Software livre, blogs e TV digital E o que tudo isso tem a ver com sua vida
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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Reitor Marcelo Fernandes Aquino, SJ Vice-reitor Aloysio Bohnen, SJ Instituto Humanitas Unisinos – IHU Diretor Inácio Neutzling, SJ Diretora adjunta Hiliana Reis Gerente administrativo Jacinto Schneider Cadernos IHU em formação Ano 2 – Nº 10 – 2006 ISSN 1807-7862
Editor Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos Conselho editorial Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos Prof. MS Dárnis Corbellini – Unisinos Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos Esp. Susana Rocca – Unisinos Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos Conselho científico Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e Sociologia Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação Responsável técnico Laurício Neumann Revisão Mardilê Friedrich Fabre Secretaria Camila Padilha da Silva Projeto gráfico e editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Impressão Impressos Portão Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467 www.unisinos.br/ihu
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Sumário
Usar o software livre é educar para a liberdade Entrevista com Richard Stallman ..........................................................................................
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“Nós, usuários da rede, estamos descobrindo que os meios somos nós mesmos” Entrevista com José Luis Orihuela ........................................................................................
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Novas escritas de si: entre o absolutamente público e o extremamente privado Entrevista com Paula Sibilia .................................................................................................
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A blogosfera: uma ferramenta essencial para a notícia Entrevista com Marcos Palácios ............................................................................................
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Blog e literatura Entrevista com Daniel Galera................................................................................................
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Todo o mundo tem uma história para contar Entrevista com Rebecca Blood..............................................................................................
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Blogmaratona: solidariedade na blogosfera Entrevista com José Javier Dominguez .................................................................................
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Blogs, Flogs, MSN, Orkut, a emergência da cibernética traz uma nova forma de pensar Entrevista com Karla Schuck Saraiva....................................................................................
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“É hora de repensar os cursos de comunicação” Entrevista com Pedro Doria ..................................................................................................
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O Brasil precisa definir o que quer da TV Digital Entrevista com Valério Cruz Brittos.......................................................................................
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“A TV digital poderá ser um grande passo na direção da inclusão digital” Entrevista com Laurindo Leal Filho ......................................................................................
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Inclusão digital é resgatar a dignidade do indivíduo Entrevista com André Barbosa Filho .....................................................................................
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A TV digital será acessível a todos a partir da TV aberta Entrevista com Ricardo Benetton ..........................................................................................
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“A Internet é uma utopia: o homem nunca foi tão sozinho” Entrevista com Marie-France Bouilly ....................................................................................
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
O controle da Internet por uma organização é ilusório Entrevista com Ethevaldo Siqueira .......................................................................................
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Mídia digital e universo acadêmico Entrevista com Hiliana Reis ..................................................................................................
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TV Digital: Novo paradigma de comunicação Por Alexandre Kieling...........................................................................................................
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Mercado e academia: dois mundos muito separados Entrevista com François Jost.................................................................................................
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Televisão em debate: integração entre mercado e academia Entrevista com Elizabeth Bastos Duarte ................................................................................
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Liberdades e limitações do software livre Entrevista com Cristiano Costa .............................................................................................
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“Pensar a célula como uma espécie de computador” Entrevista com Ney Lemke ...................................................................................................
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Imaginário religioso pré-moderno e novas tecnologias Entrevista com Erick Felinto de Oliveira................................................................................
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Usar o software livre é educar para a liberdade Entrevista com Richard Stallman
Richard Stallman, conhecido no mundo inteiro pela sua defesa e desenvolvimento do software livre, considera que as instituições universitárias deveriam adotá-lo, pois “a missão da universidade é desenvolver e difundir o conhecimento humano”. Ele concedeu uma entrevista exclusiva, por telefone à IHU On-Line, no dia 11 de abril de 2004. Stallman é o fundador do projeto GNU, lançado em 1984, para desenvolver o sistema operacional do software livre. Para Stallman, um sistema operacional livre é essencial para que os povos possam usar computadores com liberdade. Ele estudou Física em Harvard e trabalhou no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT) antes de se converter no grande libertário da informática. Em 1984, fundou a Free Software Foundation (www.fsf.org) e hoje viaja pelo mundo, divulgando o livre uso dos programas de computador. Seu ideário inspirou a criação do GNU/Linux, um sistema operativo de acesso livre. Hoje, o programa Linux, baseado na semente do sistema GNU e desenvolvido por Linus Torvalds, tem seu uso difundido. Há a estimativa de cerca de 20 milhões de usuários do sistema. Durante seus anos da faculdade, Stallman trabalhou também como um hacker da equipe de funcionários no laboratório da inteligência artificial do MIT, aprendendo o desenvolvimento do sistema operacional ao fazê-lo. Escreveu o primeiro editor de texto, o Emacs, em 1975. Em janeiro de 1984, renunciou ao MIT para começar o projeto do GNU. Em 1996, recebeu o título de doutor honoris causa do Royal Institute of Technology. Em 2001, recebeu o segundo título 1
de doutor honoris causa, da University of Glasgow e, em 2004, recebeu o terceiro título de doutor honoris causa da Universidad Nacional de Salta, na Argentina. Publicamos uma entrevista com Richard Stallman no IHU On-Line, 69ª edição, de 4 de agosto de 2003, em que discutimos a questão do software livre. Ele possui uma página pessoal na Internet, cujo endereço é http://www.stallman.org/ IHU On-Line – O senhor tem esclarecido di-
versas vezes que software livre não significa gratuito: significa que os usuários são livres para usar o programa, estudar seu código-fonte, modificá-lo e distribuí-lo com ou sem mudanças, seja gratuitamente, seja cobrando por isso... Richard Stallman – Exatamente, e também publicar versões mudadas de maneira que a comunidade possa fazer o que queira com esse programa. IHU On-Line – Tem dito também que seu
discurso é ético e não técnico e que o software livre constrói liberdade e comunidade. Mas a forma de ele fazê-lo ou de o software privativo negar essa liberdade, é técnica. Como são essas duas formas? Richard Stallman – O software privativo1 tolhe a liberdade do usuário com sua licença que não permite copiar seu programa. Só está disponível o código executável. A perda de liberdade não resulta do que faz o programa, e sim de sua forma de distribuição. Às vezes, é possível convencer os programadores de liberar um programa, mas, uma
Software privativo significa que um indivíduo ou companhia retém o direito de autor exclusivo sobre uma peça de programação, ao mesmo tempo que nega às outras pessoas o acesso ao código-fonte do programa e o direito a copiá-lo, modificá-lo ou estudá-lo. (Nota da IHU On-Line)
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vez que um programa é privativo, ou seja, que é construído de maneira que priva a liberdade dos usuários, o programador escolhe o poder sobre os usuários e usa seu poder para tirar-lhes outras liberdades. Por exemplo, pode interferir no programa com finalidades maléficas para destruir arquivos ou vigiar o usuário. Pode fazer isso facilmente, porque, como o programa é privativo, os usuários não podem mudá-lo, eles não têm defesa, porque os programas privativos mantêm os usuários em estado de dependência, de colonização eletrônica. Muitos usuários não vão se interessar em mudar, porque é fácil e cômodo continuar assim. É bom saber que, com o software livre, o programador não tem poder sobre os usuários, até pode dispor de funcionalidades maléficas, mas os usuários podem modificar sua versão e fazer versões diferentes. No software livre, os usuários ganham, no privativo, o programador ganha.
fazer dos alunos, adictos. É como oferecer caixas de cigarro aos alunos para que aprendam a fumar e se viciem em cigarro. Por isso, para construir nações independentes, devemos ensinar o software livre, e não o privativo, mas, há ainda uma outra razão mais profunda. A escola não deve só ensinar fatos e números, mas também, moral. Devemos ensinar as pessoas, desde crianças, a cooperarem com seus pares, com a sociedade. Portanto, a escola deve ensinar a norma que diz: “Menino, se trazes um programa à turma, não podes guardá-lo para ti, deves compartilhá-lo com todos os teus colegas. Se não quiseres compartilhá-lo, não podes trazê-lo.” A escola precisa fazer a regra ser cumprida. Por sua vez, as instituições públicas devem adotar o software livre por várias razões. Uma delas é ajudar o mercado do software livre para que se generalize seu uso, e as empresas privadas também possam adotá-lo mais facilmente. Isso contribuirá para convencer os governantes a fim de que eles adotem leis que não impeçam o uso do software livre. Há leis que quase o proíbem, como, por exemplo, o Tratado de Direito de Autor2, que é muito nocivo. Nenhum país deveria adotá-lo, mas muitos o fazem sob pressão dos Estados Unidos.
IHU On-Line – Acha que seria possível não
só as pessoas, mas também as instituições públicas e privadas usarem o software livre e o sistema operativo GNU/Linux ? Richard Stallman – Em primeiro lugar, as escolas deveriam usar somente o software livre por muitas razões. Uma delas é facilitar a educação para a informática. Com o software livre, os alunos podem aprender a ler e escrever o código fonte. Seguramente, muitos estudantes gostariam de aprender isso, e a escola deve proporcionar a possibilidade de aprender bem. O aluno aprenderia como funciona o programa que está usando. Mas há outras razões para ensinar o uso da liberdade nas escolas, porque, em definitivo, trata-se disso. Ensinar a usar software privativo é construir dependência, é estar ensinando algo maior que os ensinamentos do dia-a-dia escolar, e isso pode se estender para toda a sociedade. Quando a Microsoft oferece cópias gratuitas do software privativo às escolas, não o faz, porque está querendo socializar conhecimento, e sim porque é uma forma de
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IHU On-Line – O senhor é um hacker. Há uma
imagem geralmente negativa dos hackers. Qual é o bem que eles fazem à sociedade? Richard Stallman – Eu sou um hacker, sim. Hacker é alguém que costuma divertir-se com sua inteligência, poderíamos traduzir como “espírito brincalhão”. Quando digo que sou um hacker, quero dizer que gosto de me divertir com a inteligência, com um “espírito brincalhão”, não só com o computador. Há hackers que fazem outras coisas e usam a palavra em outro sentido, mas eu não. Os hackers podem fazer um grande bem à sociedade. Os que escrevem programas úteis e interessantes usualmente são hackers. Estão se di-
O Tratado de Direito de Autor, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), foi adotado em Genebra, em dezembro de 1996. A diretiva sobre “O Direito de Autor na Sociedade da Informação” trata-se da mais complexa e horizontal medida legislativa criada no âmbito da propriedade intelectual. A maioria dos Estados Europeus acolhe e adapta para os seus sistemas jurídicos os dois Tratados da OMPI, designados como os “Tratados Internet”, que regulam a adaptação do Direito de Autor e dos Direitos Conexos ao mundo digital. (Nota da IHU On-Line).
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vertindo com sua inteligência e trabalhando num programa.
copyleft: assegurar que todos os usuários, quando recebam suas cópias, recebam também os direitos de utilizá-las. O “esquerdo de cópia” (copyleft) é para fazer isso, por isso não o considero uma cultura. A cultura seria a de respeitar ou não a liberdade dos outros, o espírito de cooperar com uma comunidade e o espírito de subjugar os outros.
IHU On-Line – Se o senhor tivesse querido,
poderia ter feito muito dinheiro com suas descobertas e as possibilidades que elas lhe abriram. Teve muitas propostas que implicavam abandonar seus princípios éticos? Richard Stallman – Ofereceram-me oportunidades de trabalho contra meus princípios e disse que não, porque, para mim, lutar pela liberdade da comunidade é mais importante que me tornar rico. Entretanto, não recebo muitas propostas, porque tenho a reputação de me manter fiel aos meus princípios e acho que ninguém me ofereceria hoje trabalhar para um software privativo. Às vezes, me sugerem aceitar o programa privativo para promover o êxito do sistema livre GNU/Linux e nunca aceito, porque, para mim, o êxito do GNU/Linux serve para promover a liberdade. Deixar a liberdade, que é a meta, para obter o êxito, é desviar-se do objetivo.
IHU On-Line – Qual é a missão da universi-
dade na tentativa de criar sociedades livres e cooperativas? Richard Stallman – A missão da universidade é desenvolver e difundir o conhecimento humano, se ela omitir alguma dessas duas funções, está se voltando contra si mesma. IHU On-Line – Se tivesse que organizar uma
grande universidade e quisesse torná-la mais eficaz, renovar suas ferramentas de gestão etc., o que faria? Richard Stallman – Falar de “eficaz” só tem sentido segundo uma meta específica dos limites e normas éticas que se deve respeitar. A missão da universidade é avançar e difundir o conhecimento humano. Aplicado ao campo informático, esta missão exige promover o software livre. Receber um programa sob a promessa de não compartilhá-lo com os outros não é ético para ninguém, mas ainda menos para uma universidade. A universidade deve rejeitar o software privativo, em sua administração e em suas aulas. O exemplo da Unidade Integrada Vale do Taquari de Ensino Superior (Univates) tem mostrado que uma universidade moderna, no Brasil, pode escapar do software privativo e que não seria tão difícil evitar o seu uso.
IHU On-Line – O senhor criou a expressão
copyleft3 em oposição a copyright. Como caracterizaria a cultura que cada uma dessas expressões representa? Richard Stallman – Eu não penso nesses termos. Para mim, o “esquerdo de cópia” (copyleft) é um método para usar o “direito de cópia”, para proteger a liberdade dos usuários. É possível publicar uma obra num domínio público, mas corre-se o risco de que todos façam versões mudadas e as tornem privativas. Você receberia sua própria obra copiada com a liberdade tirada por um intermediário. Isso era o que eu queria evitar, ao criar o
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Copyleft nasce de um jogo de palavras em inglês: em oposição a copyright (direito de cópia) se uma copyleft (significa cópia abandonada, cópia que é permitido fazer), indicando que não se restringe à cópia, ao contrário, se pode fazê-la sem reservas. As palavras inglesas right e left significam também “direita” e “esquerda”, respectivamente, o que acentua a diferença entre ambos os conceitos. A idéia de copyleft, não a palavra, foi concebida por Richard Stallman. (Nota da IHU On-Line)
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“Nós, usuários da rede, estamos descobrindo que os meios somos nós mesmos” Entrevista com José Luis Orihuela
José Luis Orihuela é argentino, residente na Espanha, professor na Universidade de Navarra e autor do weblog e Cuaderno (www.ecuaderno.com). Orihuela é jornalista, doutor em Ciências da Informação, pela Universidade de Navarra, licenciado em Ciências da Informação. Tem atividade acadêmica em 22 países da América e Europa. É autor de Manual de Diseño de Proyectos de Comunicación Interactiva (no prelo). Comunicar para crear valor. La dirección de comunicación en las organizaciones. Pamplona: Eunsa, 2004. El futuro de la televisión en España. Análisis prospectivo 2000-2005. Madrid: Facultad de Comunicación de la Universidad de Navarra, 2000. O professor pesquisa principalmente as linhas de impacto social das novas tecnologias (sociedade/cultura/educação/comunicação) e os novos modos e novos meios de comunicação (ficção interativa/informação interativa/ educação interativa). A entrevista foi concedida à IHU On-Line, por e-mail, em 16 de junho de 2005.
tem, na atualidade, 31.6 milhões de weblogs e prognosticam-se 53.4 milhões para o final de 2005. O popular serviço de rastreamento de weblogs Technorati (http://www.technorati.com/) indexa diariamente as histórias publicadas em 10.8 milhões de weblogs, o que representa 1.177 milhões de links. Por sua vez, bloglines (http://www.bloglines.com/) o leitor on-line de fontes RSS4 mais utilizado, indexa 480 milhões de histórias. O ritmo de crescimento da blogosfera global é tal que a quantidade de weblogs se duplica a cada seis meses. Os weblogs são um meio originário da Web, possivelmente o primeiro meio nativo dela. Ainda que posteriormente tenham sido assimilados a diários pessoais, no início, a base foi o link: links com um breve comentário. Jorn Barger, que criou o termo weblog em 1997, mantém o estilo original em seu famoso Robot Wisdom (http://www.robotwisdom.com). O lançamento do serviço de edição e publicação de blogs, chamado blogger, em agosto de 1999, mudou o panorama, e os blogs que veiculam informações diversas ficaram em minoria diante dos de tipo “diário pessoal”. Hoje, os blogs do tipo filtro se transformaram em blogs temáticos, e a multiplicação de ferramentas de edição e publicação potenciou os blogs autobiográficos. A principal inovação dos weblogs consistiu na simplificação e centralização das três grandes barreiras de entrada que impediam que o usuário comum da Internet pudesse converter-se em produtor de conteúdos: o acesso a um servidor, o domí-
IHU On-Line – Quantos blogs, aproximada-
mente, há na atualidade? O que mais atrai nesta linguagem da web? José Luis Orihuela – Segundo o estudo da consultoria Perseus The Blogging Geyser (http://www.perseus.com/blogsurvey/geyser.html), divulgado em abril de 2005, estima-se que exis-
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O RSS é um formato padronizado mundialmente, que funciona com linguagem XML (Extensible Markup Language), e é usado para compartilhar conteúdo Web. Ele permite, por exemplo, que o administrador de um site de notícias crie um arquivo XML com as últimas manchetes publicadas, a fim de compartilhá-las mais rapidamente com seus leitores. Este arquivo poderá ser lido por meio de qualquer ferramenta que seja capaz de entender o formato XML do RSS. (Nota da IHU On-Line)
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
nio da linguagem HTML e umas destrezas mínimas de desenho gráfico. Os serviços de edição e publicação de weblogs resolvem, de um modo singelo e intuitivo, estes obstáculos técnicos e ajudam o usuário a concentrar-se no que realmente lhe interessa: elaborar e compartilhar conteúdos. Uma das características básicas do meio é que consegue fazer quase totalmente transparente o processo de publicação na Internet, e praticamente simultâneo com a escrita. Estes traços se traduzem na informalidade, na espontaneidade e no caráter pessoal, às vezes íntimo, do estilo dominante nos blogs. As razões pelas quais as pessoas escrevem blogs são tão variadas como as que definem a escrita em outros meios: necessidade de expressão, afã de compartilhar saberes, desejo de integração numa comunidade, busca de reconhecimento, exploração criativa, participação política, defesa de interesses, ou simples exposição. Todas as revoluções midiáticas geram uma mitologia e vendem-se socialmente como uma promessa, que costuma responder ao paradigma “uma solução à procura de um problema”. Os weblogs não são a exceção. Um meio com barreiras de entrada muito baixas é uma boa notícia, pois possibilita a qualquer um publicar, e, pela mesma razão, é uma má notícia: multiplica-se o ruído e torna-se mais difícil encontrar conteúdos de qualidade. A razão é muito singela: saber usar uma máquina de escrever não o torna um escritor.
são usados para fazer jornalismo por serem weblogs, mas quando se decidem a fazê-lo, podem tornar-se melhores do que os meios tradicionais. O meio weblog pode ser suporte de jornalismo, de literatura ou de qualquer outro gênero, mas não é jornalismo ou literatura pelo fato de estar publicado em formato weblog. Em todo o caso, a questão-chave aqui não é se os weblogs são utilizados para fazer jornalismo, senão o que é o jornalismo. A redefinição do jornalismo e da função social dos meios é um dos mais importantes efeitos da revolução dos weblogs. A grande tendência global emergente que chamamos Meios Sociais é possivelmente a revolução midiática mais relevante desde o estabelecimento da tipografia de Gutenberg no século XV. Hoje a Internet, graças aos weblogs e outras formas de publicação pessoal, converteu cada computador conectado à rede numa tipografia. “A tipografia do século XXI”, segundo Piscitelli5. Os trabalhos pioneiros de Dan Gillmor6 We the Media. Grassroots Journalism by the People, for the People e de Chris Willis e Shayne Bowman,7 We Media. How audiences are shaping the future of news and information, acertaram em sublinhar o fator central deste novo cenário: as audiências, o público, as pessoas, são os novos atores na obra da comunicação pública, que já não está protagonizada exclusivamente pelos meios estabelecidos e os comunicadores profissionais. Os meios tradicionais se enfrentam, com cada revolução tecnológica, à desafiadora tarefa de reinventar-se para sobreviver. A profissão jornalística compartilha hoje o espaço público com cidadãos que, valendo-se dos Meios Sociais, fazem ouvir sua voz, sua crítica, sua opinião e seus interesses com uma intensidade que já não pode ser dissimulada. As exigências associadas à formação acadêmica dos comunicadores se redobraram, e as dimensões éticas de seu trabalho constituem o
IHU On-Line – Como os we blogs in flu en -
ci am nos me i os de co mu ni ca ção mais tra di ci o na is? José Luis Orihuela – Creio que os weblogs e os meios tradicionais têm funções diferentes, são complementares e fazem parte de uma renovada paisagem midiática na qual os usuários da Internet se converteram em geradores de conteúdo e em vigilantes dos meios clássicos. Os weblogs não 5
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Alejandro Piscitelli é professor de Filosofia, especialista em Novas Tecnologias da Informação na Universidade de Buenos Aires. (Nota da IHU On-Line). Dan Gillmor, jornalista e blogger estadunidense. É autor do livro We the Media: Grassroots Journalism By the People, For the People, publicado pela editora O’Reilly & Associates em 2004. (Nota da IHU On-Line) Shayne Bowman e Chris Willis dirigem a firma consultora de meios e desenho Hypergene. Os autores estadunidenses abordam questões sobre jornalismo participativo no livro citado pelo entrevistado: We Media. How audiences are shaping the future of news and information (Nós, o meio. Como as audiências estão modelando o futuro das noticias e da informação). (Nota da IHU On-Line)
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fundamento de uma identidade profissional que ficou definitivamente separada dos meios. Hoje os meios somos todos nós, mas jornalistas somente alguns.
pecífica, sendo os weblogs tão variados, podendo ir desde espaços de extrema intimidade a espaços profissionais de atualidade e crítica social, política e econômica? José Luis Orihuela – Um dos elementos distintivos do weblog como meio é sua integração numa série de redes, blogosferas ou comunidades, formadas por aqueles que se lêem e se lincam de modo recíproco. As comunidades virtuais geram vínculos reais entre seus membros e constituem um modo de relação social com projeções educativas, políticas, econômicas e, é claro, jornalísticas. Igualmente ao que ocorre no mundo real, também na Internet, e especialmente na blogosfera, os usuários pertencemos a numerosas comunidades. A primeira filiação comunitária do blogger é a lingüística: o meio é escrito, de maneira que a língua compartilhada é um parâmetro inevitável. Em segundo lugar, a blogosfera é um meio com uma forte tendência auto-referencial: os bloggers que se lêem entre si diariamente e que se lincam de forma recíproca, acabam formando comunidades virtuais reforçadas por outros meios on-line, como o correio eletrônico, a mensagem instantânea, as redes virtuais e os blogs grupais e comunitários. Em terceiro lugar, destacaria o fenômeno das agrupações de bloggers em função das cidades nas quais vivem, pois já há um bom repertório de portais e canais temáticos baseados em cidades. Entre os traços da cultura blogger, destacaria a paixão por escrever a respeito do que nos agrada, a liberdade de gerir de forma pessoal um meio público sem editores, a solidariedade para as causas sociais, a defesa dos direitos individuais, o interesse pela informação, o gosto pela polêmica, a relação amor/ódio com os meios tradicionais, o culto à tecnologia, o acesso ao software livre e a decidida promoção de novas formas de entender e gerir os produtos das indústrias culturais e seus direitos associados.
IHU On-Line – Que experiências de blogs
mais significativas poderiam ser citadas como sistema de controle e crítica dos poderes públicos e dos meios de comunicação? José Luis Orihuela – A segunda guerra do Iraque impulsionou os weblogs como fonte alternativa de informação e opinião em relação aos meios tradicionais, cujos correspondentes embarcaram junto com as tropas. Um arquiteto escreveu da periferia de Bagdá sua crônica pessoal e cotidiana que consegue difundir na escala universal um retrato da guerra cheio de sentido comum, humor, ironia, raiva e textura não-convencional. Os meios começaram a descobrir, então, que algo tinha mudado para sempre. A influência de um weblog depende de sua popularidade medida em visitas e (e, às vezes, de modo mais significativo) pela quantidade de links de acesso que recebe e, em conseqüência, pelo valor que lhe atribuem os buscadores. Não obstante a capacidade deste meio para alterar tendências políticas não me parece diferente da dos meios tradicionais, assunto extensamente estudado pela teoria da dissonância cognitiva8. Coletivamente, a blogosfera constitui um bom sistema para medir a opinião dominante na Internet sobre quase todos os temas e, ao mesmo tempo, se converteu num indicador da relevância das notícias e opiniões publicadas pelas versões eletrônicas dos meios tradicionais. A blogosfera está se convertendo num sistema de controle e crítica dos meios tradicionais e na caixa de ressonância da opinião política da rede. IHU On-Line – Em um tempo de hiperindivi-
dualismo, como caracterizaria a comunidade de bloggers? Há uma cultura blogger es8
Dissonância cognitiva é uma teoria sobre a motivação humana que afirma ser psicologicamente desconfortável manter cognições contraditórias. A teoria prevê que a dissonância, por ser desagradável, motiva a pessoa a substituir sua cognição, atitude ou comportamento. Foi explorada detalhadamente, pela primeira vez, pelo psicólogo social Leon Festinger, que assim a descreveu: “Dissonância e consonância são relações entre cognições, ou seja, entre opiniões, crenças, conhecimentos sobre o ambiente e conhecimentos sobre as próprias ações e sentimentos. Duas opiniões, ou crenças, ou itens de conhecimento, são dissonantes entre si quando não se encaixam um com o outro, isto é, são incompatíveis. Ou quando, considerando-se apenas os dois itens especificamente, um não decorrer do outro” (Festinger 1956, p. 25). (Nota da IHU On-Line)
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de forma exclusiva pelos meios. Um meio potencialmente universal como o weblog, com uma entrada muito rápida e a baixo custo (pode-se abrir um blog em três minutos e de forma gratuita), encabeça, de imediato, o problema da credibilidade. A credibilidade funciona nos weblogs de modo similar aos outros meios: no caso de autores com uma identidade real e com prestígio profissional fora da blogosfera, sua autoridade se projeta sobre o que escrevem no weblog. No caso de autores anônimos ou que usam pseudônimos, a autoridade é atribuída a eles em função da qualidade dos conteúdos que produzem de modo regular. O anonimato costuma utilizar-se para proteger a privacidade do autor, ainda que também possa ser um modo de mascarar os interesses que o levam a escrever. Pessoalmente, prefiro ler weblogs de autores que não ocultam sua identidade: preciso saber quem escreve e de onde escreve (num sentido geográfico, profissional, ideológico etc.).
IHU On-Line – De que forma os blogs estão
quebrando, efetivamente, o monopólio do jornalismo clássico sobre a difusão de informação e opinião na escala mundial? José Luis Orihuela – O weblog é um meio com mais de cinco anos de história, mas que transcendeu de forma generalizada o âmbito midiático em razão da guerra do Iraque e o caso de Salam Pax9 e os warbloggers americanos. Os atentados do 11 de setembro e do 11 de março10, o desastre do Prestige11, as eleições americanas e a catástrofe do tsunami no sudeste asiático são alguns dos acontecimentos que projetaram ao espaço público a atividade dos bloggers. As ferramentas como o News Talk de Technorati12 (http://www.technorati. com/live/breakingnews.html) ou o Politics de Feedster13 (http://politics.feedster.com/) facilitaram o acesso dos meios à grande conversa global que representa a blogosfera. As funções dos weblogs no novo cenário comunicativo são múltiplas: são um filtro social de opiniões e notícias, um sistema de alerta, controle e crítica dos meios, um fator de mobilização social, um novo canal para as fontes reconvertidas em meios, um novo formato aplicável nas versões eletrônicas dos meios tradicionais para coberturas mais longas, catástrofes e acidentes, um gigantesco arquivo que opera como memória da Web, o alimento privilegiado dos buscadores por sua renovação constante e sua alta densidade de links de entrada e saída, e, finalmente, são o grande encontro de múltiplas comunidades, cuja ancoragem comum é o conhecimento compartilhado. Os weblogs dão aos leitores o poder de publicar, o que antes era exercido
IHU On-Line – O que pode ser previsto em
relação ao futuro dos weblogs? A partir deles, vão surgindo novas tendências? José Luis Orihuela – Entre as tendências, destacaria a flexibilização do formato e sua paulatina transparência (entenderemos o weblog como um tipo de Content Management System14 com múltiplas aplicações além do diário pessoal, e falaremos menos do meio e mais de seus conteúdos). Terá uma crescente integração entre weblogs, wi-
Causou sensação o blog de um indivíduo de Bagdá narrando, em inglês, o cotidiano de sua cidade debaixo da guerra. Assinava-se Salam Pax (paz, em árabe e latim), e, devido à alta qualidade de seu texto, muitos duvidaram de sua autenticidade. O jornal britânico The Guardian começou a publicar com o maior sucesso os blogs de Salam Pax. Passada a invasão e chegada da ocupação, Salam Pax se revelou parcialmente em entrevista na qual não deu o nome verdadeiro ou se deixou fotografar. O blog foi traduzido para o português pelo escritor gaúcho Daniel Galera. (Nota da IHU On-Line). 10 Refere-se aos atentados terroristas acontecidos em 11 de março de 2004, em Madrid, Espanha. (Nota da IHU On-Line) 11 A organização ecologista Greenpeace registrou 1.137 praias poluídas pela maré negra, causada pelo naufrágio do petroleiro Prestige em novembro de 2003. (Nota da IHU On-Line) 12 Site que aborda diversos aspectos do mundo dos weblogs http://www.technorati.com . (Nota da IHU On-Line) 13 Feedster é um site que redefine a busca na Internet, fornecendo rapidamente a informação desejada, oportuna e significativa aos consumidores. (Nota da IHU On-Line) 14 Content Management System (CMS) é o programa que oferece um sistema de gerenciamento de conteúdo para elaboração e manutenção de páginas na Internet. Cada usuário escolhe o CMS mais conveniente, conforme o caso. (Nota da IHU On-Line) 9
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kis e agregadores15, e o RSS se converterá num formato padrão de distribuição de conteúdos de texto, áudio e vídeo. Creio que os weblogs têm futuro como meio, e que não se trata de uma moda passageira. A democratização do acesso à rede e a universalização de seu alcance fazem parte da filosofia inicial da Internet e da Web. Os weblogs permitem que as promessas da Internet possam converter-se em realidade. Os weblogs e outras ferramentas de software social (como as redes sociais
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virtuais) e de autogestão de conteúdos (como os wikis e os agregadores) estão contribuindo, de maneira decisiva, para a transformação da World Wide Web na World Live Web: a zona mais dinâmica, original, interessante e viva da rede. Nós, usuários da rede, estamos descobrindo que os meios somos nós mesmos.
