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A domesticação do exótico Drª Paula Caleffi ano 2 - nº 12 - 2004 - 1679-0316


UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos Coordenador Inácio Neutzling, SJ

Cadernos IHU Idéias Ano 2 – Nº 12 – 2004 ISSN 1679-0316 Editor Inácio Neutzling, SJ Conselho Editorial Dárnis Corbellini, Laurício Neumann, Rosa Maria Serra Bavaresco e Vera Regina Schmitz Responsável técnico Telmo Adams Editoração Eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Revisão Mardilê Friedrich Fabre Impressão Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467 humanitas@poa.unisinos.br www.ihu.unisinos.br


A DOMESTICAÇÃO DO EXÓTICO Paula Caleffi1

Ao analisarmos os processos de legitimação jurídica da diversidade cultural em determinados países da América Latina, como no Brasil e no Equador, constatamos historicamente a situação de um embate entre grupos nativos (em conjunto com agentes sociais, como setores acadêmicos, entre outros) e os estados nacionais com tendência recente a resultados favoráveis aos grupos indígenas, como está materializado na Constituição Brasileira de 1988 e nas discussões em favor da utilização da justiça comunitária por grupos Saraguros (Quechua), no Equador. Porém, paralelo a este fenômeno, temos o processo de ação da globalização neoliberal, escolhendo, por meio de instituições supranacionais, quais diversidades serão preservadas através do investimento de capital transnacional neste objetivo. As outras culturas indígenas que estão fora deste rol de eleitas ficam relegadas a uma situação de domesticação das suas manifestações étnicas, e digestão das mesmas, pela globalização neoliberal, que as inclui em seu repertório de possibilidades e escolhas controladas. Isso ocorre claramente, quando grupos indígenas são chamados a apresentar suas manifestações culturais em espetáculos nos quais as regras que os regem são ocidentais e nos quais eles devem desempenhar exatamente o que se espera deles – a visão do exótico – a prova da existência da diversidade. A contrapartida deste processo é que, para fugir da marginalização econômica, da miséria propriamente dita, grupos indígenas aceitam entrar nesta dinâmica. Utilizamos, em nosso trabalho, dois instrumentos muito importantes na compreensão da problemática: o conceito de multiculturalismo e suas diferentes concepções e as diferentes formas de aplicação dos projetos de etnossustentabilidade.

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Professora do PPG em História e coordenadora do Curso de História na UNISINOS, doutora em História da América, pela Universidad Complutense de Madrid, U.C.M., Espanha, com tese intitulada La Provincia Jesuítica del Para-

guay: Guaranis y Chiquitos um Análisis Comparativo.


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A longa construção de um multiculturalismo emancipador Entendemos que o fenômeno da globalização se constitui em múltiplas faces que possibilitam a articulação e a concretização de ações emancipatórias dominantes do fenômeno, aquelas que se impõem como hegemônica, a globalização neoliberal. “A globalização neoliberal corresponde a um novo regime de acumulação do capital, um regime mais intensamente globalizado que os anteriores, que visa, por um lado, a dessocializar o capital, libertando-o dos vínculos sociais e políticos que, no passado, garantiram alguma distribuição social e, por outro lado, a submeter a sociedade no seu todo à lei do valor, no pressuposto que toda a atividade social se organiza melhor quando se organiza sob a forma de mercado” (BOAVENTURA, pag.13). Da mesma forma como a globalização concentra as possibilidades hegemônicas e contra-hegemônicas dentro de si, o conceito de multiculturalismo abriga diferentes concepções. Pretendemos valer-nos deste conceito, aproveitando justamente as diferentes concepções que abriga, como um instrumento teórico que nos auxilia na compreensão de uma realidade que consideramos multifacetada, pois observamos diferentes dinâmicas decorrentes de diferentes lógicas e concepções que estão em curso, ora influenciando-se mutuamente, ora em franca contradição, formando a complexidade do momento histórico atual. Situando nossa análise nos países da América Latina, notamos que eles se concebem como países multiculturais há pouco tempo, pois a noção que persiste no século XX, até a década de 60, entendia a presença de diferentes culturas, dentro de um único Estado-Nação como algo transitório, a ser superado. O final da década de 1960 e o início da década de 1970 são fundamentais para a compreensão dos rumos assumidos na luta dos direitos dos povos indígenas na América Latina. Anterior a esta data, ao longo do século XX, havia basicamente duas posições dos não-índios em relação aos índios. A primeira, que desconhecia fundamentalmente o direito dessas populações, inclusive da própria vida, considerando-as um entrave ao progresso dos estados nacionais, ignorando extermínios praticados pelos integrantes das frentes de expansão, responsáveis por levar a “modernidade” às áreas mais remotas dos países latino-americanos. E a segunda posição dava continuidade à luta iniciada por frei Bartolomeu de Las Casas que pretendia, com uma atitude paternalista, defender os índios dos abusos e maltratos a eles impetrados pela dinâmica da sociedade colonizadora. Esta posição foi seguida por muitas pessoas, inclusive por intelectuais, que reforçavam as lutas indígenas com tratamentos mais humanos.


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No entanto, esta posição, tanto quanto a primeira, continha também como paradigma o extermínio dos povos indígenas, não por meio de atitudes violentas, mas aceitando como natural e inevitável o seu desaparecimento mediante sua integração à sociedade colonizadora. Em 1968, vem a público uma terceira atitude que sinaliza para a emancipação dos povos indígenas e para a compreensão da multiculturalidade como um fator constitutivo dos próprios estados-nação latino-americanos, e não como uma etapa passageira da sua história. Figura de destaque neste cenário, o antropólogo francês, Robert Jaulin, sistematiza as críticas que vinham sendo feitas aos estados latino-americanos em decorrência do descaso em relação aos povos indígenas e às injustiças cometidas com eles, e apresenta, no Congresso Internacional de Americanistas, ocorrido em Stuttgard, uma resolução que dizia o seguinte: 1. Protestamos por el uso de la fuerza como instrumento de cambio cultural en los programas de desarrollo social y econômico y en la alienación de las tierras indígenas. 2. Pedimos a los gobiernos responsables que adoptem medidas efectivas para la proteción de las poblaciones indígenas. 3. Exigimos que los gobiernos tomen serias medidas disciplinarias en contra los organismos e personas responsables de actos que van en contra de la Declaración Internacional de los Derechos Humanos. (ALCINA, 1990, p.12)

Esta ação de Jaulin levou à popularização do termo etnocídio na América Latina, o qual se entende como todo o ato que conduz à degradação ou desaparição da cultura indígena (nativa) de qualquer parte do mundo (Ibidem, p.13). Em 1970, vários intelectuais mexicanos publicam um livro de críticas violentas ao indigenismo oficial, referindo-se a ele com uma abordagem paternalista, buscando proteger os índios, mas assumindo como inevitável sua extinção via integração, o que se traduz, em última instância, em uma forma de etnocídio. Esta obra intitula-se “De eso que llaman Antropologia Mexicana”. Arturo Warmann et al. México: Nuestro Tiempo, 1970. Em 1971, ocorre a primeira reunião de Barbados, ainda sem participação indígena, apenas com antropólogos indigenistas e estudiosos da questão indígena. Porém a ruptura com as antigas posições torna-se explícita na declaração tirada ao final do congresso, que faz referência à responsabilidade de antropólogos e missionários religiosos no que diz respeito ao etnocídio que sofrem os indígenas, e fala, pela primeira vez, em autogoverno destes grupos, desenvolvimento e defesa dos índios por parte das próprias populações indígenas (ALCINA, op. cit., p. 13).


