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O PROGRAMA LINHA DIRETA: a sociedade segundo a TV Globo Jornalista Sonia Montaño ano 1 - nº 3 - 2003 - ISSN 1679-0316
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Centro de Ciências Humanas Diretor José Ivo Follmann, SJ Instituto Humanitas Unisinos Coordenador Inácio Neutzling, SJ
Cadernos IHU Ideias Ano 1 – Nº 3 – 2003 ISSN: 1679-0316 Editor Inácio Neutzling, SJ Conselho editorial Dárnis Corbellini Laurício Neumann Rosa Maria Serra Bavaresco Vera Regina Schmitz Responsável técnico Telmo Adams Editoração e impressão Gráfica da Unisinos
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467 www.unisinos.br/ihu
O PROGRAMA LINHA DIRETA: a sociedade segundo a TV Globo Jornalista Sonia Montaño1
1 A câmara, as massas e o sentido para o igual A cultura visual, de maneira especial no cinema e na televisão, apresenta o desejo de reconstruir, de alguma forma, a realidade a partir de dentro. Trata-se da tentativa de realizar, com a câmera, uma perfeita ilusão do mundo perceptivo. Já Benjamin (1987: 189) descrevia em detalhes o potencial do cinema de mostrar o imperceptível com a dinâmica de seus décimos de segundo, que fez saltar o mundo carcerário de nossos bares, de nossos escritórios e habitações, de nossas estações e fábricas, que pareciam aprisionar-nos sem esperança. E agora empreendemos, entre seus escombros dispersas, viagens de aventuras. Barbero e Rey (2001: 27) avaliam que o crescimento do sentido para o igual no mundo do qual o cinema fazia parte estava triturando a aura de um tipo de arte, que era o eixo do que as elites tenderam a considerar cultura. Para Lúcia Santaella (1989:90), se o cinema já permite um aprofundamento da percepção e utiliza instrumentos destinados a penetrar mais intensivamente no coração da realidade, os materiais e técnicas da televisão elevam esse potencial a uma grandeza inimaginável.
O valor das massas o surgimento da televisão coincide com uma época de tentativas teóricas de compreensão das massas. Martín-Barbero (1997) enumera diversas leituras que os teóricos europeus fazem do fenômeno. Tanto os de esquerda como os de direita, embora com pontos de vista bem diferentes, mostram um senti1
Atua no setor de comunicação do Instituto Humanltas Unisinos, graduada em Jornalismo, Unisinos.
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mento de degradação e depreciação pelas massas. Para os teóricos norte-americanos dos anos 1940-50 (no contexto dos EUA pós-guerra, onde o eixo da economia se desloca de lugar e desloca sua reflexão), a cultura de massas representa a afirmação e a aposta na sociedade da democracia completa. A sindrome de “liderança mundial” que os norte-americanos adquiriram por esses anos tem sua base, segundo Hebert Shiller, na fusão da força econômica e do controle da informação, e ao mesmo tempo na identificação da presença norteamericana com a liberdade; liberdade de comércio, de palavra, de empresa (Ibid: 57). A nova sociedade é possível a partir da revolução do consumo, que liquida a velha revolução no âmbito da produção. O que está mudando não se situa no terreno da política, mas da cultura, entendida como o código de conduta de um grupo ou povo. Os Estados Unidos lançavam, assim, um estilo de vida (o deles), que, no século XX, seria a matéria-prima para o imaginário dos meios de comunicação e, especialmente, da televisão.
2 A TV na sociedade brasileira Falar de televisão é falar do Brasil. Eugênio Bucci
A história da TV no Brasil está muito unida à história de industrialização do País e, portanto, à história da formação e expansão de um grande mercado de consumo. Segundo dados de AcessoCom, 81 % dos brasileiros assistem TV todos os dias numa média de 3,5 horas. E, do total da audiência, 52%, segundo o Anuário Mídia 2000, assistem a Rede Globo de Televisão. No ano de 1950, inicia uma série de transformações no País que, entre outras coisas, derrubam essas fronteiras regionais. É necessário contextualizar essas mudanças, porque criam um novo estilo de vida que nos ajuda a compreender a televisão, não só como produto dele, mas também como característica primordial da “sociedade” que existe dentro da tela.
2.1 Industrialização e migrações internas
A incorporação de padrões de produção e consumo, próprios de países desenvolvidos, entre 1945 e 1964, leva a um importante processo de industrialização, com a instalação de setores tecnologicamente mais avançados, que exigiam investimen-
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tos de grande porte. As migrações internas e a urbanização ganham um ritmo acelerado. Em 1964, o Governo mílítar (1964-1979) inaugura um novo “modelo” econômico, social e político de desenvolvimento. Mas essa mudança e, especialmente, as conseqüências negativas do novo modelo não eram fáceis de se perceber no momento, deixando uma sensação de continuidade essencial no “progresso”. Começa, assim, um deslocamento permanente para as cidades. O Estado construiu estradas de rodagem que facilitaram a migração e aumentaram o consumo da indústria automobilística. Também foi criada uma infra-estrutura econômica e social (eletricidade, polícia e justiça, escolas, postos de saúde, etc.,) nas cidades que foram surgindo ou se renovando. O otimismo era alimentado com novas construções, novos produtos, novos hábitos e costumes. A penetração de valores capitalistas dentro da familia não teve maiores obstáculos. A casa continua a ser o centro da vida social, só que a vida em familia não é mais governada pelo passado, pela tradição, senão que pelo futuro, pela aspiração a ascensão individual, traduzida, antes de tudo, pela corrida ao consumo (Ibid: 605).
2.2 Do analfabetismo à massificação
A indústria televisiva consegue, assim, o impulso decisivo, porque o Governo militar viu nela uma das formas mais eficientes para sua legitimação. É criado o Ministério das Comunicações, que fez pesados investimentos em telecomunicações. Ao mesmo tempo, facilitou-se a compra de televisores a crédito. Exposta a esse impacto, a sociedade brasileira passou diretamente do analfabetismo à massíficação, sem percorrer a etapa intermediária de absorção da cultura moderna. O Brasil, que manteve a escravidão até finais do século XIX, 80 anos depois, parece estar ingressando no “primeiro mundo”, mas, na realidade, constrói uma das sociedades mais desiguais do mundo. Diversos autores comentam as conseqüências de tamanho salto produzido pela industrialização e acentuado pela rápida difusão e pelo papel da televisão. Para Maria Rita Kehl (1979-1980: 21), os diversos fatores que estão em jogo vão apagando o regional. Uniram-se a busca de um público maior, a industrialização generalizada da produção de bens materiais no Pais e a penetração massiva da indústria cultural em todas as áreas de produção de bens simbólicos. Agora, o circuito pequeno, regional ou local, parece inútil. Segundo a autora, o fenômeno não é causado pela televisão, mas
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pelo desenvolvimento do Pais, que incorpora novas e diferenciadas faixas sociais ao mercado de consumo cultural. O que ela, sim, atribui à TV é a diluição da contradição, contornando as barreiras de classe e de linguagem, transformando a qualidade em quantidade e estendendo a mão para os produtores de cultura. É nesse contexto que surge a TV Globo. Um ano depois do golpe militar, ela estava indo ao ar, no Rio, em 26 de abril de 65. Roberto Marinho era o dono da emissora. Seu pai havia fundado o jornal O Globo em 1925, mas morreu logo depois. Aos 26 anos, em 1931, Roberto Marinho era o diretor do jornal. Na década de 1940, ele deu inicio às transmissões da Rádio Globo.
2.3 Marinho, um revolucionário de primeira hora...
Em relação ao Governo militar, Marinho foi revolucionário de primeira hora e continuou a apoiar todos os governos da revolção, como dissera Armando Falcão, Ministro da Justiça de 974 a 1979 (apud Anahia Mello,1994: 27). E como “revolucionário de primeira hora”, Marinho abraçou, com sua emissora, o objetivo do Governo militar: unificar o Pais e fazer dele um mercado, objetivo que só conseguiria através das grandes possibilidades tecnológicas. A introdução do videoteipe, na década de 1960, foi decisiva. As produções feitas no eixo Rio e São Paulo eram levadas para todo o Pais, o que favoreceu as redes nacionais em detrimento das produções locais. O Pais inteiro tinha que aprender a se reconhecer nos modelos de vida vindos de Rio e São Paulo. Mas o fato mais importante para a integração nacional foi quando, em primeiro de setembro de 1969, surge o Jornal Nacional, primeiro telejornal a atingir praticamente todo o território brasileiro em tempo real. A TV Globo, paralelamente à aceleração da economia brasileira, organiza-se como uma indústria tipicamente capitalista, de acordo com uma mentalidade empresarial, que aprendeu junto ao grupo americano Time-Life. Segundo Homero Icaza Sanchez (apud Kehl, 1979-1980: 96), a TV Globo, nesse momento, não assume um projeto governamental, mas sim um papel de rede: rede, porque é um projeto econômico. Se não tem uma rede nacional, não se pode cobrar por um minuto de comercial o que se cobra. Então, a questão é econômica.
