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PRIMEIRO SEMESTRE
2015 ISSN 1984-056X
UMA DÉCADA DE Festival Palco Giratório PoA Também nesta edição
Caderno de Teatro: Os processos criativos do Grupo Galpão Literatura: O Biênio Simoniano
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
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08
35
artes cênicas
caderno de teatro
música
08 Festival Palco Giratório Porto Alegre, que
24 Grupo Galpão, de Minas Gerais: Um diálogo
35 Marcio Petracco, músico do Conjunto
completa 10 anos em maio de 2015, faz parte
entre o popular e o erudito, a tradição e a
Bluegrass Porto-alegrense, relaciona
de um projeto nacional que envolve a maior
contemporaneidade, o teatro de rua e de
o movimento da música de rua com o
curadoria da América Latina
palco, o universal e o regional brasileiro
crowdfunding
18 Cia. Gira Dança participa do Festival Palco Giratório com Proibido elefantes, espetáculo que explora o olhar como via de acesso,
36 Festival Kino Beat, em agosto, transformará Porto Alegre em território de experimentos em áudio e visual
entrada e saída de significados 22 Artigo do pesquisador francês Jean-Michel Guy reflete sobre a evolução do circo no século 21
O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
DIRETORIA
UNIDADES Sesc NO RIO GRANDE DO SUL
Luiz Carlos Bohn
Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. Marcílio Dias Longaray, 01 51 3671.6492 Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3522.1033 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur Milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento www.sesc-rs.com.br
Gerente de Cultura
coordenação DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura
Anderson Mueller Música e Cinema
Jane Schöninger
Artes Cênicas e Artes Visuais
Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099 Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871 55 3352.6225 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Campestre POA Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
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46
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CINEMA
ARTES VISUAIS
literatura
38 Artigo de Marco Aurélio Lopes Fialho analisa
46 Exposição Canteiro de obras, de
54 João Luis Pereira Ourique analisa as obras
o expressionismo no cinema alemão a partir
Claudio Tozzi, com curadoria de Fábio
menos conhecidas do pelotense João
da Mostra Sombras que assombram, em
Magalhães e circulação pelo Sesc/RS
Simões Lopes Neto, desde O Boato, de 1894,
circulação por diversos municípios do Rio
prevista para o segundo semestre, faz
inserindo o autor de Contos gauchescos
Grande do Sul pelo projeto Cine Sesc
um paralelo entre os acontecimentos
no cenário urbano e rompendo com a
marcantes da década de 1960 até os
denominação única de escritor regionalista
anos 2000 e a obra do artista 58 Rodrigo Rosp faz uma reflexão sobre a literatura contemporânea a partir da linguagem, do contexto e da estética 59 Contos de Gustavo Czeskter 61 Leitura
BALCÕES Sesc/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal Av. General Osório, 1030 51 3682-3041 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de Moura Jardim, 1250 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Av. Afonso Pena, 414 Sala 104 54 3358.3089 Nova Prata Av. Cônego Peres, 612 Sala 107B 54 3242.3302 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí R. Baltazar Brum, 617 3º andar 55 3423.5403 Santiago R. Pinheiro Machado, 2232 55 3251.5528 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três Passos Rua Dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
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Andréa Costa (andrea@pubblicato.com.br) Diretora de Criação e Atendimento
Vitor Mesquita
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Diretor Editorial e de Criação Projeto Gráfico e Edição de Arte
PRIMEIRO SEMESTRE
2015 ISSN 1984-056X
UMA DÉCADA DE Festival Palco Giratório PoA
Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem
Greice Zenker
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.500 exemplares
Também nesta edição
Caderno de Teatro: Os processos criativos do Grupo Galpão Literatura: O Biênio Simoniano
CAPA
Espetáculo O jardim, da Cia. Hiato (SP) Foto: divulgação
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Claudio Tozzi, Astronautas (1969) Serigrafia sobre papel 22,5 x 40,5 cm
10 anos de muita cultura Vivemos uma década de muita prosperidade na cultura. Neste ciclo, o que vimos foi uma efervescência de boas ideias, de boas vibrações e de sucessos construídos com muita seriedade e profissionalismo. Estamos falando dos 10 anos do Festival Palco Giratório, um evento que se consagrou na Capital e movimenta o Rio Grande do Sul, trazendo leituras multifacetadas do que é fazer e viver da arte no Brasil. Mas além do Festival Palco Giratório, que acontece em maio, olhar para estes 10 anos nos faz perceber que muito se fez também no Interior por meio do programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Muitas circulações de espetáculos, centenas de sessões de cinema, musicais, exposições de nomes consagrados e também de artistas iniciantes de todas as idades e estilos. Esta edição da Revista Arte Sesc nos permite recordar muitos destes momentos em que a cultura foi a protagonista de nossas ações de estímulo ao bem-estar dos gaúchos. Não se pode, nem se deve categorizar demais a arte, mas esta análise é válida e revigora para os próximos anos o entendimento de que o correto é seguir por este caminho de valorização da cultura, como uma das melhores formas de contribuir para o desenvolvimento da nossa sociedade. O que vem aí neste 10º Festival Palco Giratório com certeza vai nos emocionar e nos desafiará novamente a olhar o mundo de uma forma mais empática, mais suave. Nas páginas que se seguem, além do texto sobre o espetáculo Proibido elefantes, uma das atrações de maio em Porto Alegre, encontraremos relatos sobre o Santa Maria Sesc Circo, um artigo do francês Jean-Michel Guy e temas como música de rua, cinema e literatura. Esta, com foco especial nas homenagens a Simões Lopes Neto, cujo centenário de morte será lembrado em 2016. Um outro ícone da cultura brasileira, a quem devemos nossa homenagem é Bárbara Heliodora. Falecida em abril último, a mais importante crítica teatral do País nos deu o privilégio de tê-la no Rio Grande do Sul, em 2008, durante a programação do Festival Palco Giratório. Celebremos, então, tudo o que vivemos nestes 10 anos! Boa leitura!
Luiz Carlos Bohn
Luiz Tadeu Piva
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Diretor Regional Sesc/RS
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ARTES CÊNICAS
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Uma década de Festival Palco Giratório em Porto Alegre De 8 a 31 de maio, evento do Sesc promove o “pouso” de 42 coletivos de todos os cantos do Brasil com espetáculos dos mais diversos gêneros das artes cênicas
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A história do Festival Palco Giratório, que
O festival reúne todos os trabalhos selecio-
mação sistemática e o intercâmbio com outros
completa 10 anos em Porto Alegre no mês de
nados durante o ano para circuitos para uma dis-
artistas, seja no festival seja nas atividades rea-
maio, inicia oito anos antes, quando foi criado o
cussão sobre o que está sendo produzido em artes
lizadas durante o ano inteiro, entendendo a frui-
Circuito Palco Giratório, projeto do Sesc que tem
cênicas no Brasil, possibilitando este olhar pela
ção de espetáculo como formação, assim como
uma curadoria formada por profissionais da área
comunidade, pela cidade. “São momentos em que
as atividades mais formais, entre elas as oficinas
da cultura dos departamentos regionais de todo o
as companhias pousam nestes locais onde acon-
e os bate-papos. “A curadoria acaba tendo este
País junto com representantes do Departamento
tecem os festivais, ao todo 11 no País, e depois se-
compromisso, que é até de desapego, de não es-
Nacional. Anualmente, são selecionados 20 cole-
guem circulando. No Rio Grande do Sul, iniciamos
tarmos enraizados em nosso estado. Nosso desejo
tivos que circulam por todo o Brasil, das capitais
em 2005. Antes, já existiam os circuitos no interior,
é o que menos conta. O compromisso é compor
às cidades mais remotas, as quais raramente têm
porém, com menos cidades, não tanta força. Esta
uma programação, identificar possibilidades lo-
oportunidade de receber espetáculos de outros
força veio com a discussão gerada no festival, que
cais ou regionais que possam circular pelo Brasil
estados e com tamanha qualidade.
também promove o intercâmbio entre os artistas”,
e travar uma discussão ímpar em qualquer lugar.”
explica a coordenadora de Artes Cênicas e Artes Visuais do Sesc/RS, Jane Schöninger. Pelo circuito, as companhias saem do interior para a capital, outras saem da capital para o interior. Não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o País.
Curadoria Atualmente, a curadoria do projeto Palco Giratório é considerada a maior da América Latina, no sentido de estabilidade. “O Sesc possibilitou que construíssemos uma curadoria autônoma, formada por um grupo de pessoas que têm legitimidade dentro da instituição para definir, desde questões administrativas do projeto, pensando no Brasil, e, principalmente, o que programar”, destaca. O olhar é sempre muito embasado para
Cinco companhias participam do 10º Festival Palco Giratório com seus repertórios
novas propostas, coletivos que tenham a possibi-
Na página da esquerda, no sentido horário:
lidade de apresentar trabalhos que sejam inova-
O jardim (Cia. Hiato)
dores na sua região, mas comum a outros locais.
Foto: Divulgação
Leva-se em conta o espaço por questões geográ-
As três irmãs (Cia. Traço)
ficas e de acesso. “No Norte do País – exemplifica a coordenadora –, o acesso a espetáculos, às novas produções, por questões geográficas e econômicas, é muito difícil. Mesmo assim, temos o compromisso de redobrar o olhar sobre a produção que existe, por entendermos que é importante pos-
Foto: Andréa Rêgo Barros
Ficção (Cia. Hiato) Foto: Otávio Dantas
Dente de leão (Teatro Espanca!) Foto: Divulgação
Na página da direita, no sentido horário: Playlist (Movasse) Foto: Guto Muniz
sibilitar que grupos daquele local circulem por
Nowhereland (Movasse)
outras regiões, a fim de mostrar o seu trabalho,
Foto: Guto Muniz
para formar uma rede.” A curadoria sente-se res-
Estardalhaço (Cia. Traço)
ponsável pelo desenvolvimento local dos grupos selecionados. Desta forma, promove uma progra-
Foto: André Jonsson
Congresso Internacional do Medo (Teatro Espanca!) Foto: Divulgação
ARTES CÊNICAS
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Curadoria prioriza trabalhos continuados de grupos que desenvolvem uma pesquisa de linguagem
Mais do que o resultado estético dos espetá-
contempla um gênero, gera uma discussão entre
culos, a curadoria considera também o resultado
os curadores: O que está havendo? Não está se
Na página da esquerda:
ético do grupo, no sentido de identificar, entender
produzindo? Não estamos instigando localmente?
a ação do projeto como formação – até mesmo a
Não estamos fazendo circular? Já aconteceu com
Foto: Claudio Etges
formação do público como cidadão – e de fomen-
a dança. Em 2014, foi o teatro de formas anima-
Eugenio Barba no 7º Palco Giratório
to à discussão de política pública de artes cênicas
das, que chega a esta edição do festival com três
no País. “Estamos gerando mercado, possibilitan-
espetáculos, para diferentes públicos. O coletivo já
do redes, incentivando novas propostas artísticas.
identificou, conforme Jane, a defasagem do circo
Este intercâmbio é o mais significativo para o Sesc,
tradicional e está garimpando as companhias em
questões que ficam nos locais, e que destes vão
todo o Brasil. “É um trabalho artesanal, de irmos
Foto: Claudio Etges
para outros.” Ao falar em ética, Jane salienta o
atrás, temos a obrigação de estarmos nos teatros,
Demonstração de trabalho de Julia Varley
olhar muito cuidadoso para o histórico do grupo,
de Norte a Sul. É uma rede viva, uma roda, um ca-
que tipo de pesquisa estão desenvolvendo, se há
leidoscópio, de olhar tudo por diversos ângulos,
um trabalho de continuidade. “O que realmente
diversas formas, todo o tempo.”
Atividade de formação com o Odin Teatret
Foto: Claudio Etges
Na página da direita, no sentido horário: O patrão cordial (Cia. do Latão) Foto: Sérgio de Carvalho
Cortejo Abre-alas (Lume Teatro)
Foto: Claudio Etges
Demonstração de trabalho Antropologia teatral com Odin Teatret Foto: Claudio Etges
importa na discussão é a formação de plateia, a reflexão, a crítica, além de todas as questões mais visíveis, que é este próprio intercâmbio de ideias
Os convidados
entre os artistas”, justifica.
O projeto nacional do Festival Palco Giratório in-
Outro aspecto muito importante do proje-
centiva a ampliação da programação localmente,
to é a acessibilidade para os gêneros. Por exem-
por meio de espetáculos convidados. No caso do
plo, se, em algum momento, a programação não
festival de Porto Alegre, esta ação foi potenciali-
ARTES CÊNICAS
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ARTES CÊNICAS
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zada e, na 10ª edição, são 22 os espetáculos con-
por trás, no que o espetáculo pode reverberar e
vidados, de diversos lugares. Os critérios locais são
construir de diálogo, em especial, para a plateia,
os mesmos da curadoria nacional e se baseiam na
este espectador interessado nos espetáculos
Diversidade geográfica
troca de informações entre a rede. “Sempre com
que não estão na grande mídia”, justifica. Sobre
O Palco Giratório surgiu da necessidade de am-
um olhar mais cuidadoso e sensível para trabalhos
a diversidade de gêneros, para Jane, às vezes, as
pliar o foco para além da produção oriunda do
de grupo, isto, para nós, é uma prioridade. O que
pessoas têm o interesse de ir ao teatro para ver
eixo Rio-São Paulo. Predominantemente, eram
precisamos discutir são trabalhos de repertório,
comédia, mas há outras possibilidades no teatro.
dos dois estados – em especial das capitais – os
trabalhos que os grupos vêm desenvolvendo em
“Esta questão do público, da recepção, é extrema-
espetáculos que circulavam. O projeto surgiu
determinado tempo, uma ação contínua sobre de-
mente importante, por isto há riscos na progra-
para possibilitar este movimento de outros ar-
terminada linguagem, ou que não seja a mesma
mação e sabemos que podem causar incômodo,
tistas irem ao encontro a outras plateias e fazer
linguagem específica, mas que se veja um movi-
e esse incômodo fará você se movimentar, de
também com que os do Rio e São Paulo circulas-
mento de um coletivo em prol de um resultado
alguma forma.”
sem para diferentes localidades a fim de conhe-
seja positivo seja negativo. Isso se torna mais im-
Apesar de todas as questões, o resultado do
cerem outras realidades das artes cênicas, mas
espetáculo como um todo também é avaliado.
não como colonizadores. O mesmo olhar existe
“Mas não temos a pretensão, nem a curadoria na-
para o Rio Grande do Sul. “Fico acompanhando
Riscos calculados
cional, muito menos a local, de trazer as melho-
quem está produzindo, também sendo sensível
res produções, até porque sempre depende de um
para cada realidade. Sensibilidade é o que preci-
Jane admite que há riscos na programação – es-
ponto de vista, de um repertório de vivência que
samos ter. Sabemos como é difícil, até na capital,
petáculos que algumas pessoas vão gostar, outras
cada um tem. O que é melhor pra mim pode não
esta manutenção, estar estabelecido como gru-
não – e que é proposital. “Sei onde estão e isso
ser para o outro, então por isto a seleção é emba-
po de teatro e viver de teatro. Temos um olhar
acontece porque não estou com este olhar especí-
sada em outros critérios que transcendem o ‘estes
sensível para quem continua pesquisando, bus-
fico na questão da estética, mas, sim, no que está
são os melhores’.”
cando alternativas para seu trabalho, seja por
portante do que o resultado estético final em si.”
ARTES CÊNICAS
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Gestão cultural, programação cultural e curadoria são funções similares, porém distintas Espetáculo Till (2010) Foto: Claudio Etges
meio de oficinas, ou trocas feitas pontualmente com grupos de fora da cidade.” Desde o início do projeto, pensando sobre
Residências artísticas
Cortiços (Cia. Luna Lunera) Foto: Gustavo Jacome
Aqueles dois (Luna Lunera)
Foto: Claudio Etges
a diversidade geográfica, há a valorização de
Uma característica do Festival Palco Giratório são
grupos do interior, com objetivo de levá-los à
as residências artísticas, nas quais grupos pousam
capital para fazer este diálogo, para apresentar
com seus repertórios para fortalecer o intercâm-
seus trabalhos. Na programação do 10º Festival,
bio, a troca de processos e até mesmo transformar
tem o espetáculo Avental sujo de ovo, do Gru-
a plateia de fato em espectadores. Ao longo de 10
po Ninho de Teatro, do Cariri, interior do Ceará.
anos, já participaram do festival de Porto Alegre
O espetáculo 1, 2, 3 echá!, de Odelta Simonetti
com seus repertórios, entre outros, o Odin Teatret,
àquele resultado. Gera discussões, comparativas,
e Ana Fucks, é da Serra gaúcha, e o grupo Teatro
da Dinamarca; a Cia. do Latão, o Grupo XIX de Tea-
de processos que foram sendo aperfeiçoados, ou
Vagamundo, de Santa Maria, apresenta Banana
tro, a La Minima e Os Satyros, de São Paulo; Lume,
o caminho que mudou, e não apenas sobre o fazer
com canela, Cabaré Lange Ri e o documentá-
de Campinas; Grupo Galpão e Cia. Luna Lunera, de
teatral. Jane afirma que, muitas vezes, o público, o
rio cênico Nas margens do riso – quilombos de
Minas Gerais; do Rio de Janeiro: Amok e Cia. Etc. &
espectador comum, quer saber questões bem me-
alegria e luta. Em 2014, teve um espetáculo do
Tal, além de Cacá Carvalho e também os gaúchos
nos complexas sobre o trabalho. “E isto para nós é
interior do Piauí. “Queremos dizer que existem
da Cia. Rústica e Cia. Stravaganza. Na 10ª edição,
importante também, possibilita de alguma forma
possibilidades nestes locais e colocamos em
estarão com seus repertórios a Cia. Hiato, de São
uma troca com este público não acostumado a
discussão para os outros coletivos que estão
Paulo; Espanca! e Movasse, de Minas; Cia. Traço,
espetáculos de pesquisa, e os repertórios são uma
nas capitais. É preciso ter esta troca, conhecer o
de Santa Catarina; e Teatro Vagamundo.
forma de materializar toda essa preocupação da
trabalho do outro, e o interior precisa ser mos-
A apresentação do repertório é o que pos-
trado, seja pensando em Rio Grande do Sul seja
sibilita ao público perceber mais claramente a
em Brasil.”
questão ética e a trajetória percorrida até chegar
Cacá Carvalho em umnenhumcemmil Foto: Lenise Pinheiro
Ladeira da memória ou labirinto da cidade (Teatro Ventoforte) Foto: Divulgação
curadoria de pensar em trabalhos de grupos que tenham uma continuidade.”
ARTES CÊNICAS
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depoimentos
EM 10 anos: 355 espetáculos 745 sessões
Uma tontura de regionalidade O que mais me toca no Festival Palco Giratório de Porto Alegre é a curadoria local. Existe uma relação minha com o Sesc/RS muito particular, porque a coordenação de cultura percebeu em mim um interesse que é maior, que eu não somente me interesso em participar de um projeto dessa natureza, mas que, ao participar, me interesso também em manter contato com as pessoas que produzem as suas realidades de teatro nas suas realidades de cidade. Nesse sentido, eu saio lucrando muito e minha experiência humana e artística resulta grande. Saio mais rico, porque tenho um aprendizado maior, tenho esta mania de roubar o ponto de vista das pessoas e deixar que elas roubem o meu. Mantenho um tipo de encontro com pessoas de todos os lugares que, hoje, fazem parte não só da minha agenda telefônica, mas da minha agenda de amizade. Paralelo a isso, existe esta palavra “giratória” que, pra mim, é muito significativa. Todo o giro provoca vento e todo vento faz bem, altera o
andamento, a percepção de mundo que você tem. Porque gira o seu eixo, gira sua visão, gira o seu trabalho, gira nas cidades. Não é que você passa nas cidades, você realmente gira. E isso faz muito bem, dá uma tontura de regionalidade, no sentido de tontura mesmo, tontura boa, porque te tira do teu centro. E te faz perceber realidades culturais que não seriam percebidas em outro contexto. Nenhum outro projeto desta natureza te oferece a possibilidade de não só te apresentar, mas perceber realidades de público, de produção de trabalho e perceber a dimensão do trabalho do Sesc como entidade. Parece que o festival de Porto Alegre é diferente, porque existe uma curadoria do lugar, que junta outros espetáculos, que faz circular, dá uma dinâmica diferente, não faz somente o que foi decidido nacionalmente. Tem uma pessoalidade, junta encontros, palestras e oficinas e vira uma festa. É uma grande festa, uma celebração ao teatro que é feito. Cacá Carvalho, Ator e diretor
Caminho de mão dupla Maio é sempre o mês da celebração das artes cênicas em Porto Alegre. Porque há 10 anos o Sesc/RS compartilha com artistas e espectadores gaúchos a grande festa que é o Palco Giratório. Espetáculos de todos os tamanhos e formatos, gêneros e estilos diversos, circulam pela cidade em uma programação da mais alta qualidade, com intenso foco no teatro de grupo, de pesquisa, de invenção. Teatro adulto, infantil, de rua, performances, intervenções urbanas e atividades formativas percorrem as cidades gaúchas e criam possibilidades para a reinvenção do nosso fazer artístico ao trazer até nós o teatro que se faz em diversos cantos de nosso enorme País. E as produções locais circulam pelo Brasil, num caminho de mão dupla, que incentiva e divulga o melhor teatro gaúcho. Adriane Mottola Atriz e diretora teatral (Cia. Stravaganza)
Ferramenta de formação de plateias O Festival Palco Giratório é um dos principais fomentadores das artes cênicas no Brasil e apresenta uma política voltada à descentralização. A essência do projeto lembra os primeiros festivais criados pelo diplomata e crítico teatral Carlos Magno Paschoal (19061976), voltados para o teatro de estudantes. Os festivais nacionais de teatro de estudantes surgiram, no final da década de 1950, com o objetivo de aproximar regiões e para que fosse possível trocar experiências com artistas de outros estados. Passando por diferentes cidades, o festival chegou a Porto Alegre, em 1962. Me parece que é o que o Sesc vem fazendo com o teatro profissional, atravessando fronteiras e entendendo que o teatro é feito de presença, não é uma arte da reprodutibilidade. Portanto, é preciso a presença física do espectador para que o fenômeno teatral aconteça. Por isso, é tão importante que existam
es
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Hygiene (Grupo XIX de Teatro) Foto: Regina Acatu
Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo (Grupo XIX de Teatro) Foto: Adalberto Lima
Kavka – agarrado num traço a lápis (Lume Teatro) Foto: Adalberto Lima
Carlos Simioni, na demonstração de Prisão para Liberdade Foto: Claudio Etges
251 grupos participantes 302 atividades formativas + 50 espaços da cidade festivais de artes cênicas como esse, que levam os espetáculos de diferentes regiões e características ao espectador, proporcionando intercâmbio cultural e artístico e sendo uma ferramenta de formação e renovação de plateias. Michele Rolim Jornalista MOSTRA COMPETENTE É com ansiedade e muita expectativa que, todos os anos, aguardo o mês de realização do Festival Palco Giratório POA, garantia de uma mostra competente do teatro brasileiro. Um verdadeiro prazer essa “correria” para tentar acompanhar esse grande Festival. O público e a classe artística agradecem! Liane Venturella Atriz e diretora
Iniciativa criativa e poderosa Tive o prazer e orgulho de participar algumas vezes do Festival Palco Giratório em Porto Alegre e por duas vezes do Palco Giratório Nacional. Não há nada mais prazeroso do que compartilhar o resultado, o seu produto cultural e com o apoio total de uma instituição como o Sesc, apresentar-se na própria cidade e viajar pelo País mostrando o trabalho feito, trocando experiências com outros grupos, desbravando as possibilidades de intercâmbios e passando um pouco do seu conhecimento por meio de oficinas de formação ou informação. E é evidente que tudo isso faz a gente sentir orgulho de ter, neste País, uma iniciativa tão poderosa, criativa e competente como a do Sesc, este grande servidor social e multiplicador cultural que faz com que a arte, de um modo geral, sobreviva e seja valorizada e mostrada em todos os cantos do Brasil, onde houver alguém interessado em beber conhecimento e entretenimento.
