Revista Arte Sesc - 1º semestre 2015

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PRIMEIRO SEMESTRE

2015 ISSN 1984-056X

UMA DÉCADA DE Festival Palco Giratório PoA Também nesta edição

Caderno de Teatro: Os processos criativos do Grupo Galpão Literatura: O Biênio Simoniano



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


24

08

35

artes cênicas

caderno de teatro

música

08 Festival Palco Giratório Porto Alegre, que

24 Grupo Galpão, de Minas Gerais: Um diálogo

35 Marcio Petracco, músico do Conjunto

completa 10 anos em maio de 2015, faz parte

entre o popular e o erudito, a tradição e a

Bluegrass Porto-alegrense, relaciona

de um projeto nacional que envolve a maior

contemporaneidade, o teatro de rua e de

o movimento da música de rua com o

curadoria da América Latina

palco, o universal e o regional brasileiro

crowdfunding

18 Cia. Gira Dança participa do Festival Palco Giratório com Proibido elefantes, espetáculo que explora o olhar como via de acesso,

36 Festival Kino Beat, em agosto, transformará Porto Alegre em território de experimentos em áudio e visual

entrada e saída de significados 22 Artigo do pesquisador francês Jean-Michel Guy reflete sobre a evolução do circo no século 21

O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

DIRETORIA

UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL

Luiz Carlos Bohn

Sesc Alegrete  R. dos Andradas, 71  55 3422.2129 Sesc Bagé  R. Barão do Triunfo, 1280  53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves  Av. Cândido Costa, 88  54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul  R. Sete de Setembro, 1324  51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha  R. João Pessoa, 27  51 3439.1751 Sesc Camaquã  R. Marcílio Dias Longaray, 01  51 3671.6492 Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Sesc Carazinho  Av. Flores da Cunha, 1975  54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul  R. Moreira César, 2462  54 3221.5233 Sesc Centro POA  Av. Alberto Bins, 665  51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA  R. Vig. José Inácio, 718  51 3286.6868 Sesc Chuí  Av. Uruguai, 2355  53 3265.2205 Sesc Comunidade POA  R. Dr. João Inácio, 247  51 3224.1268 Sesc Cruz Alta  Av. Venâncio Aires, 1507  55 3322.7040 Sesc Erechim  R. Portugal, 490  54 3522.1033 Sesc Farroupilha  R. Coronel Pena de Moraes, 320  54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen  R. Arthur Milani, 854  55 3744.7450 Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Sesc Gravataí  R. Anápio Gomes, 1241  51 3497.6263 Sesc Ijuí  R. Crisanto Leite, 202  55 3332.7511 Sesc Lajeado  R. Silva Jardim, 135  51 3714.2266 Sesc Montenegro  R. Capitão Porfírio, 2205  51 3649.3403

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Luiz Tadeu Piva

Diretor Regional Sesc/RS

GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento www.sesc-rs.com.br

Gerente de Cultura

coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura

Anderson Mueller Música e Cinema

Jane Schöninger

Artes Cênicas e Artes Visuais

Sesc Navegantes POA  Av. Brasil, 483  51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo  R. Bento Gonçalves, 1537  51 3593.6700 Sesc Passo Fundo  Av. Brasil, 30  54 3311.9973 Sesc Pelotas  R. Gonçalves Chaves, 914  53 3225.6093 Sesc Redenção POA  Av. João Pessoa, 835  51 3226.0631 Sesc Rio Grande  Av. Silva Paes, 416  53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul  R. Ernesto Alves, 1042  51 3713.3222 Sesc Santa Maria  Av. Itaimbé, 66  55 3223.2288 Sesc Santa Rosa  R. Concórdia, 114  55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento  R. Brig. David Canabarro, 650  55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo  R. 15 de Novembro, 1500  55 3312.4411 Sesc São Borja  R. Serafim Dornelles Vargas, 1020  55 3431.8957 Sesc São Leopoldo  R. Marquês do Herval, 784  51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga  R. Treze de Maio, 1871  55 3352.6225 Sesc Taquara  R. Júlio de Castilhos, 2835  51 3541.2210 Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400 Sesc Tramandaí  R. Barão do Rio Branco, 69  51 3684.3736 Sesc Uruguaiana  R. Flores da Cunha, 1984  55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires  R. Jacob Becker, 1676  51 3741.5668 Sesc Viamão  R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457  51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA  Av. Protásio Alves, 6220  51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado  Av. das Hortênsias, 4150  54 3286.0503 Hotel Sesc Torres  R. Plínio Kroeff, 465  51 3626.9400


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46

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CINEMA

ARTES VISUAIS

literatura

38 Artigo de Marco Aurélio Lopes Fialho analisa

46 Exposição Canteiro de obras, de

54 João Luis Pereira Ourique analisa as obras

o expressionismo no cinema alemão a partir

Claudio Tozzi, com curadoria de Fábio

menos conhecidas do pelotense João

da Mostra Sombras que assombram, em

Magalhães e circulação pelo Sesc/RS

Simões Lopes Neto, desde O Boato, de 1894,

circulação por diversos municípios do Rio

prevista para o segundo semestre, faz

inserindo o autor de Contos gauchescos

Grande do Sul pelo projeto Cine Sesc

um paralelo entre os acontecimentos

no cenário urbano e rompendo com a

marcantes da década de 1960 até os

denominação única de escritor regionalista

anos 2000 e a obra do artista 58 Rodrigo Rosp faz uma reflexão sobre a literatura contemporânea a partir da linguagem, do contexto e da estética 59 Contos de Gustavo Czeskter 61 Leitura

BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada  Av. Getúlio Vargas, 941  51 3411.7613 Balneário Pinhal  Av. General Osório, 1030  51 3682-3041 Caçapava do Sul  Av. 15 de Novembro, 267  55 3281.3684 Capão da Canoa  Av. Paraguassu, 1517 Loja 2  51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale  R. Álvares Cabral, 880  51 3490.4929 Guaíba  R. Nestor de Moura Jardim, 1250  51 3402.2106 Itaqui  R. Dom Pedro II, 1026  55 3433.1164 Jaguarão  R. 15 de Novembro, 211  53 3261.2941 Lagoa Vermelha  Av. Afonso Pena, 414 Sala 104  54 3358.3089 Nova Prata  Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B  54 3242.3302 Osório  Av. Getúlio Vargas, 1680  51 3663.3023 Palmeira das Missões  R. Marechal Floriano, 1038  55 3742.7164 Quaraí  R. Baltazar Brum, 617 3º andar  55 3423.5403 Santiago  R. Pinheiro Machado, 2232  55 3251.5528 São Gabriel  R. João Manuel, 508  55 3232.8422 São Sebastião do Caí  R. 13 de Maio, 935 Sala 04  51 3635.2289 São Sepé  R. Coronel Chananeco, 790  55 3233.2726 Sobradinho  R. Lino Lazzari, 91  51 3742.1013 Três Passos  Rua Dom João Becker, 310  55 3522.8146 Vacaria  R. Júlio de Castilhos, 1874  54 3232.8075

coordenação, execução e produção editorial Pubblicato Editora

Rua Mariante, 200  Sala 02  51 3013.1330  Porto Alegre/RS

Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento

Vitor Mesquita

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Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte

PRIMEIRO SEMESTRE

2015 ISSN 1984-056X

UMA DÉCADA DE Festival Palco Giratório PoA

Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396)  Edição e Reportagem

Greice Zenker

Revisão de Texto

Ideograf

Impressão de 1.500 exemplares

Também nesta edição

Caderno de Teatro: Os processos criativos do Grupo Galpão Literatura: O Biênio Simoniano

CAPA

Espetáculo O jardim, da Cia. Hiato (SP) Foto: divulgação


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Claudio Tozzi, Astronautas (1969) Serigrafia sobre papel 22,5 x 40,5 cm

10 anos de muita cultura Vivemos uma década de muita prosperidade na cultura. Neste ciclo, o que vimos foi uma efervescência de boas ideias, de boas vibrações e de sucessos construídos com muita seriedade e profissionalismo. Estamos falando dos 10 anos do Festival Palco Giratório, um evento que se consagrou na Capital e movimenta o Rio Grande do Sul, trazendo leituras multifacetadas do que é fazer e viver da arte no Brasil. Mas além do Festival Palco Giratório, que acontece em maio, olhar para estes 10 anos nos faz perceber que muito se fez também no Interior por meio do programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Muitas circulações de espetáculos, centenas de sessões de cinema, musicais, exposições de nomes consagrados e também de artistas iniciantes de todas as idades e estilos. Esta edição da Revista Arte Sesc nos permite recordar muitos destes momentos em que a cultura foi a protagonista de nossas ações de estímulo ao bem-estar dos gaúchos. Não se pode, nem se deve categorizar demais a arte, mas esta análise é válida e revigora para os próximos anos o entendimento de que o correto é seguir por este caminho de valorização da cultura, como uma das melhores formas de contribuir para o desenvolvimento da nossa sociedade. O que vem aí neste 10º Festival Palco Giratório com certeza vai nos emocionar e nos desafiará novamente a olhar o mundo de uma forma mais empática, mais suave. Nas páginas que se seguem, além do texto sobre o espetáculo Proibido elefantes, uma das atrações de maio em Porto Alegre, encontraremos relatos sobre o Santa Maria Sesc Circo, um artigo do francês Jean-Michel Guy e temas como música de rua, cinema e literatura. Esta, com foco especial nas homenagens a Simões Lopes Neto, cujo centenário de morte será lembrado em 2016. Um outro ícone da cultura brasileira, a quem devemos nossa homenagem é Bárbara Heliodora. Falecida em abril último, a mais importante crítica teatral do País nos deu o privilégio de tê-la no Rio Grande do Sul, em 2008, durante a programação do Festival Palco Giratório. Celebremos, então, tudo o que vivemos nestes 10 anos! Boa leitura!

Luiz Carlos Bohn

Luiz Tadeu Piva

Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac

Diretor Regional Sesc/RS


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ARTES CÊNICAS

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Uma década de Festival Palco Giratório em Porto Alegre De 8 a 31 de maio, evento do Sesc promove o “pouso” de 42 coletivos de todos os cantos do Brasil com espetáculos dos mais diversos gêneros das artes cênicas


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A história do Festival Palco Giratório, que

O festival reúne todos os trabalhos selecio-

mação sistemática e o intercâmbio com outros

completa 10 anos em Porto Alegre no mês de

nados durante o ano para circuitos para uma dis-

artistas, seja no festival seja nas atividades rea-

maio, inicia oito anos antes, quando foi criado o

cussão sobre o que está sendo produzido em artes

lizadas durante o ano inteiro, entendendo a frui-

Circuito Palco Giratório, projeto do Sesc que tem

cênicas no Brasil, possibilitando este olhar pela

ção de espetáculo como formação, assim como

uma curadoria formada por profissionais da área

comunidade, pela cidade. “São momentos em que

as atividades mais formais, entre elas as oficinas

da cultura dos departamentos regionais de todo o

as companhias pousam nestes locais onde acon-

e os bate-papos. “A curadoria acaba tendo este

País junto com representantes do Departamento

tecem os festivais, ao todo 11 no País, e depois se-

compromisso, que é até de desapego, de não es-

Nacional. Anualmente, são selecionados 20 cole-

guem circulando. No Rio Grande do Sul, iniciamos

tarmos enraizados em nosso estado. Nosso desejo

tivos que circulam por todo o Brasil, das capitais

em 2005. Antes, já existiam os circuitos no interior,

é o que menos conta. O compromisso é compor

às cidades mais remotas, as quais raramente têm

porém, com menos cidades, não tanta força. Esta

uma programação, identificar possibilidades lo-

oportunidade de receber espetáculos de outros

força veio com a discussão gerada no festival, que

cais ou regionais que possam circular pelo Brasil

estados e com tamanha qualidade.

também promove o intercâmbio entre os artistas”,

e travar uma discussão ímpar em qualquer lugar.”

explica a coordenadora de Artes Cênicas e Artes Visuais do Sesc/RS, Jane Schöninger. Pelo circuito, as companhias saem do interior para a capital, outras saem da capital para o interior. Não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o País.

Curadoria Atualmente, a curadoria do projeto Palco Giratório é considerada a maior da América Latina, no sentido de estabilidade. “O Sesc possibilitou que construíssemos uma curadoria autônoma, formada por um grupo de pessoas que têm legitimidade dentro da instituição para definir, desde questões administrativas do projeto, pensando no Brasil, e, principalmente, o que programar”, destaca. O olhar é sempre muito embasado para

Cinco companhias participam do 10º Festival Palco Giratório com seus repertórios

novas propostas, coletivos que tenham a possibi-

Na página da esquerda, no sentido horário:

lidade de apresentar trabalhos que sejam inova-

O jardim (Cia. Hiato)

dores na sua região, mas comum a outros locais.

Foto: Divulgação

Leva-se em conta o espaço por questões geográ-

As três irmãs (Cia. Traço)

ficas e de acesso. “No Norte do País – exemplifica a coordenadora –, o acesso a espetáculos, às novas produções, por questões geográficas e econômicas, é muito difícil. Mesmo assim, temos o compromisso de redobrar o olhar sobre a produção que existe, por entendermos que é importante pos-

Foto: Andréa Rêgo Barros

Ficção (Cia. Hiato) Foto: Otávio Dantas

Dente de leão (Teatro Espanca!) Foto: Divulgação

Na página da direita, no sentido horário: Playlist (Movasse) Foto: Guto Muniz

sibilitar que grupos daquele local circulem por

Nowhereland (Movasse)

outras regiões, a fim de mostrar o seu trabalho,

Foto: Guto Muniz

para formar uma rede.” A curadoria sente-se res-

Estardalhaço (Cia. Traço)

ponsável pelo desenvolvimento local dos grupos selecionados. Desta forma, promove uma progra-

Foto: André Jonsson

Congresso Internacional do Medo (Teatro Espanca!) Foto: Divulgação


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Curadoria prioriza trabalhos continuados de grupos que desenvolvem uma pesquisa de linguagem

Mais do que o resultado estético dos espetá-

contempla um gênero, gera uma discussão entre

culos, a curadoria considera também o resultado

os curadores: O que está havendo? Não está se

Na página da esquerda:

ético do grupo, no sentido de identificar, entender

produzindo? Não estamos instigando localmente?

a ação do projeto como formação – até mesmo a

Não estamos fazendo circular? Já aconteceu com

Foto: Claudio Etges

formação do público como cidadão – e de fomen-

a dança. Em 2014, foi o teatro de formas anima-

Eugenio Barba no 7º Palco Giratório

to à discussão de política pública de artes cênicas

das, que chega a esta edição do festival com três

no País. “Estamos gerando mercado, possibilitan-

espetáculos, para diferentes públicos. O coletivo já

do redes, incentivando novas propostas artísticas.

identificou, conforme Jane, a defasagem do circo

Este intercâmbio é o mais significativo para o Sesc,

tradicional e está garimpando as companhias em

questões que ficam nos locais, e que destes vão

todo o Brasil. “É um trabalho artesanal, de irmos

Foto: Claudio Etges

para outros.” Ao falar em ética, Jane salienta o

atrás, temos a obrigação de estarmos nos teatros,

Demonstração de trabalho de Julia Varley

olhar muito cuidadoso para o histórico do grupo,

de Norte a Sul. É uma rede viva, uma roda, um ca-

que tipo de pesquisa estão desenvolvendo, se há

leidoscópio, de olhar tudo por diversos ângulos,

um trabalho de continuidade. “O que realmente

diversas formas, todo o tempo.”

Atividade de formação com o Odin Teatret

Foto: Claudio Etges

Na página da direita, no sentido horário: O patrão cordial (Cia. do Latão) Foto: Sérgio de Carvalho

Cortejo Abre-alas (Lume Teatro)

Foto: Claudio Etges

Demonstração de trabalho Antropologia teatral com Odin Teatret Foto: Claudio Etges

importa na discussão é a formação de plateia, a reflexão, a crítica, além de todas as questões mais visíveis, que é este próprio intercâmbio de ideias

Os convidados

entre os artistas”, justifica.

O projeto nacional do Festival Palco Giratório in-

Outro aspecto muito importante do proje-

centiva a ampliação da programação localmente,

to é a acessibilidade para os gêneros. Por exem-

por meio de espetáculos convidados. No caso do

plo, se, em algum momento, a programação não

festival de Porto Alegre, esta ação foi potenciali-


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zada e, na 10ª edição, são 22 os espetáculos con-

por trás, no que o espetáculo pode reverberar e

vidados, de diversos lugares. Os critérios locais são

construir de diálogo, em especial, para a plateia,

os mesmos da curadoria nacional e se baseiam na

este espectador interessado nos espetáculos

Diversidade geográfica

troca de informações entre a rede. “Sempre com

que não estão na grande mídia”, justifica. Sobre

O Palco Giratório surgiu da necessidade de am-

um olhar mais cuidadoso e sensível para trabalhos

a diversidade de gêneros, para Jane, às vezes, as

pliar o foco para além da produção oriunda do

de grupo, isto, para nós, é uma prioridade. O que

pessoas têm o interesse de ir ao teatro para ver

eixo Rio-São Paulo. Predominantemente, eram

precisamos discutir são trabalhos de repertório,

comédia, mas há outras possibilidades no teatro.

dos dois estados – em especial das capitais – os

trabalhos que os grupos vêm desenvolvendo em

“Esta questão do público, da recepção, é extrema-

espetáculos que circulavam. O projeto surgiu

determinado tempo, uma ação contínua sobre de-

mente importante, por isto há riscos na progra-

para possibilitar este movimento de outros ar-

terminada linguagem, ou que não seja a mesma

mação e sabemos que podem causar incômodo,

tistas irem ao encontro a outras plateias e fazer

linguagem específica, mas que se veja um movi-

e esse incômodo fará você se movimentar, de

também com que os do Rio e São Paulo circulas-

mento de um coletivo em prol de um resultado

alguma forma.”

sem para diferentes localidades a fim de conhe-

seja positivo seja negativo. Isso se torna mais im-

Apesar de todas as questões, o resultado do

cerem outras realidades das artes cênicas, mas

espetáculo como um todo também é avaliado.

não como colonizadores. O mesmo olhar existe

“Mas não temos a pretensão, nem a curadoria na-

para o Rio Grande do Sul. “Fico acompanhando

Riscos calculados

cional, muito menos a local, de trazer as melho-

quem está produzindo, também sendo sensível

res produções, até porque sempre depende de um

para cada realidade. Sensibilidade é o que preci-

Jane admite que há riscos na programação – es-

ponto de vista, de um repertório de vivência que

samos ter. Sabemos como é difícil, até na capital,

petáculos que algumas pessoas vão gostar, outras

cada um tem. O que é melhor pra mim pode não

esta manutenção, estar estabelecido como gru-

não – e que é proposital. “Sei onde estão e isso

ser para o outro, então por isto a seleção é emba-

po de teatro e viver de teatro. Temos um olhar

acontece porque não estou com este olhar especí-

sada em outros critérios que transcendem o ‘estes

sensível para quem continua pesquisando, bus-

fico na questão da estética, mas, sim, no que está

são os melhores’.”

cando alternativas para seu trabalho, seja por

portante do que o resultado estético final em si.”


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Gestão cultural, programação cultural e curadoria são funções similares, porém distintas Espetáculo Till (2010) Foto: Claudio Etges

meio de oficinas, ou trocas feitas pontualmente com grupos de fora da cidade.” Desde o início do projeto, pensando sobre

Residências artísticas

Cortiços (Cia. Luna Lunera) Foto: Gustavo Jacome

Aqueles dois (Luna Lunera)

Foto: Claudio Etges

a diversidade geográfica, há a valorização de

Uma característica do Festival Palco Giratório são

grupos do interior, com objetivo de levá-los à

as residências artísticas, nas quais grupos pousam

capital para fazer este diálogo, para apresentar

com seus repertórios para fortalecer o intercâm-

seus trabalhos. Na programação do 10º Festival,

bio, a troca de processos e até mesmo transformar

tem o espetáculo Avental sujo de ovo, do Gru-

a plateia de fato em espectadores. Ao longo de 10

po Ninho de Teatro, do Cariri, interior do Ceará.

anos, já participaram do festival de Porto Alegre

O espetáculo 1, 2, 3 echá!, de Odelta Simonetti

com seus repertórios, entre outros, o Odin Teatret,

àquele resultado. Gera discussões, comparativas,

e Ana Fucks, é da Serra gaúcha, e o grupo Teatro

da Dinamarca; a Cia. do Latão, o Grupo XIX de Tea-

de processos que foram sendo aperfeiçoados, ou

Vagamundo, de Santa Maria, apresenta Banana

tro, a La Minima e Os Satyros, de São Paulo; Lume,

o caminho que mudou, e não apenas sobre o fazer

com canela, Cabaré Lange Ri e o documentá-

de Campinas; Grupo Galpão e Cia. Luna Lunera, de

teatral. Jane afirma que, muitas vezes, o público, o

rio cênico Nas margens do riso – quilombos de

Minas Gerais; do Rio de Janeiro: Amok e Cia. Etc. &

espectador comum, quer saber questões bem me-

alegria e luta. Em 2014, teve um espetáculo do

Tal, além de Cacá Carvalho e também os gaúchos

nos complexas sobre o trabalho. “E isto para nós é

interior do Piauí. “Queremos dizer que existem

da Cia. Rústica e Cia. Stravaganza. Na 10ª edição,

importante também, possibilita de alguma forma

possibilidades nestes locais e colocamos em

estarão com seus repertórios a Cia. Hiato, de São

uma troca com este público não acostumado a

discussão para os outros coletivos que estão

Paulo; Espanca! e Movasse, de Minas; Cia. Traço,

espetáculos de pesquisa, e os repertórios são uma

nas capitais. É preciso ter esta troca, conhecer o

de Santa Catarina; e Teatro Vagamundo.

forma de materializar toda essa preocupação da

trabalho do outro, e o interior precisa ser mos-

A apresentação do repertório é o que pos-

trado, seja pensando em Rio Grande do Sul seja

sibilita ao público perceber mais claramente a

em Brasil.”

questão ética e a trajetória percorrida até chegar

Cacá Carvalho em umnenhumcemmil Foto: Lenise Pinheiro

Ladeira da memória ou labirinto da cidade (Teatro Ventoforte) Foto: Divulgação

curadoria de pensar em trabalhos de grupos que tenham uma continuidade.”


