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Biotecnologia Serรก o ser humano a medida do mundo e de si mesmo?


Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS Reitor Marcelo Fernandes Aquino, SJ Vice-reitor Aloysio Bohnen, SJ Instituto Humanitas Unisinos – IHU Diretor Inácio Neutzling, SJ Gerente administrativo Jacinto Schneider Cadernos IHU em formação Ano 3 – Nº 19 – 2007 ISSN 1807-7862

Editor Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos Conselho editorial Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos Esp. Susana Rocca – Unisinos Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos Conselho científico Prof. Dr. Gilberto Dupas – USP - Notório Saber em Economia e Sociologia Prof. Dr. Gilberto Vasconcellos – UFJF – Doutor em Sociologia Profa. Dra. Maria Victoria Benevides – USP – Doutora em Ciências Sociais Prof. Dr. Mário Maestri – UPF – Doutor em História Prof. Dr. Marcial Murciano – UAB – Doutor em Comunicação Prof. Dr. Márcio Pochmann – Unicamp – Doutor em Economia Prof. Dr. Pedrinho Guareschi – PUCRS - Doutor em Psicologia Social e Comunicação Responsável técnico Laurício Neumann Revisão André Dick Secretaria Camila Padilha da Silva Projeto gráfico e editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Impressão Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.35908223 – Fax: 51.35908467 www.unisinos.br/ihu


Sumário

A novidade da nossa época: temos um poder criador semelhante a Deus Entrevista com Marc Jongen.................................................................................................

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Um poder sem controles Entrevista com Elena Pulcini.................................................................................................

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O sonho da hibridação homem-máquina Entrevista com Mario Signore...............................................................................................

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O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade Entrevista com Roberto Marchesini.......................................................................................

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Uma escolha suicida Entrevista com Marcello Buiatti.............................................................................................

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O ser humano e o animal se hospedam um ao outro Entrevista com Claudio Tugnoli ............................................................................................

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É um absurdo o homem querer criar algo que o ultrapasse Entrevista com Remi Brague.................................................................................................

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A tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal Entrevista com Roberto Mancini ...........................................................................................

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Responsabilidade e transparência na pesquisa com células-tronco Por Pere Puigdomènech .......................................................................................................

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Conscientização como medida terapêutica Entrevista com Edimilson Migowski ......................................................................................

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Células-tronco no tratamento do Mal de Parkinson Entrevista com Moacyr Faustino ...........................................................................................

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“O sistema de pesquisa está regulado pela lei do mercado” Entrevista com Oliver de Dinechin ........................................................................................

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O embrião humano tem direito à vida Entrevista com Angelo Serra.................................................................................................

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O problema ético da destruição de embriões Entrevista com Juan-Ramón Lacadena .................................................................................

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Ser humano: genética e ambiente Entrevista com Victor Hugo Valiati e Annette Droste .............................................................

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“Há uma fantasia de que qualquer avanço médico é ganho independente do custo” Entrevista com Renato Zamora Flores...................................................................................

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“É o maniqueísmo entre o endeusamento e a demonização da ciência” Entrevista com Volnei Garrafa ..............................................................................................

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“Há muita informação genética codificada nas raças tradicionais” Entrevista com Ian Hacking ..................................................................................................

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As biotecnologias e a construção social de um corpo perfeito Entrevista com Lucien Sfez...................................................................................................

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O corpo e as novas tecnologias Entrevista com David Le Breton ...........................................................................................

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“A pergunta ética leva a humanizar o poder tecnológico” Entrevista com Márcio Fabri dos Anjos .................................................................................

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A novidade da nossa época: temos um poder criador semelhante a Deus Entrevista com Marc Jongen

Marc Jongen é professor de Filosofia na Staatliche Hochschule für Gestaltung, em Karlsruhe, na Alemanha. Publicamos um artigo dele na 143ª edição da IHU On-Line, de 30 de maio de 2005, sobre O ser humano é o seu próprio experimento. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2006, Jongen afirma que “a grande novidade da nossa situação, que chega a inaugurar uma nova época, é que acabamos de receber um poder criador semelhante a Deus, ao mesmo tempo em que ruiu toda e qualquer instância superior que pudesse julgar sobre a legitimidade ou não do uso desse poder”. E completa: “Nós mesmos é que em todo o caso determinamos o direito de usar esse poder ou não. Mesmo a tão preconizada volta para os ‘valores tradicionais’ e para as ‘proibições estabelecidas por Deus’ é um ato da nossa autonomia, é um ‘faz de conta’ intencional. A situação não é nada confortável, mas temos que agüentá-la”.