2.4 ATV a cores e o “novo” Brasil do Governo Militar
Na década de 1970, a entrada da TV a cores ajudou a mostrar um Brasil que vai “pra frente”: novo, moderno, colorido, um pais onde o sonho da ascensão social parece estar a um passo
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da realidade. Como constata Anahia Mello (1994: 33), nessa década, a “unidade nacional” passa por frases e fatos como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e a transmissão ao vivo, via satélite, da Copa de 1970, no México. O Estado fornecia cerca de 30% das verbas de propaganda. Pagava por algumas e exigia a exibição de outras, de graça. A televisão era o principal veiculo para suas mensagens de propaganda. Dessa forma, aquele brasileiro ou brasileira que atravessara, na década de 1950, a fronteira rural, expulso pela pobreza, passou por um rápido processo de desconstruçao e de reconstrução de um Brasil ao qual teve que se adaptar. O homem e a mulher desarraigados, que perderam, em um curto período de tempo, a imagem de seu pais tal como o concebiam dez ou quinze anos atrás (uma imagem carregada de valores rurais, ainda que defasados em relação à época), como lembra Kehl (1979-1980: 11), perderam ao mesmo tempo seus canais habituais de articulação com a comunidade – “canais” que vão do campinho de futebol de várzea à participação sindical, da festa de rua às eleições diretas. A esse brasileiro resta o consolo da festa Global, resta entrar em cadeia às oito da noite pelo Jornal Nacional ou assistir “com todo o Brasil” a novela do momento. Nessa situação, avalia a autora, resta a televisão como encarregada de reintegrá-Io sem dor e sem riscos à vida da sociedade ou ao lugar onde as coisas acontecem. Esse lugar é o próprio espaço da imagem televisiva, e esse é o principal papel que a rede líder em audiência representou na década. A historiadora Maria Rita Kehl (apud Anahia Mello. 1994: 38) tenta perceber a interação entre o Brasil telerreal da Globo e a sociedade fora da tela, quando diz que a Globo conseguiu, melhor do que qualquer política repressiva de proibição ou censura, alterar a consciência do brasileiro sobre sua condição.
3 A sociedade brasileira na TV Globo A naturalidade com que a televisão se incorpora à vida da sociedade2 é equivalente à naturalidade com a qual a sociedade é representada na tela. Na construção do Telebrasil, a Rede Globo apela a uma introdução permanente de elementos familiares à cultura brasileira ou a acontecimentos históricos do País. Segundo Kehl (1979-1980: 27), essa aproximação da realidade brasileira partiu das reivindicações por “mais realismo”, “menos fantasia”, “menos ilusão”, vindas de setores mais avançados do
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Devemos ter em conta que a TV está (geralmente em um lugar de destaque) em 87,7% dos domicílios brasileiros.
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público e dos próprios críticos. Havia uma expectativa “progressista” de que a televisão fosse um espelho da realidade. A emissora, então, resolveu adotar essa estratégia. Colocar o “povo” no vídeo e não omitir nem mesmo os fenômenos criados pelas vanguardas da sociedade, abordados, evidentemente, com o devido cuidado, para que as tais massas não os considerem incompreensíveis.
3.1 A fala roubada
Nesse procedimento, foi fundamental a criação do Departamento de Pesquisa da Globo, por José Bonifácio Sobrinho (o Boni), em 1971. O setor funciona como auxiliar das áreas de programação e produção, analisando comportamentos, tendências e demandas dos espectadores. Para Kehl (1986: 221), foi esse departamento que fez com que a televisão fosse capaz de se antecipar às demandas em massa do público, captando o emergente através de suas pesquisas e transformando-o em mito via TV. A autora refere-se ao mito de acordo com a definição de Barthes3. O trabalho da equipe seria captar (roubar .. .) demandas (inconscientes?) ainda não transformadas em fala social, ainda latentes, ou não-expressas ou mal expressas ou expressas por minorias, e transformá-Ias na versão que a Globo (via Boni) considera ser a fala conveniente (Ibid).
3.2 O Padrão Globo de Qualidade: uma proposta estética
Boni foi um dos responsáveis por criar e implementar o Padrão Globo de Qualidade (PGQ), marca industrial e identidade visual de a Rede. Segundo ele (apud Kehl, 1986: 186), o PGQ é a forma da Globo se relacionar com o público e os patrocinadores. Para habituar o telespectador a ver nosso canal, precisamos colocar no ar um produto que você e o mercado estejam dispostos a consumir. E você e o mercado têm que confiar que, assim que aquele produto acabar, vai ser substituído por outro que mereça igual confiança. Na relação do hábito, passa a existir também a afetividade. Ou seja, o hábito de uma programação fixa e repetida por parte da emissora – aquelas pessoas estão sempre naquele horário em nossas casas, sem falhar – cria o afeto nos telespectadores, que, ao mesmo tempo, reforça seu hábito e sua “fidelidade” à emissora.
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Para Barthes, mito é uma fala roubada.
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Essa nova visão levou a Globo a uma série de mudanças, adotando em sua grade de programação a horizontalidade e verticalidade, inventadas pela TV Excelsior, para criar espaços permanentes nos quais alimentou essa relação afetiva com o telespectador e comercial com o patrocinador. A Globo já tinha conquistado a audiência através de programas de cunho popularesco. Nos primeiros anos, buscou todas as formas de comunicação da época sem nenhum pudor, igual às outras emissoras. Ela mantinha programas como O homem do sapato branco; e apresentadores como Longras; Sílvio Santos; Dercy; o Chacrinha, e as novelas mexicanas da Glória Magadan. O padrão estético da Globo, até então, era marcado pelo grotesco, da mesma forma que o das outras emissoras. Depois, a TV Globo começou a escolher um público privilegiado, um público consumidor dos novos e mais sofisticados produtos dados ao consumo, como automóveis e eletrodomésticos. A partir daí, começou a se estruturar não em termos de mudar a qualidade de sua programação, mas em termos de estética. Dessa forma, foi criando uma nova grade de programação, perpassada por uma estética da classe média, mantendo o mesmo nível de qualidade, como lembra Valter Avancini (apud Kehl, 1986: 244). No entender de Avancini, a programação da Globo teria sido vestida pela eletrônica, pela alta qualidade tecnológica. Com isso, nós passamos a ter mais cuidado com a programação, ou seja, a vestir os programas (. . .) Ela tem uma linguagem que foi determinada pelo equipamento, ou seja, a eletrônica criou a imagem da Globo. A sua linguagem é representativa do tipo de câmera que ela tem, do tipo de croma que ela usa. O resto é igual ... Não é o profissional criando a partir do equipamento, é o equipamento se impondo, e ele mesmo sendo a linguagem. Nessa tecnologia de ponta, o VT foi o primeiro a possibilitar uma linguagem muito diferente da antiga programação ao vivo. Os cortes na edição permitem muito mais agilidade na seqüência das imagens; o mosaico visual ininterrupto, que hoje se conhece como “linguagem da televisão”, foi o que deu a grande diferença com a linguagem teatral.
3.3 O brilho do Telebrasil
Com o VT, a Globo adquiriu fórmulas e vícios. A improvisação e a espontaneidade foram desaparecendo. Limpeza visual tornou-se sinônimo de boa qualidade. A ausência de ruídos, acidentes, interferências, pequenos momentos em “branco” e imperfeições. Foi este um dos primeiros passos para a construção de um Telebrasil limpo, com brilho, sem ruídos, sem “brancos”,
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sem acidentes nem interferências, sem cortes na edição, portanto, transparente, um Brasil “real”. A presença de malabarismos visuais, a utilização obrigatória de música, a impossibilidade de silêncios, a voz em off anunciando o próximo programa, enquanto os créditos e a música-tema do programa que apenas terminou ainda estão no ar, o plim-plim junto da logomarca e o “Globo e você tudo a ver” de antigamente ou o “A gente se vê por aqui” de hoje. Tudo isso compõe a marca do PGO. Padrão que se torna mais forte que o conteúdo de sua programação na determinação da preferência (e da formação de hábito) do espectador. A Globo se transforma, assim, numa emissora “séria”, que promete não dar baixaria (e realmente não dá ... baixaria técnica), como avalia Kehl (1986: 247), sendo que ela se transforma numa emissora à altura de participar do ambiente da nova sala-de-estar, onde o ouvinte de classe média dos anos 1970 brinca de futuro executivo de sucesso, enquanto acompanha os comerciais de cadernetas de poupança. Diversos autores concordam que o PGO foi quem resolveu de vez os grandes problemas brasileiros de miséria e desigualdade econômica, social e cultural- dentro da telerrealidade global, é claro. Para Valter Avancini (apud Kehl, 1979-1980: 99-100), o PGQ tornou-se um parâmetro de “perfeição ”, de “eugenia ”, de “limpeza de imagem ”, o que concorreu, tanto quanto a censura oficial, para abortar ou alterar projetos de veiculação da realidade brasileira. Para Suzana Kilpp (2001, 34-35), nessa linguagem/formato efetuou-se uma: despolitização das imagens, uma diluição das diferenças e desigualdades num universo de imagens assépticas e folclorizadas de um Brasil (pobre, mas) moderno e unitário, todo ele belo, jovem e bronzeado em Copacabana. Esse imaginário, tecnicamente forjado em estreita vinculação com o marketing, o apoio do Governo e das agências de propaganda, deslegitimou todas as demais linguagens/formatos de imagens televisivas. Para Maria Rita Kehl (1979-1980: 13), a linguagem global não só influenciou as outras linguagens televisivas, mas também toda a produção artística de massa. Essa imagem glamourizada, luxuosa ou, na pior das hipóteses, antisséptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza, convém ao menos desinfetá-Ia: em vez de classes miseráveis, um povo “humilde porém decente ”, para não chocar ninguém) contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público.