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depoimentos

EM 10 anos:  355 espetáculos   745 sessões

Uma tontura de regionalidade O que mais me toca no Festival Palco Giratório de Porto Alegre é a curadoria local. Existe uma relação minha com o Sesc/RS muito particular, porque a coordenação de cultura percebeu em mim um interesse que é maior, que eu não somente me interesso em participar de um projeto dessa natureza, mas que, ao participar, me interesso também em manter contato com as pessoas que produzem as suas realidades de teatro nas suas realidades de cidade. Nesse sentido, eu saio lucrando muito e minha experiência humana e artística resulta grande. Saio mais rico, porque tenho um aprendizado maior, tenho esta mania de roubar o ponto de vista das pessoas e deixar que elas roubem o meu. Mantenho um tipo de encontro com pessoas de todos os lugares que, hoje, fazem parte não só da minha agenda telefônica, mas da minha agenda de amizade. Paralelo a isso, existe esta palavra “giratória” que, pra mim, é muito significativa. Todo o giro provoca vento e todo vento faz bem, altera o

andamento, a percepção de mundo que você tem. Porque gira o seu eixo, gira sua visão, gira o seu trabalho, gira nas cidades. Não é que você passa nas cidades, você realmente gira. E isso faz muito bem, dá uma tontura de regionalidade, no sentido de tontura mesmo, tontura boa, porque te tira do teu centro. E te faz perceber realidades culturais que não seriam percebidas em outro contexto. Nenhum outro projeto desta natureza te oferece a possibilidade de não só te apresentar, mas perceber realidades de público, de produção de trabalho e perceber a dimensão do trabalho do Sesc como entidade. Parece que o festival de Porto Alegre é diferente, porque existe uma curadoria do lugar, que junta outros espetáculos, que faz circular, dá uma dinâmica diferente, não faz somente o que foi decidido nacionalmente. Tem uma pessoalidade, junta encontros, palestras e oficinas e vira uma festa. É uma grande festa, uma celebração ao teatro que é feito. Cacá Carvalho, Ator e diretor

Caminho de mão dupla Maio é sempre o mês da celebração das artes cênicas em Porto Alegre. Porque há 10 anos o Sesc/RS compartilha com artistas e espectadores gaúchos a grande festa que é o Palco Giratório. Espetáculos de todos os tamanhos e formatos, gêneros e estilos diversos, circulam pela cidade em uma programação da mais alta qualidade, com intenso foco no teatro de grupo, de pesquisa, de invenção. Teatro adulto, infantil, de rua, performances, intervenções urbanas e atividades formativas percorrem as cidades gaúchas e criam possibilidades para a reinvenção do nosso fazer artístico ao trazer até nós o teatro que se faz em diversos cantos de nosso enorme País. E as produções locais circulam pelo Brasil, num caminho de mão dupla, que incentiva e divulga o melhor teatro gaúcho. Adriane Mottola Atriz e diretora teatral (Cia. Stravaganza)

Ferramenta de formação de plateias O Festival Palco Giratório é um dos principais fomentadores das artes cênicas no Brasil e apresenta uma política voltada à descentralização. A essência do projeto lembra os primeiros festivais criados pelo diplomata e crítico teatral Carlos Magno Paschoal (19061976), voltados para o teatro de estudantes. Os festivais nacionais de teatro de estudantes surgiram, no final da década de 1950, com o objetivo de aproximar regiões e para que fosse possível trocar experiências com artistas de outros estados. Passando por diferentes cidades, o festival chegou a Porto Alegre, em 1962. Me parece que é o que o Sesc vem fazendo com o teatro profissional, atravessando fronteiras e entendendo que o teatro é feito de presença, não é uma arte da reprodutibilidade. Portanto, é preciso a presença física do espectador para que o fenômeno teatral aconteça. Por isso, é tão importante que existam


es

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Hygiene (Grupo XIX de Teatro) Foto: Regina Acatu

Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo (Grupo XIX de Teatro) Foto: Adalberto Lima

Kavka – agarrado num traço a lápis (Lume Teatro) Foto: Adalberto Lima

Carlos Simioni, na demonstração de Prisão para Liberdade Foto: Claudio Etges

251 grupos participantes    302 atividades formativas    + 50 espaços da cidade festivais de artes cênicas como esse, que levam os espetáculos de diferentes regiões e características ao espectador, proporcionando intercâmbio cultural e artístico e sendo uma ferramenta de formação e renovação de plateias. Michele Rolim Jornalista MOSTRA COMPETENTE É com ansiedade e muita expectativa que, todos os anos, aguardo o mês de realização do Festival Palco Giratório POA, garantia de uma mostra competente do teatro brasileiro. Um verdadeiro prazer essa “correria” para tentar acompanhar esse grande Festival. O público e a classe artística agradecem! Liane Venturella Atriz e diretora

Iniciativa criativa e poderosa Tive o prazer e orgulho de participar algumas vezes do Festival Palco Giratório em Porto Alegre e por duas vezes do Palco Giratório Nacional. Não há nada mais prazeroso do que compartilhar o resultado, o seu produto cultural e com o apoio total de uma instituição como o Sesc, apresentar-se na própria cidade e viajar pelo País mostrando o trabalho feito, trocando experiências com outros grupos, desbravando as possibilidades de intercâmbios e passando um pouco do seu conhecimento por meio de oficinas de formação ou informação. E é evidente que tudo isso faz a gente sentir orgulho de ter, neste País, uma iniciativa tão poderosa, criativa e competente como a do Sesc, este grande servidor social e multiplicador cultural que faz com que a arte, de um modo geral, sobreviva e seja valorizada e mostrada em todos os cantos do Brasil, onde houver alguém interessado em beber conhecimento e entretenimento.

São tantas experiências e histórias adquiridas, por nós artistas, dentro desse projeto maravilhoso, vários momentos emocionantes e humanos que vivenciei ao longo desse processo. A importância, também, dos debates com o público ao final de cada espetáculo e também a análise crítica do que foi apresentado. Discussões pertinentes e necessárias que contribuem para a nossa evolução como criadores. O teatro precisa e muito dessa grande iniciativa e que a vida seja longa! E que os 10 anos se multipliquem em muitos outros 10! Nelson Diniz Ator e diretor

circulação, reflexão Como artista, reconheço o papel fundamental que o Sesc desenvolve junto às realizações artísticas no Brasil, promovendo a circulação e a reflexão de obras, o que auxilia na manutenção do trabalho de muitos profissionais. A cada ano, percebo que o Festival se aproxima cada vez mais do público, dos artistas e das produções, trazendo o afeto e o respeito nas relações estabelecidas. Um exemplo bem explícito para mim foi a 9ª edição, realizada em forma de residência artística, na qual os grupos permaneciam cinco, seis, sete dias na cidade, apresentando seus repertórios e podiam, de fato, trocar com os demais artistas que estavam na cidade, e com os artistas locais. A ideia de “festival” se dá de forma pura, na qual a celebração e a comunhão são o foco do acontecimento. São louváveis ações como esta que, mesmo amparadas pela formalidade institucional, trazem respiros humanitários e afetuosos ao trabalho. Vida longa ao Palco Giratório! Thiago Pirajira Ator e produtor


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

POR Antonio Hohlfeldt

16

Jornalista, mantém coluna semanal de crítica no Jornal do Comércio, de Porto Alegre

Palco Giratório: diálogo, formação de plateia, identidade nacional Tenho dito que Porto Alegre, desde o lançamento

cia, antecipar o impacto profundamente emocio-

espetáculo já teria valido a pena. Mas é evidente

do Palco Giratório do SESC, passou a ter dois gran-

nal que provocou na plateia.

que o Palco tem trazido muito mais coisas, e um

des festivais de artes cênicas em sua agenda anual,

Lembro bem: como procuro sempre fazer,

de seus aspectos mais importantes é o conjunto

felizmente, um em cada semestre do ano, o que

estava na primeira fila, junto ao palco. Ao longo

de cursos e oficinas, a possibilidade de encontros

otimiza as oportunidades para que se possa acom-

da encenação, que avançava até o público, que

que permite entre os diferentes grupos teatrais.

panhar com proveito a ambas as programações.

variava constantemente sua estética e sua ma-

Neste Brasilzão de meu deus, tão imenso quan-

No segundo semestre, é o tradicional Porto Alegre

neira de revelar-se, a plateia não sabia bem o

to desconhecido, só iniciativas deste tipo levam

em cena. No primeiro semestre, é o Palco Giratório.

que fazer. Também ao final, quando a história de

a gente a conhecer o outro lado do nosso País,

Cada um tem seu estilo e suas característi-

Gabriela se conclui (se conclui?), houve, primeiro,

nossa produção cultural nem sempre valorizada e

cas. No caso do Palco Giratório, a ênfase é sobre

um silêncio entre constrangido e estupefato e,

reconhecida, mas que é altamente qualificada e,

os espetáculos nacionais e, neste sentido, valoriza

depois, o aplauso, que arrancou de uma hora para

mais, genuinamente nacional.

o regional: podemos assistir a espetáculos oriun-

a outra, e não parou. A gente chorava, aplaudia,

Como espectador, como profissional que,

dos de todo o País, enquanto o interior pode co-

ria, tinha vontade de berrar (não era só gritar, era

há décadas, acompanho o movimento teatral

nhecer trabalhos produzidos na capital, etc.

berrar), de certo modo queria sair da poltrona e

no Brasil e no Rio Grande do Sul, só posso tor-

correr ao palco e abraçar os atores/personagens.

cer para que tal iniciativa se mantenha. E agra-

O conjunto de trabalhos apresentados tem sido variável, o que garante tornar-se um re-

Raras vezes tive um impacto tão forte ao

decer àquele anônimo que, um dia, teve esta tão

trato e um reflexo daquilo que se faz no teatro

assistir a um espetáculo. Baskerville foi de uma

extraordinária ideia e iniciativa. Certamente, ela

brasileiro, fora do chamado teatrão das grandes

inspiração inesquecível; de uma coragem admi-

está ajudando/ajudará à formação de plateias e

companhias e dos grandes dinossauros da televi-

rável; de uma eficiência, junto com seu grupo,

a uma consciência mais forte do que somos, de

são. Esta variedade tem sido provocativa e pro-

definitiva. Poucos meses depois, em São Paulo,

nossas contradições, sim, mas também de nossas

dutiva, na medida em que incentiva outros gru-

encontrei, numa banca de revistas da Avenida

identidades.

pos a também traçarem seus próprios caminhos.

Paulista, uma edição mais ou menos anônima da

É evidente que, como amostra e seleção varia-

peça e, mais valioso, com fotografias e alguns do-

da, teremos altos e baixos, melhores e nem tão

cumentos relativos à montagem original. Quando

bons espetáculos assim. Mas isso não é uma fa-

o espetáculo foi novamente programado pelo

lha dos responsáveis pelo Palco e, sim, talvez sua

Palco Giratório, no ano seguinte, lá estava eu, na

melhor qualidade: dá uma dimensão real do que

primeira fila, e minha relação com o espetáculo

fazemos. O melhor exemplo que posso citar foi

foi tão intensa – eu diria mais, porque já conhecia

a apresentação de Luis Antonio – Gabriela, origi-

o texto e podia prestar melhor atenção em pe-

nal de Nelson Baskerville, dirigido por ele mesmo.

quenos detalhes e sentir melhor suas nuanças –

O trabalho da Cia. Mugunzá de Teatro, de São

quanto da primeira vez.

Paulo, chegou de certo modo precedido de algu-

Se mais nada o Palco Giratório do Sesc ti-

ma fama, mas ninguém poderia, de sã consciên-

vesse possibilitado aos amantes do teatro, só este


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

POR Patricia Fagundes

17

Encenadora, pesquisadora e docente do Departamento de Arte Dramática e do PPGAC da UFRGS. Fundadora da Cia. Rústica

discutir, gerar, provocar o fazer teatral. Em 2013, a parceria com o DAD viabilizou um evento que considero marcante na vida cênica da cidade: a

Sobre o Palco Giratório: tempo de conexões

oficina com o coletivo La Postra Nostra e Guillermo Gomez-Peña, finalizada com o espetáculo Os bárbaros: an extreme fashion show. A atividade integrava o festival e o 14º Simpósio da International Brecht Society, realizado em parceria com a UFRGS/PPGAC/DAD, com o tema O espectador criativo: colisão e diálogo. Uma associação entre várias instituições, pessoas, perspectivas; ou seja, um projeto complexo e desafiante, com muitas colisões e diálogos, que criaram experiências po-

Três festivais marcam o calendário das artes

Uma intenção pedagógica, que se manifesta na

cênicas de Porto Alegre: o Palco Giratório, o Fes-

distribuição de ingressos a cursos de teatro

tival de Teatro de Rua e o Porto Alegre em Cena.

e grupos da cidade, na oferta de oficinas, na

Por outro lado, celebro minha experiência

Fazer teatro na cidade, hoje, supõe, inevitavelmen-

organização de debates, no desejo de propor

como artista participante do festival, com espe-

contribuições para a cena da cidade.

táculos incluídos na programação de diferentes

te, uma relação com seus festivais. Relações são

tentes que continuam ressoando em nós.

necessárias para todo organismo, nada que respira

A busca de conceitos norteadores que dialoguem

edições. Em 2014, tivemos a bonita oportunidade

sobrevive em isolamento – vivemos de trocas com

com o contexto da cena contemporânea, como

de realizar uma residência artística que incluiu

o meio, com o outro, com o mundo. O teatro, esse

no caso das residências artísticas de 2014.

todo o repertorio da Cia. Rústica: o baile de seis montagens (Clube do Fracasso, Natalício Cava-

fenômeno que sempre depende de coletivos e de presenças compartilhadas, se compõe a partir de

Considerando tais aspectos, gostaria de res-

lo, O fantástico circo-teatro de um homem só,

conexões possíveis. Como se estabelecem as ne-

gatar momentos em que minha trajetória artís-

Cidade proibida, Miragem, Desvios em trânsito),

cessárias conexões entre o fazer teatral e os festi-

tica/profissional se cruza com as redes tramadas

com debates após algumas apresentações, além

vais de Porto Alegre?

pelo festival, definindo movimentos de intercâm-

de uma oficina que incorporou novos participan-

bio, diálogos e associações possíveis.

tes na experiência de Desvios em trânsito. No

Como não poderia deixar de ser, a rede de relações provocada por cada festival é diferente. Esse

Por um lado, ressalto a importância de even-

momento em que a companhia celebrava 10 anos

texto concentra-se sobre o Palco Giratório, que exis-

tos nascidos a partir de uma troca com o De-

de existência, o festival foi um parceiro de cele-

te há 10 anos e foi se transformando nesse período,

partamento de Arte Dramática da UFRGS, onde

bração. Uma festa cênica, um festival.

crescendo, amadurecendo, afirmando-se como um

atuo como professora e pesquisadora. O DAD é

Para finalizar, ressalto ainda minha partici-

espaço-tempo vital no movimento artístico da cida-

um espaço fundamental na história da cena gaú-

pação como espectadora, uma atividade que tam-

de. Destaco alguns aspectos que me parecem espe-

cha, tanto por seu papel objetivo na formação

bém compõe o fazer teatral (vale sempre lembrar

cialmente relevantes no perfil do festival:

de artistas e docentes como por sua dimensão

que não existe teatro sem espectador, portanto,

O mapeamento da cena contemporânea brasileira,

afetiva, experimental, relacional, propulsora de

ser espectador implica participar da prática cêni-

em suas diferentes vertentes e possibilidades.

desejos, projetos e sonhos. Acredito que o movi-

ca). Assisti várias montagens importantes, tendo

Esse mapa contempla tanto grupos e artistas

mento de conexão do Palco Giratório com o DAD

acesso a convites para alunos e colegas de com-

com uma trajetória consolidada, reconhecen-

evidencia um campo de pensamento que projeta

panhia, oportunizando reflexões compartilhadas.

do as histórias, memórias e referências que

o festival para além de uma mostra pontual de

Longa vida ao Palco Giratório, que con-

compõem nosso presente; como novas pro-

espetáculos. Em 2012, o festival incorporou uma

tinue colaborando na vida artística da cidade,

postas, arriscando-se em apostar no que está

programação especial do Circuito Universitário,

fomentando conexões, desenvolvendo parce-

surgindo, nascendo, compondo experiências.

oferecendo apresentações de montagens de-

rias, fortalecendo sua perspectiva pedagógica,

Um dado importante é que o recorte da cena

senvolvidas por alunos em atividades do curso.

reinventando-se sempre e buscando seu espaço

brasileira inclui a cena gaúcha, que integra a

Além das apresentações, realizamos o seminário

como tempo de reflexão, relações, diálogos, ris-

programação do festival em pé de igualdade

Cena contemporânea e universidade/conexões.

cos, ideias, trocas e desejos de voos.

com produções de outros estados.

Ou seja, uma invenção de espaços para pensar,


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

18

A companhia Gira Dança, de Natal, é uma das participantes do Circuito Nacional do Palco Giratório 2015 e estará em Porto Alegre no mês de maio, no 10º Festival Palco Giratório, com o espetáculo Proibido elefantes. Com 10 anos de existência e mais de 20 prêmios no currículo, entre eles o Rumos Itaú Cultural, o Prêmio Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança, e outros de melhor companhia de dança do Rio Grande do Norte, a Gira Dança vem se destacando no cenário brasileiro – também já se apresentou em Portugal e na Alemanha – pela qualidade, singularidade e sensibilidade de seus espetáculos.

Por que não dançar? Espetáculo Proibido elefantes, da companhia Gira Dança, explora o olhar como via de acesso, entrada e saída de significados


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

19

Cada corpo é como uma impressão digital, pontos característicos e de formações que permitem a um

Uma companhia, duas histórias

perito identificar uma pessoa de

Os fundadores da Gira Dança, Anderson Leão e

forma bastante confiável. Nesse

Roberto Morais, narram suas trajetórias de vida e

caso, nós somos esse perito, somos

como bailarinos até a fundação da companhia, no

responsáveis por perceber essas

final de 2004.

características e potencializar esses corpos diferenciados em

POR Anderson Leão

POR Roberto Morais

diretor artístico

diretor administrativo

outro e comunicar, por meio

Em 1997, ingressei na Universidade Federal do

Eu, Roberto Morais, nascido em 1967, no bairro do

da dança, nossos pensamentos,

Rio Grande do Norte (UFRN) para cursar Artes

Alecrim, em Natal, tive a infância marcada por uma

ideias, opiniões e sentimentos,

com habilitação em Desenho. A dança estava

série de fatores que seriam definitivos para o rumo

cujo resultado reflete nas

presente não só no curso, entre as disciplinas,

da minha vida. Aos 19 anos, sofri um tiro por estar

singularidades em cena e seu

mas no início de uma longa jornada em mi-

negligenciando a minha própria natureza e des-

diferencial técnico.

nha vida, quando recebi o convite do professor

cumprindo o caminho normal da minha trajetória.

Edson Claro para participar de um projeto de

Fiquei paraplégico e, com isso, cinco anos preso em

extensão chamado Cia. de Dança dos Meninos.

casa, crendo que a consequência desse tiro não era

cena. Partimos deste princípio para entender o corpo do

Durante minha trajetória nesta companhia e, em paralelo, as aulas da universidade com

Espetáculo Proibido elefantes está na programção do 10º Festival Palco Giratório Fotos: Brunno Martins

apenas a perda dos movimentos das pernas, mas da minha própria possibilidade de vida.

Edson Claro, passei a conhecer a Roda Viva Cia.

Seis anos depois do incidente, já com um grau

de Dança com direção de Henrique Amoedo, ou-

de aceitação melhor, no meio de uma sessão de

tro projeto de extensão da UFRN que trazia em

fisioterapia, fui convidado para jogar basquete em

seu corpo de bailarinos pessoas com e sem defi-

cadeira de rodas. Fiquei logo motivado com essa

ciência. Ao assistir a coreografia Companheiros

chance de sair de casa com outra atividade. A mo-

de estrada, de Ivonice Satie, fiquei fascinado não

tivação foi tanta que também voltei a estudar e, no

só pelo trabalho apresentado, mas principal-

final de 1994, participando de um torneio de bas-

mente pela competência artística dos bailarinos

quete no Rio de Janeiro, vi na abertura dos jogos

em cena. A emoção que senti me despertou para

uma apresentação de dança em cadeira de rodas

novos rumos e, em 1999, entrei para o elenco

e isso me despertou a curiosidade de saber mais

da Roda Viva. Foram os melhores seis anos de

sobre. Por que não dançar?

aprendizado e dedicação à dança, com coreó-

Em outra oportunidade, recebi do Grupo de

grafos de renome nacional e internacional, entre

Dança Anjori o convite pra fazer parte do elenco.

eles Ivonice Satie, Mário Nascimento, Henrique

Logo aceitei e daí se deu a minha primeira expe-

Rodovalho, Carlos Cortizo e Edson Claro.

riência com dança em cadeira de rodas. Depois de

Depois de muitas histórias, produções, es-

um tempo dançando no Anjori, que seguia uma

petáculos, viagens e emoções, eu e o bailarino

linha mais folclórica, senti necessidade de dar

Roberto Morais resolvemos levantar novos voos,

voos mais altos, conhecer outros modos de lidar

criando a Companhia Gira Dança.

com essa arte; veio a mudança para o Roda Viva


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

20

Cia. de Dança, com um estilo mais voltado para o conhecimento, e a pesquisa de movimentos me impulsionou a buscar cada vez mais as possibilidades do meu corpo. Lá, tive a oportunidade de conhecer e trabalhar com coreógrafos de renome nacional e internacional. E também surgiram pessoas muito importantes na minha história artística, entre elas o Anderson Leão, que, com o tempo e a convivência, selaria uma parceria que dura até hoje. No final de 2004, sob o desejo de sair da companhia, inspirei-me a fundar a minha própria companhia de dança. Foi então que, juntamente com Anderson Leão, surgiu a Gira Dança. Tivemos a nossa estreia em maio de 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com o espetáculo Envolto. Desde então, passamos por diversos processos de crescimento na arte que executamos. Muitas situações trouxeram muita satisfação, mas também muita responsabilidade. Atualmente, não atuo mais como bailarino, por problemas de ordem médica, mas ainda sou bem atuante na direção, vejo o quanto foi proveitoso aquele começo e quantos frutos colhi da minha ousadia de querer evoluir. Vejo a Gira como uma companhia que tem muito a oferecer por sua história, por todo o processo que enfrentou para conquistar seu espaço no cenário da dança. Espero que isso não pare por aí e que, cada vez mais, as pessoas possam abraçar esse sonho e juntos possamos continuar a escrever essa linda, sacrificante e promissora história que é a Gira Dança.

Montagem coreográfica – Proibido elefantes A Companhia Gira Dança assume um papel na dança que é a pesquisa, a investigação do corpo que entrará em cena entendendo o próprio corpo. Independente de limitações físicas, são desses universos que o grupo amplia a possibilidade na arte do dançar. A ferramenta de experiências, segundo o diretor artístico Anderson Leão, é quando a oportunidade, o tempo e a verdade se encontram e


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

21

essa limitação desaparece, pois a obra coreográfica

O olhar enquanto apreensão subjetiva do mundo

para entender a sua importante característica no

transcende no palco.

é, neste trabalho, apontado como elemento poten-

mapeamento da dança brasileira contemporânea.

cializador do sujeito diante do mesmo.