de. Importante conquista do Iluminismo foi a de abolir semelhantes definições culturais do ser humano, para substituí-las por uma definição biológica: “ser humano”, na acepção moderna, é todo/a aquele/a que vem ao mundo com o código genético do Homo sapiens. Essa naturalização do que é humano possibilitou atribuir a todos os integrantes da espécie Homo sapiens direitos humanos a bem dizer “por natureza”. Só que essa mesma naturalização também nos levou à situação atual na qual não só tecnológica e praticamente, mas também em princípio e em teoria se tornou possível superar o humano – ou destruí-lo, dependendo da ótica –, para colocar em seu lugar uma forma de vida pós-humana. Empiricamente, o ser humano de hoje certamente ainda não é um ser pós-humano, mas já assoma gigantesca no horizonte a figura do ciborgue1, no sentido do livro de Ernst Juenger Der Arbeiter, colocando a nós, que vivemos hoje, sob seu signo e senhorio.

IHU On-Line – Será o ser humano de hoje

IHU On-Line – Em 2001, o senhor afirmou

um ente pós-humano? Como o senhor definiria esse conceito? Marc Jongen – A questão se o “ser humano” é ser humano ou não-humano ou pós-humano, ao que tudo indica, não é algo objetivamente verificável, mas apenas uma questão de atribuição cultural. Basta lembrar, por exemplo, sociedades escravagistas, que não admitiam que os povos subjugados – “bárbaros” ou “selvagens” – tivessem o status de ser humano, ao menos não em plenitu-

no jornal Die Zeit que o ser humano é objeto do seu próprio experimento. Que legitimidade e autonomia tem ele para tanto? Marc Jongen – O título que eu queria para o mencionado artigo em Die Zeit era “Homo homini fatum”. A redação do jornal modificou o título para “O ser humano é seu próprio experimento”. Isso tornou o sentido mais frio, técnico, mas também está justificado pelo conteúdo do ensaio, sem dúvida alguma. As violentas reações desencadea-

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Ciborgue: um ser vivo que possui partes biônicas em seu corpo. (Nota da IHU On-Line)

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das pelo texto eu considero sinal de que toquei o ponto nevrálgico da nossa época, sua mais séria problemática. Infelizmente, este fato também deixou a maioria dos críticos cegos para a reflexão e para a ambivalência emocional do meu texto. Eu, por exemplo, de forma alguma, tomei dialeticamente o partido dos pós-humanistas americanos, e sim interpretei-os como sintoma de uma transição de época, a qual acredito seja, sim, nosso destino inexorável. Agora lembrando a sua pergunta: a grande novidade da nossa situação, que chega a inaugurar uma nova época, é que acabamos de receber um poder criador semelhante a Deus, ao mesmo tempo em que ruiu toda e qualquer instância superior que pudesse julgar sobre a legitimidade ou não do uso desse poder. Em outras palavras, nós mesmos é que, em todos os casos, determinamos o direito de usar esse poder ou não. Mesmo a tão preconizada volta para os “valores tradicionais” e para as “proibições estabelecidas por Deus” é um ato da nossa autonomia, é um “faz de conta” intencional. A situação não é nada confortável, mas temos que agüentá-la.

esfera do divino, para então – note bem – reassumi-las e reintegrá-las conscientemente. No que se refere à “ira de Deus”, esse “assumir a si mesmo” em grande parte já conseguimos realizar: desde a Revolução Francesa, tomamos nas próprias mãos as rédeas do juízo sobre o mundo. Se agora nos deparamos com o desafio de assimilar também o potencial criador divino, certamente isso acarretará não menos problemas, divisões e até catástrofes do que se observou no mencionado campo político. Mesmo assim, a exigência de proibições de pesquisa e de atuação, na área biotecnológica, é objetivamente tão reacionária quanto a defesa do Ancien Régime na época da Revolução Francesa. Considerando a gravidade desses problemas, a metáfora que você mencionou, do ser humano como obra de arte autoplasmante, sem dúvida parece demasiado frívola. Ela somente se sustenta se admitirmos que Deus é o maior de todos os artistas e que a natureza foi a arte de Deus. IHU On-Line – Onde ficam as questões éti-

cas ao supormos que o pós-humano é autopoiético? Como ficam as populações que não têm acesso a essas novas tecnologias? Não ocorreria uma colonização tecnológica da humanidade com a concomitante objetificação da pessoa humana? Marc Jongen – Assim que abandonarmos o plano da especulação histórico-metafísica para nos voltarmos para a realidade empírica social e política, o “assumir a si mesmo” primeiro se apresenta efetivamente como desafio sobre-humano. Para mim, o perigo maior está na criação de super-seres-humanos do tipo “último-homem”, a se perpetuarem tecnologicamente, assim tornando realidade efetivamente diabólica as palavras de Nietzsche: “o último-homem viverá mais tempo”. Também não devemos esquecer que o desenvolvimento, a aplicação e o acesso aos métodos biotecnológicos naturalmente está totalmente sob domínio capitalista, ou seja, que a biotecnologia pode agravar ainda mais os problemas merecidamente atribuí-

