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SEGUNDO SEMESTRE
2017 ISSN 1984-056X
CIRCO: PLURAL, DINÂMICO E ENCANTADOR FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA FAZ HOMENAGEM A DEBUSSY noites no motel, conto inédito de bráulio tavares
10
08
34
DIFUSÃO CULTURAL
ARTES CÊNICAS
MÚSICA
08 Atividades do Programa Arte Sesc
10 Artistas participantes do Festival Santa Maria
34 8º Festival Internacional Sesc de Música leva
realizadas em todos os munícipios do
Sesc Circo, que teve sua terceira edição
a Pelotas a harpista da Orquestra Sinfônica
Rio Grande do Sul em 2017, além de
em novembro, analisam o panorama da
do Estado de São Paulo (Osesp), Liuba
fomentar o desenvolvimento da cadeia
circulação de circo no Brasil e contextualizam
Klevtzova, discípula de Vera Dulova, que dá
cultural, contribuíram para a formação da
a pesquisa das diferentes vertentes
nome à escola russa de harpa
consciência crítica do público 18 O legado do festival de circo para a cidade de 09 Principais eventos programados para 2018
Santa Maria
37 Artigo do pianista Max Uriarte lembra os 100 anos da morte do compositor francês Claude Debussy, homenageado no 8º Festival
20 CADERNO DE TEATRO
Internacional Sesc de Música juntamente
O encontro do Coletivo As Travestidas, de
com Leornard Bernstein, cujo centenário de
Fortaleza (CE), com a diretora gaúcha Jezebel
nascimento é celebrado em 2018
De Carli, que resultou nos espetáculos BR-TRANS e Quem Tem Medo de Travesti, processos de criação e trajetórias artísticas O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.
DIRETORIA Luiz Carlos Bohn
Presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac
Luiz Tadeu Piva
Diretor Regional Sesc/RS
www.sesc-rs.com.br ISSN 1984-056X
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GERÊNCIA DE CULTURA Silvio Alves Bento Gerente de Cultura
COORDENAÇÃO DE CULTURA Aline de Medeiros Biblioteca e Literatura
Anderson Mueller Música e Audiovisual
Jane Schöninger
Artes Cênicas e Artes Visuais
UNIDADES SESC NO RIO GRANDE DO SUL Sesc Alegrete R. dos Andradas, 71 55 3422.2129 Sesc Bagé R. Barão do Triunfo, 1280 53 3242.7600 Sesc Bento Gonçalves Av. Cândido Costa, 88 54 3452.6103 Sesc Cachoeira do Sul R. Sete de Setembro, 1324 51 3722.3315 Sesc Cachoeirinha R. João Pessoa, 27 51 3439.1751 Sesc Camaquã R. Marcílio Dias Longaray, 01 51 3671.6492 Sesc Canoas Av. Guilherme Schell, 5340 51 3463.6756 Sesc Carazinho Av. Flores da Cunha, 1975 54 3331.2451 Sesc Caxias do Sul R. Moreira César, 2462 54 3221.5233 Sesc Centro POA Av. Alberto Bins, 665 51 3284.2000 Sesc Centro Histórico POA R. Vig. José Inácio, 718 51 3286.6868 Sesc Chuí Av. Uruguai, 2355 53 3265.2205 Sesc Comunidade POA R. Dr. João Inácio, 247 51 3224.1268 Sesc Cruz Alta Av. Venâncio Aires, 1507 55 3322.7040 Sesc Erechim R. Portugal, 490 54 3905.3500 Sesc Farroupilha R. Coronel Pena de Moraes, 320 54 3261.6526 Sesc Frederico Westphalen R. Arthur Milani, 854 55 3744.7450 Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Sesc Gravataí R. Anápio Gomes, 1241 51 3497.6263 Sesc Ijuí R. Crisanto Leite, 202 55 3332.7511 Sesc Lajeado R. Silva Jardim, 135 51 3714.2266 Sesc Montenegro R. Capitão Porfírio, 2205 51 3649.3403 Sesc Navegantes POA Av. Brasil, 483 51 3342.5099
Sesc Novo Hamburgo R. Bento Gonçalves, 1537 51 3593.6700 Sesc Passo Fundo Av. Brasil, 30 54 3311.9973 Sesc Pelotas R. Gonçalves Chaves, 914 53 3225.6093 Sesc Protásio Alves Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Sesc Redenção POA Av. João Pessoa, 835 51 3226.0631 Sesc Rio Grande Av. Silva Paes, 416 53 3231.6011 Sesc Santa Cruz do Sul R. Ernesto Alves, 1042 51 3713.3222 Sesc Santa Maria Av. Itaimbé, 66 55 3223.2288 Sesc Santa Rosa R. Concórdia, 114 55 3512.6044 Sesc Santana do Livramento R. Brig. David Canabarro, 650 55 3242.3210 Sesc Santo Ângelo R. 15 de Novembro, 1500 55 3312.4411 Sesc São Borja R. Serafim Dornelles Vargas, 1020 55 3431.8957 Sesc São Leopoldo R. Marquês do Herval, 784 51 3592.2129 Sesc São Luiz Gonzaga R. Treze de Maio, 1871 55 3352.6225 Sesc Taquara R. Júlio de Castilhos, 2835 51 3541.2210 Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400 Sesc Tramandaí R. Barão do Rio Branco, 69 51 3684.3736 Sesc Uruguaiana R. Flores da Cunha, 1984 55 3412.2482 Sesc Venâncio Aires R. Jacob Becker, 1676 51 3741.5668 Sesc Viamão R. Alcebíades Azeredo dos Santos, 457 51 3485.9914 Hotel Sesc Gramado Av. das Hortênsias, 4150 54 3286.0503 Hotel Sesc Porto Alegre Av. Protásio Alves, 6220 51 3382.8801 Hotel Sesc Torres R. Plínio Kroeff, 465 51 3626.9400
39
46
54
AUDIOVISUAL
ARTES VISUAIS
LITERATURA
39 A literatura como fonte de inspiração para
46 Com a realização de exposições como as de
54 Noites no Motel, conto inédito
produções cinematográficas é o tema do
Kelvin Koubik, Felipe Povo e Marinês Busetti,
artigo de Fatimarlei Lunardelli, doutora em
o Sesc/RS intensifica sua programação
cinema pela USP, que ministra oficinas de
de artes visuais, com o objetivo
análise de filmes pelo Sesc/RS
de formar público
de Bráulio Tavares 58 Ensaio do educador social Chiquinho Divilas defende a aproximação da escola com a linguagem do aluno e define o rap como uma
43 Os realizadores do Rio Grande do Sul que
50 6º Salão Fundarte/Sesc de Arte 10x10
ferramenta de aprendizagem
tiveram seus filmes escolhidos para a seleção
concede primeiro lugar à obra
nacional da I Mostra Sesc de Cinema e suas
Dragtopografia – Pequenos Ambientes
produções Ruby, Em 97 Era Assim e Lipe,
do Vale dos Homossexuais, de Fabrízio
a experiência de circular pelo Estado de
Vovô e o Monstro
Rodrigues, uma espécie de cartografia dos
Pernambuco no Projeto Arte da Palavra
62 Escritora e poeta Telma Scherer relata
universos queer e kitsch 65 Leitura
CAPA
UNIDADES SESC/SENAC Alvorada Av. Getúlio Vargas, 941 51 3411.7613 Balneário Pinhal Av. General Osório, 1030 51 3682-3041 Caçapava do Sul Av. 15 de Novembro, 267 55 3281.3684 Capão da Canoa Av. Paraguassu, 1517 Loja 2 51 3625.8155 Gravataí Morada do Vale R. Álvares Cabral, 880 51 3490.4929 Guaíba R. Nestor de Moura Jardim, 1250 51 3402.2106 Itaqui R. Dom Pedro II, 1026 55 3433.1164 Jaguarão R. 15 de Novembro, 211 53 3261.2941 Lagoa Vermelha Rua Nivio Castelano, 926 54 3358.5729 Nova Prata R. Luiz Marafon, 328 54 3242.3437 Osório Av. Getúlio Vargas, 1680 51 3663.3023 Palmeira das Missões R. Marechal Floriano, 1038 55 3742.7164 Quaraí Av. Sete de Setembro, 1281 55 3423.5403 Santiago Av. Getúlio Vargas, 1079 55 3251.9373 São Gabriel R. João Manuel, 508 55 3232.8422 São Sebastião do Caí R. 13 de Maio, 935 Sala 04 51 3635.2289 São Sepé R. Coronel Chananeco, 790 55 3233.2726 Sobradinho R. Lino Lazzari, 91 51 3742.1013 Três de Maio Travessa da Praça Bandeira, 65 55 3535.2255 Três Passos Rua Dom João Becker, 310 55 3522.8146 Vacaria R. Júlio de Castilhos, 1874 54 3232.8075
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sescrs Sesc_RS
Vitor Mesquita
Diretor Editorial e de Criação Designer e editor de arte Clarissa Eidelwein (MTb nº 8.396) Edição e Reportagem
Patrícia Lima SescRS sescrs
Revisão de Texto
Ideograf
Impressão de 1.500 exemplares
Em Busca da Triple Volta, Irmãos Sabatino Foto: Martin Sabatino
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Espetáculo Varieté Foto: Ronald Mendes
AQUI A CULTURA ESTÁ EM MOVIMENTO No Sistema Fecomércio-RS/Sesc a cultura é pulsante. E promover manifestações artísticas para os gaúchos esteve no nosso dia a dia ao longo de 2017. Não faltam exemplos de ações que consolidam nosso objetivo de ampliar o acesso à cultura, com foco na formação de plateias. São apresentações de teatro, circo, música, dança, cinema, artes visuais e ações literárias que circulam pelo Estado, proporcionando momentos de reflexão e felicidade. Isso tudo se evidencia nas páginas desta Revista Arte Sesc. Entre os destaques desta edição está o Santa Maria Sesc Circo, que atraiu e encantou mais de 13 mil pessoas em seis dias, entre espectadores, participantes de oficinas e outras ações totalmente gratuitas. Realizado pelo terceiro ano consecutivo, o evento se consolida como um dos maiores do Rio Grande do Sul na área circense e levou ao Centro do Estado artistas nacionais e internacionais. Além de ressaltar grandes projetos de 2017, estamos na expectativa pelo ano que se aproxima. Os preparativos para mais um Festival Internacional Sesc de Música, também em pauta nas páginas a seguir, estão a todo vapor. Serão 12 dias de programação intensa em Pelotas, no mês de janeiro. Profissionais de 11 nacionalidades diferentes participam do Festival, que na sua 8ª edição será marcado por homenagear dois grandes nomes da música mundial: Claude Debussy e Leonard Bernstein. As atividades que realizamos demonstram que a democratização da cultura está em nosso DNA. E, a cada novo dia, reafirmamos nossos esforços em seguir disseminando a arte por todos os rincões do Rio Grande do Sul. Boa leitura!
LUIZ CARLOS BOHN
LUIZ TADEU PIVA
PRESIDENTE DO SISTEMA FECOMÉRCIO-RS/SESC/SENAC
DIRETOR REGIONAL SESC/RS
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DIFUSÃO CULTURAL
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CULTURA PARA MAIS DE 2,9 MILHÕES DE PESSOAS PROGRAMA ARTE SESC INTENSIFICA SUA PROGRAMAÇÃO EM 2017 COM ATIVIDADES SISTEMÁTICAS DE INCENTIVO À LEITURA, ARTES CÊNICAS, MÚSICA, ARTES VISUAIS E AUDIOVISUAL EM TODAS AS REGIÕES DO RIO GRANDE DO SUL
CIRCO
O Sesc/RS desenvolve uma programação que visa
Entre os destaques da programação de ar-
a contribuir para a formação de cidadãos críticos e
tes cênicas, que registrou um público em torno
sensíveis para as artes, a partir do contato sistemá-
de 750 mil pessoas em mais de 2,2 mil atrações,
tico com a cultura em todas as suas manifestações.
estiveram festivais, como o 12º Festival Palco Gira-
ESPE TÁCULOS
Além disso, ao manter e até ampliar seus projetos
tório Sesc, uma espécie de pouso, em Porto Alegre,
em um momento econômico desfavorável que
dos 20 grupos de todo o país que participam do
PÚBLICO DE 89.738 PESSOAS
repercute na redução de investimentos na área, a
Circuito Palco Giratório – também com apresen-
instituição promove o fomento da cadeia cultural,
tações em cidades do interior gaúcho –, além de
criando oportunidades para artistas e demais pro-
coletivos e artistas convidados. Outros eventos que
fissionais envolvidos. Em 2017, como resultado da
movimentaram a cena com atrações nacionais e
atuação focada na diversidade, na descentraliza-
até mesmo internacionais foram o 3º Santa Maria
ção e na abrangência, proporcionou apresentações
Sesc Circo, a 7ª Mostra de Teatro de Passo Fundo,
de teatro, dança, circo e música, em festivais ou
e as Aldeias Sesc Capilé (São Leopoldo), Imembuy
circulação de grupo locais ou que são referência
(Santa Maria), Ivy Pitã (Santa Rosa) e Caxias do Sul.
no cenário nacional, sessões de cinema, exposições
De janeiro a dezembro, o projeto Rio Grande no
de artes visuais e atividades de literatura, sempre
Palco promoveu o acesso a produções referenciais
vinculadas a ações educativas, e outros projetos
em dança, circo e teatro, possibilitando ainda o in-
especiais para um público de mais de 2,9 milhões
tercâmbio entre os grupos e com o público. Para
de pessoas.
estudantes das redes públicas de ensino, o projeto
240
DANÇA
415
Espetáculos Público de 116.621 pessoas
Teatro a Mil fortaleceu a ação de formação de plateia com a circulação de espetáculos infantis.
MÚSICA 1.260 APRESENTAÇÕES Público de 815.386 pessoas
O projeto Sesc Música, desenvolvido em formato de circuitos, apresentações únicas ou em grandes eventos abertos à comunidade, difundiu a pluralidade da música brasileira e internacional nos palcos do Sesc ou de instituições parceiras. No começo do ano, o 7º Festival Internacional Sesc de Música levou a Pelotas expoentes do cenário mun-
DIFUSÃO CULTURAL
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1.586 ESPETÁCULOS DE TEATRO Público de 546.212 pessoas
LITERATURA ARTES VISUAIS
707 ENCONTROS
E APRESENTAÇÕES LITERÁRIAS
Público de 464.845 pessoas
1.869
182
APRESENTAÇÕES ARTÍSTICAS
EXPOSIÇÕES Público de 270.751 pessoas
Público de 189.801 pessoas
dial da música instrumental e de concerto e alunos de toda a América do Sul. O 4º Festival Kino Beat difundiu música eletrônica aliada a performance audiovisual, multimídia e arte. Consolidados nacionalmente, os projetos Concertos Banco de Partituras, que incentiva a formação de grupos de
AUDIOVISUAL 1.477 SESSÕES
PÚBLICO DE 116.219 PESSOAS
música de câmara, e Sonora Brasil – Formação de Ouvintes Musicais também contribuíram para criar uma consciência para a arte. No ano de 2017, o Sesc/RS intensificou sua programação de exposições com artistas gaúchos, integrada a oficinas e momento para troca de experiências. Outras ações de destaque nas artes visuais foram a realização do 5º Rio Pardo em Foto e do 6º Salão Sesc/Fundarte de Arte 10x10,
BIBLIOTECA
JANEIRO
8º Festival Internacional Sesc de Música, Pelotas
ABRIL
8ª Mostra de Teatro de Passo Fundo Bienal do Mercosul – Programa Pedagógico 2ª Mostra Sesc de Cinema – etapa estadual
MAIO
12ª Aldeia Sesc Capilé, São Leopoldo 13º Festival Palco Giratório Sesc, Porto Alegre
AGOSTO
4ª Aldeia Sesc Ivy Pitã, Santa Rosa 5ª Mostra Sonora Brasil, Porto Alegre
NOVEMBRO
6ª Aldeia Sesc Caxias do Sul 4º Santa Maria Sesc Circo 2º Mostra Sesc de Cinema - etapa nacional
ARTES CÊNICAS Projeto Teatro a Mil 12 circuitos, 137 sessões de espetáculos em 20 cidades Palco Giratório 9 circuitos, 82 sessões de espetáculos em 16 cidades
180.781
Rio Grande no Palco 10 circuitos, 11 cidades
489.158
LITERATURA
EMPRÉSTIMOS PA R T IC IPA N T E S
com obras de artistas de todo o Brasil. A I Mostra
O Sesc/RS deu continuidade, em 2017, aos
Sesc de Cinema traçou um panorama do cenário
seus projetos de incentivo à leitura, um dos pi-
de audiovisual brasileiro e proporcionou a novos
lares para o desenvolvimento social e cultura do
realizadores a circulação por todos os estados
país. Sesc Mais Leitura, mostras didáticas e feiras
brasileiros de seus filmes de curta e longa metra-
de livros priorizaram as ações voltadas aos alunos
gem, sem espaço no circuito comercial de exibição.
da rede pública, assim como as atividades da rede
A segunda edição do projeto está na fase estadual
de bibliotecas. A instituição investiu em um novo
de seleção das produções. Com sessões gratuitas
projeto nacional de democratização do acesso à
destinadas ao circuito alternativo, na rua ou em
leitura, Arte da Palavra, que atua na formação e
salas, algumas organizadas em mostras temáticas,
divulgação de novos escritores, na valorização das
o Cine Sesc privilegia a formação de público e o
obras e escritores brasileiros e na compreensão das
desenvolvimento artístico e cultural por meio de
novas formas de produção e fruição literária.
debates e oficinas de audiovisual.
ATIVIDADES PROGRAMADAS PARA 2018
Arte da Palavra 6 oficinas de criação literária, 16 debates, 16 apresentações artísticas, 4 cidades envolvidas, 13 escritores de estados diferentes, público de 2 mil pessoas (jovens e adultos) Sesc Mais Leitura 300 sessões de encontros literários, 5 etapas em 15 cidades, 30 mil participantes (público infantil e juvenil) Feiras de Livros 84 feiras, 200 profissionais da Literatura, 300 mil pessoas de todas as faixas etárias
MÚSICA Sonora Brasil 4 circuitos, 50 apresentações em 12 cidades
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O CIRCO EM EBULIÇÃO PARTICIPANTES DO FESTIVAL SANTA MARIA SESC CIRCO, ARTISTAS DE COLETIVOS QUE REPRESENTAM DIFERENTES VERTENTES DA MANIFESTAÇÃO, ANALISAM O PANORAMA DA CIRCULAÇÃO DE CIRCO NO BRASIL E CONTEXTUALIZAM A PESQUISA NA ÁREA
Na Esquina, Spasso Circo Foto: Athos Souza
ARTES CÊNICAS
ARTES CÊNICAS
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São seis dias de atrações de circo na cidade
ZANNI E A TRADIÇÃO DO CIRCO DE VARIEDADES
paixão pela arte circense e que tinha uma banda
Fundado em 2004, a partir da junção do Circo
por questões econômicas. E tem mais: na banda do
Amarillo, La Mínima, Circodélico e Companhia
Zanni, a trapezista é sanfoneira, a baterista é a me-
Linhas Aéreas, o Circo Zanni é um coletivo de
nina que faz o tecido aéreo, o acrobata é o cara que
artistas concebido artisticamente por Domin-
toca o trombone. Os malabaristas tocam saxofone
gos Montagner. Atualmente, conta com nove
e trompete. São as mesmas pessoas que entram na
artistas e quatro núcleos: Amarillo, La Mínima,
pista e depois vão para o palco para continuar exe-
Artinerant’s – também presente no Festival – e
cutando a música do espetáculo. Esse é o grande
Piccolo Circo Teatro de Variedades, que seguem
barato do Zanni.”
ao vivo, o que já não era usual na América Latina
com as suas trajetórias, pesquisas e repertórios
Em uma análise dos últimos 20 anos do
independentes. O Circo Zanni apresenta um es-
fazer circense mundial, segundo Lujan, torna-se
petáculo de variedades, no qual a banda é o di-
evidente que as trupes estão optando por utilizar
ferencial que vai costurando os números aéreos,
instrumentos musicais. “A música agrega e está
de palhaço, de acrobacia, equilíbrio e magia, sem
presente de maneira forte em todos os artistas,
uma dramaturgia. Foi a atração de abertura do 3º
mas na época era muito inovador voltar a ter uma
Santa Maria Sesc Circo e é um espetáculo de circo
banda para acompanhar um número de circo de
com a leitura clássica.
alto risco. As sensações, as emoções, as cores do
localizada no centro geográfico do Rio Grande do
Diretor musical e, desde a morte de Montag-
Sul. Da manhã à noite, pelo terceiro ano consecu-
ner, em 2016, também diretor artístico do Zanni,
Para Lujan, apesar de existirem em torno de
tivo, na praça, em escolas, ruas, teatro e, principal-
o argentino Marcelo Lujan chegou ao Brasil com
3 mil circos viajando pelo Brasil, o modelo tradi-
mente, no Largo da Estação Férrea – Gare, grupos
seu Circo Amarillo há 17 anos, com uma pesquisa
cional está morrendo porque as famílias não têm
e artistas que são referência no Brasil na arte cir-
relacionada ao novo fazer circense, a partir das
condições de manter sua estrutura, o governo não
cense exibem espetáculos com o resultado de suas
artes plásticas – sua formação. “Comecei a enten-
ajuda, não há terrenos, está cada vez mais difícil.
pesquisas, relacionadas às diversas vertentes do
der os movimentos artísticos e a estudar o corpo
“Os espetáculos desses circos pequenos são cada
circo tradicional e contemporâneo. E no momento
na arte e a arte no corpo, enquanto o La Mínima
vez piores porque apelam para temas da Disney,
em que nem tudo é riso no universo artístico na-
vem do teatro convencional e do teatro de rua,
não têm cultura. E não se faz arte sem cultura, sem
cional, o Festival Santa Maria Sesc Circo se conso-
que para estar vivo precisa muito da arte circen-
uma identificação própria, uma pesquisa. Estão
lida no cenário brasileiro, fomentando a produção
se e do corpo do ator mais sólido, para suportar
mais preocupados em vender a pipoca do que me-
e contribuindo para a formação de público.
as dificuldades que vai enfrentar na rua”, revela
lhorar a música, a estética, o pensamento.”
número são outras”, explica.
Com espetáculos que enfatizam o virtuosis-
Lujan. Em 2004, com uma pesquisa consistente
Ao mesmo tempo, não há mais fronteiras e o
mo acrobático, a delicadeza de palhaços com e
na área da musicalidade do palhaço, Montagner e
circo vai descobrindo lugares. “No Circos – Festi-
sem nariz ou ainda a arte da pantomima, além de
Fernando Sampaio encontraram outras 15 pesso-
val Internacional Sesc de Circo, em São Paulo, por
outras modalidades circenses, na lona, na rua ou
as na Central do Circo, um centro de treinamento
exemplo, vemos que há uma gama tão variada de
no teatro, já passaram pelo festival o Circo Arte-
em São Paulo, com a mesma vontade de comprar
produções mundo afora, o circo está explodindo de
tude, dos irmãos Ankomarcio e Ruiberdan Saú-
uma lona e serem sócios em um circo.
inovação, novas conquistas”, afirma. Lujan come-
de, o Circo Amarillo, o Circo Zanni, os coletivos
A partir da aquisição de uma lona para 400
mora a descentralização promovida pelo Sesc, com
Necitra e Na Esquina e os Irmãos Sabatino, entre
espectadores foi criado o Circo Zanni. Sucesso em
o Santa Maria Sesc Circo, o Festival Sesc Pantanal
várias outras atrações, nacionais e internacionais.
São Paulo, apesar das críticas das famílias circen-
de Circo, em Poconé (MT), e o Festival Sesc MS de
Integrantes dessas trupes que participaram da 3ª
ses tradicionais, o grupo se consolidou e desenvol-
Circo, em Campo Grande. Também cita os festivais
edição do Festival, realizada de 21 a 26 de novem-
veu um período de seis anos ininterruptos de pes-
de Recife e de Belo Horizonte, além do edital lan-
bro, ou de edições anteriores, dão um panorama
quisa, apresentações, de circo lotado. Lujan conta
çado pela prefeitura de São Paulo para realização
da circulação e contextualizam a pesquisa de cir-
que aquilo começou a fazer muito barulho, muitos
de um grande festival em 2018. “Há ainda muitos
co no Brasil, a partir da experiência em festivais
iam para conhecer o que era o Circo Zanni. “Era um
movimentos de resgate dessa arte, especialmente
no país e no exterior.
grupo de artistas com o mesmo sonho, a mesma
em São Paulo. A discussão está muito aquecida
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
12
em torno das diferenças, das brigas, das políticas. É muito legal porque é uma coisa que está viva.”
petáculo como sendo de circo. Depois de 15 anos.” Também presente no 3º Santa Maria Sesc Cir-
O artista recorda que, no princípio, os tradi-
co, o Circo Amarillo apresentou Experimento Circo,
cionais não aceitavam o Zanni como circo, alegan-
um de seus mais antigos espetáculos, uma mistu-
do que aquilo era teatro. “Foi um confronto muito
ra de circo tradicional e contemporâneo. O grupo,
forte, porque nós representamos uma linha do
um dos núcleos do Zanni, pesquisa a linguagem
fazer circense, levando um novo estilo para a lona
do palhaço excêntrico musical. Seus espetáculos,
que não era o do Cirque du Soleil, que representou
com diversos elencos, viajam pelo mundo. “Somos
uma reinvenção. A gente concebe todo o fazer cir-
palhaços, mas não pintamos o rosto como aqueles
cense como circo: não tem definição, enxergamos
palhaços americanos, cuja influência é muito forte
várias vertentes. O circo está fazendo 250 anos,
no Brasil. Acreditamos que podemos trabalhar com
muito pouco se compararmos com outras lingua-
outras emoções e causar o mesmo efeito: o rir”, diz
gens artísticas como a música, que há mais de
Lujan. Expressão teatral, música, dança e técnicas
quatro séculos se mantém do mesmo jeito. Hoje,
como acrobacia e bambolê estão no espetáculo
os contemporâneos da música clássica estão deba-
do grupo que tem como referências Buster Kea-
tendo novas técnicas, a evolução do pensamento
ton, Chaplin e outros palhaços que seguem a linha
do fazer clássico musical. O mesmo está aconte-
da comédia física ou slapstick.
cendo com o circo, que está no teatro, na rua, não tem mais limites, cada vez ocupa mais espaços. O circo entra na música, é bem recebido na literatura, na poesia, nas artes visuais. Quando constituímos o Zanni, confrontamos com o tradicional. Atualmente, depois de 15 anos, eles aceitam nosso es-
Circo Zanni
Foto: Paulo Barbuto
Circo Zanni
Foto: Paulo Barbuto
ARTES CÊNICAS
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TRANSVERSALIDADES E PROXIMIDADE COM O PÚBLICO
Ramonster – O Malabareador de Ideias no festi-
zar suas edições neste ano, projetos já aprovados
val de 2016, foi esse tipo de concepção e pesqui-
pelas instituições públicas deixaram de receber
Apesar de não se auto enquadrar exclusivamente
sa que rendeu ao Necitra notoriedade entre ar-
seus recursos ou então receberam com atraso –,
na categoria circo, o Necitra (Núcleo de Experi-
tistas e pesquisadores, justamente por ser capaz
para Ramon, o Sesc aparece como uma das pou-
mentações Cênicas e Transversalidades) partici-
de criar obras originais, inovadoras, alinhadas
cas instituições que ainda se mostram capazes de
pou do 3º Santa Maria Sesc Circo com Enquanto
com as demandas contemporâneas de criação
promover esse tipo de ação cultural e de distribuir
o Novo Espetáculo Não Vem, de Diego Esteves. A
artística, ao mesmo tempo em que mantém,
esses produtos para parcelas significativas da po-
obra ilustra a pesquisa desenvolvida pelo núcleo,
desde 2009, uma pesquisa intensa e permanente
pulação. “Mas apesar da boa vontade da institui-
na qual disciplinas tradicionalmente trabalhadas
no que diz respeito ao circo contemporâneo e à
ção, ela sozinha é insuficiente para atender toda
sob a lona de circo – manipulação de objetos,
transversalidade.
a demanda de cultura imposta pela sociedade e
ilusionismo, palhaçaria, acrobacias – são ressig-
“No Ramonster, falo sobre minhas experiên-
nificadas e misturam-se à dança, ao teatro e às
cias de vida, minhas escolhas ao longo do tempo,
artes visuais. Na 1ª edição do evento, em 2015, o
meus sucessos e fracassos, tudo de uma forma
Necitra apresentou Mistureba.
divertida, em que as artes circenses ilustram a
Coordenador do grupo a partir de 2017,
fala e preenchem com muita ludicidade, gerando
o malabarista, comediante e produtor cultural
nos espectadores uma identificação com o ar-
Ramon Ortiz afirma que a pesquisa do coletivo
tista, em contraposição ao distanciamento pro-
sempre se baseou no diálogo entre as diferentes
porcionado pela fantasia ou pelo virtuosismo do
linguagens que atuam na cena, tendo as artes
circo tradicional”, explica o artista.
circenses papel fundamental nos espetáculos
Num contexto de dificuldade para fazer cir-
coletivos ou individuais dos integrantes do nú-
cular as produções em decorrência da drástica
cleo. Segundo ele, que apresentou o espetáculo
diminuição de investimento público em cultura –
híbrido de malabarismo com stand-up comedy
muitos festivais tradicionais não puderam reali-
mesmo toda a oferta dos artistas e produtores culturais.”