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3.4 Entretenimento e crítica
Um outro aspecto a ter em conta na hora de falar do sucesso da emissora é que o grande mérito inovador da Globo foi ter percebido, antes das outras emissoras, que um programa de televisão pode se dar ao luxo de tratar de conteúdos mais ousados, mais atuais, mais “realistas”, se souber transformar tudo em objeto de distração. Para Kehl (1979-1980: 14), distração é, literalmente, aquilo que o público consome distraído, entre um comercial e outro, entre a sobremesa e o cafezinho, entre o noticiário esportivo e as chamadas para a próxima novela. Na Rede Globo, como em outras emissoras também, esse converter tudo em entretenimento e espetáculo está, muitas vezes, perpassado de mediocridade e banalização, como se fossem uma única linguagem. É como se a emissora tentasse dizer, em grande parte de seus produtos, que o massivo (e o comercial, que as massas consomem) só pode acontecer nivelando-se no mais baixo. Essa retórica de que a banalização é um atributo do massivo parece ser compartilhada por, inclusive, emissoras educativas, que o assumem pelo outro lado, quase demonstrando que a “qualidade” em televisão só é possível desnaturalizando o veículo, no sentido de deixar de lado o entretenimento e os recursos tecnológicos. Como se programas de qualidade levassem, necessariamente, a pouca audiência e a uma linguagem racional, abstrata e excludente. Seguindo esse raciocínio, parece que só há dois caminhos: a opção pela banalização massiva e altamente tecnologizada, ou a qualidade racionalista altamente excludente e com pouca tecnologia. A própria Globo contradiz essa premissa com diversas exceções, apresentando produtos massivos de muita qualidade tecnológica e social. Existem, de vez em quando, na emissora, obras de alto valor social, no sentido em que Walter Benjamin (1985) entendia o valor social de uma obra de arte: maior será o valor social da obra quanto menor é a distância entre fruição e crítica.
3.5 O Brasil clean e o Brasil grotesco chocante
Portanto, com seu PGO, e mais no geral, a Rede Globo optou por uma estética primeiro-mundista, uma estética clean. Um dos exemplos mais claros do uso do clean está na logomarca da emissora, o globo virtual de Hans Donner, cujo movimento é seguido pelo toque sonoro do plim-plim eletrônico. Segundo Esther Hamburger (1998: 448), a vinheta da Globo se posiciona entre iguais (à diferença do indiozinho da TV Tupi, por exemplo, com uma antena de cocar, feito à mão livre, que indicava apropriação de uma tecnologia exógena).
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Para Sodré e Paiva (2002:34), uma categoria estética é um estado afetivo, uma forma de organizar os diversos elementos artísticos dentro da obra. Os mesmos elementos, diversamente combinados, produzem efeitos artísticos diferentes em sua qualidade própria. Um sistema coerente de exigências para que uma obra alcance determinado gênero (patético/trágico/dramático, cômico/grotesco/satírico) no interior da dinâmica da produção artística. A categoria responde tanto pela produção e estrutura da obra quanto pela ambiência afetiva do espectador, na qual se desenvolve o gosto, na acepção da faculdade de julgar de apreciar objetos, aparências e comportamentos. Conforme os autores, em televisão predominam hoje duas categorias estéticas, padrões de programação que não necessariamente são excludentes: o “de qualidade”, ou seja, esteticamente clean, bem comportado em termos morais e visuais e sempre “fingindo” jogar do lado da “cultura”; e o do grotesco, em que se desenvolvem as estratégias mais agressivas pela hegemonia da audiência.
O grotesco crítico Ao mesmo tempo, poderíamos diferenciar duas modalidades expressivas diferentes do grotesco. O primeiro é o grotesco chocante, tão próprio da televisão brasileira, voltado apenas para a provocação superficial de um choque perceptivo, geralmente com intenções sensacionalistas. Esse tipo de grotesco é definido por Sodré e Paiva (Ibid: 139) como um particular rebaixamento de padrões e valores num espaço televisivel. Haveria a outra modalidade de grotesco, o grotesco crítico. Ele dá margem para um discernimento formativo do objeto visado. Ou já, não propicia apenas uma privada percepção sensorial do fenômeno, mas principalmente o descobrimento público e reeducativo do que nele se tenta ocultar. É, assim, um recurso estético para desmascarar convenções e ideais, ora rebaixando as entidades poderosas e pretensiosas, ora expondo de modo risível ou tragicômico os mecanismos de poder abusivo (Ibid: 69).
3.6 O circo e a feira públia
A Rede Globo, sem deixar de ser clean e sem abandonar seu PGQ, que dá sua reputação de “qualidade” em todos os produtos, tem adotado, em alguns dos seus programas, o grotesco chocante, especialmente desde que as outras emissoras ganharam audiência com essa estética.
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Sodré e Paiva (2002: 139) comparam a televisão do grotesco chocante a uma feira pública de variedades e ao mesmo tempo, questionam: por que essas variedades têm necessariamente tal padrão? O que condiciona o tal “contrato de leitura” da tevê com seu público? Eles respondem a essas perguntas, dizendo que a TV não é espelho de realidade nenhuma, exceto de si mesma, e que aquilo que o espectador de TV consome é o ato de ver, de espiar, de satisfazer-se escopicamente. O que se poderia chamar de “desejo audiovisual” é esse movimento de espiar o mundo ou as imagens, somente pela pulsão do olhar, independentemente dos conteúdos ou dos significados A mirada concentra-se sobre o chocante na televisão do mesmo modo que sobre o malabarista de feira pública ou sobre o acidente na beira da estrada. Os autores sintetizam sua teoria, dizendo que as emissoras tendem a seguir apenas a lógica da captação do olhar, por mais grosseira e rebativa que seja. Para os autores, o uso dessa estética na TV atua sobre o imediatismo da vida cotidiana e incorpora-se à idéia que o indivíduo tende a fazer de si mesmo e de seus pares. Nesse contexto, a ótica do grotesco suscita o riso cruel, massivo, pretensamente democrático, em que antigos objetos de indignação (miséria, opressão, falta de solidariedade, descaso dos poderes públicos, etc.) recaem na indiferença generalizada (lbid:132).
3.7 O ridícuo no outro
O grotesco chocante permite rir do sofrimento, da dominação, da brutalidade, do ridículo alheio - como se fosse passada a mensagem sub-reptícia de que nada de humano pode mais se esperar do outro e de que a seriedade indignada não leva a parte alguma. Para os autores, a impotência humana, política ou social de que tanto se ri é imaginariamente compensada pela visão de sorteios e prêmios financiados pelos patrocinadores dos programas. Em face do sentimento crescente de que nenhuma política de Estado promete ou garante mais o bem-estar coletivo, a desesperança das camadas mais baixas das classes periféricas é amenizada por jogos que envolvem a providência e o destino.
4 A notícia na Rede Globo A Globo gasta 40% de seu orçamento em jornalismo A maneira como o telejornal organiza o mundo é comandada pela tecnologia. Cobrindo um fantástico volume de assuntos, o Jornal Nacional se marcou também pela fragmentação da informação.
