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BRASIL: Entre a Identidade Vazia e a Construção do Novo Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro ano 1 - nº 6 - 2003 - ISSN 1679-0316


UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Centro de Ciências Humanas Diretor José Ivo Follmann, SJ Instituto Humanitas Unisinos Coordenador Inácio Neutzling, SJ

Cadernos IHU Ideias Ano 1 – Nº 6 – 2003 ISSN: 1679-0316 Editor Inácio Neutzling, SJ Conselho editorial Dárnis Corbellini Laurício Neumann Rosa Maria Serra Bavaresco Vera Regina Schmitz Responsável técnico Telmo Adams Editoração e impressão Gráfica da Unisinos

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467 www.unisinos.br/ihu


BRASIL: ENTRE A IDENTIDADE VAZIA E A CONSTRUÇÃO DO NOVO Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro1

Quero começar situando um problema que me parece decisivo quando e se pensamos a identidade nacional no Brasil. Constata-se, e isto é quase um consenso, que há uma falha notável em nossa ação pública. Ela é débil. Os brasileiros emitem, com freqüência, o juiízo de que sua ação pública é falha. Soa-nos como heterônoma, como escapando a nosso controle e a nossas intenções. Claro exemplo disso é o hábito, para nos referirmos a decisões tomadas na esfera pública e que nos afetam, de utilizarmos o pronome “eles” em forma oculta. “Fizeram” isso, “proibiram” tal coisa, “mandaram”, “querem”: as ocorrências são inúmeras. Sempre indicam, em primeiro lugar, que determinada medida foi tomada e tem autoridade ou eficácia – mas também, segundo, que não temos muita idéia de quem a tomou e menos ainda por quê. E, em terceiro e fundamental lugar, que ela nos parece um tanto quanto indevida, incorreta, mas o que fazer? Em meu último livro, A sociedade contra o social, discute algumas dessas questões, que agora retomarei na chave da identidade nacional e como esta constitui um problema, hoje, a ser enfrentado2. 1

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Renato Janine Ribeiro é doutor e livre-docente em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), onde é professor titular de Ética e Filosofia Política. Janine Ribeiro esteve participando do IHU Idéias e Ciclo de Estudos sobre o Brasil no dia 12 de junho de 2003. Publicou, entre outras, os seguintes livros: A marca do Leviatã (1978), Ao leitor sem medo – Hobbes escrevendo contra o seu tempo (Belo Horizonte: UFMG. 1984), A última razão dos reis – ensaios de filosofia e de política (São Paulo: Companhia das Letras. 1993), A Sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras 2000, Prêmio Jabuti), Democracia (2001) e República (2001), ambos na coleção Folha explica. São Paulo: Publifolha. Em 2003 lançou o livro A Universidade e o Tempo Presente (Rio de Janeiro: Campus. 2003). Valho-me aqui, em parte, dos capítulos sobre Iracema e sobre a moeda denominada real, de A Sociedade contra o social – o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Este livro tem um propósito duplo: utilizar conceitos de filosofia política para pensar o Brasil e verificar como o exame de uma sociedade que em vários pontos diverge da matriz ocidental leva a modificar conceitos da filosofia política.


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Começo, então, observando essa falha em nossa ação pública. Acontece como que uma hipóstase da ação e das virtudes privadas – as que se dão no interior da família, daquilo que Roberto DaMatta chama de mundo da “casa”3. Gilberto Freyre teve o dom, há mais de meio século, de levantar esse problema ao apontar a diferença entre a escravidão no Brasil e, por exemplo, nos Estados Unidos, por meio da mestiçagem promovida pelo encontro sexual entre o senhor e a negra4. Deu, é verdade, pouca ênfase à radical desigualdade e à prepotência presentes nesse cruzamento, mas o ponto que eu frisaria, e que faz parte das críticas dirigidas a Freyre, é que ele terá considerado sobretudo a escravidão doméstica e não aquela que, no canavial ou no engenho, constituía a razão mesma de ser do sistema escravista, o qual não existia para amenizar a vida na casa, mas para produzir riquezas que serviam às classes dominantes. Assinalo, então, que – ao valorizar o doméstico sobre as relações de produção Freyre talvez inconscientemente captasse esse elemento que continua central na leitura que os brasileiros fazem de sua sociedade e de sua política: é valorizado o domínio doméstico, privado, íntimo, mas se mostra muito precária sua tradução em termos públicos. Nosso déficit de ação pública se evidencia se o compararmos com a equação que o médico anglo-holandês Bernard Mandeville formula em começos do século XVIII, na sua Fábula das abelhas, e que se resume no subtítulo deste livro: “Vícios privados, benefícios públicos”5. Sua obra foi revolucionária e lhe causou processos e dissabores. O que ele propunha era o fim definitivo da fórmula medieval, que aparece de forma tão clara em Santo Tomás de Aquino, pela qual o exercício do poder dependia diretamente da moral e da religião do monarca. A idéia medieval de buon governo, que aparece não só na filosofia, mas na arte6, significa que os homens daquele tempo, para estabelecerem a diferença entre o que seria governar bem e governar mal, remetiam à idéia de seguir ou não a moral cristã. Ora, se Maquiavel já vibra golpes certeiros nessa concepção, ao mostrar que muitas vezes a boa intenção resulta em péssima prática, é o menos conhecido Mandeville quem formula a saída, a solução, a equação que permitirá à modernidade – sobretudo capitalista – construir relações sociais e políticas a um custo menor7. Falo em custo menor, porque é bastante difícil e 3 4 5 6 7

Roberto DaMatta, A casa e a rua. Rio de Janeiro, Rocco, 5ª edição, 1997. Gilberto Freyre, Casa grande e senzala. Rio de Janeiro, José Olympio. Utilizo a edição da Penguin. Ver Kantorowicz, Os dois corpos do rei, São Paulo, Companhia das Letras. Ver, para esta parte, o cap. “Uma Vida social muito cara”, em A sociedade contra o social.