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Isso significa uma importante quebra do paradigma de entendimento que a sociedade colonizadora possuía sobre as populações nativas como sendo incapazes ou relativamente capazes, passando-se agora para a compreensão destas populações como sujeitos históricos, capazes de assumir seus destinos e defenderem seus direitos de existência como povos detentores de culturas diferenciadas dentro dos estados nacionais latino-americanos, e que assim desejam permanecer. Esta mudança de paradigma, que demorou quase 500 anos para acontecer, não ocorreu de forma espontânea dentro da cultura ocidental, mas foi resultado de um longo processo de luta dos próprios indígenas de se fazerem enxergar como sujeitos históricos e sujeitos de suas histórias, escolhendo parceiros dentro de segmentos das sociedades nacionais e organizações internacionais, endossando as concepções destes grupos de acadêmicos e indigenistas, os quais estavam em um momento de revisão epistemológica de seus saberes, possibilitando, assim, a aceitação político-acadêmica, por parte destes, de novos princípios formadores do conhecimento. Não é possível romanciarmos a luta indígena de tal forma que eliminemos a violenta assimetria de poder existente entre estes grupos e os estados-nação constituídos. Nesse sentido, foi necessário que houvesse uma crise nos paradigmas de compreensão da lógica de construção de conhecimento da cultura ocidental, questionando o próprio conceito de verdade absoluta, para que estes grupos pudessem ter a opção de escolher aliados dentro da própria academia e de outros setores sociais, que, com eles, provocassem uma transformação efetiva na compreensão dos princípios integracionistas, fazendo com que se afirmasse o paradigma emancipatório. Esse novo paradigma não havia atingido a maioria (como não atingiu ainda no início do séc. XXI), mas seu amadurecimento continuou com a segunda reunião de Barbados em 1977. Dessa reunião participaram lideranças indígenas, juntamente com antropólogos e demais estudiosos da questão que se definiram por uma visão crítica, mais aberta e com novas orientações frente ao antigo indigenismo. A Declaração de Barbados II (julho de 1977) foi assinada por 18 índios e 17 antropólogos, enfatizando estratégias e instrumentos necessários para sua realização e a necessidade de uma ideologia consistente e clara, sendo justamente, de forma paradoxal, a diversidade cultural o elemento de aglutinação. O grupo de Barbados II também se interessou pelo direito à autodeterminação dos povos indígenas e pela apuração dos novos


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mecanismos repressivos impetrados pelas sociedades nacionais (Barre, 1983, p.156-57, In: Ibidem)2. No Brasil, essas lutas seguem a mesma direção, porém com as peculiaridades de um país que vivia sob uma ditadura militar e experienciava uma realidade, para muitos contraditória, “gerada pela persistência de diferenças culturais dentro de um Estado-Nação que tem como representação de si, e para si, ser constituído por um único indivíduo coletivo, uma brasilidade homogênea” (RAMOS, 1997, p. 9-10). Esse impasse foi resolvido favoravelmente aos grupos indígenas com o fim da ditadura militar e o início do processo de redemocratização do País, o que se chamou uma Assembléia Constituinte. Participaram da elaboração do texto constitucional a União das Nações Indígena, Organizações Não Governamentais como a ABA – Associação Brasileira de Antropologia, entre outras que garantiram avanços significativos para os grupos indígenas dentro da nova Constituição nacional, que aponta para a legitimação da diversidade cultural, aportando garantias jurídicas para sua continuidade. Assim, ser índio no Brasil do final do séc. XX e início do XXI significa ser portador de um status jurídico que garante uma série de direitos. É fazer parte de uma coletividade que, por suas categorias e circuitos de interação, distingue-se da sociedade nacional, e reivindica-se como “indígena”. Ou seja, percebe-se como descendente de população de origem pré-colombiana (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998, p.282).

O autor acima citado explica também que esta conceituação “está baseada no critério antropológico de auto-identificação dos grupos étnicos (Ibidem),” trazendo implícita a noção de respeito à alteridade e ao poder de autonomeação das coletividades. E “insere-se igualmente no conjunto de disposições internacionais, como a convenção 169, da OIT (1989)3, a qual estabelece que “a consciência de sua identidade indígena (...) deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam as disposições da presente convenção (art. 1, item 2) (Ibidem). O texto Constitucional brasileiro, em seu artigo 231, aporta o seguinte: São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União, demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (Constituição Federal 1988, p.152-53).

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A tradução foi feita pela autora. Organização Internacional do Trabalho.


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Está reconhecido, juridicamente, no Brasil, o direito das populações indígenas manterem sua cultura, sem que esperemos destes povos que um dia deixem de ser índios para diluírem-se na sociedade nacional. A quebra do paradigma integracionista mostra um verdadeiro avanço frente às concepções e às formas como as sociedades indígenas são compreendidas, pelo menos na legislação maior do País. Desse modo, fica clara a distinção entre integração, entendida como a diferença cultural das sociedades indígenas incorporarem-se na cultura geral da nação, formando uma única cultura homogênea, e emancipação como um conceito que remete à autodeterminação dos povos indígenas, garantindo-lhes a manutenção das suas culturas, bem como a possibilidade de viverem dignamente tendo todos os seus direitos respeitados. Para que a emancipação e a autodeterminação tivessem condições de sair do papel e tornar-se um fato, a Constituição também prevê, no artigo seguinte, o 236 que: Os índios e suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (Constituição Federal, 1988 p.153).

Pelo texto constitucional ficam, então, os indígenas livres do estigma de serem relativamente capazes, sendo reconhecidos, a partir de 1988, como emancipados e portadores de direitos especiais. Apesar de o restante da legislação brasileira, como o Código Civil, e leis complementares, como o Estatuto do Índio, demorar mais a adequar-se à nova Constituição, o mesmo vem sendo feito à luz de discussões e é inevitável que estas leis menores do País tornem-se compatíveis com a Constituição. O Ministério Público vem efetivamente cumprindo sua função e buscando qualificar-se por meio de seminários e palestras sobre os povos indígenas, para melhor acompanhar as demandas destas populações. Observamos, no Poder Judiciário, uma crescente aceitação desta compreensão da realidade indígena que se reflete em ganhos de causa para as comunidades em inúmeras demandas, como o direito a terras demarcadas; a paulatina luta por direito à saúde e à educação bilíngüe; o reconhecimento de grupos que surgem a partir do processo de etnogênese, como vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, em decorrência do texto constitucional, que garante direitos a estas populações as quais encontram, agora, um ambiente onde suas identidades têm respaldo legal para aflorarem e enfrentarem as discriminações, inclusive acionando o Ministério Público. Enfatizamos, assim, o avanço no reconhecimento do direito à diferença por parte do Poder Judiciário e parte do Legislati-


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vo Parlamentar. Isso não significa que as decisões do Poder Judiciário em favor destes grupos sejam efetivamente realizadas, pois muitas demandas acabam esbarrando na falta de verba para sua execução ou em outro tipo de entrave de ordem burocrática ou mesmo política. Citamos o exemplo do grupo indígena Caxixó, que foi reconhecido oficialmente pelo Judiciário como grupo indígena, por um laudo de identidade expedido pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mas que aguarda há longos anos por um estudo para demarcação de suas terras, o que não ocorre, segundo a própria FUNAI, por falta de recursos financeiros. Em alguns países latino-americanos, notamos processos similares que avançam em termos de colocar em prática a compreensão emancipatória da multiculturalidade, como acontece no Equador com os indígenas saraguros. Os saraguros, nos últimos anos da década de 1990, buscaram reativar seus processos de justiça comunitária, tendo como argumento o descaso, a inoperância e o despreparo da polícia, para resolver problemas de abigeato em suas comunidades. Os saraguros retomam a prática do Direito Consuetudinário de seus antepassados que consiste, entre outras coisas, em sacar o JAMAZHI com o banho. O JAMAZHI, segundo os saraguros, é um problema que deixa o ser humano com muito susto, espanto, preguiça para trabalhar, agressividade, etc. Então com o banho, a pessoa se cura e começa a lembrar e admitir seus erros contando, com todos os detalhes, furtos contra a comunidade (GUAMÁN, 2001). A constituição equatoriana prevê o seguinte: Las autoridades de los pueblos indígenas ejercerán funciones de justícia, aplicando normas y procedimientos propios para la solución de conflictos internos de conformidad com sus costumbres o derechos consetudinários, siempre que no sean contrários a la constitución y las leyes. La ley hará compatibles aquellas funciones com las del sistema judicial nacional (Constituição Política del Equador, 1998, art. 191 – inciso quarto).