“A valorização de um trabalho, não de inclusão

O projeto para montagem e circulação do espetáculo Proibido elefantes foi contemplado no

Proibir elefantes é restringir o acesso, impe-

e sim de investigação do corpo para a dança, foi

edital do Governo Federal/Procultura em 2011 e,

dir o livre trânsito do animal que serve como meio

criando diálogos positivos entre os editais de in-

no ano seguinte, a companhia trouxe de Berlim o

de transporte na Índia, mas que causaria enormes

centivo à cultura, aos festivais e aos circuitos, au-

coreógrafo e professor de dança contemporânea

transtornos em outras localidades. Proibir elefan-

mentando o campo de oportunidades ao melhor

potiguar Clébio Oliveira para iniciar o trabalho de

tes, neste espetáculo, é proibir o olhar que ressal-

conhecimento da nossa arte entre outros grupos

criação. Com 15 prêmios de melhor coreógrafo na

ta as limitações, os impedimentos; que duvida da

e companhia que caminham lado a lado”, avalia.

carreira e experiência de quatro anos na Compa-

capacidade do sujeito frente à adversidade. Proibir

nhia de Dança Deborah Colker e três na Toula Li-

elefantes, aqui, é apostar no olhar do sujeito sobre

mnaios, em Berlim, que o possibilitou participar de

si e sobre o mundo em que vive como elemento

turnês e dos mais importantes festivais na Europa,

ressignificador e instaurador de realidade.

Ásia e América do Sul, Clébio Oliveira trouxe a ideia

Para Anderson Leão, a Gira Dança é a prova

para o processo de criação que teve como alicerce

de que a dança contemporânea oferece possibi-

a construção dos registros de percepções indivi-

lidades inúmeras para os corpos diferenciados.

duais de cada bailarino, gerados por estímulos da

“Mergulhamos na qualidade artística e na pro-

concepção do coreógrafo.

dução de trabalhos que proporcionem dimensões

Proibido elefantes é um trabalho voltado para

de respeito no mercado cultural do Brasil”, afirma.

a questão do olhar. Quem explica é Daniela Fusaro,

São 10 anos abrindo caminhos importantes e for-

colaboradora da companhia:

talecendo esse diferencial artístico que rompe com

O espetáculo fala do olhar como via de

as limitações de conhecimento de algumas insti-

acesso, porta de entrada e saída de significados.

tuições e potencializa os festivais e circuitos, com a

O modo como percebemos a “realidade” é resultan-

proposta de dialogar e ampliar esse universo.

te do diálogo que estabelecemos com esta: nosso

A participação da Gira Dança no Brasil Move

olhar é constituído pela realidade, assim como a

Berlim, na Alemanha, em 2011, e na representação

realidade é constituída pelo nosso olhar – a cons-

no Ano Brasil Portugal, em 2013, segundo o dire-

trução do sentido transita em via de mão dupla.

tor, foi crucial no amadurecimento da companhia

Fotos: Brunno Martins


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

POR Jean-Michel Guy

22

Pesquisador no Ministério da Cultura da França, com atuação na área de sociologia das práticas culturais e dos públicos. É autor de vários artigos, livros, DVDs e de um filme sobre a temática do circo. Cofundador do coletivo La Scabreuse, é coautor e diretor de diversos espetáculos de circo. Ministra aulas de análise crítica e estética na Escola Nacional das Artes do Circo de Rosny-sous-Bois (ENACR) e também é membro do júri de Circus Next, operação europeia de apoio a novos autores de circo. Tradução: Vanise Dresch Fotos: Vanessa Silvy

A evolução do circo desde o ano 2000

Existem atualmente, no mundo, quatro gran-

de entretenimento”, geralmente grandiloquente,

A grande evolução dos anos 2000 é incontes-

des paradigmas do circo. O primeiro, o mais an-

mas que não exclui formatos modestos: ele reúne

tavelmente a instauração irreversível desse novo

tigo, é a sobrevivência, a renovação, às vezes, de

o teatro equestre, surgido na Europa no final do

paradigma na paisagem mundial do circo, embora

um conjunto disparate de práticas que poderíamos

século 18, e suas formas internacionais derivadas,

o movimento, que partiu da França, foi acolhido na

chamar de socioétnicas, “culturais” ou mesmo reli-

principalmente norte-americanas (mais recente-

Europa, mais ou menos incentivado aqui e ali em

giosas: não somente a tradição dos voladores me-

mente, africanas também), em suma, o circo “tra-

quase todos os continentes, ainda não tenha al-

xicanos, do contorcionismo mongol, da dança na

dicional” ou clássico e os espetáculos acrobáticos

cançado todos os países do planeta. É indispensá-

corda bamba na Coreia, da acrobacia equestre na

chineses. O terceiro paradigma é recente: o circo

vel entender que esse movimento é indissociavel-

Geórgia, na Mongólia, mas também a tradição do

social, pouco difundido na Europa, mas que ganha

mente político e artístico. Apenas os custos de uma

funambulismo em grande altura, renovada na prá-

espaço por toda parte. O quarto, ao qual dedicarei

escola superior circense e de uma criação circense

tica muito recente da highline. E poderíamos asso-

as próximas linhas, é o famoso “circo contempo-

digna desta denominação, ou seja, arriscada, são

ciar a esse arquipélago certos esportes acrobáticos

râneo” – também chamado atualmente de “circo

tão vultosos que é praticamente impossível conce-

(o mallakhamb indiano, o BMX – ou bicicross – ou

de criação” ou “circo de arte” – cujo nascimento

ber a existência de um circo de arte sem um firme

até mesmo a capoeira). O segundo é o “espetáculo

remonta a 1968.

compromisso do poder público. A política francesa,


ARTES CÊNICAS

primeiro SEMESTRE

2015

23

deste ponto de vista, é exemplar, tendo mudado

-se em teatros), os anos 2000 foram marcados,

completamente a situação, na França, primeiro,

no plano estético, por vários fenômenos inéditos.

e, depois, na Europa, por um reconhecimento de

A hibridação generalizada dos gêneros (teatro,

fato do circo de arte: estabelecimento de uma

música, dança, circo, vídeo etc.) levou a espetácu-

rede de espaços dedicados à criação, à difusão

los inclassificáveis, alargando os limites do circo

O festival Santa Maria Sesc Circo,

e à “cultura circense”; programação circense nos

para além das imagens convencionais acomoda-

evento realizado em parceria

menores teatros e nas mais prestigiosas institui-

das (a proeza, a fisicalidade), mas, em consequên-

com a prefeitura municipal

ções; coordenação de redes internacionais. É esse

cia, sem dúvida, surgiu um “circo puro”, que tenta

de 12 a 17 abril, promoveu a

reconhecimento institucional que explica, em

desligar-se o máximo possível das artes vizinhas

apresentação de 11 espetáculos de

última instância, as evoluções estéticas recentes,

para encontrar em si mesmo novas questões, es-

circo contemporâneo de grupos

embora a arte circense não dependa apenas dele

pecificamente circenses (por exemplo, Le Grand

nacionais e internacionais, além de

– felizmente!

C, da associação XY, ou Appris par corps, da com-

oficinas e fanfarras. As atividades

Seis dias de circo

Em outras palavras, o número de compa-

panhia Un Loup por l’Homme). Outra polariza-

ocorreram de manhã à noite em

nhias, espetáculos, escolas de entretenimento,

ção muito recente é aquela que opõe um circo

diversos pontos da cidade.

estudantes inscritos em escolas circenses esteve

radical, que leva as questões “circenses” ao seu

em constante crescimento nos últimos 14 anos.

entrincheiramento ou até os seus limites teóricos

E o número de espectadores também.

(fazer malabarismos desafiando a força da gra-

O valor central do circo de arte é a originali-

vidade ou com o vento, desconstruir o aparato

dade – uma noção filosófica juridicamente indis-

circense), a um circo familiar (nas duas acepções

sociável das noções de obra e autor. Ora: quantida-

da palavra), convivial, mas sem o peso de todas as

de + originalidade = diversidade. De fato, como o

marcas estéticas do circo tradicional. Com o re-

número de artistas não para de crescer, e cada um

conhecimento, certos artistas também obtiveram

deles cultua a originalidade, o resultado é a diversi-

recursos para criar espetáculos “grandiosos”, que

ficação muito rápida da paisagem circense. A uma

estendem a noção de aparato circense a toda a

velocidade bem maior do que as imagens que a

cenografia: a totalidade do dispositivo cênico tor-

população tem do circo – ainda muito estereotipa-

na-se um “picadeiro acrobático” (as criações de

das – sejam capazes de mudar na maior parte dos

Mathurin Bolze, da companhia MZDP, de Aurélien

países (inclusive na França). Aliás, isso explica uma

Bory, por exemplo). E, inversamente, assistiu-se

forma de “crise identitária”, resultante da distorção

ao florescimento do “pequeno” circo, improvi-

entre o que buscam os artistas, sempre uma busca

sado, modesto, nômade, às vezes nostálgico, de

apurada, e o gosto médio. Sem dúvida, no circo, a

aparência “pobre”, mas, na realidade, muito sofis-

diversidade permanece, ainda hoje, menor do que

ticado (Circo aereo, Trotolla, Sacekripa etc.). Além

aquela observada no cinema (não há equivalentes

disto, novos valores vieram definir a noção geral

circenses do filme de catástrofe, de vampiro ou da

de originalidade. Por exemplo, a “novidade” recua,

comédia de costumes). Mesmo assim, a diversifica-

em proveito da autenticidade ou da “personalida-

ção crescente das formas tem como efeito imedia-

de”. Se entendermos por “novidade estética” a in-

to o fato de que a paisagem circense se torna cada

venção de formas coletivas tão estranhas quanto

vez mais difícil de abarcar e descrever.

o butô japonês, o teatro documentário, a criação

Além da autonomização de cada uma das

de rua site specific, então, é abusivo afirmar que

artes circenses, iniciada nos anos de 1990 e con-

o circo do século 21 inventou uma nova estética.

tinuada em ritmo acelerado (a maior parte dos

Em compensação, apropriou-se de valores que já

espetáculos é, agora, monodisciplinar), e do re-

eram dominantes na dança ou nas artes plásticas,

cuo relativo da arena como espaço dominante

tais como o “desvelamento do íntimo”, e que até

de apresentação dos espetáculos (na França, pelo

então ele ignorava.

menos 80% dos espetáculos circenses realizam-


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2015

24

#14 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos,

Por Clarissa Eidelwein

depoimentos e entrevistas com artistas que, nos

Jornalista

últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, a transcrição de um bate-papo com o ator Eduardo Moreira revela detalhes do processo de criação do Grupo Galpão,

Grupo GALPÃO

de Belo Horizonte, com enfoque na metodologia de trabalho, dramaturgia e direção. Já o texto do ator Arildo de Barros refere-se à relação do Galpão com o Shakespeare’s Globe Theatre, em Londres, durante apresentações de Romeu e Julieta – um dos marcos da trajetória do grupo. O coletivo, um dos mais importantes do cenário teatral brasileiro, já esteve em várias edições do Festival e, em maio, na 10ª edição, participa com o seu espetáculo mais recente, De

tempos somos – um sarau do Grupo Galpão.

Fotos: Gustavo Campos, Guto Muniz, Glenio Campregher, Magda Santiago, Nidin Sanches, Elenize Dezgeniski e Arquivo Grupo Galpão


CADERNO DE TEATRO

PRIMEIRO SEMESTRE

2015

25


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

26

Um diálogo entre o popular e o erudito, a tradição e a contemporaneidade, o teatro de rua e de palco, o universal e o regional brasileiro Uma das companhias mais importantes do cenário teatral brasileiro, o Grupo Galpão tem sua origem ligada à tradição do teatro popular de rua. Criado em 1982, o grupo desenvolve um teatro que alia rigor, pesquisa, busca de linguagem, com montagem de peças que possuem grande poder de comunicação com o público. Com sede em Belo Horizonte, talvez o mais “viajante” entre os grupos brasileiros, já circulou pelo território nacional de Norte a Sul, por cidades bem distantes dos grandes centros, e também participou de festivais em países da América Latina, América do Norte e Europa. Formado por 12 atores que trabalham com diferentes diretores convidados – alguns integrantes também já dirigiram espetáculos do grupo –, o Galpão forjou sua linguagem artística a partir desses encontros. Sem fórmulas e sem métodos definidos, a companhia sempre pautou sua prática por um teatro de grupo, que não só monta espetáculos, mas que se propõe também a uma permanente reflexão sobre a ética do ator e do teatro, inserido em um amplo universo social e cultural.

Galpão em números 22 espetáculos 18 países visitados 44 festivais internacionais + 70 festivais nacionais + 2,7 mil apresentações + 100 prêmios brasileiros + 250 cidades + 1,7 milhões de espectadores


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1. Edição a partir da fala do ator Eduardo Moreira

O impulso do risco

1

O Grupo Galpão é um grupo de atores que, em seu processo criativo, trabalha com diferentes linguagens, diferentes diretores e maneiras muito diversas de abordar o teatro. Isto dá ao grupo uma característica camaleônica de adaptação, de variação de gêneros, de dramaturgia e de estilos também

táculo, desde a preparação corporal até o traba-

que é a comunicação direta com o público. Mas

lho vocal. O processo criativo é que geralmente

mesmo dentro desta classificação existem várias

determina.

pesquisas, uma mais ligada ao circo, uma mais

O Galpão tem muito essa característica

ligada à commedia dell’arte, outra mais ligada à

camaleônica de transformação a cada nova ex-

música, que tem um peso muito grande no tra-

periência, a cada novo encontro com artistas di-

balho do grupo.

ferentes. Isto está muito presente na linguagem

Até gêneros. Espetáculo de palco faz um

do grupo e acho que tem um lado positivo no

mergulho na obra de Anton Tchekhov, depois

sentido de que, como é um grupo que tem este

uma adaptação do romance Visconde partido

tempo muito grande de convivência, é pratica-

ao meio, de Italo Calvino, ou um trabalho com o

mente uma família em que as pessoas convivem

Maurício Arruda Mendonça e o Paulo de Moraes,

há um longo tempo juntas. De certa maneira,

o Pequenos milagres, criado em cima de histó-

Ao longo destes quase 33 anos de trabalho con-

esses diversos encontros, muito heterogêneos,

rias reais que nos foram enviadas pelo público.

tínuo, o Galpão se consolidou como um grupo

permitem ao grupo se renovar, não deixam cair

No total, foram 600 histórias e nos detivemos a

de atores, sem um diretor fixo, ainda que alguns

no lugar comum, na zona de conforto, o que é

apenas quatro ao final, com um longo trabalho

espetáculos, entre eles o mais recente De tem-

imprescindível no teatro. Você está sempre bus-

de seleção: primeiro chegamos a 120, depois a

pos somos – que estará no 10º Festival Palco Gi-

cando outras possibilidades, outros riscos, ou-

40, a 12, até ficarmos com quatro. Chegamos,

ratório em Porto Alegre –, tenham sido dirigidos

tros caminhos para não se fixar em uma coisa

inclusive, a montar outras. São processos que

por integrantes do próprio grupo, no que cha-

segura, porque, em termos artísticos, o costu-

se distinguem muito uns dos outros. E isso re-

mamos de direções internas. Por ser um coletivo

me, o hábito na maneira de trabalhar é mortal.

percute no trabalho corporal, no trabalho vocal,

de atores que trabalha com diferentes diretores,

A criação artística precisa deste impulso de ris-

que varia muito. Então, existe esta gama muito

tem se entregado às mais diferentes formas de

co, de perigo, de novidade.

grande de linguagens, ainda que as pessoas que

linguagem, às mais distintas abordagens de ver e fazer teatro.

Esta busca por outros rituais é uma característica muito forte do trabalho do Galpão

Cada processo com um novo diretor, com

e perpassa todos os espetáculos, desde a dra-

um novo criador, se transforma muito e, nesse

maturgia. Por exemplo, existem textos que são

sentido, é um grupo que não tem uma linha de

criações próprias, textos que foram criados pelo

trabalho definida, única. São várias linguagens

próprio grupo, outros feitos em processo mais

que se entrelaçam nestas diferentes experiên-

colaborativo, adaptações de clássicos, adaptação

cias, e isso passa por tudo, desde o espetáculo

de romance para forma dramática. É uma gama

em si: trabalhar, por exemplo, o teatro de rua

muito grande dramaturgicamente de tentativas

ou de palco, um clássico ou a criação de uma

de trabalho. Ao mesmo tempo, se pensarmos em

dramaturgia própria. São vários elementos que

gêneros, claro, o grupo tem uma característica

se transformam muito de espetáculo para espe-

muito forte que vem do teatro popular de rua,

assistem ao Galpão percebem nesta multiplicidade uma linguagem inerente ao nosso grupo.

Tio Vânia (aos que vierem depois de nós)

Foto: Elenize Dezgeniski


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

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Workshop: a metodologia

tema a partir da peça O grande teatro do mundo, A partir destas apresentações, destes resul-

Não foi nada planejado sermos um grupo de ato-

O grupo trabalha muito com um processo que

tados montados, em comum acordo, optamos por

res, simplesmente aconteceu. Começamos muito

chamamos de workshop: criações de ideias cêni-

Romeu e Julieta. Em vários momentos, um diretor

impulsionados por uma ideia intuitiva de direção

cas que são feitas de uma forma muito rápida,

nos passa a tarefa “olha, não sabemos como resol-

coletiva, na qual o grupo tinha uma força muito

em um tempo muito limitado, exatamente para

ver uma determinada cena” e resolvemos a partir

grande. Mas, depois de uma experiência, em me-

deixar aflorar uma coisa quase mais instintiva, de

de um workshop. Quando trabalhamos com o texto

ados da década de 1980, em que montamos Arle-

criação artística sem muita reflexão, sem muito

do Calvino O visconde partido ao meio, com o Cacá

quim servidor de dois amos, do Goldoni, e este es-

pensamento. Os atores internamente se estrutu-

Carvalho, fizemos vários workshops levantando

petáculo teve um resultado que não consideramos

ram e, entre eles, escolhem um diretor, que con-

material para ele. Por exemplo, para encenar a Vila

muito satisfatório, repensamos. O resultado ficou

duz a montagem desta ideia cênica. É uma forma

dos Leprosos, montamos uma cena abordando este

no meio do caminho, ele caiu numa coisa meio

de elaboração artística que está presente em to-

capítulo do livro e depois apresentamos.

confusa. Nem fizemos o texto do Goldoni, com

dos os espetáculos do grupo.

do Calderón de La Barca.

Grupo de atores

No espetáculo Pequenos milagres, a gente

toda a sua beleza e sutileza, nem fizemos a adapta-

Quando fomos montar o espetáculo Romeu

viveu um processo muito interessante. O Paulo de

ção que a gente queria. A partir daí, abandonamos

e Julieta com o diretor Gabriel Villela, ele tinha

Moraes pegou uma história – Cabeça de cachorro

a ideia de direção coletiva e começamos a traba-

uma clareza que queria fazer a peça usando a

– e dividiu os atores em três grupos: cada um, sem

lhar com diretores convidados. Foi uma maneira de

Veraneio, que era nosso carro para transporte do

saber do trabalho do outro, montou a mesma his-

se organizar artisticamente e se impor pela prática.

elenco, do cenário. Ele disse: “Olha, quero fazer

tória. No dia da apresentação, vimos três versões

Viemos de uma sequência que começa lá com

um espetáculo com vocês em que o carro seja o

da mesma história e foi muito interessante, porque,

Fernando Linares, Paulinho Polika e Eid Ribeiro, que

cenário, mas eu não sei qual espetáculo vai ser”.

inclusive no texto final, elaborado pelo Mauricio e

são de Belo Horizonte. Depois passa pelo Gabriel

Então, nós montamos neste sistema de workshop

pelo Paulo, vários personagens, e também músicas,

Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Paulo de Moraes,

cinco cenas para ele, com cinco temas diferentes:

que não estavam na história escrita, foram para

daí tem a Yara de Novaes, o Jurij Alschitz... então

trabalhamos as Primeiras estórias, os contos do

a cena final. Esse é um processo que é inerente

são muitos parceiros, diretores que colaboraram.

Guimarães Rosa; em cima da obra Morte e Vida

à linguagem do Galpão, do ator autoral. Um ator

Acho que a linguagem do grupo é uma espécie de

Severina, do João Cabral de Melo Neto; trabalha-

que contribui para a criação dramatúrgica da cena.

amálgama de todos esses encontros com artistas

mos também com Romeu e Julieta; e um quinto

A contribuição dos atores é sempre muito grande.

que acabaram por nos influenciar muito.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

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Seguindo este princípio, quanto à dramatur-

Partido

Parcerias para suprir deficiências

gia, por exemplo, escolher o Tchekhov talvez seja o contraponto de nossa linguagem mais popular,

Foto: Arquivo Grupo Galpão

Além de conhecermos e gostarmos do trabalho

o teatro de rua, que tem uma característica mais

Um homem é um homem

destes diretores, consideramos que eles têm muito

ampliada. Tchekhov é contenção absoluta, então,

a contribuir para a nossa busca de linguagem. Por

neste sentido, estamos buscando o aprimoramen-

exemplo, vínhamos de uma experiência de dois

to enquanto seres humanos e enquanto artistas.

espetáculos (Romeu e Julieta e Rua da amargura)

Para nós, não é simplesmente montar um novo

com Gabriel Villela, um diretor que tem uma assi-

espetáculo, é buscar um material de pesquisa, de

natura cênica muito forte, na linha do mettre en

linguagem que permite nos aprimorarmos como

norte pro lado da Bahia, Vale do São Francisco,

scène, do grande encenador. A gente sentiu que

seres humanos.

região nordeste de Minas, acompanhando cida-

Foto: Guto Muniz

Romeu e Julieta

Foto: Guto Muniz

des ribeirinhas, interior do Nordeste, interior da

era o momento de mergulhar numa experiência

região Sul – Rio Grande do Sul, Paraná e Santa

vem o convite ao Cacá (Partido), que possui um

Lugares possíveis

trabalho com o Antunes Filho, com a Fondazione

O galpão tem uma característica importante de

das capitais. Vamos sempre que conseguimos. Te-

Pontedera. Ele pesquisa muito a questão do ator

ser realçada em seu trabalho, que é esta ligação

mos um patrocínio importante, que nos permite

em cena. Ao mesmo tempo, com o diretor Paulo

com a comunidade. É um trabalho que, ao longo

este tipo de aventura, que é o da Petrobras. Sem

José, quando fizemos nossas duas experiências

de 32 anos, nasceu e esteve sempre na rua, bus-

isso, economicamente, seria inviável.

(O inspetor geral e Um homem é um homem) com

cando levar o teatro para um lugar onde seja pos-

O Galpão sempre buscou muito este contato

ele, nascia a urgência de trabalhar a questão da

sível, viajando muito pelo Brasil inteiro, por estes

com a comunidade, nos alimentamos desse en-

palavra no teatro. Considerávamos que éramos

interiores totalmente desvinculados dos centros

contro. Conhecer este Brasil mais profundo reflete

uma geração um pouco carente deste requinte

culturais. Viajamos por todo o País, com uma ou

muito na nossa maneira de fazer e abordar o tea-

com o trabalho de texto. Não que a gente consi-

outra exceção, entre elas, Roraima, Acre. No ano

tro. Há um encontro com este tipo de público, o

dere que não precise continuar trabalhando isso.

passado, tivemos no Vale do Tocantins, fomos de

fato de estar na rua traz uma coisa importante.