IHU On-Line – Se o ser humano é seu próprio experimento, qual seria o espaço de Deus na atualidade? Poderíamos falar da “morte de Deus” e da construção do ser humano como obra de arte? Marc Jongen – A “morte de Deus”, formulada por Nietzsche, e a respectiva doutrina do “alémdo-homem”, na verdade, somente hoje está atingindo toda a sua for ça des cri tiva, ante a possibili da de da con fec ção téc nica do pós-huma no. Só que precisamos colocar a ênfase diferente de Nietzsche, o qual, como se sabe, desenvolveu suas teses e profecias em flagrante confronto com o cristianismo. Na verdade, importa entender o “super-ser-humano” não como adversário, mas como herdeiro da cultura religiosa desenvolvida. Para o filósofo da cultura e da religião Leopold Ziegler2, o grau de desenvolvimento cultural do ser humano depende de ele conseguir transferir inconscientemente suas energias psíquicas para a

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Leopold Ziegler (1881-1958) foi um filósofo alemão, ganhador do Prêmio Goethe de 1929. (Nota da IHU On-Line)

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dos ao capitalismo, como objetificação, alienação, dominação de classes. Caso efetivamente venha a concretizar-se em larga escala a reforma da espécie pela engenharia genética – que ainda pode fracassar por muitos fatores –, ela somente poderá tomar um rumo benéfico se ao mesmo tempo for possível transcender a lógica de cresci-

mento e maximização do lucro do capitalismo de hoje. Todas essas dificuldades, por maiores que sejam, não nos isentam de manejar o novo poder que nos adveio, mas apenas mostram quão profundo e abrangente é o passo de aprendizado e de desenvolvimento da humanidade que está à nossa frente.

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Um poder sem controles Entrevista com Elena Pulcini

Elena Pulcini é professora de Filosofia Social na Universidade de Firenze, na Itália, e membro do Comitê editorial da revista Iride. Atenta ao problema da genealogia e da constituição do individualismo moderno, tem posto no centro de sua pesquisa os temas da vida emotiva, do papel das paixões e da patologia social da modernidade, com particular atenção ao relacionamento entre o indivíduo, a comunidade e a globalização. Entre seus livros publicados, citamos: Amour-passion e amore coniugale. Rousseau e l’origine di un conflitto moderno (Venezia, 1990); L’individuo senza passioni. Individualismo moderno e perdita del legame sociale (Bollati Boringhieri, Torino, 2001); Il potere di unire. Femminile, desiderio, cura (Bollati Boringhieri, Torino, 2003); e Umano, post-umano. Potere, sapere, etica nel mondo globale (Roma, 2004). “O homem tem hoje um poder sem precedentes que, no entanto, não está mais em condições de controlar numa sociedade global sem confins e sem limites. O mundo por ele criado põe em perigo a própria conservação da humanidade e do vivente, expondo-a ao risco de autodestruição (nuclear), de degradação irreversível (pense-se no global warming, no aquecimento global), de mutações incontroláveis (manipulações do corpo e da natureza, ogm etc.)” é o que afirma Elena na en3

trevista concedida por e-mail à IHU On-line, em 16 de outubro de 2006. IHU On-Line – Quais são as diferenças entre

o Homo faber e o Homo creator? Como podemos entender estes dois conceitos na sociedade atual? E o Homo creator é sinônimo de pós-humano? Elena Pulcini – O Homo faber é o próprio paradigma do homem ocidental. É precisamente ele que faz, que fabrica, que produz, servindo-se da técnica para satisfazer as próprias necessidades e familiarizar-se com o mundo. Mas, a partir da modernidade, que introduz a liberdade individual, a prioridade do fazer e do produzir expressa um comportamento instrumental e de domínio em relação à natureza, ao outro, ao mundo, tratados prevalentemente como objetos úteis aos fins da própria conservação e da satisfação dos próprios interesses. Diz Hannah Arendt3 que “o homo faber se comporta como senhor e dono de toda a terra. Desde que sua produtividade foi representada pela imagem de um Deus-criador...a produtividade humana foi destinada a aparecer como uma revolta prometéica, porque podia edificar um mundo humano somente após a destruição de parte da natureza criada por Deus”. E, no entanto, o Homo faber tem ainda uma capacidade projetiva, ainda é dotado de um obje-

Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e socióloga alemã, de origem judaica. Entre suas obras, citamos: Eichmann em Jerusalém – Uma reportagem sobre a banalidade do mal (Lisboa: Tenacitas, 2004); O sistema totalitário (Lisboa: Publicações Dom Quixote,1978); O conceito de amor em Santo Agostinho (Lisboa: Instituto Piaget); A vida do espírito. v. I. Pensar (Lisboa: Instituto Piaget); Sobre a revolução (Lisboa: Relógio D’Água); Compreensão política e o futuro e outros ensaios (Lisboa: Relógio D’Água) (edição da Perspectiva, 2002). Sobre Arendt, confira o número 168 da IHU On-Line, de 12 de dezembro de 2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, disponível para download no sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu. Ver também os Cadernos IHU em Formação nº 17, sob o título Duas mulheres que marcaram a Filosofia e a Política do século XX. (Nota da IHU On-Line)

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tivo, embora seja somente utilitarista. O problema, que diz respeito à nossa contemporaneidade, nasce quando o Homo faber degenera, poderíamos dizer, em Homo creator. Esta é uma expressão usada por Günther Anders4 em O homem antiquado: “Com a denominação Homo creator – diz Anders –, entendo o fato de nós sermos capazes, ou melhor, termos sido tornados capazes de gerar produtos da natureza, que não fazem parte (como a casa construída com a madeira) da categoria dos ‘produtos culturais’, mas da própria natureza”. Potencializado pelo desenvolvimento ilimitado da técnica, o homem não mais se limita, hoje, a transformar a natureza, a introduzir “variações” em temas e códigos já dados, mas adquiriu a capacidade, precisamente, de criar a natureza, de introduzir no ambiente produtos e processos totalmente “novos” (da bomba nuclear às manipulações genéticas), alterando profundamente as próprias leis da evolução e abrindo horizontes de todo imprevisíveis.

O Homo creator é aquele que reage ao próprio sentimento de inadequação, rebelando-se contra a fatalidade dos próprios limites humanos; que põe à prova a própria natureza corpórea, sondando-lhe as mais extremas possibilidades e o limite de suportabilidade, até o ponto de produzir aquela “segunda natureza”, que hoje não é mais somente uma metáfora, mas uma concreta e inquietante realidade produzida pela técnica. Está, pois, em ato uma tendência à superação do humano, uma vontade de transcendência do corpo, da natureza, do vivente e da sua “fatalidade” que, alimentada pelo desenvolvimento ilimitado da técnica e solicitada pelos seus imperativos mais cogentes, corre o risco de produzir efeitos nefastos, pondo em cheque a própria sobrevivência do gênero humano. O homem tem hoje um poder sem precedentes, que, no entanto, não está mais em condições de controlar numa sociedade global sem confins e sem limites. O mundo por ele criado põe em perigo a própria conservação da humanidade e do vivente, expondo-a ao risco de autodestruição (nuclear), de degradação irreversível (pense-se no global warming, no aquecimento global), de mutações incontroláveis (manipulações do corpo e da natureza, organismo geneticamente modificado (OGM etc.). Isso quer dizer que o Homo creator perdeu paradoxalmente a qualidade peculiar do Homo faber que, embora numa ótica essencialmente instrumental, era a de projetar a própria vida e o próprio futuro. Produz-se a cisão entre aquilo que se faz e a incapacidade da psique de ser up to date com respeito àquilo que se faz (aquilo que Anders chama de “desnível prometéico”). Nesta cisão, se aninha o risco paradoxal de que o mundo que produzimos nos fuja das mãos, autonomizando-se de todo sentido e fim, enquanto o nosso produzir procede, mantido pela incontrolável lei de uma razão instrumental entregue a si mesma, independentemente da nossa capacidade de perceber-lhe, imaginar-lhe, prever-lhe os efeitos.

Homo creator O Homo creator é, pois, o efeito da “perversão” do Homo faber: é aquele que é impelido pela hybris prometéica de crescimento e de conquista; aquele que adere ao imperativo da técnica, em virtude da qual “o que se pode fazer se deve fazer”. O que aconteceu a partir da segunda metade do século XX e da “terceira revolução industrial” consiste no fato de que o desenvolvimento da técnica assumiu proporções a ponto de fazer as mudanças quantitativas se traduzirem em mudanças qualitativas, gerando uma inversão da função de “meio” da técnica em sua autonomização como “fim”, capaz de subordinar a si, e à própria lógica funcional, as exigências humanas. De meio tendente a satisfazer as necessidades do ser humano, a técnica se transformou num fim que foge ao controle do homem, o qual perdeu a capacidade de administrar, controlar os processos por ele mesmo deflagrados.