Apesar do que afirma o artigo constitucional, as lideranças dos saraguros que haviam incentivado e desempenhado a prática da justiça comunitária em 2001, foram perseguidas pela polícia acusadas de violação dos direitos humanos. Ocorre que a Constituição fala na prática da justiça comunitária, desde que esta não esteja em contradição com o texto constitucional, o que dá ao Estado uma enorme margem para interpretações do mesmo texto. Boaventura de Souza Santos afirma:


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Paula Caleffi Nos casos em que ocorre, a ‘politização’ dos projetos multiculturais tem lugar no quadro do Estado-Nação, como ‘status especial’, atribuindo a certas regiões ou povos, cuja existência coletiva e cujos direitos coletivos são reconhecidos apenas enquanto subordinados à hegemonia da ordem constitucional do Estado-Nação (e enquanto forem compatíveis com as noções de soberania, direitos, em especial direitos de propriedade, vigentes no quadro desta (SANTOS, 2003, p.31).

O apontado acima por Santos é de fundamental importância, porém não ocorre de forma homogênea nem monolítica, mas faz parte de um processo que está sofrendo ajustes consecutivos, como no próprio Equador, onde as autoridades tiveram que desistir do mandato de busca e captura das lideranças dos saraguros, devido a pressões nacionais e internacionais, e entrar em um processo de discussão com as comunidades indígenas sobre as interpretações possíveis do próprio texto constitucional. Da mesma forma, no Brasil, o direito de propriedade existente no texto constitucional reconhece o direito originário das comunidades indígenas sobre a terra e não existe, na lei, nenhum direito que se sobreponha a este. Encontramos, no relatado até agora, a construção histórica de possibilidades de compreensão emancipatórias do conceito de multiculturalismo “baseadas no reconhecimento da diferença e do direito à diferença e da coexistência ou construção de uma vida em comum além de diferenças de vários tipos”(Santos, 2003, p.33), por parte dos setores Judiciário e Legislativo de estados-nação latino-americanos. Voltando nossa análise ao Brasil, ressaltamos, porém, que fazer leis e, muitas vezes, acatá-las como parâmetro para decisões jurídicas não significa ter uma política efetivamente estabelecida, pois esta última envolve, além do aspecto legislativo e jurídico acima mencionado, a criação de prioridades e destinação de verbas para o seu cumprimento, coisas que estão ausentes da atual realidade brasileira. Um multiculturalismo domesticador Entramos na outra concepção de multiculturalismo coexistente com a anteriormente analisada, em que os espaços deixados pelo poder público são preenchidos por outros agentes, como ONGs e Movimentos Sociais de Base, que se constituem em braços de instituições multilaterais e transnacionais ou são subsidiados financeiramente por estes. Os citados agentes (ONGs e Movimentos de Base), de forma ambivalente, são responsáveis, muitas vezes, pelas possibilidades de continuidade de existência de comunidades indí-


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genas, porém têm suas capacidades de atuação alimentadas pelo capital internacional, ou transnacional, estabelecendo suas políticas de ação e atuação de acordo com os interesses deste capital. Se por um lado elas (ONGs e Movimentos de Base) parecem dar expressão a formas emergentes de sociedade civil global, ampliando as possibilidades de participação dos cidadãos além dos limites do Estado nacional e em interação direta com as instituições envolvidas no governo transnacional, por outro lado, e paradoxalmente, tendem a conferir legitimidade aos agentes institucionais da globalização hegemônica (OMC, FMI e Banco Mundial, por exemplo). (RANDEIRA. In: Santos, 2003, 57)

Apesar do citado acima dizer respeito à realidade atual da Índia, serve perfeitamente para a compreensão da realidade atual brasileira, em que a questão da diversidade cultural é tratada geralmente em restrição à Amazônia4. Para a Amazônia, estão voltados os olhos dos países poderosos e lá está centrado maciçamente o foco de financiamentos externos para projetos de demarcação de terras e projetos de etnossustentabilidade, simplesmente porque a preservação ecológica da Amazônia passou a ser entendida como fundamental para a continuidade do ser humano como espécie. A demarcação das terras indígenas na Amazônia cumpre, assim, a expectativa de que essas áreas serão preservadas biologicamente. Tendo por princípio que as sociedades indígenas mantêm com o meio uma relação equilibrada5, os índios da Amazônia foram transformados em uma espécie de guardiões da saúde do Planeta, apesar de não terem sido eles os responsáveis pelo atual estágio de degradação do mesmo. Assim, apesar de as comunidades indígenas da Amazônia ainda estarem longe de uma realidade ideal (muito ainda está por ser feito), estão em muito melhores condições do que em outras localidades do Brasil, pois a diversidade cultural da Amazônia está legitimada e protegida pela globalização hegemônica

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As referências à Amazônia, em nosso texto não se restringem ao estado federativo brasileiro do Amazonas, mas tratam da convencionalmente chamada “Amazônia Legal” no território brasileiro, que compreende toda a área do ecossistema amazônico, englobando o estado do Amazonas, Pará, Acre, Rondônia, Roraima, Amapá e parte do Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. “Efetivamente nunca foi provado que os sistemas indígenas de gestão e uso de recursos naturais sejam conscientemente intencionalmente conservacionistas. É preciso distinguir entre formas de gestão e manejo dos recursos – que não seriam a princípio conservacionistas ou equilibradas – e formas de organização social, que, estas sim, podem – em contexto “tradicional” – promover um equilíbrio nas relações entre essas sociedades e seu meio ambiente” (GALLOIS, 2001, p. 183).


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enquanto ela cumprir sua função de guardiã da diversidade ecológica de um dos pontos estratégicos da Terra. Esta opção do capital hegemônico pela Amazônia e a destinação de verbas maciças para projetos acabam definindo, a despeito da legislação que pretende atingir todos os povos indígenas, qual a diversidade cultural que será preservada, estabelecendo um novo parâmetro de marginalização entre os povos indígenas, pois se a sua situação na Amazônia não é a ideal, a situação dos outros povos indígenas que se localizam noutros espaços do Brasil é crítica, e inclusive muito pouco conhecida e valorizada dentro do próprio País. Esta posição dos agentes internacionais reforça a concepção de que índios legítimos são os da Amazônia e os que estão fora dela “são meros remanescentes que já perderam sua cultura”. A cultura é intencionalmente tratada, neste tipo de discurso, não como algo dinâmico capaz de “reorganizar sua originalidade a partir de elementos externos” (Gallois, 2000, p.180), mas como um elemento portador de uma matriz rígida que é passível de ir se perdendo dependendo da intensidade do contato com a civilização ocidental. Estudiosos e intelectuais do mais alto nível, como no caso de Boaventura de Souza Santos, que, imbuído da melhor das boas intenções, acaba reforçando esta visão, quando seleciona na obra recente do qual é organizador – Reconhecer para libertar. Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira – um texto de Lino João de Oliveira Neves – Olhos mágicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegemônicas dos povos índigenas no Brasil. Páginas 113-53 – usando como argumento que (...). Como é no estado do Amazonas que se concentra a maior população indígena do país, com a maior diversidade étnica, o maior número de organizações indígenas, é esse o espaço em que o autor (Lino J. O. Neves) explora o processo de consolidação do movimento indígena e a atuação das suas organizações, tanto nas relações entre etnias como nas relações com o Estado brasileiro e outros setores da sociedade (SANTOS, op. cit., p.45).