Ramonster – O Malabareador de Ideias, Necitra Foto: Stephanny Lótus
Enquanto o espetáculo não vem Foto: Ronald Mendes
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
14
DO CIRCO NAS PERIFERIAS À DEFESA DE UMA POLÍTICA NACIONAL
som, luz, uma pequena tela de cinema, que já leva-
teresse pessoal ou afetivo. A simpatia ou antipatia
mos a todos os Estados brasileiros”, diz Ankomar-
do prefeito ou da pessoa responsável por aquele
Moradores de Metropolitana, cidade satélite de
cio. O grupo, que participou do 2º Santa Maria Sesc
município, Estado ou distrito, vai interferir direta-
Brasília (DF), os irmãos Ankomarcio e Ruiberdan
Circo com o espetáculo Brincadeiras de Circo, tem
mente em como ele vai receber o circo.” O artista
Saúde fundaram o Circo Teatro Artetude, há 16
ainda um pequeno circo que circula pela região do
defende que o circo tenha uma política pública
anos. O objetivo era levar arte a locais como sua
Distrito Federal e que é palco do Sesc Festiclown,
nacional, para que as mesmas regras que regem
cidade, semelhante às periferias da maioria dos Es-
um dos maiores festivais de palhaço do mundo, e
um Estado ou um município valham para o outro,
tados brasileiros, que não contam com teatro ou
do Festival Mestres de Circo, além de projetos pró-
permitindo o planejamento dos artistas.
outro espaço físico onde possam ocorrer espetá-
prios de música, circo e oficinas que leva para as
culos e oficinas. Por isso, segundo Ankomarcio, o
cidades-satélite.
Outro ponto imprescindível para o desenvolvimento da arte circense, para Ankomarcio, é que,
circo costuma ser a lembrança mais recorrente das
Ankomarcio considera a burocracia um dos
assim como a agricultura, a pecuária e o setor au-
manifestações culturais e artísticas. “Isso também
maiores entraves à circulação de circo em Brasília
tomobilístico, o circo também tenha incentivo fis-
aconteceu conosco, que só tivemos contato com
e no Brasil. “Muitas vezes temos que enfrentar o
cal. “Os artistas de circo precisam conseguir impor-
a arte quando o circo ou artistas de rua passaram
mesmo ritual aplicado a um show que vai rece-
tar produtos ou mesmo comprar itens nacionais
pela nossa cidade, e nós acreditamos que ela tem
ber 20 mil pessoas, só que vamos receber apenas
com algum tipo de desconto de imposto porque,
papel importantíssimo na tradução da realidade
mil no nosso evento ou circo”, explica. Além disso,
muitas vezes, o serviço que pretendemos prestar já
dos povos, das comunidades. A arte, na verdade, é
segundo ele, os espaços nas cidades vão sendo
é uma grande contrapartida para o Estado e para
o que acaba contando a história desses povos. Nós,
preenchidos por prédios. Os lugares que sobram
a população.”
latino-americanos, precisamos muito, de alguma
para que o circo seja montado são cada vez mais
O circo dos irmãos Saúde desenvolve uma
maneira, construir e produzir arte que se relacione
afastados e de difícil acesso. “Além da burocracia
pesquisa que tem como referências a capoeira,
com a nossa vida, com as nossas necessidades e
e da falta de espaços para manifestações artísti-
que dá origem às acrobacias, os mestres de cul-
com os nossos anseios”, afirma.
cas e culturais, também não temos no Brasil uma
tura de rua, que vão desde os mestres mamolen-
O Artetude faz um pouco disso ao estudar e
política para que o Estado ou o Distrito Federal se
gueiros, os artistas de rua, vendedores de banha
desenvolver espetáculos de rua pensando em tec-
relacionem com o governo federal. Muitas vezes, o
de baleia, os busca-vidas, como são conhecidos,
nologia que permita que esta manifestação artís-
que há é um ranço político e você fica a mercê de
até a cultura popular do bumba meu boi e do rei-
tica chegue a lugares mais afastados. “Temos um
interesses locais. Não existe uma política pública,
sado. “Também utilizamos a nossa memória em
espetáculo realizado num ônibus com estrutura de
um modelo ou uma fórmula. Existe ou não o in-
relação aos circos tradicionais, que assistimos
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
15
desde crianças, e o convívio com mestres como o
mos conhecendo muito o país, já havíamos circu-
Mestre Mandioca Frita, Mestre Cobra, Mestre Ze-
lado com Na Esquina em 2013, mas apenas pela
zito. Tudo isso ajuda a compor o nosso fazer, que
região Sudeste e Recife, e agora foi uma desco-
está em permanente construção. Estamos sempre
berta do povo, das comidas, do público que tam-
nos revendo e reinventando. E nosso caminho é
bém é diferente, foi incrível”, descreve. Segundo
tentar, através da nossa arte e da nossa brinca-
ele, a expectativa e o imaginário das pessoas em
deira, contribuir com as pessoas para que possam
relação ao circo variam conforme o lugar e é in-
ter um olhar diferente sobre o mundo, sobre a
teressante confrontar. “Fazemos um circo atual
vida e sobre a arte brasileira.”
e, tanto nas apresentações no teatro como na rua, sem lona, nossa montagem acaba sendo um
NA ESQUINA: DO REENCONTRO, UM ESPETÁCULO
pouco diferente da expectativa de muita gente.
Na programação do 3º Santa Maria Sesc Circo e
criação, então convidamos o público a assistir um
do Circuito Palco Giratório Sesc 2017, o espetá-
pouco do nosso ensaio, as brincadeiras entre nós,
culo Na Esquina, do coletivo homônimo, surgiu
coisas que normalmente não são acessíveis. Foi
de um encontro de colegas que haviam estudado
surpreendente para muitos, que esperavam um
na Spasso Escola Popular de Circo, em Belo Hori-
circo mais tradicional. Foi muito legal apresentar
zonte (MG), ao longo da década de 2000. Parte do
uma novidade, algo desconhecido para o públi-
grupo foi continuar a formação em cursos supe-
co”, analisa.
A nossa proposta é falar do próprio processo de
riores da Europa e parte estava vivendo no Brasil.
Recentemente, o coletivo fez diversas apre-
Era 2012 e a escola mineira estava completando
sentações no Nordeste e, conforme o artista, o
15 anos. “Decidimos fazer uma cena curta, de
público reagiu em momentos diferentes, em
meia hora, e como gostamos muito do resultado,
comparação com a primeira apresentação, em
resolvemos transformá-la em um espetáculo”,
Porto Alegre, nos mês de maio. “O espetáculo,
conta Pedro Guerra, um dos integrantes da trupe.
que tem uma margem de improvisação e para o
A equipe formada pelos artistas circenses
inesperado bem grande, também evoluiu muito.
Clarice Panadès, Pedro Sartori, Philippe Ribeiro,
A viagem longa, essa convivência cotidiana que
Roberta Mesquita, Pedro Guerra, Liz Braga, Diogo
não é nossa realidade, já que cada um mora em
Dolabella e Pauline Hachette (os dois últimos não
um canto do mundo, foi muito positiva para o
estão mais no elenco, no qual ingressou Rafael
espetáculo”, conta. Em contato durante sete me-
Rocha) partiu para duas residências na Europa
ses com espetáculos de todo o país, não apenas
seguidas de mais um mês de criação coletiva em
pelo Palco Giratório, o grupo se surpreendeu com
Belo Horizonte, onde o espetáculo Na Esquina es-
a qualidade e a diversidade da produção cultu-
treou em 2013. Sem um diretor, o coletivo contou
ral nacional. “Tivemos a oportunidade de assistir
com o olhar exterior de Mauricio Leonard e Ro-
coisas incríveis em todo o lugar e, especialmente
gério Sette Camara. “Temos uma particularidade:
no Nordeste, foi uma experiência muito tocante
cada um mora num canto, não temos uma sede
pelos intensos intercâmbios que fizemos.”
nem uma vida de grupo. Nos vemos sempre em
Em 2015, o Na Esquina circulou pela França,
função da turnê e nos encontramos um pouco
Itália e Suíça. A trajetória europeia do espetáculo
antes para ensaiar”, diz Pedro.
teve início na Biennale International des Arts du
Juntamente com o grupo formado por ar-
Cirque de Marseille, e incluiu a Académie Fratelli-
tistas que residem na França, na Alemanha e no
ni, em Paris, e o Festival des 7 Collines, em Saint
Brasil, Pedro Guerra está tendo a oportunidade,
Étienne. Passou ainda pelo Sul Filo del Cielo, fes-
pelo projeto Palco Giratório de 2017, de ficar um
tival de circo contemporâneo na cidade italiana
tempo mais longo por aqui, após 10 anos. “Esta-
de Grugliasco, e Circus Station, em Basel, Suíça.
Circo Teatro Artetude Foto: Divulgação
Em Busca da Triple Volta, Irmãos Sabatino Foto: Martin Sabatino
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
16
No 3º Santa Maria Sesc Circo, Pedro tam-
O ESPORTE COMO PONTO DE PARTIDA
“O trabalho do Lume com a fisicalidade e
bém apresentou Oteto, ao lado da companheira
Atletas da ginástica olímpica, Martin e André
as práticas que ajudam o ator/intérprete/criador
Liz Braga e do músico Juninho Ibituruna. O espe-
Sabatino, então acadêmicos de Esporte e Edu-
a acessar, através da exaustão, o seu potencial
táculo faz parte do projeto Abasedotetodesaba,
cação Física, um na USP e outro na Unicamp,
criativo da forma mais pura me interessou. Vi
com estreia prevista para o final de 2018 no Brasil
encontraram na prática do circo uma possibi-
muita proximidade com o que eu já fazia, só que
e em 2019 na Europa. Oteto teve origem em um
lidade de dar continuidade ao que haviam de-
a fisicalidade que eu desenvolvia era muito téc-
convite para apresentação de etapa de trabalho
senvolvido no esporte – a acrobacia. Para isso,
nica e mecânica e foi preciso romper. A partir daí
no Circos – Festival Internacional Sesc de Cir-
cada um no seu ambiente, buscaram formação
nasceu a minha pesquisa do circo: como acessar
co. Os artistas do coletivo têm em seu histórico
artística em diversos grupos de circo contem-
o fluxo criativo e inclui-lo nas acrobacias e em
trabalhos realizados na rua, mais acessíveis, em
porâneo. Entre eles, Acrobático Fratelli, Grupo
todas as vivências”, conta André. Os dois artistas
comunidades e pequenas cidades, e o Oteto surge
Ares, Circo Escola Picadeiro, Galpão do Circo,
colaboraram com outros grupos até que sentiram
para preservar esta tradição. O enredo do espetá-
por parte do Martin; e Paraladosanjos, Unicamp
a necessidade de fazer sua própria história, criar
culo, base para o projeto maior, é sobre a vida de
GGU e GG-FEF e Cia do Circo, nos quais André
sua própria linguagem a partir do que gostavam
idas e vindas entre Brasil e Europa – ponte que o
se aprimorou no trapézio com Alex Brede, mo-
de fazer. Hoje, já estão completando 10 anos de
casal Pedro e Liz construiu com o Na Esquina. Fala
dalidade em que acabou se tornando referência
trajetória no circo, iniciada com Irmãos Sabatino
de saudade, de fronteira, de raiz.
nacional, e o Lume Teatro.
e o Maior Artista da Terra.
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
17
Cabaret Volant, Irmãos Sabatino Foto: Paulo Bartuto
Vaiqueuvoo, Irmãos Sabatino Foto: Paulo Bartuto
“Não são todos os grupos que têm a vontade
André salienta que poucos teatros no país
maturgia, temos os ingredientes perfeitos para
ou necessidade – não falo de coragem – de fa-
estão preparados para receber circos de médio
convidar a plateia a estar e permanecer conosco
zer espetáculos com a estrutura que usamos por
e grande porte e, por isso, é sempre um desafio
até o final. Tem ainda a diversidade do públi-
causa das acrobacias aéreas nos trapézios, no pe-
viabilizar as apresentações nesses ambientes.
co, formada por morador de rua, pessoas com
tit volant, e isso se tornou um diferencial que nos
Apesar disso, a companhia tem todas as solu-
maior poder aquisitivo, vovó, cachorro. E tem
permitiu muitas experiências nacionais e inter-
ções para viabilizar o espetáculo, o que acaba
a disputa de atenção. As crianças são o princi-
nacionais”, afirma André. O segundo espetáculo,
gerando gastos extra. O grupo normalmente en-
pal termômetro: se começam a se mexer muito,
Vaiqueuvoo, presente no 2º Santa Maria Sesc Cir-
contra as condições para montagem da estrutu-
fazer barulho, não é por que são mal-educadas
co, já com Gianfranco Di Sanzo no elenco, com-
ra em ruas e praças. Aliás, o acrobata, que tam-
ou despreparadas, é o espetáculo que não está
binou uma dramaturgia em torno dos aviadores
bém é diretor dos espetáculos, diz que é muito
comunicando”, avalia. Já no teatro, segundo ele,
dos anos 1930 com o resgate de três modalidades
diferente se apresentar no ambiente da rua ou
é preciso entrar num caminho mais sutil e poé-
raras de circo: a báscula, o quadrante aéreo e
do teatro. “Na rua, o público quer uma atuação
tico, que precisa ser bem dosado.
a barra fixa da ginástica olímpica. Os Irmãos Sa-
mais visceral, com muita potência, como os
Em relação às regiões, o artista não vê di-
batino foram convidados para o Festival Cultural
gladiadores – tem que dar tudo de si porque o
ferença significativa nas reações do público.
de Gotemburgo (2016), na Suécia, e fizeram uma
povo quer ver sangue. O circo, por natureza, já
“Quando fomos para Europa, ficamos com medo
turnê por Bélgica e Holanda. No Brasil, foram 120
tem uma índole popular e de fácil comunicação
que os espectadores questionassem ‘quem são
apresentações.
e, com as acrobacias aéreas, virtuoses e dra-
estes malucos?’ porque estávamos chegando com piadas criadas a partir da cultura brasileira, mas o espetáculo funcionou muito bem, percebemos que é universal. No Sul do Brasil foi a mesma coisa. Tínhamos na cabeça que nossas piadas eram muito fáceis e que não seríamos bem recebidos, insegurança de diretor. Porém, vimos que é a mesma vibração a partir de um canal de recepção que é universal.” Defensor de que os artistas, programadores, produtores e toda classe artística, além de prefeituras, por meio de políticas públicas, deveriam organizar mais festivais em âmbito nacional, em prol da diversidade das produções, André reconhece que o Sesc, atualmente, é um dos grandes fomentadores do circo no país. São poucos os festivais que não são promoção da instituição e, com exceções, não conseguem dar um retorno financeiro para os grupos, que acabam participando mais com o intuito de divulgação do trabalho. “O Sesc tem uma demanda cada vez maior de circo e isso é muito positivo, porque permite aos artistas viverem disso, pesquisarem o ofício. Por outro lado, por questões orçamentárias, há uma tendência de restringir o tipo de espetáculo àqueles com estrutura menor. O risco de homogeneização das produções é uma questão a se pensar no longo prazo.”
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
POR RAQUEL GUERRA
18
Professora adjunta na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde desenvolve projetos de teatro, circo e audiovisual. É também produtora cultural, atriz, palhaça, diretora de teatro e audiovisual. Suas pesquisas mais recentes são o espetáculo Circo Bambo e o documentário O Circo Passou, desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa Cinecirco, do CNPq.
TEM CIRCO NA BOCA DO MONTE Pesquisadores brasileiros como Mário Bolognese,
ferrovias da cidade. Os arquivos municipais permi-
ga. Penso que é fundamental aceitar e compre-
Ermínia Silva e Alice Viveiros de Castro indicam
tem ao menos situar que a cidade, vez ou outra,
ender a interação e coexistência destes distintos
que o circo tem diversas origens. E parece-me
recebeu circos que cruzaram rumo à Santa Cata-
campos e áreas da manifestação circense. E saber
bastante prudente reconhecer e aceitar isso como
rina, Argentina ou Uruguai. A encruzilhada geo-
respeitá-los e dialogar com eles. Acredito que a
característica e potencialidade da arte circense. A
gráfica serve de rota para circos itinerantes. Essa
herança do circo de lona, que costuma ser referen-
referência a Philip Astley e Antonio Franconi como
arte espetacular e corporal que é o circo, que gera
ciado como tradicional, permanece no imaginário
os pais do circo é recorrente entre os estudos da
encanto, graça e risco, tem seus lugares em Santa
e representa parcela significativa da história do
área. Os historiadores recordam, contudo, que as
Maria. E não é apenas na circulação dos circos de
circo no Brasil, como pesquisas na área pontuam.
práticas circenses existem desde a antiguidade:
lona. Há os artistas itinerantes de sinal, os artis-
É importante respeitar esta história. O circo está
malabarismos egípcios, arenas romanas, músicos,
tas locais que atuam com diferentes modalidades
em constante interação com outras formas espe-
cômicos e acrobatas de rua demonstram isso.
circenses e o Festival Santa Maria Sesc Circo, que
taculares e de transmissão de saberes, porque ele é
Igualmente, as montagens de tendas e o viver iti-
vem consolidando e fortalecendo a cena local nos
uma arte viva. Por isso, vê-se que a formação cir-
nerante são saberes antigos de uma herança ciga-
últimos anos.
cense ocorre em diferentes lugares e modos.
na. A história do circo é viva e fluida.
Neste começo de século 21, presencia-se uma
O circo é arte, é linguagem, é estética, é téc-
Em Santa Maria (RS), o circo tem um lugar
série de manifestações circenses que não provêm
nica. O circo é engenharia, é esporte, é jogo. O cir-
sentimental: a Boca do Monte tem suas histórias
diretamente do circo de lona, ainda que indireta-
co está na lona, na rua, nas salas de espetáculo.
com as ferrovias e rodovias de fronteira sul com
mente este permaneça como memória e ancestra-
Por isso, visualizo nas manifestações circenses um
a América Latina. Acervos do Museu Edmundo
lidade. Artistas vivem outras formas de ser itine-
hibridismo, uma pluralidade, e reconheço que isso
Cardoso revelam que, no começo do século 20,
rante, pois a arte circense é múltipla e plural.
também se manifesta com o circo nas universida-
houve intensa circulação de artistas e companhias
Particularmente, interessa-me a diversidade
des, pois ele está associado a distintas áreas, tais
teatrais do Brasil e América Latina por meio das
de formas de arte e profissões que o circo congre-
como teatro, dança, educação física, pedagogia, história e áreas da saúde. Em conversas com o representante do Circo no Conselho Municipal de Cultura de Santa Maria, Lainon Willian Ribeiro, e com artistas locais, identificou-se em torno de 32 profissionais e oito grupos que atuam com alguma modalidade circense, que incluem desde a realização de espetáculos, oficinas, disciplinas e projetos na universidade até intervenções em eventos, feiras e escolas. Ao pensar
ARTES CÊNICAS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
19
sobre os artistas que promovem o circo em Santa Maria, localizou-se pessoas cujas formações não nasceram na lona. Grande parte dos artistas locais são egressos de faculdades de artes cênicas, dança, educação física e cursos técnicos de teatro, que tiveram alguma disciplina ou buscaram suas formações de maneira autônoma em oficinas e cursos. Os circenses também atuam como artistas de sinal que, com frequência, passam por Santa Maria. E existem ainda oficinas e aulas de circo, ministradas em escolas e projetos sociais. As principais modalidades circenses desenvolvidas na cidade são palhaços, malabares, pernas de pau, acrobacias de solo, tecido, trapézio, lira, bambolê e roda cyr. A maior parte dos grupos que atuam com alguma modalidade circense vem do teatro e da dança: Ateliê do Comediante, Cia Retalhos de Teatro, Cia Sorriso com Arte, Clowns Crew, Dacaratapa, Teatro no Buraco, Teatro Saca Rolha, Teatro Vagamundo e Umbigo de Bruxa. O mapeamento do Conselho de Cultura de Santa Maria
acompanhar a programação completa das últimas
Nestes primeiros anos de existência, o Festi-
é incompleto, pois está em fase de levantamento
edições, analiso que ele promove uma curadoria
val Santa Maria Sesc Circo revelou que o circo é
de dados e coleta de informações, mas segundo o
preocupada em mostrar a diversidade das expres-
múltiplo: malabarismos intimistas, circo social, pa-
representante do circo, ele objetiva o desenvolvi-
sões do circo e apresenta ao público uma vasta e
lhaços que cantam ópera, que fazem acrobacias,
mento de um catálogo sobre a cena circense na ci-
variada formação estética.
portagens a salto alto, trajes populares, figurinos
dade. Dentre os artistas que integram estes grupos,
Para a população geral, é uma oportunidade
glamorosos, técnicas tradicionais mescladas a uni-
nenhum deles nasceu em circo – embora alguns
de estar no circo, uma arte tão democrática e aces-
versos de dança contemporânea... A diversidade do
tenham realizado vivências pelo circo de lona, a
sível. Para os artistas locais, é uma oportunidade
circo é manifestada!
formação provém de outros espaços. A maior par-
de formar-se, de renovar-se e compartilhar o tra-
Acompanhar o festival é um modo de ver a
te é de egressos da Universidade Federal de Santa
balho com outros artistas. Nessa mútua formação
multiplicidade do circo e de compreender a riqueza
Maria (UFSM) que buscam sua qualificação em
que percebi entre artistas locais e artistas de fora,
que é misturar as heranças do circo de lona com o
cursos, oficinas e intercâmbios, o que nem sempre
identifico um aspecto essencial do festival como
circo da rua, do teatro e da dança. Por tudo isso,
é fácil, dada a localização da cidade.
plataforma de conhecimento, como espaço de for-
acredito que temos a oportunidade de um apren-
Há três anos, teve início no município
mação e renovação da cena local. O evento traz
dizado intenso. Um modo de formação que é mais
um movimento de formação circense que tem
coisas novas a Santa Maria e provoca os artistas
livre, menos formal que qualquer sala de aula, mas
oportunizado diferentes reflexões e práticas nas
locais a reinventarem-se em suas próprias produ-
provavelmente mais impactante em seus resulta-
atividades profissionais – e que cresce muito a
ções. Segundo análise do representante do circo,
dos. Santa Maria renova seus fazeres circenses e a
partir do Santa Maria Sesc Circo. Como professora,
Lainon Willian Ribeiro, “o espetáculo Varieté é um
Boca do Monte sorri com alegria para a lona que se
pesquisadora e artista, tenho acompanhado nos
resultado disso, pois mostra que os grupos envol-
instala na antiga Estação da Gare. É o Santa Maria
últimos anos esse evento, que em 2017 realizou
vidos buscaram uma nova estética para seus tra-
Sesc Circo fazendo sua história na cidade!
sua terceira edição. Percebo que o Festival de-
balhos, influenciados pela programação que o Sesc
sempenha um importante papel para a formação
Circo traz para a cidade”. Além disso, em conversa
circense. De um lado, a comunidade recebe gran-
com grupos locais, percebe-se que todos compre-
des nomes da cena nacional e internacional do
endem a importância do festival como um espaço
circo, que dividem espaço com artistas locais. Ao
de troca entre artistas.
Varieté, Ateliê do Comediante Foto: Guilherme Senna
Circo Espelunca, Teatro Vagamundo Foto: Ronald Mendes
CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
20
#19 O Caderno de Teatro é uma seleção de artigos, reportagens, depoimentos e entrevistas com artistas que participam do Festival Palco Giratório em Porto Alegre. Sua edição representa papel fundamental na difusão do conhecimento e no registro das atividades do Programa Arte Sesc – Cultura por toda parte. As páginas a seguir apresentam o processo criativo dos espetáculos BR-TRANS e Quem Tem Medo de
Travesti, desenvolvidos pelo Coletivo As Travestidas, de Fortaleza (CE), sob a direção da gaúcha Jezebel De Carli. Também apresenta um resumo da longa trajetória artística da diretora, bem como a pesquisa do grupo cearense liderado pelo ator e diretor Silvero Pereira. Os espetáculos integraram a programação das edições de 2016 e 2017 do Festival do Sesc.