São tantas experiências e histórias adquiridas, por nós artistas, dentro desse projeto maravilhoso, vários momentos emocionantes e humanos que vivenciei ao longo desse processo. A importância, também, dos debates com o público ao final de cada espetáculo e também a análise crítica do que foi apresentado. Discussões pertinentes e necessárias que contribuem para a nossa evolução como criadores. O teatro precisa e muito dessa grande iniciativa e que a vida seja longa! E que os 10 anos se multipliquem em muitos outros 10! Nelson Diniz Ator e diretor
circulação, reflexão Como artista, reconheço o papel fundamental que o Sesc desenvolve junto às realizações artísticas no Brasil, promovendo a circulação e a reflexão de obras, o que auxilia na manutenção do trabalho de muitos profissionais. A cada ano, percebo que o Festival se aproxima cada vez mais do público, dos artistas e das produções, trazendo o afeto e o respeito nas relações estabelecidas. Um exemplo bem explícito para mim foi a 9ª edição, realizada em forma de residência artística, na qual os grupos permaneciam cinco, seis, sete dias na cidade, apresentando seus repertórios e podiam, de fato, trocar com os demais artistas que estavam na cidade, e com os artistas locais. A ideia de “festival” se dá de forma pura, na qual a celebração e a comunhão são o foco do acontecimento. São louváveis ações como esta que, mesmo amparadas pela formalidade institucional, trazem respiros humanitários e afetuosos ao trabalho. Vida longa ao Palco Giratório! Thiago Pirajira Ator e produtor
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
POR Antonio Hohlfeldt
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Jornalista, mantém coluna semanal de crítica no Jornal do Comércio, de Porto Alegre
Palco Giratório: diálogo, formação de plateia, identidade nacional Tenho dito que Porto Alegre, desde o lançamento
cia, antecipar o impacto profundamente emocio-
espetáculo já teria valido a pena. Mas é evidente
do Palco Giratório do SESC, passou a ter dois gran-
nal que provocou na plateia.
que o Palco tem trazido muito mais coisas, e um
des festivais de artes cênicas em sua agenda anual,
Lembro bem: como procuro sempre fazer,
de seus aspectos mais importantes é o conjunto
felizmente, um em cada semestre do ano, o que
estava na primeira fila, junto ao palco. Ao longo
de cursos e oficinas, a possibilidade de encontros
otimiza as oportunidades para que se possa acom-
da encenação, que avançava até o público, que
que permite entre os diferentes grupos teatrais.
panhar com proveito a ambas as programações.
variava constantemente sua estética e sua ma-
Neste Brasilzão de meu deus, tão imenso quan-
No segundo semestre, é o tradicional Porto Alegre
neira de revelar-se, a plateia não sabia bem o
to desconhecido, só iniciativas deste tipo levam
em cena. No primeiro semestre, é o Palco Giratório.
que fazer. Também ao final, quando a história de
a gente a conhecer o outro lado do nosso País,
Cada um tem seu estilo e suas característi-
Gabriela se conclui (se conclui?), houve, primeiro,
nossa produção cultural nem sempre valorizada e
cas. No caso do Palco Giratório, a ênfase é sobre
um silêncio entre constrangido e estupefato e,
reconhecida, mas que é altamente qualificada e,
os espetáculos nacionais e, neste sentido, valoriza
depois, o aplauso, que arrancou de uma hora para
mais, genuinamente nacional.
o regional: podemos assistir a espetáculos oriun-
a outra, e não parou. A gente chorava, aplaudia,
Como espectador, como profissional que,
dos de todo o País, enquanto o interior pode co-
ria, tinha vontade de berrar (não era só gritar, era
há décadas, acompanho o movimento teatral
nhecer trabalhos produzidos na capital, etc.
berrar), de certo modo queria sair da poltrona e
no Brasil e no Rio Grande do Sul, só posso tor-
correr ao palco e abraçar os atores/personagens.
cer para que tal iniciativa se mantenha. E agra-
O conjunto de trabalhos apresentados tem sido variável, o que garante tornar-se um re-
Raras vezes tive um impacto tão forte ao
decer àquele anônimo que, um dia, teve esta tão
trato e um reflexo daquilo que se faz no teatro
assistir a um espetáculo. Baskerville foi de uma
extraordinária ideia e iniciativa. Certamente, ela
brasileiro, fora do chamado teatrão das grandes
inspiração inesquecível; de uma coragem admi-
está ajudando/ajudará à formação de plateias e
companhias e dos grandes dinossauros da televi-
rável; de uma eficiência, junto com seu grupo,
a uma consciência mais forte do que somos, de
são. Esta variedade tem sido provocativa e pro-
definitiva. Poucos meses depois, em São Paulo,
nossas contradições, sim, mas também de nossas
dutiva, na medida em que incentiva outros gru-
encontrei, numa banca de revistas da Avenida
identidades.
pos a também traçarem seus próprios caminhos.
Paulista, uma edição mais ou menos anônima da
É evidente que, como amostra e seleção varia-
peça e, mais valioso, com fotografias e alguns do-
da, teremos altos e baixos, melhores e nem tão
cumentos relativos à montagem original. Quando
bons espetáculos assim. Mas isso não é uma fa-
o espetáculo foi novamente programado pelo
lha dos responsáveis pelo Palco e, sim, talvez sua
Palco Giratório, no ano seguinte, lá estava eu, na
melhor qualidade: dá uma dimensão real do que
primeira fila, e minha relação com o espetáculo
fazemos. O melhor exemplo que posso citar foi
foi tão intensa – eu diria mais, porque já conhecia
a apresentação de Luis Antonio – Gabriela, origi-
o texto e podia prestar melhor atenção em pe-
nal de Nelson Baskerville, dirigido por ele mesmo.
quenos detalhes e sentir melhor suas nuanças –
O trabalho da Cia. Mugunzá de Teatro, de São
quanto da primeira vez.
Paulo, chegou de certo modo precedido de algu-
Se mais nada o Palco Giratório do Sesc ti-
ma fama, mas ninguém poderia, de sã consciên-
vesse possibilitado aos amantes do teatro, só este
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
POR Patricia Fagundes
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Encenadora, pesquisadora e docente do Departamento de Arte Dramática e do PPGAC da UFRGS. Fundadora da Cia. Rústica
discutir, gerar, provocar o fazer teatral. Em 2013, a parceria com o DAD viabilizou um evento que considero marcante na vida cênica da cidade: a
Sobre o Palco Giratório: tempo de conexões
oficina com o coletivo La Postra Nostra e Guillermo Gomez-Peña, finalizada com o espetáculo Os bárbaros: an extreme fashion show. A atividade integrava o festival e o 14º Simpósio da International Brecht Society, realizado em parceria com a UFRGS/PPGAC/DAD, com o tema O espectador criativo: colisão e diálogo. Uma associação entre várias instituições, pessoas, perspectivas; ou seja, um projeto complexo e desafiante, com muitas colisões e diálogos, que criaram experiências po-
Três festivais marcam o calendário das artes
Uma intenção pedagógica, que se manifesta na
cênicas de Porto Alegre: o Palco Giratório, o Fes-
distribuição de ingressos a cursos de teatro
tival de Teatro de Rua e o Porto Alegre em Cena.
e grupos da cidade, na oferta de oficinas, na
Por outro lado, celebro minha experiência
Fazer teatro na cidade, hoje, supõe, inevitavelmen-
organização de debates, no desejo de propor
como artista participante do festival, com espe-
contribuições para a cena da cidade.
táculos incluídos na programação de diferentes
te, uma relação com seus festivais. Relações são
tentes que continuam ressoando em nós.
necessárias para todo organismo, nada que respira
A busca de conceitos norteadores que dialoguem
edições. Em 2014, tivemos a bonita oportunidade
sobrevive em isolamento – vivemos de trocas com
com o contexto da cena contemporânea, como
de realizar uma residência artística que incluiu
o meio, com o outro, com o mundo. O teatro, esse
no caso das residências artísticas de 2014.
todo o repertorio da Cia. Rústica: o baile de seis montagens (Clube do Fracasso, Natalício Cava-
fenômeno que sempre depende de coletivos e de presenças compartilhadas, se compõe a partir de
Considerando tais aspectos, gostaria de res-
lo, O fantástico circo-teatro de um homem só,
conexões possíveis. Como se estabelecem as ne-
gatar momentos em que minha trajetória artís-
Cidade proibida, Miragem, Desvios em trânsito),
cessárias conexões entre o fazer teatral e os festi-
tica/profissional se cruza com as redes tramadas
com debates após algumas apresentações, além
vais de Porto Alegre?
pelo festival, definindo movimentos de intercâm-
de uma oficina que incorporou novos participan-
bio, diálogos e associações possíveis.
tes na experiência de Desvios em trânsito. No
Como não poderia deixar de ser, a rede de relações provocada por cada festival é diferente. Esse
Por um lado, ressalto a importância de even-
momento em que a companhia celebrava 10 anos
texto concentra-se sobre o Palco Giratório, que exis-
tos nascidos a partir de uma troca com o De-
de existência, o festival foi um parceiro de cele-
te há 10 anos e foi se transformando nesse período,
partamento de Arte Dramática da UFRGS, onde
bração. Uma festa cênica, um festival.
crescendo, amadurecendo, afirmando-se como um
atuo como professora e pesquisadora. O DAD é
Para finalizar, ressalto ainda minha partici-
espaço-tempo vital no movimento artístico da cida-
um espaço fundamental na história da cena gaú-
pação como espectadora, uma atividade que tam-
de. Destaco alguns aspectos que me parecem espe-
cha, tanto por seu papel objetivo na formação
bém compõe o fazer teatral (vale sempre lembrar
cialmente relevantes no perfil do festival:
de artistas e docentes como por sua dimensão
que não existe teatro sem espectador, portanto,
O mapeamento da cena contemporânea brasileira,
afetiva, experimental, relacional, propulsora de
ser espectador implica participar da prática cêni-
em suas diferentes vertentes e possibilidades.
desejos, projetos e sonhos. Acredito que o movi-
ca). Assisti várias montagens importantes, tendo
Esse mapa contempla tanto grupos e artistas
mento de conexão do Palco Giratório com o DAD
acesso a convites para alunos e colegas de com-
com uma trajetória consolidada, reconhecen-
evidencia um campo de pensamento que projeta
panhia, oportunizando reflexões compartilhadas.
do as histórias, memórias e referências que
o festival para além de uma mostra pontual de
Longa vida ao Palco Giratório, que con-
compõem nosso presente; como novas pro-
espetáculos. Em 2012, o festival incorporou uma
tinue colaborando na vida artística da cidade,
postas, arriscando-se em apostar no que está
programação especial do Circuito Universitário,
fomentando conexões, desenvolvendo parce-
surgindo, nascendo, compondo experiências.
oferecendo apresentações de montagens de-
rias, fortalecendo sua perspectiva pedagógica,
Um dado importante é que o recorte da cena
senvolvidas por alunos em atividades do curso.
reinventando-se sempre e buscando seu espaço
brasileira inclui a cena gaúcha, que integra a
Além das apresentações, realizamos o seminário
como tempo de reflexão, relações, diálogos, ris-
programação do festival em pé de igualdade
Cena contemporânea e universidade/conexões.
cos, ideias, trocas e desejos de voos.
com produções de outros estados.
Ou seja, uma invenção de espaços para pensar,
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
18
A companhia Gira Dança, de Natal, é uma das participantes do Circuito Nacional do Palco Giratório 2015 e estará em Porto Alegre no mês de maio, no 10º Festival Palco Giratório, com o espetáculo Proibido elefantes. Com 10 anos de existência e mais de 20 prêmios no currículo, entre eles o Rumos Itaú Cultural, o Prêmio Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura, Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança, e outros de melhor companhia de dança do Rio Grande do Norte, a Gira Dança vem se destacando no cenário brasileiro – também já se apresentou em Portugal e na Alemanha – pela qualidade, singularidade e sensibilidade de seus espetáculos.
Por que não dançar? Espetáculo Proibido elefantes, da companhia Gira Dança, explora o olhar como via de acesso, entrada e saída de significados
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
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Cada corpo é como uma impressão digital, pontos característicos e de formações que permitem a um
Uma companhia, duas histórias
perito identificar uma pessoa de
Os fundadores da Gira Dança, Anderson Leão e
forma bastante confiável. Nesse
Roberto Morais, narram suas trajetórias de vida e
caso, nós somos esse perito, somos
como bailarinos até a fundação da companhia, no
responsáveis por perceber essas
final de 2004.
características e potencializar esses corpos diferenciados em
POR Anderson Leão
POR Roberto Morais
diretor artístico
diretor administrativo
outro e comunicar, por meio
Em 1997, ingressei na Universidade Federal do
Eu, Roberto Morais, nascido em 1967, no bairro do
da dança, nossos pensamentos,
Rio Grande do Norte (UFRN) para cursar Artes
Alecrim, em Natal, tive a infância marcada por uma
ideias, opiniões e sentimentos,
com habilitação em Desenho. A dança estava
série de fatores que seriam definitivos para o rumo
cujo resultado reflete nas
presente não só no curso, entre as disciplinas,
da minha vida. Aos 19 anos, sofri um tiro por estar
singularidades em cena e seu
mas no início de uma longa jornada em mi-
negligenciando a minha própria natureza e des-
diferencial técnico.
nha vida, quando recebi o convite do professor
cumprindo o caminho normal da minha trajetória.
Edson Claro para participar de um projeto de
Fiquei paraplégico e, com isso, cinco anos preso em
extensão chamado Cia. de Dança dos Meninos.
casa, crendo que a consequência desse tiro não era
cena. Partimos deste princípio para entender o corpo do
Durante minha trajetória nesta companhia e, em paralelo, as aulas da universidade com
Espetáculo Proibido elefantes está na programção do 10º Festival Palco Giratório Fotos: Brunno Martins
apenas a perda dos movimentos das pernas, mas da minha própria possibilidade de vida.
Edson Claro, passei a conhecer a Roda Viva Cia.
Seis anos depois do incidente, já com um grau
de Dança com direção de Henrique Amoedo, ou-
de aceitação melhor, no meio de uma sessão de
tro projeto de extensão da UFRN que trazia em
fisioterapia, fui convidado para jogar basquete em
seu corpo de bailarinos pessoas com e sem defi-
cadeira de rodas. Fiquei logo motivado com essa
ciência. Ao assistir a coreografia Companheiros
chance de sair de casa com outra atividade. A mo-
de estrada, de Ivonice Satie, fiquei fascinado não
tivação foi tanta que também voltei a estudar e, no
só pelo trabalho apresentado, mas principal-
final de 1994, participando de um torneio de bas-
mente pela competência artística dos bailarinos
quete no Rio de Janeiro, vi na abertura dos jogos
em cena. A emoção que senti me despertou para
uma apresentação de dança em cadeira de rodas
novos rumos e, em 1999, entrei para o elenco
e isso me despertou a curiosidade de saber mais
da Roda Viva. Foram os melhores seis anos de
sobre. Por que não dançar?
aprendizado e dedicação à dança, com coreó-
Em outra oportunidade, recebi do Grupo de
grafos de renome nacional e internacional, entre
Dança Anjori o convite pra fazer parte do elenco.
eles Ivonice Satie, Mário Nascimento, Henrique
Logo aceitei e daí se deu a minha primeira expe-
Rodovalho, Carlos Cortizo e Edson Claro.
riência com dança em cadeira de rodas. Depois de
Depois de muitas histórias, produções, es-
um tempo dançando no Anjori, que seguia uma
petáculos, viagens e emoções, eu e o bailarino
linha mais folclórica, senti necessidade de dar
Roberto Morais resolvemos levantar novos voos,
voos mais altos, conhecer outros modos de lidar
criando a Companhia Gira Dança.
com essa arte; veio a mudança para o Roda Viva
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
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Cia. de Dança, com um estilo mais voltado para o conhecimento, e a pesquisa de movimentos me impulsionou a buscar cada vez mais as possibilidades do meu corpo. Lá, tive a oportunidade de conhecer e trabalhar com coreógrafos de renome nacional e internacional. E também surgiram pessoas muito importantes na minha história artística, entre elas o Anderson Leão, que, com o tempo e a convivência, selaria uma parceria que dura até hoje. No final de 2004, sob o desejo de sair da companhia, inspirei-me a fundar a minha própria companhia de dança. Foi então que, juntamente com Anderson Leão, surgiu a Gira Dança. Tivemos a nossa estreia em maio de 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, com o espetáculo Envolto. Desde então, passamos por diversos processos de crescimento na arte que executamos. Muitas situações trouxeram muita satisfação, mas também muita responsabilidade. Atualmente, não atuo mais como bailarino, por problemas de ordem médica, mas ainda sou bem atuante na direção, vejo o quanto foi proveitoso aquele começo e quantos frutos colhi da minha ousadia de querer evoluir. Vejo a Gira como uma companhia que tem muito a oferecer por sua história, por todo o processo que enfrentou para conquistar seu espaço no cenário da dança. Espero que isso não pare por aí e que, cada vez mais, as pessoas possam abraçar esse sonho e juntos possamos continuar a escrever essa linda, sacrificante e promissora história que é a Gira Dança.
Montagem coreográfica – Proibido elefantes A Companhia Gira Dança assume um papel na dança que é a pesquisa, a investigação do corpo que entrará em cena entendendo o próprio corpo. Independente de limitações físicas, são desses universos que o grupo amplia a possibilidade na arte do dançar. A ferramenta de experiências, segundo o diretor artístico Anderson Leão, é quando a oportunidade, o tempo e a verdade se encontram e
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
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essa limitação desaparece, pois a obra coreográfica
O olhar enquanto apreensão subjetiva do mundo
para entender a sua importante característica no
transcende no palco.
é, neste trabalho, apontado como elemento poten-
mapeamento da dança brasileira contemporânea.
cializador do sujeito diante do mesmo.
“A valorização de um trabalho, não de inclusão
O projeto para montagem e circulação do espetáculo Proibido elefantes foi contemplado no
Proibir elefantes é restringir o acesso, impe-
e sim de investigação do corpo para a dança, foi
edital do Governo Federal/Procultura em 2011 e,
dir o livre trânsito do animal que serve como meio
criando diálogos positivos entre os editais de in-
no ano seguinte, a companhia trouxe de Berlim o
de transporte na Índia, mas que causaria enormes
centivo à cultura, aos festivais e aos circuitos, au-
coreógrafo e professor de dança contemporânea
transtornos em outras localidades. Proibir elefan-
mentando o campo de oportunidades ao melhor
potiguar Clébio Oliveira para iniciar o trabalho de
tes, neste espetáculo, é proibir o olhar que ressal-
conhecimento da nossa arte entre outros grupos
criação. Com 15 prêmios de melhor coreógrafo na
ta as limitações, os impedimentos; que duvida da
e companhia que caminham lado a lado”, avalia.
carreira e experiência de quatro anos na Compa-
capacidade do sujeito frente à adversidade. Proibir
nhia de Dança Deborah Colker e três na Toula Li-
elefantes, aqui, é apostar no olhar do sujeito sobre
mnaios, em Berlim, que o possibilitou participar de
si e sobre o mundo em que vive como elemento
turnês e dos mais importantes festivais na Europa,
ressignificador e instaurador de realidade.