Wikis e agregadores são ferramentas de conteúdo na Internet assim com os weblogs. Wiki é uma coleção de páginas interligadas, e cada uma delas pode ser visitada e editada por qualquer pessoa. Wiki é, hoje, a forma mais democrática e simples de qualquer pessoa, mesmo sem conhecimentos técnicos, contribuir para os conteúdos de uma página Web, por exemplo, o site da Wikipedia (enciclopédia livre). Agregador é um programa específico que permite que o usuário faça a leitura das informações geradas pelos sites escolhidos por ele. (Nota da IHU On-Line)
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Novas escritas de si: entre o absolutamente público e o extremamente privado Entrevista com Paula Sibilia
Paula Sibilia é argentina, graduada em Antropologia e em Ciências da Comunicação, pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e mestre em Informação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é doutoranda em Saúde Coletiva na UERJ e em Comunicação na UFRJ. A pesquisadora é autora de O homem pós-orgânico: Corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. De Paula Sibilia publicamos uma entrevista na 90ª edição da IHU On-Line, de 1º de março de 2004. A entrevista que segue foi concedida à IHU On-Line, por e-mail, em 13 de junho de 2005.
tremamente privado e o absolutamente público. Como explicar o curioso fato de que as novas modalidades de diários “íntimos” sejam expostas aos milhões de olhos que têm acesso à Internet? Essa exposição pública da intimidade é apenas um detalhe sem importância das novas “escritas de si”, que seriam meras versões renovadas dos antigos diários íntimos? Ou se trata, pelo contrário, de algo radicalmente novo? Essas são as questões que mais me interessaram nestes novos fenômenos, e que nortearam a minha pesquisa. IHU On-Line – Que relações podem ser fei-
tas entre a prática do diário íntimo e dos blogs com a época em que ambos surgiram? Paula Sibilia – Trata-se de duas épocas bem diferentes, com projetos históricos distintos (socioculturais, políticos e econômicos) que estimularam a produção de certos tipos de corpos e subjetividades – tipos bastante diferenciados em cada uma dessas sociedades. Assim, creio que os diários íntimos tradicionais expressam a sensibilidade e certos atributos dos “modos de ser” que foram hegemônicos na modernidade industrial. Por sua vez e de um modo comparável, os blogs confessionais, os fotologs e as webcams de hoje em dia exprimem certas tendências subjetivas tipicamente contemporâneas. Apesar das evidentes semelhanças, cada uma dessas práticas possui sentidos bastante distintos, necessariamente articulados às sociedades que as acolheram e as fizeram crescer. Assim, por exemplo, os diários íntimos do século
IHU On-Line – O que caracteriza as novas
“narrativas do eu” feitas na Internet? Paula Sibilia – Em primeiro lugar, devo frisar que se trata de um fenômeno complexo e bastante recente, essa súbita aparição dos blogs confessionais16 na Internet, além dos fotologs e das câmeras de vídeo que transmitem “cenas da vida privada” dos usuários do mundo inteiro. Portanto, é um novo hábito que ainda está em formação e, como costuma acontecer nestes ambientes, provavelmente já esteja imerso em um processo de veloz mutação. Em meio a toda essa riqueza e diversidade, há um aspecto que chamou especialmente a minha atenção, sobre o qual resolvi me debruçar na minha pesquisa de doutorado (na Escola de Comunicação da UFRJ, iniciada em março de 2003). Esse ponto é o seguinte: a peculiar inscrição destas novas práticas na fronteira entre o ex-
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A antropóloga usa a expressão blogs confessionais para designar os blogs que possuem um estilo próximo ao diário pessoal. (Nota da IHU On-Line)
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
XIX e inícios do XX eram cartas remetidas a si mes-
“ficar bem na foto”. As receitas mais efetivas provêm dos moldes narrativos e estéticos da tradição cinematográfica, televisiva e publicitária, que são apropriados por novos gêneros como os blogs, fotologs e webcams. De forma concomitante a esses processos, aqueles âmbitos tradicionalmente conhecidos como públicos vão se esvaziando e são tomados pelo silêncio. Nesse contexto, as “tiranias da intimidade” denunciadas pelo sociólogo Richard Sennett17 ganham novo fôlego, pois o catálogo de táticas midiáticas e de marketing pessoal não deixa de se renovar e crescer, desorbitando o escopo da antiga esfera íntima e acentuando o já avançado “declínio do homem público”, anunciado por Sennett já em 197418. As antigas definições não emergem ilesas de todos estes processos, pois estão perdendo nitidez as fronteiras que costumavam separar ambos os espaços onde transcorria a existência moderna — a esfera pública e o âmbito privado. Assim, as velhas categorias enfrentam sérios desafios, demandando novas interpretações.
mos pelos seus autores, fundamentalmente secretas e introspectivas, pois pretendiam mergulhar na própria interioridade para desvendar suas obscuras profundezas. Já os “diários íntimos” da Internet, ao contrário, parecem verdadeiras cartas-abertas com vocação exteriorizante, pois tanto seus objetivos como seus sentidos são outros: apontam para a visibilidade e a construção de si diante do olhar alheio. IHU On-Line – Há uma tendência de diversas mídias (muito marcante na TV) e presen-
te também nos blogs de expor “confissões”, ou tornar visíveis aspectos problemáticos ou não, mas sempre bastante íntimos. A que atribui esse fenômeno? Paula Sibilia – Atribuo esse fenômeno a uma mudança na idéia de intimidade, pois creio que esse conceito está atravessando fortes turbulências. Vejamos: o que entendemos por intimidade? Basicamente, a palavra alude àqueles âmbitos da existência que antes eram conhecidos de maneira inequívoca como privados. Entretanto, como você aponta, são vários os indícios de que essa noção estaria se desmanchando, deixando de ser um território onde imperavam (e deviam imperar) o segredo e o pudor. Cada vez mais, ao contrário, essa esfera “íntima” se converte em um palco onde cada um pode (e deve) encenar o show de sua própria personalidade. Assim, os limites do que se pode dizer e do que se pode mostrar vão se alargando, enquanto a esfera da intimidade se exacerba sob a luz de uma visibilidade que se deseja total, pois entende-se que seja precisamente a visibilidade a encarregada de legitimar e até mesmo realizar a própria existência. Assim, a espetacularização da intimidade mais trivial e cotidiana tem se tornado habitual, colocando em prática todo um arsenal de técnicas de estilização da própria personalidade e das experiências vitais para
IHU On-Line – Quem são os usuários de blogs? Poderia ser traçado mais ou menos um perfil da população que escreve seus diários íntimos? Paula Sibilia – De acordo com as pesquisas que tenho realizado, esse perfil é amplo e variado, não muito diferente do perfil médio do usuário da Internet. Em sua maioria, trata-se de pessoas jovens de ambos os sexos; é claro que o fato de terem acesso regular à Internet já delimita um determinado nível socioeconômico e cultural. É interessante destacar a forte incidência do fenômeno no Brasil, o país do mundo que possui mais usuários de fotologs (56 %)19 e do sistema Orkut
Richard Sennett é autor do importante livro A corrosão do caráter. Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999. (Nota da IHU On-Line) 18 Cf. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: Tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (Nota da entrevistada) 19 “Hoje, dia 6 de fevereiro, existiam cerca de 300 mil fotologs, dos quais 170 mil brasileiros, cerca de 56% do total. Em comparação, os fotologs americanos são apenas 20 mil, meros 6%”. Os Brasileiros e Os Fotologs. Tribuna da Imprensa online. Rio de Janeiro,06 fev. 2004. http://www.tribuna.inf.br. (Nota da entrevistada) 17
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(62 %)20, superando amplamente todos os demais. Outro dado interessante é o alto índice de abandono destas práticas, apesar do persistente crescimento, por exemplo, dos 4,12 milhões de blogs criados nos principais serviços de hospedagem do mundo até 2003, 2,72 milhões (ou 66%) estavam praticamente abandonados nessa data, pois não tinham sido atualizados nos últimos dois meses. A média de atualização dos blogs confessionais é de 14 dias. Apenas 106,5 mil são atualizados pelo menos uma vez por semana, e menos de 50 mil fazem-no diariamente. No entanto, os “diários íntimos” da Internet continuam a ser criados com uma velocidade que supera amplamente à do abandono: 3,3 milhões de blogs estariam ativos no final de 2003, enquanto 1,7 milhão foram abandonados no mesmo período. Se, no final de 2000, o total no Planeta não ultrapassava os 135 mil, no início de 2004 já existiam cinco milhões de blogs deste tipo, e um ano mais tarde seriam cerca dez milhões.21
voltadas para a visibilidade, capazes de mostrar na pele (e nas telas) o que cada um é. IHU On-Line – O imperativo da visibilidade,
tão sintomático em reality shows, entre outras tantas expressões, aponta para um certo declínio da interioridade psicológica e da subjetividade? Paula Sibilia – Trata-se de uma transição, que, atualmente, estaria em pleno andamento. É óbvio que ainda persistem, em nossa subjetividade, várias características do modelo moderno, porém novos fatores emergem e colocam-no em questão. Resumindo, poderíamos dizer que a valorização da “vida interior” está perdendo força como o principal eixo em torno do qual as subjetividades são construídas. Cada vez mais, a “verdade” sobre o que cada um é se desloca desse âmago secreto e íntimo, para aflorar na pele, passando a ser exibida na superfície visível do corpo. E, no caso mais específico destes exemplos da Internet, passa a ser escancarada nas telas do mundo. Em vez de demandar e alimentar um olhar introspectivo, estimula-se uma certa “espetacularização do eu” com recursos performáticos. Não é, porém, apenas essa introspecção e a interrogação hermenêutica na própria interioridade que perde vigor; além disso, o olhar retrospectivo também decai nestas novas práticas auto-referentes. Tudo isso pode ser observado em contraste com as formas modernas de registrar a memória do vivido: do diário íntimo à psicanálise, do romance clássico às autobiografias românticas, pois nas novas modalidades dos blogs, fotologs e webcams, o passado também parece estar deixando de ser um alicerce fundamental da subjetividade. Portanto, não é só a profundeza sincrônica do eu que está sendo desafiada (o espaço da “interioridade”), mas também a sua coerência diacrônica (sua ancoragem no tempo “passado”). Embora ainda permaneçam e continuem a sustentar as subjetividades contemporâneas, esses fatores es-
IHU On-Line – Pode-se falar em uma busca
de interioridade, embora seja em um ambiente extremamente público? Ou os blogs têm um efeito contrário de exibir a intimidade sem refletir sobre ela? Paula Sibilia – Eu diria que se trata de outro modelo subjetivo, uma nova modalidade, mais distante daquele paradigma moderno do “homem sentimental” que preservava e cultivava todos os seus segredos íntimos, enquanto construía sua identidade com base em um eixo situado em sua “vida interior”. Em oposição a essas vertentes mais antigas, os novos gêneros autobiográficos que proliferam na Internet sinalizam a emergência de outros modos de ser, formas subjetivas mais “adequadas” ao projeto histórico da nossa sociedade, pois as novas tendências impelem ao abandono dessa subjetividade interiorizada, para desenvolver outras formas de ser: exteriorizadas,
“Os paquistaneses compõem a quarta nacionalidade no sistema, com 2,96% das pessoas; os indianos, tradicionais rivais, são 2,41%. No mais, a ordem continua como está há muito tempo: Brasil (62,09%), EUA (10,86%) e Irã (7,73%)”. DORIA, Pedro. Orkutianas. No Mínimo. Rio de Janeiro, 17/01/2005. http://www.nominimo.com.br. (Nota da entrevistada) 21 “Blogs vivem fase de calmaria, revela pesquisa”. IDG Now!, 26/11/2003. Mais informações em: http://www.perseus. com/blogsurvey. (Nota da entrevistada) 20
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
tão perdendo peso na definição do que cada um é. De acordo com as descobertas da minha pesquisa, as “escritas de si” que germinam na Internet permitem indagar, de maneira privilegiada, essas importantes mutações na definição do que cada um é.
textos íntimos e “privados”, as interioridades dos autores eram pacientemente vertidas, zelosamente cultivadas e pudicamente protegidas. Apesar de seu evidente parentesco com tais práticas, portanto, os blogs, fotologs e webcams que hoje inundam a Internet (bem como os e-mails e os chats que os atravessam e sustentam) assinalam outros processos e inauguram outras tendências, revelando a emergência de novos modos de ser: subjetividades afinadas com uma formação histórica mais distante daqueles tempos. E mais próximas de outras demandas: forças novas que incitam a fazer do próprio eu um show. Como sugeriu o filósofo Gilles Deleuze ao concluir seu famoso ensaio Post-Scriptum sobre as sociedades de controle, redigido em 1990: cabe aos jovens descobrir “a que estão levados a servir”, assim como seus bravos antecessores delataram “não sem esforço” os cruéis mecanismos da sociedade moderna e industrial.22
IHU On-Line – Existe algum outro aspecto
que não foi perguntado e considere importante acrescentar? Paula Sibilia – Gostaria de esclarecer que se trata de questões fortemente políticas. Embora possa não parecer à primeira vista, os modos de subjetivação vigentes, em cada época, expressam determinados projetos históricos. Por isso, devemos entender esta complexa problemática. Parece óbvio que já se foram aqueles tempos que instavam à escrita minuciosa de diários íntimos na solidão do “quarto próprio” e ao estabelecimento de densos diálogos epistolares, alimentados pela distância e pelos ritmos cadenciados de outrora. Nesses
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DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p. 209-26.
(Nota da entrevistada)
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A blogosfera: uma ferramenta essencial para a notícia Entrevista com Marcos Palácios
Marcos Palácios é professor da UFBA. Sociólogo e doutor em Sociologia pela Universidade de Liverpool, Inglaterra, é pós-doutor pela Universidade de Aveiro, Portugal. É autor de Manual de Jornalismo na Internet. Salvador: FACOM/UFBA, 1997; Janelas do Ciberespaço: Comunicação e Cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2001; e Modelos de jornalismo digital. Salvador: Calhandra/Edições GJol, 2003. A entrevista foi concedida à IHU On-Line, por e-mail, em 13 de junho de 2005.
tembro e do 11 de março e outras situações de grande conflito? Marcos Palácios – Mais que uma grande influência nas coberturas, creio que a associação entre os blogs e as situações de guerra e conflito funcionou como um elemento para chamar a atenção de muita gente para a existência de uma blogosfera em rápido crescimento e para as potencialidades de sua utilização jornalística, tanto como ferramenta de apuração, como escoadouro alternativo para informações que, por qualquer razão, não poderia ser incorporada à cobertura oferecida pelos veículos tradicionais. Não devemos nos esquecer também de mencionar que a disseminação dos blogs constitui mais um elemento a contrapor-se à possibilidade de censura, fortalecendo o conceito da Internet como espaço polifônico, descentralizado e, portanto, de controle praticamente impossível.
IHU On-Line – Como os blogs influenciam o
jornalismo tradicional, de cunho mais fordista? Qual pode ser a tendência da informação, com base na criação de blogs de notícias permanentemente atualizados? Marcos Palácios – Creio que os blogs estão influenciando o jornalismo tradicional principalmente de duas maneiras: a) por um lado, os jornalistas estão crescentemente utilizando blogs como fonte de informações, para conseguir pistas e indicações que possam levar a matérias mais ampliadas, ter diversidade de pontos de vista, recolher comentários de outros jornalistas sobre um determinado assunto; b) os blogs começam a ser incorporados (e talvez se possa dizer “domesticados”) no próprio corpo da grande imprensa, como no caso do Newsblog, do The Guardian e dos blogs do jornal O Globo, dentre muitos outros. Essas utilizações são diferenciadas em distintos veículos e vale a pena monitorar que tipos de usos iremos ter daqui para a frente.
IHU On-Line – Como este novo espaço ou
ferramenta altera a concepção de notícia e a forma como as pessoas as produzem e consomem? Marcos Palácios – Os blogs são uma forma diferente de consumir informação, seja ela jornalística, seja de outro tipo. Afinal, a grande maioria dos blogs não pode ser classificada como “jornalística”. Há blogs de todos os tipos e sobre todos os assuntos (eles replicam a variedade que observamos nas Listas de Discussão). Sendo assim, é certo que existe um consumo direto de notícias produzidas e veiculadas em blogs, mas há também (e talvez principalmente) a crescente consciência por parte dos jornalistas de que a blogosfera é uma ferramenta essencial para seu trabalho cotidiano de mineração de notícias, apuração, investigação etc.
IHU On-Line – Qual foi a real influência dos
weblogs durante a cobertura de guerras como a do Iraque, dos ataques do 11 de se17
Blog e literatura Entrevista com Daniel Galera
Daniel Galera é escritor gaúcho, formado em Publicidade e Propaganda pela UFRGS. Já trabalhou como webdesigner, produtor de sites e vídeo digital, e foi redator nas editorias de Cinema e sites de um guia cultural semanal. É um dos idealizadores do selo editorial Livros do Mal (www.livrosdomal.org), em parceria com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Foi colunista do mail-zine Cardosonline desde sua criação, em outubro de 1998, até sua extinção, em setembro de 2001. É também músico na banda Blanched. Tem um blog, também intitulado Rancho Carne (http://www.insanus.org/ranchocarne/). Entre suas obras publicadas, destacamos: Até o dia em que o cão morreu. Porto Alegre: Livros do Mal, 2003; Dentes Guardados. Porto Alegre: Livros do Mal, 2001; Manuale per investire i cani e altri racconti. Itália: Arcana, 2004. Publicou também contos em livros e revistas e traduziu diversos livros, entre outros o primeiro weblog impresso O blog de Bagdá [The Bagdah Blog], de Salam Pax. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. A entrevista foi concedida à IHU On-Line, por e-mail, em 13 de junho de 2005.
a qualquer usuário de computador. Com sua popularização, o blog passou a ser usado principalmente como espaço de diário íntimo ou público, como meio de divulgação de textos diversos e como veículo de jornalismo, crônica e comentário da realidade. Além disso, os blogs tornaram-se mais espaço de criação de comunidades virtuais de diversos tipos. Como toda a ferramenta, ele serve para suprir a necessidade do usuário, e pode ter infinitas funções. Não creio que os blogs tenham afetado significativamente a língua ou a literatura, a não ser como meio extremamente eficiente para divulgação de textos e manutenção de relações pessoais via Web. IHU On-Line – O que levou o senhor a tradu-
zir o Blog de Bagdá? Qual é a importância da obra? Daniel Galera – O convite para a tradução do Blog de Bagdá veio da editora Companhia das Letras. Aceitei, porque, além de ser um documento interessante sobre o cotidiano do Iraque durante a guerra, foi um dos primeiros blogs a tornar-se fenômeno mundial, e provavelmente o primeiro a ter a íntegra de seu conteúdo editado e publicado em livro, numa iniciativa do jornal britânico The Guardian.
IHU On-Line – Qual é sua visão sobre os blogs? Qual a relevância que eles têm em uma época de globalização? Como eles afetam a língua e a literatura? Daniel Galera – O blog é uma das diversas ferramentas amigáveis que surgiram para tornar mais fácil e genérico o uso da Internet. Antes dos blogs, era necessário ter conhecimentos de HTML e um espaço em algum servidor para publicar uma página na Internet. O blog tornou a manutenção de um site simples na web uma tarefa banal, acessível
IHU On-Line – A partir dessa experiência,
como o senhor avalia o papel dos blogs durante a guerra? Daniel Galera – Os blogs não tiveram nenhum papel especial durante a guerra, a meu ver. O papel deles foi o mesmo que existe em relação a qualquer outra coisa: espaço sem custo e de fácil uso para que qualquer indivíduo publique o que
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
quiser. Durante a guerra do Iraque, surgiram blogs mantidos por soldados, jornalistas e até mesmo habitantes do Iraque, como foi o caso do Salam Pax, autor do Blog de Bagdá. Eram fontes diretas de informação, mas fontes de caráter subjetivo, nem sempre jornalísticas, e sim individuais.
Daniel Galera – O potencial é grande. Não é por acaso que a grande maioria dos escritores da geração mais recente mantém um blog, que pode ser porta de entrada para apresentar uma obra, um espaço para comentar e debater literatura ou simplesmente um meio para manter contato com outros autores e com amigos, divulgando o próprio trabalho. O blog é um espaço que se soma aos já existentes.
IHU On-Line – Qual é o potencial que eles
têm em contextos de pouco acesso às mídias, às editoras etc.?
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Todo o mundo tem uma história para contar Entrevista com Rebecca Blood
Internacionalmente conhecida como conferencista, escritora e blogger, Rebecca Blood é autora do livro The Weblog Handbook, que foi chamado de o Strunk & White dos livros sobre blogging. Ele foi escolhido pela Amazon como um dos 10 melhores livros sobre cultura digital em 2002 e traduzido para quatro idiomas. O weblog dela, Rebecca’s Pocket, está incluído no ranking dos 150 melhores da Technorati, escolhidos entre 10 milhões de weblogs rastreados. Além de seu livro, Rebecca Blood escreveu vários ensaios sobre a teoria e a prática de weblogs. Ela foi convidada a escrever para as revistas acadêmicas The Nieman Reports e Communications da ACM. Em 2003, foi conferencista na Blogtalk, a primeira conferência mundial sobre weblogs, e, em 2005, foi uma das palestrantes da Blogtalk Downunder. A entrevista, a seguir, foi concedida à IHU On-Line, por e-mail, em 13 de junho de 2005.
IHU On-Line – O que a senhora escreve no
seu blog? O que as pessoas lhe escrevem? Rebecca Blood – Eu sempre digo que escrevo para um público composto de uma pessoa: eu. Faço referência às notícias que acho interessantes, mas que meus leitores e leitoras, ocupados demais para fazer mais do que dar uma olhada na primeira página, podem não ter percebido. As notas que recebo de meus leitores e leitoras, às vezes, acrescentam informações a uma notícia a que eu fiz referência, às vezes, discordam atenciosamente das opiniões que expressei e, às vezes, me indicam um artigo de jornal ou uma organização pela qual acham que eu teria interesse. IHU On-Line – Nos blogs e, na Internet em
geral, há uma tendência a esconder a própria identidade, mas, ao mesmo tempo, a expor a vida pessoal. Que tipo de identidade está surgindo nesse território virtual? Rebecca Blood – Acho que as identidades on-line são bastante semelhantes às identidades do cotidiano. É verdade que as pessoas podem postar seus pensamentos anonimamente, mas cada blogger tem um lugar identificável na Internet. Se mantiver esse lugar, cada blogger vai acumular fragmentos de seus interesses em seu espaço e, mesmo que nunca poste nenhum detalhe pessoal, é fácil perceber em que ele ou ela está interessado e como sua mente funciona. Além disso, depois que um/uma blogger desenvolveu um público e um lugar na comunidade, há uma inclinação natural a querer proteger seu capital social. A Internet certamente permite que as pessoas enganem outras em relação à sua verdadeira identida-
IHU On-Line – Qual é a principal razão para
ter um weblog? Rebecca Blood – Todo o mundo, tanto pessoas jovens quanto velhas, tem uma história para contar. Os seres humanos vêm contando histórias uns aos outros e compartilhando informações desde que existem. Isso costumava acontecer ao redor da fogueira do acampamento, depois no mercado, depois no escritório. Algumas pessoas querem falar sobre o que está acontecendo a elas atualmente; outras, sobre seu jardim; algumas querem falar sobre sua família, e outras, sobre o filme que viram ontem à noite. Tudo o que o blogging faz é transplantar essa atividade humana extremamente básica para a Internet.
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de e seus verdadeiros motivos – mas a mesma coisa acontece na vida diária.
Rebecca Blood – Penso – e isso se aplica a pessoas de todas as idades – que o blogging tende a tornar as pessoas mais conscientes de suas próprias opiniões e a ter mais confiança em seu ponto de vista. E certamente escrever todo dia é a melhor forma de se tornar uma escritora melhor.
IHU On-Line – Nos weblogs, os jovens po-
dem aprender sobre liberdade de expressão, responsabilidade editorial e debate. Como esses aprendizados influenciam em outros aspectos de suas vidas?
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Blogmaratona: solidariedade na blogosfera Entrevista com José Javier Dominguez
José Javier Domínguez é estudante do 4º ano de jornalismo na Universidade Cardenal Herrera-CEU, é espanhol de Valência e criador, promotor e coordenador do projeto “Blogomaratona Solidária”, que consiste em animar os bloggers para que usem suas páginas na Internet ao menos dois dias ao ano para lembrar situações de injustiça e para que motivem as pessoas à ajuda, fazendo a soma das contribuições gerar grande repercussão na opinião pública. Dominguez é também redator do blog do projeto (http://blogomaraton.blogia.com). Ele concedeu a entrevista a seguir, à IHU On-Line, por e-mail, em 13 de junho de 2005.
que, como todas as boas idéias (e acredito que esta é uma delas), surgiu por uma soma de casualidades e das reflexões. A compreensão do potencial dos blogs para trazer assuntos novos ao debate público e para canalizar iniciativas da ação conjunta, o desejo de adaptar as clássicas telemaratonas aos novos meios, e, especialmente, o desejo de fazer algo original, mas eficaz por aqueles que mais sofrem. Queria ajudar a mudar este mundo, usando os braços das novas tecnologias da comunicação. Seria um desperdício e uma ofensa aos esquecidos não fazê-lo. Sou estudante de jornalismo e acredito que nossa profissão tem uma responsabilidade social importante para fazer mais justo e habitável o nosso planeta.
IHU On-Line – Como surgiu sua relação
com os blogs e, posteriormente, a idéia da Blogmaratona? José Javier Dominguez – Minha relação com blogs surgiu há mais de um ano, em uma mesa-redonda em minha universidade, com o famoso blogger espanhol, David de Ugarte, e o então diretor de Periodista Digital, David Rojo. Até esse momento, embora o mundo do ciberjornalismo chamasse poderosamente minha atenção, não tinha escutado falar dessa revolucionária forma de comunicação que são os blogs. Logo comecei a navegar por eles, para lê-los, para escrever comentários e, aos poucos fui me engajando a um mundo que eu considero apaixonante, até que depois de diversas tentativas que não duraram, decidi criar meu próprio blog: (http://teotieneungalgo.acelblog.com). Perguntam-me freqüentemente como surgiu a idéia da Blogmaratona e, sinceramente, não posso definir com clareza os motivos que me levaram a criá-la. Eu suponho
IHU On-Line – Como é, na prática, “usar os
blogs para transformar o mundo”? Que potencial de transformar o mundo existe nestes novos meios de comunicação? José Javier Dominguez – Talvez soa um pouco grandiloqüente esse transformar o mundo, usando os blogs, porque é verdade que, para que mude o mundo, é necessário que mudem outras coisas: um compromisso político e moral dos cidadãos e dos governos, um esforço muito complexo e uma revolução global das consciências. Acredito, porém, que todos esses objetivos só podem ser atingidos se cada pessoa individualmente se conscientiza da situação da miséria e do sofrimento de que muitos seres humanos padecem, e assumem sua responsabilidade. É nesse sentido que os blogs podem realizar um trabalho determinante. Os blogs supõem que uma capacidade de emitir informação e opinião não está restringida unica-
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
mente a uma minoria de jornalistas e meios de comunicação que, muitas vezes, estão condicionados por pressões ou interesses econômicos ou políticos que impedem que os assuntos solidários obtenham a cobertura que merecem. Graças aos blogs, qualquer pessoa pode transformar-se em um comunicador: falar o que quiser sobre o assunto que quiser. Com uma audiência e influência menor que, em meios tradicionais de massas, mas com uma relação muito mais estreita com seus leitores. A Blogmaratona Solidária consiste em animar os bloggers para que usem ao menos dois dias do ano esse pequeno poder comunicativo do qual dispõem para lembrar situações de injustiça e para que exortem as pessoas à ajuda. Ao agir conjuntamente, a soma daquelas pequenas contribuições transforma-se em um projeto de grande porte que gera grande eco na opinião pública.
ram a idéia como algo próprio, e isso pode ser percebido nos weblogs, nos quais assistimos a um festival de talento. Além disso, houve uma grande variedade de assuntos tratados e uma amostra das diferentes formas de focar a entrega solidária. Pessoas sem lar, o drama africano, a exploração sexual, as dificuldades dos deficientes, o drama humanitário da África, o maltrato doméstico etc... Falou-se sobre tudo. Essa é uma das características mais identificadoras do projeto: o caráter plural e aberto. Cada um falou do tema que mais o preocupava ou sentia mais próximo; cada um utilizou a linguagem e os recursos que mais se adaptavam ao seu blog, e apresentou a ONG pela que sentia mais confiança. Pessoas de ideologias, culturas e interesses muito diferentes (e em ocasiões contrapostas) conseguiram se unir com o denominador comum da boa vontade por uma causa justa. Nesses tempos, nos quais tantos se empenham em destacar o que nos separa, não é demais dar ênfase àquilo que nos une.