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oneroso agir constantemente de modo moral; o que Mandeville vai afirmar é que as relações sociais funcionam bem se, primeiro, seguirmos nossas pulsões e mesmo nossos vícios, segundo se a sociedade estiver estruturada de tal forma que esses inputs privados sejam canalizados e orientados de modo a se traduzir em outputs públicos de melhor qualidade. O problema está pois, em canalizar os impulsos privados. Mandeville dá dois grandes exemplos disso, ambos em notas de rodapé a seu livro – que foi sendo reescrito ao longo de vários anos. O primeiro é o da iniciativa privada. No indivíduo, ela se chama ganância, avidez, cupidez, e por isso é moralmente condenável. Contudo, à medida que a ganância de cada um o leva a querer ganhar mais a concorrência desses indivíduos ávidos acaba gerando um mercado, no qual o preço dos produtos baixa e sua qualidade aumenta8, de modo que os resultados para a sociedade são bem melhores do que se virtudes cristãs mais frugais nos impedissem de melhorar a qualidade e a produtividade da economia O segundo exemplo é o do comércio da sexualidade. Amsterdã cidade portuária governada por uma elite calvinista e portanto puritana, admite, porém, a prostituição em seus muros. Isto, que moralmente é mau, tem contudo o efeito positivo de deixar as mulheres de bem, matronas ou donzelas, a salvo da sanha dos marinheiros que lá desembarcam e que, após meses em pleno mar, estão ávidos por sexo. No caso dos dois desejos desmedidos, o por dinheiro e o por sexo, a solução imediatamente moral será a pior do ponto de vista de seus efeitos. E a solução que mais beneficiará a própria moral pública será aquela que, à primeira vista, mais afronta a moralidade privada. A moral dessa história, se ouso empregar esta expressão, é que não precisamos ser morais em nossa vida privada para que disso resulte uma vida pública eficiente. Ora, isso reduz o investimento que precisamos fazer para produzir uma sociedade boa e mesmo justa. Evidentemente, isso não significa um simples elogio à imoralidade. Nem Maquiavel, por sinal, o faz, dizendo ele que devemos nos esforçar sempre por praticar o bem (quando possível) e, somente quando necessário, podemos cometer o mal. Mas aqui está a grande diferença entre a maneira pela qual o Atlântico Norte, e em especial a sua trinca de países anglo-saxões (Reino Unido, Estados Unidos e Canadá), concebeu a vida pública e o modo pelo qual o Brasil, e com ele um bom número de países ditos subdesenvolvidos ou de Terceiro Mundo, teve e tem dificuldades em administrar a sua. Em nosso caso, é sistemático o comentário sobre o fracasso da vida pública, somente 8

Estou utilizando linguagem de nossos dias, mas me conservando fiel ao espírito do autor.


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equilibrado pela insistência nas qualidades morais. Quando elegemos um mandatário, perguntamo-nos mais sobre suas virtudes pessoais e perfil moral do que sobre sua eficácia política. E, se valorizamos esta última, é geralmente diante de um radical desencanto com uma política da autonomia9. R Descrito este quadro, a que atribuí-Io? É freqüente dizer-se – ou pressupor – que nossa ação pública seria deficiente porque nos faltaria a resposta, prévia, sobre quem somos. Nossa identidade sendo precária, nossa ação disso se ressentiria. Uma leitura entre muitas, nessa direção, é a de Paulo Prado, num livro que hoje me parece francamente superado e mesmo de difícil leitura, mas que teve grande impacto nos anos 1930, Retrato do Brasil. Sua principal tese é que o Brasil padeceria da conjunção de três raças, a portuguesa, a índia e a negra, das quais o traço essencial não é só que sejam pouco afeitas ao trabalho: que sejam demasiado sensuais. A forte sensualidade e mesmo sexualidade desses três componentes precipitaria um componente melancólico, triste, depressivo – reciclando Prado, assim, a velha máxima segundo a qual todo animal é triste após o coito. O que me parece superado no livro são três pontos. O caráter pouco defensável dos dois primeiros é hoje quase pacífico. Em nosso tempo se tornou difícil repetir a tese de que provimos de três raças – tanto porque há outros grupos imigrantes, quanto porque os negros e os nativos, em especial, eram marcados por grandes diferenças internas, e ainda por cima porque o conceito mesmo de raça se tornou duvidoso. O segundo ponto é que, depois de décadas de liberação sexual, é quase incompreensível a associação de sexualidade e tristeza. O elemento que Prado considerava entristecedor na sociedade brasileira foi revisitado, nas últimas décadas, como causador de alegria, por exemplo – mas não só – no carnaval. 9

A imagem do “rouba mas faz” foi utilizada em São Paulo no final dos anos 1940, para um político tradicional que tinha a fama de corrupto, mas de eficaz – Adhemar de Barros. Mais recentemente, foi reutilizada no mesmo Estado, o mais rico do pais, é verdade que em termos menos explícitos. Isto faz lembrar, um pouco, Mandeville. Contudo, há diferenças substanciais. Mandeville não discute a ação do estadista, mas a do indivíduo privado: todos nós estamos dispensados de ser, intensamente, honestos. E, além disso, o tom de Mandeville, ao dizer isso, é positivo e mesmo otimista: a vida social é possível, a baixo preço. Nos casos que cito da vida política paulista, o tom é de exaustão e de aceitação da heteronomoa. Está subentendido que, como a vida pública jamais será honesta, e nunca será plenamente eficaz, aceitamos suas limitações e admitimos governantes de baixo empenho moral, ao mesmo tempo que procuramos, nós, em nossa vida pessoal, ser o mais honesto que for possóível. Daí a aparente contradição de que gente pessoalmente honesta aceite que o palco da vida pública seja dominado por uma desonestidade quase explícita.