Acho que o trabalho com o Paulo veio a suprir

Palmas até Belém, passando por Araguaína, Im-

Claro que o outro lado, de ir para o palco, fazer

uma deficiência que achávamos que o trabalho

peratriz. Fomos ao Vale do Jequitinhonha, uma

um outro tipo de teatro, de abordar uma obra

do grupo tinha.

região bastante pobre do Estado de Minas, ao

como a do Tchekhov é fundamental também.

mais do ator, menos da cena como um todo. E aí

Catarina, também um pouco fora dos circuitos só


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

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Till, a saga de um herói torto Foto: Nidin Sanches

Partido

Foto: Guto Muniz

De tempos somos Foto: Guto Muniz

Tio Vânia (aos que vierem depois de nós) Fotos: Elenize Dezgeniski

Mau passo e aprendizado

Longevidade dos espetáculos

inquietudes, às perguntas que o grupo fazia na-

Um fracasso, talvez seja um pouco de exagero,

Normalmente, os espetáculos de rua têm uma

grande, uma maneira de abordar a rua, de forma

mas um mau passo pode ser um bom motivo, um

vida maior. Os de palco, um período de três ou

espetacular, grandiosa, com públicos de cerca de

bom gerador de aprendizado. É curioso. O pró-

quatro anos. O que acontece é que montamos

4 mil, 5 mil pessoas. Foi o advento dos microfones

prio Goldoni, o Arlequim..., é um texto da com-

um espetáculo e ele tem uma vida muito inten-

sem fio no trabalho do grupo, a palavra ganhou

media dell’arte, trabalhamos exaustivamente as

sa nos dois primeiros anos. Apresentamos umas

um status de poder. Fazer um espetáculo para um

máscaras da commedia, mas o resultado não

100 vezes, o que é bastante. A partir do terceiro

público tão grande e ser possível chegar até as pes-

nos foi satisfatório. Entretanto, esta experiência

ano, começa a cair um pouco, muitas cidades já

soas, que em alguns lugares ficam mal acomoda-

foi muito valiosa, porque provocou toda uma

foram visitadas, já fizemos muitas vezes, então a

das, conseguir ver e escutar o texto e a música, de

reflexão até sobre a questão artística, sobre a

demanda por apresentações vai diminuindo. E é

forma compreensível. É um espetáculo importante

organização do grupo. Depois, fizemos o espetá-

normal que isso aconteça. Por outro lado, tem es-

neste aspecto e representa essa virada.

culo A comédia da esposa muda, um canovaccio

petáculo que dura mais, principalmente os de rua.

Levamos o espetáculo duas vezes para a

(roteiro sobre o qual os atores improvisam) de

Por exemplo, Um Molière imaginário, que eu diri-

Inglaterra. É muito bonita esta história. Fomos a

um autor anônimo da commedia dell’arte. Foi

gi, teve 12 anos de vida, 300 vezes, viajou o Brasil

Londres, pela primeira vez em 2000, num festi-

muito bem-sucedido e muito apresentado. Nos

inteiro, viagens internacionais. Mas também che-

val sobre Minas. Apresentamo-nos em um circo

deu bastante sucesso, inclusive abriu as portas

ga um ponto que cansa. Eu adoro fazer, mas can-

montado em um parque de Battersea. Um staff

para a Europa. O espetáculo gerou a compra da

sa, acho que não queria mais fazer Romeu não.

pedagógico do Globe Theatre (que havia sido

nossa sede em BH. Então, é importante e curioso isso. As pessoas sempre querem que a gente

quele momento. O Galpão tem este lado do teatro de rua muito forte. Romeu e Julieta foi uma virada

reconstruído e inaugurado em 1997) foi assistir ao espetáculo e, três anos depois, eles entraram

estivéssemos sempre fazendo este ou espetácu-

Na terra de Shakespeare

los do mesmo estilo. Eu acho que a gente estava

Sem demagogia, acho que todos os espetáculos

vulgando a nossa cultura para perguntar sobre

artisticamente morto.

foram muito importantes, eles responderam às

aquele grupo brasileiro que fez o Romeu e Julie-

faça um novo Romeu e Julieta, mas imagina se

em contato com Paul Heritage, um inglês que morava no Brasil e que até hoje está sempre di-


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

31

ta no Battersea. “Tu sabes se eles ainda têm o

e Julieta fosse o nosso. Éramos o único grupo de

Imediatamente, retomamos este processo dos

espetáculo, se o elenco é o mesmo?”, tentaram

língua portuguesa. Vi um grupo da Georgia, do

workshops. Os atores do grupo que tinham ideias

se informar se o espetáculo continuava de pé.

Cazaquistão, muito bonito, muita paixão.

para propor levantaram com o grupo cenas em workshops. Eu trabalhei Lisístrata, que é a comé-

E em que condições. A partir daí, nos convida-

dia do Aristófanes; a Inês Peixoto dirigiu Sonhos de

vam que tinha um olhar inovador sobre a obra

De volta à direção interna

do Shakespeare. Foi muito legal e interessante,

Com Till, a saga de um herói torto, em 2009, reto-

um texto de Luís Alberto de Abreu, que ele já co-

porque a reação dos ingleses, em princípio, era

mamos a direção interna com o Júlio Maciel. Para

nhecia e gostava muito. A gente chamou o público

de espanto pelas liberdades que a gente tomou

falar a verdade, a gente se viu numa encrenca,

e abriu as apresentações. Pedimos para as pessoas

ao abordar a obra do Shakespeare. Ao final, eles

porque íamos fazer um trabalho com o Daniele

escolherem qual projeto achavam mais interessan-

estavam muito entusiasmados com uma leitu-

Finzi Pasca, um diretor suíço que já trabalhou

te. A gente não usou a ideia apenas pela escolha do

ra tão infiel em certo sentido, mas, na verdade,

com o Cirque du Soleil, dirigiu um grupo que veio

público. Foi simpático, mas queríamos fazer o que

profundamente fiel ao espírito do Shakespea-

ao Brasil recentemente com um espetáculo sobre

fosse desejo de todos os atores. Houve uma coin-

re. Falaram em um resgate desta alma popular

o Tchekhov, que se chama Donka. É um diretor

cidência de escolhas entre o que público gostou e

do Shakespeare que estava muito esquecida na

muito conceituado hoje na Europa, faz espetá-

o que a gente queria. E montamos o Till, com dire-

Inglaterra.

ram para duas semanas num programa de verão do teatro. Éramos um grupo que eles considera-

uma noite de verão, do Shakespeare; o Chico Pelúcio fez uma releitura do Hamlet; o Júlio fez o Till,

culos grandiosos e a gente estava armando uma

ção do Júlio Maciel. É verdade que todos os proje-

Retornamos em 2012, no aniversário de 30

produção com ele, que viria dirigir o Galpão em

tos internos do Galpão são muito bem-sucedidos,

anos do Galpão. Convidaram-nos para as Olim-

um espetáculo de rua. Só que aquela crise nos

acho que temos esta linguagem popular que acaba

píadas em Londres. Eles fizeram as Olimpíadas

Estados Unidos, Lehman Brothers, aquela história

migrando para as montagens, para os espetáculos.

Culturais lá no Globe e nós topamos remontar

dos bancos que quebraram, das casas, deu uma

Um Molière imaginário, que eu dirigi; Um trem

o espetáculo. Montaram as 39 peças do Shakes-

agitação no mundo inteiro e inviabilizou o pro-

chamado desejo, que o Chico Pelúcio dirigiu; Till,

peare. Foi bonito, porque foi uma festa cultural

jeto internacional. Tudo era pago em euro, dólar,

a saga de um herói torto, do Júlio; e o De tempos

em que pegaram companhias do mundo todo,

uma coisa complicada. Ficamos numa situação de

somos, da Lydia Del Picchia e da Simone Ordones,

dos cinco continentes e quiseram que o Romeu

ter que cancelar o projeto.

trabalho mais recente que estreou em 2014.


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

32

O legado

A vida é sonho, do Calderón de La Barca, um

De tempos somos – um sarau do Grupo Galpão,

mago, entre outros.

conto do Tchekhov da peça A carteira, do Sara-

Os clássicos Varia muito. O Luigi Pirandello – Os gigantes da

que estará no Festival Palco Giratório em Por-

O espetáculo fala desta coisa do teatro, da

montanha – foi um projeto trazido pelo Gabriel

to Alegre, é um espetáculo que faz uma viagem

passagem do tempo, de um tempo que passa,

Villela. Como diretor artístico do grupo, discuti

nas músicas, no repertório musical dos espetá-

e ao mesmo tempo reflete muito essa idade do

muito com ele outras possibilidades. A gente ha-

culos do grupo. Tem canções desde A comédia

grupo, a maior parte está nessa faixa dos 50-55

via pensado no A Vida é sonho, do Calderón de La

da esposa muda, de 1986, passando por Corra

anos. Pensando muito nesta questão da passa-

Barca, o Hamlet, mas ele tinha muito forte este

enquanto é tempo, um espetáculo que fazíamos

gem do tempo, da possibilidade do legado numa

desejo de fazer o texto do Pirandello.

com base numa família de crentes que ia pregar

arte tão efêmera como o teatro. Então este es-

Têm processos que são muito discutidos.

na rua, de Eid Ribeiro, de 1988, até Tio Vânia

petáculo traduz o momento atual do grupo, de

Acho que uma marca da dramaturgia do Galpão,

(aos que vierem depois de nós) e Eclipse, que

uma maneira muito sincera e pungente também.

sem dúvida nenhuma, é esta abordagem de tex-

estrearam em 2011. Pegamos 25 músicas de vá-

Acho que isto dá um caráter humano e emocio-

tos clássicos. Está lá atrás o Arlequim, servidor de

rios espetáculos, recontextualizadas e amarra-

nal ao trabalho, sem pieguice. É um sarau poé-

dois amos, do Goldoni, Álbum de família, do Nel-

das por textos poéticos de Baudelaire, Leminski,

tico musical.

son Rodrigues, o Romeu e Julieta, do Shakespeare, O doente imaginário, do Molière, O inspetor geral, do Gogol, Brecht... o grupo nasceu fazendo Brecht na oficina com os alemães, em 1982, e anos depois montamos o texto Um homem é um homem. Também montamos dois trabalhos envolvendo a obra do Tchekhov e Os gigantes da

Romeu e Julieta

montanha, de Pirandello. São grandes nomes do

Foto: Magda Santiago

teatro da dramaturgia universal. É muito impor-

A comédia da mulher muda

tante para o grupo enfrentar estes ícones.

Foto: Gustavo Campos


CADERNO DE TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

Por Arildo de Barros

33

Ator do Grupo Galpão, texto de 12 de abril de 2015

Grupo Galpão: crônica de Londres Chovia intensamente em Londres no dia 5 de julho

afirmar que os ingleses haviam convertido o seu

de 1996. Desde muito cedo, sob a lona de um circo

poeta em peça de museu, e que fora preciso apare-

úmido e frio, montado dentro do Battersea Park, a

cer ali um grupo da América Latina que resgatasse

equipe do Grupo Galpão esperava pelo público que

para eles o caráter festivo e popular do teatro de

viria ali para a estreia do nosso Romeu e Julieta.

Shakespeare e que, enfim, lhes ensinasse de novo a

Depois do surpreendente sucesso da semana ante-

encená-lo. As consequências desse encantamento

rior, no festival Theater der Welt, realizado naquele

não tardaram muito.

ano em Dresden e em outras cidades adjacentes

O New Globe Theatre foi inaugurado em

da Alemanha ex-Oriental, nossa expectativa era

1997, na mesma Southwark onde se erguia o ori-

grande. Foi, portanto, decepcionante iniciar o es-

ginal seiscentista. Entre seus novos projetos, havia

petáculo com cerca de 60 espectadores, a maioria

o Globe to Globe, que programava, para cada ve-

deles brasileiros. Ainda não sabíamos, ouvindo os

rão londrino, a apresentação de uma das peças de

primeiros acordes de Você gosta de mim, ó mani-

Shakespeare, produzida em algum país do mundo

nha?, que no meio daqueles gatos pingados se en-

e cuja montagem envolvesse elementos da cultura

contrava um grupo de diretores do Shakespeare’s

desse país. Nos primeiros anos, foram exibidas ali

Globe Theatre, a centenária companhia comanda-

três obras do bardo, provenientes da Índia, da Áfri-

da, na alvorada do século 17, pelo próprio bardo

ca do Sul e de Cuba, todas ignoradas pelo público.

de Stratford-upon-Avon. Assim que cessaram os

Esse fracasso ameaçava a sobrevivência do projeto.

aplausos finais, aqueles circunspectos senhores

E foi assim que o Grupo Galpão foi convidado a

e senhoras rodearam os atores, o diretor Gabriel

voltar a Londres, dessa vez para se apresentar no

Villela e a nossa convidada, a crítica Barbara He-

“Vaticano da fé Shakespeariana”.

liodora. Entre atônitos e comovidos, manifestaram

Em 11 de julho de 2000, estreamos Romeu e

seu encantamento pelo frescor e pela qualidade do

Julieta no Shakespeare’s Globe, sob a sombra do

que acabavam de presenciar. Um deles chegou a

pavilhão nacional do Brasil, hasteado na mais alta


CADERNO DEMÚSICA TEATRO

primeiro SEMESTRE

2015

34

torre daquela arquitetura. O começo da noite esta-

Redgrave, e de sua mãe, Rachel Kempson, que aos

e sete países do mundo e em trinta e sete línguas

va ainda claro, e, de novo, úmido e frio. O elenco

noventa anos, rememorava suas atuações na obra

diferentes. Enquanto se pesquisavam, por todo o

entrou pontualmente às 20h, pela porta da fren-

de Shakespeare: quando menina, havia encarnado

mundo, as produções recentes que atendessem às

te do teatro a céu aberto, e abriu caminho para

Julieta, mais tarde, a Sra. Capuleto, e já idosa fora

exigências do projeto, um grupo de técnicos e fun-

o palco no meio do público, executando a versão

uma respeitável Ama. Numa noite especialmente

cionários do teatro trouxe uma sugestão à equipe

instrumental de Flor, minha flor. É muito curioso

fria, as três providenciaram bons cobertores, que

curadora do evento: o “Romeu e Julieta só pode

observar, no DVD do espetáculo, a expressão ten-

as mantiveram quentinhas nas desconfortáveis

ser aquele do Brasil”. Esse voto, espontâneo e rigo-

sa e desconfiada dos espectadores ingleses, diante

poltronas de madeira de seu camarote.

rosamente democrático, foi acatado.

daquela trupe incomum, morena, maquiada como

Michael York foi mais um astro do teatro e do

O Galpão fez de novo suas malas e mais uma

palhaços e vestindo coloridíssimas roupas puídas,

cinema que se entusiasmou com nossa apresenta-

vez partiu em direção a Londres, para mais uma vez

entoando uma estranha canção de ritmo incom-

ção. Já nos camarins para saudar os atores, York,

conquistar londrinos, brasileiros que para ali con-

preensível, e depois comparar essa imagem com

que fora o Teobaldo no célebre filme de Franco

vergiram de diversos pontos da Europa, turistas

a dos mesmos espectadores ao final da apresen-

Zefirelli, entregou ao Chico Pelúcio, que ali fazia o

do mundo inteiro e todo um conclave de artistas

tação, acompanhando a saída dos atores através

mesmo papel, uma foto com a dedicatória: “De um

e críticos de teatro oriundo dos cinco continentes.

do mesmo caminho pelo qual haviam entrado. Sua

Teobaldo para outro”. E indistinto no meio da mas-

E assim se fez. Missão cumprida, voltamos para

expressão era, então, a de quem tivesse, durante

sa, só o soubemos anos mais tarde, encontrava-se

casa, para o trabalho, para o risco, para os desafios.

uma hora e meia, experimentado o elixir da felici-

também o encenador canadense Robert Lepage.

Para a vida real.

dade. Sorrisos abertos, olhos brilhantes, excitação à

Em 2003, contratado para dirigir um megaespe-

Aos quase 33 anos de existência, o Galpão co-

flor da pele. E mais: marcando com palmas o ritmo,

táculo no Cirque Du Soleil, Lepage exigiu, para

leciona um vasto repertório de lembranças, reco-

agora familiar, daquela estranha canção do sul.

protagonizar sua obra, “uma atriz brasileira que vi

lhidas em sua passagem por palcos, ruas e praças

Havia até quem tentasse cantar junto: “Flor, minha

em Londres, no papel da Ama de ‘Romeu e Julieta’,

de todo o Brasil e mais 16 países. Viagens curiosas,

flor...”. A equipe do Globe nos recebeu no palco com

fazendo o público rir e chorar ao mesmo tempo”.

lugares insuspeitados, encontros insólitos, pro-

champanhe. Estava salvo o Globe to Globe.

E lá se foi a nossa Teuda Bara brilhar por três anos

fundas emoções, afetos que permaneceram e até

em Las Vegas.

grandes aflições que o tempo cuidou de converter

A temporada, de catorze récitas, se estendeu até o dia 23 de julho, sempre recebendo a mes-

Anos depois desses eventos, um conhecido

em divertimento. Lembranças todas boas, ótimas

ma calorosa acolhida do público, em que aos lon-

meu e sua mulher, passando por Londres em via-

em sua maioria. Mas a vitoriosa conquista do san-

drinos se misturavam turistas de toda a Europa

gem de núpcias, foram conhecer o Globe Theatre,

tuário shakespeariano, considerados todos os seus

e, obviamente, do Brasil. Compareceram até um

então fora de temporada. Incógnitos em meio a

significados, ocupa, na preciosa coroa dessas me-

casal de noivos com todos os padrinhos e convi-

um grupo de turistas, foram guiados em sua visita

mórias, a posição central e única do mais esplên-

dados, para celebrar suas bodas diante do mesmo

por uma daquelas simpáticas senhorinhas que se

dido diamante.

frade que abençoava a união dos protagonistas.

dedicam como voluntárias a esse trabalho. A certa

Emoção e alegria povoavam os bastidores, onde

altura do trajeto, a guia comentou que muitas coi-

cruzávamos com técnicos e funcionários da casa,

sas espantosas já haviam ocorrido naquela casa,

igualmente eufóricos e tocados pelo espetáculo.

mas o mais extraordinário acontecimento dos últi-

Encontrávamo-nos também por ali com os elen-

mos anos fora a passagem de um grupo brasileiro,

cos que dividiam conosco todos os espaços e ca-

com uma versão absolutamente bela e original de

marins. Diariamente, às duas da tarde, ocorria no

Romeu e Julieta. E, para orgulho e comoção do jo-

mesmo palco, uma sessão, em dias alternados,

vem casal mineiro, apontou na parede o cartaz de

de Hamlet, protagonizado pelo grande ator Mark

divulgação do Grupo Galpão.

Rylance, então diretor artístico do Shakespeare’s

Corte para 2012, ano das Olimpíadas de Lon-

Globe, e A tempestade, com o Próspero na pele

dres. Mais um projeto do Globe envolve monta-

de ninguém menos que Vanessa Redgrave. Pois a

gens das obras de Shakespeare pelo mundo. Na

grande estrela se empenhou em assistir ao nosso

programação da maratona cultural pré-olímpica, a

Romeu e Julieta. E, quando lá esteve, Vanessa se

ideia era levar à casa do maior dramaturgo da his-

fez acompanhar de sua irmã, a também atriz Lynn

tória suas trinta e sete peças, montadas em trinta


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2015

Por Marcio Petracco

35

Músico, integrante do Conjunto Bluegrass Porto-alegrense Foto: Anderson Dorneles

Música de rua:

o verdadeiro crowdfunding

De maneira análoga, o nosso disco se encontra à venda não em uma grande cadeia de livrarias, mas em um tradicional sebo de livros, gerido por pessoas que a gente conhece e cujos ideais se alinham aos nossos. Não é questão de não poder estar em uma loja de shopping center. É questão

De 17 a 26 de abril, foi realizado em sete municípios da Serra gaúcha o 4º Festival Brasileiro de Música de Rua, com a participação de músicos do Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela e Peru

de não querer, mesmo. A rua nos permite o contato direto com o público e com os demais artistas que nela atuam. Eles são cada vez melhores, mais variados e mais

Música de rua não deveria causar surpresa ou es-

nosso primeiro disco, as vendagens desse disco

numerosos, a ponto de eventualmente ser difícil

panto, já que a rua foi o primeiro lugar em que a

financiaram a produção do segundo. Mas não

encontrar um lugar vago para a nossa apresenta-

música esteve. Feiras de escambo atraíam não só

pense que foi fácil. Enfrentamos todo tipo de

ção. E isso é bom, acreditem.

músicos, mas todo tipo de artista. Sendo também o

resistência e burocracia. Até hoje tem gente que

A rua é democrática de modo geral. Ainda

lugar onde se compartilhavam notícias e informa-

acha vergonhoso que estejamos na rua, dizendo

não temos regras de divisão dos espaços entre ar-

ções, eram o equivalente à nossa atual rede mun-

que deveríamos estar na televisão.

tistas, mas isso não impede que, geralmente, tudo

dial de computadores.

Ora, a grande mídia está invariavelmen-

se resolva bem.

Na nossa época – e especialmente cá, em Pin-

te mais interessada no que já é consagrado em

A rua nos faz bem. Nós fazemos bem à rua e

dorama – é que talvez tenha surgido algum tipo de

termos de vendagens. Não costuma – com raras

às pessoas que nela circulam. Isso nos dá prazer,

estranheza ou preconceito com essa que deveria

e honrosas exceções – abrir espaço pro que se

nos dá ampla divulgação, nos garante indepen-

ser a forma mais natural de divulgação da arte.

distingue do “mais do mesmo”. Pra não falar que

dência dos meios de comunicação, nos orgulha e

Sem atravessadores, empresários, mídia impressa

ela tende a dispensar o “sabor do ano passado”

ainda nos garante o café da manhã.

ou televisionada, produtores ou leis de incentivo.

sem qualquer cerimônia. Grande gravadora? Não,

Criou-se o preconceito que o artista de rua estaria

obrigado.

lá por falta de condições de estar num ambiente “mais qualificado”. Ora, pra nós não há ambiente mais qualificado que esse, se nos permitem dizê-lo. A ocupação do espaço público é fundamental para sua humanização. O mundo civilizado mostra a tendência de se recuperar para as pessoas o espaço até então reservado aos automóveis. Pelo menos é o que acontece na Europa e nos Estados Unidos, de modo geral. Vale ressaltar que nossos hermanos uruguaios e argentinos nunca deixaram de cultivar e valorizar a arte de rua. Por que motivo deveria o Sul do Brasil estar alienado dessa forma de arte tão antiga e paradoxalmente tão moderna? Faz tempo que essa ficha caiu aqui. Resolvemos fazer algo quanto a isso. Passando o chapéu ou pedindo contribuição pro “café da manhã” em nossas apresentações, reeditamos o verdadeiro crowdfunding, tão comum atualmente em sua versão digital. O público financiou a gravação do

A rua é de quem está nela. Vamos à rua?


primeiro SEMESTRE

2015

36

Festival Kino Beat: Território de experimentos em áudio e visual

MÚSICA


MÚSICA

primeiro SEMESTRE

2015

37

Kino, em grego, significa movimento e, em alemão,

consagrados, o idealizador salienta que o evento

cinema. Beat é batida, ritmo de som, em inglês.

dará oportunidade a novos e desconhecidos artis-

O Kino Beat é um festival de performances audio-

tas locais.