ARTES CÊNICAS CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
21
BRASIL TRANS: DA #15 BOATE PARA O TEATRO O DISCURSO CONTUNDENTE D'AS TRAVESTIDAS ENCONTRA A DIREÇÃO DE JEZEBEL DE CARLI
Fotos: Lina Sumizono, Leonardo Pequiar, Luciane Pires Ferreira e Adriana Marchiori
CADERNO ARTES DECÊNICAS TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
POR JEZEBEL DE CARLI E FRANCISCO GICK
22
TRAVESSIA BR-TRANS: UM MANIFESTO CÊNICO As Travestis são centauros urbanos. Têm orgulho de ser quem são. Há algo de clone nelas, elas nascem de dentro de si mesmas. Não é simples, não é doce, há um lado criminal. Elas vivem o terror e a glória da madrugada.[1] Segundo a ONG International Trangender Europe, o Brasil é o país onde ocorre o maior número de assassinatos de travestis e transexuais no mundo. Só no primeiro semestre de 2017 foram registrados mais de 120 casos. Em 2016, foram 127, um a cada três dias. Estou sentada à mesa de um bar, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, bem ao sul do Brasil, esperando por alguém com quem tenho um encontro. Um homem. Um ator. Uma reunião de trabalho, ou pelo menos um primeiro contato em torno de algo que pode vir a ser uma relação de trabalho. Ele tinha dito, por telefone, algo como: “Jezebel, tudo bem por você se eu for montado?”. E eu disse que sim, tudo bem, “venha montado”. O ator tem sotaque, chama-se Silvero Pereira e é de Fortaleza, no Ceará, bem ao nordeste do Brasil. Um amigo me havia dito, na Bahia, nem tão nordeste do Brasil: “Você precisa conhecer Silvero Pereira. Ele está em Porto Alegre, desenvolvendo uma criação sobre o universo ‘Trans’. Ele está em busca de um diretor ou diretora da cidade para ser seu provocador cênico. Acho que pode ser você”. Como ele demora um pouco, eu olho em volta e para o relógio e fumo sem saber que, dentro de alguns meses, não se poderá mais fumar nesse
BR-TRANS
Foto: Jorge Etecheber
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
1 Fragmento do espetáculo Quem Tem Medo de Travesti, dirigido por Jezebel De Carli e Silvero Pereira, realização do coletivo artístico As Travestidas. Transcriação a partir do texto do escritor Arnaldo Jabor – “O travesti na terceira margem do rio”. 2 Anne Bogart. A Preparação do Diretor – sete ensaios sobre arte e teatro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. 3 Fragmento da canção Três Travestis, do cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso. 4 Judith Butler. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. 5 Idem.
23
2012, na cidade de Porto Alegre e, desde então,
acontece. Lá mesmo. Lá mesmo a sociedade eli-
já foi vista por mais de 40 mil espectadores, tan-
mina o que é abjeto, diferente, ameaçador, o gay,
to no Brasil como no exterior, e foi considerada
o veado, a travesti, a lésbica, a mulher macho, a
uma das dez melhores peças de 2015 pela crítica
mulher trans, o efeminado. Postagem: “a travesti
especializada. Também foi vencedora do Prêmio
Dandara dos Santos foi espancada e assassinada
Aplauso 2016 nas categorias ator, dramaturgia e
por um grupo de jovens num bairro da periferia
espetáculo, eleitos pelo voto popular.
de Fortaleza, Ceará, Brasil, no último dia 15 de fevereiro de 2017. Vizinhos assistiram à cena em plena luz do dia, mas não prestaram socorro. Um
Três travestis
dos agressores gravou o espancamento, os pedi-
Traçam perfis na praça.
dos de ajuda de Dandara e seus últimos minutos
Lápis e giz
de vida”. Uma vez na rua, toda travesti é conside-
Boca e nariz, fumaça.
[3]
rada marginal perigosa, sem nenhuma chance lugar onde estou sentada agora. Anne Bogart[2]
Uma desgraça segue os passos de outra e
de provar o contrário. Pode ser presa a qualquer
diz que, sempre que vai a um ensaio, sente-se
tão próxima ela vem. É noite, e talvez por isso elas
momento, agredida ou assassinada, que nenhum
como se estivesse a caminho de um encontro
costumam acontecer, pois no escuro será mais
transeunte moverá um dedo em sua defesa. Algu-
romântico. Não é exatamente assim nesse caso.
fácil esquecer. Avenida Farrapos, Porto Alegre.
ma ela deve ter feito para merecer. Segundo dados
Montar-se. Uma mulher linda vem em minha di-
Carros passam em alta velocidade nas pistas cen-
do Grupo Gay da Bahia, mais antiga instituição
reção, sorrindo, eu olho pra ela que vai crescendo
trais, mas nas pistas periféricas a coisa vai mais
brasileira a defender direitos da população LGBT,
até sentar na cadeira à minha frente: “Olá Jezebel,
lentamente. Vitrines, peep show sem vidro, não
2016 foi o ano recorde em assassinatos de gays,
eu sou a Gisele”. Gisele Almodóvar, álter ego de
é Amsterdã, nada de luz vermelha. São corpos
lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Foram
Silvero, o ator que eu deveria conhecer e que me
silhuetados por luzes de poste ou farol ou, até,
347 mortes em ruas, esquinas, praças e becos de
avisou ao telefone que viria montado. Gisele – ele
no escuro, ali onde o asfalto deixa de ser cinza e
um Brasil-Trans.
não sabe exatamente onde começa um e termina
simplesmente some. É preciso reduzir bastante
Nasci com o sexo feminino, me reconheço e
a outra. Silvero-Gisele desenvolve uma pesqui-
para ver, quase parar. Corpos em pleno desvio
me identifico com o gênero feminino – o que se
sa com transexuais e travestis em uma conexão
pelas ruas escuras da cidade, cheios de próteses.
chama de cisgênero, pessoas que se identificam
Porto Alegre-Fortaleza, fruto do edital público
Corpos abjetos, como diria Judith Butler[4], filóso-
com o gênero que lhes foi determinado quando
Interações Estéticas 2012 da Funarte/Ministério
fa estadunidense e teórica dos estudos de gênero,
do seu nascimento. Todavia, nunca fui a menina
da Cultura. Conversamos e me sinto provocada,
que não poderiam existir dentro dos limites da
de vestido rosa, nem a colega que brincava so-
movida, deslocada por ele/ela. Assumo então a
normalidade, do conjunto de regras e procedi-
mente de bonecas, nem a filha delicada, doce e
direção do trabalho e inicia-se meu trânsito en-
mentos assumidos nos conceitos de um discurso
meiga. Adorava a rua e as brincadeiras no pátio
tre as duas capitais. Três meses depois, estreamos
de normalidade. Ou seja, ainda para Butler, a
de casa, colocava meus pais a serem meus es-
BR-TRANS, manifesto, narrativa documental, te-
unidade do gênero é o efeito de uma prática re-
pectadores porque fazia de uma vassoura meu
atro depoimento, performance transformista. O
guladora que pretende uniformizar a identidade
microfone para shows, andava de bicicleta, era
espetáculo busca afirmar o teatro como possibi-
de gênero pela heterossexualidade compulsória.
polícia ou ladrão no jogo de Polícia/Ladrão, fui
lidade de invenção e transformação do humano,
Corpos que não deveriam existir. Alguns dão con-
inventora como o professor Pardal, corri muito,
como um espaço de encontro e de manifestação
ta de apagá-los. Como um rio, a corrente corre
joguei bola, quase coloquei fogo na casa, subi em
da diferença. Baseado em depoimentos e vivên-
mais rápida no meio, enquanto nas bordas vai
árvore. Também brinquei de boneca, de casinha,
cias de transexuais, transformistas e travestis,
lentamente corroendo a margem, atritando, de-
fiz balé. Fui performando-me entre brincadeiras
além da transcriação de textos literários e dramá-
vorando, remoendo quem está parada na calçada,
ditas de menino e jeitos de menina. A narrativida-
ticos, reportagens e canções, a cena desliza por
encostada em uma parede, esperando. Assassina-
de da minha vida me levou ao BR-TRANS e as mi-
entre corpos/personagens/figuras que transitam
das. Assassinadas. Tua irmã se afogou, Laerte. Lá
nhas escolhas de como contar e articular outras
entre o real e a ficção, compondo a paisagem de
onde a estrada faz uma pequena curva, onde elas
narrativas. O encenador e pesquisador Antônio
um Brasil-Trans. A montagem teve sua estreia em
esperam, entram e saem dos carros, onde o amor
Araújo, em artigo sobre a encenação performa-
[5]
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
24
6 Antônio Araújo. A Encenação Performativa. Sala Preta revista de Artes Cênicas, v.8, 2008, p.253-258. p 254. 7 Óscar Cornago. “Teatralidade e Ética”. In: SAADI, F., GARCIA, S. (org.). Próximo Ato: questões da teatralidade contemporânea. São Paulo: Itaú́ Cultural, 2008. p. 25. 8 Idem, p 25. 9 Idem, p. 26. 10 Idem, p. 26. 11 Idem, p. 26. 12 Frase da modelo e atriz Roberta Close. Primeira modelo transexual a posar para a edição brasileira da revista Playboy.
tiva, aponta que a utilização da biografia pessoal no teatro não se dá somente por meio dos atores. Na medida em que a função primeira do diretor deixa de ser a passagem de um texto à cena, as experiências pessoais do encenador se abrem como possibilidades de material cênico. “Suas memórias, histórias pregressas e busca de autodesenvolvimento são convocadas para a construção do espetáculo”.[6] A encenação de BR-TRANS é também a minha vida, a vida de Silvero Pereira e de tantas e tantos outros corpos abjetos que a sociedade insiste em tornar invisíveis. Algumas palavras/dispositivos me acompanharam no processo de BR-TRANS: incompletude, inacabado, desordem, performatividade, rusticidade, corpo, cômico, inscrição, tragicidade, ética, real, ficção, tensão, provocação, revolta e desconstrução. de BR-TRANS em busca de indefinições. Inten-
embate, performar o gênero, produzir questio-
cionalmente, os materiais provocam perguntas
namentos e curtos-circuitos mentais. “A obra
O ATOR COM FOGO NOS OLHOS E OS MOVIMENTOS DA ENCENAÇÃO
ao espectador. Quais histórias foram vivencia-
expressa uma atitude cênica que remete a uma
das por Silvero e constituem uma investigação
tomada de posição ética. Torna-se, então, visí-
Não parti do vazio. Em nosso primeiro encon-
autobiográfica? Seriam narrativas cartografadas
vel um determinado tipo de relação do criador
tro de trabalho, Silvero apresenta materiais de
durante a pesquisa dramatúrgica e assumidas
e seu trabalho, do ator e o público, do eu dian-
sua pesquisa. Silvero integra o coletivo As Tra-
pelo ator como suas? Estão presentes textos
te do tu”.[11] Resistência e resiliência são o seu
vestidas, da cidade de Fortaleza, através do qual
de outros autores? Interessava-me lidar com a
cotidiano. Porque o amor é tão longe e a dor
desenvolve uma pesquisa teórico-prática desde
dúvida e a incerteza — o que é de Silvero e o
é tão perto! Carne vai bem com carne! Que as
2002 acerca do universo de travestis e transfor-
que é de Gisele, Babi, Bruna, Tyna, Dani, Mile-
carnes de Silvero sejam as carnes de Dandaras,
mistas. Seus trabalhos visam problematizar e
na, Marcelly e de outras tantas vozes presentes
Castanhas, Marcellys, Babis, todas à procura de
visibilizar a temática Trans em todas as camadas
no espetáculo? Para Óscar Cornago, as artes
um arco-íris. Quando criança, me disseram que
possíveis. Então, ao iniciar a direção do espe-
contemporâneas, no decorrer dos séculos 20 e
se passasse por debaixo de um arco-íris, virava
táculo BR-TRANS, percebo (aqui se faz o ver-
21, aproximaram-se significativamente da per-
mulher. Passei a minha infância procurando um
bo presente, intencionalmente) possibilidades,
formance, a ponto de o “ato teatral se tornar
arco-íris.[12]
identifico o lugar de um contundente discurso
uma ocasião para o encontro com o outro, um
Silvero travestido de Gisele recebe o públi-
e, mais do que tudo, me apaixono pelo ator que
devir-grupo, um devir-social, de tornar social
co. Conversa diretamente, dá instruções, como
tem fogo nos olhos. E estabelecemos o pacto.
um acontecimento aqui e agora”.[8] Corpos ab-
as que indicam o uso de celulares, que aqui são
“Tudo é bem-vindo! É o tempo do sim!”. Silvero
jetos, execrados por uma sociedade inquisidora,
permitidos para fotos e filmagens – desde que
aceita todas as interferências, sugestões, cortes,
preconceituosa e julgadora. Digo novamente: o
se use #brtrans para as postagens, de forma
delírios e devaneios. Compra todas as propos-
Brasil é o primeiro país da América Latina em
a sabermos o que andam fazendo com nossas
tas, motes e tarefas. Juntos, tecemos a escritura
assassinatos de travestis e transexuais. “Na cena
imagens por aí. Talvez pareça um show, um pro-
cênica. Na encenação, as palavras mantêm uma
contemporânea questiona-se a relação do eu
grama de auditório, um número de dublagem ou
relação indissoluta com a ação, com a luz, com
com o coletivo, do privado com o público”. Se-
qualquer dessas formas, ou todas juntas. Quem
a música e com os demais elementos que com-
guem-se os assassinatos, as humilhações, a falta
fala? É o ator Silvero com figurino de mulher? É
põem a cena espetacular. A fragmentação pro-
de trabalho, o desamor, a solidão, o preconceito
a travesti Gisele? Embaralhamento. O que é isso
duziu conteúdos. Embaralhamento de histórias,
e a violência, “aparece um compromisso antes
mesmo que estou a assistir?, talvez se pergun-
documentos e memórias. Conduzo a encenação
ético que político”.
te algum espectador, um pouco sem entender
[7]
[9]
[10]
Desejamos potencializar o
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
13 Josette Féral. Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 12. 14 Márcia Arán apud Simone Ávila. FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: A emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, 2014. 2015, p. 30. 15 Beatriz Preciado. Manifesto Contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2014. 16 Simone Ávila. Obra citada. 17 Balzer apud Simone Ávila. Obra citada. 18 Judith Butler. “Your Behavior Creates Your Gender”, entrevista concedida a Max Miller, dirigida por Jonathan Fowler, produzida por Elizabeth Rodd [versão eletrônica]. Acesso em: 22 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://bigthink.com/videos/yourbehavior-creates-your-gende>.
o que virá a acontecer. O jogo se estabelece e
Perder, desfazer, desconstruir a “montaria da
norteará a encenação. Ao cabo de uma hora, o
travesti”. Que ridícula é a minha dor. Olhando
que estará em relevo será a execução das ações
para aquela travesti cansada bebendo no bar,
do performer que canta, dança, conta, por vezes
que ridícula é a minha dor. Aliás, aquela traves-
joga personagens e, de imediato, os abandona.
ti sou eu. Maltratada, humilhada, abandonada,
O “corpo do ator, seu jogo e suas competências
cheia de dúvidas, cheia de doenças, morrendo de
técnicas são colocados na frente. O espectador
medo. Alguém aqui já sentiu isso alguma vez na
entra e sai da narrativa...”,[13] transita por ima-
vida? Que bom! Porque isso prova que somos to-
gens, gestos, ações que a voz e os movimentos
dos iguais! Movimentos na cena que desestabi-
expandem. Silvero performa e captura o público.
lizem o binômio homem-mulher, performances
Como um griô, conta histórias de suas experi-
de gênero que não reforçam identidades pre-
ências com o universo Trans, o teatro e o sur-
viamente estabelecidas, mas que se processam
gimento de Gisele Almodóvar. “A experiência
sem modelos, sem referências, performances
dita transexual traz consigo uma potencialidade
produtoras de diferença. Montar-se. Montar-se
crítica de subversão das nossas próprias crenças
pode ser construir um sentido ou uma possibi-
sobre sexo, gênero e identidade”[14] e corpos fa-
lidade de si com o agenciamento de fragmentos
lantes como travesti, bicha, drag queen, lésbica,
de si ou de outros. Montar-se é, assim, cons-
sapa, transgêneras, são imposturas orgânicas,
truir identidades. Montar-se é ação, é um gesto
mutações prostéticas, recitações subversivas
que cria subjetividade, um gesto de desterrito-
capazes de inverter e derivar práticas de pro-
rialização. Corpo-Montagem. Trans: além de,
dução da identidade sexual.
São corpos que
para além de, em troca de, para trás, travessia,
representam uma identidade de gênero que não
deslocamento, mudança de uma condição para
se encaixa em nenhum dos modelos propostos
outra, através. Assim, não se trata de tomar a
segundo as práticas discursivas do século 19[16]
noção de montagem como simplesmente uma
e optam por apresentarem-se por meio de figu-
trajetória entre dois territórios estabelecidos e
rinos, acessórios, maquiagens ou modificações
estáveis, do masculino ao feminino, por exem-
corporais diferentes das expectativas com rela-
plo, mas sim como uma ação, um movimento
ção ao seu papel de gênero que lhes é atribuído
que desestabiliza um território para criar outro
ao nascer (biologicamente).
[15]
Silvero/Gisele faz
novo, que não corresponde necessariamente a
sua primeira inscrição – registro de nomes de
qualquer modelo preexistente. Importa superar
travestis em seu corpo, ato que se repete como
os conjuntos binários como masculino-femini-
uma ação leitmotiv durante o espetáculo. Gisele,
no, heterossexual-homossexual, no pensamento
na parte interna do braço esquerdo. Cartografa
sobre o corpo. Mulher e homem são também
um caminho de identidades. Nomes reais, dores e
discursos, normas criadas e impostas ao cor-
superações reais, histórias reais confrontadas na
po da sociedade ao longo de muitos anos. São
ficção. Gisele dá espaço ao ator Silvero. Cena da
papéis construídos socialmente e jogados de
desmontagem. Inversão da travestilidade. Aqui
maneira irrefletida por bilhões de pessoas todos
o interesse se volta para a ação de desconstruir
os dias, performances com regras determinadas
a persona Gisele. A cena evidencia a corporeida-
repetidas e reencenadas a todo tempo. Para Bu-
de do performer. Um corpo que flui. Um corpo
tler[18] dizer que gênero é performativo implica
entre. Nem masculino, nem feminino. Um corpo
em afirmar que os indivíduos não pertencem
híbrido, fluido, em trânsito. No processo, solicito
a um único gênero desde sempre. Silvero não
a Silvero que crie uma sequência de ações cujo
pertence somente a Gisele e ela a ele. A cena
efeito seria a desmontagem de Gisele. Subtrair
evidência o performativo, o espaço entre ele/ela,
do corpo os adereços, figurinos e maquiagem.
a cena se constrói e se desvanece, o trágico e o
[17]
25
BR-TRANS
Foto: Lina Sumizono
BR-TRANS
Foto: Jorge Etecheber
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
26
19 Jorge Dubatti. “Teatro como acontecimento convivial”, uma entrevista com Jorge Dubatti. Revista Urdimento, v.2, n. 20 Idem, p. 259. 21 Final do espetáculo BR-TRANS.
cômico se atravessam, eles/elas se atravessam e
cantadas. Entretanto, a cena adquire status trá-
travesti que mora em Pelotas, no interior do Rio
se afirmam no espaço do entre.
gico quando se operam mudanças radicais de
Grande do Sul, seu sonho era ser atriz. Silvero/
Há também na encenação o dispositivo da
estados físicos e emocionais no corpo do perfor-
Gisele/Babi/Geni vem apenas em carne, nomes e
intertextualidade. Travestis assassinadas, a Ofé-
mer. É bem mais difícil dançar quando o demônio
botas. Botas grandes, coturnos gregos, sapatos
lia, de Shakespeare, e seu suicídio, a solidão e o
está em suas costas, então livre-se dele... Escada,
de salto alto, passos que se afirmam na resis-
campo de batalha da Ofélia, de Heiner Muller.
acesso, caminho, corredor, preparação para um
tência de um Brasil-Trans que explora, abusa,
A mulher com a cabeça no fogão a gás. Ontem
acontecimento... O fim é o começo de algo. E o
submete e silencia – uma voz sem voz. Contudo,
ela deixou de se matar. Vidas breves e efêmeras,
que começa é cena “Mãe”; mãe de Silvero, Dona
elas gritam e se fazem voz. Joga pedra na Geni.
sejam elas ficção ou a crueza do real. Descrição
Rita, Dona Zóla, minha mãe, mães de todas elas,
Joga pedra na Babi, ela é feita pra apanhar, ela
da morte prematura da jovem e bela Ofélia. Ima-
mãe de Gisberta, Dandara, Bruna, Geni. Mães
é boa de cuspir. Ela dá pra qualquer um, maldita
gens reais de assassinatos de travestis extraídas
que acolhem e aceitam. Mães que expulsam e
Babi!
das páginas policiais. Assassinadas, violadas, es-
renegam. Silvero lê uma carta. Mombaça, 11 de
Não sei o que conseguimos provocar nessa
pancadas, desfiguradas. Uma desgraça segue os
agosto de mil novecentos e noventa e seis. Meu
travessia de BR-TRANS. Seguem-se os assas-
passos de outra. Tão próximas elas vêm. Tua irmã
querido, meu abraço. Silvero, em mim há muitas
sinatos, as humilhações, a falta de trabalho, o
se afogou, Laerte. Eu sou Ofélia, aquela que o rio
saudades. “Apenas leia, sem interpretação, sem
desamor, a solidão, o preconceito e a violência.
não conservou. Um país que registra recorde em
se preocupar com o público, como lendo para si,
Mas prosseguimos... Hoje, Babi mora em Pelotas,
assassinatos de travestis. Imagens reais em um
sem efeitos, sem técnicas, apenas se deixe levar”,
no interior do Rio Grande do Sul. Se um dia você
espaço convivial. “...o teatro é a produção e ex-
disse eu quando, no processo, criamos a cena.
quiser ligar para a casa dela e falar com ela, cha-
pectação de acontecimentos poéticos corporais
Deixe-se levar pelo instante e pelos estados que
me pelo Carlos. A família detesta que a chamem
em convívio”.[19] Com as mãos sangrando rasgo
a leitura lhe provocar. ...Silvero Deus te abençoe
de Babi.[21] Silvero apaga todas as luzes da cena.
as fotografias dos homens que amei e se servi-
meu filho. Saiba que gosto muito de você e lhe
Silêncio. Texto em projeção.
ram de mim na cadeira, na mesa, no chão. Não
quero muito, sinto muitas saudades. Não esque-
demorou muito até que suas roupas começaram
ça disso que acabo de lhe dizer. A carta não é
a ficar pesadas e arrastaram-na daquele canto
memorizada pelo ator. Ação é de ler. É movediça!
melodioso para a morte. Afogadas. Imagens de
Escorrega! É confessional. Produz um momento
meninas mortas por tiros incógnitos. Meninas
de intimidade. O espectador como companheiro
mortas, abraçadas em rios de concreto e asfalto.
para “compartilhar o pão. O convívio é justa-
Mortas por um tiro, por vários tiros, por paula-
mente a mesa, uma reunião para beber e comer”.
das, jogadas em covas, calçadas, matos e sarje-
[20]
tas. Banimento.
não estiver, mesmo pobre como eu sou lhe rece-
Meu filho, você está bem? Espero que sim. Se
A cena corre. Dublagem – performance ine-
bo de todo meu coração. Não tenho muito para
rente às artes transformistas. Como transcriar
lhe dar, mas tenho o meu amor. Não tenho nada
os números de dublagens comumente apresen-
para lhe mandar, mas mando o meu abraço de
tados em shows de transformismo? Assim como
gratidão. Compartilhamos Silvero, público,
na desmontagem, explicitamos o que está por
mães. É simples, singelo, quase ingênuo. Talvez o
trás. Os truques e efeitos de dublar uma músi-
público volte a se perguntar: É uma carta real?;
ca em outro idioma são demostrados. A canção
É a mãe de Silvero mesmo? Novamente a dúvida
Shake It Out, de Florence and The Machine, nos
se é real ou ficção. Acho que não importa muito.
possibilitou transitar entre o cômico e o trági-
O público embarca e se afeta. Mas sim, é Dona
co, movimento que marca a encenação. É risível
Rita, mãe de Silvero, das poucas narrativas que
quando o performer-dublador explica ao público
são verdadeiramente suas. De sua mãe pra você
estratégias para facilitar a dublagem, ainda que
um grande abraço. Rita.
não domine o idioma que está dublando. É tam-
BR-TRANS começa com Gisele Almodóvar e
bém risível quando revela truques que permitem
encerra trazendo Geni, personagem de A Ópera
“sincar” o movimento da boca com as palavras
do Malandro, de Chico Buarque. Vem junto Babi,
JEZEBEL DE CARLI Diretora, professora e atriz de Teatro. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DAD/UFRGS). Bacharel em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Dramáticas (UFRGS). Professora auxiliar do Curso Graduação em Teatro: Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Diretora da Santa Estação Cia de Teatro e do Coletivo Errática. Diretora colaboradora do coletivo artístico As Travestidas. FRANCISCO GICK Aluno do Curso Graduação em Teatro: Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Professor da Casa de Teatro de Porto Alegre. Dramaturgo e ator do Coletivo Errática.