É com este argumento que Boaventura apresenta o texto de Neves na introdução da sua obra que é o mesmo utilizado por Neves para iniciar seu artigo na página 113. É ainda na introdução da obra, da qual é organizador, falando sobre o texto de Neves, que Boaventura acrescenta: É a partir dessas experiências que o autor procura caracterizar as ‘subjetividades emergentes’ e iniciativas de sentido emancipatório desses povos, que representam o setor mais marginalizado do mundo contemporâneo, o “Sul do Sul”, como foram chamados por Boaventura de Souza Santos (1995, p.325)” (SANTOS, 2003, p.46).


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Infelizmente, Boaventura tem razão em apenas uma parte do que afirma, como em relação à quantidade de terra demarcada na Amazônia ser muito maior em quantidade e em tamanho de áreas, que no restante do País, o que corrobora nossas afirmações. Porém não é nem na chamada Amazônia Legal, nem muito menos no estado federativo do Amazonas que se encontra a maior parte da população indígena do Brasil. Segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, a população indígena no Brasil atual é de 734 131 pessoas, das quais 268 212 vivem na chamada Amazônia Legal brasileira, que é muito mais ampla que o estado do Amazonas, e 465 919 habitam o restante do País. Notamos como a noção de existência de diversidade cultural divulgada está arraigada aos povos indígenas que vivem na Amazônia, legitimando estrategicamente, a supervalorização destes em detrimento dos outros povos indígenas que habitam o Brasil. Assim existe um sul mais ao “Sul do Sul” de Boaventura. Habitando terras demarcadas, ou que lhes estão sendo devolvidas na íntegra recentemente, os outros povos indígenas do Brasil encontram inúmeras dificuldades para sua sobrevivência, pois suas terras foram exploradas anos a fio por arrendatários ou por outros agentes da sociedade ocidental que não possuíam preocupação com a sua preservação. O próprio órgão indigenista, inicialmente o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e, posteriormente, a FUNAI, implantaram, nestas terras, atividades de caráter desenvolvimentista totalmente desligadas das realidades culturais indígenas. Atividades como o plantio de monoculturas responsáveis pelo esgotamento da terra, fazendo com que elas sejam bastante prejudicadas para algum tipo de produção e, mais ainda, para a produção nos moldes indígenas, com todas as peculiaridades que isso envolve. As atividades de produção e sustentabilidade humanas não são compostas de uma única atividade. Entre os povos indígenas, formam um todo, composto por várias partes articuladas entre si, que interagem com as possibilidades do meio onde se localizam. São tradicionalmente compostas de caça, coleta de inúmeros tipos, pesca, horticultura e artesanato. Este último, quando passou a ter valor de venda para os “brancos”, tornou-se também atividade de sustentabilidade. Porém estas atividades podem mudar, e efetivamente mudam, historicamente, de acordo com as diversas dinâmicas culturais. O fundamental é que as comunidades as considerem pertinentes, equilibradas e que exista a possibilidade emancipada de opção, de escolha das atividades a serem desenvolvidas.


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O conceito de etnossustentabilidade,6 que se propõe ser norteador, atualmente, dos projetos das comunidades indígenas e com as comunidades indígenas, prevêem a articulação de três termos: cultura, sustentabilidade e mercado. A definição da atividade deve sempre partir do aspecto cultural, de uma forma sustentável no sentido de reposição ou utilização responsável dos recursos extraídos do meio ambiente, e busca de nichos de mercado receptivos a estes produtos. Na Amazônia, é de grande interesse dos organismos internacionais que estes projetos sejam desenvolvidos com maior complexidade e diversidade de atividades produtivas tradicionais, dentro da concepção de etnossustentabilidade possível, pois isso garante a manutenção do meio ambiente. Formatados sempre com as características de cada cultura indígena, estes projetos, quando bem sucedidos, formam uma proteção contra a penetração, nestas áreas, de madereiras e de empreendimentos de garimpo, atividades que, muitas vezes, se encontram na fronteira da ilegalidade, e que são, em sua essência, dilapidadoras do meio ambiente.

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O conceito de etnossustentabilidade surge a partir de dois outros conceitos: durante as décadas de 1970 e 1980, um grupo de intelectuais decide rever o conceito de desenvolvimento à luz de outros elementos e variáveis que não exclusivamente a industrialização. Justamente opondo-se a uma idéia homogeneizada do “industrialismo”, decidem considerar questões como as diferenças culturais existentes entre diversos povos e entender que o conceito de desenvolvimento deve ser pensado justamente a partir delas. Assim surge o etnodesenvolvimento que articula dois eixos – cultura e mercado. No entanto, esta articulação é sempre pensada a partir da cultura, buscando-se compreender e respeitar as necessidades e desejos dos mesmos: quais as formas de produção tradicionais e quais produtos de origem tradicional as diferentes culturas podem oferecer para o mercado, sem que esta relação se inverta, ou seja, jamais deve ser o mercado que dite o que e como deverá ser produzido. Por outro lado, também um grupo de biólogos e ambientalistas estavam repensando o conceito de desenvolvimento, objetivando alternativas para um melhor equilíbrio entre desenvolvimento e meio ambiente, surgindo, então, o conceito de desenvolvimento sustentável, que prevê a responsabilidade na utilização dos recursos naturais e a sua reposição, quando possível, e a reconstituição de áreas devastadas pelos projetos de desenvolvimento, buscando-se uma percepção diferenciada de qualidade de vida. Este novo olhar sobre o desenvolvimento passa a ser melhor conhecido a partir da assinatura da carta-compromisso da ECO-92, no Rio de Janeiro. Considerando, então, que o conceito de etnodesenvolvimento, por si só, estava incompleto, cientistas e pesquisadores passam a utilizar o termo etnossustentabilidade. Assim, a etnossustentabilidade articula três termos – cultura, meio ambiente, mercado – e propõe-se a pensar e construir propostas que tomem como base os aspectos culturais e tradicionais, como foi citado no conceito de etnodesenvolvimento, ligando-os à idéia de sustentabilidade, ou seja, estratégias de utilização responsável dos recursos naturais e, quando possível, a sua reposição e manejo, e as brechas existentes no mercado para este tipo de produto, considerado alternativo, que, muitas vezes, por reunir estas qualidades, pode ser muito valorizado.