IHU On-Line – Quais são os resultados que
considera mais importantes em relação à Blogmaratona Solidária? Poderia relatar a última de maio de 2005? José Javier Dominguez – A Blogmaratona de 10 de maio de 2005, segunda que celebramos, foi um sucesso que transbordou as previsões mais otimistas. Participaram mais de 140 blogs (muitos deles com vários artigos). Tivemos milhares de leitores, numerosos comentários, uma importante repercussão nos meios de comunicação, e uns vinte posts em um blog, criado expressamente para aqueles que não possuem um, poderem também participar. O mais importante, porém, não são essas cifras espetaculares, e sim as histórias e entrega pessoal que há por trás de cada participação. É difícil fazer um balanço de resultados concretos, mas eu me sinto satisfeito com que uma pessoa, só uma, se decidisse a ajudar os outros graças ao lido e pensado na Blogmaratona. Uma mudança de vida tem um valor imenso. Foi surpreendente a qualidade dos artigos, a criatividade demonstrada. As pessoas se esforçaram e assumi-
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IHU On-Line – A Blogmaratona é definida
como um espaço para denunciar injustiças, contar desigualdades, e também propor soluções. Quais as soluções mais criativas que apareceram? José Javier Dominguez – Todas foram criativas, porque serviram para criar esperança e vontade de ajudar. Cito o pedido de La Libreta, procurando 1000 famílias solidárias para que crianças saharauis passem o verão na Espanha; A informação de TIC Madrid sobre as webquests solidárias, umas atividades didáticas de pesquisa pela Internet; os recursos de jornalismo e solidariedade que se ofereciam em La Broma; ou o projeto de comércio justo de café com Nicarágua23 do Cuaderno del Profesor. De todas as formas, a melhor maneira de dar-se conta da quantidade de soluções e informações, é visitar a página oficial da Blogmaratona (http://blogomaraton.blogia.com) onde estão “linkados” todos os participantes. Fo-
ESPANICA (http://www.nodo50.org/espanica) é a organização de Comércio Justo que distribui na Espanha o café produzido na
Nicarágua pelos pequenos produtores associados em cooperativas de trabalhadores que são donos das terras que cultivam e que participam de um projeto de mudança das estruturas que regem o comércio internacional. (Nota da IHU On-Line)
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
ram 24 horas inesquecíveis, demonstrou-se a força da blogosfera e sua capacidade para a mobilização. Mas... E agora? Eu acho que além de esperar a próxima convocatória, no dia 21 de dezembro, há que aproveitar a rede de pessoas com vo-
cação e formação para a solidariedade que criamos. Necessitamos das idéias de todos para melhorar o projeto e exprimi-lo ao máximo.
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Blogs, Flogs, MSN, Orkut, Chats: a emergência da cybercultura traz uma nova forma de pensar Entrevista com Karla Schuck Saraiva
Karla Schuck Saraiva é professora da Unidade Acadêmica de Ciências Exatas e Tecnológicas da Unisinos. Karla é graduada e mestre em Engenharia Civil pela UFRGS e doutoranda em Educação na mesma universidade, elaborando a tese Outros Tempos, Outros Espaços: Internet e Educação. Ela concedeu entrevista, por telefone, à IHU On-Line, que foi publicada nas Notícias Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu, em 10 de novembro de 2006. Ao falar da Internet, a professora afirma que “estamos vivendo de uma maneira muito incipiente um fenômeno que vai ser muito profundo”.
ele se comporta e entenda o mundo sem conhecer o que acontece dentro desse universo virtual, que é o cyberespaço. IHU On-Line – Quais as principais relações
entre juventude e Internet? Karla Saraiva – Primeiro, eu gostaria de frisar que não existe uma juventude, mas juventudes. É uma juventude específica que usa a Internet e é relativamente pequeno o número de jovens que tem acesso a ela. Esse número até se amplia se pensarmos que, nas escolas públicas ou nos centros comunitários, eles têm acesso, mas é ainda uma parcela pequena. A relação entre esses jovens que usam intensamente a Internet, na sua casa, é uma relação completamente nova, que não podemos comparar com nada. Às vezes, algumas pessoas vêem uma demonização no uso da Internet, dizendo que o jovem está ficando viciado, não sai mais de casa, não lê. Isso é uma má compreensão do que está acontecendo.
IHU On-Line – Qual a importância de pro-
porcionar aos professores de ensino fundamental e médio uma melhor compreensão sobre a realidade por onde os jovens da atualidade transitam? Karla Saraiva – Os jovens, ao utilizarem a Internet em suas múltiplas ferramentas de comunicação, como o MSN, o orkut, os blogs, os chats, estão vivendo uma experiência que os professores que não costumam transitar por esses espaços não conhecem. Esses jovens têm uma outra percepção de mundo e da realidade que está, de uma certa maneira, fazendo esses professores se afastarem deles. São universos paralelos, trazendo até certa dificuldade de conversa entre eles. Aquele jovem de classe média, que tem um computador em casa, e que passa muitas horas na frente dessa máquina, às vezes tem banda larga e fica muito tempo lá, vive em um universo virtual que acaba assumindo uma importância enorme na sua vida. Fica difícil para uma pessoa compreender como
A ponta do iceberg de uma transformação social Estamos em uma fase transitória da cultura. Eu entendo que esse não é um fenômeno passageiro. Estamos recém-vendo a ponta do iceberg de uma transformação social muito grande que está acontecendo. Há um autor chamado Pierre Lévy, que diz que a transformação social que a Internet vai trazer talvez seja mais profunda que aquela trazida pela escrita à história da humanidade. Estamos vivendo de uma maneira muito inci25
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piente um fenômeno que vai ser muito profundo. Não há como dimensionar o que vai acontecer. Pensar que existe uma relação perversa entre o jovem e a Internet é não compreender esse fenômeno. Existem formas perversas de uso dessa ferramenta, assim como existem formas perversas de relacionamento no mundo presencial. Isso não quer dizer que é preciso pensar a Internet desse modo maléfico como muitas vezes isso é representado.
nesse caso, ainda notamos que há bastante gurizada comunicando-se por meio deles. IHU On-Line – O que é mais comum entre os
jovens nas salas de chats? Qual o assunto que mais aparece? Karla Saraiva – Depende muito da sala. Temos salas dividas por idade, por regiões, por escola. Tem salas de jogos, para quem gosta de jogar RPG e outros jogos que os jovens usam. Quando entramos nessas salas de jogos, é muito interessante. Não se consegue entender quase nada que eles falam, porque é uma linguagem muito peculiar àquele jogo. Quando entramos numa sala de chat de uma determinada escola, participam dela basicamente pessoas que são daquela instituição. É uma comunidade de pessoas que normalmente se conhecem presencialmente. Por exemplo, em uma sala referente ao Colégio Anchieta, encontramos basicamente jovens do Colégio Anchieta que se conhecem entre si. As conversas tratam de temas mais do cotidiano, comentários de coisas da própria escola.
IHU On-Line – Qual seria o perfil dessa ju-
ventude que usa intensamente a Internet? Karla Saraiva – O jovem que usa a Internet hoje é de classe média para alta, e está mais concentrado nas zonas urbanas, porque tem mais facilidade de acesso à tecnologia. Se pegarmos as áreas rurais, mais afastadas, mesmo pessoas com bom poder aquisitivo não conseguem ter, por exemplo, uma banda larga, porque ela ainda não chegou a esses lugares. IHU On-Line – Quais as principais ferramentas de comunicação utilizadas pelos jovens de hoje? Karla Saraiva – Por incrível que pareça, a Internet tem dez anos e já temos fases nesse período. Hoje, os jovens estão usando muito o orkut, que é um site de relacionamento, um dos mais utilizados no Brasil. Existem outros sites semelhantes, mas eles não alcançaram a mesma dimensão. O orkut é um fenômeno no Brasil. É um site criado nos Estados Unidos, mas de 70 a 80% das pessoas que estão lá hoje são brasileiras. Outra ferramenta que tem sido muito utilizada pela juventude é o MSN, usado para a transmissão de mensagens instantâneas. Os blogs e flogs, esses diários virtuais e álbuns de fotografia virtuais também são muito fortes na comunicação. E ainda existe a utilização dos chamados chats, nas suas variantes, que são salas de bate-papo. Isso já foi mais forte no final da década de 1990 e começo dos anos 2000, quando era uma das únicas ferramentas de comunicação à distância que tínhamos dentro da Internet. Mas ainda há muita gente comunicando-se pelos chats. Quando entramos nessas salas dos portais UOL e Terra, que são os mais utilizados
O “reservado” e as brigas Há as salas de namoro, onde obviamente o tema principal é o namoro. Só que, muitas vezes, não conseguimos saber como isso aparece, porque existe o recurso do “reservado”. Quando as pessoas querem falar privativamente, sem que os outros saibam o que está sendo falado, eles usam o recurso chamado reservado, onde só duas pessoas conseguem ler as mensagens uma da outra. Deve-se imaginar que as pessoas do reservado numa sala de namoro, provavelmente estejam trocando mensagens de caráter mais romântico, talvez até de caráter sexual. Claro que até numa sala de namoro existe muita briga. Os jovens se xingam muito nos chats. Por exemplo, em uma sala de música vemos muito xingamento. Vão aparecer jovens com diferentes gostos musicais. Aparece o choque do pagodeiro com aquele que gosta de heavy metal. É interessante compreender esses mecanismos que vão se desenvolver nessas salas e os tipos de linguagens que se manifestam.
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IHU On-Line – Como se caracteriza a lin-
IHU On-Line – E o MSN? Qual a particulari-
guagem internáutica? Karla Saraiva – A imprensa vem comentando muito esse aspecto, dizendo que o jovem não sabe mais escrever, porque ele escreve naquela linguagem da Internet, o “internetês”. Eu quero desmistificar um pouco isso. Não vejo dessa maneira. É uma outra linguagem, quase que uma segunda língua. Se as pessoas conseguem escrever em inglês e em português, por que não podem escrever em uma língua da Internet e escrever em português também? É completamente possível. Eles não vão desaprender. Cabe à escola, inclusive, trabalhar com essa “segunda língua”, para poder marcar em que espaços discursivos eles vão poder usar essa linguagem mais informal e em que discursos eles terão que trabalhar com uma linguagem do português culto, como o temos na academia, por exemplo.
dade dele? Para que ele é mais usado? Karla Saraiva – O MSN é uma ferramenta mais pessoal. Ele serve para se comunicar principalmente com pessoas que já conhecemos. Até podemos buscar amigos, que não conhecemos, no MSN. Mas o mais comum é ter um catálogo com endereços de amigos e comunicar-se com essas pessoas. Na maioria das vezes, é uma comunicação entre duas pessoas, ainda que se possam convidar outras pessoas para entrar na conversa. É como se fosse um telefone, onde estabelecemos uma ligação, que é feita pelo endereço da pessoa com quem se quer falar, e trocamos mensagens instantâneas com ela. A diferença em relação ao chat é que não são salas abertas. No chat vamos entrando, tem um endereço geral, as pessoas vão se encontrando, sem muitas vezes saber quem está ali.
IHU On-Line – Podemos nomear também
IHU On-Line – Quais os principais tópicos
como linguagem virtual? Quais as diferenças? Karla Saraiva – O nome virtual muitas vezes dá a idéia de uma coisa que não é real. O virtual não é o oposto do real. É aquilo que não está presente na sua materialidade, mas que tem uma existência concreta. É uma faceta do real. A linguagem virtual é real, ela existe, tem uma materialidade que não pode ser negada. A idéia básica dessa linguagem da Internet é que é resumida e tenta imitar a fala. É justamente a transição da oralidade para a escrita. O chat é isto: uma conversa escrita. E essa linguagem é híbrida, tem elementos da linguagem da fala e da linguagem escrita. Ela tenta ser reduzida, para dar rapidez ao internauta. Quando estamos em uma sala de chat, não podemos demorar para escrever, senão perdemos o interlocutor. Temos que teclar com a maior velocidade possível, comer letras, resumir, tornar aquilo mais sintético. Na medida em que os internautas forem descobrindo que essa transformação da linguagem era uma grande brincadeira, ela vai recebendo um caráter muito lúdico. Vemos expressões para significar alegria, raiva, tristeza, tudo como uma brincadeira entre os fonemas e o som. Isso não acontece só no Brasil. Se pegarmos chats na França, na Espanha, em Portugal, nos EUA, veremos que o fenômeno é o mesmo.
na discussão sobre os usos do orkut pelos jovens? Karla Saraiva – O orkut é uma ferramenta sobre a qual ainda não se tem uma produção acadêmica muito acentuada. É interessante, porém, pensar nas comunidades que a pessoa anexa em seu perfil. Eu entendo as comunidades que alguém escolhe como uma constituição da identidade. Muitas vezes, as pessoas nem entram nas comunidades e nos seus fóruns. Há jovens que têm mais de 50 comunidades cadastradas no seu perfil. É impossível que fiquem monitorando todas elas, mas eles mantêm aquilo por identificação. Eles querem que as pessoas saibam que eles se identificam com o tópico daquela comunidade. Então, as comunidades cumprem um papel que vai além do fórum de discussão. Elas são marcadores de identidade na Internet. IHU On-Line – O que é cyberbulling?
Karla Saraiva – Essa é uma idéia que preocupa muito os professores. O Sinpro (Sindicato dos Professores) publicou na edição de março do jornal Extra Classe uma matéria sobre a questão do cyberbulling. Bulling é o assédio moral das crianças na escola, umas em relação às outras e em relação ao professor. O cyberbulling é o bulling por meio 27
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da Internet, principalmente pelo orkut. O que preocupa os professores são essas comunidades feitas para “detoná-los”. Por exemplo: “Eu odeio a professora fulana, do colégio tal”, ou “meus professores são todos uns ruins”, para não usar palavras de baixo calão, que são típicas nesses casos.
A escola terá que, num determinado momento, ficar mais junto dessa cultura juvenil.
Cultura é o cotidiano É uma nova forma de cultura. A cultura não são só os clássicos, aquilo que nós consideramos e que é dado na escola. A cultura é tudo o que vivenciamos no cotidiano. Essa cultura juvenil vai ter que ser inserida na escola. Quanto antes começarmos a pensar nisso, talvez mais próximos consigamos ficar dos jovens e talvez eles consigam ter outra visão da escola, e nós outra visão deles. Muitas vezes, os professores acham que esses jovens são alienígenas, de outros planetas. E talvez para os jovens o alienígena seja o professor. E talvez o alienígena seja mesmo o professor, porque o mundo vai na direção em que esses jovens estão trabalhando. A emergência da cybercultura que presenciamos parece ser o início de uma nova época, de uma nova forma de pensar.
IHU On-Line – O que é importante discutir
sobre as possibilidades de uso na escola de blogs e flogs pelos jovens? Karla Saraiva – Para construir esse curso, tomei um viés que vai na contramão de muitas coisas que tenho visto. Essa pergunta será a discussão final do curso. Não tenho intenção, nesse momento, de trazer nenhuma prescrição ao professor. O objetivo não é fazer uma apropriação pedagógica das ferramentas da Internet, mas fazer o professor compreender uma realidade da juventude. Nesse caso, a ferramenta passa quase a ser um acessório. Na medida em que os professores forem compreendendo o funcionamento dessas ferramentas para além da tecnologia, e o funcionamento social dessas ferramentas entre os jovens, eles próprios vão começar a criar seus próprios usos, a pensar de que maneira aquilo pode ir para a sala de aula. Muitas vezes, nem precisa de um computador. Basta pedir para os jovens trazerem de dentro do orkut determinados materiais e pesquisas. Tentar pensar o que cada um pode fazer dentro da sua especificidade.
IHU On-Line – Quais as conseqüências de
uma sociedade formada por jovens que se utilizam mais de relacionamentos virtuais? O que pode explicar esse fenômeno? Karla Saraiva – Tenho a impressão intuitiva de que será tudo tão diferente daqui a 30, 40 anos do que vivenciamos hoje, que ainda não temos condições de falar com propriedade desse fenômeno. Não sei bem para onde vamos. Só sei que vamos, e muito rápido. O porquê das relações virtuais crescerem dessa maneira talvez se explique pela forma de relacionamento nos centros urbanos. Nas pequenas cidades do interior, isso ainda não bate. Mesmo com a Internet, o relacionamento com as pessoas da localidade ainda é muito forte. Essa noção de comunidade física, geograficamente próxima, vem se esgarçando, enfraquecendo há algumas décadas. Cada vez menos, temos o convívio urbano, entre os vizinhos, entre as pessoas próximas. As pessoas estão muito isoladas umas das outras nas áreas urbanas. Isso é bom por um lado, e não tão bom, por outro.
É difícil agüentar a escola hoje É importante que os professores pensem o que podem fazer para renovar a sua sala de aula, entendendo que o jovem é diferente do que nós fomos na idade deles, para que a escola comece a aproximar-se dessa realidade. Se pensarmos que esse jovem sai da escola, vai para casa, liga a televisão, fala no celular, tecla no MSN, e ainda faz a tarefa escolar, tudo ao mesmo tempo, é muito difícil imaginar que ele vai ficar numa sala, fazendo uma única tarefa de cada vez, pacientemente. É muito difícil agüentar a escola do jeito que ela está hoje. E ela não poderá ficar assim muito tempo. Essas questões vêm para ficar e estão começando.
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Perdas e ganhos
Uma comunicação volátil
Isso vem proporcionando uma maior liberdade para as pessoas, e esse é um lado benéfico. Só se fala das perdas, mas precisamos falar dos ganhos. Dentro de uma pequena comunidade, a maneira de cada um ser a agir tem que ser muito mais normalizada e igual a dos seus próximos. Todo mundo sabe disso. Qualquer coisa que se faça em uma pequena cidade que não seja tão convencional, todo mundo comenta. Na cidade maior, temos muito mais liberdade de inventar outras identidades e modos de vida. Vivemos a perda. Não temos mais a comunidade sempre próxima, aquelas pessoas com quem contávamos em qualquer circunstância. De uma determinada maneira, esse relacionamento pela Internet, essas comunicações, vêm suprir um pouco dessa necessidade que temos de comunicação, de ter alguém próximo, ainda que seja por outro meio completamente diferente.
Assim como nos comunicamos com alguém pela Internet, podemos, se quisermos, cessar essa comunicação. Na hora em que estiver incomodando-nos, constrangendo-nos, saímos da ferramenta, e pronto, desconectamo-nos. No caso do chat, podemos até voltar com outro nome (outro nick), e começar a conversar com outra pessoa, sobre outro assunto, sem nenhum problema. É um tipo diferente de comunicação, que é muito mais volátil, que permite que nos evadamos na hora em que quisermos. O outro não é mais um constrangimento. Ele só serve para mim enquanto atingir aos meus propósitos. É uma comunicação muito afinada com o individualismo exacerbado que temos na contemporaneidade.
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“É hora de repensar os cursos de comunicação” Entrevista com Pedro Doria
Pedro Doria estudou Jornalismo na UFRJ, escreve no site no mínimo (www.nominimo.com.br) e é colunista da Revista da Folha de S. Paulo. Publicou, em 1995, o Manual para a Internet. Rio de Janeiro: Revan, 1995, primeiro livro brasileiro sobre a rede. A entrevista foi concedida à IHU On-Line por e-mail, em 13 de junho de 2005.
Pedro Doria – A diferença é o retorno do leitor. O leitor está muito mais presente, instantaneamente, comentando, discordando, apontando erros. Muitas vezes, ele está errado. Outras tantas, está certo. Jornalistas têm de descer do pedestal. IHU On-Line – O seu blog é um dos mais
atualizados e lidos, permitindo seus próprios comentários e os comentários de quem o acessa, rompendo com o “mito” da neutralidade jornalística. O senhor imaginava que seu blog iria tomar essas dimensões? Que comentários (na rede ou fora dela) recebe de pessoas que fazem parte da grande imprensa? Pedro Doria – Vamos por partes: mito da neutralidade jornalística. Eu prefiro o termo isenção. E não acho que é um mito. Ou somos honestos ao relatar os fatos, ou não somos. A notícia é um relatar de fatos, e relatamos todos aqueles que conhecemos. Isso é isenção. A profissão vive disso, não é um mito, é honestidade. Por vezes, não conhecíamos todos os fatos e, mais adiante, ganhamos ciência de outros. Aí corrigimos, complementa. Existe outro campo no jornalismo que é a análise. Passamos o dia analisando fatos, notícias, pontos de vista. Em um determinado momento, começamos a entender mais ou menos como as coisas funcionam. Aí, tentamos oferecer ao leitor algum contexto – não apenas fatos crus, mas outras informações e argumentos que possam ajudar a fazê-lo entender o que se passa. Neste momento, estamos seguindo um raciocínio próprio. Nossa obrigação é ser honesto: relatar o que conhece, deixar claro quais os caminhos para conclusões. Alguns leitores concordarão, outros não. Alguns
IHU On-Line – Como surgiu a idéia de fazer
um blog de notícias? Pedro Doria – Não surgiu. Foi apenas a coisa natural a fazer. O weblog do no mínimo tem um bocado a ver com a coluna que assinei em NO, uma coluna que herdei do Arthur Dapieve. A coluna se chamava O que há e, todos os dias da semana, apresentava comentários sobre artigos publicados na rede. A diferença do weblog é que ele não é uma coluna que sai pronta, com várias notas: os posts vão surgindo ao longo do dia, mas o weblog é também um blog fiel ao termo. Weblog quer dizer um daily log, o diário de bordo dos capitães de navio, em que o dia-a-dia da navegação era narrado. As grandes descobertas dos séculos XV e XVI foram contadas nestes diários de navegação, muito mais valiosos e precisos por suas indicações, na época, do que quaisquer mapas que existissem. Weblog é um diário de navegação na Web, os links visitados no dia são acrescidos de comentários. O sentido original da palavra talvez tenha se perdido, mas assim nasceram os blogs. E é isso que faço. IHU On-Line – Com base em sua experiên-
cia no jornalismo, que mudanças pode constatar entre o fazer jornalístico de décadas anteriores e o atual?
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leitores são pessoas que entendem mais do assunto do que nós, outros não. Nosso trabalho é ajudar a pensar, ajudar a compreender o que está acontecendo no mundo. Podemos estar errados, aí é o momento de retomar o assunto e retocar nosso ponto de vista. A isenção está na honestidade a cada momento. Se eu imaginava que meu blog iria tomar essas dimensões? Na verdade, nunca pensei nisso. Se eu fizesse o mesmo blog, no meu tempo livre, por conta própria, ele seria tão conhecido quanto é? Não sei. Parte de sua importância tem a ver com ser o blog da nomínimo, uma revista eletrônica com muitos jornalistas conceituados e veteranos. O que tento fazer é uma leitura diária agradável, curiosa, informativa. É meu único objetivo. Não costumo ouvir muitos comentários a respeito do blog na grande imprensa. Ouço mais sobre minhas colunas e reportagens publicadas no mesmo site. O que é natural. São poucos os jornalistas que têm o hábito de ler blogs. Jornalistas têm de ler muitas coisas e conversar com muita gente. Ler texto corrido é hábito, blog ainda é coisa nova. Virá com o tempo. Mas, quando ouço comentários, sempre fico feliz. A turma gosta. E reconhecimento dos pares é a melhor coisa do mundo. Claro que sempre se pode dizer que os comentários que não surgem são os críticos, mas como saber?
fontes que consulta? Já cometeu algum erro grave? E algum furo inesquecível? Pedro Doria – A rotina é acessar minha startpage e clicar nos links meio que aleatoriamente. A startpage – http://homepage.mac.com/pdoria/weblog/ – é onde listo minhas principais fontes de consulta. Às vezes, estou particularmente interessado em alguma zona especial do Planeta, noutras me sinto livre para viajar por onde for. O desafio é conseguir distanciar-me dos assuntos que me interessam, mas raramente consigo. Erro grave? Nenhum. Erros? Vários. Uma vez, pus um link para um site brasileiro recém-divulgado, o sexkut, que seria um orkut para quem estivesse interessado em parceiros sexuais. Era um trote do Cocadaboa. Fui o primeiro na Web brasileira a falar no assunto. Então foi uma bola fora – às vezes, estar por dentro do que está acontecendo na Web tem suas desvantagens, mas não foi um erro grave. Erro grave é quando ferramos com a vida de alguém, isso, ainda bem, ainda não fiz no blog. E espero jamais fazer. Furos? Também nenhum. Tive a experiência de dar furos na imprensa diária, de papel, cobrindo campanha. O que é natural, acontece com a maioria dos repórteres, mas, num blog, é mais difícil. Fui o primeiro, no Brasil, a falar que havia um blogueiro, escrevendo de dentro de Bagdá durante a guerra – mas isso não é furo. A informação já era conhecida fora do Brasil e, provavelmente, também aqui dentro por quem lia blogs estrangeiros.
IHU On-Line – Qual é o principal potencial
que o weblog tem para manter as pessoas informadas e de que modo muda o conceito de informação nesse veículo? Pedro Doria – Informação é informação. O conceito não muda. O potencial do weblog, não sei. O potencial do conjunto dos blogs é tirar o monopólio das grandes empresas jornalísticas de investigação e disseminação de informação. Perceba: falo de tirar o monopólio das grandes empresas de mídia, não dos jornalistas. Quem apura, disseca ou analisa informação é jornalista. Com ou sem diploma. Nem todos os blogs são jornalísticos, mas esta é outra questão.