Credibilidade e vanguarda

visuais multimídia e música contemporânea que

O festival desmistifica o estereótipo de “mú-

“O encontro entre Kino Beat e Sesc foi um divisor

propõe a investigação do som e da imagem e suas

sica de festa” para a música eletrônica, exaltando

na história do evento. Desde 2009, a marca Kino

relações, especificidades e aspectos experimentais.

o seu caráter artístico e não meramente festivo.

Beat vinha realizando atividades pontuais em par-

Durante seis dias, de 4 a 9 de agosto de 2015,

É o que têm feito instituições consagradas como

ceria com diversas instituições, mas essa aproxi-

em Porto Alegre, o evento vai incentivar, por meio

o Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York,

mação permitiu que o projeto se transformasse

do entretenimento e da arte, uma reflexão sobre

e o londrino Tate Modern, entre muitas outras

em um festival, estruturando sua atuação e dando

novas tendências musicais e visuais relacionadas

que abraçam eventos do gênero. Para esta edição,

corpo para a programação. Atualmente, Kino Beat

à tecnologia.

o Kino Beat propõe, no campo visual, apresentar

e Sesc realizam em conjunto o festival, ficando a

Com programação no Teatro do Sesc, realiza-

interpretações contemporâneas do fazer cinema-

cargo do Kino Beat toda a concepção artística e ao

dor juntamente com a Kino Beat, e no auditório do

tográfico, com atrações que tratam de forma não

Sesc a responsabilidade pela produção e logística.

Instituto Goethe, parceiro ao lado da Aliança Fran-

convencional a sétima arte, gerando questiona-

Acredito que esta parceria seja uma via de

cesa e do Consulado da Suécia – e outros locais es-

mentos sobre o futuro do cinema e os rumos em

duas mãos, na qual o Sesc passa toda a sua cre-

palhados pela cidade –, a segunda edição do festi-

que ele pode seguir.

dibilidade e estabilidade, e o Kino Beat entra com

val, além dos espetáculos musicais e performances

O Festival Kino Beat é o resultado do pro-

o sopro de novidades, trazendo um conteúdo de

audiovisuais, terá palestras e instalações. Segundo

jeto iniciado em 2009 com a Mostra Kino Beat,

vanguarda, alinhando o Sesc local e a própria ci-

o idealizador e curador do projeto, Gabriel Cevallos,

uma mostra de filmes relacionados à música, e

dade em um circuito artístico raramente visto por

“o Kino Beat é uma plataforma de inovação, aberta

do Kino Beat ao vivo, evento de performances

aqui.” (Gabriel Cevallos)

a múltiplas manifestações artísticas, que podem e

audiovisuais. Ao longo de quatro anos, foram

devem extrapolar o campo audiovisual. A progra-

sete eventos realizados na cidade de Porto Alegre,

mação, que estabelece um contraste entre as ações

com apresentações especiais em Caxias do Sul e

internacionais e locais, explora temáticas ligadas à

Belo Horizonte. A primeira edição em formato de

imagem – por meio da arte digital e seus desdo-

Festival foi realizada em abril de 2014 e revelou

bramentos, como a tecnologia de imagens gene-

artistas nacionais em performances ao vivo com

rativas – e ao som, em experimentações de música

apresentações espontâneas e imprevisíveis que,

orgânica, música eletrônica e arte sonora”, explica

de alguma forma, exploraram recursos digitais no

Cevallos. Apesar de trazer artistas internacionais já

seu processo criativo.

Apresentações de Fernando Velázquez, Diego Abelardo e Orquestra Vermelha no Festival Kino Beat 2014 Fotos: Claudio Etges


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2015

POR Marco Aurélio Lopes Fialho

38

Assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do Sesc.

Sombras que assombram: o expressionismo no cinema alemão Em torno de nós vê-se o monstruoso, fruto da insanidade, imprudência inépcia e completa degeneração. O que essa exposição oferece inspira horror e aversão em todos nós. Adolf Ziegler, no discurso de abertura da exposição expressionista Arte degenerada, 1937.

Impulsos irracionais: o expressionismo como tema Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionismo nas artes, descreve-o sinteticamente como um encontro da criatividade do artista com os seus impulsos emocionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adquire, então, um caráter subjetivo, pois a forma artística resulta das angústias humanas do indivíduo criador.[1]


CINEMA

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2015

39

1. CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1988. 2. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo. Cia. das Letras. 1997. p. 16.

Enquanto no final do século 19 os grandes

prosperidade econômica, do auge da produ-

Badeulaire, com suas Flores do mal, e Friedrich

Primeiras décadas do século 20: um contexto violento e conturbado

Nietzche, com seu ensaio irracionalista Assim fa-

Segundo o consagrado historiador Eric Hobs-

A decrepitude moral torna-se parte da vida cul-

lou Zaratustra, estremeciam a pseudo-harmonia

bawn, o século 20 foi marcado por posições

tural desses países, um sentimento de inferiori-

imperialista.

políticas extremadas, e foi, em síntese, breve e

dade contamina a sociedade. O expressionismo,

impérios nacionais exibiam seus poderios, em paralelo, ideias contrárias eram criadas e serviam de perfeita antítese filosófica. Autores como Charles

ção graças às novas tecnologias desenvolvidas. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial impuseram acordos humilhantes às potências derrotadas, tal como a Alemanha e a Itália.

Já no início do século 20, o mundo assombra-

intolerante. Diz, ainda, que o primeiro aconteci-

no cinema, muito expressará o horror psicológico

-se com as obras de Freud, seus estudos complexos

mento marcante do século foi a Primeira Guerra

desse momento que antecederá a escalada na-

sobre a libidinosa psique humana; mais adiante,

Mundial, “que assinalou o colapso da civilização

zista na Alemanha, mas não pode ser reduzido a

Franz Kafka, já em 1915, investe nos processos de

(ocidental) do século XIX”.[2]

apenas isso.

aprisionamento humano, com seu sinistro e metafórico homem-inseto em A metamorfose.

As referências ao nazifascismo e ao comu-

Em momentos de crise e abalo social, é co-

nismo estão implícitas no seu texto. Essas são as

mum vermos as artes se colocarem de forma mais

Essa atmosfera cultural permeia e cria o es-

respostas extremadas ao fracasso do liberalismo

contundente, interpondo-se como elemento crí-

tofo necessário para o desenvolvimento do ex-

econômico que travestia a ocupação imperialis-

tico e participativo. Mesmo não sendo o expres-

pressionismo na Alemanha. No plano político, a

ta das grandes potências mundiais nos países e

sionismo cinematográfico explicitamente contra

República de Weimar rapidamente frustra as es-

territórios mais pobres, mas ricos em matéria-

o sistema político vigente, ele conseguiu criar

peranças de transformação social mais profunda,

-prima para abastecer o crescimento e o avanço

uma atmosfera em seus filmes que hoje muito

após massacrar o movimento revolucionário lide-

dos poderosos países europeus e os nascentes,

nos diz sobre aquele universo alemão dos anos

rado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e se

mas prósperos, Estados Unidos da América.

1920, e essa beleza da arte não se pode nem

tornará um estorvo às mentes mais críticas desse conturbado contexto histórico.

Mas a década de 1920 marcou, antes de

deve tirar dela, uma capacidade de se imiscuir à

tudo, o ápice do modelo liberal, da ilusão de

vida e lançar sobre ela um olhar, que correspon-


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2015

40

3. VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L.. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro. José Olympio Editora. 1996.

sionava era fazer do cinematógrafo um veículo

uma inegável entrega à humanidade. As carreiras

O cinema no mundo antes do Expressionismo Alemão

artísticas não eram vistas com bons olhos, a arte

Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou

ganizar o filme em partes (planos, cenas e se-

era considerada algo menor pelas elites, profis-

que o cinema atingiu uma maturidade artística

quências) por meio de uma decupagem na qual

são de vagabundos e aventureiros.[3] Por exem-

importante. É um filme inaugural nesse sentido,

o diretor sinaliza quais planos utilizará, assim

plo, não havia ainda uma indústria do cinema tal

que demarca um momento de clivagem. Existe

como a ordem em que serão filmados e monta-

como conhecemos hoje, estruturada, reconheci-

o cinema antes e o cinema depois de Caligari.

dos posteriormente. Instaura-se, então, uma vi-

da e respeitada. A própria Hollywood, meca do

O cinema alemão dá um passo estético irrevogável

são fordiana de linha de montagem no cinema.

cinema mundial, não possuía o status que goza

ao adentrar nos meandros da psicologia humana,

O cinema então passa a ser entendido como um

atualmente. Só a partir dos anos de 1930 atingiu

ao mostrar que as histórias poderiam ir para além

produto, pronto a ser inserido na engrenagem

a posição de poderosa indústria voltada ao en-

do narrar, abriam janelas para se perscrutar a in-

do mercado.

tretenimento.

de a um poder de humanizar o mundo, mesmo quando seja para mostrar dele um lado desumano ou cruel. Há, no ato de escolha do artista pela arte,

viável para se contar uma história. Nasciam as bases para o que mais tarde viria a se chamar de “narrativa clássica do cinema”, que nada mais é do que uma sistematização de ideias, de or-

terioridade dos pensamentos e do agir humanos.

Assim o cinema chega à década de 1920 car-

A segunda metade do século 19 foi marcada

O expressionismo alemão contribui, então, de

regado de conquistas no plano da narrativa e de

por uma forte industrialização dos países euro-

uma só vez, tanto como fenômeno estético quan-

mercado. Já se podia dizer que havia o esboço de

peus, sobretudo a Inglaterra e os Estados Unidos,

to como revelador da alma. Daí a necessidade de

um caminho possível, inclusive como uma inci-

período conhecido por Segunda Revolução Indus-

pincelarmos rapidamente sobre o cinema da dé-

piente indústria com algumas ambições comer-

trial, a era do aço, do telégrafo, do trem e do motor

cada de 10 do século 20.

ciais, capaz de entreter plateias com histórias.

à explosão, transformações que também alavanca-

Na década de 10, do século 20, o norte-ame-

riam a criação de parafernálias a serem utilizadas

ricano David W. Griffith evidenciou ao mundo as

nas artes, como o próprio cinematógrafo.

possibilidades de sistematização do aparato cine-

A luta que se engendrou, então, foi a da bus-

matográfico, de que por meio de aproximações da

ca por matéria-prima e mercados entre as maio-

câmera em objetos e pessoas, em um momento

res potências. A Alemanha e a Itália se unificaram

determinado, podia se acentuar, por exemplo, o

tardiamente, mas também se lançaram nessa bri-

caráter dramático de uma cena, contando ainda

ga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da

com os recursos da montagem que o equipamen-

Primeira Guerra Mundial.

to então oferecia.

A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), por

Mas o passo de Griffith representa um pou-

sua vez, foi um acontecimento que ressignificou,

co mais do que isso, pois se consolida no cinema

a fórceps, as vidas dos habitantes do planeta, e o

nascente a noção de significado (ao reafirmar a

cinema, assim como as artes em geral, também se

sua capacidade de narratividade), vai mais além

abalou profundamente.

ao imbuí-lo de uma faceta significante, isto é,

Nunca a destruição havia sido tão fácil, a

de deixar clara a importância também do como

morte não mais era perpetrada no corpo a corpo,

narrar uma história. Assim, Griffith demonstra de

pois essa guerra possibilitou a morte à distância:

uma só vez que o cinema podia não só contar

podia se matar o adversário sem tocar diretamen-

uma história, mas também se constituir como

te em seu corpo, a metralhadora dava um toque

uma linguagem específica.

de impessoalidade, feria-se sem ver o semblan-

Realmente é surpreendente que, em menos

te do outro. Agora, com um simples apertar de

de 20 anos da invenção do aparato, Griffith al-

gatilho eliminava-se dezenas e até centenas de

cance feitos tão extraordinários. Como Griffith

pessoas em uma pequena fração de tempo.

era um homem vindo do teatro, o que o impul-


CINEMA

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2015

41

Atingindo o céu: o cinema expressionista alemão no contexto artístico da década de 1920

interesses de manutenção e propaganda para

filmes, o uso do cinema pelo Terceiro Reich, o papel

perpetuação de um determinado grupo ou

educativo dado pelo governo inglês e político-par-

classe no poder, tal como nos anos de 1930

tidário dado pelo governo soviético serão algumas

viria apontar Walter Benjamin?

respostas a algumas perguntas listadas acima.

Seria o cinema apenas mais um bem de consumo

Não é por acaso que os anos de 1920 serão

escapista a entreter as massas em seus mo-

férteis para as vanguardas no cinema. Muitas dis-

mentos de lazer?

cussões e manifestos envolvendo o cinema per-

O expressionismo no cinema situa-se, em um con-

Seria o cinema um bem cultural a serviço de men-

meiam a época. Entre eles, o Manifesto das Sete

texto da história da linguagem cinematográfica,

sagens “educadoras” para as massas, portanto

Artes, de Ricciotto Canudo (escrito em 1911, mas

em uma encruzilhada. Caminhos artísticos, os mais

repleta de conteúdos instrutivos e de acordo

publicado apenas em 1923); o Manifesto Surrea-

diversos, estavam sendo experimentados, e talvez

com a moral e o status quo vigente, e que, em

lista (1924), de André Breton; o Manifesto do Som

ele representasse, devido à própria situação da

consequência, deveria ser monitorado pelo

(1928), de Sergei Eisenstein; fora diversos manifes-

poder estabelecido?

tos escritos por Dziga Vertov.

Alemanha nos anos de 1920, não exatamente uma síntese estética, mas talvez uma síntese da inde-

Seria o cinema uma arte possível de ser indus-

Em poucas linhas, podemos afirmar que o ci-

finição de rumos, da dúvida que paira nesse mo-

trializada e, posteriormente, comercializada

nema nos anos 20 podia tudo. Essa era a realidade,

mento acerca de qual seria a serventia do cinema

e, como qualquer produto, ser submetida ao

a perspectiva voltada para o entretenimento e para

para a humanidade.

consumo em geral?

o viés comercial do aparato estava longe de ser o

Eis as algumas dúvidas inerentes ao cinema nas duas primeiras décadas do século 20:

único caminho para o cinema, ele demonstrava por Nota-se que essas perguntas são amplas e

Seria o cinema uma linguagem específica, munido

atendem demandas das mais variadas, que impli-

de códigos próprios, interesses estéticos de-

cam questões específicas relacionadas à estética,

finidos, voltado sobremaneira para despertar

à própria definição e estatuto artístico do cinema,

sensações profundas e inovadoras nos seres

mas envolve ainda questões que o imbricam com

humanos?

discussões para além do próprio cinema. Nota-se,

Seria o cinema uma mera extensão da narrativa literária e/ou teatral?

meio de seus artistas que seu alcance estético era ilimitado, tão amplo quanto o céu.

nesse momento, o quanto o cinema será amarrado a uma gama de interesses sociais, políticos e eco-

Seria o cinema tão somente uma poderosa arma

nômicos que na década de 1930 estarão mais evi-

ideológica à mercê de Estados, governos

dentes. A consolidação da indústria de Hollywood

prontos a aparelhá-lo de acordo com seus

e a interferência moral do Estado nos enredos dos

Cenas do filme O gabinete do Dr. Caligari


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2015

42

4. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo. Perspectiva. 2008. p. 31. 5. CÁNEPA, Laura Loguercio. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo. Papirus. 2008.

A relação do fantástico com o expressionismo

o fantástico atinge no cinema uma força incon-

eles representavam uma exteriorização de um es-

testável, com o sucesso do filme de Robert Wiene,

tado interior, uma materialização espiritual, e a

O gabinete do Dr. Caligari.

sua potência estética vinha dessa confrontação

Em Caligari vem à tona todo o potencial

do externo com o interno. O que caracterizaria,

De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov,

expressionista ao revelar uma Alemanha gótica,

então, o terror expressionista seria a assimilação

o fantástico pode ser entendido como tal quando

demoníaca, com seus pesadelos mais obscuros.

expressiva de um elemento psicológico.

se põe em dúvida a noção de real de um determi-

O mais incrível no filme de Wiene é a sua capa-

O período histórico do nascimento do ex-

nado fenômeno, isto é, quando não se consegue

cidade de tornar o gênero fantástico, até então

pressionismo o localiza imediatamente após

explicá-lo pela lógica, mas somente sob a regência

essencialmente literário, totalmente palpável

a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial

de outras leis que desconhecemos. Para Todorov,

para o gênero cinematográfico. O viés fantásti-

(1914-1919) – O gabinete do Dr. Caligari foi

normalmente um fenômeno “se pode explicar de

co em Caligari se impõe por meio da criação de

produzido em 1919/20. Muitos críticos relacio-

duas maneiras, por meio de causas de tipo natural

uma temática típica dos enredos de terror, em

nam o expressionismo como uma resposta da

e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre

especial, o tema da manipulação de mentes e do

vanguarda alemã à atmosfera de decadência e

os dois criou o efeito fantástico.”[4]

sonambulismo.

crise moral do período compreendido como a

O fantástico nasce na literatura e tem o cul-

Desde os primórdios do cinema, tem-se

República de Weimar (1919-33) e prenuncia-

tuado escritor Edgar Allan Poe como seu autor íco-

registro de filmes de terror. No primeiro ano do

dor do surgimento do nazismo. Hoje, essa ideia

ne, mas a sua concepção é muito bem assimilada

cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou

não deve ser tomada de forma absoluta. Outras

pelo cinema ainda em seus primórdios. O ilusionis-

um pequeno curta-metragem com a temática. As

questões são também apontadas como influen-

ta e cineasta francês Georges Méliès é considerado

histórias de terror foram sendo filmadas nas dé-

tes, tal como o gosto pelo medievalismo (gótico)

um dos precursores do cinema fantástico, com o

cadas posteriores, mas somente no Expressionis-

e a tradição romântica alemã.

seu célebre filme Viagem à Lua (1902), quando o

mo Alemão o terror adquiriu uma maior presença

Como bem assinala a professora e pesquisa-

cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade

e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nos-

dora Laura Cánepa, um grande êxodo de artistas,

do que um aparelho apto a criar uma linguagem

feratu, Fantasma e outros serviram de fonte para

atores e técnicos alemães dessa época, provocado

autônoma.

diversos filmes a partir dos anos de 1930.

pela ascensão do nazismo, difundiram uma con-

Mas é no cinema alemão que o fantástico

Mas, se analisarmos a incorporação do ter-

siderável influência da “estética expressionista”

surge com maior vigor, antes mesmo da eclosão

ror ao gênero cinematográfico, veremos que um

pelo mundo, mais precisamente nos Estados Uni-

do expressionismo alemão, já nos anos 10 do sécu-

ponto de partida onde o encontramos de maneira

dos, onde a indústria hollywoodiana avançava a

lo 20, com a incorporação de escritores do gênero

mais sistematizada é a do próprio Expressionis-

passos largos. Basta assistir aos filmes de terror

fantástico como roteirista de filmes. Mas somente

mo Alemão. No expressionismo, encontramos

dos anos de 1930 e os chamados filme noir para

no final da década de 10 e início dos anos 20 que

uma exacerbação dos elementos imagéticos, mas

saber que não estamos a exagerar.[5]


CINEMA

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2015

43

6. EISNER, Lotte H.. A tela demoníaca. São Paulo. Paz & Terra. 2002. p. 17. 7. CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1998. p.25.

O cinema expressionista alemão: aspectos estéticos gerais

alemão, se reanimavam tal como as sombras do Hades ao beberem sangue.

[6]

Cenas do filme Viagem à Lua, de Georges Méliès

Então vejamos: misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e sombras são palavras utilizadas nessa pequena

Acredita-se, aqui, que, sem essa contextuali-

citação, mas que corporificam o sentimento ex-

zação bastante abrangente, uma análise sobre

pressionista. Os filmes trazem inequivocamente

qualquer cinema realizado na década de 1920

esse peso, como um carma que recai sobre seu

seria estéril e inócua. Isso se deve à grande

destino artístico.

efervescência das artes desde o final do século

Na definição de Roger Cardinal, o expres-

19, e em especial a partir dos anos 10 do sé-

sionismo “representa uma versão peculiarmente

culo 20, com as interferências modernas, mais

urgente da necessidade perene do artista de

precisamente a polêmica causada pela ousada

se expressar sem restrições. Seus antecedentes

o tempo está nublado, que as sombras e os per-

obra de Duchamp, intitulada de A fonte. Depois

imediatos são as declarações irracionalistas e

sonagens sinistros estão em profusão e que algo

de quase 100 anos, ainda hoje sua obra suscita

instintuais de um Nietzche, as transcrições po-

precisa ser feito para transformar a sociedade,

fervorosas discussões acerca do que seria então

derosas da vida íntima agitada nas últimas pin-

antes que precisemos lhe extrair um membro.

a arte, ou um objeto artístico, e quais seriam os

turas de Van Gogh, os gestos altamente cênicos

Os filmes do período comumente chamado de

parâmetros e critérios para a sua definição.

de Strindberg. Quando Nietzche afirma orgulho-

expressionista (1919-27) espelham demais a nebu-

Mas sem dúvida a Primeira Guerra Mundial

samente que ‘eu sempre escrevi meus trabalhos

losidade de seu tempo. Há um cruzamento con-

tem um peso incomensurável nesse contexto. Fez

com todo o meu corpo e minha vida, não sei o

siderável, em especial na Alemanha derrotada no

renascer elementos, alguns até já adormecidos, na

que querem dizer com problemas intelectuais’,

pós-guerra, entre realidade sinistra e visão sinistra

alma alemã. No início de seu magnífico livro sobre

está oferecendo, na sua maneira mais simples,

do artista. A distorção aflorada no olhar do artista

o Expressionismo Alemão, Lotte H. Eisner afirma:

um princípio exemplar do Expressionismo: a

não deve ser descartada e, mais do que isso, deve

Misticismo e magia – forças obscuras às

confiança irrestrita na expressão direta dos sen-

ser sublinhada, enfatizada, pois é difícil viver uma

quais, desde sempre, os alemães se abandonaram

timentos que se originam na própria vida do

hecatombe social e não a expressar. Seria como

com satisfação – tinham florescido em face da

criador, sem a mediação e a interferência prová-

não pertencer ao mundo, abdicar dele.

morte nos campos de batalha. As hecatombes de

vel da racionalidade”.[7]

Pensemos, então, em um ponto crucial para o

jovens precocemente ceifados pareciam alimentar

Quando o mundo objetivo não inspira con-

expressionismo: a distorção. Como falar de temas

a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantas-

fiança, o artista se utiliza da subjetividade, de

sublimes quando o que vemos ao redor não é tão

mas, que antes tinham povoado o romantismo

sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que

inspirador assim. A guerra distorceu os corpos. Os


CINEMA

primeiro SEMESTRE

2015

44

artistas viram isso, não podiam passar incólumes

filmes expressionistas, pois são comumente seres

a tudo isso. Mas também tem a degradação moral

que habitam um terreno sombrio da existência.

quando a morte e a mutilação dos corpos passam

Há uma concepção labiríntica dos cenários que

a existir em profusão, os jovens são abatidos e,

muito expressam uma vertigem inerente também

com eles, o futuro de um país. Ainda há a altera-

aos conflitos emocionais dos personagens.