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O padrão estético adquirido pela emissora também incidia sobre a notícia, sendo que pessoas com defeito físico ou de ar muito miserável deveriam a todo custo ser evitadas no vídeo. No Jornal Nacional, o povo era bonito e bem alimentado. O otimismo, a idéia de um Brasil grande e decididamente unificado, riscado da lista dos paises subdesenvolvidos e agora encabeçando, graças ao “milagre brasileiro”, o bloco dos intermediários, quase roçando o desenvolvimento - esta era a imagem que o principal telejornal do Pais deveria alimentar (Ibid: 33). Ainda há outras fórmulas usadas pelo telejornalismo da Globo, como, por exemplo, o uso de noticias fait-divers. Este formato é facilitado pela emoção que a tevê permite passar aos telespectadores. Até as notícias aparentemente distantes, como as informações internacionais, podem ser atrativas, se relatarem tragédias. Os espetáculos noticiosos da Globo estão sempre comandados por um “mestre de cerimônias”, interlocutor que estabelece um contato familiar com os telespectadores. Foi o Jornal Nacional que afirmou a importância do âncora. Ele acostumou milhões de telespectadores a um rosto, uma voz, uma forma de dizer a notícia. O Jornal Nacional esteve indelevelmente ligado durante trinta anos à imagem de seu locutor-mestre. O homem especialmente trabalhado para dar “credibilidade à noticia”, tal como credibilidade é entendida segundo o padrão global, foi Cid Moreira: risonho, bem vestido, bonito, segundo um estereotipado padrão de beleza, que, respeitosamente, entrava todas as noites de terno e gravata em 90 por cento dos lares brasileiros, digno da maior confiança. Para Elisabeth Carvalho (In Kehl, 1979-1980:33), Cid Moreira caracterizava o novo estilo de telejornalismo da década de 1970: este porta-voz impecável e quase sempre imune à emoção fez parte, na verdade, de todo um projeto que caracterizava o novo estilo de telejornalismo. Segundo Rezende (2000: 173), a substituição de Cid Moreira e Sérgio Chapelin por dois novos apresentadores – William Bonner e Lilian Witte Fibe - (deixando Cid Moreira com a função dos editoriais do JN) tinha um significado de mudança na linha editorial do programa: a mudança representava o fim da era dos locutores e a valorização da presença dos jornalistas na busca para assegurar maior credibilidade ao noticiário. Para Mauro Porto, pesquisador da UNB, a Globo iniciou uma mudança no telejornal como tentativa de resgatar a credibilidade, processo que ainda está a caminho. Em recente entrevista à Agência Carta Maior, o pesquisador salienta a maior cobertura dada pela emissora às últimas eleições presidenciais como parte dessa estratégia. Em 1995, as Organizações Globo iniciaram um movimento de recuperação de credibilidade de seu telejornalismo para tentar, deter a queda da audiência. Foi quando Alberico Souza Cruz,
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dono de relações íntimas e promiscuas com o ex-presidente Fernando Collor, foi substituído por Evandro Carlos de Andrade no comando do Jornal Nacional. Evandro engendrou o afastamento da dupla de “locutores” Moreira Chapelin (Carta Maior, 4/11/2002) . Segundo o pesquisador, na época as pesquisas mostraram que o público reprovou a mudança dos locutores pelos jornalistas, mas o fato de a emissora não ter recuado é um claro indício de que estava em curso um plano de mudança na linha editorial do programa. Porto vê no processo uma mudança não-linear devido não tanto a convicções quanto a adaptação às exigências da sociedade civil. A mudança vai devagar em 1997 e 1998, a emissora optou pela diminuição da cobertura política em seus telejornais por acreditar que a mesma vinha provocando quedas na audiência dos programas. Foi quando as noticias superficiais imperaram no JN. A cobertura do nascimento da filha da Xuxa foi uma espécie de climax desse tipo de jornalismo. A seriedade e a credibilidade são construídas por formas de vestir, por cores, por tons de voz, gestos e luzes ...
5 O programa Linha Direta e a sociedade segundo a TV Globo “Boa noite. Medo. Impotência. Desamparo. São sentimentos cada vez mais presentes no cotidiano de todos nós. Nós que vivemos no dia-a-dia cercados por uma violência cega, uma violência que nos oprime. A partir de hoje, você está em linha direta com seu direito, em linha direta com a cidadania.” Com estas palavras de seu âncora na época, Marcelo Rezende, o programa Linha Direta ia ao ar no dia 27 de maio de 1999, na TV Globo, iniciando com palavras que expressavam a matéria-prima que construiria um programa de utilidade pública, jornalístico e com um lugar reservado ao telespectador para ajudar a resolver os casos de criminosos que estão fugitivos da polícia. O programa chegou a estar em quarto lugar no Ibope da Rede, logo após a novela das 20h, o Jornal Nacional e o Fantástico Linha Direta é atualmente dirigido por Milton Abirached e apresentado pelo jornalista Domingos Meirelles. O programa conta com uma equipe de mais de 50 profissionais, além de equipes de infra-estrutura técnica, produção e pesquisa da Central Globo de Produções e Central Globo de Jornalismo. São onze repórteres e cinco unidades de produção independentes espalhados por todo o País. A construção do programa está dividida entre quatro núcleos específicos: a coordenação de jorna-
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lismo, responsável pela apuração dos fatos e redação do texto jornalístico; o núcleo de dramaturgia, que fica a cargo da direção artística; o núcleo de roteiro, responsável pelo texto final e pela realização das enquetes/reportagens; e a produção.
5.1 Estrutura do programa
A cada semana, o programa apresenta ao público duas enquetes/matérias sobre “crimes hediondos que chocaram a população”4 Logo após o relato e sua ficcionalização, são transmitidas ao telespectador informações sobre o culpado ou suspeito, sendo os espectadores chamados a ajudar na solução, colaborando com alguma informação ou denunciando onde se esconde o foragido5. O apresentador veicula ao telespectador a vítima e as suas qualidades, até que aparece o vilão. Enquanto há a mudança na trilha sonora, trabalha-se o suspense e ajuda-se, juntamente, as imagens, na caracterização da maldade do criminoso, oposição à bondade da vitima. A narrativa conduz o suspense forma crescente até a execução do crime, antecipando e repetindo as imagens mais fortes no início dos blocos. Os roteiristas do programa entrecortam as simulações com as declarações dos parentes da(s) vítima(s), investigadores e promotores responsáveis pelo caso, assim como com material de telejornais que apresentaram alguma informação sobre o caso na época que aconteceu. Tudo conduzido pela voz off e pelas aparições do apresentador, amarrando a trama, enquanto caminha por um cenário que tem, nos fundos, uma tela onde está a imagem, ora da vítima, ora do foragido, e, do outro lado, o nome do programa. Outro fato que determina o encaminhamento das enquetes para o objetivo do programa – despertar a indignação do expectador e sua participação na denúncia dos culpados – é o modo como o passado dos envolvidos é apresentado. As vítimas têm sempre passado; em contrapartida, o acusado nunca tem6. Não é apresentada a família do acusado. Quando ela aparece, é apenas no contexto atual (após o crime) e acaba também sendo colocada no papel da vítima, seguindo que ele deve
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A condição para fazer parte do programa e tratar-se de algum crime que não tenha sido solucionado, seja porque a Justiça não pôde chegar a uma conclusão, seja especialmente porque o acusado, assassino ou suspeito encontra-se foragido. E nesse aspecto que o programa pretende ser uma Linha Direta entre o cidadão e a poliícia para a solução dos casos apresentados. Os únicos acontecimentos a serem mostrados são antecedentes criminais, que contribuem para confirmar sua maldade.
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se entregar, que deve haver justiça e reforçando o caráter bárbaro do criminoso. Já as virtudes das vítimas são relatadas a partir de histórias da família e dos amigos, das fotos de infância, dos seus momentos de conquistas e vitórias. Nunca há erros por parte da vítima sendo que essa leitura, muitas vezes, fica forçada. De maneira geral, toda atitude da vítima será compreendida e justificada mas qualquer gesto do criminoso é suspeito. No fechamento, aparecem o sofrimento e o choro indignado dos parentes da vítima, em contraposição ao criminoso que escapa impunemente. O clima de desespero é acentuado ainda mais pela variação de densidade das imagens. Quanto maior a emoção dos parentes da vítima, mais o foco da câmera se aproxima, seja no close no rosto emocionado, no detalhe das lágrimas escorrendo, das mãos nervosas tremendo ou da boca que de tão emocionada, mal consegue articular as palavras. A dramatização constrói a história a ser contada. É nela que está a real imagem com a qual o telespectador fica em relação ao crime, porque é nela que são mostrados e ditos os fatos que “realmente” aconteceram. A emissora abre aqui um raro espaço para atores desconhecidos. Milton Abirached, diretor de Linha Direta, em entrevista à Revista da TV (5/5/2002), disse que o elenco é escolhido com todo cuidado pela produção do Linha Direta. Os atores precisam ser parecidos com os assassinos ou suas vitimas e, para não perder o realismo, não devem ser conhecido do público. Se o Tarcísio Meira fizer um bandido, ninguém vai acreditar que aquele caso aconteceu.
5.2 Estrutura do programa analisado
O programa do dia 25 de abril de 2002 poderia ser dividio em cinco momentos: a introdução; a abertura; a apresentação dos dois casos; a entrevista com um homem que foi capturado após ser mostrado no programa, veiculada junto com as simulações do crime; e o convite a entrar em contato com o programa através de denúncias, de sugestão de casos ou para votar na enquete do dia, referida a um dos casos. Essa forma de dividir o Linha Direta em cinco momentos não está relacionada aos blocos do programa ou à duração de desses momentos, mas sim à tentativa de abordar elementos diversos que o programa apresenta. Como introdução, aparece uma série de relatos (visuais auditivos) de grande impacto, que constitui um resumo dos dois casos que serão apresentados e que, ao mesmo tempo, são uma colagem das cenas mais chocantes do programa. Essa introdução foi realizada em 30 segundos e em 17 planos.