IHU On-Line – Como caracterizaria seus in-
terlocutores? Algum recado mais curioso ou anedótico que recebeu e seja interessante comentar? Pedro Doria – Tenho ótimos comentaristas. Um blog, com o passar do tempo, cria uma comunidade. Tem gente que discorda de nós com freqüência, tem gente que concorda quase sempre, tem um ou outro que escreve bem “pra caramba”. Esta comunidade não só é parte da diversão como é o motivo que me faz trabalhar a cada dia. Às vezes, tento lembrar qual era o barato de escrever sem este retorno imediato e não lembro. Um comentário anedótico não saberia pinçar, mas não consegui encontrar ainda uma fórmula para des-
IHU On-Line – Como é, concretamente, sua
rotina para dar conta do blog? Quais os principais desafios? Quais as principais
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cobrir que tipo de post, que assunto, traz mais comentários. Tem uns que são surpreendentes. Uma vez, escrevi sobre um livro que tentava imaginar o que seria do mundo se os judeus tivessem reconhecido Jesus como Messias. Houve mais de 150 comentários. Alguns dos leitores disseram que eu estava apostando no caminho fácil. Imagina... Quem haveria de imaginar que o assunto pudesse ser tão palpitante! Notas sobre o conflito entre Israel e Palestina incendeiam, mas não é regra: às vezes, trato do mesmo assunto, e cinco ou seis pessoas falam sobre ele e naquilo se encerra. Outra coisa sobre a qual costumo tratar, as mudanças e dilemas da sociedade a respeito de sexo, aceitação de sexo explícito, privacidade violada etc., algumas vezes, viram grandes assembléias instigadas por vários pontos de vista, noutras são quase ignoradas. Então não há uma fórmula clara.
to erros tolos por conta. Sei mais de economia do que sabia há um ou dois anos, e ainda assim não posso entrar em qualquer debate aprofundado sobre o assunto. Conceitos científicos de química, física e, principalmente, de biologia, entendo melhor. Não o suficiente, mas o bastante para, sempre que ouço alguém falar do “relativismo que nasceu com Einstein”, dar dois ou três pulos. O conceito de relatividade geral é muito específico, não tem nada a ver com seja lá o que chamam de relativismo. E, no entanto, publica-se isso com uma impunidade de dar medo. Em compensação, jornalistas aprendem um bocado de ciências humanas. Conhecem vários franceses e o constante exercício de retórica. O que explicam sobre o mundo? Muito pouco. Autores, como Marshall McLuhan24, que têm muito mais a dizer sobre o mundo, costumam ser ignorados. Aprende-se uma filosofia rudimentar e, vez por outra, alguém tenta fazer filosofia de “física quântica” quando, na física, existe apenas mecânica quântica – e isso não só basta como já é complicado à beça. Jornalistas saem das faculdades sem estudar história. Não sabem dizer qual a diferença entre Thomas Jefferson e George Washington. Não sabem quem foram Abd al-Wahab, Saladin ou mesmo Maomé. Qual a importância da família al-Saud? Raros conhecem a história da formação dos estados modernos do Oriente Médio. Ou como se sucedeu a Revolução Francesa e como terminou em Napoleão. Quantos sabem relacionar Adam Smith, Karl Marx e John Maynard Keynes? Por que os EUA se meteram numa guerra no Vietnã? (ou teria sido com o Vietnã?). O que fez Simon Bolívar e onde? Vamos para a história brasileira: Como se governou o Brasil entre 1500 e 1800? Qual foi a importância do Brasil para Portugal? Perguntas mais básicas: Por que derrubaram Pedro Segundo? História recente: Quem foram, de fato, Jango, JK e Carlos Lacerda? Por que São Paulo despontou economicamente e, ainda assim, a cidade está falida? Por favor, nenhuma delas é pergunta simples, todas têm respostas as
IHU On-Line – Estas novas tecnologias exi-
gem mais do jornalista? Como vê a formação atual dos jornalistas: pontos fortes e fracos... Pedro Doria – Isso é longo demais. Villas-Bôas Corrêa começou a carreira em 1948. Foi um dos primeiros jornalistas brasileiros a levar sua máquina de escrever para a redação. Fez rádio, fez tevê – há um ano, quando o Presidente Lula convocou colunistas políticos para uma coletiva no Planalto, Villas foi, saiu, assentou o laptop no colo, bateu sua coluna, entrou na rede, acessou o software de publicação, colou a coluna – publicou. Se tecnologia exige mais do jornalista? Nada. Quem estiver aberto, está. Ele se formou para informar, que as possibilidades de contar sua história vão mudar ao longo da vida, hoje em dia, é dado. Fidelidade à informação, isenção, honestidade intelectual são valores absolutos. É disso que vale imprensa livre. Ponto. Nada mudou. A mídia é irrelevante, o que vale é tempo de estrada. E o barato de tempo de estrada é que o jornalista tem toda a vida para conseguir cada vez mais. Sempre. Formação atual dos jornalistas? Fiz três anos de engenharia, apanhei muito, e sei muito pouca matemática. Come24
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980): sociólogo canadense, fez, em suas obras, uma crítica global de nossa cultura, apontando o fim da era do livro, com o domínio da comunicação audiovisual. Seus principais livros são A galáxia de Gutenberg (1962) e O meio é a mensagem (1967). (Nota da IHU On-Line)
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mais variadas possíveis. São motivos de debate entre especialistas. Eu não saberia responder a contento quase nenhuma, mas são básicas para compreender o mundo de hoje. Não possuir informação sobre qualquer um destes assuntos não indica incompetência do estudante, mas incapacidade da escola. Eu aprendi uma coisa trabalhando como jornalista: tem sempre tempo para aprender. No jornalismo, há duas coisas essenciais. A primeira é aprender sempre, ler sempre, estudar sempre. Isso é comum a qualquer profissão. A segunda é saber escrever. Não sei quando se consolida isso, quando criamos um estilo, quando chegamos à conclusão de que sabemos escrever. Pessoalmente, ainda sou um bocado inseguro e ainda me fascino demais com coisas que outros jornalistas ou escritores escreveram muito antes de eu nascer. Não com o quê, mas com o como escreveram. Tem gente que encontrou soluções geniais. E isso, às vezes, está no jornalismo de hoje, no Brasil. Temos grandes escritores entre os jornalistas, alguns colegas meus – não cito nomes pelo risco de esquecer alguém, mas a lição mais importante de todas, no jornalismo, é empatia. É um anglicismo. Quer dizer se colocar no lugar de uma pessoa. Não importa se é uma prostituta, um terrorista muçulmano, um político, o pai de um rapaz que acabou de ser assassinado. Sempre que escrevemos uma matéria, escrevemos sobre alguém. A habilidade de entender o que levou aquela pessoa a ser quem é, ou agir como age, é fundamental para o melhor jornalismo. Não quer dizer se colocar ao lado de. Só fazemos bom jornalismo quando nos despimos de pudores, entramos em contato com nosso lado mais negro e entendemos a pessoa sobre quem estamos escrevendo.
Pedro Doria – Estão na minha startpage. Por quê? Um blog é bom por poucos motivos. Pode ser bem escrito. Pode ser informativo. Pode ser revelador sobre quem o escreve e, portanto, sobre como as pessoas são. IHU On-Line – Há algum outro aspecto que
não foi perguntado e considere importante acrescentar? Pedro Doria – Tento falar sobre o estado do mundo, os dilemas atuais. Quais são? Religião. Sexo. Conceito de vida. Segurança. Saúde. Moradia. Alfabetização. Alimentação. Impacto social da tecnologia. Tento explicar o conceito de cada um, o que é aceitável e o que não é e, hoje, encontramos uma gama infinita de opiniões. Muita gente é infeliz por conta do que é aceito ou não na sociedade, por conta do que falta fazer e do que não falta – e discute-se pouco isso. Os assuntos vão além. Globalização. É inevitável? Acho que sim. Que forma deve ter? Como deve ser ditada? Um blog, para o jornalista, é só uma das mídias possíveis para tratar desses assuntos. Há jornais, há revistas, tevê, rádio, quantas mais? Aprende-se um bocado fazendo sozinho. Aprende-se mais fazendo com gente experiente. Esta não é uma regra do jornalismo. É coisa humana. São vários os caminhos possíveis. O Brasil é um dos muitos países que partiu do princípio de que, exigindo formação específica, um diploma, conseguiria estabelecer uma reserva de mercado. Com a Internet, acabou. Gente capaz, que escreve bem e é experiente em suas áreas será capaz de falar sobre assuntos vários com mais competência que jornalistas. Como ninguém deve começar a cassar blogs – espera-se que sindicatos não virem censores –, é hora de repensar os cursos de comunicação. E isso quer dizer ensinar uma gama maior de assuntos.
IHU On-Line – Que outros blogs, atualmen-
te, considera interessantes e por quê?
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O Brasil precisa definir o que quer da TV Digital Entrevista com Valério Cruz Brittos
“O Brasil ainda está indefinido em relação à sua TV Digital, e isso não vai ser tão rápido quanto tem sido vendido para a sociedade”, disse o Prof. Dr. Valério Cruz Brittos em entrevista concedida à IHU On-Line, no dia 22 de agosto de 2005. Ele é professor nas Ciências da Comunicação da Unisinos. Graduado em Jornalismo e Direito pela UCPEL e especialista em Ciência Política pela UFPEL, é mestre em Comunicação pela PUCRS e doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela UFBA, com a tese Capitalismo contemporâneo, mercado brasileiro de televisão por assinatura e expansão. Atualmente, pesquisa sobre televisão, mercado e sociedade: televisão e política pública no Governo Lula. É editor do periódico acadêmico Eptic On line-Revista Electrónica Internacional de Economía Política de las Tecnologías de la Información y de la Comunicación (www.eptic.com.br) e presidente do Capítulo Brasil da Unión Latina de Economia Política de la Información, la Comunicación y la Cultura (ULEPICC-BR). De sua produção bibliográfica, destacamos a obra organizada em parceria com o pesquisador César Ricardo Siqueira Bolaño, Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005, Recepção e TV a cabo: a força da cultura local. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2001 e organizador de Comunicação, informação e espaço público: exclusão no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2002. Valério apresentou o primeiro livro citado no evento Sala de Leitura, do IHU, em 20 de junho de 2005, sobre o qual escreveu um artigo, que foi publicado na edição 146 da revista IHU On-Line, de 20 de junho de 2005. Ele apresentou também o IHU Idéias de 30 de outubro de 2003, com o tema Produção regulamentação: as barreiras da
televisão. Sobre ele, concedeu a entrevista TV digital mais governo Lula pode resultar em democratização, publicada na 81ª edição da IHU On-Line, de 27 de outubro de 2004. Seguem mais duas entrevistas concedidas por Valério Brittos e publicadas nas Notícias Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu, uma em 9 de março de 2006 intitulada TV digital. Faltou vontade política para aproveitar a pesquisa brasileira e a outra, em 30 de junho de 2006, A sociedade vai sair ganhando com a TV digital. IHU On-Line – Qual é a situação da TV digi-
tal no Brasil? Quais suas perspectivas e como se dará o acesso? Valério Brittos – A TV digital, com a mudança do ministro, recentemente pelo Hélio Costa, sofreu um período de turbulência pelos anúncios, dizendo que o Brasil não faria um padrão digital próprio. Eu sempre digo que o Brasil não terá um padrão próprio, ele o está desenvolvendo, e a própria TV Unisinos está fazendo isso, o que eu chamo de uma solução nacional, elementos que incorporam parte de tecnologia estrangeira e parte de tecnologia brasileira, formando uma solução mais de acordo com as necessidades do nosso país, mas não vai ser um padrão próprio brasileiro. Por que um outro padrão se já há três outros padrões consagrados? Um quarto padrão demandaria muito tempo e dinheiro, e acho que esse não é o caso do Brasil no momento. O que é fundamental para o Brasil nesse estudo, nessa solução, é muito mais do que tecnologia, é saber o que ele quer. E isso não fica bem claro – saber o que nosso país quer da TV digital. Vemos anúncios, movimentos destoantes que vêm e voltam, ou seja, é preciso uma definição antes, e discutida com a so34
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ciedade. O que o Brasil quer? O Brasil quer fazer inclusão digital25? Essa me parece a tendência principal, de usar a televisão como possibilidade de agregar milhões e milhões de brasileiros que não sabem o que é Internet, o que é computador, e que têm a possibilidade de ter acesso a esse mundo, potencializando pequenos negócios por meio de sua própria televisão. Acho que, se o Brasil puder fazer isso, vai ser um grande mérito e um grande avanço, mas isso também não está definido. Existem pesquisas com alguma coordenação que poderiam ser maiores do que verdadeiramente são. O Brasil ainda está indefinido em relação à sua TV digital e eu volto a dizer que isso não vai ser tão rápido quanto tem sido vendido para a sociedade.
temporaneidade em que os processos, os gêneros, as formas de fazer quase se esgotaram. Disso o receptor está cansado, porque o gênero chegou quase ao seu limite. O receptor conhece muito bem o gênero e está cansado, porque, nessa dialética homogeneização-diferenciação das indústrias culturais, o grau da homogeneização é muito grande, mesmo tendo muitos canais, e disso o telespectador está cansado, mas, não necessariamente, que ele seja mais crítico, e não se pode fazer uma relação de causa e efeito por ter uma quantidade enorme de canais. IHU On-Line – O senhor acha que a TV digital irá mudar o conceito de TV aberta no
Brasil? Valério Brittos – A tendência é que sim, porque a TV digital, nos países desenvolvidos, vem cumprindo um período muito longo, chamado simul casting, ou seja, de transmissão simultânea, o que no Brasil deveria ser igual. Embora isso venha acontecendo, a TV analógica terá que acabar e nós vamos ter uma nova televisão, e há várias possibilidades: pode ser uma televisão com muito recurso da Internet, pode ser uma televisão com qualidade de imagem melhor, pode ser uma televisão com mais canais. Agora, só isso é muito pouco. É nisso que eu insisto. Se for para entregar uma quantidade de canais para os mesmos grupos de comunicação que atualmente dominam, vai representar muito pouco. Imagine um grupo como a CNT, para não falar da Globo, que tem uma rede de televisão no Paraná e que usa o seu canal para transmitir basicamente programas de televendas e vendas para programas religiosos, imagina seu dono possuindo muito mais canais. Para quê? Para fazer isso? Então, acima de tudo, o Brasil precisa pensar esse momento para se reposicionar ante esse processo de comunicação e
IHU On-Line – O receptor é, de fato, mais crítico com as novas possibilidades de TV a
cabo? Em que sentido seria crítico? Valério Brittos – Eu não acredito que ele seja por si só mais crítico por ter uma quantidade maior de canais, pois, com a própria TV por assinatura, que, num primeiro momento, pode ser uma maravilha pela oportunidade que oferece de programação, a lógica tende a ser a mesma, não só porque segue a mesma proposta comercial, isto é, uma enxurrada de canais comerciais. Os canais que fogem disso são mínimos e ficam quase desaparecidos, subsumidos naqueles movimentos, como todos que tendem a seguir um mecanismo de assimilação muito rápida do receptor, tanto que hoje há uma quantidade muito grande de reality shows26 nos canais de TV por assinatura. Então, não acredito que alguém, porque possa ver mais canais, porque possa ver reality show em horários variados, ou que possa assistir a filmes mais recentes ou clips27, possa, por si só, ser mais crítico. Há sim, um movimento próprio da con-
Inclusão digital: projetos e ações que facilitam o acesso de pessoas de baixa renda às Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Dessa forma, essa camada da população também pode ter acesso a informações disponíveis na Internet, além de poder produzir conteúdo. Um dos grandes desafios dos governos de países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, pois requer grandes investimentos. (Nota da IHU On-Line) 26 Reality show: tipo de programa televisivo apoiado na vida real. Exemplo deste programa é o mundialmente conhecido Big Brother, criado em 1999 por John de Mol e inspirado no livro de George Orwell, 1984. (Nota da IHU On-Line) 27 Clip: sinônimo de videoclip, que designa um curto, em suporte . Devido à preponderância quase total dos vídeos musicais e publicitários na produção mundial de vídeos curtos, os vídeos publicitários têm uma designação própria. Durante algum tempo, videoclip foi quase sinônimo de vídeo musical. (Nota da IHU On-Line) 25
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pensar em democracia comunicacional, em novos acessos, em acessos para pessoas que nunca tiveram possibilidade de levar suas demandas à comunicação, pensar na produção regional, local, terceirizada e disseminar esse conhecimento quase nato que o brasileiro tem de fazer cultura e que vemos até nas localidades mais pobres. Esse conhecimento deve ser disseminado, e não apropriado pelo setor privado, que é o que normalmente acontece pelos grandes grupos de comunicação, que pegam o que há numa comunidade e aproveitam isso, privatizando um bem simbólico que vai ser comercializado no mercado. Esse conhecimento deve ser disseminado para que a própria comunidade possa se expressar e, se houver algum retorno comercial, que seja um retorno para ela própria, para o seu próprio bem.
que eu trabalho, a chamada economia política da comunicação, da semiótica, com base na filosofia da comunicação, na ética, em várias abordagens, como a recepção, temos visto um conhecimento bastante grande. Talvez se os próprios grandes grupos de comunicação se voltassem para um diálogo com a academia, tentando enxergar de outra forma esse conhecimento que tem sido produzido, aí sim, essa seria a entrada melhor para a superação dos dramas históricos da TV brasileira. IHU On-Line – Podemos afirmar que o novo
modelo midiático abre oportunidades de trabalho e mercados? Valério Brittos – Eu acredito que isso possa vir a ocorrer, se acontecer o modelo efetivo. O que eu falo de repensar os processos é democratizar a comunicação, abrir canais para a sociedade, abrir espaços dentro desses canais para que a sociedade ocupe, para que se tenham conselhos de programação, tornar público aquilo que deveria ser público de per si, os atos de midiatização. Se tudo isso for feito, e muito mais, abrir-se para produção terceirizada, por exemplo, certamente vai gerar mais empregos, possibilidade de expressão, enriquecimento cultural e até econômico por parte da sociedade. Agora, se for unicamente dar mais canais, mais possibilidades para esses grupos que estão aí, não vai haver muita coisa, porque eles já têm produção suficiente, já têm estoque. E o que eles fazem? O que a Globo faz? Ela coloca no ar o mesmo programa que ela produz, por exemplo, o Bom Dia Brasil. Ele é produzido para ir ao ar na TV Globo, vai ao ar nela, em todas as afiliadas, na Globo News, na Globo Internacional, e parte daquelas notícias ainda é desmembrada em outros programas. O mesmo vale para as telenovelas. Ou seja, pelo contrário, o que o processo de concentração tem feito é limitar, tanto que a mão-de-obra nos lugares formais de comunicação acaba sendo reduzida. O que existe é uma enorme potencialidade em outros campos de trabalho para comunicação, em outros lugares que vêm sendo desbravados por organizações públicas e privadas. Se forem unicamente esses grupos, vai haver um aumento da concentração e pouca mudança.
IHU On-Line – Há uma distância entre a
produção televisiva e a produção de conhecimento sobre TV, levando em conta que a TV brasileira é considerada como uma das melhores do mundo, tecnicamente falando? Valério Brittos – A idéia de que a TV brasileira é uma das melhores do mundo tem que ser repensada. A Globo faz uma grande televisão para o mercado, mas é um conhecimento que está muito centrado nessa emissora. Nos últimos dez, quinze anos, é que notamos um movimento de espalhar esse conhecimento do “fazer televisão“ por outros grupos de comunicação. Tadicionalmente não é isso que ocorre, quando falamos em exportação de televisão, é basicamente na Globo que pensamos. Esse conhecimento deve, primeiro, ser pulverizado entre as demais redes, o que vem acontecendo paulatinamente, mas deve ser pulverizado entre tantos e tantos grupamentos sociais que podem, eles próprios, construir a sua história. E à academia cabe um processo importante nessa interação, e tem havido, embora sempre houvesse, em alguns momentos, deslocamentos entre o que a academia propõe e o que a academia pesquisa, e efetivamente aquilo que a sociedade está esperando. É evidente que esses descompassos existem, o que acontece em todas as áreas do conhecimento, mas, em linhas gerais, o que tem havido de conhecimento na televisão, na comunicação, tem sido a partir de várias entradas. Com base no 36
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vimentos e se tornou líder na TV por assinatura, e é isso que esses conglomerados vão fazer. Para eles não há um grande problema em seguirem ocupando seus lugares, e isso é o que vem ocorrendo em todo o mundo, em processos de fusões, de sinergias.
IHU On-Line – Assim como em qualquer ou-
tra plataforma tecnológica, a mídia digital terá uma parcela de excluídos ao seu acesso. O modelo brasileiro prevê alguma forma de incentivo a essa inclusão? Valério Brittos – O nosso modelo trabalha com a inclusão para todos na qualidade de receptores, e não de produtores. O que se fala é com um prazo muito longo de transmissão simultânea. Isso pode levar dez anos, mas, no Brasil, acredito que isso não vá acontecer em menos de vinte anos dessas duas possibilidades de transmissão televisiva. Esse é um caminho. Outra possibilidade, e que o Brasil já está pensando, é a set-box28, ou seja, a caixa que vai converter o sinal que vem digital para que cada um possa receber na sua velha TV analógica, seja feita a preços acessíveis. E, ao mesmo tempo, que haja financiamento por parte de bancos públicos, viabilizando esse acesso. O que é preciso se pensar, também, é no acesso amplo. Em primeiro lugar, se houver possibilidade, e haja Internet junto, que ele seja um pleno fruidor e com capacidade plena para usar aqueles recursos em sua totalidade, e não unicamente para assistir, via Internet, aos mesmos conteúdos ou ao mesmo tipo de conteúdos que ele assistiria na televisão. Isso passa, a priori, pela educação formal, por vários fatores, e, ao mesmo tempo, que ele possa levar suas demandas para os canais convencionais. O processo de inclusão é muito mais complexo e ainda não foi feito na outra mídia, quanto mais nesta.
IHU On-Line – Uma de suas pesquisas em
andamento intitula-se Televisão, mercado e sociedade: televisão e política pública no Governo Lula. Como esta gestão tem se posicionado quanto ao assunto? Quais são os principais avanços do segmento no Brasil? Valério Brittos – Avanço efetivo desde o governo Lula, assim como desde o governo anterior, não poderia enumerar nenhum, exceto a possibilidade das pesquisas sobre a TV digital. Acho que, quando o governo FHC estava decidido que ia adotar unicamente um outro padrão, o governo Lula partiu para outras pesquisas, envolvendo universidades, embora devesse avançar bem mais, definindo, previamente, o que o Brasil quer quanto à TV digital e avançando na questão dos conteúdos, sobre o que há pouca pesquisa e investigação. Em geral, o governo Lula tem sido hesitante com relação à comunicação, assim como em outras áreas. Ele propôs uma lei avançada de audiovisual – houve uma “grita” por parte dos próprios empresários, que acabaram envolvendo parte da sociedade nos seus telejornais e espaços editoriais. E, com isso, o governo Lula recuou. Neste ano, houve a expectativa de se fazer uma lei de comunicação eletrônica de massa, que vem sendo aguardada por mais de dez anos e até hoje não saiu. Essa lei dificilmente vai sair, porque, se o governo anterior já era refém das forças que o apoiavam, este tem mais dificuldade de fazer qualquer coisa que desagrade a mídia, uma vez que existe a possibilidade de impeachment. Isso dificulta muito e, se não houve avanço até agora, muito menos vai haver daqui para a frente, porque, certamente, esse governo não vai querer comprar briga com ninguém, muito menos com a mídia.
IHU On-Line – Pensando na hegemonia da
Rede Globo, aludindo ao livro que redigiu em parceria com o pesquisador César Bolaño, quais são as perspectivas para os grandes conglomerados midiáticos brasileiros com o advento de mídias digitais como a TV? Valério Brittos – As perspectivas são das mais animadoras. A própria Globo é líder em televisão, jornal, rádio... e tinha um grande temor em relação à TV por assinatura imaginando que ela ia desbancar, ou pelo menos fragilizar, o seu lugar. O que ela fez quando isso seria inevitável? Criou mo28
Set-top-box: aparelho conversor de sinal que permite acesso através da Internet a serviços de telefonia, vídeo mensagem, jogos on-line, áudio e vídeo sob demanda, na tela da TV. (Nota da IHU On-Line)
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TV Digital. Faltou vontade política para aproveitar a pesquisa brasileira
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a de-
cisão, na condição de pesquisador da área de TV digital? Valério Brittos – Acho o mesmo que eu disse para o então ministro das Comunicações, Miro Teixeira, em 2003, quando ele convidou a mim e ao César Bolaño, para uma audiência sobre o assunto. Apesar da sensibilidade do convite, ele não ouviu muito a nossa proposta. Em nossa conversa, dissemos que não adiantava fazer um estudo basicamente tecnológico, que foi o que o Brasil fez. A discussão tinha que ser essencialmente política. Era preciso pensar em novos conteúdos, em estratégias de ação, perguntando o que o País quer com a sua TV digital. Percebemos que o Brasil quer inclusão digital e este pode ser um bom momento, afinal televisão praticamente todo o mundo tem. O principal problema é que o Brasil inverteu a pauta ou deixou a pauta tecnológica correr sozinha, além de estar colocando no plano secundário essa pesquisa que já foi feita no Brasil e poderia ser aproveitada e avançada.
O presidente Luis Inácio Lula da Silva anunciou, em 11 de março de 2006, a decisão de que o Brasil adotará o padrão de TV digital japonês. O decreto presidencial foi oficialmente assinado em 29 de junho de 2006. Após uma dura batalha de bastidores entre os defensores dos padrões japonês, americano e europeu, o presidente optou pelo japonês por avaliar que essa proposta trará mais vantagens ao Brasil e às grandes empresas de comunicação do País – entre as quais as Organizações Globo. IHU On-Line – Como o senhor define o ce-
nário da escolha de Lula pelo padrão japonês para TV digital? Valério Brittos – Esse modelo é avançado, já testado no Brasil e permite que a transmissão seja móvel. Ele é a grande reivindicação dos grandes radiodifusores, os proprietários das emissoras de TV. Isso mostra uma vitória desse grupo, composto pela Rede Globo e todos os demais. O Brasil fez uma pesquisa e temos que ver até que ponto ela vai ser compatibilizada com esse modelo ou não. A priori, o modelo não será o brasileiro, mas ele poderá ser incorporado. Isso ainda está em aberto.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a ne-
gociação dos ministros Dilma Rousseff (Casa Civil) e Hélio Costa (Comunicações) de um pacote de investimentos em troca da decisão? Valério Brittos – Já que foi feita a opção, seja com qual país, há a necessidade de negociação. O dono do padrão, no caso o japonês, tem os direitos, os royalties sobre ele. Para usar esse padrão, temos que pagar para o Japão. Ele até pode negociar a isenção de royalties por um período, mas isso é questão de negociação. No momento em que é feita a opção por um determinando padrão, o Brasil faz bem em negociar o máximo de vantagens e isenções possíveis. Outra negociação importante é a possibilidade de o Brasil participar do grande comitê do padrão escolhido. Se o Brasil adotar, ele tem que ter assento nesse comitê, pois os padrões estão em permanente aperfei ço amento. Tudo isso é interessante e tem que ser negociado.
IHU On-Line – Em que sentido o padrão ja-
ponês traz mais vantagens que os padrões americano e europeu? O que mais pode ter pesado na decisão de Lula? Valério Brittos – O grande apelo deste padrão escolhido é o fato de ele permitir a recepção móvel. Por exemplo, será possível ver televisão dentro do carro. Além de tudo, ele permite uma série de adaptações, uma vez que as empresas querem que seja o modelo mais aberto possível para que cada uma faça seu jogo, sua própria opção de TV digital. Outra vantagem é que ele é um modelo já testado e conhecido aqui e que está dando certo no Japão. O que mais pesou na decisão de Lula, não tenho dúvida nenhuma, foi a pressão das empresas de rádio e TV.
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IHU On-Line – O senhor acredita que esse
IHU On-Line – Como acontece na prática a implantação do sistema digital de TV na
anúncio produza ganho político para Lula nesse ano eleitoral? Valério Brittos – Acredito que sim. Uma tecnologia como a TV digital é importante, pois envolve a maior mídia do País. Isso mostra que o Brasil está dando seu passo para a digitalização da televisão junto com outros países, não ficando atrás tecnologicamente, ainda mais em uma área em que o País, no que diz respeito à produção de conteúdo, tem lugar de destaque na orquestração internacional. Isso traz dividendos políticos para Lula, sim, o que eu não vejo como um problema. Quem inventou a reeleição não foi o Lula, foram o PSDB e o Fernando Henrique. Não vamos querer que o Lula ou qualquer outro presidente deixe de governar durante um ano. Se ele tem que anunciar a TV digital, assim como ele teve que anunciar pacotes para habitação e tantos outros, que seja anunciado. Ele não vai ficar um ano parado, sem governar.
casa dos brasileiros? Valério Brittos – Quando apareceu a TV colorida, o sinal colorido também era recebido por televisores preto e branco. Com a TV digital, não será assim. O sinal analógico é diferente do sinal digital. A transmissão digital não poderá ser captada pelo televisor analógico. Mesmo esses televisores modernos, num primeiro momento, não poderão captar o sinal digital. Para isso, basta comprar o set-top box, uma caixa conversora, que recebe o sinal digital e decodifica para o analógico. Ou podemos comprar um televisor digital. Muita gente vai comprar, mas representativamente vai ser muito pouco. A caixa conversora é muito mais barata, vai custar na média de R$ 100,00. Paralelo a isso a transmissão analógica não vai parar. Em setembro, se uma pessoa, que será a grande maioria, pois muitos não têm dinheiro, nem interesse, não quiser comprar o set-top box, será possível assistir a TV pelo sistema analógico. As emissoras vão seguir fazendo as duas transmissões, a analógica e a digital. Será um processo para uma migração contínua. Imagina-se que haja um prazo de passagem de transmissão múltipla, simultânea, de 10 a 20 anos.
IHU On-Line – Quem sai perdendo com essa
decisão? Valério Brittos – Os detentores dos outros padrões que estavam na disputa com o Japão, no caso, o europeu e o norte-americano são os perdedores diretos. Quem também perde são as telefônicas, que tinham outra proposta, em que elas entrariam como transmissoras e as atuais transmissoras ficariam apenas como provedoras de conteúdo. E temos que ver o grau, como eu já disse, de perda que teve toda a inteligência nacional que ficou trabalhando em um padrão brasileiro.
A sociedade vai sair ganhando com a TV digital IHU On-Line – Quais as principais inovações que a TV digital trará para o Brasil?
Valério Brittos – Já foi anunciado que haverá um aumento do número de canais públicos. Isso representa canais que serão geridos possivelmente pelo Estado e que não terão, pelo menos de forma direta, um objetivo comercial. Eles poderão colaborar na transmissão de produtos educativos, culturais, voltados à cidadania e à saúde, esses elementos que não têm um interesse tão direto por parte dos grupos comerciais, o que é um dado bastante positivo. Outras inovações dependem da maneira como a proposta será lançada. A melhoria na qualidade do sinal já está colocada. O sinal vai ser melhor, a imagem será melhor, o som será melhor. A ampliação de outros canais também é
IHU On-Line – O que faltou para que hou-
vesse maior aproveitamento da pesquisa brasileira em TV digital? Valério Brittos – Faltou, talvez, um pouco mais de tempo de pesquisa. Mas, acima de tudo, faltou vontade política. Mesmo com o que foi feito até agora, já poderia ter tido algum avanço. Faltou vontade política de encarar a pressão dos radiodifusores. A pressão que esse grupo tem, principalmente a Rede Globo, é muito grande. Historicamente, são eles que fazem a legislação em comunicação, não diretamente, mas por pressão. Essas emissoras fazem o que querem, noticiam e deixam de noticiar o que querem e fica por isso mesmo. 39
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uma inovação. Haverá mais canais, não só esses educativos, mas outros canais comerciais. E há a possibilidade de maior interatividade, ofertas de outros conteúdos além daqueles tradicionais relativos à televisão. Portanto, acredita-se que haverá um avanço por parte da comunidade, da população em geral, tão preocupada com a televisão, já que ela tem uma força enorme na sociabilidade brasileira. Essa sociedade vai sair ganhando com a televisão digital.
abertura maior para o diálogo num segundo momento. A partir daí se ventilava também a hipótese de ser escolhido o modelo europeu, que trabalhava com o molde de operador de rede, em que todas as emissoras de televisão ofertariam seu sinal para um operador de rede, que seria encarregado de reunir todos esses sinais e distribuir para a população. Mas de qualquer forma, o governo tomou a decisão e parece que é possível o Brasil fazer algum avanço na sua televisão com o modelo escolhido.