Ásia e América do Sul, Clébio Oliveira trouxe a ideia
Para Anderson Leão, a Gira Dança é a prova
para o processo de criação que teve como alicerce
de que a dança contemporânea oferece possibi-
a construção dos registros de percepções indivi-
lidades inúmeras para os corpos diferenciados.
duais de cada bailarino, gerados por estímulos da
“Mergulhamos na qualidade artística e na pro-
concepção do coreógrafo.
dução de trabalhos que proporcionem dimensões
Proibido elefantes é um trabalho voltado para
de respeito no mercado cultural do Brasil”, afirma.
a questão do olhar. Quem explica é Daniela Fusaro,
São 10 anos abrindo caminhos importantes e for-
colaboradora da companhia:
talecendo esse diferencial artístico que rompe com
O espetáculo fala do olhar como via de
as limitações de conhecimento de algumas insti-
acesso, porta de entrada e saída de significados.
tuições e potencializa os festivais e circuitos, com a
O modo como percebemos a “realidade” é resultan-
proposta de dialogar e ampliar esse universo.
te do diálogo que estabelecemos com esta: nosso
A participação da Gira Dança no Brasil Move
olhar é constituído pela realidade, assim como a
Berlim, na Alemanha, em 2011, e na representação
realidade é constituída pelo nosso olhar – a cons-
no Ano Brasil Portugal, em 2013, segundo o dire-
trução do sentido transita em via de mão dupla.
tor, foi crucial no amadurecimento da companhia
Fotos: Brunno Martins
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
POR Jean-Michel Guy
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Pesquisador no Ministério da Cultura da França, com atuação na área de sociologia das práticas culturais e dos públicos. É autor de vários artigos, livros, DVDs e de um filme sobre a temática do circo. Cofundador do coletivo La Scabreuse, é coautor e diretor de diversos espetáculos de circo. Ministra aulas de análise crítica e estética na Escola Nacional das Artes do Circo de Rosny-sous-Bois (ENACR) e também é membro do júri de Circus Next, operação europeia de apoio a novos autores de circo. Tradução: Vanise Dresch Fotos: Vanessa Silvy
A evolução do circo desde o ano 2000
Existem atualmente, no mundo, quatro gran-
de entretenimento”, geralmente grandiloquente,
A grande evolução dos anos 2000 é incontes-
des paradigmas do circo. O primeiro, o mais an-
mas que não exclui formatos modestos: ele reúne
tavelmente a instauração irreversível desse novo
tigo, é a sobrevivência, a renovação, às vezes, de
o teatro equestre, surgido na Europa no final do
paradigma na paisagem mundial do circo, embora
um conjunto disparate de práticas que poderíamos
século 18, e suas formas internacionais derivadas,
o movimento, que partiu da França, foi acolhido na
chamar de socioétnicas, “culturais” ou mesmo reli-
principalmente norte-americanas (mais recente-
Europa, mais ou menos incentivado aqui e ali em
giosas: não somente a tradição dos voladores me-
mente, africanas também), em suma, o circo “tra-
quase todos os continentes, ainda não tenha al-
xicanos, do contorcionismo mongol, da dança na
dicional” ou clássico e os espetáculos acrobáticos
cançado todos os países do planeta. É indispensá-
corda bamba na Coreia, da acrobacia equestre na
chineses. O terceiro paradigma é recente: o circo
vel entender que esse movimento é indissociavel-
Geórgia, na Mongólia, mas também a tradição do
social, pouco difundido na Europa, mas que ganha
mente político e artístico. Apenas os custos de uma
funambulismo em grande altura, renovada na prá-
espaço por toda parte. O quarto, ao qual dedicarei
escola superior circense e de uma criação circense
tica muito recente da highline. E poderíamos asso-
as próximas linhas, é o famoso “circo contempo-
digna desta denominação, ou seja, arriscada, são
ciar a esse arquipélago certos esportes acrobáticos
râneo” – também chamado atualmente de “circo
tão vultosos que é praticamente impossível conce-
(o mallakhamb indiano, o BMX – ou bicicross – ou
de criação” ou “circo de arte” – cujo nascimento
ber a existência de um circo de arte sem um firme
até mesmo a capoeira). O segundo é o “espetáculo
remonta a 1968.
compromisso do poder público. A política francesa,
ARTES CÊNICAS
primeiro SEMESTRE
2015
23
deste ponto de vista, é exemplar, tendo mudado
-se em teatros), os anos 2000 foram marcados,
completamente a situação, na França, primeiro,
no plano estético, por vários fenômenos inéditos.
e, depois, na Europa, por um reconhecimento de
A hibridação generalizada dos gêneros (teatro,
fato do circo de arte: estabelecimento de uma
música, dança, circo, vídeo etc.) levou a espetácu-
rede de espaços dedicados à criação, à difusão
los inclassificáveis, alargando os limites do circo
O festival Santa Maria Sesc Circo,
e à “cultura circense”; programação circense nos
para além das imagens convencionais acomoda-
evento realizado em parceria
menores teatros e nas mais prestigiosas institui-
das (a proeza, a fisicalidade), mas, em consequên-
com a prefeitura municipal
ções; coordenação de redes internacionais. É esse
cia, sem dúvida, surgiu um “circo puro”, que tenta
de 12 a 17 abril, promoveu a
reconhecimento institucional que explica, em
desligar-se o máximo possível das artes vizinhas
apresentação de 11 espetáculos de
última instância, as evoluções estéticas recentes,
para encontrar em si mesmo novas questões, es-
circo contemporâneo de grupos
embora a arte circense não dependa apenas dele
pecificamente circenses (por exemplo, Le Grand
nacionais e internacionais, além de
– felizmente!
C, da associação XY, ou Appris par corps, da com-
oficinas e fanfarras. As atividades
Seis dias de circo
Em outras palavras, o número de compa-
panhia Un Loup por l’Homme). Outra polariza-
ocorreram de manhã à noite em
nhias, espetáculos, escolas de entretenimento,
ção muito recente é aquela que opõe um circo
diversos pontos da cidade.
estudantes inscritos em escolas circenses esteve
radical, que leva as questões “circenses” ao seu
em constante crescimento nos últimos 14 anos.
entrincheiramento ou até os seus limites teóricos
E o número de espectadores também.
(fazer malabarismos desafiando a força da gra-
O valor central do circo de arte é a originali-
vidade ou com o vento, desconstruir o aparato
dade – uma noção filosófica juridicamente indis-
circense), a um circo familiar (nas duas acepções
sociável das noções de obra e autor. Ora: quantida-
da palavra), convivial, mas sem o peso de todas as
de + originalidade = diversidade. De fato, como o
marcas estéticas do circo tradicional. Com o re-
número de artistas não para de crescer, e cada um
conhecimento, certos artistas também obtiveram
deles cultua a originalidade, o resultado é a diversi-
recursos para criar espetáculos “grandiosos”, que
ficação muito rápida da paisagem circense. A uma
estendem a noção de aparato circense a toda a
velocidade bem maior do que as imagens que a
cenografia: a totalidade do dispositivo cênico tor-
população tem do circo – ainda muito estereotipa-
na-se um “picadeiro acrobático” (as criações de
das – sejam capazes de mudar na maior parte dos
Mathurin Bolze, da companhia MZDP, de Aurélien
países (inclusive na França). Aliás, isso explica uma
Bory, por exemplo). E, inversamente, assistiu-se
forma de “crise identitária”, resultante da distorção
ao florescimento do “pequeno” circo, improvi-
entre o que buscam os artistas, sempre uma busca
sado, modesto, nômade, às vezes nostálgico, de
apurada, e o gosto médio. Sem dúvida, no circo, a
aparência “pobre”, mas, na realidade, muito sofis-
diversidade permanece, ainda hoje, menor do que
ticado (Circo aereo, Trotolla, Sacekripa etc.). Além
aquela observada no cinema (não há equivalentes
disto, novos valores vieram definir a noção geral
circenses do filme de catástrofe, de vampiro ou da
de originalidade. Por exemplo, a “novidade” recua,
comédia de costumes). Mesmo assim, a diversifica-
em proveito da autenticidade ou da “personalida-
ção crescente das formas tem como efeito imedia-
de”. Se entendermos por “novidade estética” a in-
to o fato de que a paisagem circense se torna cada
venção de formas coletivas tão estranhas quanto
vez mais difícil de abarcar e descrever.
o butô japonês, o teatro documentário, a criação
Além da autonomização de cada uma das
de rua site specific, então, é abusivo afirmar que
artes circenses, iniciada nos anos de 1990 e con-
o circo do século 21 inventou uma nova estética.
tinuada em ritmo acelerado (a maior parte dos
Em compensação, apropriou-se de valores que já
espetáculos é, agora, monodisciplinar), e do re-
eram dominantes na dança ou nas artes plásticas,
cuo relativo da arena como espaço dominante
tais como o “desvelamento do íntimo”, e que até
de apresentação dos espetáculos (na França, pelo
então ele ignorava.
menos 80% dos espetáculos circenses realizam-
CADERNO DE TEATRO
PRIMEIRO SEMESTRE
2015
24
#14 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos,
Por Clarissa Eidelwein
depoimentos e entrevistas com artistas que, nos
Jornalista
últimos anos, participaram do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa um papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. Nas próximas páginas, a transcrição de um bate-papo com o ator Eduardo Moreira revela detalhes do processo de criação do Grupo Galpão,
Grupo GALPÃO
de Belo Horizonte, com enfoque na metodologia de trabalho, dramaturgia e direção. Já o texto do ator Arildo de Barros refere-se à relação do Galpão com o Shakespeare’s Globe Theatre, em Londres, durante apresentações de Romeu e Julieta – um dos marcos da trajetória do grupo. O coletivo, um dos mais importantes do cenário teatral brasileiro, já esteve em várias edições do Festival e, em maio, na 10ª edição, participa com o seu espetáculo mais recente, De
tempos somos – um sarau do Grupo Galpão.
Fotos: Gustavo Campos, Guto Muniz, Glenio Campregher, Magda Santiago, Nidin Sanches, Elenize Dezgeniski e Arquivo Grupo Galpão
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PRIMEIRO SEMESTRE
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primeiro SEMESTRE
2015
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Um diálogo entre o popular e o erudito, a tradição e a contemporaneidade, o teatro de rua e de palco, o universal e o regional brasileiro Uma das companhias mais importantes do cenário teatral brasileiro, o Grupo Galpão tem sua origem ligada à tradição do teatro popular de rua. Criado em 1982, o grupo desenvolve um teatro que alia rigor, pesquisa, busca de linguagem, com montagem de peças que possuem grande poder de comunicação com o público. Com sede em Belo Horizonte, talvez o mais “viajante” entre os grupos brasileiros, já circulou pelo território nacional de Norte a Sul, por cidades bem distantes dos grandes centros, e também participou de festivais em países da América Latina, América do Norte e Europa. Formado por 12 atores que trabalham com diferentes diretores convidados – alguns integrantes também já dirigiram espetáculos do grupo –, o Galpão forjou sua linguagem artística a partir desses encontros. Sem fórmulas e sem métodos definidos, a companhia sempre pautou sua prática por um teatro de grupo, que não só monta espetáculos, mas que se propõe também a uma permanente reflexão sobre a ética do ator e do teatro, inserido em um amplo universo social e cultural.
Galpão em números 22 espetáculos 18 países visitados 44 festivais internacionais + 70 festivais nacionais + 2,7 mil apresentações + 100 prêmios brasileiros + 250 cidades + 1,7 milhões de espectadores
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1. Edição a partir da fala do ator Eduardo Moreira
O impulso do risco
1
O Grupo Galpão é um grupo de atores que, em seu processo criativo, trabalha com diferentes linguagens, diferentes diretores e maneiras muito diversas de abordar o teatro. Isto dá ao grupo uma característica camaleônica de adaptação, de variação de gêneros, de dramaturgia e de estilos também
táculo, desde a preparação corporal até o traba-
que é a comunicação direta com o público. Mas
lho vocal. O processo criativo é que geralmente
mesmo dentro desta classificação existem várias
determina.
pesquisas, uma mais ligada ao circo, uma mais
O Galpão tem muito essa característica
ligada à commedia dell’arte, outra mais ligada à
camaleônica de transformação a cada nova ex-
música, que tem um peso muito grande no tra-
periência, a cada novo encontro com artistas di-
balho do grupo.
ferentes. Isto está muito presente na linguagem
Até gêneros. Espetáculo de palco faz um
do grupo e acho que tem um lado positivo no
mergulho na obra de Anton Tchekhov, depois
sentido de que, como é um grupo que tem este
uma adaptação do romance Visconde partido
tempo muito grande de convivência, é pratica-
ao meio, de Italo Calvino, ou um trabalho com o
mente uma família em que as pessoas convivem
Maurício Arruda Mendonça e o Paulo de Moraes,
há um longo tempo juntas. De certa maneira,
o Pequenos milagres, criado em cima de histó-
Ao longo destes quase 33 anos de trabalho con-
esses diversos encontros, muito heterogêneos,
rias reais que nos foram enviadas pelo público.
tínuo, o Galpão se consolidou como um grupo
permitem ao grupo se renovar, não deixam cair
No total, foram 600 histórias e nos detivemos a
de atores, sem um diretor fixo, ainda que alguns
no lugar comum, na zona de conforto, o que é
apenas quatro ao final, com um longo trabalho
espetáculos, entre eles o mais recente De tem-
imprescindível no teatro. Você está sempre bus-
de seleção: primeiro chegamos a 120, depois a
pos somos – que estará no 10º Festival Palco Gi-
cando outras possibilidades, outros riscos, ou-
40, a 12, até ficarmos com quatro. Chegamos,
ratório em Porto Alegre –, tenham sido dirigidos
tros caminhos para não se fixar em uma coisa
inclusive, a montar outras. São processos que
por integrantes do próprio grupo, no que cha-
segura, porque, em termos artísticos, o costu-
se distinguem muito uns dos outros. E isso re-
mamos de direções internas. Por ser um coletivo
me, o hábito na maneira de trabalhar é mortal.
percute no trabalho corporal, no trabalho vocal,
de atores que trabalha com diferentes diretores,
A criação artística precisa deste impulso de ris-
que varia muito. Então, existe esta gama muito
tem se entregado às mais diferentes formas de
co, de perigo, de novidade.
grande de linguagens, ainda que as pessoas que
linguagem, às mais distintas abordagens de ver e fazer teatro.
Esta busca por outros rituais é uma característica muito forte do trabalho do Galpão
Cada processo com um novo diretor, com
e perpassa todos os espetáculos, desde a dra-
um novo criador, se transforma muito e, nesse
maturgia. Por exemplo, existem textos que são
sentido, é um grupo que não tem uma linha de
criações próprias, textos que foram criados pelo
trabalho definida, única. São várias linguagens
próprio grupo, outros feitos em processo mais
que se entrelaçam nestas diferentes experiên-
colaborativo, adaptações de clássicos, adaptação
cias, e isso passa por tudo, desde o espetáculo
de romance para forma dramática. É uma gama
em si: trabalhar, por exemplo, o teatro de rua
muito grande dramaturgicamente de tentativas
ou de palco, um clássico ou a criação de uma
de trabalho. Ao mesmo tempo, se pensarmos em
dramaturgia própria. São vários elementos que
gêneros, claro, o grupo tem uma característica
se transformam muito de espetáculo para espe-
muito forte que vem do teatro popular de rua,
assistem ao Galpão percebem nesta multiplicidade uma linguagem inerente ao nosso grupo.
Tio Vânia (aos que vierem depois de nós)
Foto: Elenize Dezgeniski
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Workshop: a metodologia
tema a partir da peça O grande teatro do mundo, A partir destas apresentações, destes resul-
Não foi nada planejado sermos um grupo de ato-
O grupo trabalha muito com um processo que
tados montados, em comum acordo, optamos por
res, simplesmente aconteceu. Começamos muito
chamamos de workshop: criações de ideias cêni-
Romeu e Julieta. Em vários momentos, um diretor
impulsionados por uma ideia intuitiva de direção
cas que são feitas de uma forma muito rápida,
nos passa a tarefa “olha, não sabemos como resol-
coletiva, na qual o grupo tinha uma força muito
em um tempo muito limitado, exatamente para
ver uma determinada cena” e resolvemos a partir
grande. Mas, depois de uma experiência, em me-
deixar aflorar uma coisa quase mais instintiva, de
de um workshop. Quando trabalhamos com o texto
ados da década de 1980, em que montamos Arle-
criação artística sem muita reflexão, sem muito
do Calvino O visconde partido ao meio, com o Cacá
quim servidor de dois amos, do Goldoni, e este es-
pensamento. Os atores internamente se estrutu-
Carvalho, fizemos vários workshops levantando
petáculo teve um resultado que não consideramos
ram e, entre eles, escolhem um diretor, que con-
material para ele. Por exemplo, para encenar a Vila
muito satisfatório, repensamos. O resultado ficou
duz a montagem desta ideia cênica. É uma forma
dos Leprosos, montamos uma cena abordando este
no meio do caminho, ele caiu numa coisa meio
de elaboração artística que está presente em to-
capítulo do livro e depois apresentamos.
confusa. Nem fizemos o texto do Goldoni, com
dos os espetáculos do grupo.
do Calderón de La Barca.
Grupo de atores
No espetáculo Pequenos milagres, a gente
toda a sua beleza e sutileza, nem fizemos a adapta-
Quando fomos montar o espetáculo Romeu
viveu um processo muito interessante. O Paulo de
ção que a gente queria. A partir daí, abandonamos
e Julieta com o diretor Gabriel Villela, ele tinha
Moraes pegou uma história – Cabeça de cachorro
a ideia de direção coletiva e começamos a traba-
uma clareza que queria fazer a peça usando a
– e dividiu os atores em três grupos: cada um, sem
lhar com diretores convidados. Foi uma maneira de
Veraneio, que era nosso carro para transporte do
saber do trabalho do outro, montou a mesma his-
se organizar artisticamente e se impor pela prática.
elenco, do cenário. Ele disse: “Olha, quero fazer
tória. No dia da apresentação, vimos três versões
Viemos de uma sequência que começa lá com
um espetáculo com vocês em que o carro seja o
da mesma história e foi muito interessante, porque,
Fernando Linares, Paulinho Polika e Eid Ribeiro, que
cenário, mas eu não sei qual espetáculo vai ser”.
inclusive no texto final, elaborado pelo Mauricio e
são de Belo Horizonte. Depois passa pelo Gabriel
Então, nós montamos neste sistema de workshop
pelo Paulo, vários personagens, e também músicas,
Villela, Cacá Carvalho, Paulo José, Paulo de Moraes,
cinco cenas para ele, com cinco temas diferentes:
que não estavam na história escrita, foram para
daí tem a Yara de Novaes, o Jurij Alschitz... então
trabalhamos as Primeiras estórias, os contos do
a cena final. Esse é um processo que é inerente
são muitos parceiros, diretores que colaboraram.
Guimarães Rosa; em cima da obra Morte e Vida
à linguagem do Galpão, do ator autoral. Um ator
Acho que a linguagem do grupo é uma espécie de
Severina, do João Cabral de Melo Neto; trabalha-
que contribui para a criação dramatúrgica da cena.
amálgama de todos esses encontros com artistas
mos também com Romeu e Julieta; e um quinto
A contribuição dos atores é sempre muito grande.
que acabaram por nos influenciar muito.
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Seguindo este princípio, quanto à dramatur-
Partido
Parcerias para suprir deficiências
gia, por exemplo, escolher o Tchekhov talvez seja o contraponto de nossa linguagem mais popular,
Foto: Arquivo Grupo Galpão
Além de conhecermos e gostarmos do trabalho
o teatro de rua, que tem uma característica mais
Um homem é um homem
destes diretores, consideramos que eles têm muito
ampliada. Tchekhov é contenção absoluta, então,
a contribuir para a nossa busca de linguagem. Por
neste sentido, estamos buscando o aprimoramen-
exemplo, vínhamos de uma experiência de dois
to enquanto seres humanos e enquanto artistas.
espetáculos (Romeu e Julieta e Rua da amargura)
Para nós, não é simplesmente montar um novo
com Gabriel Villela, um diretor que tem uma assi-
espetáculo, é buscar um material de pesquisa, de
natura cênica muito forte, na linha do mettre en
linguagem que permite nos aprimorarmos como
norte pro lado da Bahia, Vale do São Francisco,
scène, do grande encenador. A gente sentiu que
seres humanos.
região nordeste de Minas, acompanhando cida-
Foto: Guto Muniz
Romeu e Julieta
Foto: Guto Muniz
des ribeirinhas, interior do Nordeste, interior da
era o momento de mergulhar numa experiência
região Sul – Rio Grande do Sul, Paraná e Santa
vem o convite ao Cacá (Partido), que possui um
Lugares possíveis
trabalho com o Antunes Filho, com a Fondazione
O galpão tem uma característica importante de
das capitais. Vamos sempre que conseguimos. Te-
Pontedera. Ele pesquisa muito a questão do ator
ser realçada em seu trabalho, que é esta ligação
mos um patrocínio importante, que nos permite
em cena. Ao mesmo tempo, com o diretor Paulo
com a comunidade. É um trabalho que, ao longo
este tipo de aventura, que é o da Petrobras. Sem
José, quando fizemos nossas duas experiências
de 32 anos, nasceu e esteve sempre na rua, bus-
isso, economicamente, seria inviável.
(O inspetor geral e Um homem é um homem) com
cando levar o teatro para um lugar onde seja pos-
O Galpão sempre buscou muito este contato
ele, nascia a urgência de trabalhar a questão da
sível, viajando muito pelo Brasil inteiro, por estes
com a comunidade, nos alimentamos desse en-
palavra no teatro. Considerávamos que éramos
interiores totalmente desvinculados dos centros
contro. Conhecer este Brasil mais profundo reflete
uma geração um pouco carente deste requinte
culturais. Viajamos por todo o País, com uma ou
muito na nossa maneira de fazer e abordar o tea-
com o trabalho de texto. Não que a gente consi-
outra exceção, entre elas, Roraima, Acre. No ano
tro. Há um encontro com este tipo de público, o
dere que não precise continuar trabalhando isso.
passado, tivemos no Vale do Tocantins, fomos de
fato de estar na rua traz uma coisa importante.
Acho que o trabalho com o Paulo veio a suprir
Palmas até Belém, passando por Araguaína, Im-
Claro que o outro lado, de ir para o palco, fazer
uma deficiência que achávamos que o trabalho
peratriz. Fomos ao Vale do Jequitinhonha, uma
um outro tipo de teatro, de abordar uma obra
do grupo tinha.
região bastante pobre do Estado de Minas, ao
como a do Tchekhov é fundamental também.
mais do ator, menos da cena como um todo. E aí
Catarina, também um pouco fora dos circuitos só
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Till, a saga de um herói torto Foto: Nidin Sanches
Partido
Foto: Guto Muniz
De tempos somos Foto: Guto Muniz
Tio Vânia (aos que vierem depois de nós) Fotos: Elenize Dezgeniski
Mau passo e aprendizado
Longevidade dos espetáculos
inquietudes, às perguntas que o grupo fazia na-
Um fracasso, talvez seja um pouco de exagero,
Normalmente, os espetáculos de rua têm uma
grande, uma maneira de abordar a rua, de forma
mas um mau passo pode ser um bom motivo, um
vida maior. Os de palco, um período de três ou
espetacular, grandiosa, com públicos de cerca de
bom gerador de aprendizado. É curioso. O pró-
quatro anos. O que acontece é que montamos
4 mil, 5 mil pessoas. Foi o advento dos microfones
prio Goldoni, o Arlequim..., é um texto da com-
um espetáculo e ele tem uma vida muito inten-
sem fio no trabalho do grupo, a palavra ganhou
media dell’arte, trabalhamos exaustivamente as
sa nos dois primeiros anos. Apresentamos umas
um status de poder. Fazer um espetáculo para um
máscaras da commedia, mas o resultado não
100 vezes, o que é bastante. A partir do terceiro
público tão grande e ser possível chegar até as pes-
nos foi satisfatório. Entretanto, esta experiência
ano, começa a cair um pouco, muitas cidades já
soas, que em alguns lugares ficam mal acomoda-
foi muito valiosa, porque provocou toda uma
foram visitadas, já fizemos muitas vezes, então a
das, conseguir ver e escutar o texto e a música, de
reflexão até sobre a questão artística, sobre a
demanda por apresentações vai diminuindo. E é
forma compreensível. É um espetáculo importante
organização do grupo. Depois, fizemos o espetá-
normal que isso aconteça. Por outro lado, tem es-
neste aspecto e representa essa virada.
culo A comédia da esposa muda, um canovaccio
petáculo que dura mais, principalmente os de rua.