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Em terras indígenas do estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, os projetos de etnossustentabilidade são impossíveis de serem executados envolvendo as múltiplas atividades produtivas que seriam necessárias, sem que se faça uma recuperação integral das áreas do solo e de cobertura vegetal e uma busca de fontes de água alternativas, entre outras inúmeras coisas. Como esta recuperação seria extremamente dispendiosa e, não havendo verba disponível do poder público e nem mesmo o interesse de ONGs e Movimentos de Base que promovem, na Amazônia, este tipo de projeto, por motivos por nós já analisados, os projetos que pretendem trabalhar com o conceito de etnossustentabilidade, em outros lugares do país que não na Amazônia, tendem a enfocar de forma desproporcional o artesanato e as manifestações culturais em detrimento de outras atividades etnossustentáveis, fracionando, assim, um todo complementar que são as atividades de sustentabilidade indígena. Buscando seguir a orientação do conceito de etnossustentabilidade, adequando-o às limitações reais já citadas por nós, em que os primeiros termos responsáveis, por definir os que se seguem, são a cultura e a tradicionalidade, projetos existentes no Rio Grande do Sul, por exemplo, enfocam manifestações culturais de canto e dança e o artesanato. Este último é feito com material natural onde ainda é possível, e com materiais substitutos onde os de origem natural já não existem mais, o que não torna o artesanato menos autêntico, como no caso dos Mbyá-Guaraní que têm muita dificuldade para encontrar tinta natural para seu trabalho devido à devastação das matas do Estado, e a substituem por anilina industrializada. O fato de isso não descaracterizar o artesanato como indígena, (e isso é extremamente correto, porque existe todo um conhecimento étnico empregado de lidar com a taquara, o cipó, a madeira ou outros materiais apropriados e transformá-los em objetos que estão relacionados com todo o restante da cultura), acaba por criar uma situação, no mínimo insólita, pois justamente buscando ser corretos com as percepções atuais, os próprios projetos de etnossustentabilidade causam um desequilíbrio ao enfatizar o artesanato e as manifestações culturais de canto e dança como possibilidades exclusivas de geração de renda. Entendemos que a conquista do mercado sobre espaços ainda alternativos, ou seja, a expansão da globalização hegemônica é bastante sutil e busca não uma homogeneização simples das manifestações culturais, mas uma forma de controle, integrando-as dentro da ordem neoliberal, justamente domesticando-as, e normatizando suas originalidades para que a diversidade possa ser oferecida como um produto digerido. Assim, existe espaço para manifestações locais desde que normatizadas, para a domesticação do étnico, e para o exótico digerido que encontra espaço de venda em shopping centers.


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O desequilíbrio dos projetos de etnossustentabilidade, valorizando os aspectos do artesanato e das manifestações culturais de canto e dança, acaba por abrir espaço para isso, pois, em nosso entender, projetos de etnossustentabilidade necessitam ser desenvolvidos como um todo, com a recuperação das áreas pertencentes aos grupos indígenas para que estes tenham a opção de dividir seu tempo entre artesanato e outras atividades que considerarem pertinentes. Acreditamos que todas as culturas são dinâmicas e não defendemos sob hipótese alguma que as culturas indígenas devam ficar em nichos onde vivam isoladas. O mundo atual demanda por espaços autênticos de convivência entre as diferentes culturas, mas para isso são necessários espaços com investimentos considerados adequados por cada comunidade, onde as culturas possam reproduzir seu modo de ser, viver a sua cosmologia, de forma integral e não fraturada. Jogar a expectativa de sobrevivência destes grupos exclusivamente sobre o artesanato e as manifestações culturais não corrobora isso. Analisando algumas “soluções” encontradas que pretendem partir do conceito de valorização da cultura indígena, Gallois aponta: Tanto a produção de artesanato como a de turismo (ecológico) exigem dos índios algo que é um processo de mais de uma geração, de formatar uma noção da própria cultura para destiná-la à venda. Essas alternativas de desenvolvimento levam as comunidades a mercantilizar o produto de suas relações internas, justamente quando esses representam os únicos produtos genuinamente indígenas (o ritual, os adornos utilizados nas festas para turistas, etc.) que deveriam permanecer fora do alcance da comercialização. Como evidenciaram os estudos sobre experiências de turismo étnico no mundo, “vender cultura” exige um tempo maior para adaptar suas formas internas de relacionamento ao consumo externo, em condições muito mais desintegradoras que as observadas nas comunidades que optaram por comercializar recursos de suas terras, selecionando aqueles que apresentam maior interesse no mercado (2001, p. 183).

Nas manifestações culturais de canto e dança de comunidades do Rio Grande do Sul, por meio das quais estas conseguem algum dinheiro ou, na maior parte das vezes, alimentos para seu sustento, da mesma forma que com o artesanato, ocorre um fenômeno interessante, porém perverso: essas manifestações tornaram-se um misto de autenticidade, espaço de divulgação e afirmação cultural, encontrada principalmente nos cantos (letras e música), mas, ao mesmo tempo, para serem aceitos e convidados a se apresentarem, os grupos indígenas necessitam enquadrar-se nos formatos dos shows, moldam-se ao pa-


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drão do espetáculo, o que consiste em apresentar-se com um padrão de higiene estabelecido pela sociedade dominante, utilizando vestimentas que remetem ao exótico e que, na maior parte das vezes, não utilizam nem em seu cotidiano, muito menos em seus rituais, e fundamentalmente usar o tempo (elemento precioso utilizado de diferentes formas nas diferentes culturas), da maneira ocidental, não extrapolando o tempo predeterminado pelos organizadores dos eventos. Relacionada a essa situação, citamos abaixo outra concepção do multiculturalismo que entendemos corresponder perfeitamente ao contexto exposto acima. Para outros o multiculturalismo seria a expressão por excelência da lógica cultural do capitalismo multinacional ou global (um capitalismo “sem pátria”, finalmente...) e uma nova forma de racismo: “a forma ideal de ideologia deste capitalismo global é o multiculturalismo, a atitude que, a partir de uma espécie de posição global vazia, trata cada uma das culturas globais do modo como o colonizador trata os povos colonizados – como “nativos” cujos costumes devem ser cuidadosamente estudados e “respeitados”. (...) O multiculturalismo é um racismo que esvazia a sua própria posição de qualquer conteúdo positivo (o multiculturalista não é um racista direto, ele não opõe ao Outro os valores particulares da sua própria cultura), mas não obstante conserva a sua posição enquanto ponto vazio privilegiado de universalidade a partir do qual se podem apreciar (e depreciar) de maneira adequada outras culturas em particular – o respeito multiculturalista pela especificidade do OUTRO é ele próprio a forma de afirmar a própria superioridade (ZIZEK, 1997, p.44, In: SANTOS, 2003, p.31).