IHU On-Line – Como a decisão pelo modelo
japonês afeta o futuro da televisão brasileira? Valério Brittos – Com a escolha pelo modelo japonês, o Brasil fez a sua opção de como ocorrerá a transmissão do sinal. Isso significa que haverá transmissões inclusive para telefone celular, a chamada transmissão móvel, e tudo gratuitamente, o que também é uma outra inovação. Isso trará maior diversidade de produtos, de canais em oferta para todos os telespectadores, e uma mudança na própria forma de produção. Haverá a necessidade de uma produção mais criteriosa, porque, com a melhoria na qualidade da imagem, certamente o telespectador vai reparar melhor em alguns detalhes que não reparava até então. Além disso, essa decisão representa uma aliança do Brasil com o Japão nessa área específica. Imagina-se que haja, além da compra de produtos e equipamentos japoneses no Brasil, a possibilidade de algum nível de reciprocidade, de que as produções brasileiras, especialmente de materiais e de equipamentos, possam ser também abrigadas, por mínimo que seja, no Japão.
IHU On-Line – A “novela” da TV digital
brasileira ainda pode nos trazer algumas surpresas? Valério Brittos – Acredito que surpresa não. Embora haja grupos ligados à sociedade civil falando, inclusive, em recorrer à justiça, em acionar o Ministério Público. Eu particularmente não acredito em mais surpresas. O que haverá agora é um longo processo de discussão da regulamentação, dos detalhes para a implantação da televisão digital, o financiamento da população, o financiamento das pequenas emissoras, as opções específicas que o Brasil vai fazer ao longo desse processo, a reformulação geral da sua legislação na área de comunicações, talvez com a possibilidade de haver uma lei de comunicação de massa há tanto tempo esperada. E depois, num segundo passo, haverá o próprio processo de desenvolvimento das programações e da introdução dessa tecnologia, porque sempre há uma diferença entre aquilo que consta na regulamentação e a forma como isso é incorporado por parte das empresas de televisão e por parte dos consumidores. Teremos um processo não tanto de surpresa, mas de desdobramento ou de fatos novos que devem surgir, mas numa mesma linha de continuidade.
IHU On-Line – Quais as principais críticas
que se faz a esse modelo? Valério Brittos – As críticas têm sido diversas, mas as principais não são nem tanto em relação ao modelo japonês, mas ao processo de escolha por parte do governo brasileiro. O governo poderia ter ouvido mais a sociedade, especialmente nesse momento final, quando ele ficou enclausurado em grande parte com as emissoras de televisão, que tinham uma preferência pelo modelo japonês. Esperava-se que houvesse uma prorrogação no processo de decisão ou até mesmo uma
IHU On-Line – Qual pode ter sido a maior
motivação do governo brasileiro ao tomar essa decisão? Valério Brittos – Está muito claro que a maior motivação foi a pressão por parte das emissoras de televisão brasileiras. Elas lideraram testes que foram feitos com a autorização da Anatel no fim dos anos 1990 e início deste século, que indica-
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vam a preferência pelo modelo japonês. Esse modelo permite que as emissoras não trabalhem com operador de rede. Isso significaria repassar o seu sinal para um outro ator econômico fazer a distribuição, o que não era do agrado delas. E elas conseguiram impor a sua vontade. Parece que essa foi a principal motivação do governo.
vão ser voltados para o esclarecimento da população para preocupações não-mercadológicas, voltadas para a educação, a cidadania, a saúde... O que eu alertaria é que é importante que esses canais não sejam partidarizados, o que é uma tendência muito grande da comunicação pública, especialmente no Brasil. Na Europa, temos um exemplo de relativo sucesso da televisão pública, em que esses tipos de canais fazem produções da melhor qualidade e não ficam atrelados a um partido ou ao governante de plantão. É fundamental que o governo se preocupe em manter conselhos de gestão e de consultoria, ou mesmo de acompanhamento da programação desses canais, que sejam representados por toda a sociedade civil para que isso não seja instrumentalizado. Se não houver essa instrumentalização, será um fato altamente positivo.
IHU On-Line – Essa decisão pode dificultar
a entrada de novos concorrentes, novos canais de TV? Quais as conseqüências disso? Valério Brittos – Novos canais de TV devem surgir, principalmente nessa área de televisão pública, e com a possibilidade também de que um mesmo grupo de comunicação tenha uma maior quantidade de canais. O que talvez não haja é o aumento no número de empresas a gerir esses canais, mas novos canais sendo geridos pelas mesmas empresas que já estão aí. Como se a Globo, por exemplo, ou o SBT, tivesse a possibilidade de multiplicar a quantidade de canais que têm. Isso significa uma opção do Brasil por continuar mantendo esse oligopólio. Na verdade, é importante que se diga que isso não é de hoje. O Brasil surge com um mercado desconcentrado, como todo mercado, e ao longo dos anos 1960 e 1970, principalmente, ele acaba formando um oligopólio, como é a classe de estruturação dos mercados em geral no capitalismo. Assim, ele faz a sua opção. Em vários momentos, quando poderia haver o mínimo de desconcentração, o Brasil não a fez. Dessa vez, parece que também não vai fazer. De qualquer maneira, porém, nada é definitivo. Aguarda-se que haja uma possibilidade, pelo menos, de um maior número de agentes de produtores para participar disso, mesmo que os canais fiquem nas mãos dos mesmos grupos.
IHU On-Line – O decreto que estabelece a
adoção do padrão japonês de TV digital assegura a incorporação de tecnologias desenvolvidas no Brasil. Isso é possível, considerando a nossa economia? Valério Brittos – É possível, sim, porque já foram realizadas pesquisas por um grupo de universidades brasileiras, inclusive pela própria Unisinos, e todas essas pesquisas avançaram e indicaram um caminho de que o Brasil tem possibilidade de desenvolver a sua própria tecnologia. Há o que eu tenho chamado de “solução nacional para a televisão digital”, um conjunto de softwares e hardwares que são aplicados com base em um padrão já existente, no caso, o padrão japonês. O Brasil já avançou nesse sentido, e isso pode facilitar e contribuir para o desempenho da nossa economia. Por um lado, por serem produtos que possam sair por um custo mais barato, por outro lado, porque nós não pagamos nenhum tipo de royalties, não precisamos fazer remessas de dinheiro para o exterior, e em terceiro lugar, porque existe sempre a possibilidade de que algumas dessas tecnologias sejam aceitas e incorporadas por outros países, como o próprio Japão, e daí possa o próprio Brasil exportar tecnologia e obter dividendos econômicos e simbólicos com tudo isso.
IHU On-Line – O que o senhor pensa a res-
peito da criação de mais quatro canais públicos de televisão com programação oficial sobre educação, cultura, cidadania e notícias sobre os atos de governo? Valério Brittos – A criação de novos canais é sempre positiva, principalmente envolvendo canais públicos. Deve-se imaginar que esses canais
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haver uma multiplicação de canais do mesmo grupo de comunicação. Sem falar que todos os demais canais que surgissem seriam repartidos entre outros grupos empresariais, não voltados para o mercado, mas grupos educacionais, culturais, representando a sociedade e a diversidade cultural brasileira. Se isso não for feito, de qualquer forma acredita-se que é possível, por isso, pretende-se acompanhar esse processo por meio de pesquisas nas universidades, acompanhando a regulamentação e a implantação, para ver que medidas serão tomadas, e que avanços democráticos surgirão pelo menos em alguns pontos. Enfim, há tópicos que precisam ser monitorados pela comunidade científica e mesmo pela sociedade. A partir daí, talvez haja alguns avanços, embora seja evidente que um avanço pleno não vai ocorrer. Não nesse momento, da mesma forma como não há uma democratização plena em outros fatores da sociedade brasileira, inclusive na própria economia. A comunicação acaba sendo reflexo disso tudo.
IHU On-Line – Os europeus da coalizão DVB, que concorriam com os japoneses, cri-
ticam a escolha pelo modelo japonês, afirmando que “a população brasileira estará condenada ao consumo dos produtos mais caros do Planeta, pelos próximos 30 anos”. Qual o fundamento dessa afirmação? Valério Brittos – Em primeiro lugar, essa foi uma disputa muito grande que houve em torno do padrão norte-americano, japonês e europeu, especialmente o europeu e o japonês. E a pressão foi de toda ordem possível, por parte do governo e por parte desses grupos da sociedade civil, que sabem que a decisão do Brasil, com o mercado grande que tem, pode se alastrar causando influência em outros países da América Latina. Então isso, acima de tudo, é um negócio por parte de grandes grupos, dos grandes detentores dos padrões, que acabam jogando com as suas armas para tentar obter repercussão a partir daquilo que pretendem. E é nesse sentido que essas declarações são apresentadas. Talvez até haja alguma diferenciação de preço por parte do modelo japonês, mas a tendência é que haja uma uniformização dos preços entre todos esses padrões e essas tecnologias na medida em que aumentar o consumo. O problema é que o modelo japonês entrou no final, depois do modelo norte-americano, o que de um lado é positivo, porque com isso ele já pôde ver os erros dos demais e incorporar tudo isso na qualificação do seu próprio padrão. Por isso, ele tem menor produção em escala e seu preço é um pouco superior, mas é possível que esse preço venha a baixar como ocorre em geral com a tecnologia.
IHU On-Line – Qual a contribuição da Uni-
sinos na pesquisa sobre a TV digital e nas tecnologias de implantação do sistema no Brasil? Valério Brittos – Isso é muito importante. Mostra que a Unisinos desenvolve pesquisa de ponta e sempre coadunada com os interesses e com as demandas do País. Com isso, e juntamente com outras universidades, a Unisinos teve uma posição extremamente relevante, participando dessa pesquisa da televisão digital. Além dessa chamada que houve de recursos por parte da televisão digital, eu destaco quando, em 2002, o primeiro ministro das comunicações do governo Lula, o ministro Miro Teixeira, chamou a mim e ao professor César Bolaños, que atua no nosso grupo de pesquisa aqui da Universidade, o grupo comunicação, economia política e sociedade. Ele nos chamou para conversar sobre televisão digital. Naquele momento, nós demos sugestões e acreditamos que algumas delas foram aceitas, junto com as contribuições de outros intelectuais. Isso tudo contribuiu de alguma forma para que chegássemos ao modelo que temos hoje.
IHU On-Line – Em que sentido essa decisão
afeta a oportunidade de democratizar o atual sistema de radiodifusão brasileiro? Valério Brittos – A oportunidade de democratizar o sistema vem sendo perdida historicamente pelo Brasil. Talvez essa seja a oportunidade de uma radicalização da democratização, na medida em que seria possível, com o operador de rede, todas as emissoras passarem o seu espectro eletromagnético para esse operador e a partir daí não
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“A TV digital poderá ser um grande passo na direção da inclusão digital” Entrevista com Laurindo Leal Filho
Assim o Prof. Dr. Laurindo Leal Filho, da Escola de Comunicação e Artes (ECA/USP), Departamento de Jornalismo e Editoração, define um dos maiores benefícios da TV digital em nosso país, na entrevista que concedeu, por e-mail à IHU On-Line, em 22 de agosto de 2005. Entretanto, ele destaca que não basta haver apenas “uma ampliação do espectro eletromagnético. É preciso que ele seja ocupado por emissoras que atendam às reais necessidades de cultura, lazer e informação existentes na sociedade”. Além disso, é necessário evitar que ocorra com a TV digital o que houve com a TV por assinatura: “os mesmos grupos nacionais e internacionais ocuparam, praticamente, todo o espaço, reproduzindo o modelo da TV aberta”. Laurindo é graduado em Ciências Sociais pela USP, mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP, doutor em Ciências da Comunicação pela USP e pós-doutor pela University of London, Inglaterra. É livre-docente pela USP com a tese O modelo britânico de rádio e televisão: a convivência entre o público e o privado. Publicou os livros Atrás das Câmeras – Relações entre Cultura, Estado e Televisão. 2. ed. São Paulo: Summus, 1988 e A melhor TV do mundo. O modelo britânico de televisão. São Paulo: Summus, 1997.
mas de alta qualidade exibidos por nossas TVs fechadas, TVs públicas e até pelo Fantástico da Globo: são programas da BBC ou do Channel 4 do Reino Unido. Essa qualidade é garantida pelo modelo público a que está submetida a televisão naquele país. IHU On-Line – Quais são os principais desa-
fios éticos da comunicação em tempos de mídias digitais? Laurindo Leal – Acredito que, antes de tudo, é necessária uma distribuição equilibrada dessas novas freqüências. As emissoras públicas devem ter um espaço garantido e o oligópolio das comerciais deve ser combatido. Só assim poderemos falar na possibilidade de uma televisão digital comprometida com valores éticos. IHU On-Line – Novas plataformas tecnológi-
cas para a difusão de conteúdos requerem não apenas suporte técnico, mas repensar os conteúdos que nelas serão divulgados. Quais são os caminhos que vislumbra com isso? Laurindo Leal – Em primeiro lugar, garantindo-se a diversidade. Não basta termos uma ampliação do espectro eletromagnético. É preciso que ele seja ocupado por emissoras que atendam às reais necessidades de cultura, lazer e informação existentes na sociedade. Em outras palavras, é preciso evitar que ocorra com a televisão digital o que aconteceu com a TV por assinatura: os mesmo grupos oligopolistas nacionais e internacionais ocuparam praticamente todo o espaço, reproduzindo o modelo da TV aberta.
IHU On-Line – Ainda pensa que a TV britâni-
ca é a melhor do mundo? Por quê? Laurindo Leal – Continuo considerando a televisão britânica a melhor do mundo. Em primeiro lugar, tal afirmação é corrente entre todos os que conhecem diferentes televisões mundiais. Depois, porque basta ver a procedência da maioria dos progra43
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
rem vistas na BBC ou nas demais emissoras do Reino Unido. Dou apenas dois exemplos: os programas sensacionalistas policialescos do final de tarde jamais seriam exibidos na TV daquele país. Lá é inadmissível que a TV acuse, julgue e condene pessoas como se faz por aqui, e tudo em meio a um grande espetáculo. O outro exemplo é o dos editoriais, como emissoras e jornalistas tomando partido em diferentes casos, não permitindo versões diferenciadas, usando dessa forma uma concessão pública para defesa de interesses privados e os comerciais, até para crianças, inseridos no meio dos programas. Isso não existe por lá.
IHU On-Line – O receptor também não será
mais o mesmo com as mídias digitais. Acredita que haverá mais exigência nos conteúdos recebidos? Laurindo Leal – Só se houver diversidade. Se isso ocorrer, o telespectador passará a ser mais exigente, uma vez que ele conhecerá modelos de programação alternativos aos da TV comercial. Senão, tudo ficará na mesma. Apenas a imagem será um pouco mais nítida. IHU On-Line – Como a TV digital será con-
duzida no Brasil, uma vez que recebe o incentivo do governo federal para sua implementação? Laurindo Leal – Acho que a TV digital não pode ser conduzida de forma separada de todo o modelo de radiodifusão existente no Brasil. Ela é apenas uma nova plataforma cujo funcionamento deve ser regulada pela Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, tantas vezes prometida e até hoje não elaborada.
IHU On-Line – Como o senhor descreveria a
atual situação de inclusão/exclusão digital no Brasil? Laurindo Leal – A TV digital poderá ser um grande passo na direção da inclusão digital. Há projetos do governo nesse sentido. A idéia é transformar o receptor de televisão num computador pessoal. Mas os atuais concessionários nem querem ouvir falar disso. Para eles, televisão digital é aumentar o número de canais sob seu controle e apresentar uma imagem mais nítida. A disputa é feroz.
IHU On-Line – Em comparação com o modelo britânico, como a TV brasileira se apre-
senta eticamente? Laurindo Leal – Muito distante dos padrões britânicos. Há cenas em nossa TV impensáveis de se-
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Inclusão digital é resgatar a dignidade do indivíduo Entrevista com André Barbosa Filho
“Inclusão digital é mais do que a oportunidade de acesso aos meios informatizados e à Internet. Vai, inclusive, além da capacitação para o uso das ferramentas digitais. É a possibilidade de, pelo domínio das técnicas e da linguagem deste novo alfabeto digital, resgatar, em grande parte da população dos países não-desenvolvidos ou em desenvolvimento, a dignidade do indivíduo, obtendo sua colaboração efetiva para a melhoria da qualidade vida do meio social em que vive”, afirma o Prof. Dr. André Barbosa Filho, assessor especial da Ministra Chefe da Casa Civil da Presidência da República para Políticas Públicas de Comunicação, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line, em 22 de agosto de 2005. Barbosa Filho é membro titular do Comitê de Desenvolvimento e do Grupo Gestor do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBDTV) e coordenador do subgrupo de conteúdo do SBDTV. Atua como Pesquisador Associado do Centro de Estudos de Economia da Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). É graduado em Direito pela USP, mestre em Comunicação Científica e Tecnológica pela UMESP e doutor na mesma área pela ECA/USP, com a tese Redes Radiofônicas: Conflitos e convi-
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vência entre as emissoras num cenário em transformação. De suas publicações, destacamos Os gêneros radiofônicos – os formatos e os programas em áudio. São Paulo: Paulinas, 2003; Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004, organizado com Ângelo Piovesan e Rosana Beneton; Mídias digitais. Convergência tecnológica e inclusão social. São Paulo, Paulinas, 2005, escrito com Cosette Castro e Takashi Tome. IHU On-Line – No final de 2003, o governo
propôs a criação do Serviço de Comunicações Digitais (SCD). Essa seria uma das principais ferramentas para promover a inclusão digital no Brasil. Qual é a situação dos projetos do governo Lula na área de tecnologia da informação? André Barbosa Filho – O governo do Presidente Lula tem se esforçado para que não faltem recursos a fim de que o programa brasileiro de inclusão digital seja um processo exitoso. Hoje, 27 projetos, distribuídos em diversos ministérios, permitem que, nas cinco regiões brasileiras, o acesso ao mundo digital seja uma realidade. São os programas de telecentros29, como as “Casas Brasil”,
Telecentros: O termo tem sido utilizado genericamente para denominar as instalações que prestam serviços de comunicações eletrônicas para camadas menos favorecidas, especialmente nas periferias dos grandes centros urbanos ou mesmo em áreas mais distantes. Essa experiência tem sido utilizada em iniciativas que vão desde a prestação de serviços de telefonia e fax em escritórios espalhados no Senegal até centros associados a projetos de telecomutação e teletrabalho na Europa e na Austrália. Outros termos usados como sinônimos ou como designações em outros idiomas têm sido: telecottage, centro comunitário de
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conectados à Internet por rede – STFC30 ou por satélite, como no caso do G-SAC31, com seus 4.200 pontos espalhados pelo país. Falta ainda utilizar os recursos do FUST32, para o qual se propõe o SCD33. Hoje, porém, está prosperando uma idéia mais simples e de grande repercussão social: a do “telefone para todos”, no qual se promoverá um ato de cidadania ao conectar escolas públicas e centros de saúde em todo o Brasil, conforme prevê a lei que criou o fundo. Esta idéia deve ser aplicada em curto prazo, sob os auspícios do Ministério das Comunicações.
construir e reconstruir conteúdos e produzir ações e produtos que permitam acelerar a integração de mais indivíduos ao mundo do conhecimento e da informação. Portanto, deve-se capacitar os grupos humanos para saber como usar o ferramental. A exclusão digital também significa não apenas a obstrução ao acesso aos meios digitais, mas ao afastamento destas camadas sociais da real condição de progresso individual, vivenciado no comprometimento com o desenvolvimento dos padrões de existência de sua comunidade. IHU On-Line – Qual o prazo para a inclusão
IHU On-Line – O que seria a inclusão digital?
desses serviços no Brasil? André Barbosa Filho – O desafio que temos pela frente é muito grande. O atraso, gerado por dezenas de anos de descaso com a educação e com a oferta de serviços básicos à população neste país, gerou problemas de difícil, mas não de impossível, resolução. Projetos como o “Luz para todos”34, levando eletricidade às localidades sem energia elétrica, o já mencionado uso do FUST para a oferta de conexão nas escolas públicas e centros de saúde devem ocorrer paralelamente, como já acontece, à oferta de projetos de inclusão digital para os outros setores da sociedade já usuárias destes benefícios. Gostaríamos de avançar mais rapidamente, pois sabemos que, a cada dia que passa, mais aumenta a brecha entre os
De que maneira ela está sendo entendida? André Barbosa Filho – Inclusão digital é mais do que a oportunidade de acesso aos meios informatizados e à Internet. Vai, inclusive, além da capacitação para o uso das ferramentas digitais. É a possibilidade de, por meio do domínio das técnicas e da linguagem deste novo alfabeto digital, resgatar, em grande parte da população dos países não-desenvolvidos ou em desenvolvimento, a dignidade do indivíduo, obtendo sua colaboração efetiva para a melhoria da qualidade de vida do meio social em que vive. É, na verdade, a restituição da cidadania a milhões de pessoas que poderão, pelo contato com este novo ferramental, instruir-se, apoderando-se do uso da tecnologia para
tecnologia, teletienda, oficina comunitária de comunicação, centro de aprendizagem em rede, telecentro comunitário de uso múltiplo, clube digital, cabine pública, infocentro, espace numérisé, Telestuben, centros de acesso comunitário etc. No Brasil, adota-se o termo “telecentro” como denominação genérica para abarcar toda essa gama de experiências. Do ponto de vista do público atingido diretamente por iniciativas como as dos telecentros, parece ser inegável que eles têm tido um papel de destaque no processo de universalização do acesso à Internet. E, mais ainda, se forem analisados os perfis dos diferentes públicos que deles se utilizam, não parece haver dúvida de que suas experiências têm agregado segmentos sociais que, dificilmente, teriam acesso à rede sem telecentros. (Nota da IHU On-Line) 30 STFC: Serviço de Telefonia Fixa Comutada. (Nota da IHU On-Line) 31 GSAC: Governo Eletrônico Serviço de Atendimento ao Cidadão. Programa de inclusão social do Governo Federal, coordenado pelo Ministério das Comunicações, que utiliza ferramentas de tecnologia da informação para promover inclusão digital em todos os estados brasileiros. O trabalho do Gesac foi desenvolvido com base em uma cesta de serviços em software livre que complementa a conectividade via satélite. (Nota da IHU On-Line) 32 FUST: Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações. Fundo composto por 1% da receita bruta operacional anual das empresas de telecomunicações. Tem a função de possibilitar investimentos sociais nas áreas de educação e saúde, além de realimentar e estimular as atividades das indústrias de telecomunicações e informática. Criado em 17 de agosto de 2000 pela Lei nº 9.998. (Nota da IHU On-Line) 33 SCD: Serviço de Comunicações Digitais, criado em 2003, por consulta pública, pelo ex-ministro Miro Teixeira para interesses coletivos, prestados em regime público, para permitir o acesso a redes digitais de informações, inclusive à Internet. A solução do sem fio e do uso de satélites para o SCD (há 11 locais de cobertura previstos) vai ser validada, já havendo consultoria estudando o assunto. Até 2009, todas as escolas públicas e bibliotecas deverão estar habilitadas para o SCD. (Nota da IHU On-Line) 34 Luz para Todos: Programa do Governo Federal iniciado em 2005 para acabar com a exclusão elétrica no País, levando energia elétrica para mais de 12 milhões de pessoas até 2008. (Nota da IHU On-Line)
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que detêm conhecimento e os que dele estão afastados.
entrega final de protótipos e de todo o sistema está previsto para dezembro do mesmo ano, com a decisão, a cargo do Presidente Lula, em fevereiro de 2006. O projeto tem muitas inovações e estas criações originais – middleware38 -, terminal de acesso, sincronismo de vídeo são propostas criadas nos laboratórios acadêmicos e devem virar verdadeiras commodities para uso por diversos sistemas existentes no mundo. Isso deve tornar o Brasil centro exportador de tecnologia, além de permitir que a população tenha acesso à transmissão digital audiovisual. Na verdade, o Brasil escolheu como objetivos principais para o desenvolvimento de seu sistema de televisão digital, a universalização dos serviços, pelo Super High Definition (SDTV39) mais simples e barato e que permite a oferta a todos os portadores de aparelho de TV analógico em cores, mesmo que conectado por antena interna. Além disso, não se esqueceu de oferecer a quem tem recursos, a opção de acesso ao High Definition Television (HDTV40), que permite a interatividade, grande diferencial da TV digital, ao lado das novas possibilidades de captação de imagens e sons em 3D41 e áudio sourround 5.142.
