senhor Jhesus Christo de mil bc. xxx anos». O quall privilejo eu Amtonio Lopez pubrico tabaliam por El Rey noso senhor na dita cidade e seus termos bem e fielmente de verbo a verbo do propio tirey por mandado do dito juiz como dito he que esto escrepvi e aqui meu pubrico synall fiz que tall he. Nom faça duvida no riscado omde diz yso mesmo”. “O quall estormento foi apresentado a Diogo Leite contador per o lecenceado mestre Denis aos vinte e nove dias de Dezembro do ano de mil bc. Xxxi. O quall trelado eu escripvam fiz tirar do propio que parecia ser feito e asinado do sinall pubrico do tabaliam nelle conteudo e eu ho fiz aqui treladar de verbo a verbo do dito estromento e ho propio tornei ao dito lecenciado. Luis Gonçalvez o escrevi”.

126




Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Apoios

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental

Jorge Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Quando em 1532 Rui Fernandes acaba de escrever a sua «Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas», apresentando-se então como «Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei», estaria longe de imaginar a importância que, cinco séculos mais tarde, o seu registo teria para o conhecimento da região duriense. Escrevendo num momento de viragem histórica, entrevemos na sua descrição a transição da lógica de produção vinícola Medieval, local, de baixa qualidade e de autoconsumo, para uma lógica Moderna, de produção em quantidade, qualidade e fortemente vocacionada para a «carregação» para os mercados externos. Única descrição pormenorizada do Douro anterior à reforma pombalina, dá-nos uma imagem cheia de pormenor e cor das gentes, costumes, economia e paisagem. Referindo-se demoradamente aos mosteiros cistercienses de São João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, deixa claro o papel que estas abadias tiveram no desenvolvimento agrícola e, especialmente, vinícola do Douro, mormente através das inúmeras granjas monásticas que estiveram na base do sucesso económico da Ordem de Cister, perdurando muitas até hoje como grandes quintas vinhateiras. Apenas publicado pela primeira vez em 1824, pela Academia Real das Ciências, e contando com segunda edição em 1947 pela mão de Augusto Dias, somente em 2001 o manuscrito de Rui Fernandes é alvo da publicação transcrita e comentada que merece, numa iniciativa da Associação Beira-Douro, cabendo então ao historiador Amândio Barros a responsabilidade científica da mesma. Inserido no projeto turístico-patrimonial Vale do Varosa, esta nova reedição do manuscrito de Rui Fernandes pretende contribuir de forma renovada para a sua maior divulgação e acessibilidade, destacando o papel dos mosteiros cistercienses da sub-região do rio Varosa para a construção do Douro como hoje o conhecemos.

© Paulo

Rui Fernandes

Rui Fernandes

Amândio Jorge Morais Barros nasceu no Porto. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto, onde tem feito toda a sua carreira de investigador. Especializou-se nas áreas da História Social e Económica e na História Marítima (área do seu doutoramento: Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, prémio Almirante Sarmento Rodrigues da Academia de Marinha e Prémio Artur de Magalhães Basto de História da Cidade do Porto). As suas publicações têm incidido nestes domínios, assim como nos da História da Cidade do Porto e Douro e História da Expansão, aos quais tem dedicado diversos trabalhos. Professor da Escola Superior de Educação do Porto é pós-doutorado pelas universidades do Porto e de Valladolid, investigador do CITCEM-UP (Centro de Investigação Transdisciplinar. Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto) e membro da Academia de Marinha.


Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Apoios

Amândio Jorge Morais Barros Edição, Estudo Introdutório e Apêndice Documental

Jorge Fernandes

Descrição do terreno ao redor de Lamego duas léguas [ 1531-1532 ]

Quando em 1532 Rui Fernandes acaba de escrever a sua «Descripção do Terreno em roda da cidade de Lamego duas léguas», apresentando-se então como «Cidadão da mesma Cidade, e Tratador das lonas e bordatas de El Rei», estaria longe de imaginar a importância que, cinco séculos mais tarde, o seu registo teria para o conhecimento da região duriense. Escrevendo num momento de viragem histórica, entrevemos na sua descrição a transição da lógica de produção vinícola Medieval, local, de baixa qualidade e de autoconsumo, para uma lógica Moderna, de produção em quantidade, qualidade e fortemente vocacionada para a «carregação» para os mercados externos. Única descrição pormenorizada do Douro anterior à reforma pombalina, dá-nos uma imagem cheia de pormenor e cor das gentes, costumes, economia e paisagem. Referindo-se demoradamente aos mosteiros cistercienses de São João de Tarouca e de Santa Maria de Salzedas, deixa claro o papel que estas abadias tiveram no desenvolvimento agrícola e, especialmente, vinícola do Douro, mormente através das inúmeras granjas monásticas que estiveram na base do sucesso económico da Ordem de Cister, perdurando muitas até hoje como grandes quintas vinhateiras. Apenas publicado pela primeira vez em 1824, pela Academia Real das Ciências, e contando com segunda edição em 1947 pela mão de Augusto Dias, somente em 2001 o manuscrito de Rui Fernandes é alvo da publicação transcrita e comentada que merece, numa iniciativa da Associação Beira-Douro, cabendo então ao historiador Amândio Barros a responsabilidade científica da mesma. Inserido no projeto turístico-patrimonial Vale do Varosa, esta nova reedição do manuscrito de Rui Fernandes pretende contribuir de forma renovada para a sua maior divulgação e acessibilidade, destacando o papel dos mosteiros cistercienses da sub-região do rio Varosa para a construção do Douro como hoje o conhecemos.

© Paulo

Rui Fernandes

Rui Fernandes

Amândio Jorge Morais Barros nasceu no Porto. Licenciou-se em História pela Faculdade de Letras do Porto, onde tem feito toda a sua carreira de investigador. Especializou-se nas áreas da História Social e Económica e na História Marítima (área do seu doutoramento: Porto: a construção de um espaço marítimo nos alvores da Época Moderna, prémio Almirante Sarmento Rodrigues da Academia de Marinha e Prémio Artur de Magalhães Basto de História da Cidade do Porto). As suas publicações têm incidido nestes domínios, assim como nos da História da Cidade do Porto e Douro e História da Expansão, aos quais tem dedicado diversos trabalhos. Professor da Escola Superior de Educação do Porto é pós-doutorado pelas universidades do Porto e de Valladolid, investigador do CITCEM-UP (Centro de Investigação Transdisciplinar. Cultura, Espaço e Memória – Universidade do Porto) e membro da Academia de Marinha.


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