Os grupos indígenas são sujeitos de sua história e sabem instrumentalizar sua cultura quando é necessário, e isso não deve ser entendido como um simulacro, e sim como uma estratégia de sobrevivência. Não é o simples contato entre as culturas, que leva a situações dramáticas como a folclorização das manifestações culturais, mas a pobreza e a miséria, que, por sua vez, conduzem à falta de autonomia das comunidades, fazendo com que elas, por uma questão de subsistência, aceitem submeter-se às condições propostas pela sociedade dominante, assumindo o local que a globalização hegemônica lhes destina. A questão que trazemos é semelhante à exposta por Gallois, na citação feita anteriormente. Até que ponto é possível instrumentalizar a cultura sem que acabe afetando o próprio grupo no sentido mais amplo, como, por exemplo, da auto-estima desta coletividade que, em decorrência da marginalização e da miséria que sofre, decide “dar aos brancos o que eles desejam ver”, e assim conseguir ser aceita, encontrar um lugar na ordem de mundo hegemônica, sem que isso signifique efetivamente sair


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da pobreza? Em nosso entender, estas estratégias de sobrevivência não podem ser consideradas de forma isolada, como algo que se esgote no fenômeno e que não traga sérias conseqüências para o grupo. O reflexo disso, junto com outros fatores, acreditamos, podem ser constatados no alto nível de alcoolismo existente nestas comunidades e em inúmeros outros fatores. Seria isso a convivência com a diversidade? Ou estamos diante novamente, agora por meios mais elaborados e menos explícitos da “digestão do nativo”, da domesticação do exótico por parte da globalização hegemônica. Como conviver com o diferente justamente quando a lógica de propostas que deveriam buscar a manutenção da diversidade, por limitações das condições atuais já citadas, fratura a cosmovisão e a vivência do mundo do Outro? Qual a diferença entre um indígena obrigado a produzir artesanato incessantemente, ocupando seu dia e suas horas que seriam destinadas a outras atividades fundamentais na manutenção de sua cosmovisão, como um operário que é obrigado a cumprir sua jornada de trabalho? Como se relacionam os dois significados de multiculturalismo presentes na realidade brasileira atual? O de um Estado-Nação, que abre espaço para que direitos emancipatórios sejam reconhecidos para todos os povos indígenas do território nacional, mas que não estabelece políticas efetivas para isso e o multiculturalismo que entra justamente pelas brechas deixadas pelo Estado-Nação e estabelece qual a diversidade cultural que merece ser mantida, sobre a qual grandes somas de capital internacional são investidas, para que vivenciem projetos de etnossustentabilidade o mais equilibrados possível. Esses mantêm a diversidade biológica do Planeta, evitando que as comunidades decidam vender algum bem natural de suas terras para sobreviver, realidade que acaba por relegar aqueles grupos, que não estão nas áreas de preservação, à total falta de expectativa e opção, fazendo com que aceitem folclorizar sua cultura para sobreviver, entrando na dinâmica neoliberal, sendo digeridos, normatizados e domesticados, tornando-se mais um produto exótico controlado a ser oferecido. Aqui retomamos uma afirmação feita ao longo do texto: não é o simples contato entre diferentes que leva a perdas culturais ou a processos de folclorização das culturas, e sim a pobreza e a miséria, que trazem consigo o fantasma da dependência, rompendo autonomias e não deixando opção a não ser fazer o jogo proposto pelo hegemônico.


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DEBATE, APÓS IHU IDÉIAS DO DIA 25/09/2003 Profª. Beatriz Fischer – Falaste de um documento que o Presidente Fernando Henrique não teria assinado e que talvez o atual Presidente assinaria. Eu não captei bem que documento é esse? Profª Paula Caleffi – Consiste no documento da Organização Internacional do Trabalho n. 169, relativo aos povos indígenas do mundo. Não foi assinado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, até o ano de 2002, porque fala em povos indígenas, o que poderia vir a indicar que esses povos teriam direito a um território próprio, com um governo próprio dentro do Estado-Nação, partindo da idéia de que a cada povo corresponde uma nação e que, em decorrência, isso demandaria, então, terras e autonomia dentro do próprio Estado-Nação. Fernando Henrique Cardoso não havia assinado o documento por esse motivo e, inclusive, em seus discursos, o Presidente falava de “comunidade indígena” ou “índios”. Mas não utilizava o termo “povos indígenas”, porque “povos indígenas” demandaria reconhecê-los com direito de terra e de autogoverno. Quem rompeu um pouco isso foi o governador Olívio Dutra, justamente quando ele recebeu as lideranças indígenas com honras de Chefe de Estado. Por meio desse ato, ele manifestou reconhecimento dessas populações como povos indígenas e não apenas como populações. Finalmente, em 2002, o Brasil aderiu ao documento 169. Prof. Erno Walauer – Eu quero perguntar qual o papel do exército, ou pelo menos de uma parte do exército brasileiro, nesse contato com os grupos indígenas, especialmente na Amazônia. Em anos passados, se ouvia, muitas vezes, a crítica de que o Projeto Calhanorte ia trazer muitos problemas aos grupos indígenas nas regiões limítrofes do País. Existe um trabalho do exército? Tempos atrás, eu fiz visitas ao exército, e o comandante apresentou vários oficiais que eram descendentes de índios culturalmente na origem e mostrava a diversidade dentro do exército, além de índios outros evidentemente. Qual seria o papel do exército hoje neste trabalho, nesse processo? Profª. Paula Caleffi – Essa pergunta é supercomplexa, professor. Vai depender muito de qual área indígena. Mas, por exemplo, hoje em dia, nós temos a presença do exército exclusivamente nas áreas indígenas de fronteira. Para lhe citar um exem-


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plo, na área indígena Ticuna, que abrange a Amazônia e o Peru e na área indígena Yanomami, que abrange a Amazônia e a Venezuela, entre outras, mas sempre áreas de fronteira. E o exército está ali dentro justamente com o argumento de proteção das fronteiras. Existem áreas em que os oficiais são mais preparados e a convivência é harmônica, pacífica. Mas há áreas onde a convivência é terrível, com uma total falta de aceitação do exército em relação aos indígenas e dos indígenas em relação ao exército ali presente. Há relatos bastante violentos de conflitos com feridos. Há uns dois meses, um colega meu do Rio de Janeiro foi chamado às pressas para ir até a área dos yanomamis, justamente para tentar acalmar o conflito entre o exército e os indígenas. Prof. Ático Chassot – Uma primeira questão: Em nosso imaginário e talvez até produto do censo comum, sobre a situação indígena nos diferentes países, os enxergamos muito presentes, por exemplo na Bolívia, no Paraguai, e parece que foram zerados na Argentina e no Uruguai. Essa percepção é correta? E quando tu citaste Bartolomeu De Las Casas, se eu entendi, tu o fizeste de uma maneira crítica à situação paternalista. Eu pergunto, essa situação paternalista, entre aspas, com uma conotação negativa na sua fala, não foi melhor do que a ação completamente exterminadora? E por que a sua crítica ao paternalismo? Profª. Paula Caleffi – Vou começar pela última. Eu citei o Bartolemeu De Las Casas não fazendo crítica a ele, mas fazendo crítica àqueles que deram segmento ao pensamento dele até o século XX, sem fazerem a crítica a esse pensamento. Mas sem sombra de dúvida, não vou discutir a importância da figura dele no contexto histórico em que ele viveu. Agora, o que se expõe é o seguinte: o projeto dele buscava a “civilização” dos indígenas, por meio da transformação de suas pautas culturais próprias na pauta cultural ocidental. E nesse sentido, ele poderia não ser genocida, mas ele era etnocida. É claro que, no contexto histórico em que Bartolomeu De las Casas viveu, isso está plenamente justificado. Mas o que se questiona são pessoas, no século XX, trabalharem a partir desse conceito formatado pelo Pe. Bartolomeu. Logo não é crítica a ele, mas àqueles que seguem seu ideal “civilizatório” após 500 anos. Porf. Ático Chassot – Então pode ser considerado etnocida? Profª. Paula Caleffi – A gente comete um anacronismo empregando o termo etnocida para Bartolomeu De Las Casas, porque esse conceito foi forjado muito tempo depois. Então eu preferia chamar de etnocida aos seus seguidores e trabalhar com a idéia de que Bartolomeu era um protetor dos índios. Ajudou enorme-