IHU On-Line – Uma das idéias iniciais dos
projetos do governo é oferecer acesso à Internet pela rede elétrica ou através das TVs. Como se dará essa novidade e de onde virão os recursos? André Barbosa Filho – O projeto Power Line Communication (PLC35) é uma forma barata de se obter conexão com a Internet, utilizando-se para isso dos pulsos da corrente elétrica. Esta técnica ainda está em fase experimental e será de grande valia para países como o Brasil onde há oferta de energia elétrica, tornando, por sua vez mais acessível, o ingresso das pessoas na rede mundial. O Brasil tem pesquisas importantes na área, principalmente nas Universidades e no CPqD36 de Campinas. O Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD37) é uma realidade auspiciosa. Reunindo mais de 1500 pesquisadores, entre mestres e doutores, de 76 universidades e centros de pesquisa brasileiros, integrados em 22 consórcios inter-regionais, iniciou seus testes de conceito, a partir de setembro de 2005. O prazo para a
PLC: Power Line Communications. Tecnologia que utiliza uma das redes mais comuns em todo o mundo, a de energia elétrica. A idéia desta tecnologia não é nova, entretanto apenas agora, com novos equipamentos de conectividade à tecnologia, está sendo avaliada por algumas empresas. Ela consiste em transmitir dados e voz em banda larga pela rede de energia elétrica. Utilizando uma infra-estrutura já disponível, não necessita de obras em uma edificação para ser implantada. (Nota da IHU On-Line) 36 CPqD: Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações. Ao longo de sua trajetória, o CPqD desempenhou um papel estratégico no setor das telecomunicações. Nos primeiros anos de sua existência, voltou-se prioritariamente para as tecnologias emergentes, pesquisando, desenvolvendo e transferindo para a indústria diversos produtos com tecnologias de ponta. Em 2000, o CPqD passou a participar mais fortemente do mercado internacional, estabelecendo-se no Vale do Silício (EUA), com uma estrutura operacional independente da brasileira, sendo um dos principais provedores de soluções de tecnologia de convergência, ocupando uma posição de destaque no cenário global das inovações tecnológicas. (Nota da IHU On-Line) 37 SBTVD: Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Criado pelo Presidente Lula pelo Decreto 4.901, de 26 de novembro de 2003. Busca criar uma rede universal de educação à distância e estimular a pesquisa e o desenvolvimento, bem como a expansão de tecnologias nacional, ligada à tecnologia da informação e comunicação são outras de suas metas. O SBTV quer ainda tornar possível a transição do sistema analógico de TV para o digital. (Nota da IHU On-Line) 38 Middleware: infra-estrutura que visa a interoperabilidade de aplicações de forma transparente, por meio de redes, arquiteturas de sistemas, sistemas operacionais, bases de dados e outros serviços de aplicação. (Nota da IHU On-Line) 39 SDTV: Standard Definition TV, ou Televisão com Definição Normal. Em TV digital, também existe a possibilidade de transmissão de SDTV: é um sistema com 525 linhas/quadro, com varredura intercalada, 30 quadros e com relação de aspecto de 16:9. O sistema SDTV possui 483 linhas ativas por quadro. (Nota da IHU On-Line) 40 HDTV: High Definition Television, sigla para Televisão Digital ou Digital TV. Sistema que usa uma forma de modulação e compressão digital para enviar vídeo, áudio e sinais de dados aos aparelhos compatíveis com a teconologia, proporcionando, assim, transmissão e recepção de maior quantidade de conteúdo por uma mesma freqüência (canal). (Nota da IHU On-Line) 41 Som em 3D: Também conhecido como som binaural, o som 3D tem o objetivo de proporcionar uma sensação de imersão. (Nota da IHU On-Line) 42 Áudio surround 5.1: a palavra surround denomina o efeito “tridimensional”, que dá a impressão de estarmos no meio da ação do filme. Os formatos de áudio surround são classificados por números, que representam os diferentes canais, ou número de caixas, que o home theater possui. O 5.1 é o mais comum e define o sistema surround típico, formado por cinco caixas 35
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IHU On-Line – No caso específico das rádios
IHU On-Line – Como se apresenta a conver-
digitais, quais serão as diferenças em relação ao modelo tradicional? André Barbosa Filho – O rádio pode ir mais rápido. Não se tem em mente o desenvolvimento, como no caso da TV, de um sistema brasileiro. Será possível utilizar, no Brasil, modelos internacionais. Entre os que são oferecidos estão o I-BOC43, norte-americano, os europeus DAB44 (utilizável em espectro diferenciado) e o DRM45, além do sistema japonês, que trafega no canal 06 VHF de TV. Devemos terminar os testes dentro de alguns meses e nossa opinião é que a digitalização das transmissões devem começar pela AM, que, por certo, deve ganhar muito em qualidade com esta transformação. A rádio deve também ser um instrumento de multisserviços, com a oferta de som digital com qualidade de DVD46, transmissão de dados no display de cristal líquido dos receptores, além de permitir a memorização de programações, sua edição, conexão com a Internet, uso de caixa postal eletrônica e emissão de cupons. E quem sabe, muito mais. É só desenvolver. Você não se habilita?
gência de mídias com a implantação do Serviço de Comunicações Digitais? O que mudará na mídia que afetará diretamente os cidadãos brasileiros? André Barbosa Filho – A convergência de mídias está mais ligada aos estudos que estamos iniciando, tendo em vista a implantação do GTI47 referente à Lei geral de Comunicação de Massa. Este processo atende a decreto do Presidente Lula. Devemos ouvir atores diferenciados e construir com eles os novos cenários negociais e as regras de convivência que permitirão a convergência. Esta é uma tendência mundial, e o Brasil não poderia esperar. Temos prazo de 180 dias para encerrar os trabalhos com uma proposta de anteprojeto de lei a ser encaminhado ao Presidente Lula. Questões como as novas possibilidades de conexão, como o já mencionado PLC, ou mesmo o WI-FI48 ou WI-MAX49 ou o sistema – Voz por IP – Voip50, as transmissões
acústicas (central, frontal e traseiras), além do subwoofer. Todos os equipamentos de home theater e softwares do mercado são configurados para operar em 5.1. (Nota da IHU On-Line) 43 Rádio I-BOC: In-Band-On-Channel. Tecnologia para o rádio digital adotada nos Estados Unidos. Ao contrário dos demais sistemas, o I-BOC foi concebido para possibilitar a transmissão simultânea dos sinais digitais dentro da mesma banda, alocada para o sinal analógico da emissora. No modo híbrido, ambos os sinais – o analógico e o digital – convivem dentro do mesmo canal. Na etapa posterior, o sinal analógico seria desativado, tendo-se uma transmissão totalmente digital, ocupando todo o canal. (Nota da IHU On-Line) 44 Rádio DAB: Digital Audio Broadcasting, nomenclatura européia para a tecnologia de rádio digital adotada nos Estados Unidos e conhecida como In-Band-On-Channel (I-BOC). (Nota da IHU On-Line) 45 Rádio DRM: Digital Radio Mondiale. Padrão de transmissão digital, já utilizado na Europa, que amplia as possibilidades de interatividade no rádio. (Nota da IHU On-Line) 46 DVD: Digital Versatile Disc (antes denominado Digital Video Disc). Contém informações digitais, tendo uma maior capacidade de armazenamento que o CD áudio ou CD-ROM, devido a uma tecnologia de compressão de dados. Os DVDs possuem, por padrão, a capacidade armazenar 4.7 Gigabyte (Gb) de dados, enquanto um CD armazena., em média, 700 Mb. Os chamados DVDs de Dupla Camada podem armazenar o dobro da capacidade de um DVD comum, ou seja, 9.4 Gb. (Nota da IHU On-Line) 47 GTI: Grupo de Trabalho Interministerial. (Nota da IHU On-Line) 48 WI-FI: Wireless (sem fio) ou Wi-fi (Wireless Fidelity) é um termo usado para receptores de rádios que começou a ser empregado no Reino Unido logo depois que uma rádio passou a transmitir para outros sinais. Um protocolo de comunicação sem fios, desenhado com o objetivo de criar redes wireless de alta velocidade e que não faz mais do que transferir dados por ondas de rádio em freqüências não-licenciadas. É precisamente por serem freqüências abertas, não necessitam de qualquer tipo de licença ou autorização do regulador das comunicações para operar, ao contrário das demais áreas de negócio, o que as torna tão atrativas. (Nota da IHU On-Line) 49 WI-MAX: norma técnica baseada no padrão de transmissão rádio 802.16, validado em 2001 pelo organismo internacional de normalização IEEE. É desenvolvida pelo consórcio Wimax Fórum. Permite emitir e receber dados nas bandas de freqüências de rádios de 2 para 11 GHz. Teoricamente, o 802.16 oferece um débito máximo de 70 megabits por segundo num alcance de 50 Km. Na prática, isso permite atingir 12 megabits por segundo sobre um alcance de 20 Km. (Nota da IHU On-Line) 50 VoIP: Voz sobre Protocolo de Internet. Telefone por IP, VoIP ou Voz sobre uma infra-estrutura IP é a tecnologia que torna possível estabelecer conversações telefônicas na Internet ou uma rede IP em vez de uma linha dedicada à transmissão de voz, prescindindo da comutação de circuitos e o seu conseqüente desperdício de largura de banda. Esta capacidade permite a redução dos custos de telefone e fax das empresas, pois converge serviços de dados, voz, fax e vídeo e também constrói novas
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de conteúdo por celulares, o triple play51 nas transmissões a cabo e radiodifundidas e as transmissões por satélite serão alvo destes trabalhos.
IHU On-Line – Que possibilidade de des-
centralização dos monopólios televisivos as mídias digitais poderão trazer? Como pode se prever que esses monopólios não aumentem e sejam os novos monopólios digitais? André Barbosa Filho – A questão da propriedade cruzada é um dos pontos mais importantes a ser discutida na Nova Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa. Não se pode conceber como igualmente se entende, na maioria dos países desenvolvidos, que um grupo seja detentor de um número excessivo de meios de informação. Além de ferir o senso comum que determina ser o fluxo de informações e a multiprogramação, as garantias efetivas para que o conhecimento seja um bem universal, a concentração de propriedade dos meios gera um poder inaceitável e, portanto, desequilibra as relações sociais. Estamos atentos para que essas regras possam garantir, como já o preconiza os artigos 221 a 225 da Constituição Federal, a livre expressão do pensamento e o acesso do indivíduo à informação.
IHU On-Line – Como a Lei 9472, que rege o
Serviço de Comunicações Digitais, irá atualizar as questões normativas das mudanças advindas das mídias digitais? André Barbosa Filho – Volto a ressaltar que o SCD surge como a regra para utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) e deve ser utilizado em projetos como o “Telefone para todos” que já mencionamos. Portanto, a mudança no marco regulatório virá com a Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa. Vale frisar que todo este projeto de mudança deve estar acoplado a projetos de implantação de plantas industriais no Brasil e que estejam apoiados por programas de incentivo à produção de softwares de conteúdo, de semicondutores e microprocessadores. Aí teremos completado todo o ciclo inicial estruturante que permitirá ao Brasil produzir tecnologia melhor e mais barata e mesmo ser um pólo exportador destes produtos de alto valor agregado.
infra-estruturas para aplicações avançadas de e-commerce (ex., Call center Web). Os programas mais utilizados no Brasil são o Skype e o VoxFone. (Nota da IHU On-Line) 51 Triple play: solução de convergência entre voz, dados e imagem, em um ambiente de televisão por assinatura, principal possibilidade de crescimento para o setor. (Nota da IHU On-Line)
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A TV digital será acessível a todos a partir da TV aberta Entrevista com Ricardo Benetton
Para Ricardo Benetton Martins, coordenador de pesquisa sobre TV digital na Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqd), o início da TV digital no Brasil pode demorar ainda algum tempo. Em entrevista concedida, por e-mail à IHU On-Line, em 22 de agosto de 2005, ele afirma que “a análise da experiência internacional mostra que são necessários mais de dez anos para que, a partir das primeiras transmissões digitais, ocorra uma implantação completa. Isso em países com poder de investimento e de compra muito maiores que o Brasil”. Benetton é graduado e mestre em Física pela Unicamp e doutor em Física pela Université de Paris XI (Paris-Sud), França. O tema de sua tese é Ciência dos materiais. É organizador do livro Estudo de dispositivos semicondutores por catodoluminescência. Campinas: Unicamp, 1989.
tões não-tecnológicas, como, por exemplo, o modelo de serviços e negócios associado à implantação da TV digital no Brasil e os impactos que estes podem trazer à sociedade; a outra, focada nas provas de conceito de diferentes tecnologias habilitadoras desses serviços. Tanto as tecnologias habilitadoras quanto as formas de exploração dos serviços e negócios têm como base os modelos e sistemas internacionais, respeitando-se as particularidades do Brasil. Uma visão do trabalho de levantamento das experiências internacionais pode ser obtida no documento Panorama Mundial da Implantação da TV Digital Terrestre, elaborado pelo CPqD, homologado pelo Grupo Gestor e disponibilizado no site do SBTVD (www.mc.gov.br). Quanto à situação do projeto SBTVD, entre 10 de dezembro de 2005 e 10 de janeiro de 2006, as respostas tecnológicas serão confrontadas com as necessidades advindas da análise cultural, social e econômica, em fase de consolidação pelo Grupo Gestor, para que seja elaborado o chamado Modelo de Referência para o Sistema Brasileiro de TV Digital.
IHU On-Line – Qual é a situação do modelo brasileiro de TV digital? As experiências de
outros modelos internacionais estão sendo utilizadas aqui? Ricardo Benetton – O Projeto do Sistema Brasileiro de TV digital – SBTVD – visa a discutir, em sua fase inicial (até fevereiro de 2006), as alternativas de exploração – e seus respectivos impactos de ordem tecnológica, econômica, social e regulatória para inserir a televisão digital terrestre no País. A proposta de desenvolvimento tecnológico pretende avançar com base nos sistemas e padrões já existentes, buscando aperfeiçoar ou customizar os sistemas que estão em operação ou pré-operação comercial. O SBTVD atua, portanto, em duas grandes frentes e de forma simultânea: uma holística, abrangente, procurando responder às ques-
IHU On-Line – Há uma previsão de imple-
mentação da TV digital no Brasil? Como se dará a sua viabilização tecnológica? Ricardo Benetton – A implantação da TV digital no Brasil é parte do Modelo de Referência. Estamos trabalhando com cenários que consideram uma variação de um a três anos para o desenvolvimento e adaptação das tecnologias habilitadoras e dos serviços e mais de uma década para se completar a implantação. Ou seja, pode-se iniciar a transmissão digital já no final de 2006 ou em 2008, dependendo do que será desenvolvido no
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Brasil e da estratégia para o plano de implantação. Esperamos que, nos próximos meses, o governo, na figura do Comitê de Desenvolvimento do SBTVD, defina valores e prazos para que o desenvolvimento e a implantação alcancem os objetivos explicitados no Decreto 4.901, de 23 de novembro de 2003. De qualquer forma, a análise da experiência internacional mostra que são necessários mais de dez anos para que, a partir das primeiras transmissões digitais, ocorra uma implantação completa. Isso em países com poder de investimento e de compra muito maiores que o Brasil. Nos países do leste europeu, por exemplo, a implantação da TV digital terrestre está em um estágio inicial, pois há muita dificuldade em se imaginar como viabilizar os investimentos necessários, tanto das produtoras de conteúdo e emissoras quanto dos cidadãos. Nesse último caso, em especial, o projeto SBTVD é citado pela Comunidade Européia como uma abordagem a ser observada, pois trata a interatividade e a inclusão social como elementos importantes no processo de difusão dessa nova tecnologia. A viabilidade tecnológica pode ser analisada sob dois aspectos: a viabilidade de desenvolverem-se as tecnologias no Brasil e a viabilidade de elas serem ofertadas. Ambas as questões, a exemplo da implementação, fazem parte dos estudos que compõem o Modelo de Referência, ou seja, só se pretende encaminhar ao governo, na figura do Comitê de Desenvolvimento, tecnologias que se mostrem viáveis tanto do ponto de vista da produção industrial quanto da comercialização, envolvendo, nesse estudo de viabilidade, os aspectos logísticos em toda a cadeia produtiva, desde os fornecedores de insumos até a distribuição e manutenção dos produtos e serviços ofertados.
a partir do sinal de tevê aberta. Assim, mesmo que o mercado siga o seu caminho, digamos natural, iniciando a transição pelos cidadãos de maior poder aquisitivo e pelas emissoras das cidades com maior índice de poder de compra, o governo, ao definir os modelos de exploração e de implantação, pretende favorecer a oferta de serviços que incluam a cultura digital, naquele que é o maior veículo de informação desse país, bem como a implantação nas classes de menor poder aquisitivo e nas regiões menos atraentes para as emissoras comerciais. Para tanto, é importante que o usuário final dos serviços possa dispor de um terminal simples e de baixo custo para estimular a adesão aos serviços. Assim, a introdução da TV digital no País não deve ferir os princípios de acessibilidade e universalização, que já se consolidaram nos serviços de radiodifusão, cabendo aos receptores digitais (Unidades Conversoras) preços compatíveis e aplicações atinentes com a realidade socioeconômica da população que tem a televisão como principal meio de informação e entretenimento. IHU On-Line – Quais são os requisitos téc-
nicos para uma pessoa adquirir os serviços da TV digital? Ricardo Benetton – Para que se possam usufruir os serviços e aplicações de TV digital, é necessário um terminal compatível com a informação digitalizada, ou seja, um televisor completamente digital, ou uma unidade conversora que a transforme em analógica para poder ser aproveitada em um televisor comum. Quem possui TV por assinatura em casa já sabe o que é um equipamento conversor dessa natureza. A sua arquitetura é muito próxima a de um computador bastante simples, acrescido de um receptor de sinal digital e de saídas analógicas de áudio e vídeo. Há nele um hardware e um software para o processamento dos sinais e informação digitais, possibilitando o seu uso pelo espectador. Esse software é um dos requisitos fundamentais para a fruição dos serviços digitais. Esses serviços e aplicações devem ser adaptados ao ambiente televisivo, ou seja, não devem trazer consigo a filosofia da Internet e seu uso no computador pessoal, mas, sim, serem compatíveis com
IHU On-Line – Para quem é dirigida a TV di-
gital? Quem terá acesso? Ricardo Benetton – No caminho para a democratização da informação, o Sistema de Televisão Digital Terrestre Brasileiro, de acordo com o decreto 4.901, deverá permitir ao cidadão, independente de sua condição socioeconômica, o acesso à tecnologia digital e aos serviços a ela associados,
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um ambiente de fruição em grupo (familiar), uso de controle remoto e uma tela de menor resolução que a de um computador.
ou apostar, exercitando uma mediação familiar que pode agregar novos conceitos na experiência de se “assistir” à televisão. Nessa nova configuração, acredito que a experiência televisiva possa ser, realmente, inovadora em sua essência.
IHU On-Line – Quais são as principais faci-
lidades e serviços oferecidos pela TV digital? O que mudará no ato de ver televisão, já tão difundido no cotidiano das pessoas? Ricardo Benetton – Os serviços podem ser separados em distribuição e interativos. Os serviços de distribuição seriam os programas em alta definição e em formato 16:9, ou em definição standard e em formato 16:9 ou definição standard e em formato 4:3, o último muito parecido com o que já possuímos hoje a menos da qualidade de recepção, que, se bem trabalhada, vai melhorar muito, e da possibilidade de se oferecer até quatro programas diferentes em um mesmo canal. Esses serviços mudariam muito pouco o hábito de se ver televisão, mesmo que a melhoria na qualidade de imagem seja sensível, o ato de ver televisão continuará, em essência, a ser o mesmo. Além desses serviços, as aplicações que usariam a interatividade local – sem necessidade de um canal de interatividade – como informações extras sobre o programa que está sendo distribuído ou escolha de um ângulo de câmera, acrescentariam novas possibilidades, mas ainda mudando muito pouco o ambiente de fruição. A situação começa a ficar um pouco mais sofisticada e diferente quando se inserem os serviços que fazem uso do chamado canal de interatividade. Esses serviços, por sua vez, podem ser separados em comunicação, como mensagens e correio eletrônico; entretenimento e informação, como participação em programas e jogos on-line; e transação, como t-commerce, t-banking, apostas, jogos ou demanda por evento. Nesse caso, os investimentos, seja pelo lado das emissoras e provedores de conteúdo, como pelo lado dos cidadãos aumentariam, pois os equipamentos e softwares necessários terão que ser mais sofisticados, se bem que o ambiente de fruição se tornaria uma nova experiência. Imagine, por exemplo, uma votação ou aposta. Os espectadores terão que negociar em que, ou em quem votar
IHU On-Line – Há algum outro aspecto que
deseja destacar e que não foi perguntado? Ricardo Benetton – A questão da produção de conteúdo digital. Esse aspecto é tão ou mais relevante que todos os demais que discutimos acima. É difícil imaginar as possibilidades e os novos conceitos que podem ser explorados pelos produtores de conteúdo quando pensamos em conteúdo interativo ou não-linear, por exemplo. Programas com diferentes evoluções, em função das escolhas dos espectadores, algo como um “você decide”, mas não somente o final, toda uma nova trama se desenrolando com base nas escolhas feitas ao longo do programa. Ou ainda, tramas observadas por diferentes protagonistas, citando apenas algumas das idéias que já vi ou ouvi a respeito. É claro que algumas condições do modelo de negócio atual teriam que ser alteradas para dar vazão a estas alternativas. É difícil imaginar como pagar alguns atores de grande popularidade para realizar duas ou mais versões de um mesmo programa, ainda mais se a receita para o programa não for maior graças a essas possibilidades. Apesar disso, é fato que a produção de conteúdo fica mais accessível, dependendo mais das possibilidades de escoamento que de produção. O conteúdo digital viabiliza conceitos totalmente inovadores, trazendo possibilidades para a chamada mídia participativa, como, por exemplo, o eye-pod, ou seja, o uso do ipod para troca e envio de vídeos além de mensagens, músicas ou fotos. (http://www.technologyreviewcom/articles/05/08/wo/ wo_080505hellweg.asp). O importante é que todas essas possibilidades têm forte relação com a efetiva apropriação das tecnologias habilitadoras. Cabe a nós, brasileiros, decidirmos se seremos seguidores ou líderes nessa nova possibilidade de mudança cultural e tecnológica.
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“A Internet é uma utopia: o homem nunca foi tão sozinho” Entrevista com Marie-France Bouilly
A professora francesa Marie-France Bouilly afirma que “se podem fazer coisas horríveis pela Internet. Não penso que o homem esteja se comunicando. Para que essas novas tecnologias? Não há mais limites. O homem está se tornando insensato com esse instrumento que o permite ‘navegar’ pelo mundo inteiro, com inúmeras informações mais ou menos justas. Tenta-se criar utopias, tenta-se construir grandes cidades planetárias, uma cyber cidade planetária. Não é verdade. O homem nunca foi tão sozinho”. A entrevista, a seguir, foi concedida por Marie-France, à IHU On-Line, em 24 de outubro de 2005.
IHU On-Line – A senhora tem uma idéia da ra-
zão de os homens não se comunicarem mais ou por que há esse problema atualmente? Marie-France Bouilly – Há hipóteses. Alguns dirão que os homens se comunicam. Encontramo-nos no seguinte problema: a facilidade existe, e não nos deslocamos mais, enviamos um e-mail. Acho normal e fabuloso poder me comunicar com o Brasil pela Internet. Comuniquei-me com a Universidade e organizei meu deslocamento. Perfeito. Entretanto, não é normal que a 30 quilômetros de meu domicílio, as pessoas com as quais trabalho me enviem um e-mail e não usem mais seus telefones. Para mim, a mais bela invenção do século XX é o telefone. Nele se tem o contato humano. Penso que a comunicação está, antes de tudo, baseada no contato humano e, com a Internet, não há mais isso. Os jovens estão hipnotizados diante do monitor do computador. Não se movem mais, tornam-se tão cinzentos quanto seus computadores e não se comunicam mais. Estamos em um mundo fechado. Então, penso que não estamos na era da comunicação, mas, na da intoxicação da comunicação. Da desinformação total. Por quê? Expliquei também em minha intervenção que se pode difundir muitos rumores, fazer coisas horríveis pela Internet. Não penso que o homem esteja se comunicando. Para que essas novas tecnologias? Não há mais limites. Na França, temos a expressão il faut raison garder (é preciso manter a razão) e penso que o homem está se tornando insensato com esse instrumento que o permite “navegar” pelo mundo inteiro, com inúmeras informações mais ou menos justas. Tenta-se criar utopias, tenta-se construir grandes cidades planetárias, uma cyber cidade planetária. Não é verdade. O homem nunca foi tão sozinho.
IHU On-Line – Quais os principais aspectos
abordados pela senhora em sua conferência? Marie-France Bouilly – Na minha conferência, falei das cyber cidades planetárias que nos são impostas, pois não é necessariamente uma escolha. Falei da dificuldade que os homens têm atualmente em se comunicar. Estamos na era da comunicação, no milênio da comunicação, e penso que nunca nos comunicamos tão mal. Falei também das tecnologias que não mudaram. Um comunicado de imprensa será sempre um comunicado de imprensa, um dossiê de imprensa será feito sempre da mesma forma. O que vai mudar é o meio de transferi-los aos jornalistas implicados no processo. É preciso saber que, na França, os jornalistas recebem tantos documentos pela Internet, que atualmente têm um bloqueio. Eles não os lêem mais, colocam-nos diretamente na lixeira. Isso provoca problemas, pois atualmente eles nos pedem para enviar-lhes coisas pelo correio. Nunca utilizamos tanto papel e imprimimos tanto como desde que começamos a utilizar a Internet. Para mim, a Internet é uma utopia. 53
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
olhar, um contato com seu cliente, seu interlocutor. Como queremos definir a personalidade do indivíduo que está diante de nós, pelo monitor? Um monitor é frio, vazio, glacial. A vida não é assim, é de outra forma. Estamos em pleno isolamento. O homem se isola. Há muita angústia. Será que ele tem medo? Penso que ele teme o mundo real no qual vive. Isso é certo. Podemos fazer uma videoconferência onde cada um fala de seu país sobre o tema. Mas é tão agradável vir ao encontro dos outros. E isso está terminando. Estão se criando cyber robôs.
IHU On-Line – Por que é importante trazer
esse debate a um congresso internacional e ao meio acadêmico? Marie-France Bouilly – É interessante conduzir esse debate, pois estamos no centro dele. Essa geração de estudantes tem a mesma problemática, tanto na França quanto no Brasil. É um problema interplanetário e consegue-se que as pessoas, enquanto temos meios de comunicação extraordinários, tais como o trem TGV (Trem de Grande Velocidade), o avião, o telefone, se reúnam para manter justamente esse contato. Os homens separam-se cada vez mais, fecham-se. Eu ainda não consigo entender verdadeiramente a causa disso. Estamos em uma sociedade do isolamento. Observe que, na atualidade, pode-se trabalhar do interior da zona rural. Existe o telefone celular, o monitor e não há mais necessidade de sair de casa. Desligamo-nos do mundo real. Vivemos em um mundo virtual. E isso, para mim, que sou uma mulher de contatos, é muito difícil de entender. Nada substituirá um aperto caloroso de mão, um
IHU On-Line – De que maneira as novas tecnologias podem se tornar instrumentos políticos de construção da cidadania? Marie-France Bouilly – Hoje se pode fazer tudo pela Internet. Pode-se votar, gerenciar a conta diretamente, mas não se pode responder sobre isso. Estou mais voltada para a comunicação pura, a verdadeira comunicação: a do encontro do outro.
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O controle da Internet por uma organização é ilusório Entrevista com Ethevaldo Siqueira
“Em 2015, a Internet deverá alcançar mais de 4 bilhões de usuários no mundo, ou seja, mais de 60% da população que o Planeta deverá ter naquele ano. Sendo ainda mais otimista, os benefícios da Internet no futuro serão inegavelmente maiores do que os males que, seguramente, nos causará”. A declaração é de Ethevaldo Siqueira, jornalista especializado em Tecnologia da Informação e Telecomunicações. Colunista do jornal O Estado de S. Paulo e comentarista da Rádio Eldorado de São Paulo. Ethevaldo tem seis livros publicados, o mais recente tem o título 2015 – Como Viveremos, publicado pela Editora Saraiva – SP, 2005 e trata do impacto das novas tecnologias da informação e das comunicações na vida humana na próxima década, mostrando a visão de mais de 50 cientistas sobre o futuro. A entrevista que segue, feita pela equipe da IHU On-Line com Siqueira sobre os rumos da Internet e as resoluções da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação, encerrada no dia 18 de novembro de 2005, em Túnis, foi publicada nas Notícias Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu, em 1º de dezembro de 2005.
temas de telefonia do mundo hoje em dia. O senhor concorda com essa afirmação? Ethevaldo Siqueira – O “controle” da Internet por uma organização – americana ou internacional – é mais ilusório do que real. A regionalização já vai acontecendo, de fato. O tamanho da rede, hoje com mais de 2 bilhões de usuários, torna quase impossível qualquer tipo de interferência de um órgão centralizador. O que nos deve preocupar é a questão da segurança e da confidencialidade da comunicação. No caso da segurança, o mundo precisa adotar todas as formas de ações para acabar com a vulnerabilidade da rede à fraude, ao roubo de identidade, à disseminação de vírus, de quaisquer formas de difusão de estímulo à pedofilia, ao terrorismo, à propaganda nazista etc. IHU On-Line – Como isso se reflete nos ou-
tros países? Ethevaldo Siqueira – Num ambiente unipolarizado em que os Estados Unidos se tornaram única superpotência do Planeta, o grande benefício dos norte-americanos é o acesso à maior massa de informação sobre tudo que se possa imaginar. Só para se ter uma idéia da disponibilidade de informação que favorece os norte-americanos, lembro que apenas os dois grandes sites de busca Google e Yahoo dispõem hoje de 30 bilhões de páginas. Até minha atividade jornalística, eu que não sou celebridade, chega a dispor de mais de 20 mil referências nesses sites. Por ter quase 50% de sua população conectada à Web, os Estados Unidos são claramente beneficiados pela Internet. A grande questão é a da inclusão digital em todo o mundo.
IHU On-Line – O secretário-geral da União
Internacional de Telecomunicação, órgão ligado à ONU, e da Cúpula Mundial sobre a Sociedade de Informação, que aconteceu em Túnis, Yoshio Utsumi, afirmou que a Internet, centralizada sob o comando de uma organização “quase independente” americana, tende a regionalizar-se. Isso com o surgimento de redes de países ou grupos de países que se comunicarão entre si mais ou menos como ocorre com os diversos sis-
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
oportunidade de cobrir dezenas de reuniões desse tipo, na União Internacional de Telecomunicações, na Unesco, na FAO e na OMS. Acho que elas constituem ótima oportunidade de relacionamento das pessoas e de análise de problemas, mas nunca de solução concreta dos grandes males que focalizam.
IHU On-Line – Brasil e China questionam
quem deve gerir a Internet, afirmando que há necessidade de criação de uma organização internacional, multilateral e mais transparente para isso. O que o senhor pensa a respeito disso? Ethevaldo Siqueira – No estado atual da política internacional, é pura utopia. Num futuro de cinco a dez anos, especialmente com o crescimento da China, talvez tenhamos mais chance de constituir uma entidade com as características mencionadas em sua pergunta. É claro que, nesse futuro, também corremos o risco de ver a China substituindo os Estados Unidos, nessa hegemonia ou nesse “controle” que, repito, é mais aparente que real.
IHU On-Line – Quais, na sua opinião, serão
os rumos e usos da Internet nos próximos anos? Ethevaldo Siqueira – Em seu estado atual, a Internet é praticamente incontrolável. Num horizonte mais distante, uma década, digamos, ela poderá ser melhorada, graças a recursos tecnológicos especiais o padrão IP versão 6 (Ipv6) e novas linguagens de programação. Sob outros aspectos, a Internet mundial tende a tornar-se não apenas mais intensamente utilizada pela humanidade como indispensável. Quanto às aplicações, deverá estar voltada predominantemente para o comércio eletrônico, embora ainda sujeita a todos os tipos de contaminação e ataques de hackers, fraudadores, criminosos e outros violadores dos direitos básicos dos usuários. É claro que projetos colaborativos extraordinários – como a www.wikipedia.org – poderão multiplicar-se e produzir excelentes resultados para milhões de seres humanos. Lembro-lhe, por fim, que, em 2015, a Internet deverá alcançar mais de 4 bilhões de usuários no mundo, ou seja, mais de 60% da população que o Planeta deverá ter naquele ano. Sendo ainda mais otimista, os benefícios da Internet no futuro serão inegavelmente maiores do que os males, que, seguramente, nos causará.