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O terceiro elemento é menos consensual, mas é ele o que mais me interessa defender: é que não funciona atribuir à identidade nacional, no caso, a uma descrição de como o povo brasileiro é, as razões pelas quais ele age de maneira ineficiente. O agir sempre tem um elemento inesperado, um adicional, em face do ser. Mais do que isso: podemos até entender a ação como mais forte quando ela decorre, justamente, de um vazio de ser. Voltarei a este ponto. Obra de maior qualidade, e ainda presente em nossas leituras, reputada como uma das decisivas na leitura que o Brasil propõe de si ao longo do século XX, é Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. Contudo, a mesma crítica que teci a Prado cabe a este livro. Um dos modos de formular seu problema é o seguinte: por que a colonização portuguesa não engendrou um país com o dinamismo norte-americano. Nos anos 1930, a diferença entre as duas colonizações era apreciada com agudeza, introduzindo-se elementos novos, econômicos, sociológicos, antropológicos, para compreender algo que antes era pensado de forma muito incipiente e insuficiente. Sergio Buarque assim contrasta o espírito empreendedor do norte-americano com o aventureiro do português. As análises são brilhantes e muito delas se conserva, se não necessariamente atual, pelo menos fortemente inspirador. Mas, mais uma vez, se espera que, do perfil do brasileiro ou de sua sociedade, decorra a nossa ação pública. Em outras palavras, o universo da ação ou da filosofia prática decorreria do mundo do ser ou da ontologia. O ser brasileiro causaria a ação brasileira. E isto se constata no recente revival do tema da identidade nacional. “Quem somos?” passa a ser a pergunta crucial. Somente respondendo a ela saberiam os como podemos, e devemos, agir. R Vamos expandir o problema. Em 1865, José de Alencar publica seu romance talvez mais popular: Iracema. Dez anos depois, outro grande escritor brasileiro, Joaquim Nabuco, numa polêmica que o move contra o romancista cearense, zomba de Iracema, chamando-a de “Norma tupi”. Este é um primeiro ponto que vou salientar, ou seja, que o romance de Alencar fosse inspirado na ópera de Vincenzo Bellini, que estreou em 1831 na Itália e foi a primeira a ser levada em cena no Brasil, ao reabrirem-se os teatros de canto lírico no começo do Segundo Reinado, em 1844. Por volta de 1930, Afrânio Peixoto percebe que o nome Iracema não é autenticamente tupi, não se encontrando nenhuma ocorrência sua antes da obra de mesmo nome, e mais do que isso, que constitui anagrama de América. Formula então a hipótese de que Alencar o teria inventado, embaralhando as le-


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tras que formam o nome do continente. Este é nosso segundo ponto: se Iracema é América, então residirá na differentia specifica entre o romance brasileiro e a ópera italiana o modo como nosso escritor indianista concebe a identidade nacional. E basta notar a enorme popularidade de seu romance, ainda hoje um dos mais lidos no Brasil, até porque é recomendado nos bancos escolares, para entender a importância dessa questão. Os pontos comuns entre o romance e a ópera estão, antes de mais nada, no confronto de duas culturas. Em Norma, é a oposição entre gauleses e romanos, isto é, entre italianos e austriacos. Já em Iracema, é o encontro de índios e portugueses. Nos dois casos, o mundo intruso é representado por um homem, enquanto o universo penetrado vem encarnado numa mulher, por sinal, sacerdotisa e por isso mesmo obrigada a uma castidade que não respeitou. Como as duas identidades nacionais estão em conflito, a condição do casal se torna insustentável. A situação é mais grave em Norma, porque o conflito é antagônico, ao passo que em Iracema o propósito de Alencar é justamente mostrar, do encontro de homem com mulher, a geração de uma nova, e mista, cultura. E aí já tocamos nas diferenças. O conflito é fortemente atenuado em Iracema. Os índios estão divididos, havendo os que se opõem ao português e os que com eles colaboram: são estes últimos que acabam prevalecendo. Daí que o enfrentamento das duas raças vise à fusão e não à guerra. A emancipação nacional, quando ocorrer – daí a quase três séculos –, não repudiará o elemento estrangeiro. O romance assim termina, entre outras coisas, com a conversão de um chefe indiígena ao catolicismo e a um nome de língua portuguesa. Além disso, o branco aparece como herói solitário, e não como, em Norma, o principal líder colonial. Na ópera, a situação insustentável do casal leva-o ao sacrifício na pira funerária. Ambos morrem. No romance, somente a mulher perde a vida. É verdade que, nos dois casos, se reativa o amor do homem pela mulher, que fenecera – mas é significativo que no romance brasileiro o homem, isto é, o intruso, sobrevive. E com isso a morte da mulher legitima seu pé no novo país. Viúvo, pai do primeiro cearense, Martim tem autorizada sua presença na nova terra. Torna-se o ancestral do país, ou pelo menos da província em que aportou, mas que no romance simboliza o país inteiro, ou mesmo o continente, em sua versão luso-indígena10.

10 O componente negro não tem, em Alencar, que por sinal era escravista, a mesma importância do português ou do índio.


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Finalmente, diferenciam-se os resultados, os produtos das duas relações conflituosas. Os filhos de Norma serão educados pelo pai dela: o fruto do amor mestiço será apropriado pelo lado da mãe, isto é, será matrilocal, matricultural. Serão gauleses. O fator paterno sumirá de sua educação. Equivale a dizer que o ingrediente austríaco, ao ser absorvido na unificação peninsular, estará agora apagado pela identidade italiana. Já o filho de Iracema será educado pelo pai. Moacir, seu nome, que no dizer de Alencar significa “filho da dor”, é quem confere ao pai português os direitos sobre a terra que herdou da mãe. O resultado é assim o perfeito oposto do que fora pretendido por Bellini. A releitura alencarina da ópera modifica por completo o sentido desta. Com Norma se pretendia fortalecer a luta de independência nacional. Com Iracema firma-se o peso do elemento português na formação da identidade brasileira. Se associarmos os elementos de Iracema, as coisas ficarão ainda mais claras. Ela é mulher, e portanto remete a todo um conjunto de imagens femininas. É índia, e assim remete à natureza e à ausência de história. Mais do que isso, diz nossas raízes, aquelas mais próximas do instinto, do afeto, da sensibilidade11. Em face disso, o homem é história, é positividade, é civilização. Nossa história, nossa modernidade pagaram o preço da morte da mãe. A orfandade brasileira cria um vazio, uma dor que jamais poderá ser esquecida, mas que é o preço de nosso futuro. Retomando nosso ponto: na recepção de Norma, a questão é agir pela unificação do pais. Não se pergunta quem é o povo italiano. Mesmo dividido em diversos Estados, sua identidade passa como dada. A relação entre Norma e seu amante Pollione – nada menos que o procônsul romano da Gália – é exemplo de uma dificuldade para a ação, mas não é, de forma alguma, constitutiva de uma nacionalidade. Tanto que o confronto entre italianos e austríacos se vê alegorizado nos nomes de dois outros povos, respectivamente gauleses e romanos, o que não impede espectador algum de entender perfeitamente de que se trata. Já a relação entre Iracema e Martim não poderia ser transposta para outros suportes ou para o nome de outras culturas. Sua recepção não seria a mesma se tivéssemos de traduzi-Ia. A literalidade se torna impositiva. Embora Iracema represente o elemento brasileiro, ameríndio, e Martim o europeu, português, e portanto funcionem ale-

11 Não estou assumindo esta descrição como minha, mas como portando os elementos que usualmente se atríbuem à mulher, ao índio, à natureza, e que por isso mesmo desempenham importante papel na recepção do romance.