CADERNO ARTES CÊNICAS DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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FOCO NO DISCURSO E DIREÇÃO DE UM NOVO GRUPO Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora Foto: Adriana Marchiori
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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Parada 400: convém tirar os sapatos Foto: Gabriel Schmidt
A Tempestade e os Mistérios da Ilha Foto: Luciana Mena Barreto
Diretora, professora e atriz, Jezebel De Carli ini-
no Tepa (Teatro Escola Porto de Porto Alegre) e,
Assim foi criada a Santa Estação Cia de Te-
ciou seu contato com as artes a partir da dança,
por que ao final dos cursos havia a montagem de
atro, que por 10 anos teve Jezebel na direção de
na cidade de Caxias do Sul (RS). Essa referência
espetáculos de conclusão, me percebi organizan-
seus espetáculos, alguns de grande relevância,
atravessa o teatro que vem desenvolvendo, no
do os materiais criados pelos alunos e exercendo
como o Parada 400, que trabalhava a partir da
qual o corpo está no centro do acontecimento,
a atividade de diretora e encenadora, função que,
fisicalidade e corporeidade do ator; A Tempestade
o movimento e a ação física são matrizes para
a meu ver, se atravessa à docência”.
e os Mistérios da Ilha, adaptação de Shakespeare
a criação. Como atriz, fez sua formação no De-
Da Oficina de Análise e Improvisação do Mo-
que venceu o Prêmio Brasken de melhor espetá-
partamento de Artes Dramáticas da Universidade
vimento no Tepa, e após meses de investigação
culo pelo júri popular no Porto Alegre Em Cena
Federal do Rio Grande do Sul (DAD-UFRGS), par-
sobre o corpo do ator e suas possibilidades para
2007; e Hotel Fuck: num dia quente a maionese
ticipou de coletivos de teatro como o Tear, sob a
a cena, resulta o primeiro espetáculo dirigido por
pode te matar, com 10 indicações no Prêmio
direção da professora e encenadora Maria Helena
Jezebel, Parada 400: convém tirar os sapatos. Este
Açorianos 2011 e vencedor do Brasken de melhor
Lopes, e integrou o Núcleo de Pesquisa e Treina-
foi, na verdade, um trabalho de formação de ato-
ator. “Só tenho a agradecer aos atores da Santa
mento do Ator, sob orientação dos professores
res, que percorreu um circuito “off” e, após dois
Estação por compartilharem comigo, durante 10
Irion Nolasco e Maria Lucia Raymundo. Segundo
anos, cumpriu temporada profissional e foi indi-
anos, seus desejos, crenças e sonhos. Me fiz dire-
Jezebel, são as experiências intensas que consti-
cado ao Prêmio Açorianos 2005 de melhor espe-
tora porque eles confiaram em mim e se permiti-
tuem o seu modo de operar o teatro. “A direção
táculo e direção, recebendo o prêmio de melhor
ram inventar possibilidades de criação.”
surgiu sem a intenção de me tornar diretora, as-
direção. “Foi uma das grandes e felizes surpresas
sim meio ao acaso. Em 2003 comecei a dar aulas
da vida”, diz a diretora.
Além da Santa Estação, Jezebel atuou em parceria com outros coletivos, como a Cia. Stra-
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
29
vaganza, em trabalhos de preparação corporal e
que transformaram meu olhar não apenas para
histórias reais que ele viveu? A cena da Carta da
na direção cênica de alguns espetáculos da Muo-
as travestis e transexuais, mas para o outro.
Mãe é da sua mãe mesmo? O que é do ator e o que
vere Companhia de Dança. No Tepa e no curso
As dramaturgias do BR-TRANS e do QTMT
é ficção?” Em ambos os espetáculos, misturam-
de Graduação em Teatro da Universidade Esta-
foram criadas a partir de histórias de vida de tra-
-se depoimentos pessoais do elenco com relatos
dual do Rio Grande do Sul (UERGS), cujo corpo
vestis e transexuais, depoimentos pessoais dos
de ficção, quase como uma montagem. “Além de
docente integra há mais de uma década, dirigiu
atores e fragmentos de textos dramatúrgicos e li-
histórias reais, compusemos a dramaturgia do
inúmeros espetáculos com jovens atores. A partir
terários. “Todas as histórias no BR são verdadeiras
QTMT com fragmentos de textos de outros autores
de 2012, dirigiu dois espetáculos do Coletivo As
e aconteceram, mas poucas são da vida do Silvero.
teatrais como, por exemplo, a cena final em que
Travestidas, o multipremiado BR-TRANS, com Sil-
Queríamos que o espectador se perguntasse: “São
utilizamos o monólogo da Joana de Gota D’Água
vero Pereira, e Quem Tem Medo de Travesti. O processo de criação dos espetáculos com o coletivo de Fortaleza (CE), segundo Jezebel, mudou o seu pensamento em relação à concepção de seus espetáculos, que sempre tiveram um discurso provocador em relação a assuntos que a desconfortam na vida – o que ficou muito mais acentuado e evidente a partir do trabalho com As Travestidas. “Cada vez tenho mais vontade de tocar em temas que afetem tanto o espectador quanto os criadores da obra, não somente pela espetacularidade ou pela forma dos espetáculos, mas também por um discurso capaz de provocar instantes de transformação nas relações humanas.” Jezebel admite que até mesmo a relação com o universo da travestilidade mudou. “A arte transformista não era a linguagem investigada em meus espetáculos. Também a vida das travestis não era a temática centro das criações da Santa Estação, muito embora sempre tenhamos procurado problematizar questões de gênero. Percebia o preconceito com as travestis e transexuais, mas ainda era um tema distante da minha realidade. Para a grande maioria das pessoas, o mundo das travestis se resume à prostituição, à violência e à invisibilidade. Quando eu estava em Fortaleza para montar o QTMT, fui entrevistada por uma diretora de cinema que realizava um documentário sobre o coletivo As Travestidas e que me fez a seguinte pergunta: você tem medo de travesti? Após segundos, respondi um pouco constrangida: “É muito provável que, em algum momento, o medo tenha me atravessado, sim. Mas a partir da relação com Silvero e com as meninas do coletivo, me aproximei do universo da travestilidade e, juntos, compartilhamos vivências e experiências
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
30
(peça de Chico Buarque e Paulo Pontes, de 1975).
“Para além de um discurso que fomenta o
Mais uma vez, a diretora se identifica com
A voz da Joana torna-se a voz de Verônica, Alicia,
debate sobre identidade de gênero, os espetáculos
um coletivo de jovens atores e o espetáculo Ramal
Patricia, Mulher Barbada, Deydianne, Karolaynne
falam do humano, de pessoas, de ser e sentir-se
340, faz, inclusive, uma trajetória parecida com a
e Yasmim. “Eles pensam que a maré vai mas nun-
diferente, deslocado, à margem. De quem ‘está
do Parada 400, primeiro com a Santa Estação. Em
ca volta. Até agora eles estavam comandando o
fora da roda’ (texto do espetáculo Dama da Noi-
2017, o grupo estreou o espetáculo infantil Plugue:
meu destino e eu fui, fui, fui, fui recuando, reco-
te, de Silvero Pereira). Quem nunca sentiu-se ‘fora
um desvio imaginativo. “Minha energia está no Er-
lhendo fúrias. Hoje eu sou onda solta e tão for-
da roda’ por algum motivo? BR traz também essa
rática. Encontrei novos parceiros. Jovens que me
te quanto eles me imaginam fraca. Quando eles
questão. Acho que o público se identifica com esse
revigoram e acreditam em tornar possível o impos-
virem invertida a correnteza, quero saber se eles
lugar e se deixa afetar, se emociona, torna-se cúm-
sível. Acreditam em continuidade e pertencimento.
resistem à surpresa, quero ver como eles reagem
plice. Mas BR é também prazer, humor, superação,
Estamos trabalhando duro para manter o coletivo
à ressaca!”
compartilhamento.”
em movimento. Não é fácil. Não está sendo fácil.
Desde o BR-TRANS, Jezebel procurou acen-
Professora da UERGS, em paralelo com ou-
Estamos em um momento muito delicado para as
tuar a presença em cena de um corpo fluído, um
tros trabalhos, Jezebel começou a desenvolver
artes. Precisamos resistir, e resistir passa por es-
corpo que expande os limites do masculino e do
uma pesquisa com um grupo de alunos em 2012,
tarmos juntos. E para estarmos juntos precisamos
feminino. “Silvero em cena transita por diferentes
que deu origem ao Coletivo Errática. Foram diver-
de amor, confiança, ética, tolerância, bom humor,
estados corporais e físicos, ora acentuando ener-
sas ações de ocupação de espaços públicos como
desejo de estar, aceitação das diferenças, escuta ao
gias mais femininas, ora masculinas. A diretora
ruas, galpões e barcos abandonados no município
outro, enfim. É um mundo! O coletivo é meu lugar,
havia assistido uma mostra de repertório d’As
de Montenegro, até que o grupo ganhou um edi-
foi como atriz e está sendo como diretora. Sou feliz
Travestidas e, ao ver o elenco preparando-se para
tal de incentivo à cultura. Em 2015 estreou Ramal
pelas minhas escolhas.”
uma apresentação, sentiu o desejo de dirigi-las,
340 – sobre a migração das sardinhas ou porque
dando continuidade ao trabalho iniciado com o
as pessoas simplesmente vão embora, criado nas
BR. “Queria aquela visualidade que estava pre-
ruínas de uma antiga estação ferroviária e, poste-
senciando. O ‘antes da montaria’. Os enchimentos,
riormente, adaptado para o palco. O espetáculo fez
a maquiagem ainda por terminar, as cabeças com
uma temporada em Porto Alegre e foi indicado a
toucas, as meias de nylon, partes do corpo à mos-
diversos prêmios, vencendo o Açorianos de melhor
tra, quase uma segunda pele.” E foi o que fez em
espetáculo e o Prêmio Brasken de melhor direção
Quem Tem Medo de Travesti.
no Porto Alegre Em Cena, em 2017.
Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar Foto: Luciane Pires Ferreira
Hotel Fuck: num dia quente a maionese pode te matar Foto: Luciane Pires Ferreira
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
31
UM LUGAR DE ENCONTRO E AFETO POR JEZEBEL DE CARLI
específicas, têm igual espaço de proposição e produzem uma obra de autoria compartilhada. O
AS TRAVESTIDAS
POR SILVERO PEREIRA, ator, diretor e dramaturgo
corpo é o território da pesquisa e investigação. O performer assume com o encenador a criação,
O Coletivo As Travestidas surgiu de uma pesqui-
Tem uma frase da encenadora Ariane Mnouchki-
o pensamento e os movimentos do processo. Os
sa que iniciei em 2000, quando montei o solo
ne que eu acho demais. Ao ser perguntada por
motes são os dispositivos geradores do material.
Uma Flor de Dama, inspirado no conto Dama da
que fazer teatro com um elenco estável, ela diz:
Compomos juntos.
Noite, de Caio Fernando Abreu e que participou
“Para sair em aventura, para atravessar oce-
Desde a época de aluna do Departamento
do Circuito Palco Giratório Nacional. Passei dois
anos desconhecidos. Para enfrentar tempestades
de Artes Dramáticas (DAD-UFRGS) tenho uma
anos pesquisando sobre o universo de travestis,
austrais, e descobrir ilhas salvadoras. Para estar
frase que me acompanha, e que hoje transmito
transexuais e transformistas e desse laborató-
em um barco que solta amarras com cada espe-
aos meus alunos, e que me diz muito sobre a
rio criei meu primeiro substrato de dramatur-
táculo. Para ter amigos e amores num mesmo
formação do artista. Diz Zeami (mestre do teatro
gia, encenação e atuação, partindo da relação
lugar, e ao mesmo tempo, ser nômade. Para viver
japonês): “quando o ator tem a flor da juventude
entre literatura, teatro, histórias pessoais e fatos
e lutar por e com uma família que te protege e
deve trabalhar para desenvolver a flor do ofício,
reais. O espetáculo seguiu em temporadas até
que também te liberta. Um universo encantado
porque quando a flor da sua juventude tiver de-
2008, quando decidi criar o projeto Cabaré das
em um mundo que cada vez mais te desencanta.”
saparecido, já será demasiado tarde para desen-
Travestidas, para o qual convidava atores que
volver a flor do seu ofício”.
quisessem fazer shows de transformistas no te-
Acho que desde o começo busco esse sentido de pertencimento. De estar em família. De
atro. Desse projeto, me juntei a mais dez artistas
viver uma aventura e de navegar por lugares
e criamos o Coletivo As Travestidas, um grupo
desconhecidos. Busco no teatro um lugar de
de atores, bailarinos, designer e profissionais de
encontro e afeto. De invenção, desassossego e
outras aéreas. Em 2010, realizamos a montagem dos espe-
provocação. Trabalhar em coletivo é perseguir um
táculos Engenharia Erótica-Fábrica de Travesti e
desejo de estabilidade, continuidade, tolerância e reconhecimento das diferenças. Os processos de criação dos espetáculos se caracterizaram por um espaço de colaboração em que todos os integrantes, a partir de funções
Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora
Yes, Nós Temos Bananas!. Na sequência, elabo-
Foto: May Lima
rei o projeto BR-TRANS, que visava passar seis
Ramal 340 – sobre a migração das sardinhas ou porque as pessoas simplesmente vão embora
meses no Rio Grande do Sul, pesquisando sobre
Foto: May Lima
novas histórias e buscando formular, para o Co-
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
32
Teve muito preconceito e, no próprio meio, diziam que o Silvero só fazia esse tipo de trabalho, que estava fabricando várias drags e travestis. Como resposta às críticas, o trabalho seguinte se chamou Engenharia Erótica-Fábrica de Travesti. Hoje em dia, a drag se tornou pop com movimentos a partir do reality da RuPaul – RuPaul’s Drag Race – e com Pabllo Vittar conquistando espaço na música. Em 2008, o tema ainda era muito marginalizado, principalmente no âmbito artístico. Sempre foi visto como uma coisa menor, tanto que os únicos espaços para atores e atrizes transformistas e trans eram as boates. Com Cabaré das Travestidas, conseguimos trazer a boate para o teatro. Quem Tem Medo de Travesti proporcionou uma experiência diferente, juntamente com a Jezebel, que trouxe uma nova visão. Procuramos fugir do óbvio, tanto que todo mundo está de bege. Penso que nós temos propriedade para falar sobre o tema porque é sobre a gente, então falamos sobre esse medo, quem são essas pessoas que sentem este medo, que medo é letivo, uma metodologia mais consciente sobre criação de texto, estética de encenação e criação de personagem (atuação). Assim, no quarto mês de pesquisa, decidi buscar uma orientação
DA BOATE PARA O TEATRO POR ALICIA PIETÁ, atriz
esse? E procuramos desmistificar a imagem tão marginalizada que é a travesti. Texto e cena foram construídos durante os ensaios a partir de vivências nossas, com citações de grandes no-
para o projeto e fui apresentado, pelo artista
A entrada no grupo, em 2008, teve uma importân-
mes como Shakespeare e Clarice Lispector, que
visual Sandro Ka, à diretora Jezebel De Carli.
cia fundamental na minha vida porque foi ali que
trouxemos para essa realidade. Tudo se encaixa
“Jeze”, como a chamo carinhosamente, acres-
eu me reconheci como trans. Para além da arte,
perfeitamente: entra música, entra interpretação,
centou muito a minha pesquisa, esclarecendo
tive esta descoberta pessoal. Eu, Verônica Valenti-
entra vivência pessoal e acaba emocionando todo
e me guiando na construção desse método no
no e Patrícia Dawson somos trans no grupo. Silve-
mundo, não precisa ser trans ou travesti para se
Coletivo, até então muito intuitivo/empírico. Em
ro Pereira nos convidou para participar do Cabaré
identificar. São temas universais.
seguida, Jeze virou diretora do espetáculo e a
das Travestidas. Até então fazíamos performances,
Foi um trabalho que se seguiu ao BR-TRANS e
convidei para, no espetáculo seguinte, ser co-
eu era drag e, com o tempo, fui percebendo que
que deu continuidade a essa nova visão de estética,
-criadora em dramaturgia e encenação. Deste
não era apenas aquilo. Com o Coletivo As Travesti-
construída juntamente com a nossa vivência, já que
modo, em 2015, ela e o figurinista Antonio Ra-
das, eu vi que poderia muito bem viver e trabalhar
não faria sentido somente a vivência ou somente
badan passaram a integrar o projeto Quem Tem
como trans, tanto no âmbito profissional da arte,
o trabalho artístico estético em si, de forma isola-
Medo de Travesti (2015).
como no pessoal.
da. Esta união foi muito positiva. Atualmente, sou
Recentemente, o Coletivo, que tem nove
O Cabaré das Travestidas, meu primeiro es-
convidada para entrevistas sobre violência e sobre o
espetáculos, dois shows, duas publicações, dois
petáculo, mostra um viés festivo, essa vivência
muito que ainda é preciso avançar nesse debate. Me
curta-metragens e realizou duas edições do Fes-
mais do show, do glamour, do que de certa forma
sinto honrada em poder estar no teatro discutindo
tival das Travestidas, em Fortaleza, estreou mais
as pessoas têm como a imagem do mundo trans,
questões desse universo, e em poder tocar as pesso-
quatro trabalhos: Três Travestis, Trans Ohno,
travesti, transformista, drag. Foi importante para a
as com a arte, que é a maneira mais eficaz de se
Androginismo e As Levianas.
cidade de Fortaleza a abordagem da temática em
alcançar alguém.
uma época em que essa pauta não era nada pop.
CADERNO DE TEATRO
SEGUNDO SEMESTRE
2017
33
O PROCESSO DE CRIAÇÃO NA DIREÇÃO COMPARTILHADA
A Jezebel é uma coreógrafa maravilhosa e o
na nossa cabeça, eram mais sérios. Ficaram engra-
Silvero é um diretor de ator incrível. O processo foi
çados, mais debochados, alguns textos que eram
bem profundo porque lidamos com questões mui-
para ser densos ficaram um pouco mais leves. No
to pessoais e, ao mesmo tempo, questões univer-
final de dez dias de encontros, manhã e tarde, e
sais. Questionamos muito o papel do coletivo nes-
nós sozinhos à noite, chegamos a um esboço do
A pesquisa do Quem Tem Medo de Travesti teve
sa discussão, inclusive, pensando no que cada um
que viria a ser Quem Tem Medo de Travesti. Cerca
início antes da minha entrada no Coletivo As Tra-
representava na condição de drag, trans, travesti,
de 90% do espetáculo estava pronto e passamos
vestidas, que ocorreu justamente a partir da ideia
gêneros fluidos, o que tínhamos a acrescentar.
mais dois meses trabalhando sem ela.
do Silvero Pereira de contar com atores de fora, que
Quando a Jezebel chegou no processo, escutou e
Chegou a vez do Silvero pegar muito mais pe-
tivessem outras experiências. Ele tinha acabado de
observou muito para entender até onde podia nos
sado no trabalho de ator, falando o texto e desco-
estrear BR-TRANS e estava em tratativas com a
levar, por outros caminhos, que não esperávamos.
brindo as entonações. A três dias da estreia, Jezebel
Jezebel de Carli para a direção do novo espetáculo.
Isso foi muito rico. Estávamos há dois meses tra-
voltou, reviu novamente o material levantado, po-
QTMT faz a conexão entre as nossas vivências pes-
balhando na dramaturgia que eles haviam criado
lido, deu uma última opinião e estreamos juntos, o
soais e alguns textos clássicos da literatura – Ham-
em imersão, encontrando outras formas de falar
que foi muito importante. A partir daí foi um pro-
let, de Shakespeare, e A Hora da Estrela, de Clarice
o texto, levantando pequenas cenas, e tínhamos
cesso de crescimento, conforme a nossa participa-
Lispector. O trabalho do Silvero e da Jezebel, que
um esqueleto de 50% do material. Ela também já
ção dentro da causa foi crescendo e o espetáculo
dividiram a direção, num primeiro momento, era de
tinha criado coisas e, quando chegou, nos virou do
tomando conta da gente.
observar e modelar as histórias. Trabalhamos dois
avesso, questionou o nosso lugar dentro do pro-
meses na criação das histórias e dos contextos até
cesso. Questionou, na verdade, onde morava nos-
que, em uma semana de imersão, em Porto Alegre,
so desejo, nossa vontade, qual seria nosso lugar
os dois criaram a dramaturgia do espetáculo.
nessa discussão. Ela reinventou alguns textos que,
POR RODRIGO FERREIRA, Ator
Quem Tem Medo de Travesti Foto: Leonardo Pequiar
Quem Tem Medo de Travesti Foto: Luiz Alves
SEGUNDO SEMESTRE
MÚSICA
2017
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Foto: Teófilo Negrão
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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A BRASILIDADE DA HARPISTA RUSSA LIUBA KLEVTSOVA INTEGRANTE DA OSESP DESDE 2001, A MUSICISTA, DISCÍPULA DE VERA DULOVA, ESTARÁ NO FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA, EM JANEIRO DE 2018, PELO SEGUNDO ANO CONSECUTIVO Harpista titular da Orquestra Sinfônica do Esta-
COMO FOI A SUA FORMAÇÃO EM MOSCOU?
expoente do instrumento. Para se ter uma
do de São Paulo (Osesp), a russa Liuba Klevtsova
Eu comecei os estudos com aulas particu-
ideia da sua importância no cenário musical,
iniciou os estudos na música aos cinco anos por
lares de piano com cinco anos. Amantes da
a escola russa de harpa leva o seu nome, ou
influência dos pais, assíduos frequentadores de
música, meu pai estudou em escola de mú-
seja, quando se faz menção ao método russo
salas de espetáculos em Moscou. Era uma época
sica e minha mãe toca violão de sete cor-
do ensino de harpa, também usa-se “escola
em que a cultura na então União das Repúblicas
das, sempre tivemos piano em casa. Naquela
de Dulova”. Dois de seus grandes méritos fo-
Socialistas Soviéticas (URSS) era bastante acessí-
época, em Moscou, a cultura era muito aces-
ram a unificação do método russo/soviético
vel e a musicalização era estimulada desde a edu-
sível, então frequentávamos semanalmente
de ensino de harpa e a sua intensa divulga-
cação infantil, mesmo nas escolas públicas. No
museus, teatros, meus pais eram assinantes
ção no país, dando destaque aos harpistas
Conservatório Tchaikovsky, teve a sorte de fazer
de vários concertos, de coral, de orquestra de
formados na Rússia/União Soviética. Seus
parte da última turma de Vera Dulova, ícone na
câmara e de sinfônica. Desde a pré-escola,
alunos são chamados “discípulos de Dulova”
harpa em seu país. Liuba conheceu o Brasil em
havia muito incentivo à musicalização, no-
e existe um grande interesse no meio peda-
uma turnê com um colega brasileiro e se encan-
ções básicas do mundo do som, para todos.
gógico em buscar esses profissionais para a
tou pelo país. Encantou-se também pela Osesp,
Quando ingressei na escola primária, já ha-
formação de novos harpistas. Os músicos já
que passava por uma reestruturação sob a regên-
via a disponibilidade de estudar harpa. Pas-
formados através de outras escolas/méto-
cia do maestro John Neschling, com quem teve
sou um ano e gostei, como diversão, porque
dos também buscam a pedagogia de Dulova
a oportunidade, anos depois, de compartilhar o
eu fazia escola de arte, até mudar de bairro.
para aprofundar os conhecimentos técnicos
palco como solista em um concerto duplo de har-
Na escola de música em que ingressei, havia
da escola russa.
pa e oboé, com Joel Giseger. Foram dois testes até
uma professora de harpa jovem muito mo-
ser efetivada como harpista titular da orquestra,
tivada, que apresentava os alunos para seus
NO ASPECTO PEDAGÓGICO, DE QUE FORMA
em 2001. Liuba participou de concertos nos prin-
professores na universidade, com quem fui
VOCÊ CONTRIBUI PARA A DIFUSÃO DA ESCOLA
cipais festivais europeus, além de integrar tur-
estudar depois. Minha formação foi de sete
DE DULOVA NO BRASIL?
nê com apresentações na Salle Pleyel, em Paris;
anos na escola primária de música, quatro
O ano de 2003 marcou minha primeira
Berliner Philharmonie, a casa da Filarmônica de
anos na escola técnica e, por fim, no Con-
participação como professora de um fes-
Berlim; e no Royal Festival Hall de Londres, entre
servatório Tchaikovsky de Moscou, um dos
tival de música, no Festival de Inverno de
outras conceituadas salas de concertos. A harpis-
principais centros de formação de músicos.
Campos do Jordão. Nele, tive um contato
ta, que concedeu essa entrevista por telefone à
Um dos fatores que alavancaram a minha
mais intenso com alunos de harpa em for-
Arte Sesc, será professora no 8º Festival Interna-
carreira foi ter tido o privilégio de fazer
mação e pude avaliar melhor a realidade
cional Sesc de Música, em Pelotas, de 15 a 26 de
toda a minha graduação na última turma
do Brasil neste instrumento. Foi um grato
janeiro de 2018.
da harpista Vera Dulova (1909-2000), um
desafio para mim, apesar de um pouco de
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
36
dificuldade em me expressar em português,
muito óbvio e essa parte é legal na músi-
ter exposição, os alunos têm que ter chances
trabalhar com minha primeira turma de alu-
ca, não tem como enganar. É evidente que
de tocar. Esse festival do Sesc é bom jus-
nos e, ao final, além dos objetivos alcança-
as orquestras se interessarão em contratar
tamente por isso. Há uma competitividade
dos, perceber muitas sementes plantadas.
os bons profissionais. Que maestro não vai
saudável, não de querer puxar o tapete do
Outro trabalho pedagógico que realizei e
querer poder apresentar a obra inteira de
outro. O festival deve oferecer essa ideia de
que trouxe bastante satisfação pessoal foi
compositores, com duas harpas? Então eu
que não é concurso, não é comparativo, é
a implantação de um curso de harpa, a pe-
acredito que tudo é muito vinculado ao sis-
o aluno dar o melhor de si. Os alunos têm
dido do saudoso maestro Antonio Carlos
tema de educação.
um volume de ocupação incrível. Quando
Neves Campos, na cidade de Tatuí (SP), em
Na Rússia, tive a mesma professora em cada
termina, todo mundo fica sugado, mas ao
2006/2007. Ainda que pese o fato de não ter
fase (escola), sempre a mesma linha de en-
mesmo tempo satisfeito por ter conseguido
sido possível dar continuidade pessoalmente
sino, sem atrito entre métodos de tocar o
produzir e por perceber que, nas duas sema-
ao meu projeto na diretoria que sucedeu ao
instrumento, o que é bom. Por outro lado,
nas de exigência extrema, de muita adrenali-
maestro Neves Campos, tive o prazer de divi-
nunca tinha participado de festivais como os
na, pressão, conseguiram fazer o melhor. Os
dir recentemente o palco da Osesp com uma
do Brasil. O acesso que os alunos têm a pro-
festivais fazem um bom trabalho porque a
de minhas ex-alunas. Ou seja, o Brasil que
fessores de fora é maravilhoso. Os festivais
programação é muito intensa também para
encontrei no ano 2000 é bastante diferente
internacionais – de Campos do Jordão, de
a população local, contribuindo para a for-
do atual, já que mais alunos e mais harpistas
Brasília, de Jaraguá do Sul, de Pelotas – são
mação de plateia, assim como as escolas de
profissionais estão se destacando no meio
de extrema importância. Todos são voltados
música ou a musicalização nas escolas. Na
musical brasileiro.
para enriquecer a experiência dos alunos
harpa, entre 10 alunos, se dois se formarem
e oferecem cursos, aulas de instrumentos
e quiserem ser profissionais, é muito, mas
QUAIS AS DIFERENÇAS FUNDAMENTAIS NA
individuais, práticas em conjunto, práticas
isso também forma público. O meu filho
FORMAÇÃO DE UM JOVEM HARPISTA NO BRASIL
orquestrais, tudo com grande repercussão
maior, por exemplo, comentou que não sabe
E NA RÚSSIA E COMO ISSO INTERFERE NO
na cidade. Ainda mais que os investimen-
se vai ser músico profissional, mas ele gosta
MERCADO DE TRABALHO?
tos públicos em educação são insuficientes,
de música e isso é ótimo, vai compreender e
Em qualquer processo educacional, a forma-
mesmo sendo evidente que a arte faz parte
querer levar os amigos, a família. Vai gerar o
ção de um harpista dura 10 anos. Então, se o
da formação de um bom cidadão, pois con-
interesse, logo, futuros empregos.
aluno inicia com seis ou sete anos, chegando
ta a história dos povos e une os países com
aos 17 desenvolveu a parte profissional téc-
uma linguagem universal.