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Günther Anders foi crítico e filósofo midiático alemão. (Nota da IHU On-Line)

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Homo faber X Homo creator

modos. Entre as teorias do pós-humano, algumas propõem uma visão eufórica e hiperotimista de um futuro caracterizado pela libertação do orgânico e dos seus limites (transumanismo, cibercultura etc.). Aqui se descortina a total transcendência do corpo e da natureza, a completa ultrapassagem, pelo homem, do processo evolutivo, em nome de um desprezo do vivente e de tudo o que conta (emoções, corpo, finitude, morte), reduzido ao inútil e residual fardo, a puro “peso morto”, diria precisamente Anders, e que inibe a possibilidade de libertar-se nas regiões rarefeitas e luminosas de “paraísos artificiais”, ao resguardo do sofrimento e da morte. Na aspiração por um total abandono do biológico, que permitira finalmente ao homem tornar-se plenamente senhor do próprio futuro e do próprio destino, a hybris prometéica se exprime em toda a sua vocação ao ilimitado.

Embora sendo uma direta filiação do Homo faber e da lógica utilitarista e instrumental que inspira o seu agir, o Homo creator parece ter perdido sua característica peculiar: quer dizer a capacidade prometéica de prever e projetar o próprio agir e a própria vida, a qual ainda o tornava sujeito, embora fosse com êxitos de domínio sobre a natureza e sobre o mundo, dos processos por ele mesmo desencadeados. O homem criador, ao invés, dotado de um poder sem precedentes, que lhe permite criar até a natureza e a própria vida fora dos percursos evolutivos, aparece como sempre mais incapaz de prever e imaginar as conseqüências e os efeitos do próprio fazer e criar. O Prometeu da idade da técnica, por conseguinte, não está mais na altura do mundo por ele próprio construído, em relação ao qual ele perde a capacidade ativa de projeto e de controle, de escolha e de responsabilidade. E essa perda deixa-o exposto aos resultados que ultrapassam, ou até invertem as próprias expectativas e os objetivos iniciais.

Recriação do homem A obsolescência do homem e a necessidade de recriá-lo fora das leis da evolução: é este o mesmo pressuposto que associa os teóricos da Vida e da Inteligência Artificial, animados pelo sonho de uma completa emancipação do corpo, e os fatores radicais da engenharia genética, inspirados pelo desejo do “melhorar” a espécie, livrando-a dos defeitos e dos riscos intrínsecos à reprodução natural e sexuada. Indiferente aos outros fins que não sejam aqueles da realização sem limites das próprias potencialidades intrínsecas, a tecnociência, nas suas expressões mais otimistas, termina por radicalizar – como diz André Gorz6 – aquela “hostilidade ao acaso, hostilidade à vida, hostilidade à natureza”, que caracteriza desde as origens a lógica peculiar

IHU On-Line – É o homem contemporâneo

um homem pós-humano? Como a senhora definiria este conceito? Elena Pulcini – O Homo creator é, como já o haviam intuído Anders e Hans Jonas5, aquele tipo de subjetividade que prefigura precisamente a superação do humano e de tudo o que tradicionalmente associamos ao humano: o corpo, a finitude, a vulnerabilidade, as paixões, a morte, a vida entendida na sua imperfeição e imprevisibilidade. Ele, paradoxalmente, ao fazer isso, põe em perigo a própria vida sobre a terra, abrindo a possibilidade de cenários pós-humanos. Pós-humano é um conceito recente que pode ser entendido de vários 5

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Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novas abordagens éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra principal intitula-se Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation (1979). (Nota da IHU On-Line) André Gorz é austríaco, mas vive na França desde 1948. É autor de 16 livros dos quais vários traduzidos para o português, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982); Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003); e Misérias do presente, riqueza do possível (São Paulo: Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista IHU On-Line, de janeiro de 2005, e na íntegra no número 31 dos Cadernos IHU Idéias, com o título A crise e o êxodo da sociedade salarial. Sobre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz, de André Langer, pesquisador do Cepat. O texto está publicado nos Cadernos IHU n.º 5, de 2004. (Nota da IHU On-Line)