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goricamente, cada um portando um povo inteiro, esses dois povos precisam ser nomeados literalmente. E isto porque a pergunta não é pela ação, mas pela identidade. A questão não é como agiremos, mas quem somos. Se somos essencialmente portugueses, o índio é irrelevante. Mas se, como quer Alencar, o índio é fator importante, ainda que subordinado, valorizar nossa diferença em face de Portugal – na língua, nos costumes – se torna significativo. É claro que, decorrido mais de um século, chama nossa atenção a subordinação da índia ao português e o que resta, na língua de Alencar, daquela falada ou escrita em Portugal; mas pode ser que nossa estranheza ante esses elementos resulte justamente do sucesso do escritor, que terá conseguido firmar o propósito nacional entre nós, talvez mais até do que pretendeu ou anteviu. De todo modo, a pergunta no Brasil recém-independente assim parece mais ser a de nossa identidade, de nossas raízes (como dirá, mais tarde, Sergio Buarque de Holanda), do que a de nossa ação. Só agiremos se entendermos nossas raízes. E fica suposto que o italiano pode ir diretamente á luta – pode agir – porque a questão de sua identidade está previamente resolvida. Nós, não. Só agiremos quando soubermos quem somos. R Prossigamos na questão do vácuo identitário brasileiro. Podemos ver duas maneiras como se tenta entender e resolver esse vazio que sentimos em nosso ser. A primeira é a da moeda que foi instituída em 1994, pondo fim a uma ínflação que duas vezes havia chegado perto dos cem por cento ao mês. Chama-se real, que já foi nome de uma moeda no período colonial, mas que então derivava de rei, em homenagem ao monarca português, e tinha como plural a forma antiga réis. Real hoje, porém, vem de realidade e tem por plural reais. É estranho que uma moeda que é representação de valor se autodesigne como realidade. Contudo, isto traduz um sentido precioso: a inflação corroeu a tal ponto o valor, os valores em geral, que esvaziou a representação e negou nossa realidade. Ao se adotar uma nova moeda, esta não poderia limitar-se a propor uma nova representação ou ficar no plano dos valores. Ela precisou carregar-se de realidade. Mais do que isso: pela primeira vez em mais de cem anos de papel-moeda, as cédulas emitidas em 1994 excluíram de sua iconografia a imagem humana e a história brasileira. (A única imagem antropomorfa, na família inicial de notas do real, é a efígie da República, mas que por isso mesmo não representa um ser humano e, sim, o Estado.) Cinco animais típicos da fauna brasileira, o beija-flor, a garça, a arara, a onça e um peixe, ocupam


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as denominações que vão de um a cem reais. O significado disso é que se exclui a história – tanto a mais convencional, dos heróis que misturavam governantes, militares e (bem poucos) populares, quanto a que se tentou figurar na Casa da Moeda nos primeiros anos democráticos (e inflacionários) que sucederam à ditadura militar após 1985. Essa família malsucedida, por causa da inflação, se compunha sobretudo de escritores e personagens culturais, esboçando assim uma identidade nacional mais alicerçada na Cultura do que no Poder. Mas se foi. O que valeu, em 1994, foi uma identidade nacional que esvazia o mundo humano, isto é, o mundo histórico. Resumindo, a inflação e a história são repudiadas em conjunto, ao entrar o Brasil numa nova fase, a da moeda não inflacionada, “real”. Nossa história terá sido uma sucessão de erros, em especial a das últimas décadas, marcada, em primeiro lugar, pelo populismo de Getúlio Vargas e, num segundo tempo, pelo desenvolvimentismo de Juscelino Kubitscheck – ambos, eis o balanço, inflacionários. O que essa escolha iconográfica ilustra? Uma solução tecnocrática, supostamente neutra do ponto de vista político, mas que mostra clara dificuldade em Iíidar com a dimensão propriamente humana – a da história. A figura humana sai de cena, entrando a natureza e a realidade como grau zero do país, como indiícios de um novo começo. Daí que o Plano Real possa, a um tempo, reativar a idéia de um passado vazio, de um vácuo em nossa identidade, de uma insuficiência de nossas raízes – e propor um modo de superar todos esses problemas, retomando a natureza e a realidade numa nova chave, que faz tábula rasa do passado e projeta um futuro que a ele pouco ou nada deveria. R A outra maneira de lidar com nosso vazio aparece num ponto a meu ver crucial da auto-representação do país, que é o que chamo de sonho de uma política sem políticos. Começo por uma telenovela significativa, Fera ferida, que data de 1993-94 ou seja, do período que sucede à condenação do primeiro presidente brasileiro a sofrer impeachment, Fernando Collor de Mello, e que precede a adoção da moeda deflacionada. Para falar dela, porém, antes de mais nada quero observar algo sobre as novelas da rede Globo. Estas, em alguns momentos, se alçam a um nível bastante alto, e não apenas técnico. Gabriela e Dancing Days, nos anos 1970, Roque Santeiro e Vale Tudo, na década de 1980, para não falar em Pantanal, a única grande novela a vir de outra emissora (no caso, a Manchete), disseram muito sobre o Brasil. Gabriela criticou o Brasil “profundo”, dos senhores do cacau no antigo sul da Bahia, e contribuiu em larga medida para dar