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Logo após a introdução, acontece a abertura do programa. Em 12 segundos, gráficos computadorizados se misturam com imagens policiais, o nome do programa, o número da linha telefônica para denúncia e os créditos do programa. Imediatamente, é apresentado o primeiro caso. Mostra a história de um estudante de medicina que espanca um bebê de oito meses que foi hospitalizado por um caso de diarréia. A criança é hoje um adolescente que está cego e deformado. O criminoso está foragido. No fim do bloco, há um breve resumo do segundo caso, com imagens diferentes das mostradas no início. Antes dos comerciais, também são mostradas as imagens de um foragido capturado pela denúncia do público. Após o intervalo, começa o desenvolvimento do segundo caso. Este caso conta a história de uma mulher separada, com uma filha pequena, que é insistentemente assediada por um amigo da família a quem ela rejeita. O homem não correspondido descobre que a mulher que ama tem um romance com um amigo dos dois. O caso acaba no homicídio da mulher, de seu parceiro e de uma amiga dela, que na ocasião estava junto com eles. O assassino tenta também matar a filha dela, mas um vizinho consegue salvá-Ia. O criminoso está foragido, mas quase no fim do programa aparece uma legenda dizendo que ele se entregou à justiça pouco antes de o programa ir ao ar. Depois de acabar o segundo caso com as devidas chamadas à denúncia, é mostrado Macony Lima da Silva, um dos culpados pelo assassinato de um promotor de eventos, que fora apresentado no Linha Direta no inicio de 2002. É mostrada uma entrevista com o acusado, junto com as imagens da simulação já veiculadas quando foi abordado o caso. Para encerrar o programa, o apresentador, na tela que está no cenário, mostra a página na Internet do Linha Direta, explicando como usá-Ia e chamando os telespectadores a entrarem na página para pedir informações sobre outros foragidos, participar da enquete, etc.
5.3 Introdução: a violência nos planos e efeitos sonoros
Na introdução, o telespectador distraído, após assistir à novela das oito e às propagandas, depara-se subitamente com um grande impacto. Em breves segundos, ele é “testemunha” de uma confusão enorme, cujo resultado foi uma mulher assassinada e uma criança torturada. O momento pode assemelhar-se a situações de violência, como assaltos ou acidentes que acontecem cada vez mais freqüentemente nas ruas das cidades. E, como nesses casos, quando é possível, atraídos pela curiosidade do olhar que o grotesco chocante provoca, o telespectador
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se aproxima para ver. A moldura gráfica que está ao redor de todas as imagens mostradas nessa introdução poderia estar sugerindo que aquilo que estamos vendo é só uma parte e nos remete a ver tudo. Poderia ser uma associação com algo que se vê pela janela, ao que se torna irresistível aproximar. Para faz isso, deve-se acompanhar o programa. Ambos os casos do programa analisado estavam na justiça há vários anos. O do espancamento do bebê desde 1989, e a chacina das três pessoas desde 1996. Mas, em 30 segundos, o telespectador “viu” os crimes acontecidos, assistiu ao julgamento simulado, escutou o veredicto e sentiu-se chamado a participar na solução. O tempo do programa é ágil, efetivo, eficiente. O que na justiça leva muitos anos é questão de 30 segundos para o Linha Direta.
5.4 Logomarca e identidade do programa
Essa abertura dá à tela um dinâmico, limpo e criativo movimento, acompanhado pela trilha do programa e por finas linha: vermelhas que aparecem e desaparecem no fundo azul. Ao mesmo tempo, vão aparecendo os créditos do Linha Direta em lugares alternados. Dessa forma, a tela se divide entre o número de telefone, os créditos, as linhas vermelhas e as cenas que vão mudando de lugar. Termina com uma imagem de um homem de costas (plano americano), que, com as mãos levantadas, tem um machado que desce bruscamente sobre alguma coisa, mas, antes de a arma chegar a seu destino, entra a imagem com fundo azul e o nome (a logomarca) do programa em azul e vermelho, em que a palavra Linha está situada acima da palavra Direta. Na cena seguinte, aparece um efeito, como de explosão de ambos os “Is”, como se fosse uma parede se despedaçando, e fica, assim, um espaço aberto, uma linha na cor azul com diversas linhas vermelhas em movimento, como circulando dentro da linha maior, abrindo um canal que atravessa verticalmente a tela. A abertura, criada por Hans Donner, é visualmente atraente e inspira uma idéia que resume a proposta do programa. Considero que, nesses 12 segundos, a emissora conseguiu muito claramente mostrar a identidade pretendida para o Linha Direta. Essas últimas imagens, a meu ver, são as mais fortes de todo o programa e as que mais expressam sua proposta No final de cada bloco, quando se repete a vinheta, omite-se a imagem da “explosão” dos “Is” e aparece diretamente a linha azul aberta com as linhas vermelhas em movimento dentro dela. De alguma forma, está mostrando como o programa abre um espaço que despedaça a impunidade que estava instalada e, por estar acon-
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tecendo o programa, não será necessário repetir essa imagem nenhuma vez mais nos blocos seguintes. A imagem da linha aberta, que poderia representar a efetividade do programa, a justiça, a ponte entre o foragido e a prisão ou entre a sociedade e a justiça, é a que mais se repete em todo o programa. Os créditos e todas as legendas durante o programa são feitos em cima dessa linha; além de que, no fim e início de blocos, e cada vez que há mudança de um caso para outro, aparece em sentido vertical ou horizontal essa mesma linha.
5.5 As vozes no Linha Direta
Claramente pode-se constatar que o predomínio em participação, em ambos os casos, estaria dado pela voz off e a voz do apresentador. Não somente elas têm um número maior de intervenções que todo o resto, mas são também as únicas a cobrir todo o caso do início ao fim. São também elas as que antecipam ou retomam sempre as informações dadas nos depoimentos das outras vozes. Portanto, no que diz respeito ao grau de informação que é oferecido no programa, ele é dado pelas duas vozes principais. De alguma maneira, então, todas as vozes estão subordinadas a essas duas. Âncora Domingos Meirelles lembra o tipo de apresentadores mais antigos dos telejornais da emissora. O homem de idade mais avançada, cuja credibilidade se apóia mais na sua própria pessoa do que no perfil profissional. Cabelos brancos, terno e gravata escuros, sério, Meirelles parece ser uma figura escolhida (ou construída) para neutralizar o sentimento de impunidade que as situações apresentadas inspiram. Sua postura e seu olhar sempre fixo na câmera mostram autoridade. Por outro lado, sua figura parece um contraponto a dos criminosos. Ambos na faixa dos 20 anos, um deles negro, ambos com movimentos violentos, em oposição ao pausado e “respeitoso” ritmo dos movimentos e da fala do apresentador. Por outro lado, há também uma oposição com as vítimas que sempre são exageradamente inocentes, confiantes e distraídas (sobretudo na simulação), enquanto Meirelles não afasta em nenhum momento o olhar da câmera, por mais que esta esteja em movimento. O apresentador parece nunca ser tomado de surpresa nem pelo movimento da câmera que o está focando, nem pela troca de câmeras. Apesar da “neutralidade” que representa seu tom de voz e sua maneira de vestir, o apresentador mostra, na sua forma de avaliar os fatos e as pessoas, uma ruptura com a linguagem “ob-
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jetiva” usada pela maioria dos apresentadores dos telejornais da emissora; assemelha-se mais aos comentaristas. O apresentador não aparece em nenhuma das outras cenas. Ele é visto exclusivamente no cenário do programa, ou seja, nos estúdios da emissora. Além disso, é ele a única pessoa do programa que é vista pelo telespectador (na entrevista final como criminoso capturado aparece a voz da repórter, mas ele não é visto). Esses elementos outorgam a Meirelles uma autoridade importante no comando do programa. Ao ser ele uma figura “real” e não estar representando (ele é jornalista, não é ator), ele é quem está em contato com a produção do programa, com a pesquisa anterior, com os estúdios e as câmeras, o que faz com que todo o espetáculo por ele comandado entre no clima de seriedade e credibilidade próprios de sua pessoa. O apresentador antecipa, prepara, introduz e explica ao telespectador as situações que irão acontecer, fazendo com que a passagem de realidade à ficção e vice-versa seja inteiramente normal. Como mostram os seguintes exemplos: Simulação (como voz do programa) Alternando os depoimentos e a condução do apresentador, estão as simulações. As imagens das simulações estão identificadas na parte inferior da tela com a palavra “simulação”. No entanto, o apresentador sempre lembra que as simulações foram construídas a partir das informações obtidas na justiça e com testemunhas e familiares, outorgando a elas toda a “seriedade” e a “objetividade” próprias de sua pessoa. As simulações constituem a imagem mais forte dos traços tanto da vítima quanto do acusado. Nos dois casos em questão, as imagens mostram as vítimas como pessoas felizes. Na simulação, pode-se ver a família feliz em torno de Alan, que acaba de nascer. Um plano geral mostra uma casa bonita e os pais sorrindo junto do berço da criança. Na segunda cena simulada, os pais estão chegando com Alan ao hospital, mas continuam com a mesma felicidade do início. O fato de o filho estar doente não retira o clima festivo - o que não é muito freqüente -; a tragédia só começará quando se cruzam na simulação com Flávio, o estudante de medicina. A partir desse momento, muda a trilha sonora e começa a desgraça para aquela família que vai em declínio até o crime e continua hoje. No segundo caso, há imagens da vítima feliz, rodeada de amigos, abraçada pela filha “após uma separação da qual começava a se recuperar”. Inocente, totalmente despreocupada, ela aparece assistindo o jogo do Brasil e comendo pipoca, festejando os gols junto com os amigos, sem se dar conta de que o seu futuro assassino estava olhando o tempo todo para ela.