ORQUESTRA DE PONTA NO CENÁRIO
nica, mas ainda tem a formação acadêmica. Caso comece com 12, 14, 15 anos, como
O QUE SIGNIFICA FAZER PARTE DE UMA
QUAL O CAMINHO A SEGUIR?
INTERNACIONAL EM UM PAÍS QUE NÃO TEM TRADIÇÃO NA HARPA?
ocorre no Brasil, depois de 10 anos, preci-
Há uma carência de bons instrumentos nas
sa se sustentar ou até já tem uma família.
orquestras e também na preparação dos
Com certeza um dos maiores destaques da
Entretanto, eu percebo, até pela participação
profissionais e isso reflete no desconheci-
minha carreira foi o ingresso como harpis-
em festivais, que os harpistas estão mais jo-
mento até mesmo da sonoridade da harpa.
ta titular da Orquestra Sinfônica do Estado
vens a cada ano. No primeiro contato que eu
É necessário romper com esse ciclo: não tem
de São Paulo, há 17 anos. Por se tratar de
tive com o Festival de Campos do Jordão, a
profissionais, ninguém quer tocar harpa.
uma orquestra de nível internacional, pos-
idade dos alunos era de 19 até 38. Agora eles
Mas por quê? Porque não tem instrumento.
sibilitou performances tanto como harpista,
não chegam a 20 anos. Em Pelotas, na edi-
Mas por que não tem instrumento? Porque
integrando o corpo da orquestra, como so-
ção de 2017 do festival, tinha quatro alunos.
ninguém procura. É fundamental que as
lista, em repertórios de altíssimo nível téc-
Em 2018, vou ter seis, com três harpas de
instituições tenham os instrumentos para
nico. Proporcionou ainda exibições nas mais
qualidade. Vai ter uma geração de bons pro-
oferecer este ensino. Tem que ser tudo em
famosas casas de concerto do mundo, nas
fissionais. E a música tem uma peculiarida-
conjunto, de forma simultânea. As orques-
diversas turnês realizadas, e o trabalho com
de: você toca bem ou não e todo mundo tem
tras têm que investir nos instrumentos, as
os mais expressivos maestros da atualidade.
ouvido, principalmente os maestros, que vão
escolas e instituições têm que investir nos
Eu vim para Brasil por causa da Osesp.
ouvir quem consegue tocar ou não. Isso é
instrumentos, tem que ter festivais, tem que
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
37
POR MAX URIARTE PIANISTA/COORDENADOR DE MÚSICA DE CÂMARA DO FESTIVAL INTERNACIONAL SESC DE MÚSICA
1 A estrutura fragmentada do texto é uma homenagem a Debussy, cujas obras foram compostas dessa forma, assim como a opção pelos subtítulos ao final de cada fragmento, precedido por reticências e associando dois elementos. São assim os títulos dos seus 24 Prelúdios para piano.
CLAUDE DEBUSSY ENFOQUES & ASSOCIAÇÕES NO CENTENÁRIO DE SUA MORTE (1918-2018) [1] Não há uma escola Debussy. Não tenho discípulos. Eu sou eu. Claude Debussy
Em plena Primeira Guerra Mundial, no dia 23 de março de 1918, Paris é bombardeada com armas de fogo de longo alcance. Desde seu leito, no qual se encontrava confinado em estado terminal devido a um câncer, Claude Debussy ouvia as bombas explodindo nas ruas. Quando faleceu, dois dias depois, em 25 de março, muitas obras incompletas ou abandonadas permaneciam sobre sua mesa de trabalho. Aos 55 anos, desaparecia um dos maiores músicos franceses, considerado um dos iniciadores da música moderna e um dos mais importantes compositores do Ocidente. (...GUERRA & MORTE ) Autor de uma obra inovadora que continua, ainda hoje, a despertar entusiasmo, sua produção parece não possuir nem antepassados nem verdadeiros sucessores. Uma obra solitária, peculiar e tipicamente francesa. Mas acima de tudo, extremamente pessoal, que não se dobra a qualquer teoria, a nenhum sistema. Debussy produziu uma obra de sonho e sutileza, uma obra de poesia sonora que nos toca, não pelas inovações harmônicas, que provocaram em sua época a estupefação, a curiosidade e mesmo o escândalo, mas por sua sensibilidade incomum e pelo seu gênio, que eram o meio de transformação dos valores poéticos em valores sonoros.
Claire de lune hr-Sinfonieorchester, Jean-Christophe Spinosi
MÚSICA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
38
No momento em que a ciência acabava de comercializar a primeira arte verdadeiramen-
A orquestra foi regida por Gustave Doret. O êxito
nhor Colcheia) – uma espécie de alter ego. Debus-
foi tal que a obra teve que ser bisada.
sy pôde então dizer abertamente o que somente
te realista, o cinematógrafo (1895), Debussy se
Teria o público realmente compreendido que
identificava com os poetas simbolistas e com os
Debussy dera um passo decisivo e uma porta se
pintores impressionistas para tratar de encontrar
abrira em direção ao futuro?
reservava aos amigos.
(...PERSONALIDADE & MONSIEUR CROCHE )
um realismo alternativo que reproduzisse não o
O compositor Pierre Boulez (1925-2016)
Em 30 de abril de 1902, Debussy presen-
aspecto exato das coisas, mas seu efeito aproxi-
opina: “Tal como a poesia moderna tem raiz em
ciou a estreia de sua ópera Pelléas et Mélisande
mado. Enquanto outros compositores procuram
alguns poemas de Baudelaire, há motivos para
(baseada na peça teatral simbolista de Maeter-
dar-nos fotografias musicais, Debussy nos trans-
dizer que a música moderna nasce com o Prélude
linck), no Opéra-Comique, sob a regência de seu
mite sensações.
à l’aprés-midi d’un faune ”.
amigo André Messager. O impacto causado pela
(...SONS & SENSAÇÕES )
(...MODERNISMO & FUTURO )
apresentação desta obra alteraria radicalmente a posterior evolução da carreira do compositor,
A música orquestral e a música para piano
A linguagem de Debussy é própria e incon-
que contava com 40 anos incompletos. Até en-
ocupam um lugar preponderante dentro da pro-
fundível, de escritura descontínua, na qual pra-
tão, ele era pouco conhecido fora dos círculos
dução de Debussy, que se expressou nesses dois
ticamente não existe repetição literal e a antiga
parisienses, a despeito do êxito maior ou menor
campos de maneira particularmente inovadora. O
noção do “desenvolvimento temático” é substi-
de trabalhos anteriores, e convivia bem com seu
compositor iniciou sua vida musical como estu-
tuída pela fragmentação do discurso. As velhas
quase anonimato.
dante de piano, cultivando, no princípio, a ambi-
melodias já não existem mais como antes, apenas
Após Pelléas, Debussy viu-se, a contragos-
ção de se tornar um virtuoso do teclado. Curiosa-
motivos que surgem e desaparecem em um pro-
to, transformado em celebridade. Nos anos que
mente, o seu desenvolvimento como compositor
cesso que lembra o da livre associação de ideias.
se seguiram, novas obras escritas por ele fizeram
de música para piano foi relativamente tardio. Por
O intérprete de Debussy é refém desse as-
com que o compositor se transformasse em ver-
outro lado, alcançou bastante cedo o absoluto
pecto da imprevisibilidade contida em sua músi-
dadeiro objeto de culto, adquirindo dimensões
domínio da paleta de cores orquestrais.
ca. Assim sendo, ele deve tentar constantemente
de fanatismo. Foi o apogeu do “debussyismo”.
Suas orquestrações transparentes privile-
capturar o significado desse discurso que se move
Por estranha ironia, ele, que sempre se preocu-
giam a cor instrumental, o timbre de cada instru-
continuamente e que ameaça, a todo momento,
pou em destruir mitos, viu-se, contra a vontade,
mento. Novas texturas foram criadas a partir de
escapar por uma direção completamente diferen-
como principal objeto do fervor ardente de um
combinações instrumentais inéditas e de concep-
te. Para o intérprete, não há limites na busca de
numeroso público.
ções inovadoras no campo do ritmo. A precisão
novas sensações na música de Debussy.
mecânica do metrônomo já não tem mais lugar.
(...LINGUAGEM & INTERPRETAÇÃO )
Debussy não foi menos inovador no campo pianístico. Sua escrita é fluida, variada e reple-
Uma figura humana fascinante, dono de
ta de surpresas, empregando o instrumento em
uma personalidade na qual despontam ironia,
todos os seus recursos. Ele aborda o teclado em
irreverência, mordacidade e anticonvenciona-
todas as suas regiões, das mais graves às mais
lismo. Um espírito aberto, independente e nada
agudas, ressaltando a peculiaridade de seus tim-
submisso. Dotado de uma brilhante inteligência,
bres em meio a uma enorme gama de intensida-
criticava com seu humor cáustico tudo quanto
des que variam do quase inaudível pianíssimo
fosse oficial e institucionalizado. As instituições
ao mais poderoso fortíssimo, tudo envolto numa
musicais e a música oficial eram o alvo mais fre-
aura quase irreal criada pelo uso revolucionário
quente de suas críticas. Totalmente refratário ao
dos pedais.
meio musical, buscava sempre a companhia de
(...PIANO & ORQUESTRA )
(...ICONOCLASTIA & CELEBRIDADE )
poetas e pintores. Não se interessava por política, mas era um ardente nacionalista.
Em 22 de dezembro de 1894, a Société Na-
Em 1901, por motivos financeiros, aceitou
tionale apresentou, em Paris, o Prélude à l’aprés-
escrever crônicas musicais na Revue Blanche e
-midi d’un faune (Prelúdio à Tarde de um Fauno).
inventou um pseudônimo – Monsieur Croche (Se-
DEBUSSY NO FESTIVAL DE PELOTAS Em homenagem ao centenário da morte de Claude Debussy, integrarão a programação de música de câmara do 8º Festival Internacional Sesc de Música, de 15 a 26 de janeiro de 2018, em Pelotas, recitais com obras representativas de três fases do compositor. Clair de lune para piano, que é o terceiro movimento de sua Suite Bergamasque, é, sem dúvida, a obra mais universalmente conhecida de Debussy. Reflets dans l’eau, também para piano, é a primeira peça do ciclo Images I e representa uma fase subsequente. Por fim, Sonata para violino e piano é a última obra que o compositor escreveu e também a última que interpretou publicamente. Os recitais de música de câmara ocorrem na Bibliotheca Pública Pelotense, às 19h, e o restante da programação em diversos locais da cidade.
MÚSICA AUDIOVISUAL
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POR FATIMARLEI LUNARDELLI JORNALISTA, CRÍTICA E PROFESSORA, DOUTORA EM CINEMA PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
apenas real, seria insuportável. A imaginação é um vasto mundo de possibilidades: infinito, insaciável, em que somos os protagonistas, atores principais de cenas, de tramas, de sensações. Na imaginação não temos interdição – podemos tudo. Os limites são impostos na realidade. Nos relatos estão nossos valores e nossa percepção do mundo. A vida é confusa e incoerente, somos
CINEMA E LITERATURA:
assaltados o tempo todo por estímulos diversos. Uma história põe ordem na desordem da vida: faz uma seleção, ordena e reconstrói a realidade, que assim ganha sentido. Toda narrativa é uma disposição de acontecimentos nas dimensões do espaço e do tempo. São as condições necessárias para o conhecimento, inatas, trazidas desde o nascimento, que
DA INTENSÃO DE REDUZIR O RISCO AO DESAFIO DA ADAPTAÇÃO
nos permitem processar a experiência humana a partir do aqui (espaço) e do agora (tempo) em que nos encontramos. Narrativas articulam dois tipos de conteúdo: os objetivos, fornecidos pela realidade concreta, dos fatos verificáveis; e os subjetivos, processados na imaginação, os estados emo-
Quando se faz a aproximação entre cinema e
uma diferença crucial que distingue a escrita da
cionais e sensíveis da mente reflexiva. Narrativas
literatura são comuns frases do tipo “o livro é
imagem. Na escrita, o código precisa ser conhe-
podem ser realistas ou fantásticas, rememorar o
melhor do que o filme”, “o filme é fiel ao livro”,
cido, decifrado, dominado. Precisamos saber ler e
passado ou projetar o futuro, descrever o mundo
“prefiro o filme ao livro” e outras tantas. Para
escrever numa língua para que o conteúdo pos-
objetivo ou expressar a subjetividade. O mistério
além de manifestações de gosto, o que interes-
sa ser compreendido. Já no caso do cinema, da
da arte é que nem sempre há justificativa para
sa são as inúmeras relações possíveis entre essas
imagem em movimento, a compreensão está ao
aquilo que escritores ou cineastas criam. No en-
duas formas de expressão artística do ser huma-
alcance de todas as pessoas – ou seja, é uma lin-
tanto, aquilo que expressam com sua arte pode se
no. Podemos investigar o que há de comum e de
guagem universal. Embora tenhamos convenções
tornar importante.
diferente entre elas. A literatura tem sido fonte
de composição da imagem que são culturais, his-
de inspiração para o cinema desde os primórdios.
tóricas e geográficas, o significado da imagem de
DIFERENÇAS DE LINGUAGEM
O material criativo para um filme vem de muitas
um ser humano é compreendido imediatamente.
A literatura conta. O estado de espírito de um
fontes: notícia de jornal, teatro, histórias originais
Por que gostamos tanto de narrativas? So-
personagem é descrito com palavras. A palavra
etc. A vantagem da literatura, especialmente no
mos, nas palavras da escritora Nancy Huston,
é a matéria com a qual o escritor cria metáfo-
caso de um best seller, é a consagração já dada
uma espécie fabuladora. Nossa vida ganha sen-
ras, substantiva, adjetiva e cria um mundo para
pelo público. Isso explica por que 80% dos filmes
tido pelos relatos que fazemos – é a linguagem
o leitor. O cinema mostra. Um estado de espírito
da indústria cinematográfica são baseados em
que ordena a experiência, que nos leva a formu-
é apresentado na forma de ações, gestos, atos,
literatura. Trata-se de uma atividade econômica
lar os sentidos da vida. “O sentido é a nossa dro-
expressões do rosto. Recorrer ao diálogo é empo-
em que a redução de riscos é uma vantagem. O
ga pesada, somos viciados em buscar significa-
brecer os recursos da imagem. Na literatura, pode
direito autoral foi instituído em 1910 e desde en-
dos”, afirma a autora. Fabular é uma necessidade
ser indiferente dizer se o dia está bonito ou se
tão, adaptação é um bom negócio.
humana que interliga todas as experiências. A
chove. No cinema, se o personagem está na rua, é
Literatura e cinema são linguagens, ou seja,
ficção surge de nossa capacidade de imaginar.
inevitável mostrar como está o dia, se a rua está
sistemas de códigos, convenções que permitem
Imaginação. Onde está? Dentro de nós? A ciên-
vazia ou pessoas caminham por ela. Ações como
a comunicação. Podemos compará-las. Existe
cia não descobriu, mas sem imaginação, a vida,
pensar, lembrar e esquecer são difíceis de expres-
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sar no cinema. Por isso a literatura do “fluxo de
de madeira? Como é o quarto? Como mostrar a
modelo para as experimentações de Griffith, que
consciência” é um grande desafio de adaptação.
transformação de Gregor Samsa em inseto? Qual
culminaram no longa-metragem O Nascimento
O cinema manipula cinco materiais expres-
a forma do inseto? É parecido com uma barata ou
de uma Nação (1914)[1], um filme envolvente com
sivos, agrupados por Francesco Casetti e Federico
com uma mosca? São questões de ordem artística
mais de duas horas de duração.
di Chio em Como Analizar un Film: 1. códigos de
e estética, mas também de ordem econômica.
Outro momento histórico de aproximação
imagem (planos, ângulos da câmera, iluminação,
A linguagem do cinema começou com a
do cinema com a literatura ocorreu na França,
fotografia); 2. códigos sonoros (diálogos, sons do
montagem, o domínio da fragmentação e re-
depois da Segunda Guerra Mundial. Dentro da
ambiente, música, silêncio); 3. códigos gráficos
constituição do tempo e do espaço. No início,
tradição literária e cultural dos franceses, em tor-
(conteúdos escritos: intertítulos, créditos, legen-
o cinema apenas mostrava os acontecimentos,
no da cinefilia capitalizada pela revista Cahiers
das, informações dentro da imagem); 4. códigos
inspirado pelo teatro, em que a encenação se de-
du Cinema, o cineasta passa a ser visto como um
artísticos (incorporados do teatro, da pintura,
senvolve diante do público. Mas logo abandonou
autor, um artista que cria no ambiente adverso da
da literatura) e 5. códigos culturais (conven-
essa fonte e tomou a literatura como referência
indústria cinematográfica. Como valorizar o dire-
ções sociais e culturais, símbolos). Para um iní-
para estruturar sua linguagem. O cineasta ameri-
tor dentro do sistema industrial? Comparando-o
cio literário como o de A Metamorfose, de Franz
cano David Ward Griffith inspirou-se nos roman-
ao escritor. O cineasta e escritor francês Alexan-
Kafka – “Numa manhã, ao despertar de sonhos
ces de folhetim escritos por Charles Dickens para
dre Astruc cunhou, em 1948, a expressão cáme-
inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama
aprimorar a narratividade no cinema. Os ganchos
ra-stylo (câmera caneta) que se tornou famosa
transformado num gigantesco inseto” –, o cine-
narrativos, a suspensão dos acontecimentos e a
pela ideia de “escrever o filme com a câmera”,
ma deve fazer escolhas. A cama é de metal ou
visualidade da literatura de Dickens serviram de
numa equivalência entre cinema e literatura.
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1
Acontece que as diferenças no processo de
O ROTEIRO ENTRE O LIVRO E O FILME
criação são imensas. Enquanto o livro é obra de
Todo filme começa literário: pelo roteiro, que
um autor que controla tudo – um solitário na
é a planificação do que será filmado. Pode ser
criação –, o filme é resultado de um trabalho de
original, adaptado de livro, peça de teatro, de
equipe coordenado pelo diretor. Processo, aliás,
conto, inspirado em notícia de jornal ou episó-
que deve ser aberto ao improviso, pois nem tudo
dio pessoal. Em qualquer circunstância, o roteiro
é controlável. Acasos de filmagem, acidentes in-
é a promessa de um filme, um vir a ser. Em A
corporados ao longo do percurso, resultam no
Linguagem Secreta do Cinema, o roteirista Jean
Lolita, de Stanley Kubrick
que se vê na tela. Uma questão é crucial: quantas
Claude Carrière afirma que “escrever para cine-
Lolita, de Stanley Kubrick
são e qual o limite das concessões que um dire-
ma me parece o tipo de escrita mais difícil de
Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola
tor aceita fazer para preservar uma ideia original
todos, porque exige a convergência de qualida-
ou melhorar a ideia inicial? Um filme é como um
des raramente reunidas.” Tendo trabalhado com
sonho, por isso nos fascina e nos absorve para
alguns dos grandes expoentes do cinema, prin-
os mundos que materializa. Tudo é possível nos
cipalmente o espanhol Luis Buñuel, ele lista es-
sonhos. No cinema, os mundos mais fantásticos
sas qualidades: talento e invenção, um mínimo
podem ser criados e tudo deve ser posto em ter-
de capacidade literária, sensibilidade para criar
O Céu que nos Protege, de Bernardo Bertolucci
mos de imagem – todas as sensações, todas as
diálogos, bagagem técnica (saber como os filmes
Obsessão, de Luchino Visconti
emoções e ideias devem ser postas visualmente.
são feitos) e humildade. O roteiro está destinado
Morte em Veneza, de Luchino Visconti
Blow Up, Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni Blow Up, Depois Daquele Beijo, de Michelangelo Antonioni O Nascimento de uma Nação, de David Griffith
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a desaparecer no filme pronto e quem brilha é
bem-sucedido é a adaptação que Leon Hirszman
o diretor.
fez de São Bernardo, de Graciliano Ramos. O cine-
Eis o problema. Como fazer a transposição? Como sair da escrita para a imagética? Como
asta não escreveu um roteiro, o livro serviu como fonte de trabalho para a equipe.
transmutar papel em filme? Um roteirista precisa
Algumas das adaptações mais estimulantes
descrever seu personagem de fora para dentro,
são verdadeiras recriações que resultam em obras
como ele é visto. Coisas que parecem ótimas no
autônomas, marcadas pelo gênio criativo do dire-
papel, simplesmente não funcionam vistas na tela,
tor. Francis Ford Coppola, que já havia filmado O
podem parecer falsas, forçadas. Decisões devem
Poderoso Chefão (1972), considerado muito me-
ser tomadas no instante da filmagem e é do diretor
lhor do que o livro de Mário Puzzo, fez de Apo-
a responsabilidade de modificar ou eliminar uma
calypse Now (1979) uma reescrita de O Coração
cena, ajustar um plano. A filmagem é o momento
das Trevas, de Joseph Conrad (1902). A partir do
criação e a beleza, materializando aquilo que em
de verdade do roteiro que já sofreu uma série de
roteiro de John Milius, o cineasta transpôs o Con-
Thomas Mann é espanto e reflexão interior.
ajustes, o primeiro deles no confronto com as pos-
go do século 19, e seu contexto colonial, para a
São múltiplos os diálogos entre o cinema e a
sibilidades econômicas de sua execução, embate
Guerra do Vietnã dos anos 1960. Em Blow up, De-
literatura. Por vezes, a maior fidelidade equivale a
que se dá, via de regra, com o produtor.
pois Daquele Beijo (1966), Michelangelo Antonioni
destruir, no filme, tudo o que é literário. O melhor
Influenciada pelo cinema, a literatura se
acompanha o envolvimento acidental de um fotó-
reconhecimento do gesto de subtrair para ser fiel
tornou menos descritiva, mais voltada para a ex-
grafo num crime. Escreveu o roteiro com Tonino
foi feito pelo cineasta italiano Bernardo Bertoluc-
pressão da consciência, da intimidade dos perso-
Guerra a partir do conto Las Babas del Diablo, de
ci, que escreveu poesia e romance antes de deci-
nagens. Mas não significa que um escritor possa
Julio Cortázar. O resultado foi um filme moderno,
dir-se pelo cinema. No belíssimo O Céu que nos
escrever para o cinema, pois como enfatiza Car-
uma discussão sobre o que é a realidade.
Protege (1990), eliminou tudo o que havia de lite-
rière: “após filmado, o destino de um roteiro é a
O mestre do suspense, Alfred Hitchcock,
rário para ficar só com a história e, assim, chegar
cesta de lixo”. São muitos os casos que ilustram as
sempre usou a literatura como fonte para os
mais perto dos personagens. O livro foi o primeiro
relações complexas, às vezes difíceis e tensas, entre
filmes, mas dizia, com humor perverso, que
romance do escritor americano Paul Bowles, lan-
literatura e cinema. Exemplo são as tentativas frus-
os livros ruins, banais, eram os melhores para
çado em 1954, no qual ficcionalizou a história
tradas de adaptação dos mundos interiores sutis e
o cinema. A obra-prima literária é um desafio,
que ele próprio viveu com a mulher, a dramaturga
complexos criados pelo escritor Vladimir Nabokov.
prenúncio de fracasso. A filmografia do cine-
Jane Auer. Em 1947, eles, ambos nova-iorquinos,
O próprio cineasta Stanley Kubrick considerou sua
asta italiano Luchino Visconti, em sua maioria
decidem viver no Marrocos.
adaptação de Lolita (1962) um fracasso. O filme,
adaptada da literatura, desmente tal crença. Es-
Ao filmar o romance, Bertolucci chamou
dizia, tinha resultado numa “tímida tradução de
treou com o policial noir de James M. Cain, The
Paul Bowles. O escritor aparece no início do fil-
um romance cuja glória era sua voz narrativa sin-
Postman Always Rings Twice, que resultou no
me, quando o casal e um amigo desembarcam
gular”. Nabokov, que elogiava o filme em público –
filme Obsessão (1943) e tornou-se precursor da
no porto de Tânger e entram num bar. Eles são
de fato é um grande filme, não o considerava me-
estética neorrealista. Visconti tinha o sonho de
interpretados pelos atores Debra Winger e Jonh
díocre – dizia em particular: “não é o que escrevi”. O
adaptar Marcel Proust – os grandes da literatura
Malkovich e sua movimentação é observada pela
curioso é que Nabokov, convidado por Kubrick para
eram para ele um estímulo e um desafio. Não
figura silenciosa do escritor, no fundo do am-
escrever o roteiro, entregou um manuscrito de 400
conseguiu realizar o projeto, mas deixou duas
biente. Como num jogo de espelhos, o criador
páginas, que não foi usado.
obras-primas equivalentes à grandeza dos ori-
vê materializados os personagens ficcionais que
Então, entre o livro e o filme, existe o ro-
ginais literários. O Leopardo (1963) recria com
construiu a partir da realidade por ele próprio
teiro. A adaptação de uma obra literária para o
perfeição a decadência da aristocracia siciliana
vivida. Traz no rosto uma expressão quieta e so-
cinema pode adotar dois caminhos: obediência e
no processo de unificação da Itália no século 19.
frida, resmunga algo sobre aquelas figuras das
respeito ao texto original ou recriação. No primei-
Está no mesmo nível do extraordinário romance
quais conhece as motivações profundas. O filme,
ro caso, o conteúdo da obra literária é passado ao
de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, com o qual
um dos grandes momentos de Bertolucci, é o
espectador, mas a linguagem audiovisual é ape-
Visconti tinha em comum a ascendência aristo-
mais belo reconhecimento que o cinema poderia
nas complemento do texto. O resultado pode ser
crática. Morte em Veneza (1971) compõe em ima-
fazer à dívida que tem com a literatura.
uma leitura pobre, mas nem sempre. Um exemplo
gens a discussão sobre a arte e o artista frente a
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A VISIBILIDADE DA MOSTRA SESC DE CINEMA OS FILMES DO RIO GRANDE DO SUL SELECIONADOS PARA A MOSTRA NACIONAL CIRCULARAM POR TODOS OS ESTADOS DO PAÍS E SE DESTACARAM EM FESTIVAIS NO BRASIL E NO EXTERIOR O curta de animação Lipe, Vovô e o Monstro, o longa Em 97 Era Assim e o curta de ficção documental Ruby, junto com o documentário Central, foram as produções que representaram o Rio Grande do Sul na seleção nacional da I Mostra Sesc de Cinema, que circulou por todos os Estados brasileiros no segundo semestre de 2017. Além de serem selecionadas para a Mostra nacional, o que representa uma grande visibilidade, inclusive para uma posterior carreira comercial, as obras receberam prêmios de destaque na etapa estadual. Todas tiveram uma intensa participação em festivais. A segunda edição do projeto que contribui para o fortalecimento da produção artística visual nacional, por meio da difusão, da promoção da discussão e do inter-
descoberta da sexualidade. É uma comédia nos-
Realizada através de Edital de Baixo Orça-
câmbio entre realizadores, público e críticos, está
tálgica, sobre os anos 1990 e sobre os rituais co-
mento da Secretaria do Audiovisual do Minis-
em fase de avaliação pelas comissões julgadoras
letivos que envolviam as pessoas antes da che-
tério da Cultura, a produção, além de ter sido
estaduais. O resultado será divulgado no primeiro
gada da internet. O projeto, segundo o diretor,
selecionada para a exibição nacional na I Mostra
semestre de 2018. Foram inscritos 57 filmes no Es-
Zeca Britto, nasceu de uma ideia do roteirista
Sesc de Cinema, foi reconhecida como melhor
tado, entre curtas e longas.