IHU On-Line – No encerramento da Cúpula,
afirmou-se ser possível reduzir o abismo digital entre ricos e pobres em uma década e fazer todas as localidades do Planeta estarem conectadas à Internet em 2015. Isso será de fato possível? Ethevaldo Siqueira – A Cúpula é mais um evento – como dezenas deles no plano internacional – em que se reúnem líderes, governantes e especialistas, com discursos retumbantes, solenidades e muito banquete, sem qualquer resultado prático ou concreto – de efetiva inclusão digital. Dou um exemplo minúsculo mas significativo. Um prefeito inteligente e honesto – como o do município de Sud Menucci, no interior de São Paulo – faz muito mais pela inclusão digital do que qualquer cúpula de cartolas. Imaginemos se mil, 3 mil ou mais municípios brasileiros buscassem fazer o mesmo? Como jornalista, há quase 40 anos, tive a
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Mídia digital e universo acadêmico Entrevista com Hiliana Reis
Hiliana Reis é professora na área de Ciências da Comunicação da Unisinos. Graduada em Pedagogia pela PUC-SP, mestre e doutora respectivamente em Ciências da Comunicação pela USP e pela Universidad Autônoma de Barcelona, Espanha. Sua tese intitula-se Ampliación de los procesos comunicativos en la enseñanza a distancia: análisis de tres modelos de tutoria. Hiliana é também diretora adjunta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. A entrevista, que segue, foi concedida pela professora, por e-mail, à IHU On-Line, em 24 de outubro de 2005.
utilize o termo intercâmbio para designar a mobilidade estudantil, o MEC oferece diferentes modalidades de programas interinstitucionais ou acordos entre países, de caráter técnico-científico-cultural, que contemplam diferentes especificidades e normatizações. Entre as ofertas, há uma modalidade conhecida como estudante intercâmbio em que alunos de universidades brasileiras e estrangeiras são admitidos em outra instituição, que não a de origem, e constitui-se como complementação de estudos, por um período que não exceda a dois semestres. Além dessa modalidade, há outras como o Programa Estudante Convênio Graduação (PEC-G) e o Programa Estudante Convênio Pós-Graduação (PEC-PG). Entretanto, não há uma unanimidade no uso dos termos, como pude verificar. Por exemplo, na Unisinos, denomina-se oficialmente como estudante convênio o aluno que atende às especificações do aluno intercâmbio, porque resultam de convênios e parcerias interinstitucionais. Retomando à sua questão, como utilizo um referencial teórico fundamentado nos estudos de recepção53, pude observar que é do lugar de estudantes universitários internacionais que a amostra analisada utilizava as ferramentas e os conteúdos disponibilizados no ciberespaço. O fato de serem estudantes universitários cria necessidades de uso do computador para digitação de textos, mas, sobretudo, para buscas em bancos de dados temas ligados às disciplinas, e em maior grau, às pesquisas. Há uma nítida separação entre os usos que os estudantes do ensino secundário e universitário realizam e, entre estes, há um grande salto qualitativo entre os estudantes que partici-
IHU On-Line – Quais são os usos sociais
que os estudantes estrangeiros, em intercâmbio no Rio Grande do Sul, fazem das ferramentas da mídia digital? Hiliana Reis – A sua pergunta é interessante porque remete a alguns equívocos que cometi ao elaborar o projeto de pesquisa Migrações, interculturalidade e universo acadêmico: usos sociais da mídia digital, que está em fase final de elaboração. Como não tinha proximidade com as questões legais, inicialmente abordei o tema, usando os termos “estudantes estrangeiros” em “regime de intercâmbio”. Entretanto, em consonância com os objetivos propostos pelo estudo de casos52, o diagnóstico de situação, permitiu-me aprofundar o conhecimento sobre o objeto de estudo e acrescentar novos significados aos conhecimentos existentes sobre o assunto. A partir de 1998, por uma deliberação do Ministério das Relações Exteriores, o estudante estrangeiro passou a ser denominado estudante internacional. Embora comumente se 52 53
Ary, Jacobs y Razavieh, 1987:308. (Nota da entrevistada) SOUSA, 1995, 2000; MARTÍN-BARBERO, 1993, 1995, 1998. (Nota da entrevistada)
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
pam de grupos de pesquisa e os demais. Os estudantes de doutorado utilizam mais os sites de conteúdos específicos de seus objetos de pesquisa, especialmente o da Capes, interagem com certa freqüência com pesquisadores de outros países e, dependendo da área, buscam mais textos em inglês. Embora todos dêem preferência aos textos de sua língua materna, os estudantes das áreas de humanas fazem poucas incursões em textos em inglês ou francês, ao contrário dos estudantes de áreas técnicas, medicina, engenharia e biologia, cujas pesquisas de ponta são realizadas nos países com maior potencial de investimento em pesquisa, como, por exemplo, Estados Unidos, Japão, Inglaterra, cujos textos são publicados em inglês. Portanto, do ponto de vista dos usos sociais das tecnologias, nota-se uma diferença qualitativa à medida que avançam nos níveis de ensino, mas também diferenças entre as áreas de conhecimento. Além disso, o fato de serem estrangeiros, vivendo em um outro país, acrescenta uma outra necessidade de uso das ferramentas para se comunicarem com amigos e parentes de outros locais. Aí também a pesquisa revela dados interessantes. O e-mail passa a ser uma ferramenta indispensável, inclusive pelo baixo custo e rapidez, para trocas de mensagens particularizadas, de caráter intimista, entre amigos e entre familiares. Entretanto, pude observar que as mães, via de regra, dependem dos filhos e dos maridos para usarem o computador e a Internet. Outro dado que foi bastante relevante na pesquisa foi a exclusão digital que ainda recai sobre as famílias africanas e algumas etnias latino-americanas. A desigualdade socioeconômica é uma realidade comum aos dois continentes e torna-se muito visível nas disparidades de uso e de acesso às mídias digitais. E sobre essa questão, há que acrescentar o alto índice de analfabetismo presente, sobretudo, na África, que exclui uma grande porcentagem de sua população do acesso aos benefícios tecnológicos. O que nos faz repensar e tratar com muito cuidado os alardeados benefícios e a decantada democratização dos processos de comunicação. Ao mesmo tempo, essas análises demonstram a importância e a relevância dos acordos que o Brasil mantém com os países da América Latina e da África.
IHU On-Line – Como as experiências inter-
culturais afloram nesse contexto e qual seu impacto no processo comunicacional? Hiliana Reis – Sobre esse tema, há algumas questões interessantes. Como os estudantes de doutorado interagiam com relativa freqüência com pesquisadores de outras nacionalidades, observaram algumas características de comportamento presentes nas interações virtuais. Os japoneses, por exemplo, foram descritos como muito delicados e cuidadosos nas suas exposições. Passam a impressão de que escolhem bem as palavras para não serem indelicados ou mal-interpretados nas interações on-line, ao contrário de internautas de outros países, que são mais diretos, e, algumas vezes, até deixam transparecer uma certa agressividade. São estéticas de sensibilidade ou comportamentos éticos, passíveis de serem observados, que interferem nas interações pessoais realizadas no ciberespaço. Ao contrário do que se poderia supor, as dificuldades de uso da mídia, sob o ponto de vista semântico, foram trazidas pelos africanos de língua portuguesa e não pelos hispânicos. Ao entrarem em blogs de jovens aficcionados à Internet, desconheciam muitos termos específicos utilizados pelas tribos, que causam estranhamentos aos neófitos. As duplas interpretações sobre um termo, sobretudo os de caráter sexual, também foram apontadas como uma das dificuldades de uso. Isso põe em relevo a dinamicidade da cultura midiática, que incide nos diferentes usos da linguagem e na construção de novas formas de interação comunicacional. Além disso, foi possível observar que as definições de intracultural e intercultural, quando analisadas em processo, não se sustentam. São conceitos fluídos que se interpenetram no cotidiano das práticas culturais, que permitem outras formas de análise e a proposição de novos conjuntos. Se considerarmos a variável língua portuguesa, tanto os africanos de língua portuguesa como os brasileiros, pertencemos à categoria intracultural, mas, do ponto de vista dos idiomas nativos, dos costumes, da história, da localização geográfica etc., somos interculturais e multiculturais. Vale ainda mencionar a formação híbrida da nossa constituição. Tanto com relação aos latino-americanos de fala
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
hispânica, como com relação aos africanos, temos muitas aproximações identitárias, seja pela história de colonização, seja pela hibridização étnica que nos configura e até mesmo lingüística, que muito deve às culturas indígenas e africanas. Aliás, ainda que a qualidade do ensino e da pesquisa tivessem sido fatores determinantes pela escolha das universidades brasileiras, as identificações culturais e lingüísticas com o País e com o Rio Grande do Sul também pesaram na seleção da amostra. Outro aspecto muito ressaltado na pesquisa foi a importância que o grupo delega às informações pessoais obtidas por meio das pessoas que confiavam e com as quais se identificavam. E mesmo os poucos estudantes que utilizaram a mídia digital para obter informações sobre as universidades brasileiras destacaram a importância das respostas personalizadas às questões que enviaram, ou seja, à intermediação de funcionários e de professores.
e C, e a uma pequena parcela da classe D. Os usos, porém, dependem de outras competências, que dependem de uma educação qualificada. Não podemos separar o acesso às tecnologias e à inclusão digital da inclusão socioeconômica. O modelo perverso de distribuição de renda, ainda dominante na África e na América Latina, incide também de forma perversa no uso dos bens culturais. Gostaria de ressaltar que a inclusão digital não se faz por decreto e com a distribuição de computadores. Os usos sociais dessas ferramentas e conteúdos são regidos por outras lógicas, muitas das quais são extremamente sofisticadas. Uma outra questão interessante, apontada na pesquisa foi a disparidade existente entre as lógicas selecionadas pelos programadores de conteúdos e as lógicas de busca dos usuários. Perde-se muito tempo para encontrar a informação requerida e, nem sempre, ela é confiável. IHU On-Line – Quais são os aspectos mais
IHU On-Line – Quais as mudanças que a mí-
modificados pela mídia digital no espaço acadêmico? Hiliana Reis – Parto do princípio de que a mídia digital, entendida como o conjunto de conteúdos e ferramentas disponíveis no ciberespaço, tanto pode facilitar como dificultar as dinâmicas do espaço acadêmico. E, nesse sentido, gostaria de salientar a importância do “mundo vivido”54, das práticas sociais e como conseqüência dos significados que os receptores, sujeitos ativos e produtores, imprimem ao utilizá-la. As dinâmicas de uso atendem a uma multiplicidade de interesses relacionados às práticas sociais e culturais. Portanto, chamo a atenção dos administradores de rede, que deveriam pautar-se por critérios extremamente cuidadosos ao implantarem os sistemas teleinformáticos. Temos observado, por exemplo, que as lógicas dos usos de tecnologias adotadas em empresas não coadunam com as lógicas do espaço acadêmico. As tecnologias devem estar a serviço do usuário e não o seu contrário.
dia digital propõe entre produtores e receptores? Como a comunicação pode se apropriar dessa realidade para potencializar seus resultados? Hiliana Reis – Como a pesquisa foi realizada com estudantes internacionais africanos e latino-americanos, vale a pena mencionar que os primeiros, que, em sua maioria, aprenderam a usar o computador no Brasil, mantinham uma rede de comunicação sistemática com amigos e primos que viviam na União Européia e nos Estados Unidos, para os quais repassavam as informações obtidas no ciberespaço sobre seus países. Esse processo é curioso porque a mídia digital propicia um deslocamento do processo tradicional de comunicação. De receptores, passam a emissores, ressignificando as mensagens originalmente enviadas, já selecionadas segundo interesses pessoais. Com relação à segunda questão, as políticas públicas, sobretudo no âmbito da educação, têm pela frente um grande desafio, que é o de ampliar o acesso e a aprendizagem às tecnologias digitais, cujo uso, no Brasil, ainda é restrito às classes A, B
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IHU On-Line – Quanto à produção de co-
nhecimento na universidade, como a mídia
HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Madri: Taurus, 1987. (Nota da entrevistada)
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digital pode ser aproveitada para sua potencialização e divulgação? Hiliana Reis – O potencial da mídia digital é ilimitado, assim como a criatividade dos usuários, portanto, as respostas à sua pergunta ultrapassam o espaço que me foi dedicado. Entretanto, gostaria de ressaltar que, assim como alguns dos meus entrevistados, uma parte significativa dos nossos alunos, da população brasileira, latino-americana e sobretudo africana, não tem computador em casa ou acesso à Internet. A amostra que entrevistei dependia dos computadores da universidade para usar a Internet, devido ao custo. Ainda que seja uma mídia barata, esses estudantes não dispunham de recursos financeiros para utilizá-la em casa. Dependiam dos computadores da universidade. Portanto, a ampliação dos laboratórios para os estudantes, nos vários níveis de ensino, torna-se crucial para ampliar o acesso e as formas de uso do ciberespaço. Sobre essa temática, as queixas dos estudantes da UFRGS se sobrepuseram às dos estudantes da Unisinos. Apesar do parque in-
formático da Unisinos haver sido elogiado, inclusive por estudantes da UFRGS, o número excessivo de estudantes nos horários de pico dificulta o uso do computador. Os da UFRGS reclamaram da obsolescência de uma boa parte dos computadores daquela instituição, o que também incidia na demora para baixar os conteúdos que lhes interessavam. As universidades, sobretudo nos países periféricos ou emergentes, precisam estar atentas ao baixo poder aquisitivo dos seus estudantes. As instituições escolares cumprem uma importante função social, à qual se acrescenta o desafio de responder à inclusão digital. IHU On-Line – Gostaria de acrescentar al-
gum aspecto que não questionamos? Hiliana Reis – A minha pesquisa, ao centrar-se na análise dos usos sociais da mídia digital, permitiu explorar diferentes aspectos do contexto cultural e identitário de estudantes latino-americanos e africanos, assim como questões referentes às políticas públicas.
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TV Digital: Novo paradigma de comunicação Por Alexandre Kieling
O governo brasileiro definiu-se recentemente sobre o sistema de transmissão de TV digital a ser adotado no País. Tal definição não implica apenas escolhas sobre padrões de compressão, modulação, aplicações e recepção de sinais de vídeo e áudio. Não se trata apenas de optar por alta definição (HD – High Definition) ou definição padrão (SD – Standard Definition), monocanalização (um canal por banda – 6 MHz – de transmissão) ou multicanalização (no digital é possível até quatro canais por banda de transmissão), interatividade elementar (acesso já usual por telefone) ou interatividade máxima (acesso via canal de retorno, usando o espectro eletromagnético para resposta em tempo real, durante uma emissão por meio do controle remoto). Em tese, o diálogo perguntaresposta entre as emissoras e os telespectadores poderá, em breve, acontecer durante as transmissões televisuais, permitindo intervenções no próprio conteúdo das emissões por parte dos telespectadores. Registre-se que hoje no Brasil essa possibilidade já é oferecida pelos serviços de TV paga via satélite ou cabo. Operações de escolha de programas, escolha de câmeras durante uma transmissão ao vivo já são facultadas ao telespectador com o simples uso do controle remoto ou do telefone fixo. Na Europa, em países como a França, programas com propostas interativas já são uma realidade. Dessa forma, a decisão sobre o sistema de transmissão digital, na verdade, transcende seus aspectos tecnológicos, impactando, pelos menos, outras três determinantes: a economia política (sustentabilidade: modelos de negócio e serviço); a organização social (marco regulatório que delimita papéis do estado e do privado, o que pode e
o que não pode, quem faz o quê); e o conteúdo dos produtos televisuais (discurso social, produção cultural – construção do imaginário). Passamos, portanto, a experimentar um fenômeno com impacto equivalente ao que instituiu as sociedades industriais midiáticas (Verón, 2004) no século XIX com o progresso da imprensa escrita e com o posterior surgimento do rádio e da TV (século XX), ou à constituição da sociedade midiatizada (Verón 2004), com a evolução das mídias eletrônicas incrementadas no pós-guerra. Em tese, com a digitalização, qualquer cidadão pode se relacionar, em tempo real, durante uma emissão televisual, podendo escolher seus conteúdos, montar sua própria grade de programação e dialogar com a emissora, tensionando as instâncias de produção e recepção dos discursos midiáticos e os próprios lugares autorais desse discurso. As perspectivas, portanto, devem observar, sim, o tecnológico, já que muda do analógico para o digital, mas, sobretudo, o viés econômico já que cria novas possibilidades de serviços e negócios. Há que se observar o social que oferece diversidade e inclusão e a sua dimensão política com base em um novo marco regulatório. Devemos partir das premissas de comunicação como processo de relações humanas (não apenas um sistema de difusão) em que a função social do sistema articulada com uma visão de cadeia produtiva deve estruturar uma economia audiovisual com vistas à sustentabilidade de todos os atores. O que surge no horizonte é um redimensionamento da abordagem tecnológica, da própria relação homem-máquina que, nesse universo digital, pode ser orientada para um regime de relação sujeito-sujeito, sobretudo, no anunciado am-
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
biente de convergência, no qual haverá múltiplas possibilidades de exibição ou veiculação (TV, Telefone - mobilidade, Web) e dispositivos de interatividade. Essa noção mostra que a função social do sistema de comunicação de massa tende a promover uma reconfiguração política além das já conhecidas: a) constitucional – socialização dos bens culturais, democratização da informação, difusão do conhecimento, cidadania; b) mercado – acesso ao entretenimento e ao lazer; c) sociedade – espaço público, visibilidade, agendamento, troca simbólica, poder. Teremos diversidade, novas ambiências de relacionamento, revisão dos pactos sociais, novos atores, inclusão, divisão de poder. A própria cadeia produtiva promoverá um redesenho do mercado. Além das emissoras, indústria, produtores de conteúdo, instituições de pesquisa, telespectador (que passará a ser protagonista) e financiadores, entram no jogo o operador de rede, a telefonia e novos produtores de conteúdo. As formas de sustentabilidade também devem mudar. Hoje temos no setor privado as empresas comerciais como o modelo de negócios baseado na venda de mídia (espaço comercial), as estatais com o modelo de políticas de governo baseadas no orçamento do tesouro e as públicas com o modelo prestação de serviço baseadas no lastro dos mantenedores (estas duas últimas ainda recorrem ao limitado modelo de apoio cultural por meio das leis de incentivo que não são suficientes para bancar custos fixos do negócio).
Novos modelos de negócios e serviços vão demandar novas formas de sustentabilidade como a destinação de um percentual das verbas publicitárias públicas para o modelo público, ou o incentivo fiscal para a pessoa física que investir em projetos educativos ou comunitários. Impõem-se, sobretudo, novos paradigmas de realização como as produções associadas por uma descentralização da realização, financiamento de pesquisa de conteúdo pelas emissoras comerciais junto às emissoras universitárias num movimento de formação de arranjo produtivo redimensionando a economia do setor, gerando empreso e outras formas de receita. Assim, a digitalização assegura o papel social da comunicação eletrônica; democratiza o sistema por meio da multicanalização (previsão de canais públicos como no conceito da cabodifusão); promove a diversidade e inclusão através do multiserviço; produz uma interface para toda a cadeia (convergência que permite transmissão em alta, standard e baixa definição e recepção unificada – set-top box comum a todos os sistemas de exibição); garante a sustentabilidade de negócios e serviços (atuais e novos num mercado articulado em forma de arranjo produtivo) e articula a política industrial com visão de médio e longo prazo (chip e software) com a formulação de novo marco regulatório. Tudo isso, de alguma maneira, aparece em perspectiva no decreto. Entretanto, a regulação que está por vir, passará pelo Congresso, pela sociedade. Precisamos estar atentos, caso contrário, falamos de sonhos.
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Mercado e academia: dois mundos muito separados Entrevista com François Jost
François Jost é um dos especialistas em mídia mais respeitados do mundo e atua como professor da Sorbonne Nouvelle e diretor do Centro de Estudos da Imagem e do Som (Centre d´Etude des Images et des Sons – CEISME), ambos na França. O pesquisador foi uma das atrações do colóquio Televisão: entre o mercado e a academia (da produção à interpretação), que aconteceu na Unisinos, nos dias 27 e 28 de outubro de 2005 e que foi promovido pelo grupo de pesquisa Processos de significação televisual: gêneros e formatos e pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unisinos, em parceria com a RBSTV e a TV Unisinos, sob a coordenação das professoras Maria Lília Dias de Castro e Elizabeth Bastos Duarte. François ministrou a conferência O Mundo do Jogo Televisual, que foi publicada nas Notícias Diárias do sítio www.unisinos.br/ihu, em 28 de outubro de 2005. Jost é autor de, entre outros livros, L´Empire du Loft (2003), no qual estuda o programa Loft Story, a versão francesa do Big Brother, e Seis Lições Sobre Televisão, cujo conteúdo são as aulas ministradas pelo professor na Unisinos, em abril de 2004, durante o curso A Televisão do Cotidiano: entre a Realidade e a Ficção.
pode vir do mundo real, ele identifica-a com o mundo ficcional. Por exemplo, quando aconteceram os atentados de 11 de setembro que derrubaram as torres gêmeas em Nova Iorque, nos Estados Unidos, alguém mais inexperiente poderia ter pensado, ao ver as imagens na tevê, que aquilo era ficção. Entre o mundo real e o ficcional, há um terceiro tipo de mundo, o mundo lúdico. O mundo lúdico toma exemplos da realidade, mas, ao mesmo tempo, tem regras de jogo precisas e inventadas. Vou falar sobre esse mundo do jogo, às vezes rechaçado pelos pesquisadores, sobre esse mundo lúdico de determinadas emissões de tevê. O Sabadão (programa de entretenimento apresentado por Gugu Liberato e exibido entre 1991 e 2002 pelo SBT nas noites de sábado) com uma fórmula de jogos e música faz parte desse mundo do entretenimento. A questão é delimitar o que pertence ao mundo do jogo. Alguns talk-shows, que poderiam estar próximos do mundo real, me interessam por estarem no mundo do jogo. Alguns programas estão no segmento que é chamado pelos americanos de “infotenimento”, que reúne informação e entretenimento. O que determina se um programa faz parte do mundo do jogo são alguns ritos. Esse tipo de produção tem o mesmo ritual, as mesmas regras, que dizem respeito, por exemplo, ao público, à apresentação e às entrevistas.
IHU On-Line – Qual foi o enfoque de sua pa-
lestra intitulada O Mundo do Jogo Televisual? Que mundo é esse? O que é, na sua concepção, o jogo televisual? François Jost – A emissão televisiva deve ser entendida com base na noção de mundos. O primeiro mundo é o real, que a televisão tenta reproduzir. A primeira coisa que o telespectador faz, ao ver a imagem, é se perguntar se ela se refere ao mundo real. Quando é algo incompreensível, que não
IHU On-Line – Qual a importância de se es-
tabelecer um diálogo entre o mercado, as pessoas que fazem televisão, e a academia, as pessoas que a analisam? Quais os pontos fracos deste diálogo? François Jost – O ponto fraco é que são dois mundos muito separados. Penso que eles deve-
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
riam aproximar-se. Existem programas que fazem sucesso. Só que é difícil perceber o que provoca esse sucesso e retomar isso em um programa com as mesmas características, mas que precisa ser diferente. O analista, a academia, tem condições de desvendar esses aspectos e, assim, interagir com o mercado. No ano passado, fiz um estudo para o Canal Plus, da França, de um programa novo, para reconhecer os pontos fortes da atração. Examinei o humor dos dois apresentadores do programa, indicando o que deveria continuar e o que não combinava com o perfil do produto. O produtor, o profissional do mercado, sabe dizer o que não está bom, mas não faz uma análise do porquê disso. Ele usa o seu feeling. A análise feita pelo pesquisador explica por que não deve continuar.
audiência para ver se a programação agrada ao público. IHU On-Line – Que coisas o telespectador
comum não percebe ao ver tevê? Como ele deveria ser educado? François Jost – Primeiramente, precisamos separar o mundo real do ficcional e do entretenimento. Esse é o caso dos programas religiosos de “casos reais” em que aparecem pessoas possuídas pelo demônio, por exemplo. É importante que se diga que são simulações, que é algo montado para a tevê. Na França, há um programa chamado Confissões Íntimas no qual são mostrados casais com problemas. Esses casos são apresentados como realidade, um psicólogo dá conselhos para que se reconciliem. Quando o público fala do programa, ele sabe que o que acontece é filmado. Quando se estudam muitos casos de Confissões Íntimas, percebe-se que todos têm a mesma estrutura. O telespectador não tem tempo de dar-se conta disso. É um trabalho de educação que deve ser feito para dar mais condições de reconhecer-se o que não é real.
IHU On-Line – Qual a configuração da tele-
visão aberta na França? François Jost – A tevê mais pública da França é a TF1, que é privada. Digo isso porque essa emissora caiu no gosto do público. Essa informação está em algumas pesquisas de sondagem que dizem isso. As pessoas perguntam qual é a mais pública, não na razão social, mas no gosto do público. Dizemos que é a TF1. E, na realidade, ela é privada, aceita interrupção da programação para colocação de espaços publicitários. Seu público consome, vê publicidade, gasta dinheiro. Sua programação é homogênea e tem um tipo de espectador bem definido. Enquanto isso, a France Télévision, que é a emissora estatal, tem um público menos homogêneo, mais amplo, aborda em seus programas temas dirigidos a diferentes públicos. Hoje, a France Télévision tem quatro canais: France 2, France 3, France 4 e France 5. Há pouco, mudou o diretor da France Télévision e parece que serão feitas emissões mais dirigidas em cada canal, serão segmentadas as programações. É importante dizer, no entanto, que apesar de a programação da TF1 ter caído no gosto do público, o total dos quatro canais da France Télévision tem mais audiência. Na verdade, a televisão pública não deveria se preocupar com a audiência, mas os deputados que fazem o controle da verba, cuidam a
IHU On-Line – Como está hoje a recepção de reality-shows na França? O modelo está se exaurindo? François Jost – Na França, os reality-shows são chamados de telerrealidade. Hoje, a maioria é vista como jogos, entretenimento puro. Muitos evoluíram para o pastiche, brincadeira pura. Há o Real Life, no qual celebridades ficam confinadas em uma fazenda em condições difíceis, tendo de sobreviver por si mesmas. Alguns países criaram condições específicas. Na França, o tom é cômico. IHU On-Line – Como é a recepção do públi-
co brasileiro aos reality-shows? François Jost – Tenho a impressão de que aqui as pessoas têm uma recepção mais próxima do mundo real. Não vêem só como entretenimento. No Big Brother Brasil, o apresentador é um jornalista (Pedro Bial), que passa uma imagem de seriedade ao produto. Isso é diferente do que acontece
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
na França. Lá, são animadores que apresentam esse tipo de programa. Isso muda bastante a receptividade do produto.
lato, como faz com a telenovela. O terceiro tipo de público sabe que é uma grande brincadeira, um jogo. São públicos diferentes que tornam os programas sucessos de audiência.
IHU On-Line – Por que os reality-shows fa-
zem tanto sucesso? François Jost – Existem três tipos de público. O primeiro é o público que leva a sério, acha que é real o que vê nesses programas. O segundo sabe que não é realidade, mas se sente atraído pelo re-
IHU On-Line – Existe relação entre os rea-
lity-shows e as telenovelas? François Jost – Há um movimento de retroalimentação circular. A telenovela alimenta-se da realidade, e a realidade alimenta-se da ficção.
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Televisão em debate: integração entre mercado e academia Entrevista com Elizabeth Bastos Duarte
Elizabeth Bastos Duarte é professora no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unisinos. Elizabeth foi uma das coordenadoras do colóquio Televisão: entre o mercado e a academia (da produção à interpretação), que aconteceu na Unisinos, nos dias 27 e 28 de outubro de 2005. O colóquio foi promovido pelo grupo de pesquisa Processos de significação televisual: gêneros e formatos (GPTV), e pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Unisinos, em parceria com a RBSTV e a TV Unisinos. Ele contou com a participação de pesquisadores internacionais e nacionais de diversas universidades do País, ligados a veículos de comunicação como TV Globo, RBSTV e TV Futura. A entrevista concedida pela professora Elizabeth Bastos Duarte à IHU On-Line, sobre o evento, foi também publicada no sítio www.unisinos.br/ihu, em 22 de outubro de 2005
seus processos de produção. Dentre os pesquisadores que estarão no Colóquio, há muitos que são também produtores. Estamos buscando um diálogo que aproxime o mercado da academia, não só porque isso possibilitará uma análise mais aprofundada dos produtos televisuais, como também porque os resultados dessas análises e interpretações poderão retornar ao mercado e serem aproveitados pelos profissionais que fazem tevê. A televisão tem um papel muito importante no Brasil e na América Latina, onde é uma das únicas possibilidades de informação e entretenimento de grande parte da população, assumindo hoje papéis que talvez até coubessem ao Estado, papéis educativos, funções políticas e sociais. IHU On-Line – Na prática, o que se espera
de resultados deste encontro? Elizabeth Bastos Duarte – O maior dos resultados será aprofundar essa disposição no diálogo, mas pensamos também em parcerias concretas, tais como publicações conjuntas, intercâmbios. Por exemplo, a Globo está colocando a serviço da comunidade um setor chamado Globo e Universidade, que disponibiliza às universidades o acesso aos seus produtos. Essa falta de acesso tem sido um problema para quem trabalha com a produção televisual. Em países como a França, há a Inathèque, uma espécie de biblioteca televisual, na qual todas as emissoras são obrigadas a depositar cópia das produções que levaram ao ar no do dia anterior. Não é esse o nosso caso. A nossa intenção é, pois, que a RBS TV também abra as portas aos pesquisadores gaúchos. Intentamos propor isso.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades de
integração entre o mercado e a academia? Por que isso acontece? Elizabeth Bastos Duarte – A academia preocupa-se com a análise e a interpretação dos produtos televisuais. Essa análise, no entanto, implica também um conhecimento de seus processos produtivos. Às vezes, os pesquisadores desconhecem essas rotinas produtivas. Além disso, as tecnologias mudam e nem sempre fica evidente a existência das lógicas econômica e tecnológica, que interferem na elaboração dos produtos televisuais. Por sua vez, o mercado tem a idéia de que a academia é esnobe, que só se volta para os produtos com o objetivo de criticar e que, na verdade, desconhece
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
Brasil, além de produtores e realizadores de renome no mercado. É importante lembrar que temos na Unisinos um grupo de pesquisa chamado Processos de Significação Televisual (GPTV), que, aliás, está promovendo este evento e do qual faço parte, que é uma referência nacional e internacional no estudo da tevê brasileira.