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da razão instrumental moderna e que hoje não conhece mais limites. Em suma, na recusa do corpo e do orgânico, que emerge nas fantasias de onipotência pós-humana, poderemos reconhecer nada mais do que a extrema manifestação daquele processo, inconfessado, mas insidiosamente eficaz, que Paulo Virilio reassumiu no “conceito de desaparecimento”, aludindo àquele desejo de desaparecimento do vivente que, desde os alvores da modernidade, anima o imaginário técnico-científico tão potentemente a ponto de descambar, enfim, na perda do próprio instinto de conservação da espécie. Voltando ao que Anders havia captado muito bem há mais de cinqüenta anos, poderemos dizer que este desejo de desaparecimento do vivente se apresenta indissociável do Streben faustiano e prometéico do sujeito moderno: isento de qualquer imperfeição e contingência, e disposto paradoxalmente a cancelar as próprias origens humanas, projetando-se na dimensão “imaterial” do pós-humano. Há, todavia, um setor mais interessante da reflexão sobre o pós-humano, no qual a superação do humano quer dizer mascarar aquele aspecto de domínio e de narcisóide separação que é intrínseco ao paradigma moderno e antropocêntrico e ultrapassar sua visão dualista, responsável por hierarquias e exclusões. À visão humanista da identidade como autocentrada e fechada no mito da própria pureza antrópica, indisponível para o acolhimento da alteridade, Donna Haraway7 opõe provocadoramente a imagem “utópica” do ciborgue, criatura híbrida feita de orgânico e inorgânico, simbolicamente alusiva a uma identidade mestiça e impura, contaminada pelo não- humano e em constante metamorfose; e, sobretudo, “comprometida com o mundo”, disponível para acolher o diferente de si. Numa perspectiva antidualista, a teoria do pós-humano que se inspira em Haraway (como, por exemplo, na Itália, Roberto Marchesini8) auspicia a superação do “antropocentrismo ontológico”, ou seja, a pretensão humanista do homem 7

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entendido como universo isolado como sujeito auto-referencial e totalmente impermeável à contaminação externa. Resulta daqui a proposta de assumir a idéia do homem como “fruto híbrido”, constitutivamente sempre em débito para com a alteridade não-humana, seja ela animal ou mecânica. Em suma, a filosofia do pós-humano reivindica, a partir de uma crítica radical do humanismo e de toda oposição hierárquica entre humano e não-humano, entre o Eu e o outro, a idéia de uma subjetividade caracterizada por uma “promiscuidade ontológica” e por uma disponibilidade à “hibridação” que desmorona toda pretensão à imunização e à separação do mundo; pretensão tanto mais privada de sentido quanto mais o mundo vem a ser invadido pela técnica: pelas mutações, pelos enxertos e pelos implantes intra e interespecíficos que ela produz ou que simplesmente possibilita. A proposta é indubitavelmente interessante, pois ela insiste precisamente na abertura à alteridade, na necessidade de romper a autarquia, aliás ilusória, do sujeito moderno. A proposta é, afinal, a de reconhecer a posição de heterodependência do humano em relação a processos externos, para os quais é desejável um comportamento não mais separador e fundado numa oposição hierárquica entre homem e mundo, entre si e o outro, mas, ao contrário, conjugante e acolhedor; que reconheça as próprias máquinas não como algo externo e ameaçador para uma presumida integridade do humano, mas como “amigáveis consigo”, como diz Haraway, que desbordam em nós e nos quais nós, por nossa vez, desbordamos. Porém, o risco de fundo destas posições consiste na aceitação substancialmente acrítica da técnica, na legitimação pura e simples de processos transformadores que, ao invés, por sua própria radicalidade, por sua mole quantitativa e por seu caráter inovador, são potencialmente portadores de patologias, seja no plano psíquico, seja no plano ético e político.

Donna Haraway: Criadora da Cybogorlogia.O objetivo de Haraway aparece logo na primeira frase de seu livro Manifest for cyborgs: “Este ensaio servirá para construir um mito político cheio de fé sobre feminismo, socialismo e materialismo (...) No centro de minha fé irônica, minha blasfêmia, é a imagem de um cyborg”. (Nota da IHU On-Line) Conferir entrevista com este autor nesta mesma edição. (Nota da IHU On-Line)