ção da paisagem, a destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo.

A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cenários com a

Os cenários dos filmes expressionistas, em

predominância do contraste entre partes mui-

especial as obras de primeira hora, tal como

to escuras (mais nas bordas) e muito claras (no

O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das fi-

centro da imagem). Há ainda o resgate do medie-

guras de cera, O golem, Nosferatu, tendem à

valismo, uma aproximação com a estética gótica,

claustrofobia, faltam-lhes profundidade, são aca-

assim como uma recuperação dos valores român-

chapantes e tortuosos, possuem uma estilização

ticos nítidos na exacerbação dos sentimentos dos

artificial que beira o grotesco.

personagens.

A maquiagem dos atores foi concebida de

Um dos alicerces que colaborou para escorar

forma exagerada, sinistra, que lhes fazem parecer

o cinema alemão dos anos de 1920 foi o teatro

uns mortos vivos, como se vagassem à deriva pelo

de Max Reinhardt, escola para diversos profissio-

mundo. Seus corpos são pesados, com movimen-

nais que depois migraram para o cinema, e foram

tos bruscos, não naturalizados, como se fossem

muitos: cenógrafos, atores, diretores, figurinistas,

impedidos de se locomover com desenvoltura

fotógrafos, vários deles saíram de seu teatro. Se

por uma força maior. Os figurinos também lhes

o teatro formou profissionais, a UFA (Universum

pesam, dificultam o movimento e lhes dão uma

Film Aktiengesellschaft), como produtora privada,

aparência soturna.

fortemente assentada economicamente, com-

Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase

posta por fusão de diversas produtoras, solidifi-

que personagens de outro mundo, cindidos e

cou o cinema alemão como produto fora do país,

alheios à vida social, imersos no seu mundo, pou-

mercado esse que antes se encontrava em crise.

co dialogam com o exterior, vivem as suas tragé-

A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich

dias interiores, são seres alienados, quase inuma-

Pommer, maior produtor alemão, foi decisivo para

nos. Não à toa, os temas mórbidos perpassam os

a UFA alçar voos extraordinários.


CINEMA

primeiro PRIMEIRO SEMESTRE

2015

45

Em consequência, o cinema expressionis-

Cenas dos filmes:

ta espirrará diretores para fora da Alemanha.

Nosferatu

Todos hoje são nomes cultuados. Qual amante

Metrópolis

do cinema nunca ouviu falar de um Fritz Lang,

Metrópolis

de um Murnau, de um Paul Leni, de um Ernst

Metrópolis

Lubitsch, de um Pabst e de um Robert Wiene? Ressalta-se, ainda, a qualidade técnica dos

As mãos de Orlac

profissionais de cinema existente na Alemanha

O homem que ri

dos anos de 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens, o expressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl

do Dr. Caligari) e Wilhelm Dieterle (Fausto e

Mayer (A última gargalhada e O gabinete do

O gabinete das figuras de cera ).

Dr. Caligari), Henrik Galeen (O gabinete das

Soma-se a esses preciosos profissionais

figuras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea

um organizador de peso, o já citado produtor

Von Harbou (Metrópolis); como diretores de

Erich Pommer, que comandou os maiores orça-

arte, há nomes como Robert Herlth e Walter

mentos da época e trabalhou com os diretores

Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Wal-

e os técnicos mais significativos da indústria

ter Reiman e Hermann Warm (O gabinete do

cinematográfica alemã à época da República

Dr. Caligari); como fotógrafos e câmeras, no-

de Weimar, entre eles Murnau, Wiene, Lang,

Filmes da Mostra Sombras que Assombram, em circulação pelo projeto Cine Sesc

mes como Fritz Arno Wagner (Nosferatu), Carl

Freund, Hoffman e Mayer.

O gabinete do Dr. Caligari - 1919 | Robert Wiene

Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund

Vários desses artistas tiveram passagem

(A última gargalhada, Metrópolis, O gabinete

por Hollywood, em especial, no período do na-

O golem - 1920 | Paul Wegener

do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar

zismo, em que o controle ideológico dos filmes

O gabinete das figuras de cera - 1924 | Paul Leni

os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabi-

alemães passava pelo crivo do regime totalitá-

O homem que ri - 1928 | Robert Wiene

nete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras

rio comandado por Hitler e Goebbels. A rotei-

Fausto - 1926 | F. W. Murnau

de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac),

rista Thea Von Harbou não acompanhou o seu

Nosferatu - 1922 | F. W. Murnau

Emil Jannings (A última gargalhada, Fausto e

marido, o diretor Fritz Lang, e escolheu colabo-

A última gargalhada - 1924 | F. W. Murnau

O gabinete das figuras de cera), Werner Krauss

rar na feitura de um cinema nazista.

Metrópolis - 1927 | Fritz Lang

(O gabinete das figuras de cera e O gabinete

As mãos de Orlac - 1924 | Robert Wiene


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

Por Fábio Magalhães

46

Curador Texto contido na publicação didática da exposição Canteiro de obras, de Claudio Tozzi, editado pelo Departamento Nacional do Sesc.

A trajetória de Claudio Tozzi Com previsão de circular

A maioria dos artistas percorre um longo caminho

me interesse, provocou polêmica e manteve-se

pelo Rio Grande do Sul no

para que sua obra seja reconhecida, tanto no meio

na vanguarda. Ele foi um dos primeiros a criar

artístico e cultural quanto pelo grande público.

na velocidade dos acontecimentos e apresentar

Não foi o que aconteceu com Claudio Tozzi. Muito

obras que diziam respeito aos protestos que os

a exposição Canteiro de

jovem, e ainda estudante de arquitetura, ele pro-

estudantes organizavam contra a ditadura mili-

obras, com curadoria de

duziu no ateliê da Faculdade de Arquitetura e Ur-

tar e ainda foi pioneiro ao retratar as profundas

banismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP)

transformações que se passavam no âmbito fe-

as suas primeiras serigrafias, que tiveram imediata

minino. Três gravuras presentes na abertura da

repercussão. O resultado dessas experiências com

exposição Canteiro de obras exemplificam esse

litogravura e 32 serigrafias

a nova figuração causou forte impacto nos meios

seu engajamento às grandes mudanças que

–, três pinturas e um objeto.

artísticos pelo vanguardismo de suas propostas e

ocorriam na sociedade: Multidão, Guevara vivo

despertou enorme interesse junto ao grande pú-

ou morto e Mulher na janela.

segundo semestre de 2015,

Fábio Magalhães, conta com 33 gravuras – uma

Apresenta a trajetória do

blico pela enorme empatia de seus temas, de forte

Claudio interessou-se também pela gráfica e

artista Claudio Tozzi em

valor simbólico, com os conflitos e as aspirações

suas novas possibilidades tecnológicas, pela foto-

ordem cronológica, com

daquela época.

grafia e pelos novos processos reprodutivos. Sua

obras de 1967 a 2005.

O período de seu surgimento como artista

produção sempre esteve voltada para uma arte de

não poderia ser mais fecundo. Os anos 1960 re-

grande força comunicativa; tanto assim que rea-

presentaram, ao mesmo tempo, paradoxalmente,

lizou inúmeras obras no espaço público, de inter-

frustrações e esperanças. Nesta época surge o

venção urbana. Mantém intensa preocupação com

Cinema Novo, com Glauber Rocha, Nelson Pereira

a pesquisa de materiais e, até hoje, procura ampliar

dos Santos e tantos outros. Surge a Bossa Nova,

seu trabalho para outros campos, utilizando uma

com João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Chico

diversidade de meios. Desenvolveu experiências

Buarque de Hollanda, que foi contemporâneo de

com o pigmento/cor, trabalhou com diferentes

Claudio Tozzi na velha sede da FAU/USP, na Rua

tipos de suporte (planos, convexos e tridimensio-

Maranhão. Há uma verdadeira revolução no teatro

nais), expressou-se com outras mídias, como xerox,

brasileiro, com o surgimento do Teatro Oficina, do

polaroid, super-8 e eletrocardiografia. Também re-

Teatro de Arena e tantos outros grupos, muitos de

alizou cenografias, esculturas, objetos.

origem universitária. Por outro lado, o golpe mili-

Trabalhou com grandes dimensões, usando

tar de 1964 frustrou as esperanças de se construir

materiais variados, como espuma de poliuretano

uma sociedade mais justa, mais solidária.

expandida. A experimentação tem sido sua com-

Pois bem, nesse caldeirão de transformação artística, a obra de Claudio Tozzi despertou enor-

panheira pela vida afora.


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

47

1. Edição realizada a partir de textos (com curadoria de Fábio Magalhães) do material didático da exposição Canteiro de obras, de Claudio Tozzi, publicado pelo Departamento Nacional do Sesc.

Mulher na janela (1967) serigrafia sobre papel 58 x 85 cm

Para cada década, uma janela para o mundo[1]

serigrafia, foi possível criar uma linguagem gráfi-

Tozzi e a maioria dos grandes artistas do século

suas fotografias de multidões em passeatas de

20 ultrapassaram as ditaduras dogmáticas das

protesto. Um artista atento ao mundo e com um

escolas e dos estilos para fazerem uso de técnicas

olhar comprometido com o momento. Isto pode

como necessidades poéticas, ao mesmo tempo

ser percebido na sequência de obras expostas no

em que estavam completamente atentos e conta-

período, reproduzindo muitas vezes situações re-

minados pelas questões específicas dentro e fora

ais, como as imagens em Multidão, de 1968, e na

do mundo da arte.

obra Guevara vivo ou morto – a qual, de forma

contestação, buscando dar “voz” àquilo que não

panfletária, foi vendida a preços populares em

podia ser dito.

ca direta e de rápida comunicação, apropriando-se de imagens de jornais e notícias políticas, da estética de história em quadrinhos ou utilizando

Anos 60: Arte como resistência

praças e estádios de futebol em São Paulo, na

A estreita relação entre a arte e a realidade

Claudio Tozzi inicia sua carreira como artista plásti-

ocasião da trágica morte do líder revolucionário

produziu obras muito distintas nos diferentes países

co nos anos 1960, ainda estudante na Faculdade de

na Bolívia. Essa mesma obra, quando exposta em

onde se percebeu as influências da arte Pop – com-

Arquitetura, em uma época em que o movimento

1968, época marcada pelas lutas estudantis con-

pare, por exemplo, as obras de Andy Warhol (EUA),

estudantil era extremamente politizado e a arte,

tra a ditadura, sofreu um atentado e foi pratica-

Roy Lichtenstein (EUA), Richard Hamilton (Ingla-

considerada importante ferramenta de transfor-

mente destruída por um grupo de extrema direita.

terra) e Claudio Tozzi – cada artista vai se apropriar

mação social e política. Não por acaso, utilizou a

A arte nos anos 1960, no Brasil, estava nas

da realidade, seja por meio da mídia e estética da

técnica da serigrafia para realizar suas obras: sua

ruas, provocava e gerava debate, e, assim como

imagem publicitária, seja por meio das histórias em

temática nesta época está intimamente ligada ao

Tozzi, muitos artistas estavam utilizando a arte,

quadrinhos (de rápida e fácil comunicação), com

engajamento em relação às massas e, por meio da

e todas as suas linguagens, como ferramenta de

objetivos distintos. Como uma reação “necessária”


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

48

para cada país de origem, a arte era o lugar onde

levo da Terra, assinala o instante em que o homem

determinadas questões sociais e políticas poderiam

se libertou para sempre de seu planeta natal. An-

Palavra do artista

se tornar visíveis. Assim foi para Claudio Tozzi, nos

tes, ele habitava um mundo ilimitado, porém finito,

1963

anos 1960: arte como resistência!

e temores ancestrais o prendiam à superfície. Ago-

Os primeiros trabalhos que fiz, por volta de 63,

Os acontecimentos do mundo continuam a

ra, ele poderá ir tão longe quanto queira e possa,

caracterizavam-se pela apropriação de imagens

alimentar a obra de Tozzi e, no final dos anos 1960,

sem jamais encontrar um fim. Nenhuma força de

da guerra do Vietnã publicadas em revistas in-

outros heróis passaram a ocupar lugar na sua obra:

gravidade o contém no espaço e as surpresas que

ternacionais, que eram rasgadas, manipuladas e

o homem e a máquina. A série Astronautas, repre-

o futuro lhe reserva vão além do que a imaginação

coladas em um suporte de madeira com resina de

sentada nesta mostra com uma serigrafia, e a obra

é capaz de conceber.”.

poliuretano. Em um dos quadros, criei a imagem de uma família em meio a engrenagens, um mar-

Módulo lunar, por um lado, são temas/notícias da

Impossível hoje sabermos o que realmente

atualidade, mas também parecem ser a esperança

representou para a época tal advento do homem.

de surgir um novo homem, livre e em paz. Na edi-

Só quem viveu pode contar e relembrar. Tozzi eter-

ção histórica da revista Manchete, que mostra as

niza esse momento histórico e ao mesmo tempo

1964

fotos do primeiro homem na Lua, um dos títulos

dialoga intensamente com a Pop Art, suas relações

Nesta época, em 1964, eu montei o meu primeiro

principais dizia: “Promessa de paz acompanhou o

entre o mito e o real. Acentuam-se também suas

ateliê, num porão da Rua Minas Gerais, em Hi-

homem na sua caminhada para o universo”, e na

preocupações por novas possibilidades gráficas e

gienópolis. Comecei a fazer meus trabalhos em

matéria: “Aqui homens do planeta Terra pela pri-

meios de expressão, abrindo sua obra para outras

grandes dimensões, como a instalação Bandido

meira vez pisaram no solo da Lua. Julho de 1969

direções a partir dos anos 1970.

da Luz Vermelha, quase simultaneamente ao lan-

a.D. Viemos em paz por toda a humanidade. Uma placa em formato cilíndrico, com o desenho em re-

Um olho no gato e outro no queijo – um olho na arte um outro no mundo.

telo batendo numa cabeça.

çamento do filme do Rogério Sganzerla, que acabou se tornando um cult movie. Era um dodeca-


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

49

edro, em cujo centro acendia-se uma grande luz vermelha, como aquelas dos caminhões de bombeiros, e quando o espectador se aproximava, era atingido por um raio de luz. E havia também um texto, que não era sequencial, mas que o espectador era levado a montar, mentalmente, a leitura e o sentido da obra. Era meu primeiro trabalho que mostrava essa preocupação em estruturar um ambiente e estimular a participação do público. 1964/65 (…) Lembro-me da participação dos alunos nas questões sociais e políticas da época. Os professores nos orientavam e publicamos um jornalzinho mimeografado – Evolução – que continha ideias básicas para se discutir as reformas de base necessárias ao País. Na FAU, por sua estrutura interdisciplinar, existiam setores específicos que nos possibilitavam uma aproximação maior entre a teoria e a prática. Um deles era o ateliê de serigrafia, organizado com a orientação do Flávio Império, que reunia um grupo que trabalhava com silk-screen. Por ocasião das primeiras greves, no primeiro período de resistência ao regime militar, em 1964/65, fizemos muitos cartazes de solidariedade, em colaboração com o pessoal da Filosofia. 1966/67 Em 1966, comecei a pensar num trabalho que atingisse a massa popular, utilizando imagens conhecidas, realizando uma espécie de performance ou happening, vendendo ou distribuindo essas imagens nos estádios de futebol, inicialmente

militar, fundado por Raimundo Pereira. Previsto

com a imagem do Garrincha e, depois, em 1967,

para ser editado mensalmente, teve vida curta,

com a imagem do Guevara. Além das saídas de

proibido pelo AI-5.

estádios de futebol, distribuíamos também em portas de fábricas e sindicatos. Foi um período de

Década de 60 e a Pop Art

grande agitação e criações coletivas.

A década de 1960 é caracterizada por uma grande necessidade de mudanças e rupturas. As artes

1967

plásticas apropriaram-se de novos conceitos e

Também contribuí com a formulação do projeto

transformaram sua linguagem. A Pop Art, re-

gráfico e o acompanhamento da diagramação

alizada principalmente nos Estados Unidos,

do jornal Amanhã, em 1967, um tabloide al-

preocupava-se mais com a glamourização de

ternativo, de conteúdo contestatório ao regime

imagens de consumo preexistentes, algo mais

Gente no viaduto (1972) serigrafia sobre papel 42 x 69 cm Módulo lunar (1970) serigrafia sobre papel 65,5 x110 cm Guevara vivo ou morto (1968) serigrafia sobre papel 34 x 59,5 cm


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

50

próximo à repetição de imagens das prateleiras

mava o desenho em alto-contraste, como se faz

1968

de um supermercado, a redundância de imagens

hoje com o computador, e depois fazia o trabalho

As imagens utilizadas nos trabalhos da série Mul-

e ícones imediatamente reconhecíveis. No Brasil,

no qual a escala das figuras se identificava com o

tidões eram retiradas de fotografias por mim re-

prefiro usar a expressão nova figuração, pois tem

espectador. Era outra tentativa de fazer essa inte-

alizadas, ou resultado de pesquisa iconográfica

uma conotação específica, com um conteúdo

ração do espectador com a obra. Uma experiência

em jornais e revistas da época. (…) Assim, a série

referido ao que ocorria no País, uma conotação

importante, que fizemos em 1968, foi a exposição

Multidões é realizada através de gestos e linhas

mais ligada à conjuntura. Vivíamos uma situa-

de bandeiras, realizada em São Paulo, na Avenida

agitadas que refletem os movimentos bruscos da

ção de opressão e repressão sob o regime militar.

Brasil, e também no Rio, na Praça General Osório.

ação na cena representada. Já a série Astronautas

A pintura era parte da nossa resistência. Nossa

Um grupo de artistas: Gerchman, Nelson Leirner,

tem por base linhas mais fluídas, que simbolizam

arte continha um engajamento ideológico e de

Marcelo Nitsche, Hélio Oiticica, Flávio Império,

o caminhar do homem na ausência de gravidade.

luta. Meu trabalho tinha uma preocupação de se

Maurício Nogueira Lima, Flávio Motta, Antônio

aproximar da linguagem dos meios de comuni-

Dias, Carmela Gros, Luiz Gonzaga e outros rea-

Anos 70: Olhando a cidade

cação de massa e se apropriava de imagens do

lizaram um trabalho impresso em tecido e fixado

São Paulo, anos 1970, a grande metrópole brasilei-

mundo urbano – sinais de trânsito, histórias em

numa haste, como uma bandeira. Essas bandeiras

ra, enfrentando os desafios e problemas do boom

quadrinhos –, mas sempre com a intenção de

eram agitadas simultaneamente pelos artistas na

das grandes cidades. Já naquela época a cidade

modificar seu significado, de subverter, de propor

rua. Era uma performance coletiva. Nessa oca-

possuía 970 mil edifícios, entre os quais os mais

uma sintaxe diferente do texto para criar uma

sião, fiz o desenho da bandeira do Hélio Oiticica

altos da América Latina, e uma população de 9

nova mensagem. Criar “novos objetos”.

a partir de uma foto por ele escolhida. Marcelo

milhões de habitantes. Em edição da revista Man-

Nitsche e eu imprimimos a bandeira em dimen-

chete de 1971, a cidade vista de cima de um he-

1967/69

são ampliada. Minha bandeira era um desenho

licóptero é comparada a um enorme formigueiro

Fiz a série em homenagem a Guevara, em 1967,

do Che, que está na foto mostrada pelo Oiticica

humano. E hoje, passados mais de 30 anos, se-

em painéis de grandes dimensões, com imagens

em cima da árvore. Em 1969, realizei a série As-

gundo dados do IBGE, a região metropolitana de

em alto-contraste, utilizando o mínimo de cor

tronautas, por ocasião da chegada do homem à

São Paulo conta com uma população de mais de

possível. No Salão de Brasília, esse trabalho foi

Lua. Os materiais utilizados em alguns trabalhos

17,8 milhões de habitantes – quase o dobro. Na

parcialmente destruído por um grupo parami-

dessa série eram os mesmos utilizados na pintura

mesma matéria, São Paulo em três dimensões (re-

litar, depois restaurado em São Paulo. Em 1968,

de foguetes, a tinta epóxi. Participei pela primeira

vista Manchete nº 1005, Rio de Janeiro, 1971), a

passei a documentar as passeatas estudantis com

vez da Bienal de São Paulo, em 1967, na qual a

oportunidade de ver a cidade do alto também traz

máquina fotográfica; voltava ao ateliê e transfor-

relação das obras fora feita por Mário Schenberg.

para reflexão a possibilidade de transfiguração do


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

51

olhar perante a cidade: “(…) É uma viagem verti-

Claudio Tozzi também está olhando para a

retículas, realizadas por meio de uma técnica que

ginosa, sobre todos e sobre tudo, e, o que é mais

cidade, com o olhar do artista que observa, que dá

substitui o pincel por um rolo de borracha reticu-

importante, sobre os problemas. A cidade supe-

foco àquilo que ninguém vê, nos provoca a olhar,

lado, criando um efeito de “cor mecânica”, como

ragressiva aqui embaixo chega a parecer lírica e

um olhar capaz de ver a cidade como se estivesse

as retículas das impressões gráficas, só que neste

tranquila, do alto. (…) Do céu São Paulo é bela e

no topo de um arranha-céu e, ao mesmo tempo,

caso mais visíveis, assim como as imagens de um

insólita. E dá a impressão de que poderia se tor-

caminhando lá embaixo em meio à multidão, com

outdoor quando vistas de perto, em que é possível

nar uma cidade humana.”.

os pés no chão, vendo de frente seus problemas

ver as retículas de cores que constroem as ima-

Podemos criar um paralelo com o texto de

e desafios. Olha a cidade como o voyeur, mas

gens. O efeito produzido pela utilização do rolo

Michel de Certeau, Andando na cidade, no qual

não com um olhar de deslumbramento e fascínio

de borracha reticulado nas obras de Tozzi, técni-

ele, do topo do World Trade Center, analisa a cida-

diante da cidade, mas com uma visão crítica e de

ca análoga àquela utilizada nas suas serigrafias,

de vista do alto do arranha-céu. “Quando se sobe

denúncia. No meio da multidão da cidade somos

cria esse mesmo efeito de retícula expandida que

ali, deixa-se para trás a massa que carrega e mis-

heróis anônimos, habitantes da grande metrópole.

observamos nos outdoors. Na realidade, todas as

tura em si própria toda identidade de autores ou

As obras Gente no viaduto, de 1972, Especulação

imagens gráficas que vemos como “fotografias”

espectadores. (...) Sua elevação o transfigura num

imobiliária e Polution, de 1973, são alguns exem-

nada mais são do que imagens reticuladas cons-

voyeur. Coloca-o a distância. Transforma o mundo

plos de obras que remetem a essas leituras, janelas

truídas pela cor.

encantatório pelo qual ele foi ‘possuído’ num texto

da cidade de São Paulo.