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As imagens que predominam no caso dos acusados são bem diferentes. O ator que representa Flávio é mostrado fundamentalmente através de quatro imagens. A primeira delas, que se repete diversas vezes, mostra-o fazendo musculação na academia (sozinho em horário em que a academia estava fechada: é dito no programa duas vezes que o dono da academia era amigo dele e tinha lhe dado a chave). Essas imagens, especialmente, mostram-no fazendo exercícios com os braços e medindo os músculos dos braços. Em segundo lugar, há várias imagens de Flávio andando no hospital com um olhar rígido e perdido, próprio de pessoas com problemas mentais. É mostrado também várias vezes do lado do berço do menino, batendo nele. E a quarta imagem dele que se repete são planos-detalhe das suas mãos tirando as luvas depois de espancar o bebê. As vítimas nunca estão sozinhas nas simulações, estão rodeadas de pessoas e objetos. Os criminosos são solitários, misteriosos, com gestos (nesses dois casos especialmente, destaca-se o olhar) que despertam suspeitas desde o inicio. Deles não são mostrados os familiares, seus bens, etc. Geralmente aparecem em terreno de outros (casa da família da vitima) ou lugares públicos (hospital, bar, local de trabalho). A voz off Inseparável das simulações e dirigindo sua compreensão, está a voz off. Trata-se de um comentário “descritivo” da situação e “neutro” na sua formulação. É como se fosse a única voz que está na cena do crime. A voz off fala sempre em presente, o que dá a ilusão de tempo real e a “ participação” do telespectador como testemunha. As falas da voz off só são construídas em passado quando ele fortalece mais a compreensão do presente, como no seguinte exemplo: “O choro do bebê chama a atenção da auxiliar de enfermagem do setor de isolamento. Há 20 anos ela trabalha no hospital e nunca tinha escutado um choro como aquele”. As vozes “reais” As vozes “reais”, a meu entender, têm uma função muito mais simbólica do que informativa. Em primeiro lugar, por se tratar de pessoas reais que estiveram próximas do crime por vínculos . familiares com as vitimas (família, amigos); por vínculos institucionais (professor, colegas de trabalho, delegado e promotora); ou por causa do conhecimento especializado que justifica essa pessoa depor, explicando algum aspecto do crime (radio-
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logista e psicanalista). A presença destes, assim como a presença de noticias sobre o caso veiculadas na TV na época em que ocorreu o crime, dão o caráter de documentário. Independente do que dizem, é o que elas são ou foram o que o programa mais utiliza. O fato de os depoentes aparecerem sentados e todos eles, em maior ou menor medida, com o olhar dirigido a alguém fora da câmera contrasta com a postura do apresentador em pé, olhando sempre para a câmera. Há através das posturas uma designação de papéis passivos e ativos. Os depoentes não falam por iniciativa pessoal, eles respondem, são interrogados. A costura da trama está fora deles. A verdade (como clareza da totalidade dos fatos) está fora deles. Os depoentes, em maior ou menor medida, são redundantes. A informação que eles dão já foi antecipada pelo apresentador ou afirmada pela voz off. Se fossem tirados os depoimentos, as informações sobre o caso seriam exatamente as mesmas. Há algumas caracterizações que se repetem em ambos os programas na forma em que são significadas as vozes. No meu entender, haveria uma espécie de classificação e qualificação em que os depoentes são associados, em maior ou menor grau, a atitudes de mais ativas ou mais passivas e omissas em relação à resolução do crime. A proporção dessa qualificação parece ter uma relação direta ao institucional. Quanto menos ligação institucional, sem cargos representativos, mais espertos e ativos são os depoentes e maior participação eles têm nas suas falas e na representação. Os mais espertos (e menos institucionais) são também mais rápidos na hora de reagir contra o crime (na simulação) e na hora de fazer a denúncia (nos depoimentos). Alguns exemplos poderiam ser os seguintes: A testemunha N, do primeiro caso, é a voz predominante entre aquelas que depõem. Trata-se de uma enfermeira do hospital, a primeira a ver e denunciar o espancamento. Ela tem um lugar de destaque, uma postura ativa e esperta na costura com as diferentes vozes. Esse mesmo papel é assumido pela segunda enfermeira, que foi testemunha do segundo espancamento. Ambas, na simulação, ocupam um lugar protagônico junto ao ator que simula o criminoso. A primeira voz “real” a falar no primeiro caso é um médico que foi professor do acusado. Ele é professor universitário e aparece num ambiente que, provavelmente, seja a universidade. Ele, em pé num pátio, com pessoas jovens que passam por trás com livros nas mãos, diz que o criminoso parecia normal: Levava uma vida normal, não tinha indícios de algum problema psiquiátrico. Ele sempre se mostrou uma pessoa absolutamente normal. No depoimento dele, que imediatamente a voz off confrontará com a opinião das enfermeiras, mostra-se um tom de
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omissão. A forma em que o criminoso é representado nas simulações desde o inicio, com um olhar psicótico, misterioso e solitário, questiona qualquer pessoa que possa ter visto nessa aparência “uma pessoa normal”. Mas, além da simulação, disse o off: As enfermeiras têm uma opinião diferente sobre o estudante de medicina. Ele acerta nos diagnósticos, mas atende aos pacientes com indiferença. Segundo as funcionárias, ele examina as crianças como se fossem objetos. Além de uma forma de compreender o criminoso, o off indica quem serão as mais espertas colaboradoras da justiça. Fica o primeiro depoimento desacreditado, portanto, não por uma acusação de cumplicidade com o criminoso - ele não tem cúmplices, está sozinho (o que reforça a ilusão de estar vigiado e prestes a ser descoberto) -, mas por uma atitude de omissão inconsciente, quem sabe pela complexidade das estruturas, um criminoso desse jeito não seja notado na Universidade. Depois de tudo, as primeiras a desconfiar são as pessoas comuns (enfermeiras) e quem vai denunciar o foragido serão, também, as pessoas comuns (telespectadores) e não as pesadas, estruturadas e lentas instituições. A testemunha N é uma enfermeira que aparece sem se identificar, sentada de perfil na frente de uma janela, onde está tudo escuro e entra uma pequena luz que permite ver a forma da cabeça e o corpo dela, o suficiente para ver que ela é morena como a atriz que a representa. Os depoimentos não trazem informações sobre os casos que não tenham sido ditas pelas outras vozes do programa, mas, à diferença das outras, estas vozes aparecem mais firmes e ativas. Haveria aqui, na minha opinião, uma consideração da polícia como uma colaboradora no processo de vencer a impunidade que o programa leva em frente. Na construção do Linha Direta pareceria ter, com a presença das vozes policiais, uma espécie de auto-reconhecimento da justiça como parte do processo maior, que, no entanto, só o programa é capaz de fazer. Olhando ainda para o tratamento dado às instituições, não se trata, a meu ver, de uma crítica social, algo que as instituições poderiam fazer e não fazem. Este tipo de postura, de certa forma mediadora entre o Estado e o povo, não faz parte do discurso e da visão de mundo da emissora. Parece mais uma declaração de obsoletismo das instituições mais tradicionais pela onipotência, onividência e onipresença midiática. As instituições às quais se faz alusão em ambos os casos são públicas, ligadas à Saúde, à Educação e à Justiça. Poderia se ver também no tratamento dessas vozes uma espécie de pregação na prática ou de visibilização de uma sociedade de Estado mínimo. Os familiares manifestam uma atitude submissa. A indignação e a revolta estão muito mais presentes nas posturas do apresentador e nos atores que contracenam com o criminoso do que
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nas pessoas reais. Os familiares, com gestos trêmulos, olhares tímidos, choro, limitam-se a pedir ajuda para que o foragido não faça com o telespectador o que fez com eles. Eles são apresentados como extremamente indefesos, necessitados e dependentes do programa, em primeiro lugar, e da ajuda do telespectador, em segundo. A teoria construtivista procuraria ler, nos mecanismos e dispositivos com os quais é construída a notícia no programa, as informações que eles revelam sobre o que faz sentido, sobre o que importa, sobre o tempo e o lugar em que vivemos. Mas a teoria, a meu ver, deixaria evidente a inversão dessas duas premissas. A presença mais forte dos elementos que trazem o fato ao horizonte do significativo (apresentador, off, simulações) que a própria natureza conflituosa dos fatos. O programa substituí o conflituoso do mundo que lhe serve de referência nos casos por um clima conflituoso provocado pelos efeitos especiais e pelo tom das vozes do programa. Em relação à estrutura de drama, já citada acima, ambos os casos analisados neste trabalho, apesar de mostrar um clima dramático o tempo todo com o uso de elementos que dão dramaticidade, não seguem a estrutura do drama, assemelhando-se mais à fábula. Se levamos em conta a clássica divisão do drama em três atos como apresentação de uma situação, introdução de um desequilíbrio, clímax e resolução que estruturam as ações humanas, Linha Direta está longe de ser drama. Os dois casos partem desde o inicio de uma confrontação entre o bem e o mal, personificados em pessoas com os nomes de pessoas reais, mas que na realidade são telereais. Essas pessoas, através de muitos sinais (mas geralmente os mesmos em cada caso), são identificadas desde o inicio do programa, de tal forma que o telespectador esperará só coisas boas de uma e só coisas ruins da outra, sendo as outras vozes secundárias como breves ecos que reforçam a maldade de um e a bondade do outro. A tensão não está introduzida por uma ação, mas personificada em alguém e reforçada não por ações e, sim, por mecanismos visuais e auditivos. Longe de pretender que o telespectador se posicione (sinta indignação, revolta, compaixão, pena) em relação à história que está sendo (de alguma maneira) referida, busca-se que o telespectador sinta essas emoções sem uma referência, ou melhor, em referência ao programa. Um telespectador distraído poderia dizer que é um programa que lhe faz sentir indignação pela injustiça, sendo que os mecanismos do Linha Direta se interpõem de maneira que o telespectador não tenha contato com essas realidades e, sim, com eles próprios. Como estrutura narrativa, o programa assemelha-se mais a estórias como Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Feroz e tantos outros relatos infantis ou não (só que essas histórias não tomam