Leo Garcia, um episódio que ele viveu na ado-
direção de atores na etapa gaúcha e recebeu di-
lescência, quando os amigos da escola juntaram
versos prêmios em festivais. Os principais foram
EM 97 ERA ASSIM
dinheiro para perder a virgindade. “Logicamen-
melhor diretor e melhor filme pelo júri popular no
te que tudo deu errado, mas ficaram histórias
11º Festival de Cinema dos Sertões 2016, no Piauí;
Ficção, 2016, 90 minutos
divertidas sobre os episódios da adolescência
melhor filme no The Best Film Fest (Seattle, EUA),
Direção: Zeca Britto
numa época em que não existia o politicamen-
semifinalista no Los Angeles CineFest (EUA) e no
te correto nem a oferta de pornografia da in-
JuniorFest (República Checa); prêmio especial do
Em 97 Era Assim é um filme sobre a amizade,
ternet”, diz Zeca. O filme brinca com tudo isso,
júri no Jagran Film Festival (Índia); e melhor fil-
que conta história de quatro adolescentes que
faz uma sátira da visão masculina do mundo na
me juvenil estrangeiro no American Filmatic Arts
enfrentam juntos a chegada da vida adulta e a
época da puberdade.
Awards (Nova York, EUA).
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Zeca Britto considera a Mostra Sesc uma excelente oportunidade de exibição do cinema nacional, fundamental para a formação de público, além de dar uma grande visibilidade para os filmes. “Pude participar de debates em três sessões diferentes, em cidades diferentes e foi uma troca muito bonita, todos tinham interesse em conhecer os bastidores e saber sobre o processo, assim como estavam dispostos a pensar a adolescência e as questões discutidas no filme”, conta. Segundo ele, o público do interior do Brasil tem uma sede de cultura e arte muito grande e o Sesc cumpre o papel de divulgador, propagador da cultura brasileira. “O mesmo acontece nas grandes cidades, onde muitas vezes as salas de cinema são dominadas pelo circuito comercial, geralmente estran-
to Alegre, teve a participação de alunos da Escola
geiro, e o Sesc apresenta um caminho alternativo
Municipal de Ensino Fundamental Antônio Giúdice
Os áudios serviram de guia e referência para
em suas programações, sempre com espaço para
para a elaboração do roteiro, criação do monstro
todas as etapas, desde a pré-produção da anima-
a cinematografia nacional. Para a carreira de Em
e vozes do filme. Os realizadores do curta, Felippe
ção ao storyboard, passando pelo design dos per-
97 Era Assim está sendo um estímulo maravilhoso
Steffens e Carlos Mateus (diretores) e o diretor de
sonagens e pelos cenários. “No meio disso tudo,
e uma oportunidade única de chegar em cidades
arte Bruno Seelig haviam trabalhado por três anos
Carlos e eu fomos trabalhar em um estúdio de
que dificilmente o filme chegaria em circuito co-
na produção de As Aventuras do Avião Vermelho,
animação no Rio de Janeiro, onde conhecemos um
mercial.” O filme integra o Programa dos Afetos da
de José Maia e Frederico Pinto, e, ao final, em 2012,
novo e grande grupo de ótimos animadores, que
mostra, que apresenta um recorte muito carinhoso
decidiram fazer um filme próprio a partir da ex-
acabaram sendo muito importantes para o proje-
do cinema brasileiro, de acordo com o diretor.
exercícios, com elas mais soltas.”
periência adquirida. O projeto consistia em uma
to. Já estávamos atrasados na produção do filme
Em 97 Era Assim é o terceiro longa de Zeca
história infantil inspirada na relação de Steffens
e resolvemos chamar o máximo de amigos para
Britto lançado. Antes, ele fez o drama O Guri e o
com seu avô. “Pelo menos a que eu gostaria de ter
animar, mais de 20. É algo de que gosto bastante
documentário Glauco do Brasil, ambos exibidos no
tido, já que ele faleceu quando eu era muito novo”,
no curta, animação é um processo muito coletivo”,
Canal Brasil. O diretor está lançando seu quarto
diz o diretor. A premissa era revelar o campo como
diz Steffens. O filme foi exibido para nove turmas
longa-metragem, A Vida Extra-Ordinária de Tarso
algo mágico, habitado por monstros que mantêm
diferentes da escola e também teve uma exibição
de Castro (Festival do Rio, Mostra SP 2017). O quin-
aquele lugar funcionando, as plantas crescendo, a
pública no teatro do SEST-RS, para os pais, com
to longa, Legalidade, uma ficção que se passa em
água limpa. O avô era o único que sabia disso e iria
grande repercussão.
1961 sobre um episódio liderado por Leonel Bri-
apresentar esse universo para seu neto.
O curta passou por festivais como o Ani-
zola, com Cleo Pires e Fernando Alves Pinto como
A primeira parte da produção foi o trabalho
mamundi, o Festival de Cinema Infantil de Santa
protagonistas, está em fase de montagem e tem
com as crianças. Carlos Mateus, a produtora De-
Catarina, Mostra Tiradentes, CineOP, Dia Inter-
lançamento previsto para 2018.
nise Marchi e o professor de teatro Fabio Ferraz
nacional da Animação, Festival Primeira Janela,
promoveram os encontros, em que eram desen-
entre outros. Em Gramado, recebeu os primeiros
LIPE, VOVÔ E O MONSTRO
volvidos exercícios para estimular os estudantes.
prêmios: Troféu Assembleia Legislativa de me-
“Aos poucos o roteiro base que tínhamos foi sendo
lhor curta metragem e melhor direção de arte.
contado a eles, que eram incentivados a criar, tanto
Na I Mostra Sesc de Cinema, etapa estadual,
Ficção/animação, 2016, 9 minutos
em termos de roteiro quanto em termos visuais: as
recebeu destaque de desenho de som para Thia-
Direção: Felippe Steffens e Carlos Mateus
características que o monstro teria, o que come-
go Bello e Marcos Lopes. Os realizadores estão
riam no fundo do rio etc. O resultado desse proces-
desenvolvendo um projeto de série baseado no
O curta de animação Lipe, Vovô e o Monstro, finan-
so foi algumas horas de áudios em que as crianças
curta, algo que mostre mais do universo do Lipe
ciado pelo Fumproarte, edital da prefeitura de Por-
narravam a história e outros, gravados durante os
e os monstros que habitam o sítio dos seus avós.
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“Agora que finalizamos nosso primeiro curta,
objetos, videoarte, fotografia. Jorge atualmente
percebo como são importantes os festivais e mos-
vive na Alemanha e está realizando um novo filme,
tras, como a Mostra Sesc de Cinema. Depois que
que terá apresentação multimídia, além do forma-
você tem o filme nas mãos, quer mostrar para o
to audiovisual. Guilherme e Luciano trabalham em
máximo de pessoas possível, quer mostrar para o
um longa-metragem que será rodado em 2018,
público e também para profissionais, quer que ele
com direção dos dois.
seja avaliado, que falem sobre ele. Entrar em fes-
Filmado no Uruguai e no Brasil, em 2014,
tivais é muito legal, poder participar, ver seu filme
Ruby recebeu 13 prêmios nos últimos anos, en-
numa tela grande, conhecer outros artistas. E, no
tre eles: crítica, público, revelação e do cineclu-
nosso caso, como é um curta infantil, ver a reação
be no Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da
das crianças é muito gratificante.”
Feira, em Portugal (2015); contribuição artística
Lipe, Vovô e o Monstro, de Felippe Steffens e Carlos Mateus Alunos da escola Antônio Giúdice participam da produção de Lipe, Vovô e o Monstro Ruby, de Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jorge Loureiro
pelo filme e pela atuação no Prêmio da ACCIRS
RUBY
e do júri popular no festival Diálogo de Cinema,
Ficção, 2015, 17 minutos
Filme Livre, no Rio de Janeiro (2016); e direção de
Direção: Luciano Scherer, Guilherme Soster
arte na I Mostra Sesc de Cinema – etapa estadual
e Jorge Loureiro
(2017). Ruby foi apresentado ainda nos festivais
em Porto Alegre (2016); Filme Livre! na Mostra do
de Biarritz (França), Iberodocs (Reino Unido), e Ficção em formato documental que aborda a vida
Kinoforum, Cine Esquema Novo, Panorama Coi-
de um pintor – Ruby – que vive sozinho em uma
sa de Cinema e Curta Cinema, no Brasil. O filme,
casa próxima ao mar, o filme, o primeiro dos di-
que nos festivais pelos quais passou despertou a
mais interessante, visto que é um formato com
retores Luciano Scherer, Guilherme Soster e Jor-
curiosidade sobre os limites entre documentário e
pouca propagação pelo circuito tradicional de sa-
ge Loureiro, foi realizado de forma totalmente
ficção, está terminando sua carreira de festivais e
las de cinema”, analisa Luciano. Ele salienta ainda
independente. O trio desempenhou quase todas
será comercializado para televisão.
a alta qualidade das produções selecionadas, que
as funções, desde produção, atuação, direção de
Os diretores tiveram impressões muito posi-
mostram a grande potência do cinema nacional.
arte até desenho de som, incluindo o design. Os
tivas em relação à Mostra Sesc de Cinema. “Trata-
“A mostra proporciona também uma troca entre os
três diretores vieram das artes visuais. Guilherme e
-se de um espaço importante de apresentação de
realizadores, tanto em âmbito local como nacional,
Luciano, que assinam o roteiro, dividiam atelier de
filmes, possibilitando que as produções que se
através de encontros e da própria exibição dos fil-
pintura. Com o tempo, cada um foi desenvolvendo
destacaram sejam exibidas em diferentes Estados,
mes, fomentando o circuito de distintas maneiras.”
suas poéticas por diferentes campos: instalação,
cidades e locais. Para o curta-metragem é ainda
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ARTES VISUAIS
ARTES VISUAIS
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SESC/RS INTENSIFICA PROGRAMAÇÃO COM ARTISTAS GAÚCHOS EXPOSIÇÕES DE KELVIN KOUBIK, FELIPE POVO E MARINÊS BUSETTI FORAM ALGUMAS DAS QUE ESTIVERAM NOS ESPAÇOS DA INSTITUIÇÃO EM 2017, COM O OBJETIVO DE PROMOVER A FORMAÇÃO DE PÚBLICO PARA AS ARTES VISUAIS Desenhos, ilustrações, xilogravuras, fotografias.
A trajetória de Kelvin nas artes visuais teve
um pouco incontrolável. Eu gosto muito de de-
A diversidade de técnicas marcou as exposições
início na adolescência, no contexto da arte ur-
senho de observação, um desenho bem calmo,
promovidas pelo Sesc/RS, que a cada ano in-
bana, colando cartazes, depois com o grafite,
de caneta nanquim, bem detalhado, e comecei
tensifica sua programação de artes visuais. Um
até os 20 anos, quando ingressou no Instituto
a relacionar esses desenhos de natureza com
dos destaques do cenário contemporâneo no Rio
de Artes da Universidade Federal do Rio Grande
o desenho abstrato”, explica. A exposição que
Grande do Sul, Kelvin Koubik circulou com a ex-
do Sul (UFRGS) e expandiu sua atuação. “Trouxe
circulou pelo Sesc/RS representa três etapas: a
posição Amalgamorphosis, em que apresenta sua
referências da rua, onde continuo pintando, da
morfose, na qual o artista cria formas dentro de
pesquisa em torno do desenho. Felipe Povo, na
tipografia da pichação e da escrita do grafite.
alguns limites; a amalgamorfose, em que une
mostra Povoando, exibe uma síntese do seu tra-
Dentro desse universo, comecei minha primeira
estes limites – a inspiração vem da amálgama,
balho em grafite e outras técnicas como pintura,
pesquisa, que resultou na exposição individual
liga que tem o mercúrio como principal elemen-
xilogravura, serigrafia e estêncil. Em Xilogravuras
Diagnósticos, em 2012, na Galeria Iberê Camar-
to –; e a mutação, experimentos com novas re-
– Múltiplas Versões e Inversões, Marinês Buset-
go, na Usina do Gasômetro”, conta Kelvin. A
ferências do desenho.
ti reúne uma série de trabalhos desenvolvidos a
mostra foi indicada para o Prêmio Açorianos de
Outra fase da pesquisa do artista, retratada
partir de repetição, inversão e justaposição de
Artes Plásticas do ano seguinte nas categorias
em Amalgamorphosis, é o desenho diretamente
módulos geométricos impressos no tradicional
Revelação, Melhor Exposição Individual e Me-
sobre a parede. “É um pouco como na fotografia,
papel japonês Wenzou, mas também sobre pági-
lhor Exposição de Desenho.
em que, às vezes, esquecemos que alguém es-
nas de revistas, jornais e papéis coloridos, em que
Em 2011, o artista formou, com Tereza
tava lá e registrou aquele momento. Eu sempre
utiliza colagens e interferências com desenho e
Poester, que havia sido sua professora, o Ate-
faço esse desenho in situ, que tem uma relação
pintura. As exposições são combinadas com ofi-
lier D43, coletivo de pesquisa em desenho que
com o efêmero, por ser apagado depois. Acho
cinas e bate-papos com os artistas, com o intuito
desenvolve atividades no Brasil, incluindo di-
bem legal trabalhar em contato com as pessoas
de promover o intercâmbio e consolidar a forma-
versas exposições, e que realizou um projeto de
que convivem naquele ambiente”, afirma. Kelvin
ção de público.
residência na França, em 2016, cuja pesquisa foi
desenvolve ainda o projeto Kino 23, que transita
apresentada neste ano no Museu do Trabalho,
entre design, ilustração e grafite, e tem se voltado
em Porto Alegre. Em paralelo, Kelvin entrou na
para o trabalho autoral, como a recente pintura
fase do Amalgamorphosis, trabalho resultante
da empena de um prédio de quatro andares em
da sua pesquisa individual em torno do desenho
Caxias do Sul e outras em Porto Alegre. “Venho
abstrato, com influência do D43. “Trata-se de
cada vez mais tentando juntar as pesquisas.”
Floresta, de Felipe Povo Tinta acrílica sobre tela 75x92cm
um trabalho bem expandido da relação do corpo
Natural de Porto Alegre e residente em Pe-
sobre o papel, sobre a tela, uma coisa gestual,
lotas, o artista plástico e arte-educador gradu-
ARTES VISUAIS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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ado pela Universidade Federal de Pelotas (UFP)
nifestação foi iniciada a partir de minha inquie-
ção, sempre com o intuito de atingir de alguma
Felipe Conceição da Silva, o Felipe Povo, iniciou
tação diante de um mundo miserável e devas-
maneira as pessoas que a observam.”
sua intervenções urbanas influenciado pela es-
tador. Minha preocupação era com as pessoas
tética dos anos 1980 e 1990, expressa em car-
de nosso país diante da desigualdade, da fome,
ARTE DA REPETIÇÃO
tazes de bandas, capas de discos, imagens de
da descrença, da desvalorização. Partindo desses
Com um percurso de 30 anos dedicado às artes
shapes de skate e fanzines. O artista, que se in-
e de diversos outros problemas sociais, políti-
visuais, Marinês Busetti transita por diversas téc-
teressou pela pintura ainda na 8ª série, quando
cos e econômicos presentes em nosso sistema,
nicas que dialogam com a xilogravura. Depois
viu obras de Van Gogh em um livro apresentado
comecei a relacionar o mundo das pessoas que
da graduação em educação artística na Feevale,
pela professora de educação artística, levou es-
circulam pelas ruas. E a pensar de que forma eu,
investiu em cursos com destacados profissionais
sas referências para o grafite e para outras téc-
através de imagens artísticas, poderia mexer de
da pintura, escultura, desenho, gravura, estética e
nicas e suportes, da cerâmica às encadernações
alguma forma com as pessoas que estavam a
história da arte, entre eles Dudi Maia Rosa, Vasco
de publicações no formato de fanzine, além de
minha volta e, principalmente, as que circulam
Prado, Hamilton Viana Galvão, Diana Domingues,
pintura, xilogravura, serigrafia, desenhos e es-
pelas ruas da cidade. Meu conceito de arte está
Anico Herkovits e Danúbio Gonçalves.
têncil. Sem uma temática específica, a mostra
plenamente relacionado com o meio social e po-
No começo, partiu da figuração, em que o
Povoando é uma síntese da sua produção dos
lítico de nossos convívios. Procuro estabelecer
tema era crianças em meio à paisagem, sempre
últimos anos.
nos desenhos e em toda a forma de expressão
envolvidas de alguma forma com o fio de suas
Em um manifesto escrito em 2007, Felipe
que apresento alguma relação com o mundo em
pandorgas, até a geometrização que deu ori-
Povo explica sua relação com a arte: “Minha ma-
que vivo. A partir disso, faço minha manifesta-
gem às dobraduras. Passou pelas pinturas sobre
ARTES VISUAIS
SEGUNDO SEMESTRE
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tela e eucatex recortados, dobraduras em chapa
Marinês, que ministra workshops e oficinas
galvanizada e pinturas com colagens sobre teci-
em seu Atelier da Xilo, no interior do municí-
do voal. Assim chegou à pesquisa que desenvol-
pio de Farroupilha, na Serra Gaúcha, expôs in-
ve desde 2003, em xilogravura. Marinês explica
dividualmente, participou de salões e integrou
que, nesta técnica, a repetição, o rebatimento e
coletivas em galerias e espaços institucionais
a inversão de módulos geométricos vão criando
em cidades do Rio Grande do Sul, São Paulo,
composições inusitadas, gerando possibilidades
Rio de Janeiro e do Exterior. Nos últimos anos,
infinitas de multiplicação da imagem. “A inspira-
destacam-se o SP Stampa, em que foi selecio-
ção para essas composições surgiu da observa-
nada para exposição coletiva na Galeria Gravura
ção dos vincos formados pelas dobras dos origa-
Brasileira, em 2014, e a 1ª Bienal Sul-Americana
mis. Esse estudo gerou as primeiras xilogravuras
de Gravura e Arte Impressa Rio-Córdoba 2014,
e o seu desdobramento pode ser visto no meu
no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janei-
trabalho atual, em que utilizo a impressão das
ro, e no Museo Emílio Garaffa, em Córdoba,
próprias matrizes da época dos origamis ou cria-
Argentina. Em 2015, realizou exposição com
num jogo de entra e sai, de figura-fundo em pul-
ções geométricas atuais, imprimindo também
a paulistana Renata Basile, na Galeria Priscila
sação constante. Assim, convoco a refletir sobre
em jornais, revistas e papel camurça, onde faço
Mainieri, em São Paulo; e em 2017, participou
as relações entre a matriz e a cópia, a repetição
interferências de lápis de cor, pintura e cola-
da 3ª GlobalPrint 2017, em Portugal, além de ter
e a diferença, entre construção e desconstrução,
gens”, explica a artista, que confere uma dimen-
sido convidada para a 9ª Bienal Internacional de
o geral e o particular, o real e o virtual, razão e
são contemporânea à técnica milenar. Para ela, a
Gravura do Douro, que será realizada em 2018,
emoção. Quem sabe, sobre as várias formas de
xilogravura, além de ser usada como técnica de
também em Portugal.
ver, as várias faces que algo pode ter, uma pes-
multiplicação de cópias originais, também pos-
“Meu objetivo é provocar a sensibilização
sibilita criar trabalhos de grandes dimensões, ao
do olhar através de um processo seletivo de per-
colar uma cópia na outra.
cepção, que ora destaca uma forma, ora outra,
Detalhe da obra Amalgamorfose I, de Kelvin Koubic Acrílica, grafite e lápis litográfico sobre tela 124x124cm Prisma – variação 3, de Marinês Busetti Pintura sobre xilogravura 160 X 80 cm
soa, uma ideia. Convoco a perceber o que antes parecia oculto.”
ARTES VISUAIS
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ARTE EM PEQUENOS FORMATOS EM SUA 6ª EDIÇÃO, SALÃO FUNDARTE/SESC DE ARTE 10X10 REÚNE OBRAS DE ARTISTAS DE TODO O BRASIL NAS MODALIDADES DESENHO, ESCULTURA, PINTURA, FOTOGRAFIA, GRAVURA E OBJETO
ARTES VISUAIS
SEGUNDO SEMESTRE
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Série Dragtopografia – Pequenos ambientes do Vale dos Homossexuais, de Fabrízio Rodrigues
Com obras que não podem exceder 10cm de largura, 10cm de altura e 10cm de profundidade, o Salão Fundarte/Sesc de Arte 10x10 é um projeto consolidado no calendário das artes visuais e, em 6ª sua edição, registrou 158 trabalhos inscritos de 68 artistas de diferentes estados do país. Destes, 24 tiveram suas obras selecionadas para a exposição itinerante que teve início no mês de outubro, em Montenegro, e tem previsão para circular em outros municípios gaúchos, com um total de 60 obras. O projeto de fomento à produção e circulação de obras de arte é realizado por meio de uma parceria da Fundação Municipal de Artes de Montenegro (Fundarte) com o Sistema Fecomércio-RS/Sesc. Para Carmem Capra, integrante da comissão de seleção e curadoria, “o Salão 10 x 10, já consolidado no calendário artístico gaúcho, inscreve-se a cada edição em uma dimensão nacionalizada de sua abrangência, que faz jus ao esforço institucional do Sesc e da Fundarte no desenvolvimento desse concurso. Em tempos de crise, é necessário celebrar todas as iniciativas de fomento à arte e aos artistas”. A comissão considera aspectos teóricos, poéticos e educativos na seleção dos trabalhos, e essa compreensão diversa, segundo Carmem, “aproxima os campos do saber e do fazer artístico, podendo, inclusive, abrir possibilidades para movimentar as fronteiras entre eles”. A obra primeira colocada no Salão de Arte, Dragtopografia – Pequenos ambientes do Vale dos Homossexuais, tem origem na pesquisa prática, poética e reflexiva do artista Fabrízio Rodrigues, vinculada ao Grupo de Pesquisa Deslocamentos, Observâncias e Cartografias Contemporâneas, em seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas. “Busco, por meio da pesquisa, questionar as minhas inquietudes artísticas através de observações, deslocamentos e devaneios de memórias”, diz Fabrízio. O meio norteador para as suas obras apresentadas no Salão foi o universo queer e kitsch, representado pelo exagero nas cores, dobras e ícones comuns dos anos 1980. Suas referências são as artistas Vaginal Davis, Mi-
ARTES VISUAIS
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2017
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ckalene Thomas e os carnavalescos Joãozinho
tifica. As obras são uma mistura de colagens que
dos de diferentes regiões do Brasil, todos miúdos
Trinta e Clóvis Bornay.
remete a murais e guarda-roupas de adolescentes,
e potentes. Artistas já realizaram pequenos dispo-
“Apresento três obras inéditas, dentro da
com a apropriação de imagens de revistas LGBT+,
sitivos de pintura, escultura, fotografia, gravura,
minha pesquisa denominada Dragtopografia, que
como miniaturas de capas da G Magazine (revista
desenho, de som, de engrenagem, de apropriação”,
visa reconhecer as cidades a partir das drag que-
gay popular nos anos 1990), de histórias em qua-
avalia a artista.
ens. Trouxe para as obras elementos comuns do
drinhos queer, da drag queen Nani People.
Duda destaca a sua ligação com o projeto e a
meu universo de figurinista, além da representação
A outra obra premiada, com o 2º lugar, foi
importância de sua realização para os artistas e as
da minha infância, através das cabeças de bonecas
Quanto Horizonte Cabe em 10 x 10?, de Duda
artes: “já fui curadora, integrante da comissão de
queimadas”, destaca. O artista enfatiza ainda que
Gonçalves. Trata-se de um dossiê de fotografias
organização, da comissão julgadora e artista expo-
a costura e o bordado estão presentes no seu dia-
confeccionadas especialmente para o 6º Salão
sitora, premiada, e posso afirmar que nesse espaço
-a-dia desde a infância, quando aprendeu a fazer
Fundarte/Sesc de Arte 10x10, como a paisagem do
pequeno que o Salão oferece ao artista poetizar
crochê e tricô. “Nessa época eu criava vestimen-
extremo sul do país, caracterizada pela horizontali-
tem acolhida e partilha intensa. Em tempos de
tas para as bonecas que eu ‘roubava’ das minhas
dade infinita da planície pampeana, como temáti-
crise, artista considerado vagabundo, as aulas de
amigas e, em seguida, as devolvia, realizando um
ca. As imagens foram captadas no Laranjal, bairro
arte facultadas e retiradas do ensino público médio
desfile de modas, regado a chá e biscoitos.”
de Pelotas, às margens da Lagoa dos Patos. “Meu
e fundamental, o artista e sua produção se sente
Fabrízio salienta que a identidade queer e
intuito foi desdobrar em tamanho 10x10 a vasta
cuidado e prestigiado pelo Salão de Artes.”
kitsch sempre estiveram presentes no seu tra-
infinitude e horizontalidade, suscitando o con-
Para Fabrízio, “falar de arte nos dias de hoje
balho prático. “Os títulos das obras são repre-
traditório, ou seja, o quanto algo tão vasto cabe e
é ser resistente aos insultos e ameaças que os ar-
sentados pela frase Dragtopografia – Pequenos
pode ser percebido num pequeno continente. “Esse
tistas vêm sofrendo e o Salão 10x10 é um exemplo
ambientes do Vale dos Homossexuais, sempre
é um dos poucos eventos de arte que premia em
de que o moralismo não flutua em suas edições.” O
acompanhado de uma numeração romana. Como
dinheiro, portanto, é bastante visado e comemora-
artista participou de cinco das seis edições, sempre
uma espécie de relógio antigo que marca as ho-
do. Ao longo das seis edições, já premiou vários ar-
com a inscrição de obras que questionam gêne-
ras que me mantive na heteronormatividade”, jus-
tistas e promoveu a itinerância de trabalhos oriun-
ro, identidade e política. “Mesmo em tempos em
ARTES VISUAIS
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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que para os bons costumes falar de identidade e gênero é algo quase proibido, as comissões de seleção são imparciais e desempenham seu papel de curadores. A arte tem a verdadeira função de questionar, indagar, mostrar o outro lado do nosso cotidiano. Em tempo de retrocessos sociais, ganhar o primeiro lugar falando de questões de identidade de gênero é uma demonstração de que nós, artistas, estamos cada vez mais vivos e deixando a nossa poética do fazer fervilhar através dos nossos objetos, fotografias, pinturas, esculturas, enfim, no
O Pequeno Livro dos Grandes Mamíferos (objeto), de Giulia M. Bocchese Tributo à Dandara I, II e III (objeto), de Marina Reidel
suporte que acharmos mais adequado para gritar-
Penso, logo te convido a matearmos por aí I, II e III (pintura), de Uéslei Fagundes
mos em 10x10 centímetros.”