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forma à imagem do que podemos chamar de sensualidade progressista. Dancing Days foi elegante na sua leitura dos costumes urbanos no final, quase interminável, da ditadura militar. Roque Santeiro fez uma brilhante análise da história que fora esquecida – e mentida – sob o regime de exceção. Vale Tudo continua sendo, mais de dez anos decorridos, uma das mais implacáveis exposições que houve da corrupção, política e social, no país e das esperanças que sobrevivem, ainda que tímidas, de construir uma sociedade decente e justa. E cumpre notar que, além dessa rapidíssima evocação de seus “conteúdos” ou de seu alcance político, foram, todas elas, novelas que revolucionaram a narração. Considero que, a par da música popular, a novela – pelo menos nesses seus momentos altos – constitui uma das grandes contribuições brasileiras à cultura de massas mundial. Mas a força da novela está, em larga medida, no fato de que ela não se impõe ao público simplesmente manipulando-o, mas deve seu eventual êxito – ou fracasso – ao modo como sintoniza, ou não, suas expectativas. Isto é reiteradamente apurado por pesquisas de opinião, e nem sempre o efeito é positivo – assim, por exemplo, as tentativas de alguns autores de novelas no sentido de fazer o público aceitar o amor lésbico não surtiram, até hoje, resultado. Homossexuais masculinos, prostitutas, mulheres que trabalham ou que têm uma vida sexual autônoma são mais aceitos do que a homossexualidade feminina. O sentido dessa observação é criticar uma doutrina sobre a comunicação de massas que teve voga nos anos 1960 e que retomava as teorias de crítica ao totalitarismo para dizer que o rádio, e sobretudo a televisão, exerciam sobre as massas um achatamento de concepções e idéias análogo ao que o nazismo e o stalinismo haviam efetuado. Não poucos romances, filmes e ensaios desenvolveram essa idéia-chave. Contudo, é mais correto, hoje que temos cinqüenta ou sessenta anos de televisão, perceber que sua inegável e mesmo muitas vezes lamentável influência sobre o público não é tão mecânica ou ilimitada, mas precisa por assim dizer negociar com o público. Uma ênfase maior nos matizes da recepção sucede assim o caráter unidimensional da leitura que antes se fazia da televisão. Jauss e Iser matizaram Adorno e Marcuse. Isto, em nosso caso, significa considerar que a novela só tem êxito junto aos espectadores quando consegue levar em conta parte, ao menos, de seus sentimentos e idéias; que pode, sim, manipulá-Ios, mas em menor medida do que se imaginava; e, finalmente, que parte de seus desencontros com o público pode vir não necessariamente dos defeitos da televisão, mas de suas virtudes. Tratemos, primeiro, de Fera ferida, novela exibida pela rede Globo em 1993-94 (normalmente, uma telenovela dura em torno


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de sete meses)12. O filho de um ex-prefeito perseguido volta à cidade com um nome falso, muito dinheiro e o propósito de vingar-se. O ingrediente sentimental, imprescindível no gênero, é dado pelo envolvimento amoroso que Flamel – eis o seu nome tem com a filha do atual prefeito, altamente corrupto e um dos culpados pela perseguição ao antigo e honesto prefeito. O ambiente político é totalmente corrompido, o que termina levando a um act of God, a uma tempestade tão terrível, uma espécie de dilúvio, que destrói a cidade. Foi tanta a maldade que Deus e a natureza não mais aceitaram que o mundo dos homens continuasse existindo. Contudo, dois anos depois, a cidade se reergueu, graças ao trabalho do que chamaríamos de um misto de pequenas e médias empresas e de organizações não-governamentais. Um voluntariado, empresarial e social, conseguiu revitalizar aquilo que a (má) política havia liquidado. Mas as instituições continuam em mãos dos mesmos corruptos de antes. O balanço é, assim, que, no Brasil, a sociedade já se mostra forte o bastante para assumir por conta própria uma série de tarefas que a instituição política não cumpre – mas ainda não tem força suficiente para conquistar o próprio poder de Estado, que continua sendo o lugar da heteronomia. Este é o eixo da tese de uma política sem políticos. Sua melhor expressão está na carta de um leitor a um jornal paulista, poucos dias após a trágica morte de Ayrton Senna no autódromo de Ímola, ocorrida em 1º de maio de 199413. O leitor reclamava que Senna estivesse sendo velado na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, lugar pouco digno para um homem de sua estatura, e perguntava qual deputado merecería a honra de ter um velório no autódromo da capital paulista. A dignidade pertenceria ao homem público, mas não político, que adquire a perfeição no manejo da máquina. Já a condução dos seres humanos atesta nosso monumental fracasso no que diz respeito à coisa pública. Para recorrermos ao grego, que tem dois termos para designar a ação, o sucesso estaria na techné, ou seja, na fabricação, na ação voltada sobre as coisas, ao passo que nosso fracasso residiria na práxis, isto é, na ação humana sobre humanos. Política é práxis. Nela fracassamos. Mas se nossa política puder ser techné, então poderemos construí-Ia com alguns traços-chave: primeiro, o da energia, do esplêndido corredor de Fórmula-1; segundo, o do homem de empresa, que traria para a coisa pública, tão deteriorada, os méto-

12 Retomo, aqui, o cap. “O Brasil pela novela”, de A sociedade contra o social. 13 Desenvolvi este ponto no cap. “Uma política sem políticos em que discuto Senna e o presidente Fernando Collor.


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dos e paixões usados na iniciativa privada, e – terceiro – o da técnica, que trataria os seres humanos como coisas e assim dispensaria boa parte de confusões, de erros, de restos com os quais não sabemos, em absoluto, lidar. R Os dois exemplos de como se lida com o vazio identitário insinuam já algum rumo a tomar. Talvez, lá onde se nota um vazio, haja presenças, só que mal identificadas por nós. Por exemplo, aos olhos de quem preza a iniciativa enérgica, que poderia resolver os problemas do país como Alexandre cortando o nó górdio, as resistências somente aparecem como obstáculos irracionais, como sinais de atraso; mas pode bem ser que elas expressem algo positivo, um fator cultural a ser levado mais seriamente em conta, em vez desse resíduo desagradável que assim é vislumbrado. Boa parte, por sinal, do trabalho em antropologia nas últimas décadas consistiu em mostrar que, lá onde não se descortinava inteligibilidade, mas tão-somente resto ou carência, havia uma cultura pulsando, só que não reconhecida ou percebida enquanto tal. Mas nosso principal objetivo será interrogar um pouco mais nossa dificuldade de construir uma dimensão pública. Vimos, no que precede, o primado do mundo privado sobre o público no Brasil. Isto não decorre apenas da freqüente, e lastimável, apropriação privada da esfera pública. Mas sucede também quando o espaço público é investido por uma energia que é de natureza privada, como na celebração de Senna, a que aludi, ou no voluntariado que aparecia em Fera ferida. E este problema comparece, de maneira decisiva, na visão negativa que se tem da dimensão pública: dos políticos se fala, geralmente, mal. Da política se fala, igualmente, mal. Ora, os mesmos que criticam os políticos são os que geralmente votam nos mais conservadores – e corruptos – dentre esses. Como sair desse círculo vicioso? A solução mais ou menos evidente consiste em ampliar o alcance da res publica em nosso país14. Contudo, esta saída não é suficiente. E isso porque, quase inevitavelmente, quando falamos de república ou democracia, pensamos nos modelos que prevaleceram, historicamente, no âmbito do Atlântico Norte. Voltamos assim a Mandeville. Ora, o problema na sua proposta, que inegavelmente funcionou bastante no mundo anglo-saxônico e dele se espraiou para a

14 Ver, a este respeito, Newton Blgnotto (org.), Pensar a República, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2000, no qual colaborei com o artigo “Democracia vs. República”.