IHU On-Line – Como foram selecionados os
participantes do evento? Que critérios foram usados? Elizabeth Bastos Duarte – Por incrível que pareça, não há muita gente no País que estude televisão. Convidamos para este evento os nomes mais representativos dos estudos de televisão no
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Liberdades e limitações do software livre Entrevista com Cristiano da Costa
Cristiano André da Costa é professor do Instituto de Informática da Unisinos. Ele concedeu entrevista, por e-mail, à IHU On-Line, em 2 de maio de 2006, falando sobre o 7º Fórum Internacional Software Livre que aconteceu em Porto Alegre, dias 19 a 22 de abril de 2006, com a participação de representantes de 24 países, e sobre a proposta do software livre. Na entrevista, Cristiano afirma que vê como um empecilho a forte conotação ideológica que o movimento do software livre alcançou no Brasil. Cristiano é mestre e doutorando em Ciência da Computação.
Cristiano da Costa – São pessoas apaixonadas pela área e principalmente pelo movimento. Especialmente os freaks participantes do FISL defendem o software livre acima de tudo em qualquer área e para qualquer aplicação. IHU On-Line – De qual workshop o senhor
participou? O que destacaria da temática trabalhada que mais o impressionou? Cristiano da Costa – Participei do Workshop de Software Livre (WSL). O WSL é um evento científico, promovido pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC), dentro do Fórum. É constituído de apresentação de trabalhos, previamente submetidos e avaliados por um comitê de programa. Os trabalhos são relacionados com a área de software livre. Ocorreram três trilhas dentro do WSL: internacional, nacional e de software livre na universidade. Essa última temática me interessou bastante. Especialmente para apoio ao ensino, alguns casos de sucesso de uso de software livre em universidades brasileiras foram apresentados.
IHU On-Line – Qual a importância de um
evento para discutir o software livre? O que motiva cinco mil pessoas a discutir a democratização da tecnologia? Cristiano da Costa – O Fórum Internacional de Software Livre (FISL) está na sétima edição. Já é o evento mais tradicional de software livre do Brasil e um dos maiores do mundo. Isso motiva a visita de pessoas dos mais diversos locais. O FISL é um dos poucos eventos que discute essa temática.
IHU On-Line – Como o senhor vê a proposta
do software livre? Quais seus maiores problemas e vantagens? Cristiano da Costa – Vejo como uma proposta muito interessante. A maior vantagem está nas quatro liberdades propostas pelo software livre: a liberdade de executar os programas para qualquer propósito; a liberdade de modificar os programas e adaptá-los à necessidade de cada um; a liberdade de copiar e redistribuir; a liberdade de aperfeiçoar e liberar para outras pessoas a nova versão. Acho que o principal problema está no
IHU On-Line – Quais os assuntos que mais
repercutiram nos bastidores do 7 º Fórum Internacional de Software Livre? Cristiano da Costa – Os assuntos que mais repercutiram foram novas tecnologias e ferramentas livres. Além disso, aplicações com sucesso de software livre em países em desenvolvimento e em projetos sociais. IHU On-Line – Qual a sua visão dos freaks (ex-
cêntricos) da computação e o seu movimento?
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fato de, no Brasil, o software livre ter tomado uma conotação ideológica muito forte. Isso faz politicamente a proposta ser somente apoiada por partidos de es quer da, como, por exem plo, o PT . Qu ando, na verdade, a proposta não tem nada a ver com isso. Software livre deveria ser usado independentemente de convicção partidária ou tendência política. Existem situações em que é melhor utilizar software livre, outras em que o software proprietário é mais interessante. Esta é uma escolha tecnológica e financeira.
IHU On-Line – O senhor concorda com Ri-
chard Stallmann, quando ele diz que “o software proprietário é um perigo para todos, e seus desenvolvedores têm poder para introduzir funções de vigilância”? Cristiano da Costa – Concordo em parte. Acho que as pessoas costumam tomar a afirmação ao pé da letra e imaginar que o software proprietário “controla” as ações dos usuários. Entretanto, concordo que, por não termos acesso ao código-fonte de um aplicativo, não conseguimos saber com certeza o que o software faz.
IHU On-Line – O senhor acredita que a pro-
posta do software livre é possível em uma universidade privada como a Unisinos? O que faz grandes empresas como a Unisinos ainda usarem o software proprietário? Cristiano da Costa – Acho que é viável para alguns setores das universidades. A Unisinos não utiliza somente software proprietário. Por exemplo, ela utiliza software livre no seu servidor Web (de páginas da Internet) e no apoio ao desenvolvimento do conteúdo do site. Nos sistemas de gestão, os softwares proprietários, como o ERP da Peoplesoft, ainda são muito mais avançados. Não existe nenhuma tecnologia equivalente, ou seja, com as mesmas funcionalidades, em software livre.
IHU On-Line – Como o software livre pode
ajudar a reduzir a exclusão digital? Cristiano da Costa – O software livre pode ser utilizado para criarmos espaços como laboratórios de informática a um custo menor. Isso porque não será necessária a aquisição de licenças de software proprietário. Entretanto, o investimento em infra-estrutura não é suficiente. É necessário um investimento muito maior em capacitação e suporte técnico. Não adianta ter um laboratório com equipamentos e software livre e não ter professores à disposição da comunidade e treinados nas ferramentas livres.
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“Pensar a célula como uma espécie de computador” Entrevista com Ney Lemke
ções diferentes. Durante muito tempo, essas informações foram coletadas e agora se têm maneiras novas de tratar esses dados. A própria sistemática desse processo levou a uma situação em que se geraram modelos, unindo essas informações coletadas de forma esparsa, pelo menos nos últimos 200 anos. Além disso, surgiram novas metodologias experimentais que produzem massas de dados inacessíveis à análise tradicional dos biólogos. Então esses dados antigos e novos clamam por novas idéias, que vão contextualizá-los, colocá-los numa perspectiva mais interessante, mais razoável. A bioinformática fornece esse ferramental para descrever a vida como fenômeno biológico, para compreendermos as suas grandes questões. Então, o plano é apresentar algumas idéias que estão sendo desenvolvidas, contextualizá-las numa perspectiva que não seja tão técnica, que seja um pouco mais filosófica, tentar reuni-las com algumas correntes de pensamento evolucionistas e apresentá-las numa roupagem que eu imagino interessante para um público mais leigo.
Ney Lemke foi entrevistado pela IHU On-Line, em 25 de outubro de 2004, sobre as nanotecnologias, sobre a bioinformática e sobre a obra The Computational Beauty of Nature: Computer Explorations of Fractals, Chaos, Complex Systems and Adaptation (A Beleza computacional da natureza: explorações computacionais de fractais, de caos, de sistemas complexos e adaptação), de G. W. Flake. IHU On-Line entrevistou o professor Ney Lemke na 69ª edição, de 4 de agosto de 2003, sobre as possibilidades dos softwares livres e sua compatibilidade com os comerciais. Lemke foi professor no Programa Interdisciplinar de Computação Aplicada da Unisinos. É graduado, mestre e doutor em Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Sua tese intitula-se Simulação numérica de sistemas complexos. IHU On-Line – Por que a bioinformática re-
presenta “uma nova perspectiva para compreender a vida”, conforme o título da sua palestra prevista para o próximo IHU Idéias? Ney Lemke – A bioinformática é uma área relativamente nova e pretende unir as ferramentas da informática aplicada à compreensão dos dados de biologia. O que tem acontecido é que a biologia é uma ciência bastante reducionista. Durante muito tempo, coletou-se uma massa importante de dados pontuais sobre como funcionam os organismos. Muitas pessoas, por exemplo, faziam a tese de doutorado em Bioquímica e basicamente estudavam o funcionamento de uma única enzima, que catalisava uma única reação que ocorria dentro de um organismo. Só que em um organismo, mesmo no mais simples, ocorrem milhares de rea-
IHU On-Line – Em linhas gerais, que roupa-
gem seria essa? Ney Lemke – Bom, a idéia seria a de apresentar um pouco a vertente, digamos, informática, apresentar alguns conceitos de informática que são relevantes. Expor um pouco da teoria dos sistemas complexos, que é um outro componente importante; explicar algumas coisas sobre evolução e aí falar não só da de Darwin, mas também de outras abordagens evolutivas para entender a vida e tentar mostrar como essas coisas se unem. IHU On-Line – Qual é o estágio da bioinfor-
mática no mundo? 70
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
do avançando. Há alguns grupos consolidados no Rio Grande do Sul, mas, quanto à atuação em bioinformática, explicitamente, o grupo da Unisinos é um dos mais consolidados, porque os demais grupos não são tão fortemente direcionados como é o nosso, principalmente na nossa área específica de atuação, chamada de pós-genômica.
Ney Lemke – A bioinformática é relativamente nova, ela não deve ter mais de 20 anos, a questão é escolher o que vai se considerar como marco inicial. Principalmente no final dos anos 1990 e no início do século XXI, ela teve um crescimento, tanto mundial como nacional, muito rápido. Com relação ao mundial, o grande marco é o genoma humano, projeto de big science. Envolve muito dinheiro, é um grande desafio, experimental e computacional, que impulsionou várias áreas do conhecimento humano científico, desde a biologia propriamente dita, abrangendo a bioquímica, a eletrônica e a computação em paralelo. Do ponto de vista computacional, esse foi um dos problemas mais complexos que já se resolveu.
IHU On-Line – No que consistem os estudos
pós-genômicos? Ney Lemke – Encontrar a seqüência de letras que compõe o DNA é o equivalente a descobrir um livro escrito numa língua desconhecida – inclusive estes temas são relacionados. Várias técnicas de análise lingüística foram usadas para tentar interpretar este livro. A análise pós-genômica é constituída por todas as análises que realizamos para interpretar este livro. Tendo essa seqüência de letras, o passo seguinte é entender o que quer dizer, é como decodificá-la. O nosso grupo tem atuado na reconstrução de metabolismo de microrganismos. O metabolismo designa as reações básicas que fazem o funcionamento das células. A quebra de glicose, a conversão de energia, todo funcionamento básico de uma célula está descrito no metabolismo, então a nossa idéia é a de estudá-lo, tentar entender o metabolismo, conhecendo o genoma do organismo. Isso exige um trabalho considerável de informática e de bioquímica. Temos atuado, também, em outras áreas relacionadas com a análise pós-genômica, interação de proteínas e constituição de redes regulatórias.
IHU On-Line – Como a Unisinos se posicio-
na nesse tipo de conhecimento, nacional e internacionalmente? Ney Lemke – A bioinformática teve uma importância grande no quadro nacional, porque o Brasil entrou de uma maneira muito forte nessa área, principalmente a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), ela patrocinou o seqüenciamento de um organismo chamado Xylella fastidiosa55 que foi o primeiro a ser seqüenciado abaixo da linha do Equador e foi capa da Nature56, uma revista extremamente prestigiada. Inspirado nesse modelo de sucesso em São Paulo, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) fomentou a criação de vários grupos de pesquisa que deveriam reproduzir, em escala maior ou menor, esse processo, ou seja, descobrir o genoma de um determinado organismo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, aqui na Unisinos, participamos, o meu grupo e um grupo ligado à biologia, em duas frentes. Participamos desse processo, vinculados ao que chamamos de seqüenciamento do genoma do Mycoplasma hyopneumoniae, que é um organismo muito simples, responsável pela pneumonia em porcos, cujo nome é Projeto Integrado Genoma Sul (PIGS). O projeto leva o nome do bicho57. Desde então, a bioinformática tem seguin55 56 57
IHU On-Line – O senhor se refere à bioinfor-
mática como ciência. Ela de fato tem essa dimensão para o conhecimento humano? Ney Lemke – Acredito que sim. A bioinformática é uma área intrinsecamente nova, tem suas metodologias explícitas, é uma área que hoje ainda não tem uma formação específica. Em alguns lugares do mundo, está se começando a pensar em um perfil adequado para isso, mas ela é uma área por si só. Tem vários desdobramentos possíveis. Como uma área em formação, ela não está, ne-
Bactéria causadora de doenças em cítricos, especialmente. (Nota da IHU On-Line) Revista norte-americana de divulgação científica, publicada desde 1869. (Nota da IHU On-Line) Referência à palavra inglesa pig, que significa “porco”. (Nota da IHU On-Line)
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cessariamente, consolidada. Segundo algumas pessoas, a bioinformática é uma espécie de muleta para a biologia, que só vai ajudar a biologia a funcionar. Outras pessoas acham que não, que a bioinformática tem interesse científico por si só.
ou, como se diz, a CBN, sigla da expressão computational beauty of nature. A natureza é entendida não só como organismos, como seres vivos, mas também como sistemas físico-químicos. Portanto, a intersecção entre as duas palestras se dá, quando tentamos entender a vida como um agente computacional. Via de regra, porém, há itens que vão ser tratados numa exposição e não serão tratados na outra.
IHU On-Line – Em que sentido?
Ney Lemke – A bioinformática tenta entender o funcionamento de uma célula, usando como paradigma, usando como metáfora, melhor dizendo, a idéia de um computador, ou seja, a célula sendo pensada como uma espécie de computador, só que esse computador é muito especial, ele tem particularidades que podem gerar insights, idéias interessantes que terão repercussão, por exemplo, na computação e em outras áreas. Existe um grupo no MIT58, que consegue manipular o metabolismo de bactérias de uma forma análoga a circuitos integrados. O pesquisador consegue manipular o genoma das bactérias para fazê-las atuarem como portas lógicas (elementos fundamentais de um computador). Para aqueles preocupados com a ética, é preciso enfatizar que estamos lidando com bactérias, não estou falando de organismos superiores.
IHU On-Line – Quais são as idéias principais
desse livro? Ney Lemke – Ao abordar a CBN, Flake59 reuniu uma série de idéias interessantes que estão relacionadas à computação, por exemplo, alguns resultados bem conhecidos como o Teorema de Gödel60 e suas contrapartidas computacionais, como a tese de Church61, são tratadas no início. Ele expõe outros temas que vêm da física, como, por exemplo, sistemas caóticos, fractais, ele fala de alguns modelos de sistemas ecológicos, ele aborda os autômatos celulares, que são computacionais também bastante interessantes. É um livro com um espectro bem amplo de atuação. O que é um sistema complexo? É um sistema formado por muitas partes interagentes. Como é que a computação surge em sistemas complexos? São basicamente estas as idéias. Então a intersecção que tem com a biologia também é essa. Os sistemas biológicos também são pensados como sistemas complexos e de alguma maneira a computação emerge disso. Os seres vivos, de alguma maneira, realizam alguma espécie de computação. Eu quero deixar bem claro que isso é uma metáfora, uma maneira de entender a vida. Não quer dizer que o propósito da vida seja fazer computação, mas é uma maneira de nós, como seres humanos, teorizarmos, baseando-nos em processos biológicos.
IHU On-Line – Qual é a ligação que esse
tema tem com a obra de G. W. Flake A Beleza computacional da natureza: explorações computacionais de fractais, de caos, de sistemas complexos e adaptação? Ney Lemke – Na verdade, são duas coisas independentes, não necessariamente estão ligadas. O livro tem intersecção com o que eu vou falar, mas a intersecção não é total, ele tem coisas que não pertencem à bioinformática, e a bioinformática tem coisas que, de certa maneira, não estão tratadas no livro. Então a intersecção é parcial. O livro está mais voltado para aquilo que a gente chama de ciência da complexidade. Ele descreve, como diz o título, a “beleza computacional da natureza”
IHU On-Line – Essa ligação da biologia com
a informática nos dá uma idéia de exatidão,
Sigla do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line) Gary William Flake, autor do livro The Computational Beauty of Nature: Computer Explorations of Fractal, Chãos, Complex Systems, and Adaptations. 60 Kurt Gödel (1906-1978): lógico tcheco naturalizado norte-americano. Com o referido teorema, demonstrou que não é possível construir uma teoria axiomática dos números que seja completa. (Nota da IHU On-Line) 61 Alonzo Church: matemático e lógico norte-americano. (Nota da IHU On-Line) 58 59
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de respostas precisas, mas há muitas perguntas que não foram respondidas... Ney Lemke – Cada um tem a sua imagem do que é a ciência, de como ela avança. Entretanto, ela não avança como se fosse uma gota de água numa superfície, com uma grande frente que se expande, ela parece mais com uma gotinha de água que cai entre as pedras e difunde-se como dendritos62. Para mim, a ciência evolui deste jeito, ela vai crescendo, atingindo mais longe, mas, do ladinho, existem pontos que ainda não foram atingidos. A ciência não avança, respondendo a todas as perguntas, ela avança gerando mais perguntas e, ao mesmo tempo, claro, respondendo a algumas. A objetividade da ciência está restrita a um campo experimental muito específico. A mecânica quântica, por exemplo, consegue funcionar com grande precisão, porque ela é um modelo. Há situações que eu consigo modelar com muita precisão, mas há outras que eu não consigo, e acabou. Eu não consigo modelar com precisão, por exemplo, uma proteína. As proteínas estão dentro do nosso organismo e são formadas por milhares de átomos. Em tese, elas são descritas pela mecânica quântica, e 99% dos cientistas do mundo inteiro acreditam que a mecânica quântica é perfeitamente capaz de fazer essa descrição. Só que isso não se traduz objetivamente no sentido de que eu consiga prever realmente, porque essa teoria é tão complexa computacionalmente, que eu posso reunir todos os computadores do mundo para tentar resolver o problema que eles não vão fazê-lo. Então qual é a alternativa que eu tenho? Tenho que fazer aproximações. Esse é o fazer da ciência.
avançar. Eu acho que a ciência consegue ampliar o número de perguntas. Há perguntas que ela responde objetivamente e, ao fazer isso, ela gera perguntas que ela não sabe responder. Qualquer teoria sempre vai estar sempre baseada em coisas das quais não se tem certeza, que são difíceis de entender, ou pontos obscuros. Por exemplo, a mecânica newtoniana, também tinha seus pontos obscuros, seus pontos desconhecidos, os seus mistérios, o caos, por exemplo, foi um deles. Newton, certamente, não tinha a menor idéia sobre os sistemas caóticos, quando ele propôs a mecânica newtoniana, e as pessoas trabalharam com a mecânica newtoniana durante 200 anos e nunca perceberam. Poincaré63 foi o primeiro a perceber que, de alguma maneira, os sistemas deveriam ter o que chamamos de comportamento caótico hoje, e que ficou limitado a um pequeno grupo de especialistas. Quando surgiram os computadores, isso passou do desconhecimento total para um conhecimento abrangente da sociedade. IHU On-Line – Voltando ao livro, apesar de
relacionar a natureza com a computação, essas limitações da ciência estão presentes nele? Ney Lemke – Todo o cientista tem muito claro as limitações. Sabe que o número de perguntas que ele não consegue responder é infinitamente maior do que as que ele consegue responder. Nosso interesse é o de falar de coisas que possamos entender e, às vezes, até fazer perguntas que, acreditamos, possam ser respondidas num curto prazo de tempo. Eu creio que o Flake tem consciência das limitações, e ele fala um pouco delas, mas esse não é o foco do livro. O foco é o que dá para fazer com o que temos hoje, que é a perspectiva pragmática da maior parte dos cientistas. O cientista só consegue avançar, quando tem a consciência clara do que pode fazer hoje e faz.
IHU On-Line – A ciência avança por meio de aproximações? Ney Lemke – Algumas pessoas acham que “avançar” seja uma supersimplificação, mas estamos tentando definir o que queremos dizer com
Dendritos são deposições nas rochas, em virtude da infiltração de águas carregadas de elementos minerais (Nota da IHU On-Line) 63 Jules Henri Poincaré (1854-1912): matemático, físico e filósofo francês. (Nota da IHU On-Line) 62
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Imaginário religioso pré-moderno e novas tecnologias Entrevista com Erick Felinto de Oliveira
Erick Felinto de Oliveira é mestre em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ, doutor em Literatura Comparada pela UERJ e Ph.D. Candidate em Romance Linguistics and Literatures pela University of California, Los Angeles. Atualmente, é chefe do Departamento de Teoria da Comunicação – UER e desempenha as funções de professor no Mestrado em Comunicação Social da UERJ, onde coordena a linha de pesquisa Novas Tecnologias e Cultura. A entrevista a seguir foi concedida à IHU On-Line em 3 de março de 2002.
pós e o moderno, nesta questão ele apresenta um retorno do imaginário pré-moderno: retorno dos mitos, dos valores da transcendência religiosa... Esses símbolos estavam dormentes na cultura e agora voltam a crescer. IHU On-Line – Então o esclarecimento foi
levado a termo ou houve um excesso de esclarecimento? Erick Felinto – Aceitando o pensamento frankfurtiano, fica bem fácil de entender. A dialética da razão pode gerar a contaminação do mito pela razão. O esclarecimento cai vítima dos mitos, num processo onde a racionalidade não se questiona mais, deixa de ser razão crítica e torna-se razão instrumental. A razão instrumental é domínio da natureza, que está associado ao pensamento mágico, à idéia de que determinadas práticas, palavras, evocações, exercem um efeito de transformação sobre a natureza. Quando a racionalidade se torna instrumental, ela torna-se vítima dos mitos. Isso desde a Antigüidade.
IHU On-Line – O senhor tem defendido que
nas novas tecnologias convivem com um imaginário religioso pré-moderno. Explicite um pouco essa tese. Erick Felinto – Existem várias teorias sobre o imaginário e os mitos. Destacaria a corrente que defende o mito como algo recorrente, como um conjunto de símbolos que são permanentes e em determinados momentos da história eclodem. No caso atual, estaríamos vivendo um renascimento dos mitos herméticos. Outra corrente defende que o imaginário e o mito estão ancorados a uma realidade histórico-específica, ou seja, não haveria mitos atemporais ou universais. Os mitos seriam próprios de uma determinada cultura e época. Quando faço a recuperação do imaginário religioso, tento mostrar que, aparentemente, a trajetória da cultura ocidental foi marcada por um processo de secularização no qual a razão teria derrotado o mito, que estariam em declínio tanto a religião quanto o pensamento mítico. Várias possibilidades, conceitos e teorias tentam dar conta dessa situação, entre elas o pós-moderno, que não sei se existe. Contudo, se existe uma diferença entre o
IHU On-Line – O imaginário mítico estaria
colado ao plano reflexivo? Erick Felinto – Isso. Na verdade, o que deveria ser uma racionalidade, num processo de constante revisão dos seus conceitos, torna-se uma forma de mito. Na verdade, é uma racionalidade inautêntica, porque uma razão autêntica trabalha em cima do negativo. IHU On-Line – Como tem sido apresentada
a literatura sobre o Ciberespaço? Erick Felinto – O Ciberespaço é um fenômeno novo, e a literatura ainda é incipiente, com livros
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da década de 1980 e 1990. Essa bibliografia, na maior parte, é inglesa, norte-americana e francesa. Grande parte dela sofre da utilização do imaginário da transcendência e de um modelo de pensamento que não é suficiente para ser caracterizado como pensamento crítico, uma vez que utiliza mecanismos por analogias. Nesse tipo de pensamento, é comum o uso de metáforas: a Internet é uma biblioteca virtual, palácio da memória, cebionte. São metáforas que se usam numa tentativa de entender o fenômeno, mas, na verdade, fica limitada ao mecanismo da comparação. É, muitas vezes, uma comparação despropositada, porque se perde aquilo que seria a característica histórica do fenômeno.
logos ativo e forte que pudesse contrabalançar a presença do mitos. IHU On-Line – Há aspectos positivos nas
novas tecnologias? Erick Felinto – Existe um potencial fantástico, tanto apocalíptico quanto otimista. Apocalipticamente falando, existe a segurança, a vigilância, o totalitarismo digital... Sob esses pontos de vista, se invalida-se um pouco o discurso dos ciberutopistas: a democracia digital, a idéia de uma ágora universal, uma inteligência coletiva. Contudo, não podemos descartá-las. Proponho um equilíbrio, mas não podemos acompanhar certos textos delirantes que acreditam que a Internet vai trazer um paraíso de informação. A informação precisa ser peneirada, o sujeito necessita ser treinado numa série de códigos e linguagens, ela continua elitista, há o perigo das corporações tomarem conta.
IHU On-Line – O filósofo finlandês Peter
Van Deick defende que o mundo de hoje e os mitos de ontem são explorados e sustentados tecnologicamente, que uma tarefa que nos cabe é aprender a conviver com o mito e o esclarecimento com sabedoria. Erick Felinto – Não conheço esse autor, mas tem um filósofo alemão, Hanz Blumenberg, que trabalha uma tese semelhante. Nas obras O trabalho sobre o mito e a Legitimidade da época moderna, ele defende que logos e mitos são duas pulsões fundamentais do homem e que sempre existiram. No Iluminismo, quis abolir-se a pulsão do mitos e dar vazão apenas à racionalidade. Já, o Romantismo, principalmente o alemão, colocou todos os valores no pólo oposto, no mitos, na poiesis, na criação, e abandonou a racionalidade, vendo-a como um instrumento de repressão ao espírito criativo. Blumenberg disse que os dois pólos são fundamentais para a cultura e para a existência do homem. O logos, representado pela ciência, nunca consegue dar explicações globalizantes dos fenômenos, mas regionalmente. Já o mito oferece explicações globais: a origem do cosmos, por exemplo. Seria preciso superar esse pensamento dualista e aprender a pensar com os dois pólos. Isso não é uma crítica pura e simples ao imaginário. O primeiro momento é a crítica, mas o imaginário tem sua função no pensamento conceitual. Um trabalho de análise do discurso, na literatura do ciberespaço, mostraria a ausência de um
IHU On-Line – A Internet possibilita a cria-
ção de sentido? Erick Felinto – Não acredito. O que me assusta nesses mitos sobre Internet são aquelas fantasias da desmaterialização do corpo, do processo de hibridação do sujeito e outras. Não acredito que a Internet seja uma forma de “salvação” para os marginalizados de agrupamentos sociais. A mediação, via Internet, é conveniente, mas será uma saída válida para os problemas de socialização? Usar um meio como uma forma de máscara, ou um lugar como forma de ocultar-se, ou para criar identidades virtuais? IHU On-Line – É possível viver ligado na
Internet? Erick Felinto – A Internet não é um lugar para vivermos, imergir, pelo menos hoje não o é. Antes, é um lugar para interagirmos com o mundo de uma outra maneira, produzir construções alternativas de mundo, mas não limitar o nosso mundo àquele universo da Internet. O mundo tem múltiplas dimensões: contato pessoal, acesso a várias mídias diferentes, a vida como experiência de multiplicidade. No momento que imergimos, perde essa multiplicidade de formas de contatos.
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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO
IHU On-Line – E em relação ao ensino a
IHU On-Line – E a pesquisa em comunica-
distância? Erick Felinto – Tenho uma imensa desconfiança com relação ao ensino a distância. No futuro, isso pode tornar-se algo mais funcional e confiável. Hoje, da maneira como existem as leis da Internet, tenho uma grande dificuldade em aceitar que isso seja uma prática pedagógica válida. A educação envolve interação direta, envolve contato com os pares, com o professor, envolve uma materialidade. Sou extremamente cauteloso.
ção sobre as novas tecnologias? Erick Felinto – Têm sido feitas coisas interessantes, mas estamos num momento inicial. Precisamos filtrar mais do que aqueles textos e pesquisas que lidam com as mídias tradicionais. Identifico um perigo no campo da comunicação, na pesquisa. Existe uma disputa de poder, um conflito pelo capital intelectual do campo no qual dois paradigmas se confrontam: de um lado, um paradigma que propõe um conceito de comunicação como um campo mais aberto, aquela idéia da transdiplinaridade, encontro de saberes, a comunicação como um saber indefinido; de outro, um paradigma tecnicístico, com uma visão de comunicação mais restrita. Na disputa dos projetos envolvendo as novas tecnologias, em que as pesquisas geralmente são aprovadas e com bons orçamentos, isso fica patente. Computador, rede, Internet e interatividade formam um meio de comunicação. Já trabalhos mais relacionados com o universo da cultura estão excluídos do universo da comunicação.
IHU On-Line – E, nova linguagem, nova for-
ma de relação? Erick Felinto – Novas linguagens criamos e recriamos desde crianças, interagindo com a cultura, com nossos semelhantes. E toda tecnologia produz formas de interação. Cultura e tecnologia produzem linguagens diferentes, formas de interação diferentes e visões de mundo diferentes. A introdução de uma tecnologia numa cultura produz esse tipo de transformação. Se é positivo ou negativo, fica aberto ao debate.
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