O Fungo (escultura), de Cleandro Tombini Extinção (escultura), de Fernando da Luz
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
POR BRAULIO TAVARES
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ESCRITOR. CIRCULOU EM 2017 PELO PROJETO NACIONAL ARTE DA PALAVRA.
NOITES NO MOTEL
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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Felicidade que eu tinha uma turma no res-
quartinhos no fundo. Era ali que casais furtivos
taurante universitário. A gente comia o bandejão
formados meio às pressas iam jantar e depois,
sempre no mesmo horário e depois ficava con-
discretamente, retirar-se para a parte traseira,
versando na praça. Um dos colegas me disse: “Vai
onde perpetravam cerimônias certamente crimi-
vagar um quarto na minha república semana que
nais e pecaminosas.
vem. É pequeno, mas serve pra você.”
O folclore machista campinense era cheio de
Mudei-me, feliz da vida. Era uma casa antiga,
frases debochadas tipo “Ontem de noite eu fui no
dois andares, pé direito alto (foi quando aprendi o
Dallas, comi um churrasco e depois uma piranha”.
que quer dizer “pé direito”), uma dúzia de quartos.
“Motel”, na minha porta?! Então entendi
Os quartos eram compartilhados por dois ou por
tudo. Sendo aquele o único quarto single do ca-
três estudantes, dependendo do tamanho. Menos
sarão, era também o único quarto para onde o
o meu, que era uma espécie de quarto de empre-
felizardo poderia trazer uma colega de faculdade
gada, do lado da cozinha. Apertadinho, mas cabia
para passar uma noite privê e tranquila, conver-
a cama de solteiro, a mesinha e a cadeira, cabia
sando sobre a incomunicabilidade dos casais nos
o armário cambaio e sem espelho onde eu pen-
filmes de Antonioni. (Pelo menos foi esta a utili-
durava minhas roupas e empilhava meus livros.
zação mais frequente que eu lhe dei.)
O pessoal torcia o nariz para o quartinho,
Pensei que tinha feito um bom negócio. Os
mas eu me sentia mais à vontade ali do que di-
republicanos que me eram mais próximos – o
vidindo quarto com outros caras que talvez acor-
Bilbo, terceiranista barbudo de Medicina, fã do
dassem cedo (meu curso era noturno, meu dia
Blood, Sweat & Tears; o Jerônimo, gaúcho, magro,
começava às duas da tarde), talvez roncassem,
pose de jesuíta mas na verdade viciado em pô-
Foi muitos anos atrás, num tempo em que eu fui
talvez falassem alto, talvez inventassem de man-
quer; o Vandinho, cinéfilo e desbocado, mas ainda
estudar fora e morava numa república de uni-
gar das meias e cuecas que eu trocava uma vez
virgem até a raiz dos cabelos; o Dedé, moreno,
versitários. Se você quiser entender o conceito
por semana.
interiorano, dono do único violão da casa, pea-
de República na pátria brasileira, more durante
Mudei-me, pois. Minha vida mudou de mar-
gadê em Ataulfo e em Noel – invejavam minha
algum tempo numa república de estudantes. O
cha e avançou sem solavancos. Segui feliz, “de
sorte. Diziam: “você agora vai comer até a mulher
tempo todo tem alguém se aproveitando de al-
minerol-infante”, como dizia Guimarães Rosa: em
do prefeito”.
guém e se divertindo às suas custas.
céu de brigadeiro e mar de almirante.
A primeira-dama escapou, mas não posso
Acabei indo para lá porque estava com três
Foi só alguns dias depois que eu franzi o ce-
dizer o mesmo da sobrinha da cozinheira/faxi-
meses atrasados na pensão onde morava. Dona
nho diante da palavra rabiscada em letras gran-
neira que nos visitava semanalmente. Enfim – a
Mariá, a proprietária da pensão, me chamou uma
des na porta do meu quarto, com canivete ou
vida seguiu de minerol-infante até o dia em que
noite para uma conversa no terraço e disse:
chave: “motel”. Essa palavra era uma espécie de
o Bilbo me chamou de lado.
– O senhor me desculpe. – Ela tratava todos nós, filhinhos-do-papai imberbes, por “o senhor”.
médico-e-o-monstro, pois tinha duas definições contraditórias.
– Você vai quebrar meu galho – disse ele. – A Rosinha concordou em dar pra mim.
– Eu entendo as dificuldades do Nordeste, a seca,
A primeira, é claro, vinha do “Bates Motel”
eu já li Raquel de Queiroz. Eu perdoo os seus três
do filme Psicose (1960) de Hitchcock. Aquele fil-
Ele explicou tudo, emocionou-se, coagiu, su-
meses. Basta o senhor sair e ceder o quarto a
me tinha abalado até os alicerces minha estrutura
plicou, e o resultado é que nessa noite eu ocupei
quem possa pagar, porque eu tenho meu esposo
espiritual. Motel passou a significar um recanto
a cama dele, no quarto que ele dividia com o Je-
inválido e muitas despesas.
remoto à beira de uma estrada onde se perpetra-
rônimo, para que na madrugada a Rosinha (logo
vam cerimônias criminais e pecaminosas.
a Rosinha, de Letras, que era a cara da Joanna
Disse isso com lágrimas nos olhos, e quem
– Dar o quê? – retrucou minha inocência.
sou eu para contradizer uma mulher com lágri-
A segunda definição era de Campina Grande
mas nos olhos, principalmente em pleno ato de me
mesmo, onde motel era a “Churrascaria Dallas”,
Pettet!) desse alguma coisa a Bilbo. Não se passaram dez dias e foi a vez do Jerô-
perdoar três mensalidades que meu pai aliás me
situada num bairro limítrofe (que hoje certa-
nimo, em função da Carol (que, por sua vez, era a
remetera, mas que eu gastara com cerveja, cinema,
mente já foi engolido pelo mainstream urbano).
cópia tridimensional e palpável de Chantal Goya).
teatro, shows e pocket-books de ficção científica?
Consistia num restaurante com uma fileira de
Pensei que tinha feito um mau negócio. Se
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
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a notícia se espalhasse pelo resto da república,
Virei uma espécie de cafetão para Berg.
– Ela traiu o Faustino, Berg?! Contigo, ain-
em breve estaria eu pulando de quarto em quarto
Duas, três vezes por mês ele apalavrava uma bel-
da por cima? Um galinha como tu?! Se ao menos
enquanto os sabichões passavam suas noites de
dade, me emboscava na biblioteca ou no corredor
fosse com um cara melhor do que ele!
núpcias em meu colchão de solteiro. Implorei ao
e me afundava um pouco mais no pântano taci-
– Para de cuidar da vida alheia e vai comer
Bilbo e ao Jerônimo que não espalhassem a no-
turno do suborno. Em minha defesa, lembro que
alguém – disse ele. – Ela sabe o que está fazendo,
vidade, sob pena de rompimento de contrato. A
meu pai estava passando por uns apertos, atrasou
e Faustino é meu amigão.
coisa se sustentou algumas semanas, até que, por
a mesada, depois mandou um bilhete datilogra-
– Rapaz, eu tou puto com você.
artes não sei de quem, a informação foi dar nos
fado dizendo: “Vou ter que pular este mês, espero
– Você é meu amigão também – disse ele. –
ouvidos do Berg, o come-quieto mais atarefado
no outro poder lhe ajudar de novo.” Me ajudar?!...
do campus.
Eu achava que era obrigação dele me manter vivo
Nem me lembro se aceitei, mas no dia se-
enquanto eu devorava a obra de Ray Bradbury e
guinte estava lendo Cem Anos de Solidão, recém-
descobria o cinema surrealista.
-lançado e custando os olhos da cara, a edição
O Berg era mais velho que nós, tinha uns 30 e poucos, uma figuraça, tinha trocado de curso
Toma aí pelo teu incômodo.
três vezes e trabalhava como camera-man numa
Até que um dia Berg partiu meu coração.
produtora de comerciais para TV. Era baixinho,
A essa altura já tínhamos uma rotina que
com capa de Carybé.
barbudo, inquieto, um sorriso permanente, fala-
dava certo. Havia um hiato no vaivém da república,
va pelos cotovelos, era feioso mas tinha aquele
quando os caras ainda estavam na rua ou já ti-
Essas coisas a gente esquece, como esqueceu
Poderoso Magnetismo Animal que atrai as mu-
nham se recolhido aos quartos. Eu esperava Berg e
milhares de outras, milhões de outras, porque a
lheres, algo que certos caras têm e eu não tenho.
sua presa no pé-sujo vizinho, entrávamos na casa
vida é uma cachoeira torrencial de pequenos fatos
(Sem a poesia e o violão, não sei o que teria sido
pelo beco lateral e pela porta dos fundos, eles cru-
que vão se derramando sobre nós, e todos passam,
de mim.)
zavam a cozinha para dentro do Motel e eu me
alguns ficam grudados na memória algum tem-
Os anos e as décadas se passaram, como nos velhos folhetins.
– Você vai me ceder o quarto – me intimou
abancava no sofá, já munido de livros, travesseiro
po, depois passam também, porque a cascata não
o Berg na cantina da faculdade. – Terça-feira à
e lençol. De vez em quando um colega surgia na
cessa nunca. Humberto Mauro dizia que cinema é
noite o marido dela vai viajar, é uma chance única
madrugada, para pegar água na geladeira, e me via
cachoeira. Pois a vida é uma Catarata do Iguaçu.
na história.
ali. Eu tinha meia dúzia de explicações aleatórias
– Melhor procês – disse eu. – Vai pra casa dela. – Ela tem dois filhos, idiota. Tás pensando o quê? Ela vai dar uma fugida. A gente chega lá na
que bastavam para encerrar a conversa. Até que um dia Berg chegou abraçado a Maria Laura.
Como se diz no romance, cresci, vivi, viajei, conheci a melancolia dos barcos a vapor e tudo o mais. Voltei para meu Estado natal, virei escritor e compositor, alcancei uma modesta notoriedade.
tua república à meia-noite. Me espera na porta.
Com quem posso comparar Maria Laura?
O cabelo foi ficando branco; a tinta dele passou
– Enfiou a mão na carteira e tirou dali algumas
Nenhuma atriz do cinema se comparava a ela.
notas, sementes da minha degradação moral. –
Era noiva do Faustino, um quartanista de Elétrica
E um belo dia estou de volta àquela cidade,
Pega, toma isso aqui, é pelo teu incômodo.
toda para as páginas.
que era um dos caras mais inteligentes do cam-
onde tanto sonhei, e menos sonhei do que vivi.
Como dessa vez não havia quarto para onde
pus. Apaixonadíssimos os dois, e, na linguagem da
Fui fazer uma palestra num evento literário e,
ir, dormi no sofá da cozinha. A cozinha era es-
época, muito atuantes na resistência estudantil à
depois de tudo, à noite, o pessoal me levou para
paçosa e tinha esse sofá velho, enorme, todo
ditadura. Quantas vezes, no vasto apartamento
jantar num belo restaurante, que aliás nem existia
manchado de café e bebida, que foi arrastado
dos pais dela, sentado no tapete entre uma roda de
naquela minha época remota de pindaíba, cafés
para lá quando um “presidente” mais dinâmico
amigos, vendo-a a um braço de distância, toquei
no balcão e doce de leite cortado em losango.
organizou uma vaquinha para comprar um móvel
ao violão: Este seu olhar, quando encontra o meu,
decente para nossa sala de estar. O que acabou
fala de umas coisas que eu não posso acreditar...
Estávamos na sobremesa quando me virei, nem sei por quê, e vi a cinco mesas de distân-
sendo ótimo. O sofá novo era uma contrafação
Vi-a chegar com ele, discreta, evitando meus
cia um casal grisalho que conversava tranquilo,
modernista coberta com napa cor-de-laranja, e
olhos. Cumpri o ritual, engoli o ódio, no dia seguin-
diante de taças de vinho rubro. Antes de poder
duro que só um patíbulo. O velho, que foi para
te catei o Berg na saída de uma aula de Filmologia.
pensar, ergui o braço. Eles me viram, titubearam,
a cozinha, era aconchegante, fofo, hospitaleiro, e
– Você não pode fazer isso com o Faustino
seus rostos se iluminaram de reconhecimento e
me ajudou a dormir minimizando o fato de que Berg passou uma noite em claro extraindo arquejos da sua casada infiel.
– disse eu. – Com ele eu não fiz nada – disse Berg. – Vai cuidar da tua vida.
sorriso largo. Pedi licença e fui até a mesa dos dois, e Faustino e Maria Laura (porque eram eles) me deram abraços demorados e saudosos.
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
57
Pediram outro vinho, e parecia que a noite estava começando, e a vida junto com ela. Sim,
ia ficar mais um pouco, tinha reencontrado velhos amigos.
eles não tinham me esquecido, e mais até: me
Quando retornei à mesa, Maria Laura estava
acompanhavam à distância. Faustino tinha lido
sozinha, e disse que Faustino tinha ido fumar um
um ou dois dos meus livros, Maria Laura lembrou
cigarro da calçada.
algumas músicas minhas gravadas por aí. – Sempre que vejo alguma coisa sobre a Paraíba vou olhar se fala em você – disse ela. – Quando fala, eu mostro a todo mundo: “Ele é amigo meu!”.
– Ele não largou esse vício, hem? – perguntei, já num tom de pré-despedida. – Não – disse ela. – E tem uma coisa que eu quero te falar sobre Berg. – É mesmo? O que? – disse eu.
Os dois continuavam na Universidade, onde
– Eu já tinha até esquecido, mas de repen-
ele era pró-reitor de alguma coisa e ela era pro-
te voltou tudo. Tudo que não foi resolvido acaba
fessora titular. Filhos. Um netinho. Publicações
boiando de novo, não é?
acadêmicas. Uma bela casa num bairro tranquilo
– Claro – disse eu, só para dizer alguma coisa.
(“você tem que ir um dia almoçar com a gente”).
– Você nunca me perdoou por eu ter pas-
Sorrisos e mãos dadas. E eu só olhando. Uma vida
sado aquela noite com Berg lá no seu quarto, no
inteira que poderia ter sido e não foi.
seu Motel.
A inveja foi tanta que quando estávamos em pleno capítulo do “Por onde andam Fulano e Sicrano?...” eu dei um jeito de tocar no nome do canalha. – E o velho Berg, hem? Ainda está mexendo com cinema?
– Que noite? – disse eu, miseravelmente, olhando para dentro da taça de vinho. – Puxa vida, você convivia comigo e com o Faustino. Sabia que a gente tinha uma relação
Eu olhava para o vinho, esperando acontecer ali alguma coisa. Ela riu e pegou na minha mão. – Eu nunca vi que você gostava de mim. Ergui os olhos. Ela tinha cabelos totalmente grisalhos, pele flácida no pescoço, rugas em volta dos olhos, do sorriso. Quantos anos tinha agora? Cinquenta, cinquenta e cinco, quinhentos? Estava mais linda do que nunca. Imaginei como seria acordar todos os dias e ver aqueles olhos se abrindo, sempre mais luminosos do que na véspera. – Seu bobo – disse ela, e suspirou. – Bobagens de velha. Mas foi bom te ver e poder dizer isso. – Vocês estão felizes, pelo que eu vejo. É isso que conta. – Sim, é isso que conta. Ela pediu a conta, fomos encontrar Faustino na calçada, fumando e conversando com amigos. Trocamos emails, endereços, telefones. Despedimo-nos com abraços apertados. O porteiro do restaurante parou um táxi para mim. Ela me beijou no rosto.
aberta. Era uma bobagem, claro, mas era coisa
– Foi tão bom te rever – disse. – E deixa de
da época, a gente vivia sonhando com Saint-Ger-
ser importante, José, quando tiver um livro novo
Houve um silêncio que durou uma fração de
main-des-Près, com Woodstock. Faustino dava
manda pra gente, autografado.
segundo, mas couberam ali trinta anos de expec-
umas saídas com outras garotas. Eu tinha vinte e
Mandarei, sim, mandarei o livro onde venha
tativa. Faustino franziu a testa com uma expres-
dois anos, queria ter experiências. E depois daqui-
um dia a publicar esta crônica banal, na qual os
são de desalento, tomou um gole de vinho e disse,
lo você deixou de falar comigo. E logo depois, no
nomes de todos os envolvidos foram trocados,
com um suspiro:
fim do ano, voltou para a Paraíba.
para que a bolha de sabão do nosso passado per-
– Olha, o velho Berg não está mais entre nós. Um acidente de carro, já faz muitos anos.
– Que é isso, Maria Laura – falei. – Eu não sei do que você está falando.
Filho da puta, pensei, você sabotou as pas-
– Eu gostava de você, sabia disso? Mas
tilhas de freio do carro do velho Berg, do meu
achava que você era apaixonado pela Selminha
amigão.
– disse ela. – Pelo menos ela já tinha me dito
– Puxa, que pena – falei, num tom mais neutro do que a Suíça na ONU. – Como foi?
que teve uma noite tórrida de sexo com você, naquele quarto.
– Estava filmando o rally Paris-Dakar – disse
Comigo?! Eu broxei com a Selminha. Dor-
Maria Laura. Os olhos dela estavam tristes de ver-
mimos, no outro dia fiz café para ela e ficamos
dade. – Foi um choque pra todo mundo.
escutando Jefferson Airplane na sala. Puxa vida,
Nesse instante eu percebi que na minha
Selminha.
outra mesa já havia umas pessoas de pé e o gar-
– Saí com Berg somente aquela vez, e pra
çom estava do lado, empunhando a maquininha.
mim o local não tinha importância – continuou
Pedi licença aos dois, fui até lá, examinei a con-
ela. – Pra mim eu era somente uma amiga sua,
ta, o pessoal disse que eu era convidado, insisti,
uma a mais, uma daquelas pra quem você tocava
passei meu cartão, guardei o recibo no bolso da
violão. Não pensei que deixasse de falar com a
camisa, despedi-me de todos, agradeci, falei que
gente por causa disso. Não precisava.
maneça intacta, pelo menos aos olhos do mundo.
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
POR CHIQUINHO DIVILAS
58
RAPPER E EDUCADOR SOCIAL, GRADUADO EM RELAÇÕES PÚBLICAS PELA UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL (UCS), COM ESPECIALIZAÇÃO EM GESTÃO ESTRATÉGICA DE PESSOAS. FAZ MESTRADO EM DIVERSIDADE CULTURAL E INCLUSÃO SOCIAL NA FEEVALE. EM 2018, CIRCULARÁ POR VÁRIOS ESTADOS BRASILEIROS PELO PROJETO NACIONAL DO SESC ARTE DA PALAVRA.
RAPENSANDO A EDUCAÇÃO: O RAP COMO APRENDIZADO EDUCACIONAL
Foto: Fabiano Knopp
Meu interesse pela temática rap na educação
geral obtido por alunos do 8º ao 9º ano do ensino
ocorreu pela minha proximidade com a comunida-
fundamental. Com 4,3, ficou distante um ponto do
de e com a escola de Marechal Floriano, um bairro
estimado para este ano pelo governo federal.[1]
pobre da cidade de Caxias do Sul (RS), contornado
Fui criado pelos meus avós e acredito que é
pelos altos índices de violência, criminalidade e
por isso que estou vivo. Minha avó era faxineira da
drogadição. A escola Dante Marcucci, que aten-
maior escola estadual de Caxias. Por ser um pré-
de aquela comunidade, amarga um dos piores
dio grande e com muitas grades, apelidávamos de
desempenhos no Índice do Desenvolvimento da
Carandiru, casa de detenção de São Paulo demo-
Educação (Ideb) 2015, divulgado pelo Ministério da
lida em 2002. Mesmo com três filhos, minha avó,
Educação em 2016. É a última colocada da cida-
obesa e cega de um olho, deu segmento aos estu-
de e tem como maior deficiência o índice médio
dos e, com muita dedicação, concluiu o segundo
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
59
1
2 Playboy: o cara que tem muito dinheiro. Riquinho. Mimado.
grau, prestou vestibular, graduou-se em Letras e
cias, bebidas, namoradas, noites nas ruas, festas e
(MC dos Racionais) cantava, mas cujo significa-
logo passou a exercer outras funções, na mesma
aproximação com os jovens infratores, que eram
do eu não sabia. Fiz até parceria com o dicioná-
escola. Ela conseguiu uma bolsa escolar para mim
os meus amigos e vizinhos. Evasão. Eu batia ponto
rio Aurélio. Voltei aos estudos e concluí o ensino
e eu iniciei minhas atividades escolares em uma
na frente da escola estadual da quebrada e minha
fundamental. Cantava rap, mas não tinha show.
instituição privada. Eu odiei. Queria subir o morro e
identidade foi resgatada. Ali eu me sentia em casa,
Sabia que precisava estudar e trabalhar. O rap me
estudar com praticamente todos os meus amigos,
era eu mesmo. A escola Carandiru. Outro capítu-
fez voltar a sorrir, acreditar em um futuro. Logo
vizinhos que foram para a escola da quebrada. Mas
lo da minha biografia. Uma página em branco da
comecei a trabalhar como garçom, domingo a do-
acabei estudando no centro da cidade, onde fui
qual eu mesmo seria o autor dali para frente. Não
mingo, com um salário medíocre. Em 2000, ganhei
discriminado e sinônimo de chacota para os alunos
demorou muito para o rap chegar de vez na minha
uma bolsa integral do Sindicato dos Trabalhadores
brancos e ricos. Isso gerou revolta e muitas dúvidas
vida e, simultaneamente, os convites para os ata-
de Bares, Restaurantes e Hotéis para concluir o se-
sobre quem eu era, além da limitação do aprendi-
lhos na busca de um pseudossucesso.
gundo grau em um supletivo. Na sequência, prestei
zado, fruto de um bloqueio e da baixa autoestima.
Conheci o rap no início dos anos 1990, mas
vestibular. Sabia das minhas limitações, mas tentei.
Tive que fazer novas amizades. Quando en-
iniciei minhas experiências com a música em 1997,
trava nos apartamentos dos meus colegas play-
quando conheci o MC Paulista (Marcelo dos San-
E deu zebra. Passei.
boys[2], via tudo muito diferente. Apesar de nun-
tos), que veio de São Paulo tentar vida nova com a
A EXPERIÊNCIA UNIVERSITÁRIA
ca ter faltado comida na minha casa, a realidade
sua família. Junto com seus trapos, trouxe vinis dos
Um menino confuso, que amava rap, trabalhador,
era outra. O chão da cozinha da minha casa era
grupos Racionais MC’s, Gog, Sistema Negro, DMN
sem espaço para cantar, mas com a esperança
comprometido pela umidade do porão, já que não
e outros. Fiquei hipnotizado com tudo aquilo.
de que a música poderia salvar muitas “almas” e,
batia sol nos fundos do terreno. Cada pisada forte
O rap dialogava comigo muito mais do que os
inclusive, apontar alternativas. Vai vendo. Eu não
dada no centro da cozinha balançava a geladeira,
professores. As batidas mexiam com meu coração
tinha a menor ideia para onde o rap poderia me
o fogão e a mesa. Como levar meus colegas até lá?
e era como se as mensagens das músicas fossem
levar. Entre trâmites de matrículas e tentativa de
Seria um motivo a mais para piadas. Então nun-
direcionadas para a minha vida. Precisei escolher
bolsa na universidade privada de Caxias do Sul,
ca os convidava. A casa dos meus colegas era um
caminhos, já que recebia inúmeros convites dos
consegui ingressar no curso de Relações Públicas.
luxo só, com direito a torrada e chocolate quente
meus amigos para cometer pequenas infrações no
No primeiro dia, tomei um choque, um baque que
durante os trabalhos em grupo. Nunca quis levar
centro da cidade. Decorei dezenas de músicas dos
mexeu muito comigo. A primeira reação foi tentar
ninguém na minha casa.
discos e cantava na esquina do bairro e na frente
entender o que eu estava fazendo em uma uni-
Passaram-se oito anos nesse clima e nesse
da escola. Não demorou muito para iniciar as mi-
versidade. Percebi que o tempo perdido faria falta.
sentimento. Embora isso não fosse muito frequen-
nhas próprias composições. Muitas vezes, éramos
Entrei na universidade sem ter o hábito da leitura,
te, meu avô, negro e motorista de um carro fúne-
abordados pela polícia e tínhamos que explicar o
sem conhecer a história, apenas com alguns ma-
bre, me buscava na frente da escola às vezes. Ali eu
que estávamos fazendo na esquina.
cetes e orientações das letras de rap que diziam
percebi que o preconceito era uma manifestação
Meu apelido, Chiquinho, tem origem no meu
para optarmos por um rumo e que a avenida das
cultural na cidade. Pais, alunos e colegas riam da
segundo nome: Francisco, em homenagem ao meu
drogas e crime nos leva para um caminho quase
situação. Recebi o apelido de Todynho e Kid Mumu.
avô, Francisco Camargo. Esse apelido também con-
sem volta. E foi por essas dicas que eu estava lá.