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mente a combater o extermínio, mas o seu projeto era civilizacional, ou seja, que esses índios se tornassem ocidentais. A outra questão, eu cortei a parte da análise da América Latina para que minha exposição não ficasse muito longa. Eu tenho trabalhado mais com o Equador, porque eu tive a possibilidade de fazer um paralelo, uma análise comparativa com o Brasil. Tive oportunidade de fazer uma visita de estudos, ficar um tempo com um grupo indígena nos Andes, com os quechuas saraguros, descendentes dos incas. Até hoje, a gente mantém muito contato. Eles me mandam muita documentação e muitas coisas que eles estão produzindo. Eu tenho muito material para trabalhar a questão de outro Estado-Nação no caso. Mas é mais especificamente sobre o Equador que eu teria material de pesquisa. Agora, o que levantaste é perfeitamente plausível e coerente: os países que mais ignoraram a presença indígena são o Uruguai e a Argentina. Prof. Ático Chassot – Ignoraram, significa exterminaram? Profª. Paula Caleffi – Também, porém ainda restaram muitas etnias. Na Argentina, há muitos indígenas, muitos indígenas Mbyá Guaraní, entre outros, que continuam com sua prática histórica “caminhar”, inclusive passando pelo Rio Grande do Sul até Santa Catarina e retornando para a Argentina. A Argentina tem muita população indígena ainda, mas é mais ignorada do que no Brasil de 20 anos atrás. E o Uruguai da mesma forma. Eu estava conversando com um professor da Universidade do Uruguai, e ele dizia que está começando uma verdadeira busca da questão indígena dentro do Uruguai, talvez motivado pela onda de multiculturalismo que assola o mundo. Existem ainda alguns pequenos núcleos de comunidades indígenas habitando o Uruguai, os Mbyá Guaraní. Eles se deslocam pela região platina, que é a região deles. Claro, se a situação está muito difícil dentro de um Estado-Nação, como o Uruguai, eles saem, passam um tempo fora. A gente vê o refluxo, quando começa a vir muito Mbyá Guaraní para o Brasil, é porque a situação em relação à causa indígena na Argentina está realmente mais complicada. Agora, nos outros países da América Latina, eu penso que as populações indígenas, tirando o Chile, porque, no Chile, a situação também é complicada, a presença física efetivamente das culturas diferentes, ela é impossível de ser negada, quer dizer, no Paraguai, no Equador, no Peru, a convivência é eminente, é cotidiana, ela é na cidade, ela não se dá só no campo, como língua, como cosmovisão permanente. Isso faz com que esses países tenham que fazer uma elaboração diferenciada, inclusive da sua história nacional em relação às populações indígenas.


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Prof. Werner Altmann – Bem, apreciei muito tua exposição, porque conheço alguma coisa do México, embora muito empírica. É interessante, pois acho que a tua exposição está eivada de um internacionalismo, quer dizer, aquela realidade que tu apontas muito para o Brasil, ou que apontavas aqui, de um modo geral, se percebe no caso do México, onde existem populações totalmente irreconhecidas. Há, inclusive, milhões de indígenas no México que sequer falam espanhol, e, mesmo assim, a realidade é muito similar, como a entrada na esfera de produção, mas o Estado protege, não sei, mas o governo atual no Brasil talvez possa ter uma posição meio similar que provém talvez até da Revolução Mexicana que é a de não reconhecer a existência indígena, porque não seria indígena, mas camponesa. Pretensamente é uma questão econômica básica fundamental, estaria acima da questão de tipo cultural. Talvez o multiculturalismo hoje, se ressinta um pouco de uma trajetórica, vamos ver a tua opinião, por exemplo, se a gente pega na América Latina o Martí, Nossa América, publicada em 1890, na qual ele fala que não existe ódio de raças, porque não existem raças, raças são apenas requentadas por intelectuais doentes, são raças de biblioteca e que o viajante justo e cordial, o observador justo e cordial não vai encontrar na justiça da natureza. Claro que o Martí está pensando aí em certo sentido numa miscigenação ou pelo menos a derivação do que o Marti havia dito, no caso na Revolução Mexicana vai nesta direção. Se houver uma miscigenação forte, se todos se misturarem, desaparece qualquer problema desse tipo. A Revolução Mexicana teve muito isso, mas depois os camponeses indígenas perderam o embate militar. Teve muito disso, de borrar as diferenças, criar, então, uma cultura nacional, não indígena, nem européia, criar a sociedade nova, uma certa fraternidade, dentro do âmbito do Estado. Se a gente pensa José Vasconcelos, o filósofo, criador da UNAM – Universidade Nacional do México, o criador do slogan “por my raça hablará el espírito”, então não tem mais raça, existe o espírito nacional, o Carde insistia na cultura nacional, mas protegendo também os indígenas, chamando sempre de camponeses, se a gente pensa o Zê, o filósofo Leopoldo Zê, ele fala em uma cultura latino-americana, quando fala que não existe cultura pura no mundo, que todas as culturas são miscigenadas, especialmente a européia, segundo ele, daí não aceitar a imposição européia de que uma cultura mestiça na América teria menos valor, então ele prega o diálogo livre internacional de diferentes culturas. Mas ele fala de uma cultura latino-americana. Com isso, está passando por cima de uma miscigenação interna no País dele para ir ao México. É a questão que ele não discute. Ele parte do princípio de que essa uniformização que a revolução mexicana quis fazer teria sido feita de alguma forma. E na verdade não foi feita, o movimento de Chiapas revela isso. Os grupos indígenas estão mais vivos do que nunca e descontentes. Existem os miste-


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cas e apotecas em Hoarratas. São cinco ou mais milhões de indígenas. Existem grupos indígenas aos milhões. Quem sabe o caso do México demonstra um fracasso dessa idéia de tentar borrar as culturas para formar uma única cultura nacional que, na verdade, são camponeses ou estão inseridos na estrutura econômica de uma certa forma e eu tenho a impressão, tomara que se desminta, vamos ver como o atual governo brasileiro possa dar um salto de qualidade, porque eu acho que é muito forte o pobre, não importa quem é o pobre, é a inserção na esfera produtiva que vale. Nesse sentido, o índio vai sair perdendo, eu temo. Qual é a tua opinião a respeito disso? Porfª. Paula Caleffi – Eu concordo plenamente. Não existem raças. Existem identidades culturais diferenciadas. O que eu vejo no Martí é que ele também é filho de um momento histórico. Entendo que ele propõe, quando fala de não existir raça, essa nova possibilidade de sociedade que poderia vir a se criar na América Latina, da qual fariam parte, de forma simétrica, tanto as populações indígenas quanto as populações européias, que é uma coisa interessante, e é neste ponto que está exatamente a nobreza da análise do Martí, é que ele propõe uma integração entre europeus e indígenas, borrar as diferenças culturais. Para Martí essa miscigenação traria exatamente o diferencial superior da América em relação à Europa, enquanto para as outras propostas de formação de uma civilização americana, é a integração dos indígenas, para diluí-los, torná-los iguais aos ocidentais, igualando-os aos europeus. Martí não! Bom se a gente conseguir, esse é o nosso salto, é a nossa beleza. Então, é um paradigma integracionista, mas com esse toque de nobreza que faz toda a diferença. O multiculturalismo é um conceito dinâmico que está em transformação, sim, e hoje em dia, como eu tentei fazer aqui, a gente trabalha com concepções antagônicas sobre ele. É um conceito que está bastante multifacetado. Essa questão que tu levantaste de tentar borrar as diferenças, o PT tem essa discussão e não é de hoje, e a gente observa. Aí é um ótimo local para acompanhar, porque a gente sempre assiste da academia, isso permite, independente do voto, uma certa neutralidade na discussão, ou seja, fazendo com que a gente possa entrar de forma suprapartidária nessa discussão. Eu presenciei reuniões do Conselho Estadual dos Povos Indígenas no Rio Grande do Sul, nas quais os índios eram submetidos a longas sessões com o sujeito tentando convencê-los de que eles deveriam ingressar no orçamento participativo, porque o orçamento participativo era a melhor coisa para eles. Ora! O orçamento participativo é fantástico, não se pode tirar o mérito. Agora! Pelo amor de Deus! Se os índios ingressarem no orçamento participativo, vão perder sempre: primeiro, porque eles não vão conseguir fazer coalisões, pelas diferenças culturais; segundo, porque eles