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Risco desta passagem

ponsabilidade pelas próprias ações e pelas próprias decisões. É preciso, pois, pensar numa ética da responsabilidade, como já propunha Hans Jonas há algumas décadas. Ela, no entanto, não deve ter fundamentos deontológicos. O que proponho é uma ética da responsabilidade que se baseie, antes, na consciência da própria vulnerabilidade. Em outras palavras, é o espectro da perda do mundo e da própria vida que pode – e é este o desafio – impelir os homens a reconhecerem sua comum unidade e a agirem em comum. Para que isso suceda, é, todavia, preciso superar a cisão “prometéica” entre produzir e sentir, entre fazer e imaginar e adquirir a capacidade de pensar-se como sujeito vulnerável; vulnerável paradoxalmente em virtude do próprio vertiginoso poder. Penso, pois, que a responsabilidade deva ter um fundamento emotivo, que emerja da percepção mesma da própria debilidade e do amor pelo mundo. E, por isso, prefiro falar de cuidado, antes que de responsabilidade: cuidado de si, da natureza, do Planeta, do outro, a partir da consciência que somente juntos é possível esconjurar o espectro da catástrofe.

O risco contido nesta passagem é o da perda do mundo. O Homo creator se expõe, em outros termos, ao risco da abertura de um abismo entre o mundo fabricado por ele e sua capacidade de estar à altura deste mundo, administrando ativa e conscientemente suas transformações e futuros equilíbrios. E isso quer dizer perder o controle e desviar-se do objetivo e do sentido do agir e expor-se ao risco da destruição da humanidade que, no entanto, como já sublinhei, não é a única coisa a dever preocupar-nos, porque isso significaria permanecer numa ótica antropocêntrica; o problema consiste, antes, no perigo daquele “desaparecimento do vivente”, que desde sempre se aninha no imaginário ocidental e moderno. IHU On-Line – Que gênero de ética se pode

pensar numa sociedade secularizada? Elena Pulcini – Não creio que se possa pensar numa ética deontológica, fundada em imperativos abstratos, no mundo complexo, plural e fremente em que vivemos. A idade global contém, no entanto, uma chance inédita, que é a precondição de uma possível ética nova, fundada antropologicamente e inspirada pelas próprias grandes transformações em ato. Em outros termos, pela primeira vez somos todos iguais na debilidade, antes de toda diferença e até de toda desigualdade. Estamos todos expostos aos mesmos riscos e submissos a um destino comum. A interdependência global, a compressão do espaço e do tempo produzidos pela globalização, a perda dos confins, prefiguram pela primeira vez a possibilidade de um elo planetário, embora na distância e na diferença, que transforma a humanidade num novo sujeito; na condição, todavia, que ela saiba assumir a res-

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IHU On-Line – Do ponto de vista filosófico,

sobre o que se constrói o conceito do póshumano? Quais são os autores que em certo sentido discutiram esta problemática? Elena Pulcini – Se já em Anders e em Jonas fora caracterizado o conceito de superação do humano, o pós-humano, de Francis Fukuyama9 até Donna Haraway, é um conceito novo, cujos aspectos perigosos e negativos sublinhei, mas que também podemos assumir positivamente como prefiguração de um mundo no qual o homem não seja o único centro do mundo, mas o próprio

Francis Fukuyama: Nascido em 27 de outubro de 1952, o americano Francis Fukuyama é professor de economia política internacional da Paul H. Nitze School of Advanced International Studies, na Johns Hopkins University, nos EUA. Seu primeiro livro, O fim da história e o último homem (1992), figurou nas listas de mais vendidos de diversos países, como EUA, França, Japão e Chile, tendo ganhado o Los Angeles Times Book Critics Award e o Prêmio Capri (Itália). Outros livros representativos de sua obra são Confiança (1995), A grande ruptura (1999) e Nosso futuro pós-humano (2002), todos publicados pela Editora Rocco, de São Paulo. Especialista em questões políticas e militares da Europa e do Oriente Médio, Fukuyama já integrou o Conselho de Planejamento Político do Departamento de Estado norte-americano. Atualmente, ele é membro do Conselho Presidencial de Ética em Biotecnologia, dentre diversos outros títulos e cargos de prestígio internacional. (Nota do IHU On-Line)

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mundo e o inteiro vivente possam tornar-se o centro, o objeto a conservar e proteger.

que o mundo que nos foi entregue não é mais um dado, mas é algo que, para continuar a existir, deve tornar-se objeto do nosso cuidado. Devemos interrogar-nos: que mundo queremos construir, que caracteres do humano queremos conservar, para nós mesmos e para as gerações futuras, às quais estamos ligados pelo próprio sentido do nosso estar no mundo? É sobre isso que se funda a necessidade de estar-em-comum, de aliar-se para construir um futuro que possa não só hospedar a vida, mas uma vida digna de ser vivida.