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Europa Ocidental, é que ela pressupõe certos traços culturais específicos, dos quais eu destacaria o individualismo15. Retomando então à questão do barateamento da vida pública, é evidente que esta só se torna pouco onerosa, no modelo mandevilliano, porque previamente e no âmbito da cultura moderna e capitalista o convívio com o outro se tornou extremamente custoso. O barateamento é, portanto, relativo e mesmo duvidoso. Numa cultura em que o convívio com o outro seja fonte de prazer, em que a imersão em si não constitua a principal experiência de vida ou o refúgio das agruras e dissabores, o barateamento mandevilliano constituirá uma contradição em termos. Rousseau, no Ensaio sobre a origem das línguas, distinguiu o surgimento das línguas nos lugares quentes e nos frios16. No calor, diz ele, as pessoas procuram amar: em torno da água, onde os meninos vão dar de beber ao gado e as meninas recolhem o líquido para a casa, nascem os primeiros fogos do amor. Daí que a primeira palavra nas línguas dos lugares quentes é, segundo ele, aimez-moi – ame-me. Já nos ambientes frios, as pessoas somente se freqüentam por necessidade, e não por desejo: a primeira palavra é aidez-moi – ajude-me. A idéia é genial e sua formulação, brilhante – entre os dois imperativos primevos, a única diferença é a do m para o d, mas que modifica tudo, porque endurece o que era afetuoso, esfria o que era caloroso. O que podemos acrescentar é que Mandeville concebe a associação partindo da necessidade e não do amor, da cooperação tornada imprescindível, mas não constituindo objeto de desejo. Não precisamos, para tanto, endossar Rousseau literalmente; basta notar que Mandeville se limita a um tipo de experiência humana. Mandeville assim resolve os problemas do frio, não do caIar. Para funcionar a sociedade ali onde o afeto pesa, este é retirado de cena: disso se seguem grandes resultados positivos, como a imparcialidade, o fim do arbítrio, mas também um custo elevado, que é o enregelamento dos afetos. Foi barateada a vida em comum, mas em termos, porque afetivamente ela se tornou desgastante. A condição para se ter a sociedade passa a ser o esfriamento das relações humanas. Mas podemos ter outro modo de pensar a política. No século XVIII, Rousseau e Montesquieu deram enorme importância ao 15 O antropologo britânico Alan Macfarlane discutiu questão análoga em seu Origins of English Individualism, argumentando que as duas casas do Parlamento e todo o modelo de Westmlnster pressupunham um Individualismo presente na cultura Inglesa desde pelo menos a Idade Média – e que por isso mesmo copiá-lo mecanicamente para a Nigéria, por exemplo, no processo de descolonização, não podia dar certo. 16 Rousseau, Ensaio sobre a origem das línguas, caps. 9,10 e 11.


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clima na formação das sociedades, embora o primeiro valorizasse o calor e o segundo o depreciasse (para o autor do Espírito das leis, no calor os nervos ficam à flor da pele, de modo que os povos quentes são mais superficiais, lúbricos, e por isso conhecem o despotismo em vez de regimes temperados ou moderados, como o monárquico17). No século seguinte, Stendhal deverá muito a Montesquieu, de quem resumiu livros em seu período de formação como leitor na Biblioteca hoje Nacional, de Paris, mas – ao contrário de seu inspirador – verá nos países quentes a esperança de uma nova e melhor sociedade. Assim, a 1º de junho de 1817, ao saber da revolução em Pernambuco, contra a dominação colonial portuguesa, Stendhal escreve o que é quase certamente seu único texto em que trata do Brasil. Numa nota manuscrita a seu Roma, Nápoles e Florença em 1817, ele diz o seguinte: A admirável insurreição do Brasil, talvez a maior coisa que possa acontecer, me sugere as seguintes idéias: 1) A liberdade é como a peste. Enquanto não se lançou ao mar o último empesteado, nada ainda está feito. 2) O único remédio contra a liberdade está nas concessões. Mas é preciso empregar esse remédio enquanto é tempo: veja-se o caso de Luís XVIII. Não há lordes, nem brumas, no Brasil18.

A passagem é importante, e não se deve minimizar que se inclua numa obra sobre a Itália. O Brasil então assume o papel que, no Vermelho e o negro, de 1830, caberá ao general sulamericano que aparece no baile da segunda parte do romance, uma espécie de Bolívar que terá ido parar na França. Esse Brasil de 1817 é, em última análise, uma Itália democrática. Ao longo de sua obra, Stendhal, que mandará colocarem como seu epitáfio uma declaração de nacionalidade milanesa19, se dividirá entre o amor à felicidade que o país do calor, a Itália, lhe proporciona e o apreço à liberdade e à inteligência que o país da mesquinharia afetiva, a França, lhe fornece. Seu problema essencial, em seu roteiro de vida como em sua obra, consiste em chegar a essa síntese. É curioso, e talvez nada mais do que isso, que num momento de sua vida, antes de escrever qualquer de suas obras importantes, a capitania brasileira de Pernambuco lhe tenha vindo à mente como um local possível dessa síntese. Mas o que a 17 Montesquieu, O espírito das leis, livro XIV. 18 Cf. “Débris [sic] du manuscrit”, in Voyages en Italie (reunião das obras de Stendhal sobre a Itália). Paris, Pléïade, p. 175. Analisei mais longamente esta passagem em meu artigo “O retorno do bom governo”, in Adauto Novaes (org.), Ética. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 108-9. 19 Arrigo Beyle milianese. Como se sabe, seu nome de batismo era Henn Beyle.