Palavra do artista

diante de seus olhos. (...) Dever-se-ia por fim cair

A partir de 1974, sua obra vai sofrer uma

no espaço escuro onde as multidões se movimen-

guinada radical, de acordo com experiências com

tam para cima e para baixo, multidões que, embora

a cor. A exposição Cor/Pigmento/Luz, realizada em

1970

visíveis do alto, são elas próprias incapazes de ve-

São Paulo em 1975, apresentou obras com uma

Depois do AI-5 e na década de 1970, meu trabalho

rem o que há embaixo? (...) Os praticantes comuns

preocupação quase científica com a cor; a cor pas-

passou a ser mais reflexivo. Fiz a série Parafusos,

da cidade moram ‘lá embaixo’, abaixo do limiar

sa a ser elemento de construção, prevalecendo em

na qual o primeiro deles mostra um parafuso aper-

onde a visibilidade começa. Eles caminham – uma

relação a ela um racionalismo cromático, quase

tando um cérebro. Então, as imagens deixam de ter

forma elementar dessa experiência da cidade; eles

conceitual.

comunicação imediata, começam a ser reflexo de

são caminhantes, Wandersmänner (caminhantes à

um pensamento, uma conotação mais simbólica,

deriva, sem destino certo), cujos corpos acompa-

A passagem dos anos 1970 para 1980

metafórica. Começo, então, a trabalhar com ele-

nham resolutamente um ‘texto’ urbano, que escre-

A cor passa a ser elemento predominante na obra

mentos menos objetivos, mais simbólicos e sutis.

vem sem serem capazes de lê-lo.”

do artista, criando imagens/cor construídas com

Fiz uma pesquisa de novos pigmentos e resinas,

Astronauta (1969) serigrafia sobre papel 25,5 x 40,5 cm Especulação imobiliária (1973) serigrafia sobre papel 39 x 60 cm Parafusos (1979) litografia sobre papel 54,5 x 54,5 cm


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

52

Edifício Artigas (homenagem ao arquiteto Vilanova Artigas, 1986) serigrafia sobre papel 40,5 x 60 cm

resultando num tratamento cromático mais ela-

Trama urbana (1984) serigrafia sobre papel 40 x 59 ,5cm

turava com o fundo em tinta acrílica, resultando

Arquitetura imaginária (2005) serigrafia sobre papel 49 x 69,5 cm

hoje realizo trabalhos com os Parafusos, mas com

borado. Introduzi a fusão de silk-screen, aplicado sobre a tela, com tinta alquídica, que não se missutis texturas. O Parafuso é o primeiro deles. E até uma preocupação de traduzir suas formas, não como figura-elemento, mas como parte essencial da estrutura, da obra. O acoplamento de suas formas determina a estrutura do quadro e indica as opções para a solução cromática e seu formato final, que pode ser recortado, aproximando- o da escultura. Em seguida, fiz uma série de trabalhos que associava uma imagem central a um conceito traduzido por materiais acoplados a uma caixa de acrílico, que envolvia o quadro. Na pintura-objeto Polution, uma imagem de chaminé de fábrica é envolta por uma fibra de algodão com fuligem, reforçando a força da imagem central. No trabalho Third World, personagens em revolta são envolvidos por restos de roupas pertencentes a um guerrilheiro urbano. Sobre a exposição Cor/Pigmento/Luz Era uma mostra que discutia a cor, como se fosse um palco que representava o conceito da cor: por subtração e adição. A mistura subtrativa da cor é a que se dá através da combinação dos diversos pigmentos. A mistura aditiva é a que vemos a partir da incidência de raios de luz sobre sua superfície. Então, essa exposição era a cor/pigmento e a cor/luz, que na tela eram representadas por superfícies de cor “chapada” e por retículas, que representavam os feixes de luz. Haroldo de Campos fez um poema, tomando cada uma das cores, e as incorporava ao seu texto. 1970 Fiz alguns trabalhos de programação visual, o que proporcionou um bom contato com a indústria gráfica. Toda aquela questão da retícula, de transformar uma imagem em quatro fotolitos, uma série de pontos que iam se sobrepondo e resultando na imagem, o que acabou por me influenciar nos trabalhos seguintes, em que utilizei bastante a re-


ARTES VISUAIS

primeiro SEMESTRE

2015

53

Palavra do artista

tícula na composição de minhas imagens. E essa

forma final do quadro. Eram trabalhos recortados

estrutura reticular é constituída pela superposição

que rompiam a barreira do limite entre a pintura e

de pigmentos, que depositam na tela as caracterís-

a escultura, pois tangenciavam as duas categorias.

1990/2000

ticas de matiz, claridade e saturação de cada cor.

Eram objetos-recortes. Recentemente, retomei

Recentemente, retomei esse signo criando as

esse signo, criando as Arquiteturas imaginárias.

Arquiteturas imaginárias. No início dos anos 1990, fiz uma série de trabalhos com volumes

Anos 80: Cor como construção do espaço Tomamos como ponto de partida dois caminhos

Anos 1990/2000: Arquiteturas imaginárias

e formas orgânicas expandidas. Eram trabalhos

para entrarmos na obra do artista neste período:

A produção recente de Tozzi vai refletir a maturi-

de grandes dimensões, que utilizavam espuma

primeiramente, os jogos de metáforas criados pe-

dade de seu discurso pictórico. A cor constrói o es-

de poliuretano expandida, envolta por um tecido

los temas apresentados em séries de obras como

paço, e os planos de arquiteturas imaginárias não

que definia seu contorno. Eram amebas e for-

Parafusos, Escadas, Passagens e as tramas urba-

existem no mundo real, apenas na obra do artista,

mas orgânicas, que dialogavam com a estrutura

nas que transformam a cidade em peças de um

no aqui e agora, no encontro do espectador com

construída do quadro. Um desses trabalhos –

jogo combinatório de construções lógicas. E o

a obra, mundos abstratos, mundos construídos

Expansão, de 3 x 3m – pertence, hoje, ao acervo

segundo caminho, da cor que constrói o espaço,

por um arquiteto. Suas ferramentas são a cor e o

do Museu de Arte Contemporânea da USP. Fo-

pesquisa que se inicia em meados dos anos 1970

espaço. As alusões a coisas reais funcionam como

ram expostos na Bienal de 1991, no Museu da

e se consolida nos anos 1980. A figura vai se di-

meros pretextos para construir o espaço da obra.

Casa Brasileira e no Museu de Arte Moderna do

luindo até sumir completamente e ficarem apenas

O artista reencontra diversos elementos que sur-

Rio de Janeiro, em 1993.

os elementos plásticos – cor, linhas, planos, formas

giram em períodos anteriores, só que agora des-

Minha preocupação é fazer um trabalho que

e composição –, mesmo que esses construam ar-

providos de sua função metafórica. Escadas não

não seja só pintura, que tenha uma relação com a

quiteturas imaginárias. Frederico Morais define

são mais escadas, parafusos se escondem entre

cidade, com os espaços nela contidos, de até tra-

Tozzi como um artista abstrato a rigor, um artista

linhas e formas, a cidade “não existe”, é um jogo de

balhar em equipes, participando de projetos junto

construtor de imagens, que trata a imagem como

planos e retângulos no espaço; o artista constrói

com arquitetos, com designers, de uma forma in-

um designer: isola, agiganta, congela, junta, repete,

como arquiteto, mas vê o mundo e nele interfere

terdisciplinar.

fragmenta, divide, soma, multiplica.

como artista.

Palavra do artista 1970/1980 Inicialmente as escadas, depois as passagens e, mais recentemente, as arquiteturas imaginárias são uma interpretação do espaço mais intimista – o microespaço, com a intuição de criar um campo semântico onde a escada é um signo, o representar simbólico dos interstícios da vida. As primeiras escadas realizei em 1977, ainda utilizando a técnica em que um rolo de borracha reticulada depositava a tinta sobre a tela. Em 1984, retomei o projeto e realizei a exposição Passagens. Haroldo de Campos acompanhou esses trabalhos e escreveu o texto Uma poética do entre, no qual a frase inicial define bem a série: “Escadas que não conduzem a nada, senão à sua própria monumentalidade sígnica.” Nesta exposição, além dos quadros em formatos tradicionais, realizei objetos recortados, nos quais a própria construção da imagem determinava a


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

POR João Luis Pereira Ourique

54

Professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), líder do Grupo de Pesquisa CNPq ÍCARO (UFPel) e pesquisador dos Grupos de Pesquisa CNPq Literatura e Autoritarismo e Formação Cultural, Hermenêutica e Educação da UFSM

1. O título remete ao primeiro verso do poema Colloque sentimental, de Mário de Andrade, publicado em Pauliceia desvairada (1922) e em Poesias (1941): “Tenho os pés chagados nos espinhos das calçadas...”. 2. Terceiro verso do poema Colloque sentimental, de Mário de Andrade. A relação com o poema não apenas oportuniza um olhar a partir do cenário urbano pelo qual transitava João Simões Lopes Neto, mas também evidencia a importância da cidade de Pelotas, que contava com mais de 100.000 habitantes àquela época (conforme aponta o Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul), enquanto que São Paulo, no início do século 20, “tinha 240.000 habitantes, grande parte formada por fazendeiros, caipiras, ex-escravos e imigrantes, em sua maioria, operários artesãos e profissionais liberais” (TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores paisagistas: São Paulo – 1890 a 1920. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de SP, 2002. p. 32).

João Simões Lopes Neto nos espinhos das calçadas[1]

A música Colorada[3], de Aparício Silva Rillo e Mario Barbará Dornelles, enfatiza esse tempo de revolução, das guerras, das degolas, da corrupção política e da divisão brutal que marcou o Rio Grande do Sul na última década do século 19. Sua letra, dividida em duas partes (Visão e Relato), procura elaborar uma visão histórica crítica do período de barbárie. I – Visão Olha a faca de bom corte, olha o medo na garganta o talho certo e a morte, no sangue que se levanta. Onde havia o lenço branco, brota um rubro de sol por

Imaginemos os ponteiros do relógio movendo-

se o lenço era colorado,

-se na direção contrária e o próprio tempo

o novo é da mesma cor.

acompanhando esse percurso, a arquitetura mudando, mas permanecendo familiar – Casas

Quem mata chamam bandido,

nobres de estilo... Enriqueceres em tragédias....[2]

que morre chamam herói

Os ponteiros param e o calendário mostra o ano

... o que dói em quem morre,

de 1893, mais precisamente o dia 9 de março,

na mão que abate não dói.

data que 28 anos antes marcava o nascimento do homem que transita pelas ruas da cidade de

II - Relato

Pelotas, no Sul do Rio Grande do Sul. O jovem

Era no tempo das revolução,

João Simões Lopes Neto, que um ano depois

das guerra braba de irmão contra irmão,

seria nomeado tenente da Guarda Nacional,

do lenço branco contra os lenço colorado,

atingindo o posto de Capitão em 1901, caminha

dos mercenário contratado a patacão.

pelas ruas agitadas em decorrência do início dos conflitos da Revolução Federalista, a qual se

Era no tempo que os morto voltava,

constituiria em uma das guerras mais sangren-

e governava os vivo até nas eleicão.

tas que os gaúchos vivenciaram... e não foram

Era no tempo do combate a ferro branco,

poucas. As lutas entre maragatos, integrantes

que fuzil tinha mui pouco e era escassa a munição.

do Partido Federalista, os quais usavam o lenJoão Simões Lopes Neto (9 de março de 1865 – 14 de junho de 1916)

ço vermelho com símbolo, e pica-paus, adeptos

Era no tempo do inimigo não se poupa,

do Partido Republicano, tendo como emblema o

prisioneiro era defunto e se não fosse era exceção.

Capa da peça O Boato, datada de 1894, que se constitui na primeira obra literária de João Simões Lopes Neto publicada na forma de livro.

lenço branco, renomearam o período de 1893 a

Botavam nele a gravata colorada,

1895 como a Guerra da Degola.

que era o nome da degola nesses tempo de leão.


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

55

3. Composição premiada na Linha Projeção Folclórica da 7ª Califórnia da Canção Nativa realizada em 1977. Fonte: encarte do álbum triplo (Long Play) em comemoração aos 20 anos da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. RGE, 1990. 4. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 82. 5. Jornal no qual também viria a publicar, no ano de 1914, os casos do Ramualdo, organizados em formato de livro no ano de 1952 por Carlos Reverbel. 6. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 84. 7. HOHLFELDT, Antônio. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Tchê, 1985. p. 35. 8. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 88.

continuo a ser... Capitão da Guarda Nacional.” O

dão conta do sucesso da peça, que foi reapresen-

escritor João Simões Lopes Neto morreu em 14

tada no dia seguinte e nos dias 16 e 17 de dezem-

de junho de 1916, com apenas 51 anos de idade,

bro em benefício da Santa Casa de Misericórdia.

mas o nosso tempo, 150 anos depois do seu nas-

Serafim Bemol (Simões Lopes) e Mouta-Rara

cimento, não permite mais testemunhas oculares,

(Gomes Mendes) também contaram com a colabo-

nem relatos de pessoas que o conheceram no iní-

ração do maestro Manoel Acosta y Olivera para a

cio de sua atividade de escritor.

composição da partitura especial da peça, que aca-

Vamos tentar permanecer naquele passado e vivenciar com ele preocupações e partilhar da sua

bou sendo publicada no ano seguinte pela Echenique & Irmão – Editores.

energia e vitalidade nos seus primeiros escritos.

A partir de uma leitura de O Boato podemos

Passados mais de seis meses, em 15 de outubro,

entender e perceber a inserção do escritor pelotense

nas páginas do Correio Mercantil[5] e utilizando

no cenário urbano e no meio social de seu tempo. A

o pseudônimo de Serafim Bemol, publicou o pri-

crítica irônica – quase sarcástica – presente na peça

meiro capítulo da novela de folhetim A Mandin-

e que teve boa aceitação do público, além de evi-

ga, em colaboração com Dom Salústio e Sátiro

denciar um brilhante início e apontar para um pro-

Clemente, sendo que o último dos 15 capítulos

missor futuro, nos permite chagar nossos pés nos

foi publicado em 14 de dezembro de 1893. Essa

mesmos espinhos das calçadas de Pelotas naquele

narrativa urbana, “urbaníssima mesmo, no seu

final de século. Além disso, essa produção, assim

Conforme a biografia de Carlos Francisco Sica

argumento e na sua cena” , já apresentava se-

como as demais peças que integram sua literatura

Diniz, “João Simões Lopes não aderiu à revolução,

melhanças com a dramaturgia em virtude da

dramática – consideradas obras menores em com-

mantendo-se fiel ao Partido Republicano. A fidelida-

“intensa movimentação de entra-e-sai das per-

paração com os Contos gauchescos (1912) e as Len-

de aos antigos ideais republicanos, como parece ter

sonagens, muito semelhantes ao teatro, em que,

das do Sul (1913) por muitos críticos e historiadores

sido o caso de Simões Lopes, não significava estar

justamente nesse ano de 1893, João Simões vai

–, não pode ser vista apenas como um processo de

em apoio às perseguições politicas que porejavam

estrear”[7].

amadurecimento do escritor, mas sim como algo

[6]

no Rio Grande, a partir da retomada do poder pelos

Não podemos afirmar que a primeira pro-

relevante também para, nos dias de hoje, romper

castilhistas, em junho de 1892. Já filiado ao Partido

dução de João Simões Lopes Neto tenha sido

com a denominação única de escritor regionalista a

Republicano e nomeado tenente da Guarda Nacio-

A Mandinga e nem que a movimentação presente

ele atribuída. Devemos sempre considerar que João

nal, sem, no entanto, entrar em combate contra os

nesta narrativa tenha sido pensada inicialmente

Simões Lopes Neto é um escritor relevante para a

federalistas revolucionários, Simões Lopes manteria

para aquele texto ou que, pelo fato de já ter apre-

cultura, a leitura de suas obras renova perspectivas

sempre uma postura sóbria, um tanto avessa às

sentado a leitura da peça O Boato na “noite de

e lança novos olhares sobre aquilo que já se consi-

campanhas partidárias.”

13 de setembro, em sua residência e na presença

derava intocável e inquestionável.

[4]

Casado há menos de um ano (em 5 de maio

de alguns amigos, do subintendente do município

O próprio gênero – o texto dramático – é algo a

de 1892), podemos acompanhar o início de seus

e de representantes da imprensa” , tivesse ocor-

ser debatido nesse processo. Tanto que já é comum

empreendimentos naquele distante março de

rido o inverso: a linguagem do texto dramático

a menção de que a experiência como dramaturgo

1893 – a maioria resultando em fracasso advindo

permeando a narrativa do folhetim. Escrita em

de João Simões Lopes Neto se faz presente na cons-

de várias e diferentes circunstâncias – e entender

parceria com Gomes Mendes – cunhado de João

trução de seu principal personagem-narrador: Blau

que os percalços que enfrentou na sua vida pro-

Simões Lopes Neto – a peça foi encenada pelo

Nunes. O velho Blau transpira uma força cênica em

fissional podem ser resumidos na conhecida de-

grupo amador Sociedade Dramática Particular

um palco rústico, em que podemos perceber o mo-

claração feita de próprio punho pelo escritor: “Eu

Beneficiente Thalia na noite de 25 de novembro

vimento de um ator, tanto que é muito frequente

tive campos, vendi-os; frequentei uma academia,

no Teatro Sete de Abril. Notícias publicadas no

nos depararmos com adaptações das suas obras

não me formei; mas sem terras e sem diploma,

Correio Mercantil de 28 de novembro de 1893

mais reconhecidas para o teatro.

[8]


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

56

9. WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Tradução: Rogério Bettoni. Sãoo Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 227. 10. GAUDÉ, Laurent; KUNTZ, Hélène; LESCOT, David. Conflito. In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução: André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 11. BAILLET, Florence; BOUZITAT, Clémence. Ironia/humorismo/grotesco. In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução: André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 98. 12. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 91. 13. Curiosamente podemos ler, na publicação de O Boato, uma propaganda do Almanaque Popular Brazileiro para o ano de 1895, reiterando a importância e a popularidade desse tipo de publicação, além de estabelecer um diálogo da comédia com o contexto para além da própria trama.

Em O Boato, portanto, podemos perceber uma intensa movimentação, o espaço das ruas da cidade

progresso, se somam para compor um novo ce-

veniência, à apologia da vida de aparências em

nário do qual podemos fazer parte.

contraste com o desfile dos credores da porta

sendo tomado de assalto pela ação da escrita.

Raymond Williams aborda a questão da

e inevitáveis falências comerciais, às querelas

Esta tentativa, presente na descrição dos espa-

ação e escrita no drama. Afirma que o “pro-

com a Igreja Católica, numa miscelânea cômi-

ços pelos quais a plateia transitou no caminho

blema do edifício teatral volta a nos assediar,

co-burguesa que, assim como agradou, deve

para o Teatro Sete de Abril, pelo reconhecimento

pois nossa dificuldade mais evidente agora é

ter também arrepiado os cabelos de muitos fi-

dos espaços abertos (ruas, casas, praças), procu-

a equação entre o drama e o teatro enquanto

gurões da cidade.”[12]

ra abolir, ainda que simbolicamente, as paredes

espaço físico. Para muitos teatros do passado,

Essa crítica começa a ser mostrada a partir

do espaço físico do teatro[9]. Os quase 122 anos

era possível escrever e representar os tipos de

do cenário da escola, espaço no qual as crianças

que nos separam daquelas apresentações não

ação mais abertos. Gradualmente, no entanto,

estão “abertas”, por assim dizer, às más influên-

impedem que percorramos esses mesmos es-

paredes foram sendo construídas ao redor da

cias (denotando um certo moralismo aos olhos

paços. Suas diferenças, as transformações pelas

ação e da cena como um todo. Uma arte aber-

de hoje, mas interessante como argumento cêni-

quais a cidade passou, os rastros deixados pelo

ta e móvel tornou-se relativamente estática e

co para o desenrolar das ações que dependerão,

enquadrada, e uma 'arte do teatro' bem distin-

em grande parte, da manipulação exercida sobre

ta se desenvolveu assumidamente dentro des-

os estudantes) do sucessor do professor Boa-Fé.

ses limites. Houve uma ruptura entre escrita e

Ao apresentar o novo mestre aos alunos, Boa-Fé

ação, a qual foi se tornando mais evidente nas

relata suas impressões, suas decepções e seus

sucessivas fases da cultura teatral.

preconceitos, juntamente com uma preocupa-

A urbanidade de João Simões Lopes Neto

ção sincera e genuína para com seus alunos.

que são apresentados

A toda essa discussão que compõe o Prólogo, o

em sua peça de estreia e que estão estreita-

sucessor possui uma atitude ora distanciada, ora

mente relacionados com as contradições de

entusiasmada com as possibilidades que vislum-

seu tempo – das quais não estava imune, con-

bra para atingir suas ambições pessoais. O nome

forme uma leitura de sua biografia pode de-

desse professor, que dá o título da peça, merece

monstrar. A comédia nos possibilita perceber

toda a nossa atenção: “– Borromeo Almanak de

uma ampliação do choque entre duas reali-

Boato – um seu criado.” É pela sua própria fala

dades distintas. O efeito irônico[11] é constan-

que somos apresentados a ele. A composição

temente reiterado, provocando a comicidade

do nome emprega o termo Almanaque, que era

com base em uma crítica mordaz, visto que

uma espécie de Enciclopédia Popular[13], uma

não fica “somente na crítica à administração

publicação que apresentava uma miscelânea de

pública da cidade. Estende-se ao anedotário da

conteúdos (desde informativos até de entreteni-

sociedade local, com seus casamentos de con-

mento) e que podemos ainda encontrar na con-

destaca os conflitos

Fonte das Nereidas – final do século 19

Acervo Bibliotheca Riograndense (Reprodução digital gentilmente cedida pela Prof.ª Dr.ª Arq.ª e Urb.ª Aline Montagna da Silveira para o volume 3 do Almanaque do Bicentenário de Pelotas, p. 235).