Levamos o espetáculo duas vezes para a
(roteiro sobre o qual os atores improvisam) de
Por exemplo, Um Molière imaginário, que eu diri-
Inglaterra. É muito bonita esta história. Fomos a
um autor anônimo da commedia dell’arte. Foi
gi, teve 12 anos de vida, 300 vezes, viajou o Brasil
Londres, pela primeira vez em 2000, num festi-
muito bem-sucedido e muito apresentado. Nos
inteiro, viagens internacionais. Mas também che-
val sobre Minas. Apresentamo-nos em um circo
deu bastante sucesso, inclusive abriu as portas
ga um ponto que cansa. Eu adoro fazer, mas can-
montado em um parque de Battersea. Um staff
para a Europa. O espetáculo gerou a compra da
sa, acho que não queria mais fazer Romeu não.
pedagógico do Globe Theatre (que havia sido
nossa sede em BH. Então, é importante e curioso isso. As pessoas sempre querem que a gente
quele momento. O Galpão tem este lado do teatro de rua muito forte. Romeu e Julieta foi uma virada
reconstruído e inaugurado em 1997) foi assistir ao espetáculo e, três anos depois, eles entraram
estivéssemos sempre fazendo este ou espetácu-
Na terra de Shakespeare
los do mesmo estilo. Eu acho que a gente estava
Sem demagogia, acho que todos os espetáculos
vulgando a nossa cultura para perguntar sobre
artisticamente morto.
foram muito importantes, eles responderam às
aquele grupo brasileiro que fez o Romeu e Julie-
faça um novo Romeu e Julieta, mas imagina se
em contato com Paul Heritage, um inglês que morava no Brasil e que até hoje está sempre di-
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ta no Battersea. “Tu sabes se eles ainda têm o
e Julieta fosse o nosso. Éramos o único grupo de
Imediatamente, retomamos este processo dos
espetáculo, se o elenco é o mesmo?”, tentaram
língua portuguesa. Vi um grupo da Georgia, do
workshops. Os atores do grupo que tinham ideias
se informar se o espetáculo continuava de pé.
Cazaquistão, muito bonito, muita paixão.
para propor levantaram com o grupo cenas em workshops. Eu trabalhei Lisístrata, que é a comé-
E em que condições. A partir daí, nos convida-
dia do Aristófanes; a Inês Peixoto dirigiu Sonhos de
vam que tinha um olhar inovador sobre a obra
De volta à direção interna
do Shakespeare. Foi muito legal e interessante,
Com Till, a saga de um herói torto, em 2009, reto-
um texto de Luís Alberto de Abreu, que ele já co-
porque a reação dos ingleses, em princípio, era
mamos a direção interna com o Júlio Maciel. Para
nhecia e gostava muito. A gente chamou o público
de espanto pelas liberdades que a gente tomou
falar a verdade, a gente se viu numa encrenca,
e abriu as apresentações. Pedimos para as pessoas
ao abordar a obra do Shakespeare. Ao final, eles
porque íamos fazer um trabalho com o Daniele
escolherem qual projeto achavam mais interessan-
estavam muito entusiasmados com uma leitu-
Finzi Pasca, um diretor suíço que já trabalhou
te. A gente não usou a ideia apenas pela escolha do
ra tão infiel em certo sentido, mas, na verdade,
com o Cirque du Soleil, dirigiu um grupo que veio
público. Foi simpático, mas queríamos fazer o que
profundamente fiel ao espírito do Shakespea-
ao Brasil recentemente com um espetáculo sobre
fosse desejo de todos os atores. Houve uma coin-
re. Falaram em um resgate desta alma popular
o Tchekhov, que se chama Donka. É um diretor
cidência de escolhas entre o que público gostou e
do Shakespeare que estava muito esquecida na
muito conceituado hoje na Europa, faz espetá-
o que a gente queria. E montamos o Till, com dire-
Inglaterra.
ram para duas semanas num programa de verão do teatro. Éramos um grupo que eles considera-
uma noite de verão, do Shakespeare; o Chico Pelúcio fez uma releitura do Hamlet; o Júlio fez o Till,
culos grandiosos e a gente estava armando uma
ção do Júlio Maciel. É verdade que todos os proje-
Retornamos em 2012, no aniversário de 30
produção com ele, que viria dirigir o Galpão em
tos internos do Galpão são muito bem-sucedidos,
anos do Galpão. Convidaram-nos para as Olim-
um espetáculo de rua. Só que aquela crise nos
acho que temos esta linguagem popular que acaba
píadas em Londres. Eles fizeram as Olimpíadas
Estados Unidos, Lehman Brothers, aquela história
migrando para as montagens, para os espetáculos.
Culturais lá no Globe e nós topamos remontar
dos bancos que quebraram, das casas, deu uma
Um Molière imaginário, que eu dirigi; Um trem
o espetáculo. Montaram as 39 peças do Shakes-
agitação no mundo inteiro e inviabilizou o pro-
chamado desejo, que o Chico Pelúcio dirigiu; Till,
peare. Foi bonito, porque foi uma festa cultural
jeto internacional. Tudo era pago em euro, dólar,
a saga de um herói torto, do Júlio; e o De tempos
em que pegaram companhias do mundo todo,
uma coisa complicada. Ficamos numa situação de
somos, da Lydia Del Picchia e da Simone Ordones,
dos cinco continentes e quiseram que o Romeu
ter que cancelar o projeto.
trabalho mais recente que estreou em 2014.
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O legado
A vida é sonho, do Calderón de La Barca, um
De tempos somos – um sarau do Grupo Galpão,
mago, entre outros.
conto do Tchekhov da peça A carteira, do Sara-
Os clássicos Varia muito. O Luigi Pirandello – Os gigantes da
que estará no Festival Palco Giratório em Por-
O espetáculo fala desta coisa do teatro, da
montanha – foi um projeto trazido pelo Gabriel
to Alegre, é um espetáculo que faz uma viagem
passagem do tempo, de um tempo que passa,
Villela. Como diretor artístico do grupo, discuti
nas músicas, no repertório musical dos espetá-
e ao mesmo tempo reflete muito essa idade do
muito com ele outras possibilidades. A gente ha-
culos do grupo. Tem canções desde A comédia
grupo, a maior parte está nessa faixa dos 50-55
via pensado no A Vida é sonho, do Calderón de La
da esposa muda, de 1986, passando por Corra
anos. Pensando muito nesta questão da passa-
Barca, o Hamlet, mas ele tinha muito forte este
enquanto é tempo, um espetáculo que fazíamos
gem do tempo, da possibilidade do legado numa
desejo de fazer o texto do Pirandello.
com base numa família de crentes que ia pregar
arte tão efêmera como o teatro. Então este es-
Têm processos que são muito discutidos.
na rua, de Eid Ribeiro, de 1988, até Tio Vânia
petáculo traduz o momento atual do grupo, de
Acho que uma marca da dramaturgia do Galpão,
(aos que vierem depois de nós) e Eclipse, que
uma maneira muito sincera e pungente também.
sem dúvida nenhuma, é esta abordagem de tex-
estrearam em 2011. Pegamos 25 músicas de vá-
Acho que isto dá um caráter humano e emocio-
tos clássicos. Está lá atrás o Arlequim, servidor de
rios espetáculos, recontextualizadas e amarra-
nal ao trabalho, sem pieguice. É um sarau poé-
dois amos, do Goldoni, Álbum de família, do Nel-
das por textos poéticos de Baudelaire, Leminski,
tico musical.
son Rodrigues, o Romeu e Julieta, do Shakespeare, O doente imaginário, do Molière, O inspetor geral, do Gogol, Brecht... o grupo nasceu fazendo Brecht na oficina com os alemães, em 1982, e anos depois montamos o texto Um homem é um homem. Também montamos dois trabalhos envolvendo a obra do Tchekhov e Os gigantes da
Romeu e Julieta
montanha, de Pirandello. São grandes nomes do
Foto: Magda Santiago
teatro da dramaturgia universal. É muito impor-
A comédia da mulher muda
tante para o grupo enfrentar estes ícones.
Foto: Gustavo Campos
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Por Arildo de Barros
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Ator do Grupo Galpão, texto de 12 de abril de 2015
Grupo Galpão: crônica de Londres Chovia intensamente em Londres no dia 5 de julho
afirmar que os ingleses haviam convertido o seu
de 1996. Desde muito cedo, sob a lona de um circo
poeta em peça de museu, e que fora preciso apare-
úmido e frio, montado dentro do Battersea Park, a
cer ali um grupo da América Latina que resgatasse
equipe do Grupo Galpão esperava pelo público que
para eles o caráter festivo e popular do teatro de
viria ali para a estreia do nosso Romeu e Julieta.
Shakespeare e que, enfim, lhes ensinasse de novo a
Depois do surpreendente sucesso da semana ante-
encená-lo. As consequências desse encantamento
rior, no festival Theater der Welt, realizado naquele
não tardaram muito.
ano em Dresden e em outras cidades adjacentes
O New Globe Theatre foi inaugurado em
da Alemanha ex-Oriental, nossa expectativa era
1997, na mesma Southwark onde se erguia o ori-
grande. Foi, portanto, decepcionante iniciar o es-
ginal seiscentista. Entre seus novos projetos, havia
petáculo com cerca de 60 espectadores, a maioria
o Globe to Globe, que programava, para cada ve-
deles brasileiros. Ainda não sabíamos, ouvindo os
rão londrino, a apresentação de uma das peças de
primeiros acordes de Você gosta de mim, ó mani-
Shakespeare, produzida em algum país do mundo
nha?, que no meio daqueles gatos pingados se en-
e cuja montagem envolvesse elementos da cultura
contrava um grupo de diretores do Shakespeare’s
desse país. Nos primeiros anos, foram exibidas ali
Globe Theatre, a centenária companhia comanda-
três obras do bardo, provenientes da Índia, da Áfri-
da, na alvorada do século 17, pelo próprio bardo
ca do Sul e de Cuba, todas ignoradas pelo público.
de Stratford-upon-Avon. Assim que cessaram os
Esse fracasso ameaçava a sobrevivência do projeto.
aplausos finais, aqueles circunspectos senhores
E foi assim que o Grupo Galpão foi convidado a
e senhoras rodearam os atores, o diretor Gabriel
voltar a Londres, dessa vez para se apresentar no
Villela e a nossa convidada, a crítica Barbara He-
“Vaticano da fé Shakespeariana”.
liodora. Entre atônitos e comovidos, manifestaram
Em 11 de julho de 2000, estreamos Romeu e
seu encantamento pelo frescor e pela qualidade do
Julieta no Shakespeare’s Globe, sob a sombra do
que acabavam de presenciar. Um deles chegou a
pavilhão nacional do Brasil, hasteado na mais alta
CADERNO DEMÚSICA TEATRO
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torre daquela arquitetura. O começo da noite esta-
Redgrave, e de sua mãe, Rachel Kempson, que aos
e sete países do mundo e em trinta e sete línguas
va ainda claro, e, de novo, úmido e frio. O elenco
noventa anos, rememorava suas atuações na obra
diferentes. Enquanto se pesquisavam, por todo o
entrou pontualmente às 20h, pela porta da fren-
de Shakespeare: quando menina, havia encarnado
mundo, as produções recentes que atendessem às
te do teatro a céu aberto, e abriu caminho para
Julieta, mais tarde, a Sra. Capuleto, e já idosa fora
exigências do projeto, um grupo de técnicos e fun-
o palco no meio do público, executando a versão
uma respeitável Ama. Numa noite especialmente
cionários do teatro trouxe uma sugestão à equipe
instrumental de Flor, minha flor. É muito curioso
fria, as três providenciaram bons cobertores, que
curadora do evento: o “Romeu e Julieta só pode
observar, no DVD do espetáculo, a expressão ten-
as mantiveram quentinhas nas desconfortáveis
ser aquele do Brasil”. Esse voto, espontâneo e rigo-
sa e desconfiada dos espectadores ingleses, diante
poltronas de madeira de seu camarote.
rosamente democrático, foi acatado.
daquela trupe incomum, morena, maquiada como
Michael York foi mais um astro do teatro e do
O Galpão fez de novo suas malas e mais uma
palhaços e vestindo coloridíssimas roupas puídas,
cinema que se entusiasmou com nossa apresenta-
vez partiu em direção a Londres, para mais uma vez
entoando uma estranha canção de ritmo incom-
ção. Já nos camarins para saudar os atores, York,
conquistar londrinos, brasileiros que para ali con-
preensível, e depois comparar essa imagem com
que fora o Teobaldo no célebre filme de Franco
vergiram de diversos pontos da Europa, turistas
a dos mesmos espectadores ao final da apresen-
Zefirelli, entregou ao Chico Pelúcio, que ali fazia o
do mundo inteiro e todo um conclave de artistas
tação, acompanhando a saída dos atores através
mesmo papel, uma foto com a dedicatória: “De um
e críticos de teatro oriundo dos cinco continentes.
do mesmo caminho pelo qual haviam entrado. Sua
Teobaldo para outro”. E indistinto no meio da mas-
E assim se fez. Missão cumprida, voltamos para
expressão era, então, a de quem tivesse, durante
sa, só o soubemos anos mais tarde, encontrava-se
casa, para o trabalho, para o risco, para os desafios.
uma hora e meia, experimentado o elixir da felici-
também o encenador canadense Robert Lepage.
Para a vida real.
dade. Sorrisos abertos, olhos brilhantes, excitação à
Em 2003, contratado para dirigir um megaespe-
Aos quase 33 anos de existência, o Galpão co-
flor da pele. E mais: marcando com palmas o ritmo,
táculo no Cirque Du Soleil, Lepage exigiu, para
leciona um vasto repertório de lembranças, reco-
agora familiar, daquela estranha canção do sul.
protagonizar sua obra, “uma atriz brasileira que vi
lhidas em sua passagem por palcos, ruas e praças
Havia até quem tentasse cantar junto: “Flor, minha
em Londres, no papel da Ama de ‘Romeu e Julieta’,
de todo o Brasil e mais 16 países. Viagens curiosas,
flor...”. A equipe do Globe nos recebeu no palco com
fazendo o público rir e chorar ao mesmo tempo”.
lugares insuspeitados, encontros insólitos, pro-
champanhe. Estava salvo o Globe to Globe.
E lá se foi a nossa Teuda Bara brilhar por três anos
fundas emoções, afetos que permaneceram e até
em Las Vegas.
grandes aflições que o tempo cuidou de converter
A temporada, de catorze récitas, se estendeu até o dia 23 de julho, sempre recebendo a mes-
Anos depois desses eventos, um conhecido
em divertimento. Lembranças todas boas, ótimas
ma calorosa acolhida do público, em que aos lon-
meu e sua mulher, passando por Londres em via-
em sua maioria. Mas a vitoriosa conquista do san-
drinos se misturavam turistas de toda a Europa
gem de núpcias, foram conhecer o Globe Theatre,
tuário shakespeariano, considerados todos os seus
e, obviamente, do Brasil. Compareceram até um
então fora de temporada. Incógnitos em meio a
significados, ocupa, na preciosa coroa dessas me-
casal de noivos com todos os padrinhos e convi-
um grupo de turistas, foram guiados em sua visita
mórias, a posição central e única do mais esplên-
dados, para celebrar suas bodas diante do mesmo
por uma daquelas simpáticas senhorinhas que se
dido diamante.
frade que abençoava a união dos protagonistas.
dedicam como voluntárias a esse trabalho. A certa
Emoção e alegria povoavam os bastidores, onde
altura do trajeto, a guia comentou que muitas coi-
cruzávamos com técnicos e funcionários da casa,
sas espantosas já haviam ocorrido naquela casa,
igualmente eufóricos e tocados pelo espetáculo.
mas o mais extraordinário acontecimento dos últi-
Encontrávamo-nos também por ali com os elen-
mos anos fora a passagem de um grupo brasileiro,
cos que dividiam conosco todos os espaços e ca-
com uma versão absolutamente bela e original de
marins. Diariamente, às duas da tarde, ocorria no
Romeu e Julieta. E, para orgulho e comoção do jo-
mesmo palco, uma sessão, em dias alternados,
vem casal mineiro, apontou na parede o cartaz de
de Hamlet, protagonizado pelo grande ator Mark
divulgação do Grupo Galpão.
Rylance, então diretor artístico do Shakespeare’s
Corte para 2012, ano das Olimpíadas de Lon-
Globe, e A tempestade, com o Próspero na pele
dres. Mais um projeto do Globe envolve monta-
de ninguém menos que Vanessa Redgrave. Pois a
gens das obras de Shakespeare pelo mundo. Na
grande estrela se empenhou em assistir ao nosso
programação da maratona cultural pré-olímpica, a
Romeu e Julieta. E, quando lá esteve, Vanessa se
ideia era levar à casa do maior dramaturgo da his-
fez acompanhar de sua irmã, a também atriz Lynn
tória suas trinta e sete peças, montadas em trinta
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2015
Por Marcio Petracco
35
Músico, integrante do Conjunto Bluegrass Porto-alegrense Foto: Anderson Dorneles
Música de rua:
o verdadeiro crowdfunding
De maneira análoga, o nosso disco se encontra à venda não em uma grande cadeia de livrarias, mas em um tradicional sebo de livros, gerido por pessoas que a gente conhece e cujos ideais se alinham aos nossos. Não é questão de não poder estar em uma loja de shopping center. É questão
De 17 a 26 de abril, foi realizado em sete municípios da Serra gaúcha o 4º Festival Brasileiro de Música de Rua, com a participação de músicos do Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela e Peru
de não querer, mesmo. A rua nos permite o contato direto com o público e com os demais artistas que nela atuam. Eles são cada vez melhores, mais variados e mais
Música de rua não deveria causar surpresa ou es-
nosso primeiro disco, as vendagens desse disco
numerosos, a ponto de eventualmente ser difícil
panto, já que a rua foi o primeiro lugar em que a
financiaram a produção do segundo. Mas não
encontrar um lugar vago para a nossa apresenta-
música esteve. Feiras de escambo atraíam não só
pense que foi fácil. Enfrentamos todo tipo de
ção. E isso é bom, acreditem.
músicos, mas todo tipo de artista. Sendo também o
resistência e burocracia. Até hoje tem gente que
A rua é democrática de modo geral. Ainda
lugar onde se compartilhavam notícias e informa-
acha vergonhoso que estejamos na rua, dizendo
não temos regras de divisão dos espaços entre ar-
ções, eram o equivalente à nossa atual rede mun-
que deveríamos estar na televisão.
tistas, mas isso não impede que, geralmente, tudo
dial de computadores.
Ora, a grande mídia está invariavelmen-
se resolva bem.
Na nossa época – e especialmente cá, em Pin-
te mais interessada no que já é consagrado em
A rua nos faz bem. Nós fazemos bem à rua e
dorama – é que talvez tenha surgido algum tipo de
termos de vendagens. Não costuma – com raras
às pessoas que nela circulam. Isso nos dá prazer,
estranheza ou preconceito com essa que deveria
e honrosas exceções – abrir espaço pro que se
nos dá ampla divulgação, nos garante indepen-
ser a forma mais natural de divulgação da arte.
distingue do “mais do mesmo”. Pra não falar que
dência dos meios de comunicação, nos orgulha e
Sem atravessadores, empresários, mídia impressa
ela tende a dispensar o “sabor do ano passado”
ainda nos garante o café da manhã.
ou televisionada, produtores ou leis de incentivo.
sem qualquer cerimônia. Grande gravadora? Não,
Criou-se o preconceito que o artista de rua estaria
obrigado.
lá por falta de condições de estar num ambiente “mais qualificado”. Ora, pra nós não há ambiente mais qualificado que esse, se nos permitem dizê-lo. A ocupação do espaço público é fundamental para sua humanização. O mundo civilizado mostra a tendência de se recuperar para as pessoas o espaço até então reservado aos automóveis. Pelo menos é o que acontece na Europa e nos Estados Unidos, de modo geral. Vale ressaltar que nossos hermanos uruguaios e argentinos nunca deixaram de cultivar e valorizar a arte de rua. Por que motivo deveria o Sul do Brasil estar alienado dessa forma de arte tão antiga e paradoxalmente tão moderna? Faz tempo que essa ficha caiu aqui. Resolvemos fazer algo quanto a isso. Passando o chapéu ou pedindo contribuição pro “café da manhã” em nossas apresentações, reeditamos o verdadeiro crowdfunding, tão comum atualmente em sua versão digital. O público financiou a gravação do
A rua é de quem está nela. Vamos à rua?
primeiro SEMESTRE
2015
36
Festival Kino Beat: Território de experimentos em áudio e visual
MÚSICA
MÚSICA
primeiro SEMESTRE
2015
37
Kino, em grego, significa movimento e, em alemão,
consagrados, o idealizador salienta que o evento
cinema. Beat é batida, ritmo de som, em inglês.
dará oportunidade a novos e desconhecidos artis-
O Kino Beat é um festival de performances audio-
tas locais.
Credibilidade e vanguarda
visuais multimídia e música contemporânea que
O festival desmistifica o estereótipo de “mú-
“O encontro entre Kino Beat e Sesc foi um divisor
propõe a investigação do som e da imagem e suas
sica de festa” para a música eletrônica, exaltando
na história do evento. Desde 2009, a marca Kino
relações, especificidades e aspectos experimentais.
o seu caráter artístico e não meramente festivo.
Beat vinha realizando atividades pontuais em par-
Durante seis dias, de 4 a 9 de agosto de 2015,
É o que têm feito instituições consagradas como
ceria com diversas instituições, mas essa aproxi-
em Porto Alegre, o evento vai incentivar, por meio
o Museum of Modern Art (MoMA), de Nova York,
mação permitiu que o projeto se transformasse
do entretenimento e da arte, uma reflexão sobre
e o londrino Tate Modern, entre muitas outras
em um festival, estruturando sua atuação e dando
novas tendências musicais e visuais relacionadas
que abraçam eventos do gênero. Para esta edição,
corpo para a programação. Atualmente, Kino Beat
à tecnologia.
o Kino Beat propõe, no campo visual, apresentar
e Sesc realizam em conjunto o festival, ficando a
Com programação no Teatro do Sesc, realiza-
interpretações contemporâneas do fazer cinema-
cargo do Kino Beat toda a concepção artística e ao
dor juntamente com a Kino Beat, e no auditório do
tográfico, com atrações que tratam de forma não
Sesc a responsabilidade pela produção e logística.
Instituto Goethe, parceiro ao lado da Aliança Fran-
convencional a sétima arte, gerando questiona-
Acredito que esta parceria seja uma via de
cesa e do Consulado da Suécia – e outros locais es-
mentos sobre o futuro do cinema e os rumos em
duas mãos, na qual o Sesc passa toda a sua cre-
palhados pela cidade –, a segunda edição do festi-
que ele pode seguir.
dibilidade e estabilidade, e o Kino Beat entra com
val, além dos espetáculos musicais e performances
O Festival Kino Beat é o resultado do pro-
o sopro de novidades, trazendo um conteúdo de
audiovisuais, terá palestras e instalações. Segundo
jeto iniciado em 2009 com a Mostra Kino Beat,
vanguarda, alinhando o Sesc local e a própria ci-
o idealizador e curador do projeto, Gabriel Cevallos,
uma mostra de filmes relacionados à música, e
dade em um circuito artístico raramente visto por
“o Kino Beat é uma plataforma de inovação, aberta
do Kino Beat ao vivo, evento de performances
aqui.” (Gabriel Cevallos)
a múltiplas manifestações artísticas, que podem e
audiovisuais. Ao longo de quatro anos, foram
devem extrapolar o campo audiovisual. A progra-
sete eventos realizados na cidade de Porto Alegre,
mação, que estabelece um contraste entre as ações
com apresentações especiais em Caxias do Sul e
internacionais e locais, explora temáticas ligadas à
Belo Horizonte. A primeira edição em formato de
imagem – por meio da arte digital e seus desdo-
Festival foi realizada em abril de 2014 e revelou
bramentos, como a tecnologia de imagens gene-
artistas nacionais em performances ao vivo com
rativas – e ao som, em experimentações de música
apresentações espontâneas e imprevisíveis que,
orgânica, música eletrônica e arte sonora”, explica
de alguma forma, exploraram recursos digitais no
Cevallos. Apesar de trazer artistas internacionais já
seu processo criativo.