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um referente real) com final feliz do que ao drama, ou seja, histórias humanas. O drama, da forma como foi tratado antes, daria um Linha Direta muito diferente. Permito-me aqui citar o cineasta inglês Alfred Hitchcock, autor e diretor de tantos dramas para cinema e televisão, em entrevista ao jornal The Saturday Evening Post, no dia 27 de julho de 1957 (In Altmann, 1996: 222). O cineasta explicou sua forma de construir o drama, deixando que a audiência saiba, por exemplo, onde a bomba está, mas não as personagens. Você e eu estamos aqui batendo papo. Não precisamos conversar sobre morte ou qualquer outra coisa que tenha conseqüências sérias, mas se a audiência souber que há uma bomba debaixo de minha escrivaninha, pronta para ser detonada, o suspense mortificará a todos eles. Mas, se não contarmos nada a eles sobre essa bomba escondida, e ela explode e nos reduz a pedacinhos, a única coisa que sentirão é um choque, um choque de um segundo, em contraposição a sessenta ou noventa minutos de uma expectativa de tirar o fôlego. Apesar de Hitchcock não estar falando de histórias “reais”, elas realmente dão uma participação ao telespectador, que o programa Linha Direta lhe retira. É como se o programa em nenhum momento pudesse deixar sozinho o telespectador diante dos fatos e sempre recorresse à mediação dele próprio para toda e qualquer interpretação. Por último, então, haveria uma análise que precisa ser feita e que tem a ver com o lugar que o programa dá a si mesmo e ao telespectador. A teoria do espetáculo ajuda a fazer essa análise. O programa apresenta um único ângulo de visão, e isso não se refere exclusivamente à característica técnica que a TV tem de que os diversos ângulos (das diversas câmeras) chegam ao telespectador como uma única possibilidade de visão. O programa esgota-se na exibição, sem nenhuma opacidade simbólica. Os lugares são irreversíveis: o espetáculo televisivo nunca é palco para o telespectador, nem sequer ele aparece no palco quando denuncia, liga, ajuda a dar alguma pista sobre a pessoa que está foragida, como é solicitado pelo programa na apresentação final que Meirelles faz ao explicar o uso da página da internet. Mas o elemento que mais faz do Linha Direta um espetáculo – e aqui haveria exatamente uma definição oposta ao que é notícia em todas as teorias – é que o programa mostra e coloca o telespectador em contato exclusiva e totalmente com o próprio Linha Direta, sem uma referência a outra realidade. Ele é a realidade: seus recursos técnicos, sua eficiência, seu apelo permanente a estar com ele.
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6 Considerções finais Uma primeira e importante descoberta foi a da televisão como um espaço que permite um aprofundamento da percepção da realidade e possui instrumentos que lhe possibilitam penetrá-Ia intensivamente. Ela tem, portanto, um enorme potencial de aproximar o ser humano e o mundo dela mesma e pode fazer isso de uma forma muito natural e descontraída. Trata-se de um “lugar” no qual ficção e realidade, passado e futuro, o longínquo e o próximo, todas as linguagens e todos os discursos podem estar juntos e ser usados para dizer alguma coisa, ou simplesmente o fato de eles estarem juntos já diz alguma coisa sobre a realidade. É um lugar privilegiado para construir e contar histórias com formas de narrar originais e próprias do meio. A realidade televisiva traz uma nova (des)ordem na qual se destaca a condição de aparente igualdade de todos os discursos e se assemelha às formas de convivência humana nas grandes cidades. Uma outra questão importante neste trabalho é a constatação da tendência televisiva a ocultar sua condição de mediação e aparentar a autonomia do que ela mostra, como se não fosse por ela construído e aparentemente ela simplesmente permitisse que o telespectador se coloque como “testemunha” diante dos fatos. No entanto, se bem que toda imagem desvele uma realidade preexistente, ela também mostra uma subjetividade que a captura. Portanto, o telespectador só pode estar diante da TV e de sua telerrealidade. Não há nada que seja inteiramente real ou inteiramente ficcional, entendendo, grosso modo, esses conceitos como fatos totalmente materiais ou totalmente imaginários. Na história do jornalismo e da notícia, tendeu-se a se afirmar essa separação entre as duas, sendo que o real sempre esteve mais associado ao valor ético de verdade e o ficcional ao de mentira. Desde aí, haveria um imaginário do jornalista associado a certos valores de realismo, objetividade e neutralidade. O bom jornalismo se manteria, segundo esse imaginário, longe dos recursos de ficção e do uso de gêneros como a dramaturgia para construir a notícia. A experiência descrita neste trabalho, porém, mostra que, na lógica televisiva, ficção e realidade não são inimigas, nem são por si mesmas verdadeiras ou mentirosas, nem dão um caráter mais ou menos ético à informação. ou um valor mais ou menos social à emissora. A presença da ficção – que é comum a programas que são de grande valor social e a outros que não são – poderia ajudar a fazer a notícia mais acessível para o grande público, portanto torná-Ia menos elitista ou excludente. Na sociedade brasileira, a televisão teve um papel importante na transformação de uma sociedade mais rural em urbana
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e “moderna”. A TV Globo teve nesse processo um lugar específico na forma dessa sociedade ver a si mesma; e na ilusão criada de ser o Brasil um país de primeiro mundo, mas ao mesmo tempo um país cujas instituições são impotentes ou corruptas; em definitivo. um país do qual só saem vencedores “sua gente” (só na medida em que são telespectadores) porque são lutadores, alegres e fraternos, entre outras coisas, e (como não podia ser de outra maneira) a emissora; o lugar onde esses brasileiros podem viver felizes e protegidos. Essa idéia repete-se de diversos modos nos programas da emissora, na forma como ela apresenta a si mesma, às pessoas e às instituições. As possibilidades tecnológicas da Globo lhe permitem uma imagem de altíssima qualidade, na qual os brasileiros aprenderam a “se reconhecer”. Os programas globais referem-se a elementos da realidade brasileira, falas, cenários, acontecimentos, etc., que mostram o cuidado da emissora no efeito de verossimilhança, visto como mais “progressista” que outras formas e que permite uma maior identificação por parte dos telespectadores. A possibilidade da emissora de entrar em rede com quase a totalidade dos municípios e lares brasileiros é aproveitada para reforçar esse sentimento de “brasilidade” em torno dela, além de sua auto-enunciação como uma instância única de comunicação real, efetiva e eficaz entre os brasileiros, sendo que a forma como eles são apresentados na tela está próxima de um fragmento muito pequeno da população. O programa Linha Direta apresenta-se como um programa, em primeiro lugar, de utilidade pública; em segundo lugar, é classificado na grade de programação como telejornalístico; em terceiro lugar (sem dizê-Io explicitamente), seria um dos programas mais “populares” da emissora: a presença de pessoas simples que falam sobre dramas familiares e a participação de atores desconhecidos lhe dariam (lhe dariam?) essa classificação. A utilidade pública é apresentada no programa como um importante serviço que a Globo presta à sociedade: ela faz justiça. Esse recurso é aproveitado por ela para construir uma sociedade telerreal. Nessa sociedade, aparecem de uma ou outra forma instituições frustradas, e o programa (a emissora e a mídia) como um novo lugar social; um meio mais rápido, eficiente e efetivo que vem para resolver o problema da impunidade, que as instituições não conseguem resolver. Nessa sociedade, emerge o telespectador como um novo “cidadão”, que está ligado ao programa e ajuda7 a resolver o caso. Ao mesmo tempo, a utilidade pública e o número de pessoas procuradas pela justiça que
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A ajuda do telespectador. na gramática do programa, Já inicia com o fato de le assistir o programa. Sentir a tensão. o medo e a revolta que o programa tenta produzir com seus efeitos especiais Parece que a ilusão de estar dividindo drama com a família Já esta ajudando.