Isso me deixava muito abalado. Porém, meu avô
tribuiu muito para a minha identidade na quebra-
No ônibus com destino à universidade, en-
sempre me transmitia uma lição de igualdade. Fa-
da, pois não gostava do meu nome. Hoje, ninguém
contrei um amigo de infância, que estava indo
lava que era necessário acreditar nos nossos so-
mais me chama de Jankiel, exceto em situações
para o presídio, bem próximo da universidade. Ele
nhos, que a cor da pele não influenciava em nada.
formais e indispensáveis correspondências.
estava em semiliberdade e tinha que assinar um
Muito humilde, acreditava que racismo não existia
Eu e o Paulista escrevíamos e cantávamos
documento obrigatório por ter cometido uma
e que nunca havia sofrido preconceito racial. Até
para a galera, mas show que era bom, nada. Nin-
infração. Sentamos juntos, conversarmos e, re-
hoje, acredito que falava apenas para que eu ti-
guém contratava o grupo, ninguém sabia sequer
miniscências à parte, cheguei à conclusão de que
vesse mais coragem de encarar as adversidades da
que existíamos. Queria porque queria rimar melhor.
eu tive sorte de me apaixonar pelo rap e optar por
vida. Comentava muito que eu deveria ter orgulho
Toda a minha limitação pela falta de vontade na
outros caminhos. “Salve, irmão! Estou indo para a
da minha origem.
escola, no primeiro grau incompleto, motivou meu
universidade. Quem diria, né?!” Ele ficou feliz por
A reprovação, a perda da bolsa e a expulsão
retorno aos estudos. Nesse processo, enriqueci
mim e desejou boa sorte. Eu também desejei sorte
da escola geraram revolta. Vieram as imprudên-
meu vocabulário com palavras que Mano Brown
a ele. Uma pena que este irmão, hoje, não está mais
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
60
vivo. Morreu baleado quando já estava distante do
bombou. A sonoridade do rap me apaziguou. Foi me
trabalhava, com algumas empresas vizinhas da
crime. Muitas vezes, o crime é uma bola de neve.
acalmando e eu fui soltando o verbo. Lauda na mão
comunidade e alguns parlamentares do município,
Cobranças voltam. Situação costumeira que viven-
trêmula. Cantei duas vezes a letra e, quando acabou,
realizamos a minha festa de formatura dentro da
ciamos no nosso cotidiano.
falei “esse é o meu trabalho”, aguardando a rejei-
quebrada. Uma festa diferente. Foi a 1ª Festa de
No primeiro dia de faculdade, a professora
ção de todos. Foi aí que, de repente, ouvi aplausos,
Formatura com a Comunidade. Guloseimas, grafi-
entregou uma folha para que preenchêssemos
aplausos. Aplausos. A professora deu nota máxima
tes, shows e artes cênicas para 400 crianças. Qua-
com nossos dados, principalmente e-mail. Eu não
e os colegas também gostaram da música. Quebrei
tro ônibus chegaram das comunidades vizinhas.
tinha e-mail, nem computador eu tinha. Isso em
mais uma muralha. E arranquei a primeira nota má-
Festa e festa na minha própria formatura. Fiz um
2001. Pensei: vou passar vergonha no primeiro dia
xima na universidade. Graças ao rap.
discurso breve de formatura e disse para todos os
de aula. Não vou perder para esses playboys. E se
O rap me ajudou muito na vida. Vem me aju-
meninos e meninas que quando retornassem para
eu sair correndo? Mas o que a minha filha vai pen-
dando até hoje. Fiz amizade com os caras que eu
suas residências comentassem com pais e mães
sar quando eu falar que desisti no primeiro dia?
chamava de playboys e aprendi a trabalhar com
que eles participaram de uma festa de formatura
Não posso. Fui sincero e falei para a professora
power point, entre outros programas. Aprendi a
na própria comunidade. Muitos pais também esta-
que eu ainda não tinha e-mail. Ela não titubeou
reservar livros na biblioteca online, fiz parceria com
vam presentes. Até o prefeito da cidade apareceu
e perguntou a todos “tem mais alguém que não
o dicionário e nunca mais parei de estudar e de
na festa, já que a divulgação estava na capa do
tem e-mail?”, com um semblante de insatisfação.
cantar. Comecei a pensar mais alto, acreditar mais
principal jornal da cidade. Como sou um cara bem-
Ninguém respondeu. Apenas eu não tinha e-mail.
no meu potencial e voltei para a comunidade de
-educado, o recepcionei. Pensei em reivindicar uma
Ela falou “quem não tem e-mail vai ficar prejudi-
cabeça erguida. Muito mais feliz.
educação de maior qualidade, mais cultura dentro
cado, pois eu passo matérias complementares das
Iniciamos a organização de oficinas de hip-
aulas presenciais, via internet. Portanto, o contato
-hop na quebrada. Isso foi fortalecendo a cena.
das comunidades, mais políticas públicas etc. Mas
é necessário”. Ao final da aula, fui diretamente ao
Até que um dia recebi o convite para realizar uma
Quem pensa que a juventude da periferia usa
laboratório de tecnologia. Pedi encarecidamente
palestra na escola, além de entrevistas para um
canudo apenas para cheirar cocaína, engana-se.
para o instrutor me auxiliar. Acho que ele ficou
programa de rádio e para o jornal. A liderança co-
Agora nosso canudo é outro, pensei comigo, fiz
com pena de mim e ajudou. Isso tudo demorou
munitária cedia espaços para cantarmos nas festas
uma retrospectiva na minha cabeça, como se fos-
três minutos. Quebramos uma muralha. O primeiro
de Natal, Páscoa e Dia das Crianças. No começo, o
se uma fita rebobinando. Esta história me incen-
obstáculo de vários que viriam pela frente. Ano-
espaço no palco era de três minutos e, logo depois,
tivou a continuar acreditando no rap dentro das
tei senha, login (aprendi o que isso significava) e
estávamos ajudando a organizar a festa. Tornamo-
escolas. Se possível, aproximar mais das escolas e
pensei que na próxima aula poderia gritar bem alto
-nos também líderes comunitários, além de educa-
comunidades, gerando um empoderamento e res-
para a professora, quando eu fosse questionado
dores sociais, adolescentes e rappers.
significando identidades na busca de uma geração
o dia era de festa.
sobre o e-mail. Ledo engano. Na aula seguinte, ela
Troquei de emprego, fui parar em uma mul-
protagonista.
já estava separando os alunos para um trabalho
tinacional, mudei de cargo, o rap comigo, eu com
Enfim, esse foi, mais ou menos, o caminho
em grupo. Apresentação em power point. Eu não
o rap. Porém, a música ainda não gerava renda,
trilhado até chegar ao mestrado. É também em
sabia mexer no power point e resolvi fazer sozinho.
apenas muita autoestima. Eu estava estudando,
função desse caminho que tomei, como foco de
Peguei a apostila, entendi o trabalho, mas não iria
lendo livros e rimando cada vez mais. Prestes a me
pesquisa, o hip-hop. E, sendo educador social,
conseguir de jeito nenhum produzir os slides. En-
formar, em meados de 2010, fui pioneiro ao de-
interessei-me pelo cruzamento com a temática da
tão eu fiz o que eu sabia realmente fazer: uma letra
senvolver a primeira monografia sobre hip-hop na
educação. Agora, apresento sumariamente esses
de rap baseada na matéria. Levei a base (batida) de
Universidade de Caxias do Sul (UCS). Um semestre
dois campos: hip-hop e educação.
um cd e escrevi a letra em uma folha de caderno.
antes da formatura, um moleque que participava
Meus colegas de aula dando show nas apresen-
de uma atividade de hip-hop que eu coordenava
MINHA PESQUISA
tações, dicções e posturas corporais. Eu não tinha
perguntou o que era se “formar”. Ele não sabia. Ali-
Em Hip Hop: da rua para a escola (SOUZA, FIALHO
condições para fazer sequer parecido.
ás, ninguém sabia.
E ARALDI, 2005), as autoras refletem a educação
Quando chegou minha vez, contive o medo
Fiquei com uma pulga atrás da orelha até que
musical na contemporaneidade, apresentando
de falar em público e disse que iria cantar um rap.
surgiu a ideia de fazer uma festa de formatura e
propostas práticas com o hip hop para a sala de
Ninguém sabia muito bem o que era. Mas fica-
convidar todos os jovens das favelas da zona oes-
aula. Outra referência que contribuiu na cons-
ram curiosos. Coloquei o cd no radinho e a base
te da cidade. Em parceria com a empresa que eu
trução do pensamento acerca desse movimento
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
61
foi organizada por Andrade (1999) no livro Rap
o aluno para o reconhecimento e proporcionando
para escola com a ideia de mudar um pouco o
e Educação, Rap É Educação. Essas duas obras
autoestima. Minha justificativa teórica para o tema
ambiente em que vive. Infelizmente, não é isso
retratam e auxiliam novas didáticas para serem
tem o sentido e a proposta alinhados com a refe-
que acontece.
utilizadas com o hip-hop.
rência teórica de Paulo Freire (1981).
Buscaremos agora compreender as práticas
A mudança da percepção da realidade pode dar-
musicais face aos novos processos de segrega-
O visual que os (as) jovens adotam, o
-se “antes” da transformação desta, se não se em-
ção urbana, pois sabemos que o hip-hop tem
modo como se expressam e utilizam seu
presta ao termo antes a significação de dimensão
uma importante representatividade para jovens
corpo, bem como o modo como falam,
estagnada do tempo, com que lhe pode conotar a
e adolescentes das periferias. A música fala o
demarca a identidade de quem pertence
consciência ingênua (FREIRE, 1981).
mesmo dialeto desses adolescentes, dentro da própria escola. O hip-hop é a voz de quem não
ao movimento, construindo uma imagem e uma concepção do que significa
A ressignificação propriamente dita. Com-
tem voz. Abordar a importância de uma mudança
ser do hip-hop. O que foi possível ob-
preendendo o hip-hop como uma ferramenta de
no sistema educacional, hoje, é muito importante
servar é que essas marcas de mulher no
expressão, canalizando discussões sobre o coti-
para pensarmos num futuro mais democrático
movimento, refletindo, em sua maioria,
diano vivido pelos jovens da periferia. O mesmo
e igualitário. Desta forma, a educação amarra-
no comportamento e no trabalho desen-
quadro escolar isolado na frente de uma sala,
da às artes e à cidadania pode e deve ter espaço
volvido pelas jovens participantes pres-
aliás, o mesmo quadro do tempo em que minha
na escola. Sendo assim, é possível acreditar que
crevendo padrões aceitáveis de imagens
avó era aluna. O quadro não é o problema, mas o
o hip-hop poderá contribuir para o aprendizado
e ações (ANDRADE, 1999).
que se faz com o quadro ainda continua sendo
educacional, além de ressignificar a identidade do
o mesmo que se fazia no tempo da minha avó.
jovem pobre e despertá-lo para o engajamento
O movimento poderá levar para dentro da sala
As mesmas ferramentas educacionais e, por ve-
no combate às violações aos direitos humanos.
de aula manifestações importantes para a produ-
zes, didáticas. O mesmo prédio, a mesma goteira.
ção de novos saberes e novos conceitos, além de
O jovem sai da sua comunidade com inúmeros
formar uma geração mais participativa, chamando
problemas sociais e de falta de infraestrutura, vai
Chuiquinho Divilas Foto: Vanessa Falcão
SEGUNDO SEMESTRE
LITERATURA
2017
62
POR TELMA SCHERER ESCRITORA E POETA. CIRCULOU EM 2017 NO CIRCUITO DE ORALIDADES DO PROJETO NACIONAL DO SESC ARTE DA PALAVRA
A VIGÍLIA DO POEMA E O SONO DE CRONOS NA MINHA BARRIGA
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
63
1 “Entre o vento e o peso da página” é o título da pesquisa, realizada como estágio de pós-doc dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC, universidade onde atualmente trabalho como professora substituta na área de pintura. A pesquisa é supervisionada pela artista e professora Raquel Stolf e propõe um processo artístico calcado nos contágios, diferenças e assimilações entre a palavra-vento e o livro-fardo.
Em julho desse ano, estive em Pernambuco em
à vida, mas também para que, nesse intervalo,
sentação com maior aderência e envolvimento do
função do circuito de oralidades do projeto Arte
nesse lapso, pudesse ainda renascer outra devo-
público teve na plateia principalmente jovens. Os
da Palavra, apresentando o trabalho “O sono de
ração: a dos antropófagos cantantes e dançan-
textos mais experimentais e não lineares foram os
Cronos na minha barriga”, uma performance de
tes louvados por Oswald de Andrade e até hoje
mais comentados por eles, que fizeram questão de
poesia falada, construída a partir de experimen-
vivos nas selvas verdes que ainda nos restam e
tocar, ao final, nos objetos cênicos e sonoros utili-
tações literárias em campo expandido. Entre es-
nas selvas de pedra das nossas comunidades, re-
zados durante a performance.
tas, um conjunto de vídeos exibidos como aber-
sistentes pela força da sua estratégia poética, de
Esse tema da poesia falada vem me acom-
tura do trabalho ao vivo; e também o exercício
sua presença corporal. Então Cronos, esse deus
panhando aqui e ali desde que eu tinha a idade
de construção poética em ‘outras’ linguagens
greco-latino e masculino, poderia dormir “na mi-
do público adolescente, que foi quando come-
artísticas, como a pintura. Foi principalmente a
nha barriga”, aludindo, no trabalho ao vivo, ao
cei a me aventurar a praticá-la. Realizei diversas
partir dessas experimentações que o conceito da
corpo feminino que gera a vida e à poesia como
leituras e, no doutorado, abordei a relação entre
performance se formou e que alguns dos textos
“mãe das Artes / & das armas em geral” (Tor-
vocalizados foram escritos e rearranjados para
quato Neto). Uma reflexão sobre a voz poética
serem apresentados à viva voz.
acabaria, então, por trazer consigo um questio-
Encarei como um desafio e também como
namento sobre o que é propriamente o tempo,
uma responsabilidade falar poesia em um Estado
se ele é neutro ou se traz consigo determinações
que é o ventre de tantas manifestações culturais
das especificidades culturais, de raça, classe, gê-
importantes, especialmente na área das poéticas
nero e ancestralidade.
orais, levando um trabalho cuja forma é diver-
Em duas das quatro apresentações (que
sa das práticas de matriz folclórica, apesar de
aconteceram em Triunfo, Serra Talhada e Petro-
partilhar com estas muitos elementos comuns.
lina), esses temas foram levantados pelo próprio
“O sono de Cronos na minha barriga” também
público que, além de inferir elementos pouco
trazia consigo as marcas de uma pesquisa sobre
explícitos no trabalho, formulando uma série de
modos de escrita e de escuta empreendida no
perguntas, também me brindou com suas leitu-
âmbito das artes visuais , a qual o contaminou
ras e sugestões, motivando-me a repensar o meu
com a vontade de colocar em contato a palavra-
trabalho através desse desvio proporcionado pela
-vento, leve e passageira, plena de sonoridades,
escuta ativa do outro. O resultado dessa experiên-
e o livro-fardo, ou seja, a tradição erudita, que
cia foi a confirmação de que a diferença da forma
apesar de, de fato, pesar em nossos hábitos li-
final, o contraste dos hábitos de fala, dos sotaques
terários com a densidade de um cânone muitas
e dos modos de apresentação da poesia, no fundo,
vezes questionável, pode ter também a leveza de
jogam mais a favor do que contra a identificação
uma biblioteca infinita, plena de novas leituras
do público com a performance literária. A palavra-
e descobertas. Logo pensei que Cronos, o deus
-vento da oralidade, não importa se apresentada
do tempo, devorador dos seus próprios filhos,
nas roupagens do livro-fardo ou da tradição fol-
pudesse pegar no sono, um sono pesado, não
clórica, tem a capacidade de unir escutas e promo-
apenas para que Zeus restituísse os seus irmãos
ver pontes também entre gerações, já que a apre-
[1]
ALALIA Vídeo, 2014, 46 segundos Sinopse: O livro como peso e a repetição como programa. NO INÍCIO ERA EDITADO Vídeo, 2014, 26 segundos Concepção, captação e edição: Telma Scherer Sinopse: No início, era o Verbo (sabemos desde João), o sopro da vida insuflado em nós. Mas mesmo este começo não é isento de lapsos. O vídeo procura tratar daquilo que escapa entre um instante e o outro. ADD AD INFINITUM Vídeo, 2014, 3 minutos e 12 segundos Concepção, captação e edição: Telma Scherer Sinopse: A adição de infinitos a uma jornada definida pode às vezes causar certo enjoo; no entanto, não deixamos de recorrer aos objetos transcendentes sempre que o presente é pouco.
LITERATURA
SEGUNDO SEMESTRE
2017
64
2 Fotografia realizada em baixa velocidade, no escuro, na qual se “pinta” com a luz.
poesia e performance a partir da obra de Ricardo
performance quanto pela da publicação. Depois
consequente morte de Iracema. O fidalgo mame-
Aleixo. Aprendi que as hibridizações são próprias
da Água (Nave, 2014) já foi realizado em para-
luco está misturado com a própria fundação da
da poesia, desde suas origens; que a expressão
lelo com esse estudo e contém um conjunto de
brasilidade. Desse fascículo, saíram duas páginas
“literatura oral” comporta algo de redundante
fotopoemas realizados em light painting . A per-
que acompanham o vídeo que deu origem à per-
(Walter Ong), e que a própria leitura de poesia,
formance “O sono de Cronos na minha barriga”,
formance “O sono de Cronos na minha barriga”.
ainda que silenciosa, contém uma experiência
posterior a esses processos, também é, de certa
Nele, utilizo também o volume da enciclopé-
que é da ordem da performance (Paul Zumthor).
forma, uma continuidade deles. São vocalizados
dia. “Cronos” é uma performance orientada para
A ideia de uma poesia “em campo ampliado” (Ro-
poemas desses três livros, além de um conjunto
vídeo, de pouco mais de três minutos, em tempo-
salind Krauss), por sua vez, vem acompanhando
de textos cujo processo de escrita é também de-
-real, sem edição, na qual eu rasgo e literalmente
tentativas de compreensão da poesia contem-
sentranhado das experiências de pesquisa sobre a
como as suas páginas. Esse trabalho foi inspirado
porânea, na qual a intermidialidade é um dado
poesia no campo expandido. A própria ideia mo-
em uma performance de Paulo Herkenhoff, de
recorrente. A performance poética ao vivo com-
triz do trabalho surgiu de experimentações desse
1975, na qual ele realiza a mesma ação com pági-
porta um grande número de camadas fruídas ao
tipo, incluindo apropriação de impressos.
nas de jornal sobre a censura no Brasil, em plena
[2]
mesmo tempo (texturas vocais, uso de imagens,
Foi com o objetivo de angariar material para
ditadura. Assim, repensei essa ação para os dias
presença corporal, objetos cênicos e sonoros, de-
uma série de pinturas-poema de 2013 e 2014
de hoje, abordando também a ausência de uma
terminações do espaço da ação, interação etc.),
que comecei a coletar, nos balaios, um conjunto
deglutição efetiva daquele manifesto oswaldiano,
o que faz com que esse evento não seja apenas
de publicações “decaídas”, ou seja, que não têm
ou seja, a falta de uma problematização das prá-
um modo mais atrativo de apresentação do texto
valor comercial quase nenhum, e de cujas pági-
ticas aqui consideradas eruditas, além da preca-
escrito, mas também um trabalho artístico que
nas eu me apropriava para criar situações que,
riedade das instituições literárias em nosso país.
tem consistência própria, sem perder os laços
nas telas, pudessem desviar e redimensionar os
A enciclopédia fala do que está e do que não está:
com o que há de propriamente literário em seu
sentidos de origem dessas publicações. São livros
é tanto o livro-fardo de origem europeia que ti-
acontecimento.
que se tornaram obsoletos por algum motivo: di-
vemos que deglutir para criar uma cultura letrada
Os três livros de poesia que publiquei fo-
dáticos ultrapassados, romances obscuros, fascí-
no país quanto a ausência desse objetivo efetiva-
ram antecipados por performances, de modo
culos, volumes soltos de enciclopédia. Encontrei
mente cumprido, dado o analfabetismo funcional
que esta se configurou, no decorrer dos anos,
preciosidades em um baú de R$1,00 de um sebo.
e as baixas médias de livros lidos pelos brasilei-
numa espécie de modo de escrita, para mim.
Foram produzidas cinco telas com a participação
ros. Ela fala também de um outro tempo, no qual
Nas múltiplas oficinas que ministrei, muitas de-
desses materiais, entre grossas camadas de tinta,
havia a pretensão de reunirmos em uma mesma
las para o Sesc/RS e o Sesc/SC, percebi que esse
objetos e formas acumuladas umas sobre as ou-
publicação todos os assuntos sobre os quais se
método criativo pode funcionar como um facili-
tras no suporte.
tinha curiosidade. Em tempos de Wikipédia, de
tador da comprensão de elementos próprios do
Entre os impressos que coletei, chamou a mi-
Google e de fragmentação da realidade e dos sa-
poema, inclusive no seu aspecto técnico, como
nha atenção uma série de fascículos que abordam
beres, não surpreende que esses lindos volumes
o trato rítmico da linguagem. Em Desconjunto
a história brasileira, seus “heróis” e as disputas do
ilustrados tenham parado nos balaios de R$1,00.
(IEL, 2002) e Rumor da Casa (7 Letras, 2008), en-
período colonial, com o título de “Grandes Per-
A devoração de um nosso “lado doutor, lado
tretanto, apesar do cuidado e do apuro dos pro-
sonagens da Nossa História”, além de um grosso
citações” pode continuar sendo uma estratégia
fissionais envolvidos no design gráfico, senti um
tomo da Enciclopédia Britânica. O fascículo “Je-
de resistência às novas dominações impostas
certo descontentamento com a materialização do
rônimo de Albuquerque” trazia a trajetória do pa-
pelo retorno do recalcado que hoje vivemos, e
objeto livro, que eu sentia não traduzir de modo
triarca mameluco, o primeiro a ganhar o título de
também à compulsão bacharelesca que fundou
eficiente esse conjunto de dados presenciais que,
“cavaleiro fidalgo”, que me remeteu diretamente
muitas de nossas instituições culturais. Estratégia
nas performances, compõe uma complexidade de
a Oswald e seu Manifesto Antropófago. Os Albu-
que inclui a presença do corpo e a consciência
camadas. A falta que eu sentia podia ter relação
querques foram uma família fundadora, comen-
de suas potencialidades. “O sono de Cronos na
com a formulação do poema por escrito e com
tada por Paulo Prado no Retrato do Brasil. José
minha barriga” é ainda a reivindicação da parti-
elementos pré-determinados do campo livresco
de Alencar, no final de Iracema, anuncia a vinda
cipação do feminino na construção de um tempo
(o livro-fardo). A partir de um determinado ponto,
do Albuquerque que seria ajudado por Martim e
de poesia, que é sempre tempo de vigília, ou de
senti a vontade de estudar o campo das artes vi-
Poti na expulsão dos invasores não portugueses
despertar.
suais, relacionado com a poesia tanto pela via da
daquelas terras, após o nascimento de Moacir e a
LITERATURA LEITURA
SEGUNDO SEGUNDO SEMESTRE SEMESTRE
2017 2017
65
O LIVRO DO AMOR – VOL. 1 E 2
RUÍNA Y LEVEZA Júlia Dantas
MIM, MANUAL DE INTERAÇÃO MONSTRUOSA
OS SONHOS DE EINSTEIN (1993)
Regina Navarro Lins Best Seller
Não Editora
Milene Barazzetti e Christina Dias
Companhia das Letras
Alan Lightman
Selo da Kombina
Nesses tempos bicudos, é
A euforia dos três segundos em que
MIM – uma história de arrepiar
Em tempos cada vez mais velozes, é
importante refletir sobre as
se decide pelo apaixonamento ou
os cabelos e deixar até gato
um convite ao prazer real da leitura
relações humanas e, nestes dois
passar ao largo. É com essas palavras
escaldado. O MIM – Manual
e à capacidade de nos transformar
volumes, Regina Navarro Lins nos
que a autora define o momento de
de Interação Monstruosa é
e estimular a imaginação. É dessa
dá muito material para entender
se apaixonar ou não por alguém.
um dicionário de monstros
forma que percebo esse livro que
como a humanidade ama (ou não),
Pego-as emprestadas para explicar
misturado com um mostruário
fala sobre diferentes tipos de
dos primórdios até os dias de hoje.
a relação que se estabelece com
de sustos e uma galeria de
“Tempo” e “Mundos” que passam a
O livro mostra como a religião, a
Ruína y Leveza. A euforia está
medos. Milene Barazzetti,
existir a partir dele. Através de 30
política, o poder e o medo vêm
posta desde as páginas iniciais,
escritora e contadora de
histórias, conhecemos um mundo
determinando os relacionamentos
quando começamos a acompanhar
histórias, e a escritora Christina
onde o tempo congela e descongela
através da história, numa estreita
a trajetória da gaúcha Sara – não
Dias construíram esse livro a
ou, então, fica completamente
relação com a questão da mulher
apenas a que ela traça sobre solo
quatro mãos e muitos sustos.
parado. Imaginem um mundo onde
e o seu papel nas diversas
peruano e boliviano, mas a que
Cada página, uma letra; cada
ninguém é feliz? Como perceber
sociedades. Leitura fácil, agradável
começa a se desenhar dentro dela.
letra, um susto; cada susto, uma
um mundo onde as pessoas
e direta, mas o difícil vem depois:
Mais do que aventuras de viagem, a
gargalhada, com ilustrações
vivem apenas um dia? Um livro
é impossível não repensar nossa
obra narra o momento em que a vida
divertidíssimas da Yris Tanaka.
provocador e sempre surpreendente,
vida amorosa depois dessa leitura.
se mostra insatisfatória e é preciso
Tem até um a bruxa distraída
como quando o autor descreve
redescobrir, redefinir o sentido do que
que solta pum e personagens
o mundo em que todos sabem
fazemos, pensamos, amamos. Entre
de lendas e mitos do folclore
quando vai acabar “...um dia antes
albergues e ruas de cidades arenosas,
brasileiro, como o Saci e a
do fim, as ruas explodem em
a protagonista conhece pessoas,
lagartixa gigante Teiniaguá.
gargalhadas. Vizinhos que nunca se
histórias e culturas e reconhece
falaram cumprimentam-se como
suas raízes latino-americanas, em
amigos, tiram as roupas e nadam
uma narrativa pela qual é impossível
nas fontes...” O que faríamos se essa
passar ao largo: é inevitável
informação estivesse realmente
apaixonar-se.
disponível?
DEDÉ RIBEIRO
MÁRCIA SCHULER
ALICE URBIM
LEANDRO SELISTER
PRODUTORA, DRAMATURGA E COLAGISTA
JORNALISTA
GERENTE DE PROGRAMAÇÃO DA RBS TV
ARTISTA VISUAL