Apresentações de Fernando Velázquez, Diego Abelardo e Orquestra Vermelha no Festival Kino Beat 2014 Fotos: Claudio Etges
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2015
POR Marco Aurélio Lopes Fialho
38
Assessor técnico em cinema do Departamento Nacional do Sesc.
Sombras que assombram: o expressionismo no cinema alemão Em torno de nós vê-se o monstruoso, fruto da insanidade, imprudência inépcia e completa degeneração. O que essa exposição oferece inspira horror e aversão em todos nós. Adolf Ziegler, no discurso de abertura da exposição expressionista Arte degenerada, 1937.
Impulsos irracionais: o expressionismo como tema Roger Cardinal, um dos mais conceituados estudiosos do expressionismo nas artes, descreve-o sinteticamente como um encontro da criatividade do artista com os seus impulsos emocionais e instintivos mais profundos. A expressão da obra adquire, então, um caráter subjetivo, pois a forma artística resulta das angústias humanas do indivíduo criador.[1]
CINEMA
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2015
39
1. CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1988. 2. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX – 1914-1991. São Paulo. Cia. das Letras. 1997. p. 16.
Enquanto no final do século 19 os grandes
prosperidade econômica, do auge da produ-
Badeulaire, com suas Flores do mal, e Friedrich
Primeiras décadas do século 20: um contexto violento e conturbado
Nietzche, com seu ensaio irracionalista Assim fa-
Segundo o consagrado historiador Eric Hobs-
A decrepitude moral torna-se parte da vida cul-
lou Zaratustra, estremeciam a pseudo-harmonia
bawn, o século 20 foi marcado por posições
tural desses países, um sentimento de inferiori-
imperialista.
políticas extremadas, e foi, em síntese, breve e
dade contamina a sociedade. O expressionismo,
impérios nacionais exibiam seus poderios, em paralelo, ideias contrárias eram criadas e serviam de perfeita antítese filosófica. Autores como Charles
ção graças às novas tecnologias desenvolvidas. Os países vencedores da Primeira Guerra Mundial impuseram acordos humilhantes às potências derrotadas, tal como a Alemanha e a Itália.
Já no início do século 20, o mundo assombra-
intolerante. Diz, ainda, que o primeiro aconteci-
no cinema, muito expressará o horror psicológico
-se com as obras de Freud, seus estudos complexos
mento marcante do século foi a Primeira Guerra
desse momento que antecederá a escalada na-
sobre a libidinosa psique humana; mais adiante,
Mundial, “que assinalou o colapso da civilização
zista na Alemanha, mas não pode ser reduzido a
Franz Kafka, já em 1915, investe nos processos de
(ocidental) do século XIX”.[2]
apenas isso.
aprisionamento humano, com seu sinistro e metafórico homem-inseto em A metamorfose.
As referências ao nazifascismo e ao comu-
Em momentos de crise e abalo social, é co-
nismo estão implícitas no seu texto. Essas são as
mum vermos as artes se colocarem de forma mais
Essa atmosfera cultural permeia e cria o es-
respostas extremadas ao fracasso do liberalismo
contundente, interpondo-se como elemento crí-
tofo necessário para o desenvolvimento do ex-
econômico que travestia a ocupação imperialis-
tico e participativo. Mesmo não sendo o expres-
pressionismo na Alemanha. No plano político, a
ta das grandes potências mundiais nos países e
sionismo cinematográfico explicitamente contra
República de Weimar rapidamente frustra as es-
territórios mais pobres, mas ricos em matéria-
o sistema político vigente, ele conseguiu criar
peranças de transformação social mais profunda,
-prima para abastecer o crescimento e o avanço
uma atmosfera em seus filmes que hoje muito
após massacrar o movimento revolucionário lide-
dos poderosos países europeus e os nascentes,
nos diz sobre aquele universo alemão dos anos
rado por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht e se
mas prósperos, Estados Unidos da América.
1920, e essa beleza da arte não se pode nem
tornará um estorvo às mentes mais críticas desse conturbado contexto histórico.
Mas a década de 1920 marcou, antes de
deve tirar dela, uma capacidade de se imiscuir à
tudo, o ápice do modelo liberal, da ilusão de
vida e lançar sobre ela um olhar, que correspon-
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2015
40
3. VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L.. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de Janeiro. José Olympio Editora. 1996.
sionava era fazer do cinematógrafo um veículo
uma inegável entrega à humanidade. As carreiras
O cinema no mundo antes do Expressionismo Alemão
artísticas não eram vistas com bons olhos, a arte
Em 1919, O gabinete do Dr. Caligari demonstrou
ganizar o filme em partes (planos, cenas e se-
era considerada algo menor pelas elites, profis-
que o cinema atingiu uma maturidade artística
quências) por meio de uma decupagem na qual
são de vagabundos e aventureiros.[3] Por exem-
importante. É um filme inaugural nesse sentido,
o diretor sinaliza quais planos utilizará, assim
plo, não havia ainda uma indústria do cinema tal
que demarca um momento de clivagem. Existe
como a ordem em que serão filmados e monta-
como conhecemos hoje, estruturada, reconheci-
o cinema antes e o cinema depois de Caligari.
dos posteriormente. Instaura-se, então, uma vi-
da e respeitada. A própria Hollywood, meca do
O cinema alemão dá um passo estético irrevogável
são fordiana de linha de montagem no cinema.
cinema mundial, não possuía o status que goza
ao adentrar nos meandros da psicologia humana,
O cinema então passa a ser entendido como um
atualmente. Só a partir dos anos de 1930 atingiu
ao mostrar que as histórias poderiam ir para além
produto, pronto a ser inserido na engrenagem
a posição de poderosa indústria voltada ao en-
do narrar, abriam janelas para se perscrutar a in-
do mercado.
tretenimento.
de a um poder de humanizar o mundo, mesmo quando seja para mostrar dele um lado desumano ou cruel. Há, no ato de escolha do artista pela arte,
viável para se contar uma história. Nasciam as bases para o que mais tarde viria a se chamar de “narrativa clássica do cinema”, que nada mais é do que uma sistematização de ideias, de or-
terioridade dos pensamentos e do agir humanos.
Assim o cinema chega à década de 1920 car-
A segunda metade do século 19 foi marcada
O expressionismo alemão contribui, então, de
regado de conquistas no plano da narrativa e de
por uma forte industrialização dos países euro-
uma só vez, tanto como fenômeno estético quan-
mercado. Já se podia dizer que havia o esboço de
peus, sobretudo a Inglaterra e os Estados Unidos,
to como revelador da alma. Daí a necessidade de
um caminho possível, inclusive como uma inci-
período conhecido por Segunda Revolução Indus-
pincelarmos rapidamente sobre o cinema da dé-
piente indústria com algumas ambições comer-
trial, a era do aço, do telégrafo, do trem e do motor
cada de 10 do século 20.
ciais, capaz de entreter plateias com histórias.
à explosão, transformações que também alavanca-
Na década de 10, do século 20, o norte-ame-
riam a criação de parafernálias a serem utilizadas
ricano David W. Griffith evidenciou ao mundo as
nas artes, como o próprio cinematógrafo.
possibilidades de sistematização do aparato cine-
A luta que se engendrou, então, foi a da bus-
matográfico, de que por meio de aproximações da
ca por matéria-prima e mercados entre as maio-
câmera em objetos e pessoas, em um momento
res potências. A Alemanha e a Itália se unificaram
determinado, podia se acentuar, por exemplo, o
tardiamente, mas também se lançaram nessa bri-
caráter dramático de uma cena, contando ainda
ga. O resultado desse acirramento foi a eclosão da
com os recursos da montagem que o equipamen-
Primeira Guerra Mundial.
to então oferecia.
A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), por
Mas o passo de Griffith representa um pou-
sua vez, foi um acontecimento que ressignificou,
co mais do que isso, pois se consolida no cinema
a fórceps, as vidas dos habitantes do planeta, e o
nascente a noção de significado (ao reafirmar a
cinema, assim como as artes em geral, também se
sua capacidade de narratividade), vai mais além
abalou profundamente.
ao imbuí-lo de uma faceta significante, isto é,
Nunca a destruição havia sido tão fácil, a
de deixar clara a importância também do como
morte não mais era perpetrada no corpo a corpo,
narrar uma história. Assim, Griffith demonstra de
pois essa guerra possibilitou a morte à distância:
uma só vez que o cinema podia não só contar
podia se matar o adversário sem tocar diretamen-
uma história, mas também se constituir como
te em seu corpo, a metralhadora dava um toque
uma linguagem específica.
de impessoalidade, feria-se sem ver o semblan-
Realmente é surpreendente que, em menos
te do outro. Agora, com um simples apertar de
de 20 anos da invenção do aparato, Griffith al-
gatilho eliminava-se dezenas e até centenas de
cance feitos tão extraordinários. Como Griffith
pessoas em uma pequena fração de tempo.
era um homem vindo do teatro, o que o impul-
CINEMA
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2015
41
Atingindo o céu: o cinema expressionista alemão no contexto artístico da década de 1920
interesses de manutenção e propaganda para
filmes, o uso do cinema pelo Terceiro Reich, o papel
perpetuação de um determinado grupo ou
educativo dado pelo governo inglês e político-par-
classe no poder, tal como nos anos de 1930
tidário dado pelo governo soviético serão algumas
viria apontar Walter Benjamin?
respostas a algumas perguntas listadas acima.
Seria o cinema apenas mais um bem de consumo
Não é por acaso que os anos de 1920 serão
escapista a entreter as massas em seus mo-
férteis para as vanguardas no cinema. Muitas dis-
mentos de lazer?
cussões e manifestos envolvendo o cinema per-
O expressionismo no cinema situa-se, em um con-
Seria o cinema um bem cultural a serviço de men-
meiam a época. Entre eles, o Manifesto das Sete
texto da história da linguagem cinematográfica,
sagens “educadoras” para as massas, portanto
Artes, de Ricciotto Canudo (escrito em 1911, mas
em uma encruzilhada. Caminhos artísticos, os mais
repleta de conteúdos instrutivos e de acordo
publicado apenas em 1923); o Manifesto Surrea-
diversos, estavam sendo experimentados, e talvez
com a moral e o status quo vigente, e que, em
lista (1924), de André Breton; o Manifesto do Som
ele representasse, devido à própria situação da
consequência, deveria ser monitorado pelo
(1928), de Sergei Eisenstein; fora diversos manifes-
poder estabelecido?
tos escritos por Dziga Vertov.
Alemanha nos anos de 1920, não exatamente uma síntese estética, mas talvez uma síntese da inde-
Seria o cinema uma arte possível de ser indus-
Em poucas linhas, podemos afirmar que o ci-
finição de rumos, da dúvida que paira nesse mo-
trializada e, posteriormente, comercializada
nema nos anos 20 podia tudo. Essa era a realidade,
mento acerca de qual seria a serventia do cinema
e, como qualquer produto, ser submetida ao
a perspectiva voltada para o entretenimento e para
para a humanidade.
consumo em geral?
o viés comercial do aparato estava longe de ser o
Eis as algumas dúvidas inerentes ao cinema nas duas primeiras décadas do século 20:
único caminho para o cinema, ele demonstrava por Nota-se que essas perguntas são amplas e
Seria o cinema uma linguagem específica, munido
atendem demandas das mais variadas, que impli-
de códigos próprios, interesses estéticos de-
cam questões específicas relacionadas à estética,
finidos, voltado sobremaneira para despertar
à própria definição e estatuto artístico do cinema,
sensações profundas e inovadoras nos seres
mas envolve ainda questões que o imbricam com
humanos?
discussões para além do próprio cinema. Nota-se,
Seria o cinema uma mera extensão da narrativa literária e/ou teatral?
meio de seus artistas que seu alcance estético era ilimitado, tão amplo quanto o céu.
nesse momento, o quanto o cinema será amarrado a uma gama de interesses sociais, políticos e eco-
Seria o cinema tão somente uma poderosa arma
nômicos que na década de 1930 estarão mais evi-
ideológica à mercê de Estados, governos
dentes. A consolidação da indústria de Hollywood
prontos a aparelhá-lo de acordo com seus
e a interferência moral do Estado nos enredos dos
Cenas do filme O gabinete do Dr. Caligari
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2015
42
4. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo. Perspectiva. 2008. p. 31. 5. CÁNEPA, Laura Loguercio. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo. Papirus. 2008.
A relação do fantástico com o expressionismo
o fantástico atinge no cinema uma força incon-
eles representavam uma exteriorização de um es-
testável, com o sucesso do filme de Robert Wiene,
tado interior, uma materialização espiritual, e a
O gabinete do Dr. Caligari.
sua potência estética vinha dessa confrontação
Em Caligari vem à tona todo o potencial
do externo com o interno. O que caracterizaria,
De acordo com o crítico literário Tzvetan Todorov,
expressionista ao revelar uma Alemanha gótica,
então, o terror expressionista seria a assimilação
o fantástico pode ser entendido como tal quando
demoníaca, com seus pesadelos mais obscuros.
expressiva de um elemento psicológico.
se põe em dúvida a noção de real de um determi-
O mais incrível no filme de Wiene é a sua capa-
O período histórico do nascimento do ex-
nado fenômeno, isto é, quando não se consegue
cidade de tornar o gênero fantástico, até então
pressionismo o localiza imediatamente após
explicá-lo pela lógica, mas somente sob a regência
essencialmente literário, totalmente palpável
a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial
de outras leis que desconhecemos. Para Todorov,
para o gênero cinematográfico. O viés fantásti-
(1914-1919) – O gabinete do Dr. Caligari foi
normalmente um fenômeno “se pode explicar de
co em Caligari se impõe por meio da criação de
produzido em 1919/20. Muitos críticos relacio-
duas maneiras, por meio de causas de tipo natural
uma temática típica dos enredos de terror, em
nam o expressionismo como uma resposta da
e sobrenatural. A possibilidade de se hesitar entre
especial, o tema da manipulação de mentes e do
vanguarda alemã à atmosfera de decadência e
os dois criou o efeito fantástico.”[4]
sonambulismo.
crise moral do período compreendido como a
O fantástico nasce na literatura e tem o cul-
Desde os primórdios do cinema, tem-se
República de Weimar (1919-33) e prenuncia-
tuado escritor Edgar Allan Poe como seu autor íco-
registro de filmes de terror. No primeiro ano do
dor do surgimento do nazismo. Hoje, essa ideia
ne, mas a sua concepção é muito bem assimilada
cinematógrafo, em 1896, Georges Méliès realizou
não deve ser tomada de forma absoluta. Outras
pelo cinema ainda em seus primórdios. O ilusionis-
um pequeno curta-metragem com a temática. As
questões são também apontadas como influen-
ta e cineasta francês Georges Méliès é considerado
histórias de terror foram sendo filmadas nas dé-
tes, tal como o gosto pelo medievalismo (gótico)
um dos precursores do cinema fantástico, com o
cadas posteriores, mas somente no Expressionis-
e a tradição romântica alemã.
seu célebre filme Viagem à Lua (1902), quando o
mo Alemão o terror adquiriu uma maior presença
Como bem assinala a professora e pesquisa-
cinematógrafo ainda era mais uma curiosidade
e vigor. O golem, O gabinete do Dr. Caligari, Nos-
dora Laura Cánepa, um grande êxodo de artistas,
do que um aparelho apto a criar uma linguagem
feratu, Fantasma e outros serviram de fonte para
atores e técnicos alemães dessa época, provocado
autônoma.
diversos filmes a partir dos anos de 1930.
pela ascensão do nazismo, difundiram uma con-
Mas é no cinema alemão que o fantástico
Mas, se analisarmos a incorporação do ter-
siderável influência da “estética expressionista”
surge com maior vigor, antes mesmo da eclosão
ror ao gênero cinematográfico, veremos que um
pelo mundo, mais precisamente nos Estados Uni-
do expressionismo alemão, já nos anos 10 do sécu-
ponto de partida onde o encontramos de maneira
dos, onde a indústria hollywoodiana avançava a
lo 20, com a incorporação de escritores do gênero
mais sistematizada é a do próprio Expressionis-
passos largos. Basta assistir aos filmes de terror
fantástico como roteirista de filmes. Mas somente
mo Alemão. No expressionismo, encontramos
dos anos de 1930 e os chamados filme noir para
no final da década de 10 e início dos anos 20 que
uma exacerbação dos elementos imagéticos, mas
saber que não estamos a exagerar.[5]
CINEMA
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2015
43
6. EISNER, Lotte H.. A tela demoníaca. São Paulo. Paz & Terra. 2002. p. 17. 7. CARDINAL, Roger. O expressionismo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1998. p.25.
O cinema expressionista alemão: aspectos estéticos gerais
alemão, se reanimavam tal como as sombras do Hades ao beberem sangue.
[6]
Cenas do filme Viagem à Lua, de Georges Méliès
Então vejamos: misticismo, fantasmas, sobrevivência, sangue, morte, hecatombes de jovens e sombras são palavras utilizadas nessa pequena
Acredita-se, aqui, que, sem essa contextuali-
citação, mas que corporificam o sentimento ex-
zação bastante abrangente, uma análise sobre
pressionista. Os filmes trazem inequivocamente
qualquer cinema realizado na década de 1920
esse peso, como um carma que recai sobre seu
seria estéril e inócua. Isso se deve à grande
destino artístico.
efervescência das artes desde o final do século
Na definição de Roger Cardinal, o expres-
19, e em especial a partir dos anos 10 do sé-
sionismo “representa uma versão peculiarmente
culo 20, com as interferências modernas, mais
urgente da necessidade perene do artista de
precisamente a polêmica causada pela ousada
se expressar sem restrições. Seus antecedentes
o tempo está nublado, que as sombras e os per-
obra de Duchamp, intitulada de A fonte. Depois
imediatos são as declarações irracionalistas e
sonagens sinistros estão em profusão e que algo
de quase 100 anos, ainda hoje sua obra suscita
instintuais de um Nietzche, as transcrições po-
precisa ser feito para transformar a sociedade,
fervorosas discussões acerca do que seria então
derosas da vida íntima agitada nas últimas pin-
antes que precisemos lhe extrair um membro.
a arte, ou um objeto artístico, e quais seriam os
turas de Van Gogh, os gestos altamente cênicos
Os filmes do período comumente chamado de
parâmetros e critérios para a sua definição.
de Strindberg. Quando Nietzche afirma orgulho-
expressionista (1919-27) espelham demais a nebu-
Mas sem dúvida a Primeira Guerra Mundial
samente que ‘eu sempre escrevi meus trabalhos
losidade de seu tempo. Há um cruzamento con-
tem um peso incomensurável nesse contexto. Fez
com todo o meu corpo e minha vida, não sei o
siderável, em especial na Alemanha derrotada no
renascer elementos, alguns até já adormecidos, na
que querem dizer com problemas intelectuais’,
pós-guerra, entre realidade sinistra e visão sinistra
alma alemã. No início de seu magnífico livro sobre
está oferecendo, na sua maneira mais simples,
do artista. A distorção aflorada no olhar do artista
o Expressionismo Alemão, Lotte H. Eisner afirma:
um princípio exemplar do Expressionismo: a
não deve ser descartada e, mais do que isso, deve
Misticismo e magia – forças obscuras às
confiança irrestrita na expressão direta dos sen-
ser sublinhada, enfatizada, pois é difícil viver uma
quais, desde sempre, os alemães se abandonaram
timentos que se originam na própria vida do
hecatombe social e não a expressar. Seria como
com satisfação – tinham florescido em face da
criador, sem a mediação e a interferência prová-
não pertencer ao mundo, abdicar dele.
morte nos campos de batalha. As hecatombes de
vel da racionalidade”.[7]
Pensemos, então, em um ponto crucial para o
jovens precocemente ceifados pareciam alimentar
Quando o mundo objetivo não inspira con-
expressionismo: a distorção. Como falar de temas
a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantas-
fiança, o artista se utiliza da subjetividade, de
sublimes quando o que vemos ao redor não é tão
mas, que antes tinham povoado o romantismo
sua expressão mais soturna, avisa ao mundo que
inspirador assim. A guerra distorceu os corpos. Os
CINEMA
primeiro SEMESTRE
2015
44
artistas viram isso, não podiam passar incólumes
filmes expressionistas, pois são comumente seres
a tudo isso. Mas também tem a degradação moral
que habitam um terreno sombrio da existência.
quando a morte e a mutilação dos corpos passam
Há uma concepção labiríntica dos cenários que
a existir em profusão, os jovens são abatidos e,
muito expressam uma vertigem inerente também
com eles, o futuro de um país. Ainda há a altera-
aos conflitos emocionais dos personagens.
ção da paisagem, a destruição de aldeias, cidades, a improdutividade do campo.
A imagem expressionista também dialoga com os personagens e com os cenários com a
Os cenários dos filmes expressionistas, em
predominância do contraste entre partes mui-
especial as obras de primeira hora, tal como
to escuras (mais nas bordas) e muito claras (no
O gabinete do Dr. Caligari, O gabinete das fi-
centro da imagem). Há ainda o resgate do medie-
guras de cera, O golem, Nosferatu, tendem à
valismo, uma aproximação com a estética gótica,
claustrofobia, faltam-lhes profundidade, são aca-
assim como uma recuperação dos valores român-
chapantes e tortuosos, possuem uma estilização
ticos nítidos na exacerbação dos sentimentos dos
artificial que beira o grotesco.
personagens.