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nota contra os lordes e as brumas permite notar é que o problema de Stendhal não era a Itália, mas o que esta significava – e que poderia ser transferido para a América do Sul, unindo os pernambucanos ao general Bolívar. Seu projeto é o de uma Itália sem a prepotência, de um Mediterrâneo sem o autoritarismo – ou o de uma França com a felicidade. Seguramente não seria Mandeville quem proporcionaria essa síntese. R Vamos concluir. Primeiro, uma conclusão teórica. Não é preciso responder à pergunta sobre a identidade nacional para responder à questão do agir. Penso até que subordinar a pergunta do agir à do ser nacional foi um equívoco, que engessou a constituição da história e da ação política, fazendo-a depender de uma ontologia do ser brasileiro. Liberar nossa ação política, desbloquear nossa política numa direção emancipadora não requer primeiro saber quem somos. Ao contrário – desbloqueia-se a ação política, reduzindo nossa dependência ante a necessidade de um ser. Porque, se para agir precisarmos ser, nossa ação sempre repetirá ou ilustrará modelos já consagrados. Nosso ideal não irá além de imitar as democracias “realmente existentes”. É pouco. Na verdade, a criatividade que acaso compareça em nosso agir poderá ser fruto, justamente, de nosso déficit de ser – em outras palavras, de nossa liberdade. Devo observar que estive falando do problema da identidade nacional no Brasil. Sou sensível ao fato de que a questão, como se coloca no Brasil e em outros países, é diferente do modo como se pode formular naquelas partes do mundo nas quais a afirmação de uma identidade nacional, longamente reprimida, se torna o ponto onde se concentra a possibilidade de uma ação nova, reivindicativa, emancipatória. É preciso levar em conta que a formação nacional, no Brasil, tem duas características importantes – entre outras, é claro. Por um lado, faz parte essencial da construção de nossa nacionalidade a constante introdução de elementos novos, de proveniência estrangeira, mas que são mais ou menos rapidamente assimilados. Por outro, não somos nem fomos seriamente ameaçados de incorporação numa cultura ou língua que não seria a nossa. E, finalmente, uma conclusão política. Não é preciso imitar as democracias que existem, porque não temos um único modelo de democracia, mas vários – e sobretudo os que ainda não existem. A democracia que funcionou até hoje é mais política do que social, é mais jurídica do que afetiva. Está baseada em valores especialmente ingleses, norte-americanos e franceses, sobressaindo neles o individualismo, a separação entre público e privado (de modo que o privado fique fora do político), o esfria-


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mento dos sentimentos. Hoje, porém, um dos importantes legados de 1968 é que a vida privada também seja política. Também ela deve ser democratizada. É preciso inventar uma democracia em que as relações de afeto não sejam mais autoritárias, mas intensamente democráticas. Ainda estamos longe disso. Os países mais democráticos são aqueles em que o afeto, por ser parcial, foi excluído do Estado de direito e da política. Já os países em que o afeto está presente na política o têm em sua vertente autoritária. Mas, no fundo, uns e outros aceitam a mesma equação, isto é, que a presença do afeto na política se identifique com o autoritarismo. É esta identidade que precisamos, e podemos, romper. O que pode ser interessante na leitura de uma sociedade de origem européia, mas dissidente, porque pertence ao Extremo Ocidente, está em abrir lugar para esse encontro do que foi mantido separado ao longo dos últimos séculos.


DEBATE após apresentação do tema no IHU Idéias de 12.06.03. Pe. Roque Junges – Temos partidos tradicionais que mudam muitas vezes, e geralmente a gente diz que é por falta de cultura política do povo brasileiro. Mas com a referência da sua fala, parece ser o contrário: é exatamente por ter uma cultura política diferente que os partidos não funcionam no Brasil, nessa maneira “canônica” pela qual a gente pensa os partidos. Esta visão poderia dar uma leitura da história partidária no Brasil? Renato Janine Ribeiro – Exatamente. Você pegou bem a questão. São hipóteses. Eu posso estar errado. Mas ocorre uma coisa muito estranha pelo fato de termos uma tendência tão grande a pensar a sociedade brasileira pelo signo da carência: não temos cultura política, não temos partidos políticos ... portanto, temos que criá-Ios. Penso que o grande exemplo disso foi o governo do cientista político que foi o presidente da república Fernando Henrique Cardoso. Boa parte da agenda dele foi essa agenda da modernização. Então, temos que ter partidos políticos, temos que ter instituições estáveis, temos que ter parlamentarismo ... Mas me pergunto se tudo isso, que pode ser muito lógico etc., não perde de vista alguns traços particularmente ricos da nossa sociedade. E talvez, se destacarmos esses outros traços, possamos, em vez de nos colocar na rabeira do mundo, ver que nossa cultura tem certas idéias exemplares. Não afirmo que elas possam ser também exportadas ou vendidas no exterior, para melhorar nosso status internacional; mas, pelo menos, elas podem funcionar bem. A questão do partido político nos coloca diante de um novo tipo de política. Minha experiência na campanha pela presidência da SBPC, campanha esta que termina hoje com o fim das votações20, fez-me pensar mais nisso. Eu me pergunto se não estamos superando a fase das grandes articulações sólidas, duradouras como partidos, sindicatos, empresas, que criam uma ligação de pertencimento muito estável e durano;

20 A eleição foi até 12 de junho. Apurados os resultados, tive 877 votos, perdendo a presidência por apenas 34. Lancei em começo de julho um livro com uma reflexao sobre o que é uma campanha de “nova política’” Por uma nova política – uma campanha na SBPC. São Paulo: Ateliê Ediotrial. 2003.


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e estaríamos passando para uma outra fase, sem excluir todo o duradouro, onde você passa a ter ligações eventualnte temporárias em função de um determinado programa de ação entre pessoas que criam um elo social intenso em torno de o que se vai fazer – e depois esses elos se separam e se criam tros elos. Se pensarmos assim, a questão do partido deixa de ser tão relevante. Não é mais importante ter um partido. Lembro quando criado o partido de Brizola, o PDT: fez-se uma reunião para saber qual seria a posição deles em relação à mulher. Mas porque o partido tem que ter uma opinião sobre cada assunto? Talvez não precise. Talvez deva ter opiniões sobre certos assuntos, mas não haja um ponto comum e convergente sobre tudo. O próprio PT, que é um partido tão coeso, não tem posição comum sobre a questão do aborto, por exemplo. A parte mais cristã, católica, do PT é contra a liberação do aborto; mas toda uma outra parte, como a atual Prefeita de São Paulo, a favor. Por que precisariam ter uma posição igual? Por que, de um ponto de vista que compartilhamos, teríamos que inferir tantos outros? Talvez estejamos, com estas reflexões que Ihes proponho, apontando para outras formas de ligação social. Prof. Castor Bartolomé Ruiz – Quando se fala de Brasil, o Brasil é complexo. Mas há um aspecto ligado às dinastias familiares que se preservou tanto na vida social quanto política. Em determinadas regiões do Brasil, governa-se em face das tradições e hierarquias familiares – por exemplo, as dinastias Sarney, Magalhães. Elas são capazes de transmutar, de adaptar-se aos tempos, mas algo permanece ao longo dos séculos. Como o senhor vê isso? Renato Janine Ribeiro - Acho que isso está enfraquecendo muito. Você citou duas dinastias. Sarney foi capaz de se reeleger e de voltar à presidência do Senado Federal. Mas, há pouco mais de doze meses, era quase certo que sua filha Roseana Sarney seria a futura presidente da República. As indicações eram todas nessa direção. E, de repente, ao mostrar-se na televisão uma mesa apenas um pouco maior do que essa, mas coberta de notas de dinheiro, ela acabou – e isso porque não representava nada. Não foi a mesa, foi a sua falta de representação que acabou com ela. Não nego que haja algo dinástico na família Sarney. O ex-presidente criou uma fundação que tem seu nome e cuja sede fica num convento em São Luís. Lá ele já tem um espaço reservado para seu enterro. Sim, pode ver-se nisso algo de excessivo, de dinástico. Mas note: o espaço que Sarney ocupou este ano foi graças a uma aliança com Lula, na qual a hegemonia é do PT e não dele. Já no caso de Antônio Carlos Magalhães, ele foi capaz de recuperar-se, não tanto de sua renúncia diante das denúncias que quase levaram à cassação de seu