Foto da atual Fonte das Nereidas, chafariz da Praça Coronel Pedro Osório – 2015 Foto: João Ourique

Primeira torre do primitivo Mercado Público Central de Pelotas, em alvenaria Foto da atual torre do Mercado Público de Pelotas – 2015 Foto: João Ourique

[10]


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

57

14. LOPES NETO, João Simões; MENDES, Gomes. O Boato. Pelotas: Echenique & Irmão, 1894. p. 19. 15. LOPES NETO, João Simões; MENDES, Gomes. O Boato. Pelotas: Echenique & Irmão, 1894. p. 18. 17. BOSI, Alfredo. A figura e a ação do tempo. In: _____. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 62.

mentos distorcidos, como podemos perceber na

teratura brasileira. João Simões Lopes Neto é

transcrição dos artigos 1º e 2º, que o professor

mais – aqui, no sentido de amplitude – do que

Boato apresenta como seu programa de estudos:

o regionalismo que o consagrou. É possível dis-

“art. 1º só se estuda quando se quiser, mas tem-se

cutirmos os argumentos de Walter Benjamin

de metter o bedelho em tudo que é obrigatoria a

sobre o papel da imprensa e sua relação com o

frequencia da aula, por causa do meu exemplo,

intelectual no clássico texto O autor como pro-

que é salutaríssimo... (…) Art. 2º: de hoje em dian-

dutor com a produção simoneana: “O próprio

te quem contar um conto hade acrescentar-lhe

mundo do trabalho toma a palavra. A capacida-

uma mão ou as duas, ou todas as quatro, no cazo

de de descrever esse mundo passa a fazer parte

do ouvinte engulir bem as araras.”[15]

das qualificações exigidas para a execução do

A crítica à sociedade pelotense da época

trabalho”[16]. A reflexão de Benjamin sobre a im-

fica mais visível a partir da leitura da distribui-

prensa e o papel do intelectual como produtor

ção dos quadros, os quais apresentam espaços

da cultura não encontraria melhor exemplo do

temporaneidade publicações que atualizaram a

conhecidos da cidade. Destacamos o Redondo

que em Simões Lopes. Não apenas pelo fato de

proposta original (como é o caso do conhecido

da Praça e o interior do Mercado para transi-

o escritor gaúcho ter se utilizado do jornal para

Almanaque Abril). Borrar, então, esse almana-

tarmos nos mesmos espaços em tempos dife-

veicular suas obras e opiniões, mas também por

que de boatos seria corromper um conhecimen-

rentes, o de Pelotas por volta de 1900 e no ano

entender o papel que esse diálogo oportuniza

to básico daquela sociedade, evidenciando os

de 2015, conforme as imagens acima.

com a formação cultural, entrelaçada cada vez

desvios de caráter do protagonista da comédia.

E é com base nessa perspectiva de leitu-

mais com as questões cotidianas do seu tempo

Os jovens, após as orientações do novo mes-

ra que podemos empreender uma discussão

e também do nosso, pois “o que se esvaiu no

tre, tratam o mundo como sua presa, cantando

relevante para questionar aspectos consolida-

tempo do relógio persiste nas marés da memó-

em coro com o professor: “Quem falar agora /

dos acerca da produção de João Simões Lopes

ria e do desejo. Quem vive o presente e se volta

admirando o facto: / E’ d’estylo novo / A escola

Neto. Reconhecê-lo somente como regiona-

para olhar o passado sabe, por íntima experiên-

do Boato ! // Boato – A’ unha o mundo ! (gestos)

lista não pode se constituir, após a leitura dos

cia, que o futuro existe, precisamente porque o

/ Todos – A’ unha ! a’ unha ! (idem)” . O que an-

seus textos dramáticos, como o único viés para

seu presente é o futuro do passado”[17].

tecede essa cantiga é um desenrolar de ensina-

compreender sua inserção no contexto da li-

[14]

O Biênio Simoniano no Sesc/RS Serão dois anos de programação intensa pelo Rio Grande do Sul em homenagem aos 150 anos do nascimento de Simões Lopes Neto, em 2015, e 100 anos da sua morte, em 2016. Ao longo do chamado Biênio Simoniano, o Sesc/RS promoverá e apoiará diversas atividades referentes à obra do escritor. Além de realizar 45 feiras de livros em parceria com prefeituras, universidades e outros parceiros locais, a instituição promoverá feiras de livros em 10 municípios: Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires, Bagé, São Leopoldo, Ijuí, Bento Gonçalves, Taquara, Parobé, Estância Velha e Gravataí. A proposta é traba-

lhar nessas feiras a mostra didática João Simões Lopes Neto – O escritor da alma gaúcha, debates, oficinas e contação de histórias. A mostra didática, independentemente das feiras, está em circulação pelo Estado desde 2012 nas unidades do Sesc, nos centros culturais e nas escolas. Para os anos de 2015 e 2016, está prevista a passagem da mostra, em formato de banners, nas cidades de Venâncio Aires, Santana do Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel, Cacequi, Montenegro, Ijuí, São Leopoldo, Uruguaiana, Carazinho, Soledade e Alegrete. As 16 bibliotecas fixas do Sesc/RS terão como temática, no mês de

setembro, em 2015 e em 2016, a obra do escritor pelotense. Além do destaque para suas obras nas bibliotecas, serão promovidas ações como rodas de leitura, contação de histórias, debates com estudantes e grupos Sesc Maturidade Ativa. Bagé, Cachoeirinha, Canoas, Carazinho, Caxias do Sul, Chuí, Erechim, Frederico Westphalen, Gravataí, Lajeado, Passo Fundo, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento, Taquara e Uruguaiana são os municípios que contam com bibliotecas fixas. No caminhão Recrearte, que circulará por 28 cidades das regiões

de Carazinho, Erechim, Passo Fundo, Frederico Westphalen, Santa Rosa, Santa Maria e Lajeado, será exibido o filme Contos gauchescos, de Henrique de Freitas Lima. Já o projeto Sesc Mais Leitura prevê para 2016 a abordagem da temática em 15 cidades – Bagé, Cachoeirinha, Canoas, Carazinho, Caxias do Sul, Erechim, Frederico Westphalen, Gravataí, Lajeado, Passo Fundo, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento, Taquara e Uruguaiana – contemplando 30 mil estudantes da rede pública.


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

POR Rodrigo Rosp

58

Escritor e editor pós-graduado em estudos linguísticos do texto pela UFRGS, mestrando em escrita criativa na PUCRS. Lançou os livros de contos A virgem que não conhecia Picasso (2007), Fora do lugar (2009) e Fingidores (2013). É um dos organizadores da coletânea Por que ler os contemporâneos? (2014)

Literatura contemporânea linguagem, contexto e estética Durante o ano de 2014 percorri o interior do Rio

O primeiro é a linguagem. Quando falo em

ção a uma obra de arte não se dá apenas pelas

Grande do Sul dando palestras para jovens, a

linguagem, não me refiro apenas ao vocabulário:

emoções, pelo que se sente — se dá também

maioria do ensino médio. Na ocasião, eu lia tre-

vale, sim, para o léxico, mas também para a sintaxe,

pela forma. Admirar intelectualmente um livro

chos de livros de autores contemporâneos gaú-

a construção da frase, o ritmo. A linguagem é a

é uma maneira de sentir prazer ao contato com

chos, todos desconhecidos do público escolar.

roupa da literatura, e uma literatura contemporâ-

ele. Assim, a literatura contemporânea é rica em

Os alunos mostraram entusiasmo genuíno pelos

nea se aproxima mais do que as pessoas vestem

inovações; como sinal do tempo, é muitas vezes

textos, mas o mesmo não acontecia com suas lei-

nas ruas. Nesse sentido, a fala de 50, 100 ou 200

fragmentada, não linear, rompe as fronteiras não

turas obrigatórias de sala de aula.

anos atrás apresenta variações enormes em rela-

só entre os gêneros, mas entre os limites da pró-

Passei o ano refletindo bastante sobre isso.

ção aos padrões atuais. E o mesmo vale para o rit-

pria literatura (com uso de imagens, variações de

A minha explicação para o fenômeno é relativa-

mo: um texto de hoje tem a velocidade dos nossos

formato, releituras e reinvenções). Para os leitores

mente simples: a literatura contemporânea con-

tempos. Tudo isso são vantagens na comunicação

mais experientes (ou mesmo para os menos, mas

seguiu se comunicar com o público formado por

com os leitores.

com capacidade de virem a sê-lo), toda essa ener-

jovens, ao contrário do que costuma acontecer

O segundo é o contexto. A literatura que está

com os textos mais antigos. A questão reside não

sendo escrita no século 21 está falando das ques-

só em falar a mesma língua, mas também em li-

tões do século 21. Se por um lado o ser humano

Para mim, tudo isso indica um caminho de

dar com o ritmo, a forma, os temas, os dramas do

tem, na essência, os mesmos dilemas de Édipo e

crescente interesse no que está sendo produzido

mundo contemporâneo.

de Hamlet, as mudanças sociais são muitas atra-

pelos escritores do nosso tempo. E há diversas

gia e explosão de técnica pode ser um motivo a mais para a fruição.

Nesse sentido, a grande adesão dos jovens a

vés dos tempos. É evidente que a literatura que

oportunidades para esses autores: a quantidade

coleções inteiras como Harry Potter, Crepúsculo

sobreviveu através dos séculos até os dias de hoje

de feiras, festas, ciclos, debates e todo tipo de

e Game of Thrones indica que, talvez, o proble-

tem a característica de lidar com aspectos huma-

evento literário tem proporcionado ao autor de

ma não seja ler, mas o que ler. Eis que aí se abre

nos atemporais. A prosa atual, no entanto, aborda

hoje uma exposição (tanto na mídia como ao vivo,

espaço para a literatura contemporânea, não só

também o contexto de hoje, uma sociedade talvez

muitas vezes) que, somada aos fatores do texto

a dos best-sellers, amplamente difundida, mas,

idêntica no âmago, mas com características muito

em si, deve contribuir para o maior alcance e cir-

sobretudo, a dos novos autores gaúchos, brasilei-

diferentes no modo de viver. Além disso, há, na li-

culação de obras de grande valor literário.

ros, uma literatura que se caracteriza tanto pela

teratura de hoje, a chance de explorar o contexto

inovação quanto pela grande qualidade técnica.

enquanto cenário. É interessante ler uma ficção

O exemplo dos jovens serve apenas para

que se passe na minha cidade, nas ruas que eu co-

ilustrar uma questão que pode e deve valer para

nheço (ou em cidades que eu já visitei, com pontos

boa parte dos leitores. O que faz com que a lite-

que eu possa reconhecer). Isso aumenta a empatia

ratura contemporânea se comunique mais efeti-

e permite que o leitor se ambiente melhor.

vamente com o leitor atual? Penso que a resposta envolva três aspectos.

Para completar, existe a estética. É um ponto também interessante, uma vez que a admira-


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

POR Gustavo Czekster

59

advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor. Em 2011, lançou o livro O Homem Despedaçado pela editora Dublinense

Três mortes para Maria Teresa Ao atravessar a avenida, Maria Teresa olhou so-

rá a minha mão, chorando, e todas as pessoas do

Teresa foi chamada. Sua mãe parecia resplan-

mente para um lado, e o que era para ser esque-

reino estarão tristes, e quando eu morrer choverá

decer na chegada da morte. Eulália encarou-a

cimento tornou-se seu último erro. A motocicle-

bem fininho, aquelas chuvas que deixam a gente

longamente e, com olhos arregalados, vaticinou:

ta dirigida por Otávio Luz de Souza, trinta anos,

agoniado sem saber porquê.” Amâncio estourou

“Morrerás em chamas, ardendo no fogo dos teus

atingiu-a em cheio. O ferro contorceu-se em um

em soluços, inclinou-se sobre a menina e jurou,

pecados. Morrerás sozinha, pior do que um ca-

baque, enquanto a mulher de saia xadrez e cabelos

“jamais deixarei que morra”, beijando levemente a

chorro sem dono. Sentirás muita dor e nunca en-

desalinhados voava, atravessando a avenida como

sua testa. Era ainda com a recordação dos lábios

trarás no Reino dos Céus, pois cometeste o pior

um anjo perdido, bailarina desastrada no meio

suados de Amâncio que Maria Teresa foi atingida

crime, decepcionar aquela que te deu vida.” Logo

das luzes. O tempo parou, o mundo imobilizou-

no meio do seu voo de passarinho pelo ônibus

após dizer estas palavras, emendou um Hosana às

-se e Maria Teresa, liberta da dor atroz do braço

prefixo 356, dirigido por Antônio Tavares, trinta

Alturas e morreu rindo, cercada por anjos invisí-

quebrado, do sangue que surgia debaixo do suéter

e dois anos, que trafegava em sentido contrário.

veis e pelo dedo-duro do Menino Jesus de Praga.

e da pontada súbita no seu lado direito, sonhou.

Os pneus do ônibus guincharam, abafando o grito

Ainda lembrando o sorriso tétrico de Eulália ao

Quando era pequena, correndo pelos campos do

seco de Maria Teresa, jogada para o outro lado da

prever a sua morte, o tempo voltou a correr com

pai, apaixonou-se em segredo pelo capataz da

avenida. O tempo parou, o mundo imobilizou-se

pressa e Maria Teresa foi atingida por um Monza

estância. Negro, careca, com a barba sempre por

de novo, e Maria Teresa, liberta da dor que subia

dirigido por Icléia Fagundes, dezenove anos, sen-

fazer, Amâncio era o único que escutava seus so-

em ondas do joelho esmigalhado, da cabeça que

do arremessada na direção da calçada, deixando

nhos de menina. Durante dias infinitos, enquanto

parecia solta sobre os ombros e do rugido da sua

atrás de si um rastro de sangue e veículos para-

ele cuidava do rebanho, Maria Teresa imaginava

coluna vertebral sendo realinhada à força dentro

dos. Tentou respirar fundo e doeu, tentou erguer-

um local onde seria princesa, em que as vidas de

do corpo, transportou-se para outro sonho. To-

-se e seus braços não obedeciam, tentou sorrir e

muitas pessoas dependeriam das suas palavras. Em

dos os dias, sua mãe, Eulália, ajoelhava-se sobre o

sangue escorregou dos lábios finos. Pés estavam

uma tarde de calor, sentado na margem do açude,

milho no canto do quarto e rezava. O choro con-

lhe cercando, gritos e sirenes brincavam no pesa-

Amâncio rompeu o silêncio: “E a sua morte, como

fundia-se com os seus agradecimentos, enquanto

delo. Mexeu o pescoço, sentindo-o estalar, e per-

será?”. Em dez anos de vida, ela nunca pensara em

implorava para Deus que transformasse sua filha

cebeu um gato branco, distante alguns metros.

morrer. Mas improvisou: “Morrerei deitada em

em santa. Às vezes ela arrastava Maria Teresa e

O olho felino lhe contou outra morte, revelando

uma cama, bem velhinha, e um príncipe segura-

mostrava o seu rosto para o Menino Jesus de Pra-

uma boneca arrebentada, pernas e braços con-

ga, forçando-o a lembrar do semblante da filha

torcidos em ângulos estranhos, o cabelo desgre-

no momento de distribuição das graças divinas.

nhado repleto de sangue. Maria Teresa deixou a

Na escuridão cúmplice do quarto, a menina pedia

cabeça tombar na calçada e morreu em silêncio

para não virar santa, doía tanto ajoelhar sobre o

até o último segundo, quando o estertorar do seu

milho! Os dias passavam e ela permanecia huma-

peito fez o gato afastar-se correndo, entrando

na, até que, uma manhã, Eulália ficou na cama e

nas sombras de um beco.

o médico disse que ela não iria sobreviver. Maria


literatura

primeiro SEMESTRE

2015

POR Gustavo Czekster

60

advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor. Em 2011, lançou o livro O Homem Despedaçado pela editora Dublinense

Cristais Ela sabe. Essa é a única explicação. Há meia hora

permite pausas que me façam iniciar o assunto, e

tento dizer que o nosso casamento acabou e Dé-

eu a odeio em silêncio por estar me convencendo

bora não para de falar besteiras, o dia em que seu

a desistir. Invento uma tosse, pigarreio, e então

gato se esborrachou na janela da cozinha, a falta

ela começa a discursar sobre as gripes que nos

de tempero na comida do restaurante e outras

afligem no meio das estações e de como estão re-

histórias que não me interesso em saber mas sou

lacionadas com a falta de vitaminas. Outro vidro

obrigado a ouvir. Deve ter pressentido as palavras

se parte em algum lugar distante e esforço-me

esboçadas que espreitam dentro da minha boca.

para não ceder à curiosidade e saber quem foi o

Ela tenta adiar o momento, cansar a minha paci-

desastrado da hora. Encaro Débora com firmeza e

ência, fingir uma última janta tranquila antes da

rezo a Deus para que cale a sua boca só por um

separação e suas confusões. O restaurante é mo-

minuto. Os olhos azuis revelam que ela já sabe

desto e pouco frequentado, ideal para uma con-

o que desejo. Está com tanto medo da realida-

versa a sós. Atrás de Débora, o vidro trincado com

de que as suas histórias se descontrolam, e não

vistas para a rua revela as pessoas correndo na

pensa mais no que diz, assim como eu não estou

chuva que inicia. A minha quase ex-mulher está

dando atenção. Escuto o trincar de cristais e per-

estragando o meu plano, já olhei o relógio três

cebo que alguém acabou de pisar nos cacos que

vezes e ela não percebeu, desejo um segundo de

estavam no chão. Um segundo de tensão percorre

silêncio para pôr fim aos treze anos de casamen-

o restaurante, antecedendo o violento estilhaçar

to, seria pedir demais? Permaneço estático, giran-

de copos, vidros e pratos que irrompe da cozinha.

do no dedo o anel de que logo me libertarei, e

Escuto risadas e murmúrios. Mantenho a concen-

sinto como se fosse um tigre que espera a distra-

tração em Débora, não posso me distrair agora.

ção da vítima para arrancar a sua cabeça em uma

A rachadura no vidro parece se ampliar e envol-

patada. Débora fala sem parar, e consigo cheirar

ver minha mulher, cortando-a em duas metades.

o desespero por trás dessa verborragia. O suspiro

Os pingos na vidraça desvanecem a imagem que

escapa, vamos logo, deixe-me dar o golpe de mi-

outro eu tanto gostou no passado, hoje transfor-

sericórdia nesse casamento que nunca deveria ter

mada em sombra de água escorrida. Estou cansa-

acontecido. Um gesto repentino e o copo que es-

do de ouvir esta voz que me irrita e envergonha

tava na sua frente cai da mesa, despedaçando-se.

e, por um momento, penso em desistir, como fiz

Mesmo assim, ela não desiste de falar, pedindo

em várias oportunidades nos últimos seis meses,

desculpas, enquanto as pessoas nos olham com

deixar para outra ocasião, e este pensamento é

curiosidade irritante. O garçom corre para juntar

o impulso para que a frase se precipite como a

os cacos e, por alguns segundos, eu me distraio

pedra deixa o estilingue:

vendo a rapidez com que ele retira o que um dia

– Cale a boca.

foi copo, deve ser vergonhoso para um garçom

Despedaça-se o último cristal da noite em lágri-

admitir que cristais têm vida limitada, basta uma

mas azuis.

batida e só resta a memória do vidro. Débora não


LEITURA

primeiro SEMESTRE

2015

61

Morte em Veneza Thomas Mann

Almanaque do Lupi Marcello Campos

A Tela Global Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

O prazer do poema: uma antologia pessoal

Nova Fronteira

Editora da Cidade/Letra & Vida

Editora Sulina

Ferreira Gullar Edições de Janeiro

Publicado pela primeira vez em 1912.

Desde o ano passado, comemora-se

A grama do vizinho nunca esteve

O século 20 na cidade de Veneza. A

o centenário de Lupicínio Rodrigues

tão verde. Nem a nossa, diga-se de

Poetas são, na maioria das vezes, os

história do escritor de meia-idade

e, merecidamente, as festividades

passagem. Um ângulo bem escolhido

maiores credenciados a organizar

Von Aschenbach, que se apaixona

e homenagens seguem por esse

aqui, um bom filtro de Instagram ali,

antologias de poesia. Grandes poetas

platonicamente pelo jovem Tadzio,

ano. Tive e tenho a sorte de estar

e estamos todos dentro de uma cena

brasileiros já organizaram belas

a representação do ideal de beleza

entre alguns desses tributos. Ano

de cinema. Foi o que chamei esses dias

antologias de poesia: Manuel Bandeira

física, da beleza eterna da juventude.

passado, no Teatro Bruno Kiefer,

de “cinematografia do quotidiano”,

e Walmir Ayala são dois exemplos de

Aschenbach se vê desarmado e a paixão

junto com Nelson Coelho de Castro,

enquanto postava a foto de um gato

antologistas da mais alta categoria.

se sobrepõe à razão. Ele então passa a

apresentamos Pérola no Veludo

branco sentado cenicamente em uma

Agora, acaba de ser publicada uma

perseguir o jovem na sua incontrolável

– Especialmente LUPI, com nossa

motocicleta preta, como se fosse o

joia rara, reunindo, entre grandes

e arrebatadora paixão, mas sem jamais

visão/versão das canções clássicas e

James Jean dos felinos. Foi também

autores nacionais e estrangeiros, os

tocá-lo. Ao que tudo indica, o autor

algumas que ficaram ali tímidas nos

o que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy

mais de 150 poemas prediletos do

se inspirou em um jovem polonês que

playlists da época Lupiciniana.

chamaram de Tela Global.

poeta Ferreira Gullar. O livro “nasceu

conheceu em Veneza, quando ali se

Nesse recém-lançado livro

O livro é um delicioso passeio pela

de uma descoberta, a descoberta

hospedou, no hotel Lido, o mesmo do

Almanaque do Lupi, o jornalista

história do audiovisual com foco

de uma coisa que eu já sabia: que o

seu personagem. O livro, um clássico

Marcello Campos tenta se

especial na tela e suas diferentes

poema pode deslumbrar as pessoas”,

moderno, trata de um diálogo sobre

aproximar da verdadeira história

significações sociais através dos tempos.

comenta Gullar. O poeta maranhense

a passagem do tempo, sobre a ideia

por trás de alguns mitos que

Da era moderna, quando a tela traz

começou a guardar e construir, ao

da beleza, da decadência inevitável de

recheiam suas canções. Como, por

as “estrelas”, em um céu distante de

longo de toda a vida, esta preciosa

nossos corpos, e o desejo de reter a

exemplo, de que forma conseguiu

estúdios de cinema, à pós-modernidade,

antologia pessoal – poemas de, entre

juventude e a impossibilidade ridícula

sucesso nacional. Entre declarações

na qual o “tudo-tela” e a “tela nômade”

outros, Rimbaud, Artaud, Pessoa,

disso. Este livro me mostrou, ainda,

vagas e teses malucas, foi criando

nos levam para dentro do filme

Rilke, Homero, Bandeira, Camões,

como o domínio da paixão sobre a razão

um folclore em torno de si. Já está

particular de cada um, os autores

que o deslumbraram e continuarão

tende a nos deixar como idiotas, tal

na minha cabeceira. Leitura certa.

nos convidam a uma viagem entre o

deslumbrando leitores. Seu único

qual o personagem Aschenbach. Este

superlativo e o comparativo das imagens

propósito – cumprido à perfeição –

que busca de forma narcísica o ideal de

e ao questionamento da influência das

é oferecer o poema como puro prazer

beleza que gostaria para si mesmo.

telas sobre nós. Aproveitem.

de leitura e encantamento.

Bibiana Xausa Bosak

Fernando Ramos

Adriana Franciosi

Monica Tomasi

Jornalista e fotógrafa

Cantora e compositora

Film maker

Produtor e curador da FestiPoa Literária



DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA


A temporada do maior circuito de artes cĂŞnicas do PaĂ­s.


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