A maquiagem dos atores foi concebida de
Um dos alicerces que colaborou para escorar
forma exagerada, sinistra, que lhes fazem parecer
o cinema alemão dos anos de 1920 foi o teatro
uns mortos vivos, como se vagassem à deriva pelo
de Max Reinhardt, escola para diversos profissio-
mundo. Seus corpos são pesados, com movimen-
nais que depois migraram para o cinema, e foram
tos bruscos, não naturalizados, como se fossem
muitos: cenógrafos, atores, diretores, figurinistas,
impedidos de se locomover com desenvoltura
fotógrafos, vários deles saíram de seu teatro. Se
por uma força maior. Os figurinos também lhes
o teatro formou profissionais, a UFA (Universum
pesam, dificultam o movimento e lhes dão uma
Film Aktiengesellschaft), como produtora privada,
aparência soturna.
fortemente assentada economicamente, com-
Nosferatu e Orlac, por exemplo, são quase
posta por fusão de diversas produtoras, solidifi-
que personagens de outro mundo, cindidos e
cou o cinema alemão como produto fora do país,
alheios à vida social, imersos no seu mundo, pou-
mercado esse que antes se encontrava em crise.
co dialogam com o exterior, vivem as suas tragé-
A adesão da Decla Biocosp, empresa de Erich
dias interiores, são seres alienados, quase inuma-
Pommer, maior produtor alemão, foi decisivo para
nos. Não à toa, os temas mórbidos perpassam os
a UFA alçar voos extraordinários.
CINEMA
primeiro PRIMEIRO SEMESTRE
2015
45
Em consequência, o cinema expressionis-
Cenas dos filmes:
ta espirrará diretores para fora da Alemanha.
Nosferatu
Todos hoje são nomes cultuados. Qual amante
Metrópolis
do cinema nunca ouviu falar de um Fritz Lang,
Metrópolis
de um Murnau, de um Paul Leni, de um Ernst
Metrópolis
Lubitsch, de um Pabst e de um Robert Wiene? Ressalta-se, ainda, a qualidade técnica dos
As mãos de Orlac
profissionais de cinema existente na Alemanha
O homem que ri
dos anos de 1920. Do roteiro ao acabamento das imagens, o expressionismo foi pródigo de artistas. Destacam-se como roteiristas Carl
do Dr. Caligari) e Wilhelm Dieterle (Fausto e
Mayer (A última gargalhada e O gabinete do
O gabinete das figuras de cera ).
Dr. Caligari), Henrik Galeen (O gabinete das
Soma-se a esses preciosos profissionais
figuras de cera, O golem e Nosferatu) e Thea
um organizador de peso, o já citado produtor
Von Harbou (Metrópolis); como diretores de
Erich Pommer, que comandou os maiores orça-
arte, há nomes como Robert Herlth e Walter
mentos da época e trabalhou com os diretores
Rohrig (Fausto e A última gargalhada), Wal-
e os técnicos mais significativos da indústria
ter Reiman e Hermann Warm (O gabinete do
cinematográfica alemã à época da República
Dr. Caligari); como fotógrafos e câmeras, no-
de Weimar, entre eles Murnau, Wiene, Lang,
Filmes da Mostra Sombras que Assombram, em circulação pelo projeto Cine Sesc
mes como Fritz Arno Wagner (Nosferatu), Carl
Freund, Hoffman e Mayer.
O gabinete do Dr. Caligari - 1919 | Robert Wiene
Hoffman (Fausto) e o magistral Karl Freund
Vários desses artistas tiveram passagem
(A última gargalhada, Metrópolis, O gabinete
por Hollywood, em especial, no período do na-
O golem - 1920 | Paul Wegener
do Dr. Caligari e O golem). Pode-se ainda citar
zismo, em que o controle ideológico dos filmes
O gabinete das figuras de cera - 1924 | Paul Leni
os excepcionais atores Conrad Veidt (O gabi-
alemães passava pelo crivo do regime totalitá-
O homem que ri - 1928 | Robert Wiene
nete do Dr. Caligari, O gabinete das figuras
rio comandado por Hitler e Goebbels. A rotei-
Fausto - 1926 | F. W. Murnau
de cera, O homem que ri, As mãos de Orlac),
rista Thea Von Harbou não acompanhou o seu
Nosferatu - 1922 | F. W. Murnau
Emil Jannings (A última gargalhada, Fausto e
marido, o diretor Fritz Lang, e escolheu colabo-
A última gargalhada - 1924 | F. W. Murnau
O gabinete das figuras de cera), Werner Krauss
rar na feitura de um cinema nazista.
Metrópolis - 1927 | Fritz Lang
(O gabinete das figuras de cera e O gabinete
As mãos de Orlac - 1924 | Robert Wiene
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
Por Fábio Magalhães
46
Curador Texto contido na publicação didática da exposição Canteiro de obras, de Claudio Tozzi, editado pelo Departamento Nacional do Sesc.
A trajetória de Claudio Tozzi Com previsão de circular
A maioria dos artistas percorre um longo caminho
me interesse, provocou polêmica e manteve-se
pelo Rio Grande do Sul no
para que sua obra seja reconhecida, tanto no meio
na vanguarda. Ele foi um dos primeiros a criar
artístico e cultural quanto pelo grande público.
na velocidade dos acontecimentos e apresentar
Não foi o que aconteceu com Claudio Tozzi. Muito
obras que diziam respeito aos protestos que os
a exposição Canteiro de
jovem, e ainda estudante de arquitetura, ele pro-
estudantes organizavam contra a ditadura mili-
obras, com curadoria de
duziu no ateliê da Faculdade de Arquitetura e Ur-
tar e ainda foi pioneiro ao retratar as profundas
banismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP)
transformações que se passavam no âmbito fe-
as suas primeiras serigrafias, que tiveram imediata
minino. Três gravuras presentes na abertura da
repercussão. O resultado dessas experiências com
exposição Canteiro de obras exemplificam esse
litogravura e 32 serigrafias
a nova figuração causou forte impacto nos meios
seu engajamento às grandes mudanças que
–, três pinturas e um objeto.
artísticos pelo vanguardismo de suas propostas e
ocorriam na sociedade: Multidão, Guevara vivo
despertou enorme interesse junto ao grande pú-
ou morto e Mulher na janela.
segundo semestre de 2015,
Fábio Magalhães, conta com 33 gravuras – uma
Apresenta a trajetória do
blico pela enorme empatia de seus temas, de forte
Claudio interessou-se também pela gráfica e
artista Claudio Tozzi em
valor simbólico, com os conflitos e as aspirações
suas novas possibilidades tecnológicas, pela foto-
ordem cronológica, com
daquela época.
grafia e pelos novos processos reprodutivos. Sua
obras de 1967 a 2005.
O período de seu surgimento como artista
produção sempre esteve voltada para uma arte de
não poderia ser mais fecundo. Os anos 1960 re-
grande força comunicativa; tanto assim que rea-
presentaram, ao mesmo tempo, paradoxalmente,
lizou inúmeras obras no espaço público, de inter-
frustrações e esperanças. Nesta época surge o
venção urbana. Mantém intensa preocupação com
Cinema Novo, com Glauber Rocha, Nelson Pereira
a pesquisa de materiais e, até hoje, procura ampliar
dos Santos e tantos outros. Surge a Bossa Nova,
seu trabalho para outros campos, utilizando uma
com João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e Chico
diversidade de meios. Desenvolveu experiências
Buarque de Hollanda, que foi contemporâneo de
com o pigmento/cor, trabalhou com diferentes
Claudio Tozzi na velha sede da FAU/USP, na Rua
tipos de suporte (planos, convexos e tridimensio-
Maranhão. Há uma verdadeira revolução no teatro
nais), expressou-se com outras mídias, como xerox,
brasileiro, com o surgimento do Teatro Oficina, do
polaroid, super-8 e eletrocardiografia. Também re-
Teatro de Arena e tantos outros grupos, muitos de
alizou cenografias, esculturas, objetos.
origem universitária. Por outro lado, o golpe mili-
Trabalhou com grandes dimensões, usando
tar de 1964 frustrou as esperanças de se construir
materiais variados, como espuma de poliuretano
uma sociedade mais justa, mais solidária.
expandida. A experimentação tem sido sua com-
Pois bem, nesse caldeirão de transformação artística, a obra de Claudio Tozzi despertou enor-
panheira pela vida afora.
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
47
1. Edição realizada a partir de textos (com curadoria de Fábio Magalhães) do material didático da exposição Canteiro de obras, de Claudio Tozzi, publicado pelo Departamento Nacional do Sesc.
Mulher na janela (1967) serigrafia sobre papel 58 x 85 cm
Para cada década, uma janela para o mundo[1]
serigrafia, foi possível criar uma linguagem gráfi-
Tozzi e a maioria dos grandes artistas do século
suas fotografias de multidões em passeatas de
20 ultrapassaram as ditaduras dogmáticas das
protesto. Um artista atento ao mundo e com um
escolas e dos estilos para fazerem uso de técnicas
olhar comprometido com o momento. Isto pode
como necessidades poéticas, ao mesmo tempo
ser percebido na sequência de obras expostas no
em que estavam completamente atentos e conta-
período, reproduzindo muitas vezes situações re-
minados pelas questões específicas dentro e fora
ais, como as imagens em Multidão, de 1968, e na
do mundo da arte.
obra Guevara vivo ou morto – a qual, de forma
contestação, buscando dar “voz” àquilo que não
panfletária, foi vendida a preços populares em
podia ser dito.
ca direta e de rápida comunicação, apropriando-se de imagens de jornais e notícias políticas, da estética de história em quadrinhos ou utilizando
Anos 60: Arte como resistência
praças e estádios de futebol em São Paulo, na
A estreita relação entre a arte e a realidade
Claudio Tozzi inicia sua carreira como artista plásti-
ocasião da trágica morte do líder revolucionário
produziu obras muito distintas nos diferentes países
co nos anos 1960, ainda estudante na Faculdade de
na Bolívia. Essa mesma obra, quando exposta em
onde se percebeu as influências da arte Pop – com-
Arquitetura, em uma época em que o movimento
1968, época marcada pelas lutas estudantis con-
pare, por exemplo, as obras de Andy Warhol (EUA),
estudantil era extremamente politizado e a arte,
tra a ditadura, sofreu um atentado e foi pratica-
Roy Lichtenstein (EUA), Richard Hamilton (Ingla-
considerada importante ferramenta de transfor-
mente destruída por um grupo de extrema direita.
terra) e Claudio Tozzi – cada artista vai se apropriar
mação social e política. Não por acaso, utilizou a
A arte nos anos 1960, no Brasil, estava nas
da realidade, seja por meio da mídia e estética da
técnica da serigrafia para realizar suas obras: sua
ruas, provocava e gerava debate, e, assim como
imagem publicitária, seja por meio das histórias em
temática nesta época está intimamente ligada ao
Tozzi, muitos artistas estavam utilizando a arte,
quadrinhos (de rápida e fácil comunicação), com
engajamento em relação às massas e, por meio da
e todas as suas linguagens, como ferramenta de
objetivos distintos. Como uma reação “necessária”
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
48
para cada país de origem, a arte era o lugar onde
levo da Terra, assinala o instante em que o homem
determinadas questões sociais e políticas poderiam
se libertou para sempre de seu planeta natal. An-
Palavra do artista
se tornar visíveis. Assim foi para Claudio Tozzi, nos
tes, ele habitava um mundo ilimitado, porém finito,
1963
anos 1960: arte como resistência!
e temores ancestrais o prendiam à superfície. Ago-
Os primeiros trabalhos que fiz, por volta de 63,
Os acontecimentos do mundo continuam a
ra, ele poderá ir tão longe quanto queira e possa,
caracterizavam-se pela apropriação de imagens
alimentar a obra de Tozzi e, no final dos anos 1960,
sem jamais encontrar um fim. Nenhuma força de
da guerra do Vietnã publicadas em revistas in-
outros heróis passaram a ocupar lugar na sua obra:
gravidade o contém no espaço e as surpresas que
ternacionais, que eram rasgadas, manipuladas e
o homem e a máquina. A série Astronautas, repre-
o futuro lhe reserva vão além do que a imaginação
coladas em um suporte de madeira com resina de
sentada nesta mostra com uma serigrafia, e a obra
é capaz de conceber.”.
poliuretano. Em um dos quadros, criei a imagem de uma família em meio a engrenagens, um mar-
Módulo lunar, por um lado, são temas/notícias da
Impossível hoje sabermos o que realmente
atualidade, mas também parecem ser a esperança
representou para a época tal advento do homem.
de surgir um novo homem, livre e em paz. Na edi-
Só quem viveu pode contar e relembrar. Tozzi eter-
ção histórica da revista Manchete, que mostra as
niza esse momento histórico e ao mesmo tempo
1964
fotos do primeiro homem na Lua, um dos títulos
dialoga intensamente com a Pop Art, suas relações
Nesta época, em 1964, eu montei o meu primeiro
principais dizia: “Promessa de paz acompanhou o
entre o mito e o real. Acentuam-se também suas
ateliê, num porão da Rua Minas Gerais, em Hi-
homem na sua caminhada para o universo”, e na
preocupações por novas possibilidades gráficas e
gienópolis. Comecei a fazer meus trabalhos em
matéria: “Aqui homens do planeta Terra pela pri-
meios de expressão, abrindo sua obra para outras
grandes dimensões, como a instalação Bandido
meira vez pisaram no solo da Lua. Julho de 1969
direções a partir dos anos 1970.
da Luz Vermelha, quase simultaneamente ao lan-
a.D. Viemos em paz por toda a humanidade. Uma placa em formato cilíndrico, com o desenho em re-
Um olho no gato e outro no queijo – um olho na arte um outro no mundo.
telo batendo numa cabeça.
çamento do filme do Rogério Sganzerla, que acabou se tornando um cult movie. Era um dodeca-
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
49
edro, em cujo centro acendia-se uma grande luz vermelha, como aquelas dos caminhões de bombeiros, e quando o espectador se aproximava, era atingido por um raio de luz. E havia também um texto, que não era sequencial, mas que o espectador era levado a montar, mentalmente, a leitura e o sentido da obra. Era meu primeiro trabalho que mostrava essa preocupação em estruturar um ambiente e estimular a participação do público. 1964/65 (…) Lembro-me da participação dos alunos nas questões sociais e políticas da época. Os professores nos orientavam e publicamos um jornalzinho mimeografado – Evolução – que continha ideias básicas para se discutir as reformas de base necessárias ao País. Na FAU, por sua estrutura interdisciplinar, existiam setores específicos que nos possibilitavam uma aproximação maior entre a teoria e a prática. Um deles era o ateliê de serigrafia, organizado com a orientação do Flávio Império, que reunia um grupo que trabalhava com silk-screen. Por ocasião das primeiras greves, no primeiro período de resistência ao regime militar, em 1964/65, fizemos muitos cartazes de solidariedade, em colaboração com o pessoal da Filosofia. 1966/67 Em 1966, comecei a pensar num trabalho que atingisse a massa popular, utilizando imagens conhecidas, realizando uma espécie de performance ou happening, vendendo ou distribuindo essas imagens nos estádios de futebol, inicialmente
militar, fundado por Raimundo Pereira. Previsto
com a imagem do Garrincha e, depois, em 1967,
para ser editado mensalmente, teve vida curta,
com a imagem do Guevara. Além das saídas de
proibido pelo AI-5.
estádios de futebol, distribuíamos também em portas de fábricas e sindicatos. Foi um período de
Década de 60 e a Pop Art
grande agitação e criações coletivas.
A década de 1960 é caracterizada por uma grande necessidade de mudanças e rupturas. As artes
1967
plásticas apropriaram-se de novos conceitos e
Também contribuí com a formulação do projeto
transformaram sua linguagem. A Pop Art, re-
gráfico e o acompanhamento da diagramação
alizada principalmente nos Estados Unidos,
do jornal Amanhã, em 1967, um tabloide al-
preocupava-se mais com a glamourização de
ternativo, de conteúdo contestatório ao regime
imagens de consumo preexistentes, algo mais
Gente no viaduto (1972) serigrafia sobre papel 42 x 69 cm Módulo lunar (1970) serigrafia sobre papel 65,5 x110 cm Guevara vivo ou morto (1968) serigrafia sobre papel 34 x 59,5 cm
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
50
próximo à repetição de imagens das prateleiras
mava o desenho em alto-contraste, como se faz
1968
de um supermercado, a redundância de imagens
hoje com o computador, e depois fazia o trabalho
As imagens utilizadas nos trabalhos da série Mul-
e ícones imediatamente reconhecíveis. No Brasil,
no qual a escala das figuras se identificava com o
tidões eram retiradas de fotografias por mim re-
prefiro usar a expressão nova figuração, pois tem
espectador. Era outra tentativa de fazer essa inte-
alizadas, ou resultado de pesquisa iconográfica
uma conotação específica, com um conteúdo
ração do espectador com a obra. Uma experiência
em jornais e revistas da época. (…) Assim, a série
referido ao que ocorria no País, uma conotação
importante, que fizemos em 1968, foi a exposição
Multidões é realizada através de gestos e linhas
mais ligada à conjuntura. Vivíamos uma situa-
de bandeiras, realizada em São Paulo, na Avenida
agitadas que refletem os movimentos bruscos da
ção de opressão e repressão sob o regime militar.
Brasil, e também no Rio, na Praça General Osório.
ação na cena representada. Já a série Astronautas
A pintura era parte da nossa resistência. Nossa
Um grupo de artistas: Gerchman, Nelson Leirner,
tem por base linhas mais fluídas, que simbolizam
arte continha um engajamento ideológico e de
Marcelo Nitsche, Hélio Oiticica, Flávio Império,
o caminhar do homem na ausência de gravidade.
luta. Meu trabalho tinha uma preocupação de se
Maurício Nogueira Lima, Flávio Motta, Antônio
aproximar da linguagem dos meios de comuni-
Dias, Carmela Gros, Luiz Gonzaga e outros rea-
Anos 70: Olhando a cidade
cação de massa e se apropriava de imagens do
lizaram um trabalho impresso em tecido e fixado
São Paulo, anos 1970, a grande metrópole brasilei-
mundo urbano – sinais de trânsito, histórias em
numa haste, como uma bandeira. Essas bandeiras
ra, enfrentando os desafios e problemas do boom
quadrinhos –, mas sempre com a intenção de
eram agitadas simultaneamente pelos artistas na
das grandes cidades. Já naquela época a cidade
modificar seu significado, de subverter, de propor
rua. Era uma performance coletiva. Nessa oca-
possuía 970 mil edifícios, entre os quais os mais
uma sintaxe diferente do texto para criar uma
sião, fiz o desenho da bandeira do Hélio Oiticica
altos da América Latina, e uma população de 9
nova mensagem. Criar “novos objetos”.
a partir de uma foto por ele escolhida. Marcelo
milhões de habitantes. Em edição da revista Man-
Nitsche e eu imprimimos a bandeira em dimen-
chete de 1971, a cidade vista de cima de um he-
1967/69
são ampliada. Minha bandeira era um desenho
licóptero é comparada a um enorme formigueiro
Fiz a série em homenagem a Guevara, em 1967,
do Che, que está na foto mostrada pelo Oiticica
humano. E hoje, passados mais de 30 anos, se-
em painéis de grandes dimensões, com imagens
em cima da árvore. Em 1969, realizei a série As-
gundo dados do IBGE, a região metropolitana de
em alto-contraste, utilizando o mínimo de cor
tronautas, por ocasião da chegada do homem à
São Paulo conta com uma população de mais de
possível. No Salão de Brasília, esse trabalho foi
Lua. Os materiais utilizados em alguns trabalhos
17,8 milhões de habitantes – quase o dobro. Na
parcialmente destruído por um grupo parami-
dessa série eram os mesmos utilizados na pintura
mesma matéria, São Paulo em três dimensões (re-
litar, depois restaurado em São Paulo. Em 1968,
de foguetes, a tinta epóxi. Participei pela primeira
vista Manchete nº 1005, Rio de Janeiro, 1971), a
passei a documentar as passeatas estudantis com
vez da Bienal de São Paulo, em 1967, na qual a
oportunidade de ver a cidade do alto também traz
máquina fotográfica; voltava ao ateliê e transfor-
relação das obras fora feita por Mário Schenberg.
para reflexão a possibilidade de transfiguração do
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
51
olhar perante a cidade: “(…) É uma viagem verti-
Claudio Tozzi também está olhando para a
retículas, realizadas por meio de uma técnica que
ginosa, sobre todos e sobre tudo, e, o que é mais
cidade, com o olhar do artista que observa, que dá
substitui o pincel por um rolo de borracha reticu-
importante, sobre os problemas. A cidade supe-
foco àquilo que ninguém vê, nos provoca a olhar,
lado, criando um efeito de “cor mecânica”, como
ragressiva aqui embaixo chega a parecer lírica e
um olhar capaz de ver a cidade como se estivesse
as retículas das impressões gráficas, só que neste
tranquila, do alto. (…) Do céu São Paulo é bela e
no topo de um arranha-céu e, ao mesmo tempo,
caso mais visíveis, assim como as imagens de um
insólita. E dá a impressão de que poderia se tor-
caminhando lá embaixo em meio à multidão, com
outdoor quando vistas de perto, em que é possível
nar uma cidade humana.”.
os pés no chão, vendo de frente seus problemas
ver as retículas de cores que constroem as ima-
Podemos criar um paralelo com o texto de
e desafios. Olha a cidade como o voyeur, mas
gens. O efeito produzido pela utilização do rolo
Michel de Certeau, Andando na cidade, no qual
não com um olhar de deslumbramento e fascínio
de borracha reticulado nas obras de Tozzi, técni-
ele, do topo do World Trade Center, analisa a cida-
diante da cidade, mas com uma visão crítica e de
ca análoga àquela utilizada nas suas serigrafias,
de vista do alto do arranha-céu. “Quando se sobe
denúncia. No meio da multidão da cidade somos
cria esse mesmo efeito de retícula expandida que
ali, deixa-se para trás a massa que carrega e mis-
heróis anônimos, habitantes da grande metrópole.
observamos nos outdoors. Na realidade, todas as
tura em si própria toda identidade de autores ou
As obras Gente no viaduto, de 1972, Especulação
imagens gráficas que vemos como “fotografias”
espectadores. (...) Sua elevação o transfigura num
imobiliária e Polution, de 1973, são alguns exem-
nada mais são do que imagens reticuladas cons-
voyeur. Coloca-o a distância. Transforma o mundo
plos de obras que remetem a essas leituras, janelas
truídas pela cor.
encantatório pelo qual ele foi ‘possuído’ num texto
da cidade de São Paulo.