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mandato em 2001, mas do pior golpe, que foi a morte do filho. Luís Eduardo Magalhães era a possibilidade de um presidente de direita competente e liberal. Mas o terrível para Antônio Carlos Magalhães foi sua plena redução a uma posição estadual. Magalhães, mais até do que Sarney, hoje é uma figura estadual. Um e outro podem mandar nos seus estados com muita força, mas em termos nacionais Magalhães praticamente não existe, e Sarney tem uma posição subalterna, embora presidente do Senado. Em outros estados, essa dimensão hereditária do poder diminuiu muito. Ela existiu em São Paulo um tanto, com Ademar de Barros. Mas já o próprio filho e sobrinho foram figuras apagadíssimas. Não se elegeram para nenhum cargo majoritário. Onde temos algo parecido, em Minas, onde o atual governador é neto de Tancredo Neves, a própria relação é frouxa. Aécio Neves construiu sua vida independente do avô. Era muito jovem quando Tancredo morreu. E conseguiu construir sua vida política à parte disso. Considero que as dinastias, onde existem, são uma questão quase local. Nas prefeituras, temos bastante disso. No plano dos estados, pouco. Em termos federais, está acabando. E o mais interessante, desse ponto de vista, é que os três principais líderes da direita brasileira, incluindo, além dos já citados, o nome de Paulo Maluf, tiveram as asas supercortadas. A pretensão nacional de Roseana acabou, Maluf nem chegou ao segundo turno nas eleições locais em São Paulo, embora continue como personagem na política estadual, e Antônio Carlos está reduzido à Bahia. Onde isto entra no tema do afeto? A TV lida muito com afeto; a política é uma esfera ampla de afeto. E vimos o cientista político do PSDB no governo introduzindo uma política altamente racional. Lembro que esse partido, nos seus outdoors, dizia “seriedade, honradez, competência”. Isto nunca entusiasma as pessoas. Já Maluf afirmava: “eu amo São Paulo”, com um coração pulsando. Veja o contraste: Maluf apelando ao coração, e PSDB colocando uma frase que nunca se veria uma multidão sair gritando pela rua. Podemos imaginar uma multidão gritando “eu amo São Paulo” ou “o povo unido jamais será ... ” e alguma coisa, mas jamais berrando “seriedade, honradez, competência”. Este é um esvaziamento total do afetivo. O afeto no Brasil, politicamente, foi, em larga medida, monopolizado por Antônio Carlos Magalhães, Maluf e as figuras mais da direita. O interessante neste ponto é que o PT foi disputar no plano mesmo do afeto. Esse é um ponto subdiscutido na política brasileira. A ciência política lhe dá pouca importância Erra, ao fazer assim.


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Estou terminando um artigo que compara as maneiras como Fernando Henrique lidou e Lula lida com o déficit da sua ação em relação à sua fala21. Como FHC fazia isso? Ele introduzia a ética da responsabilidade de Max Weber: o político tem que levar em conta as conseqüências, as circunstâncias etc., e não pode satisfazer todos os ideais. Era um discurso teórico. Já o modo de Lula consiste em contar histórias. Conta histórias, em que preferencialmente compartilha com o ouvinte a posição de pai. O pai – Lula – fala a alguém que ele coloca na posição de pai (não filializando o interlocutor, como erradamente a Folha de São Paulo interpretou) e assim constrói uma comunidade, na posição de país. Como fazemos um filho? Precisamos de tempo. É interessante que, ao contar uma história, ao criar essa comunhão afetiva, Lula esteja estabelecendo um novo elo social. E nesse ponto ele está disputando com Antônio Carlos Magalhães, com a tradição de um afeto autoritário, propondo em vez disso um afeto não-autoritário, um afeto compartilhado. E isto é novo. O ponto novo desse elo é tentar um elo alternativo ao autoritarismo, que não seja o da secura ou de secar o afeto. A proposta tucana é secar o afeto: “política é questão racional”. E o engraçado é que todas as vezes em que levanto isso com meus amigos tucanos, ou com meus amigos cientistas, eles consideram quase um delírio o que digo. Para eles, a política é a esfera da razão. E acho que não é. Ela inclui uma galáxia de afetos. Pensá-Ia tanto assim pela razão só quando se esvazia a política da participação.

21 Ver Revista Cult, julho de 2003. “Ideais como deságio”.


O tema deste caderno foi apresentado no IHU Idéias e Ciclo de Estudos sobre o Brasil, no dia 12 de junho de 2003.

TEMA DOS ÚLTIMOS CADERNOS IHU IDÉIAS:

N. 01 – A teoria da justiça de John Rawls – Dr. José Nedel. N. 02 – O feminismo ou os feminismos: Uma leitura das produções teóricas – Drª Edla Eggert. O Serviço Social junto ao Fórum de Mulheres em São Leopoldo – Ms. Clair Ribeiro Ziebell e Acadêmicas Anemarie Kirsch Deutrich e Magali Beatriz Strauss. N. 03 – O programa Linha Direta: a sociedade segundo a TV Globo – Jornalista Sonia Montaño. N. 04 – Ernani M. Fiori – Uma Filosofia da Educação Popular – Prof. Dr. Luiz Gilberto Kronbauer. N. 05 - O ruído de guerra e o silêncio de Deus – Dr. Manfred Zeuch.


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