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foram capturadas (222 até o momento) é uma das cartas de apresentação nas quais o programa se escuda para suas práticas e abordagens. Há uma fórmula que se repete a cada semana no Linha Direta e que se transforma em molde pelo qual passam os relatos dos diversos dramas familiares, sendo que os dramas, as histórias e as pessoas que aparecem no programa ocupam um segundo plano. Isto é, a notícia não está dada pelos casos que a cada semana aparecem no programa. Se as pessoas assassinadas foram uma ou mais, se ela era gaúcha ou nordestina, se os assassinos são brancos ou negros (geralmente são negros), se eles tinham razões contra a vítima, se as famílias estão precisando de algo, seja econômica, afetiva ou psicologicamente nada disso importa. O que importa ao programa, e nisso consiste sua formula são os seguintes elementos: que o assassinato (da forma que tenha sido) tenha cenas chocantes que possam ser representadas logo no início do programa; que existam familiares que possam aparecer e, no final do programa (de preferência chorando), possam dizer que foi uma injustiça que deve ser vingada, porque essa pessoa solta pode - a qualquer momento - fazer semelhante com um familiar do telespectador; que os familiares e pessoas ligadas a instituições sociais confirmem a bondade da vítima, a maldade do assassino e a sua impotência para o caso; que “o restante” fique a cargo do programa. O uso do grotesco chocante e o tratamento dado às histórias humanas e às pessoas reais que nele aparecem procuram de fato chocar o telespectador. Entretanto, esse choque não é dado pelo encontro do telespectador com o relato de uma crueldade, mas pelo encontro dele com os mecanismos ficcionais usados pelo programa. Nesse sentido, o programa interpõe-se entre os sentidos do telespectador e as histórias relatadas: assim, o telespectador não se revolta com a violência e o crime ou se compadece com a desgraça da família que aparece. Ele é levado a um estado de tensão e revolta, sim, mas pelos efeitos sonoros e visuais quase que por si só. Na arena do Linha Direta se ouvem muitas vozes, mas elas funcionam como ruídos que confirmam e reforçam a voz do programa. O que realmente o programa simula são as histórias reais. Há uma simulação de polifonia, mas na realidade há um único discurso, o do Linha Direta: um discurso único, absolutista, sobre várias coisas. Um único enunciador com diversos enunciados sobre a justiça, sobre a emissora, sobre a sociedade, as mídia e a tecnologia, sobre as instituições tradicionais e sobre os poderes públicos; sobre os públicos e o privado. Linha Direta é, portanto, um espaço de muitas vozes muitos ruídos, mas também é exatamente nesse ruído que ai acontece
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um duplo silenciamento: o silenciamento das histórias e das pessoas referidas, cujos relatos e depoimentos não conseguem ser suficientemente “poderosos” para concorrer com a tecnologia que atinge mais eficazmente os sentidos do telespectador. Em Linha Direta, a grande notícia é que a tecnologia é a linha direta que a Globo estabelece com a notícia, a qual resolve os casos noticiados, via tecnologia de informação e comunicação ponta a ponta. Trata-se, portanto, de uma telessociedade de indivíduos sem sociedade. Nela, os efeitos são mais reais que a realidade e a realidade é menos que a telerrea/idade.
Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e politica. São Paulo: Brasiliense, 1987. BORDIEAU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. CANEVACCI, Mássimo. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. CARDOSO DE MELLO, J M.; NOVAIS, Fernando. Capitalismo tardio e sociabilidade moderna. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord. Geral da Col); SCHWARCZ. Lilia Moritz. História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea São Paulo: Companhia das Letras, 1998 (História da Vida Privada no Brasil, v.4). DELEUZE, G. La imagen-tiempo. Barcelona: Paidós, 1987. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970. KEHL. Maria Rita et al. Anos 70 - Televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1979-1980. KEHL, Maria Rita. Eu vi um Brasil na TV. In: COSTA, Alcir Henrique; SIMOES, Inima; KEHL, Maria Rita. Um Pais no ar: história da TV brasileira em três canais. São Paulo: Brasiliense, 1988. KILPP, Suzana. Ethicidades televisivas: sentidos identitários na TV: moldurações homológicas e tensionamentos. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Centro de Ciências da Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, São Leopoldo, 2002. Tese de Doutorado. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Senac, 2000. MARTíN-BARBERO, Jesús. Dos Meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1997. MARTÍN-BARBERO J.; REY G. Los ejercicios Dei ver: hegemonia audiovisual y ficción televisiva. São Paulo: Senac, 2001. MCLUHAN. Marshall Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix Ltda. 1999.
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DEBATE após apresentação do tema no IHU IDÉIAS de 20.03.2003.
Luiz Carlos Thiesen (aluno de história): Uma questão relativa ao público alvo. trata-se de um programa generalizado que todo mundo vê, sem estar direcionado para um horário específico? A impressão que dá é que o programa pode passar a qualquer hora do dia. Mas ele deve ter um público alvo! Sônia: Isso é importantíssimo, porque o programa surgiu para concorrer com o programa do Ratinho, que arrancou audiência da Rede Globo. Então a Globo entendeu que tinha que fazer um programa com nível popularesco, contudo sem sair do padrão Globo; mas, de qualquer maneira, um programa que atraísse essa audiência. E o programa está normalmente em 4º lugar na audiência da TV. Ou seja, depois da novela das oito, Jornal Nacional e Fantástico, está o Linha Direta. Não sei exatamente como está hoje, mas o programa surgiu para esse público, para essa concorrência. Contudo, eu acredito que não seja só isso, embora não tenha feito análise da “recepção” em nenhum momento. O que eu verifiquei foi o fato do surgimento do programa ter sido motivado pela concorrência com o Ratinho. Prof. Laurício Neumann: Quer dizer, quem dá audiência desse tipo de programas, no fundo, somos nós mesmos? Sônia: Eu fico muito curiosa por uma outra pesquisa sobre essa questão da recepção. Eu me pergunto muito por que as pessoas procuram – por exemplo, a grande audiência da SBT foi porque cansou o modelo clean da Globo. E as pessoas querem ver-se um pouco mais refletidas nos programas, tal como o Ratinho traz questões próximas à vida do dia-a-dia. Eu queria entender, estudar mais essa questão da recepção: as pessoas vêem porque vêem. Isto é um aspecto. E de outro lado, há uma dissociação entre o entretenimento e a educação, a reflexão e a crítica. Então, os programas da TV Cultura, queiramos ou não queiramos, são para uma elite. Não é todo mundo que entende ou não é todo mundo que está com vontade, depois de trabalhar 10 horas, de fazer o esforço de entrar no programa Roda Viva onde está falando um economista ... É complicado! Então o de-
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safio é termos uma televisão que una o entretenimento e a crítica, devolvendo uma reportagem à pessoa de uma maneira digna. Nisso não há uma concordância. Há correntes divergentes. Alguns vêem essa televisão e seu público com um certo desprezo. Valorizam uma televisão séria, reflexiva, critica, mas excludente.
O tema deste caderno foi apresentado no IHU Idéias no dia 20 de março de 2003.
TEMA DOS ÚLTIMOS CADERNOS IHU IDÉIAS: N. 01 – A teoria da justiça de John Rawls – Dr. José Nedel. N. 02 – O feminismo ou os feminismos: Uma leitura das produções teóricas – Drª Edla Eggert. O Serviço Social junto ao Fórum de Mulheres em São Leopoldo – Ms. Clair Ribeiro Ziebell e Acadêmicas Anemarie Kirsch Deutrich e Magali Beatriz Strauss.