Palavra do artista
diante de seus olhos. (...) Dever-se-ia por fim cair
A partir de 1974, sua obra vai sofrer uma
no espaço escuro onde as multidões se movimen-
guinada radical, de acordo com experiências com
tam para cima e para baixo, multidões que, embora
a cor. A exposição Cor/Pigmento/Luz, realizada em
1970
visíveis do alto, são elas próprias incapazes de ve-
São Paulo em 1975, apresentou obras com uma
Depois do AI-5 e na década de 1970, meu trabalho
rem o que há embaixo? (...) Os praticantes comuns
preocupação quase científica com a cor; a cor pas-
passou a ser mais reflexivo. Fiz a série Parafusos,
da cidade moram ‘lá embaixo’, abaixo do limiar
sa a ser elemento de construção, prevalecendo em
na qual o primeiro deles mostra um parafuso aper-
onde a visibilidade começa. Eles caminham – uma
relação a ela um racionalismo cromático, quase
tando um cérebro. Então, as imagens deixam de ter
forma elementar dessa experiência da cidade; eles
conceitual.
comunicação imediata, começam a ser reflexo de
são caminhantes, Wandersmänner (caminhantes à
um pensamento, uma conotação mais simbólica,
deriva, sem destino certo), cujos corpos acompa-
A passagem dos anos 1970 para 1980
metafórica. Começo, então, a trabalhar com ele-
nham resolutamente um ‘texto’ urbano, que escre-
A cor passa a ser elemento predominante na obra
mentos menos objetivos, mais simbólicos e sutis.
vem sem serem capazes de lê-lo.”
do artista, criando imagens/cor construídas com
Fiz uma pesquisa de novos pigmentos e resinas,
Astronauta (1969) serigrafia sobre papel 25,5 x 40,5 cm Especulação imobiliária (1973) serigrafia sobre papel 39 x 60 cm Parafusos (1979) litografia sobre papel 54,5 x 54,5 cm
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
52
Edifício Artigas (homenagem ao arquiteto Vilanova Artigas, 1986) serigrafia sobre papel 40,5 x 60 cm
resultando num tratamento cromático mais ela-
Trama urbana (1984) serigrafia sobre papel 40 x 59 ,5cm
turava com o fundo em tinta acrílica, resultando
Arquitetura imaginária (2005) serigrafia sobre papel 49 x 69,5 cm
hoje realizo trabalhos com os Parafusos, mas com
borado. Introduzi a fusão de silk-screen, aplicado sobre a tela, com tinta alquídica, que não se missutis texturas. O Parafuso é o primeiro deles. E até uma preocupação de traduzir suas formas, não como figura-elemento, mas como parte essencial da estrutura, da obra. O acoplamento de suas formas determina a estrutura do quadro e indica as opções para a solução cromática e seu formato final, que pode ser recortado, aproximando- o da escultura. Em seguida, fiz uma série de trabalhos que associava uma imagem central a um conceito traduzido por materiais acoplados a uma caixa de acrílico, que envolvia o quadro. Na pintura-objeto Polution, uma imagem de chaminé de fábrica é envolta por uma fibra de algodão com fuligem, reforçando a força da imagem central. No trabalho Third World, personagens em revolta são envolvidos por restos de roupas pertencentes a um guerrilheiro urbano. Sobre a exposição Cor/Pigmento/Luz Era uma mostra que discutia a cor, como se fosse um palco que representava o conceito da cor: por subtração e adição. A mistura subtrativa da cor é a que se dá através da combinação dos diversos pigmentos. A mistura aditiva é a que vemos a partir da incidência de raios de luz sobre sua superfície. Então, essa exposição era a cor/pigmento e a cor/luz, que na tela eram representadas por superfícies de cor “chapada” e por retículas, que representavam os feixes de luz. Haroldo de Campos fez um poema, tomando cada uma das cores, e as incorporava ao seu texto. 1970 Fiz alguns trabalhos de programação visual, o que proporcionou um bom contato com a indústria gráfica. Toda aquela questão da retícula, de transformar uma imagem em quatro fotolitos, uma série de pontos que iam se sobrepondo e resultando na imagem, o que acabou por me influenciar nos trabalhos seguintes, em que utilizei bastante a re-
ARTES VISUAIS
primeiro SEMESTRE
2015
53
Palavra do artista
tícula na composição de minhas imagens. E essa
forma final do quadro. Eram trabalhos recortados
estrutura reticular é constituída pela superposição
que rompiam a barreira do limite entre a pintura e
de pigmentos, que depositam na tela as caracterís-
a escultura, pois tangenciavam as duas categorias.
1990/2000
ticas de matiz, claridade e saturação de cada cor.
Eram objetos-recortes. Recentemente, retomei
Recentemente, retomei esse signo criando as
esse signo, criando as Arquiteturas imaginárias.
Arquiteturas imaginárias. No início dos anos 1990, fiz uma série de trabalhos com volumes
Anos 80: Cor como construção do espaço Tomamos como ponto de partida dois caminhos
Anos 1990/2000: Arquiteturas imaginárias
e formas orgânicas expandidas. Eram trabalhos
para entrarmos na obra do artista neste período:
A produção recente de Tozzi vai refletir a maturi-
de grandes dimensões, que utilizavam espuma
primeiramente, os jogos de metáforas criados pe-
dade de seu discurso pictórico. A cor constrói o es-
de poliuretano expandida, envolta por um tecido
los temas apresentados em séries de obras como
paço, e os planos de arquiteturas imaginárias não
que definia seu contorno. Eram amebas e for-
Parafusos, Escadas, Passagens e as tramas urba-
existem no mundo real, apenas na obra do artista,
mas orgânicas, que dialogavam com a estrutura
nas que transformam a cidade em peças de um
no aqui e agora, no encontro do espectador com
construída do quadro. Um desses trabalhos –
jogo combinatório de construções lógicas. E o
a obra, mundos abstratos, mundos construídos
Expansão, de 3 x 3m – pertence, hoje, ao acervo
segundo caminho, da cor que constrói o espaço,
por um arquiteto. Suas ferramentas são a cor e o
do Museu de Arte Contemporânea da USP. Fo-
pesquisa que se inicia em meados dos anos 1970
espaço. As alusões a coisas reais funcionam como
ram expostos na Bienal de 1991, no Museu da
e se consolida nos anos 1980. A figura vai se di-
meros pretextos para construir o espaço da obra.
Casa Brasileira e no Museu de Arte Moderna do
luindo até sumir completamente e ficarem apenas
O artista reencontra diversos elementos que sur-
Rio de Janeiro, em 1993.
os elementos plásticos – cor, linhas, planos, formas
giram em períodos anteriores, só que agora des-
Minha preocupação é fazer um trabalho que
e composição –, mesmo que esses construam ar-
providos de sua função metafórica. Escadas não
não seja só pintura, que tenha uma relação com a
quiteturas imaginárias. Frederico Morais define
são mais escadas, parafusos se escondem entre
cidade, com os espaços nela contidos, de até tra-
Tozzi como um artista abstrato a rigor, um artista
linhas e formas, a cidade “não existe”, é um jogo de
balhar em equipes, participando de projetos junto
construtor de imagens, que trata a imagem como
planos e retângulos no espaço; o artista constrói
com arquitetos, com designers, de uma forma in-
um designer: isola, agiganta, congela, junta, repete,
como arquiteto, mas vê o mundo e nele interfere
terdisciplinar.
fragmenta, divide, soma, multiplica.
como artista.
Palavra do artista 1970/1980 Inicialmente as escadas, depois as passagens e, mais recentemente, as arquiteturas imaginárias são uma interpretação do espaço mais intimista – o microespaço, com a intuição de criar um campo semântico onde a escada é um signo, o representar simbólico dos interstícios da vida. As primeiras escadas realizei em 1977, ainda utilizando a técnica em que um rolo de borracha reticulada depositava a tinta sobre a tela. Em 1984, retomei o projeto e realizei a exposição Passagens. Haroldo de Campos acompanhou esses trabalhos e escreveu o texto Uma poética do entre, no qual a frase inicial define bem a série: “Escadas que não conduzem a nada, senão à sua própria monumentalidade sígnica.” Nesta exposição, além dos quadros em formatos tradicionais, realizei objetos recortados, nos quais a própria construção da imagem determinava a
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
POR João Luis Pereira Ourique
54
Professor adjunto da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), líder do Grupo de Pesquisa CNPq ÍCARO (UFPel) e pesquisador dos Grupos de Pesquisa CNPq Literatura e Autoritarismo e Formação Cultural, Hermenêutica e Educação da UFSM
1. O título remete ao primeiro verso do poema Colloque sentimental, de Mário de Andrade, publicado em Pauliceia desvairada (1922) e em Poesias (1941): “Tenho os pés chagados nos espinhos das calçadas...”. 2. Terceiro verso do poema Colloque sentimental, de Mário de Andrade. A relação com o poema não apenas oportuniza um olhar a partir do cenário urbano pelo qual transitava João Simões Lopes Neto, mas também evidencia a importância da cidade de Pelotas, que contava com mais de 100.000 habitantes àquela época (conforme aponta o Atlas Socioeconômico do Rio Grande do Sul), enquanto que São Paulo, no início do século 20, “tinha 240.000 habitantes, grande parte formada por fazendeiros, caipiras, ex-escravos e imigrantes, em sua maioria, operários artesãos e profissionais liberais” (TARASANTCHI, Ruth Sprung. Pintores paisagistas: São Paulo – 1890 a 1920. São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de SP, 2002. p. 32).
João Simões Lopes Neto nos espinhos das calçadas[1]
A música Colorada[3], de Aparício Silva Rillo e Mario Barbará Dornelles, enfatiza esse tempo de revolução, das guerras, das degolas, da corrupção política e da divisão brutal que marcou o Rio Grande do Sul na última década do século 19. Sua letra, dividida em duas partes (Visão e Relato), procura elaborar uma visão histórica crítica do período de barbárie. I – Visão Olha a faca de bom corte, olha o medo na garganta o talho certo e a morte, no sangue que se levanta. Onde havia o lenço branco, brota um rubro de sol por
Imaginemos os ponteiros do relógio movendo-
se o lenço era colorado,
-se na direção contrária e o próprio tempo
o novo é da mesma cor.
acompanhando esse percurso, a arquitetura mudando, mas permanecendo familiar – Casas
Quem mata chamam bandido,
nobres de estilo... Enriqueceres em tragédias....[2]
que morre chamam herói
Os ponteiros param e o calendário mostra o ano
... o que dói em quem morre,
de 1893, mais precisamente o dia 9 de março,
na mão que abate não dói.
data que 28 anos antes marcava o nascimento do homem que transita pelas ruas da cidade de
II - Relato
Pelotas, no Sul do Rio Grande do Sul. O jovem
Era no tempo das revolução,
João Simões Lopes Neto, que um ano depois
das guerra braba de irmão contra irmão,
seria nomeado tenente da Guarda Nacional,
do lenço branco contra os lenço colorado,
atingindo o posto de Capitão em 1901, caminha
dos mercenário contratado a patacão.
pelas ruas agitadas em decorrência do início dos conflitos da Revolução Federalista, a qual se
Era no tempo que os morto voltava,
constituiria em uma das guerras mais sangren-
e governava os vivo até nas eleicão.
tas que os gaúchos vivenciaram... e não foram
Era no tempo do combate a ferro branco,
poucas. As lutas entre maragatos, integrantes
que fuzil tinha mui pouco e era escassa a munição.
do Partido Federalista, os quais usavam o lenJoão Simões Lopes Neto (9 de março de 1865 – 14 de junho de 1916)
ço vermelho com símbolo, e pica-paus, adeptos
Era no tempo do inimigo não se poupa,
do Partido Republicano, tendo como emblema o
prisioneiro era defunto e se não fosse era exceção.
Capa da peça O Boato, datada de 1894, que se constitui na primeira obra literária de João Simões Lopes Neto publicada na forma de livro.
lenço branco, renomearam o período de 1893 a
Botavam nele a gravata colorada,
1895 como a Guerra da Degola.
que era o nome da degola nesses tempo de leão.
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
55
3. Composição premiada na Linha Projeção Folclórica da 7ª Califórnia da Canção Nativa realizada em 1977. Fonte: encarte do álbum triplo (Long Play) em comemoração aos 20 anos da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. RGE, 1990. 4. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 82. 5. Jornal no qual também viria a publicar, no ano de 1914, os casos do Ramualdo, organizados em formato de livro no ano de 1952 por Carlos Reverbel. 6. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 84. 7. HOHLFELDT, Antônio. Simões Lopes Neto. Porto Alegre: Tchê, 1985. p. 35. 8. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 88.
continuo a ser... Capitão da Guarda Nacional.” O
dão conta do sucesso da peça, que foi reapresen-
escritor João Simões Lopes Neto morreu em 14
tada no dia seguinte e nos dias 16 e 17 de dezem-
de junho de 1916, com apenas 51 anos de idade,
bro em benefício da Santa Casa de Misericórdia.
mas o nosso tempo, 150 anos depois do seu nas-
Serafim Bemol (Simões Lopes) e Mouta-Rara
cimento, não permite mais testemunhas oculares,
(Gomes Mendes) também contaram com a colabo-
nem relatos de pessoas que o conheceram no iní-
ração do maestro Manoel Acosta y Olivera para a
cio de sua atividade de escritor.
composição da partitura especial da peça, que aca-
Vamos tentar permanecer naquele passado e vivenciar com ele preocupações e partilhar da sua
bou sendo publicada no ano seguinte pela Echenique & Irmão – Editores.
energia e vitalidade nos seus primeiros escritos.
A partir de uma leitura de O Boato podemos
Passados mais de seis meses, em 15 de outubro,
entender e perceber a inserção do escritor pelotense
nas páginas do Correio Mercantil[5] e utilizando
no cenário urbano e no meio social de seu tempo. A
o pseudônimo de Serafim Bemol, publicou o pri-
crítica irônica – quase sarcástica – presente na peça
meiro capítulo da novela de folhetim A Mandin-
e que teve boa aceitação do público, além de evi-
ga, em colaboração com Dom Salústio e Sátiro
denciar um brilhante início e apontar para um pro-
Clemente, sendo que o último dos 15 capítulos
missor futuro, nos permite chagar nossos pés nos
foi publicado em 14 de dezembro de 1893. Essa
mesmos espinhos das calçadas de Pelotas naquele
narrativa urbana, “urbaníssima mesmo, no seu
final de século. Além disso, essa produção, assim
Conforme a biografia de Carlos Francisco Sica
argumento e na sua cena” , já apresentava se-
como as demais peças que integram sua literatura
Diniz, “João Simões Lopes não aderiu à revolução,
melhanças com a dramaturgia em virtude da
dramática – consideradas obras menores em com-
mantendo-se fiel ao Partido Republicano. A fidelida-
“intensa movimentação de entra-e-sai das per-
paração com os Contos gauchescos (1912) e as Len-
de aos antigos ideais republicanos, como parece ter
sonagens, muito semelhantes ao teatro, em que,
das do Sul (1913) por muitos críticos e historiadores
sido o caso de Simões Lopes, não significava estar
justamente nesse ano de 1893, João Simões vai
–, não pode ser vista apenas como um processo de
em apoio às perseguições politicas que porejavam
estrear”[7].
amadurecimento do escritor, mas sim como algo
[6]
no Rio Grande, a partir da retomada do poder pelos
Não podemos afirmar que a primeira pro-
relevante também para, nos dias de hoje, romper
castilhistas, em junho de 1892. Já filiado ao Partido
dução de João Simões Lopes Neto tenha sido
com a denominação única de escritor regionalista a
Republicano e nomeado tenente da Guarda Nacio-
A Mandinga e nem que a movimentação presente
ele atribuída. Devemos sempre considerar que João
nal, sem, no entanto, entrar em combate contra os
nesta narrativa tenha sido pensada inicialmente
Simões Lopes Neto é um escritor relevante para a
federalistas revolucionários, Simões Lopes manteria
para aquele texto ou que, pelo fato de já ter apre-
cultura, a leitura de suas obras renova perspectivas
sempre uma postura sóbria, um tanto avessa às
sentado a leitura da peça O Boato na “noite de
e lança novos olhares sobre aquilo que já se consi-
campanhas partidárias.”
13 de setembro, em sua residência e na presença
derava intocável e inquestionável.
[4]
Casado há menos de um ano (em 5 de maio
de alguns amigos, do subintendente do município
O próprio gênero – o texto dramático – é algo a
de 1892), podemos acompanhar o início de seus
e de representantes da imprensa” , tivesse ocor-
ser debatido nesse processo. Tanto que já é comum
empreendimentos naquele distante março de
rido o inverso: a linguagem do texto dramático
a menção de que a experiência como dramaturgo
1893 – a maioria resultando em fracasso advindo
permeando a narrativa do folhetim. Escrita em
de João Simões Lopes Neto se faz presente na cons-
de várias e diferentes circunstâncias – e entender
parceria com Gomes Mendes – cunhado de João
trução de seu principal personagem-narrador: Blau
que os percalços que enfrentou na sua vida pro-
Simões Lopes Neto – a peça foi encenada pelo
Nunes. O velho Blau transpira uma força cênica em
fissional podem ser resumidos na conhecida de-
grupo amador Sociedade Dramática Particular
um palco rústico, em que podemos perceber o mo-
claração feita de próprio punho pelo escritor: “Eu
Beneficiente Thalia na noite de 25 de novembro
vimento de um ator, tanto que é muito frequente
tive campos, vendi-os; frequentei uma academia,
no Teatro Sete de Abril. Notícias publicadas no
nos depararmos com adaptações das suas obras
não me formei; mas sem terras e sem diploma,
Correio Mercantil de 28 de novembro de 1893
mais reconhecidas para o teatro.
[8]
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
56
9. WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Tradução: Rogério Bettoni. Sãoo Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 227. 10. GAUDÉ, Laurent; KUNTZ, Hélène; LESCOT, David. Conflito. In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução: André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 11. BAILLET, Florence; BOUZITAT, Clémence. Ironia/humorismo/grotesco. In: SARRAZAC, Jean-Pierre. (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução: André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 98. 12. DINIZ, Carlos Francisco Sica. João Simões Lopes Neto – uma biografia. Porto Alegre: AGE/UCPel, 2003. p. 91. 13. Curiosamente podemos ler, na publicação de O Boato, uma propaganda do Almanaque Popular Brazileiro para o ano de 1895, reiterando a importância e a popularidade desse tipo de publicação, além de estabelecer um diálogo da comédia com o contexto para além da própria trama.
Em O Boato, portanto, podemos perceber uma intensa movimentação, o espaço das ruas da cidade
progresso, se somam para compor um novo ce-
veniência, à apologia da vida de aparências em
nário do qual podemos fazer parte.
contraste com o desfile dos credores da porta
sendo tomado de assalto pela ação da escrita.
Raymond Williams aborda a questão da
e inevitáveis falências comerciais, às querelas
Esta tentativa, presente na descrição dos espa-
ação e escrita no drama. Afirma que o “pro-
com a Igreja Católica, numa miscelânea cômi-
ços pelos quais a plateia transitou no caminho
blema do edifício teatral volta a nos assediar,
co-burguesa que, assim como agradou, deve
para o Teatro Sete de Abril, pelo reconhecimento
pois nossa dificuldade mais evidente agora é
ter também arrepiado os cabelos de muitos fi-
dos espaços abertos (ruas, casas, praças), procu-
a equação entre o drama e o teatro enquanto
gurões da cidade.”[12]
ra abolir, ainda que simbolicamente, as paredes
espaço físico. Para muitos teatros do passado,
Essa crítica começa a ser mostrada a partir
do espaço físico do teatro[9]. Os quase 122 anos
era possível escrever e representar os tipos de
do cenário da escola, espaço no qual as crianças
que nos separam daquelas apresentações não
ação mais abertos. Gradualmente, no entanto,
estão “abertas”, por assim dizer, às más influên-
impedem que percorramos esses mesmos es-
paredes foram sendo construídas ao redor da
cias (denotando um certo moralismo aos olhos
paços. Suas diferenças, as transformações pelas
ação e da cena como um todo. Uma arte aber-
de hoje, mas interessante como argumento cêni-
quais a cidade passou, os rastros deixados pelo
ta e móvel tornou-se relativamente estática e
co para o desenrolar das ações que dependerão,
enquadrada, e uma 'arte do teatro' bem distin-
em grande parte, da manipulação exercida sobre
ta se desenvolveu assumidamente dentro des-
os estudantes) do sucessor do professor Boa-Fé.
ses limites. Houve uma ruptura entre escrita e
Ao apresentar o novo mestre aos alunos, Boa-Fé
ação, a qual foi se tornando mais evidente nas
relata suas impressões, suas decepções e seus
sucessivas fases da cultura teatral.
preconceitos, juntamente com uma preocupa-
A urbanidade de João Simões Lopes Neto
ção sincera e genuína para com seus alunos.
que são apresentados
A toda essa discussão que compõe o Prólogo, o
em sua peça de estreia e que estão estreita-
sucessor possui uma atitude ora distanciada, ora
mente relacionados com as contradições de
entusiasmada com as possibilidades que vislum-
seu tempo – das quais não estava imune, con-
bra para atingir suas ambições pessoais. O nome
forme uma leitura de sua biografia pode de-
desse professor, que dá o título da peça, merece
monstrar. A comédia nos possibilita perceber
toda a nossa atenção: “– Borromeo Almanak de
uma ampliação do choque entre duas reali-
Boato – um seu criado.” É pela sua própria fala
dades distintas. O efeito irônico[11] é constan-
que somos apresentados a ele. A composição
temente reiterado, provocando a comicidade
do nome emprega o termo Almanaque, que era
com base em uma crítica mordaz, visto que
uma espécie de Enciclopédia Popular[13], uma
não fica “somente na crítica à administração
publicação que apresentava uma miscelânea de
pública da cidade. Estende-se ao anedotário da
conteúdos (desde informativos até de entreteni-
sociedade local, com seus casamentos de con-
mento) e que podemos ainda encontrar na con-
destaca os conflitos
Fonte das Nereidas – final do século 19
Acervo Bibliotheca Riograndense (Reprodução digital gentilmente cedida pela Prof.ª Dr.ª Arq.ª e Urb.ª Aline Montagna da Silveira para o volume 3 do Almanaque do Bicentenário de Pelotas, p. 235).