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constituem minoria nos conselhos das cidades. Porém, os índios já têm uma certa corrida política. Eles ouviam com a maior paciência aquele sujeito. No final, pediram para conversar. Quando terminaram, disseram: Nós aceitamos o orçamento participativo, nós queremos, mas um só para os índios. Eu pensei: “Que legal! Os caras já estão correndo na frente”. A questão é a seguinte: se o governo Lula caminhar nesse sentido, ele vai contra a Constituição Nacional, que é, nesse ponto, uma Constituição muito avançada, que reconhece o direito à diferença e o direito a manter-se como diferente no País. Esta, penso, é uma a discussão interna do PT, que talvez esteja longe de ser resolvida. Prof. Erno Walauer – Uma pergunta mais informativa. O Brasil, digamos assim, por causa dessas áreas, possui muitos grupos indígenas, conseqüentemente possuindo também várias línguas. Saberia quantas línguas, aproximadamente, existem? Certamente nem todas se podem classificar como línguas. Existem pequenas variações regionais que não podem ser classificadas como línguas? Profª. Paula Callefi – Como línguas, como idiomas atualmente estima-se em torno de 253, que são da maior diversidade dentro de um Estado-Nação, porém existem grupos que não estão contatados ainda na Amazônia. Prof. Erno Walauer – Nesse caso, o Brasil deve ser um dos países que mais línguas diferentes apresenta. Profª. Paula Callefi – Sem sombra de dúvida, o Brasil é colocado entre os primeiros com maior diversidade lingüística. Profª. Rosa Bavaresco – Estive na Guatemala há dois anos e me chamou atenção lá o que consegui saber de um descendente indígena: mais de 60% da população é formada por indígenas. A comunidade que vive no interior constitui, dentro da Guatemala, um outro Estado, com normas, com produção que vende para o México e sul dos Estados Unidos. E é interessante que, na capital, aqueles que não conseguiram superar ou se agregar da maneira como os do interior estão na miséria, pois foram expulsos das suas comunidades, porque não se ajustaram às normas que a própria comunidade estabeleceu. A pergunta é a seguinte: Existe outro País que tenha alguma coisa similar com a Guatemala, em termos de organização interna dos povos indígenas? Profª. Paula Calefi – Na América Latina, a Guatemala é o país que está mais avançado. O Peru tembém é bem avançado neste sentido. O Equador está caminhando, já está reivindicando a sua justiça comunitária, a possibilidade de uma organização di-


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ferenciada dentro do Estado-Nação, mas ainda não é totalmente aceito como na Guatemala. No Canadá, sim, encontramos estados indígenas que são dirigidos exclusivamente pelos indígenas, que vão para o parlamento, que negociam, que têm regras próprias, se integram com o restante do País, por meio de negociações feitas no parlamento. É por isso que o ex-Presidente Fernando Henrique, não falava em povos indígenas, pelo receio da formação de um Estado. Claro a Guatemala tem uma vantagem numérica: 60% da população é indígena, que o Equador também tem. No Equador, em torno de 60% a 70% da população é indígena. Prof. Erno Walauer – Como está a situação no Rio Grande do Sul, da demarcação das terras? Profª. Paula Caleffi – A situação de demarcação das terras no Rio Grande do Sul, nesse momento, está parada. A FUNAI está passando por uma grande crise. Está sem nenhuma verba para montagem das equipes, porque, primeiro se faz um estudo da demarcação da terra, depois se redige um laudo de que aquela terra é indígena, só então esse processo passa pelo Ministério da Justiça até ser homologado. Nestor Maier (Fundação Cultural de Canoas) – Em relação à situação do Parque Nacional do Xingu, como se encontra hoje a degradação ambiental das águas ali próximas? Profª Paula Caleffi – Eu não poderia, neste momento, dar maiores detalhes sobre o Xingu que, apesar de ter problemas, ainda tem situação privilegiada no País. Os Vilas Boas (apesar de eu não concordar com os conceitos de isolamento dessas populações), sem sombra de dúvida, garantiram ali pelo menos uma quantidade de terras grande, com possibilidade de essas populações viverem do seu modo. A superpopulação dentro do Parque do Xingu hoje em dia é uma ameaça, porque vários outros grupos que estavam com problemas por causa do avanço da fronteira e da abertura de estradas, foram trazidos para dentro do Parque. Claro, aqueles grupos do Xingu continuam crescendo e um dos problemas é a ameaça da superpopulação para a forma de vida indígena que requer grande quantidade de terras para o tipo de agricultura que é feita, a caça e a pesca. O Xingu tem um problema, que as áreas do Rio Grande do Sul têm também, que foi a sua demarcação de terras. As pessoas, naquela época, não se deram conta, da importância de as nascentes dos rios, que atravessam essas áreas, ficarem dentro da área demarcada, e várias no Xingu não estão. Então muitos rios que cortam o Xingu vêm poluídos, e essa é a nossa realidade no Rio Grande do Sul: a água, na maior parte das terras indígenas do nosso


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Estado, não é potável, porque a demarcação das áreas é antiga e, no momento da demarcação, o agrotóxico não era uma ameaça. O Xingu, portanto, enfrenta esses dois problemas: o da ameaça da superpopulação e o da questão das águas, que se não houver um aumento na demarcação de terras e se não se englobarem as cabeceiras desses rios dentro do Parque do Xingu, sem sombra de dúvida, vai se tornar muito pior.


O tema deste caderno foi apresentado no IHU Idéias, dia 25/09/03.

TEMAS DOS ÚLTIMOS CADERNOS IHU IDÉIAS: N. 01 – A teoria da justiça de John Rawls – Dr. José Nedel. N. 02 – O feminismo ou os feminismos: Uma leitura das produções teóricas – Dra. Edla Eggert. O Serviço Social junto ao Fórum de Mulheres em São Leopoldo – MS Clair Ribeiro Ziebell e Acadêmicas Anemarie Kirsch Deutrich e Magali Beatriz Strauss. N. 03 – O programa Linha Direta: a sociedade segundo a TV Globo – Jornalista Sonia Montaño. N. 04 – Ernani M. Fiori – Uma Filosofia da Educação Popular – Prof. Dr. Luiz Gilberto Kronbauer. N. 05 – O ruído de guerra e o silêncio de Deus – Dr. Manfred Zeuch. N. 06 – BRASIL: Entre a Identidade Vazia e a Construção do Novo – Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro. N. 07 – Mundos televisivos e sentidos identiários na TV – Profa. Dra. Suzana Kilpp. N. 08 – Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho – Profa. Dra. Márcia Lopes Duarte. N. 09 – Oligopólios midiáticos: a televisão contemporânea e as barreiras à entrada – Prof. Dr. Valério Cruz Brittos. N. 10 – Futebol, mídia e sociedade no Brasil: reflexões a partir de um jogo – Prof. Dr. Édison Luis Gastaldo. N. 11 – Os 100 anos de Theodor Adorno e a Filosofia depois de Auschwitz – Profa. Dra. Márcia Tiburi



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