Foto da atual Fonte das Nereidas, chafariz da Praça Coronel Pedro Osório – 2015 Foto: João Ourique
Primeira torre do primitivo Mercado Público Central de Pelotas, em alvenaria Foto da atual torre do Mercado Público de Pelotas – 2015 Foto: João Ourique
[10]
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
57
14. LOPES NETO, João Simões; MENDES, Gomes. O Boato. Pelotas: Echenique & Irmão, 1894. p. 19. 15. LOPES NETO, João Simões; MENDES, Gomes. O Boato. Pelotas: Echenique & Irmão, 1894. p. 18. 17. BOSI, Alfredo. A figura e a ação do tempo. In: _____. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 62.
mentos distorcidos, como podemos perceber na
teratura brasileira. João Simões Lopes Neto é
transcrição dos artigos 1º e 2º, que o professor
mais – aqui, no sentido de amplitude – do que
Boato apresenta como seu programa de estudos:
o regionalismo que o consagrou. É possível dis-
“art. 1º só se estuda quando se quiser, mas tem-se
cutirmos os argumentos de Walter Benjamin
de metter o bedelho em tudo que é obrigatoria a
sobre o papel da imprensa e sua relação com o
frequencia da aula, por causa do meu exemplo,
intelectual no clássico texto O autor como pro-
que é salutaríssimo... (…) Art. 2º: de hoje em dian-
dutor com a produção simoneana: “O próprio
te quem contar um conto hade acrescentar-lhe
mundo do trabalho toma a palavra. A capacida-
uma mão ou as duas, ou todas as quatro, no cazo
de de descrever esse mundo passa a fazer parte
do ouvinte engulir bem as araras.”[15]
das qualificações exigidas para a execução do
A crítica à sociedade pelotense da época
trabalho”[16]. A reflexão de Benjamin sobre a im-
fica mais visível a partir da leitura da distribui-
prensa e o papel do intelectual como produtor
ção dos quadros, os quais apresentam espaços
da cultura não encontraria melhor exemplo do
temporaneidade publicações que atualizaram a
conhecidos da cidade. Destacamos o Redondo
que em Simões Lopes. Não apenas pelo fato de
proposta original (como é o caso do conhecido
da Praça e o interior do Mercado para transi-
o escritor gaúcho ter se utilizado do jornal para
Almanaque Abril). Borrar, então, esse almana-
tarmos nos mesmos espaços em tempos dife-
veicular suas obras e opiniões, mas também por
que de boatos seria corromper um conhecimen-
rentes, o de Pelotas por volta de 1900 e no ano
entender o papel que esse diálogo oportuniza
to básico daquela sociedade, evidenciando os
de 2015, conforme as imagens acima.
com a formação cultural, entrelaçada cada vez
desvios de caráter do protagonista da comédia.
E é com base nessa perspectiva de leitu-
mais com as questões cotidianas do seu tempo
Os jovens, após as orientações do novo mes-
ra que podemos empreender uma discussão
e também do nosso, pois “o que se esvaiu no
tre, tratam o mundo como sua presa, cantando
relevante para questionar aspectos consolida-
tempo do relógio persiste nas marés da memó-
em coro com o professor: “Quem falar agora /
dos acerca da produção de João Simões Lopes
ria e do desejo. Quem vive o presente e se volta
admirando o facto: / E’ d’estylo novo / A escola
Neto. Reconhecê-lo somente como regiona-
para olhar o passado sabe, por íntima experiên-
do Boato ! // Boato – A’ unha o mundo ! (gestos)
lista não pode se constituir, após a leitura dos
cia, que o futuro existe, precisamente porque o
/ Todos – A’ unha ! a’ unha ! (idem)” . O que an-
seus textos dramáticos, como o único viés para
seu presente é o futuro do passado”[17].
tecede essa cantiga é um desenrolar de ensina-
compreender sua inserção no contexto da li-
[14]
O Biênio Simoniano no Sesc/RS Serão dois anos de programação intensa pelo Rio Grande do Sul em homenagem aos 150 anos do nascimento de Simões Lopes Neto, em 2015, e 100 anos da sua morte, em 2016. Ao longo do chamado Biênio Simoniano, o Sesc/RS promoverá e apoiará diversas atividades referentes à obra do escritor. Além de realizar 45 feiras de livros em parceria com prefeituras, universidades e outros parceiros locais, a instituição promoverá feiras de livros em 10 municípios: Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires, Bagé, São Leopoldo, Ijuí, Bento Gonçalves, Taquara, Parobé, Estância Velha e Gravataí. A proposta é traba-
lhar nessas feiras a mostra didática João Simões Lopes Neto – O escritor da alma gaúcha, debates, oficinas e contação de histórias. A mostra didática, independentemente das feiras, está em circulação pelo Estado desde 2012 nas unidades do Sesc, nos centros culturais e nas escolas. Para os anos de 2015 e 2016, está prevista a passagem da mostra, em formato de banners, nas cidades de Venâncio Aires, Santana do Livramento, Rosário do Sul, São Gabriel, Cacequi, Montenegro, Ijuí, São Leopoldo, Uruguaiana, Carazinho, Soledade e Alegrete. As 16 bibliotecas fixas do Sesc/RS terão como temática, no mês de
setembro, em 2015 e em 2016, a obra do escritor pelotense. Além do destaque para suas obras nas bibliotecas, serão promovidas ações como rodas de leitura, contação de histórias, debates com estudantes e grupos Sesc Maturidade Ativa. Bagé, Cachoeirinha, Canoas, Carazinho, Caxias do Sul, Chuí, Erechim, Frederico Westphalen, Gravataí, Lajeado, Passo Fundo, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento, Taquara e Uruguaiana são os municípios que contam com bibliotecas fixas. No caminhão Recrearte, que circulará por 28 cidades das regiões
de Carazinho, Erechim, Passo Fundo, Frederico Westphalen, Santa Rosa, Santa Maria e Lajeado, será exibido o filme Contos gauchescos, de Henrique de Freitas Lima. Já o projeto Sesc Mais Leitura prevê para 2016 a abordagem da temática em 15 cidades – Bagé, Cachoeirinha, Canoas, Carazinho, Caxias do Sul, Erechim, Frederico Westphalen, Gravataí, Lajeado, Passo Fundo, Porto Alegre, Santa Cruz do Sul, Santana do Livramento, Taquara e Uruguaiana – contemplando 30 mil estudantes da rede pública.
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
POR Rodrigo Rosp
58
Escritor e editor pós-graduado em estudos linguísticos do texto pela UFRGS, mestrando em escrita criativa na PUCRS. Lançou os livros de contos A virgem que não conhecia Picasso (2007), Fora do lugar (2009) e Fingidores (2013). É um dos organizadores da coletânea Por que ler os contemporâneos? (2014)
Literatura contemporânea linguagem, contexto e estética Durante o ano de 2014 percorri o interior do Rio
O primeiro é a linguagem. Quando falo em
ção a uma obra de arte não se dá apenas pelas
Grande do Sul dando palestras para jovens, a
linguagem, não me refiro apenas ao vocabulário:
emoções, pelo que se sente — se dá também
maioria do ensino médio. Na ocasião, eu lia tre-
vale, sim, para o léxico, mas também para a sintaxe,
pela forma. Admirar intelectualmente um livro
chos de livros de autores contemporâneos gaú-
a construção da frase, o ritmo. A linguagem é a
é uma maneira de sentir prazer ao contato com
chos, todos desconhecidos do público escolar.
roupa da literatura, e uma literatura contemporâ-
ele. Assim, a literatura contemporânea é rica em
Os alunos mostraram entusiasmo genuíno pelos
nea se aproxima mais do que as pessoas vestem
inovações; como sinal do tempo, é muitas vezes
textos, mas o mesmo não acontecia com suas lei-
nas ruas. Nesse sentido, a fala de 50, 100 ou 200
fragmentada, não linear, rompe as fronteiras não
turas obrigatórias de sala de aula.
anos atrás apresenta variações enormes em rela-
só entre os gêneros, mas entre os limites da pró-
Passei o ano refletindo bastante sobre isso.
ção aos padrões atuais. E o mesmo vale para o rit-
pria literatura (com uso de imagens, variações de
A minha explicação para o fenômeno é relativa-
mo: um texto de hoje tem a velocidade dos nossos
formato, releituras e reinvenções). Para os leitores
mente simples: a literatura contemporânea con-
tempos. Tudo isso são vantagens na comunicação
mais experientes (ou mesmo para os menos, mas
seguiu se comunicar com o público formado por
com os leitores.
com capacidade de virem a sê-lo), toda essa ener-
jovens, ao contrário do que costuma acontecer
O segundo é o contexto. A literatura que está
com os textos mais antigos. A questão reside não
sendo escrita no século 21 está falando das ques-
só em falar a mesma língua, mas também em li-
tões do século 21. Se por um lado o ser humano
Para mim, tudo isso indica um caminho de
dar com o ritmo, a forma, os temas, os dramas do
tem, na essência, os mesmos dilemas de Édipo e
crescente interesse no que está sendo produzido
mundo contemporâneo.
de Hamlet, as mudanças sociais são muitas atra-
pelos escritores do nosso tempo. E há diversas
gia e explosão de técnica pode ser um motivo a mais para a fruição.
Nesse sentido, a grande adesão dos jovens a
vés dos tempos. É evidente que a literatura que
oportunidades para esses autores: a quantidade
coleções inteiras como Harry Potter, Crepúsculo
sobreviveu através dos séculos até os dias de hoje
de feiras, festas, ciclos, debates e todo tipo de
e Game of Thrones indica que, talvez, o proble-
tem a característica de lidar com aspectos huma-
evento literário tem proporcionado ao autor de
ma não seja ler, mas o que ler. Eis que aí se abre
nos atemporais. A prosa atual, no entanto, aborda
hoje uma exposição (tanto na mídia como ao vivo,
espaço para a literatura contemporânea, não só
também o contexto de hoje, uma sociedade talvez
muitas vezes) que, somada aos fatores do texto
a dos best-sellers, amplamente difundida, mas,
idêntica no âmago, mas com características muito
em si, deve contribuir para o maior alcance e cir-
sobretudo, a dos novos autores gaúchos, brasilei-
diferentes no modo de viver. Além disso, há, na li-
culação de obras de grande valor literário.
ros, uma literatura que se caracteriza tanto pela
teratura de hoje, a chance de explorar o contexto
inovação quanto pela grande qualidade técnica.
enquanto cenário. É interessante ler uma ficção
O exemplo dos jovens serve apenas para
que se passe na minha cidade, nas ruas que eu co-
ilustrar uma questão que pode e deve valer para
nheço (ou em cidades que eu já visitei, com pontos
boa parte dos leitores. O que faz com que a lite-
que eu possa reconhecer). Isso aumenta a empatia
ratura contemporânea se comunique mais efeti-
e permite que o leitor se ambiente melhor.
vamente com o leitor atual? Penso que a resposta envolva três aspectos.
Para completar, existe a estética. É um ponto também interessante, uma vez que a admira-
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
POR Gustavo Czekster
59
advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor. Em 2011, lançou o livro O Homem Despedaçado pela editora Dublinense
Três mortes para Maria Teresa Ao atravessar a avenida, Maria Teresa olhou so-
rá a minha mão, chorando, e todas as pessoas do
Teresa foi chamada. Sua mãe parecia resplan-
mente para um lado, e o que era para ser esque-
reino estarão tristes, e quando eu morrer choverá
decer na chegada da morte. Eulália encarou-a
cimento tornou-se seu último erro. A motocicle-
bem fininho, aquelas chuvas que deixam a gente
longamente e, com olhos arregalados, vaticinou:
ta dirigida por Otávio Luz de Souza, trinta anos,
agoniado sem saber porquê.” Amâncio estourou
“Morrerás em chamas, ardendo no fogo dos teus
atingiu-a em cheio. O ferro contorceu-se em um
em soluços, inclinou-se sobre a menina e jurou,
pecados. Morrerás sozinha, pior do que um ca-
baque, enquanto a mulher de saia xadrez e cabelos
“jamais deixarei que morra”, beijando levemente a
chorro sem dono. Sentirás muita dor e nunca en-
desalinhados voava, atravessando a avenida como
sua testa. Era ainda com a recordação dos lábios
trarás no Reino dos Céus, pois cometeste o pior
um anjo perdido, bailarina desastrada no meio
suados de Amâncio que Maria Teresa foi atingida
crime, decepcionar aquela que te deu vida.” Logo
das luzes. O tempo parou, o mundo imobilizou-
no meio do seu voo de passarinho pelo ônibus
após dizer estas palavras, emendou um Hosana às
-se e Maria Teresa, liberta da dor atroz do braço
prefixo 356, dirigido por Antônio Tavares, trinta
Alturas e morreu rindo, cercada por anjos invisí-
quebrado, do sangue que surgia debaixo do suéter
e dois anos, que trafegava em sentido contrário.
veis e pelo dedo-duro do Menino Jesus de Praga.
e da pontada súbita no seu lado direito, sonhou.
Os pneus do ônibus guincharam, abafando o grito
Ainda lembrando o sorriso tétrico de Eulália ao
Quando era pequena, correndo pelos campos do
seco de Maria Teresa, jogada para o outro lado da
prever a sua morte, o tempo voltou a correr com
pai, apaixonou-se em segredo pelo capataz da
avenida. O tempo parou, o mundo imobilizou-se
pressa e Maria Teresa foi atingida por um Monza
estância. Negro, careca, com a barba sempre por
de novo, e Maria Teresa, liberta da dor que subia
dirigido por Icléia Fagundes, dezenove anos, sen-
fazer, Amâncio era o único que escutava seus so-
em ondas do joelho esmigalhado, da cabeça que
do arremessada na direção da calçada, deixando
nhos de menina. Durante dias infinitos, enquanto
parecia solta sobre os ombros e do rugido da sua
atrás de si um rastro de sangue e veículos para-
ele cuidava do rebanho, Maria Teresa imaginava
coluna vertebral sendo realinhada à força dentro
dos. Tentou respirar fundo e doeu, tentou erguer-
um local onde seria princesa, em que as vidas de
do corpo, transportou-se para outro sonho. To-
-se e seus braços não obedeciam, tentou sorrir e
muitas pessoas dependeriam das suas palavras. Em
dos os dias, sua mãe, Eulália, ajoelhava-se sobre o
sangue escorregou dos lábios finos. Pés estavam
uma tarde de calor, sentado na margem do açude,
milho no canto do quarto e rezava. O choro con-
lhe cercando, gritos e sirenes brincavam no pesa-
Amâncio rompeu o silêncio: “E a sua morte, como
fundia-se com os seus agradecimentos, enquanto
delo. Mexeu o pescoço, sentindo-o estalar, e per-
será?”. Em dez anos de vida, ela nunca pensara em
implorava para Deus que transformasse sua filha
cebeu um gato branco, distante alguns metros.
morrer. Mas improvisou: “Morrerei deitada em
em santa. Às vezes ela arrastava Maria Teresa e
O olho felino lhe contou outra morte, revelando
uma cama, bem velhinha, e um príncipe segura-
mostrava o seu rosto para o Menino Jesus de Pra-
uma boneca arrebentada, pernas e braços con-
ga, forçando-o a lembrar do semblante da filha
torcidos em ângulos estranhos, o cabelo desgre-
no momento de distribuição das graças divinas.
nhado repleto de sangue. Maria Teresa deixou a
Na escuridão cúmplice do quarto, a menina pedia
cabeça tombar na calçada e morreu em silêncio
para não virar santa, doía tanto ajoelhar sobre o
até o último segundo, quando o estertorar do seu
milho! Os dias passavam e ela permanecia huma-
peito fez o gato afastar-se correndo, entrando
na, até que, uma manhã, Eulália ficou na cama e
nas sombras de um beco.
o médico disse que ela não iria sobreviver. Maria
literatura
primeiro SEMESTRE
2015
POR Gustavo Czekster
60
advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor. Em 2011, lançou o livro O Homem Despedaçado pela editora Dublinense
Cristais Ela sabe. Essa é a única explicação. Há meia hora
permite pausas que me façam iniciar o assunto, e
tento dizer que o nosso casamento acabou e Dé-
eu a odeio em silêncio por estar me convencendo
bora não para de falar besteiras, o dia em que seu
a desistir. Invento uma tosse, pigarreio, e então
gato se esborrachou na janela da cozinha, a falta
ela começa a discursar sobre as gripes que nos
de tempero na comida do restaurante e outras
afligem no meio das estações e de como estão re-
histórias que não me interesso em saber mas sou
lacionadas com a falta de vitaminas. Outro vidro
obrigado a ouvir. Deve ter pressentido as palavras
se parte em algum lugar distante e esforço-me
esboçadas que espreitam dentro da minha boca.
para não ceder à curiosidade e saber quem foi o
Ela tenta adiar o momento, cansar a minha paci-
desastrado da hora. Encaro Débora com firmeza e
ência, fingir uma última janta tranquila antes da
rezo a Deus para que cale a sua boca só por um
separação e suas confusões. O restaurante é mo-
minuto. Os olhos azuis revelam que ela já sabe
desto e pouco frequentado, ideal para uma con-
o que desejo. Está com tanto medo da realida-
versa a sós. Atrás de Débora, o vidro trincado com
de que as suas histórias se descontrolam, e não
vistas para a rua revela as pessoas correndo na
pensa mais no que diz, assim como eu não estou
chuva que inicia. A minha quase ex-mulher está
dando atenção. Escuto o trincar de cristais e per-
estragando o meu plano, já olhei o relógio três
cebo que alguém acabou de pisar nos cacos que
vezes e ela não percebeu, desejo um segundo de
estavam no chão. Um segundo de tensão percorre
silêncio para pôr fim aos treze anos de casamen-
o restaurante, antecedendo o violento estilhaçar
to, seria pedir demais? Permaneço estático, giran-
de copos, vidros e pratos que irrompe da cozinha.
do no dedo o anel de que logo me libertarei, e
Escuto risadas e murmúrios. Mantenho a concen-
sinto como se fosse um tigre que espera a distra-
tração em Débora, não posso me distrair agora.
ção da vítima para arrancar a sua cabeça em uma
A rachadura no vidro parece se ampliar e envol-
patada. Débora fala sem parar, e consigo cheirar
ver minha mulher, cortando-a em duas metades.
o desespero por trás dessa verborragia. O suspiro
Os pingos na vidraça desvanecem a imagem que
escapa, vamos logo, deixe-me dar o golpe de mi-
outro eu tanto gostou no passado, hoje transfor-
sericórdia nesse casamento que nunca deveria ter
mada em sombra de água escorrida. Estou cansa-
acontecido. Um gesto repentino e o copo que es-
do de ouvir esta voz que me irrita e envergonha
tava na sua frente cai da mesa, despedaçando-se.
e, por um momento, penso em desistir, como fiz
Mesmo assim, ela não desiste de falar, pedindo
em várias oportunidades nos últimos seis meses,
desculpas, enquanto as pessoas nos olham com
deixar para outra ocasião, e este pensamento é
curiosidade irritante. O garçom corre para juntar
o impulso para que a frase se precipite como a
os cacos e, por alguns segundos, eu me distraio
pedra deixa o estilingue:
vendo a rapidez com que ele retira o que um dia
– Cale a boca.
foi copo, deve ser vergonhoso para um garçom
Despedaça-se o último cristal da noite em lágri-
admitir que cristais têm vida limitada, basta uma
mas azuis.
batida e só resta a memória do vidro. Débora não
LEITURA
primeiro SEMESTRE
2015
61
Morte em Veneza Thomas Mann
Almanaque do Lupi Marcello Campos
A Tela Global Gilles Lipovetsky e Jean Serroy
O prazer do poema: uma antologia pessoal
Nova Fronteira
Editora da Cidade/Letra & Vida
Editora Sulina
Ferreira Gullar Edições de Janeiro
Publicado pela primeira vez em 1912.
Desde o ano passado, comemora-se
A grama do vizinho nunca esteve
O século 20 na cidade de Veneza. A
o centenário de Lupicínio Rodrigues
tão verde. Nem a nossa, diga-se de
Poetas são, na maioria das vezes, os
história do escritor de meia-idade
e, merecidamente, as festividades
passagem. Um ângulo bem escolhido
maiores credenciados a organizar
Von Aschenbach, que se apaixona
e homenagens seguem por esse
aqui, um bom filtro de Instagram ali,
antologias de poesia. Grandes poetas
platonicamente pelo jovem Tadzio,
ano. Tive e tenho a sorte de estar
e estamos todos dentro de uma cena
brasileiros já organizaram belas
a representação do ideal de beleza
entre alguns desses tributos. Ano
de cinema. Foi o que chamei esses dias
antologias de poesia: Manuel Bandeira
física, da beleza eterna da juventude.
passado, no Teatro Bruno Kiefer,
de “cinematografia do quotidiano”,
e Walmir Ayala são dois exemplos de
Aschenbach se vê desarmado e a paixão
junto com Nelson Coelho de Castro,
enquanto postava a foto de um gato
antologistas da mais alta categoria.
se sobrepõe à razão. Ele então passa a
apresentamos Pérola no Veludo
branco sentado cenicamente em uma
Agora, acaba de ser publicada uma
perseguir o jovem na sua incontrolável
– Especialmente LUPI, com nossa
motocicleta preta, como se fosse o
joia rara, reunindo, entre grandes
e arrebatadora paixão, mas sem jamais
visão/versão das canções clássicas e
James Jean dos felinos. Foi também
autores nacionais e estrangeiros, os
tocá-lo. Ao que tudo indica, o autor
algumas que ficaram ali tímidas nos
o que Gilles Lipovetsky e Jean Serroy
mais de 150 poemas prediletos do
se inspirou em um jovem polonês que
playlists da época Lupiciniana.
chamaram de Tela Global.
poeta Ferreira Gullar. O livro “nasceu
conheceu em Veneza, quando ali se
Nesse recém-lançado livro
O livro é um delicioso passeio pela
de uma descoberta, a descoberta
hospedou, no hotel Lido, o mesmo do
Almanaque do Lupi, o jornalista
história do audiovisual com foco
de uma coisa que eu já sabia: que o
seu personagem. O livro, um clássico
Marcello Campos tenta se
especial na tela e suas diferentes
poema pode deslumbrar as pessoas”,
moderno, trata de um diálogo sobre
aproximar da verdadeira história
significações sociais através dos tempos.
comenta Gullar. O poeta maranhense
a passagem do tempo, sobre a ideia
por trás de alguns mitos que
Da era moderna, quando a tela traz
começou a guardar e construir, ao
da beleza, da decadência inevitável de
recheiam suas canções. Como, por
as “estrelas”, em um céu distante de
longo de toda a vida, esta preciosa
nossos corpos, e o desejo de reter a
exemplo, de que forma conseguiu
estúdios de cinema, à pós-modernidade,
antologia pessoal – poemas de, entre
juventude e a impossibilidade ridícula
sucesso nacional. Entre declarações
na qual o “tudo-tela” e a “tela nômade”
outros, Rimbaud, Artaud, Pessoa,
disso. Este livro me mostrou, ainda,
vagas e teses malucas, foi criando
nos levam para dentro do filme
Rilke, Homero, Bandeira, Camões,
como o domínio da paixão sobre a razão
um folclore em torno de si. Já está
particular de cada um, os autores
que o deslumbraram e continuarão
tende a nos deixar como idiotas, tal
na minha cabeceira. Leitura certa.
nos convidam a uma viagem entre o
deslumbrando leitores. Seu único
qual o personagem Aschenbach. Este
superlativo e o comparativo das imagens
propósito – cumprido à perfeição –
que busca de forma narcísica o ideal de
e ao questionamento da influência das
é oferecer o poema como puro prazer
beleza que gostaria para si mesmo.
telas sobre nós. Aproveitem.
de leitura e encantamento.
Bibiana Xausa Bosak
Fernando Ramos
Adriana Franciosi
Monica Tomasi
Jornalista e fotógrafa
Cantora e compositora
Film maker
Produtor e curador da FestiPoa Literária
DESCENTRALIZAÇÃO DIVERSIDADE E ABRANGÊNCIA
A temporada do maior circuito de artes cĂŞnicas do PaĂs.