IHU On-Line – Quais são as razões que a hu-

manidade ainda tem para viver em comum? O que nos une como seres humanos? Para que futuro queremos andar? Elena Pulcini – O que nos une é precisamente nossa humanidade, entendida como nossa condição de seres finitos, imperfeitos, vulneráveis, dependentes um do outro e conscientes do fato de

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O sonho da hibridação homem-máquina Entrevista com Mario Signore

Mario Signore é professor de Filosofia Moral na Faculdade de Ciência da Formação na Universidade de Lecce, na Itália, e professor associado de Filosofia Teorética na mesma universidade. Signore foi diretor do Instituto de Filosofia de 1978 a 1980, e fundador do Departamento de Filosofia, do qual foi diretor de 1990 a 1996, dedicando uma atenção particular para as disciplinas socioeconômicas, pedagógicas e filosófico-políticas. Faz parte do Comitê Científico da revista Fenomenologia e Società desde sua fundação. É membro da Fundação Centro de Estudos Filosóficos de Gallarate, com sede social em Padova. É vice-presidente da Sociedade Italiana de Estudos Kantianos, com sede social em Roma. É diretor de Idée, revista do Departamento de Filosofia e Ciência Social. Entre seus últimos trabalhos publicados, citamos: Questioni di etica e filosofia pratica (Milella: Lecce 1995) e o ensaio “Ética religiosa e racionalidade moderna” (Max Weber 1864-1920), in: Deus na filosofia do século XX (Giorgio Penzo e Rosino Gibellini (Orgs.). São Paulo: Loyola, 1998, p. 105-119). Na entrevista que Signore concedeu por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2006, ele discute o sujeito pós-humano, afirmando que “o homem do século XXI é pós-humano por esta tendência cultural que torna fascinante o sonho de uma transferência definitiva das suas responsabilidades e da fadiga do pensar a hibridação irreversível homem-máquina”.

Mario Signore – Permitam-me responder propondo a releitura da Carta sobre o humanismo (Brief über den Humanismus) (1946), em que Martin Heidegger propõe abandonar a palavra “humanismo” diante da dramática questão: por que celebrar no humanismo o homem e a imagem filosófica e canônica que tem de si, quando na catástrofe do presente temos visto que é o próprio homem o problema, com os seus sistemas de auto-exaltação e de autoclarificação metafísica? O humanismo, na sua figura antiga, tanto na cristã como na iluminística, é reconhecido como causa de um “não pensar” que dura mais de dois mil anos. Trata-se de um “fracasso” que toda a cultura ocidental registrou no recente período da pósmodernidade, abrindo para uma reflexão não-estéril, na nossa opinião, que, desmascarando o segredo da domesticação da humanidade e os detentores do monopólio da criação humana, aponta para o invasivo crepúsculo de uma consciência das produções humanas e para o desenvolvimento das antropotécnicas, das quais não se consegue mais desviar o olhar. Partindo da posição nietzcheana-heideggeriana até a afirmação de uma antropotecnologia mais invasiva, não é difícil supor aquela explícita planificação dos caracteres identitários, que poderiam alcançar a subversão desde o finalismo do nascimento num nascimento opcional (heterodireto) e numa seleção pré-natal. Tudo isso colhido na pluridirecional incidência étnica, filosófica, teológica, econômica e política requer, na nossa opinião, uma retomada não-ideológica da reflexão sobre a consciência e a identidade, talvez preferindo aproximações menos tradicionais, mas mais capazes de fazer ressurgir a aurora da consciência,

IHU On-Line – O que o senhor quer dizer

com os destinos pessoais e colonização das consciências? Quem ou o que está por trás dessa colonização?

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não mais no rarefeito horizonte da metafísica, mas nas questões do bios, da inteira extensão do vivente pensado na unidade da vida, construindo os pressupostos de uma biopolítica, que devolva à consciência da humanidade, portanto ao pensamento contemporâneo, a vontade de construir as premissas de uma opção entre políticas da morte (tanatopolíticas) e políticas da vida.

e, sob outro ponto de vista, o do desaparecimento da distância e da diferença entre a atividade das máquinas lógicas e do pensamento. Aqui o póshumano se insere na lógica exaltada do robô, do ciborgue, que contribui para pôr no horizonte do nosso século um modelo cultural sustentado pelo conceito de auto-redução dos poderes do sujeito, a favor de uma “máquina”, que não se limite a abrandar a sanção divina “dominarás a terra com o suor”, mas assuma a responsabilidade da escolha e o ônus de projetar a vida. Quanto ao que esta transferência total de responsabilidade possa produzir sobre o plano dos equilíbrios homemmáquina é, no nosso tempo, confiado à pré-figurante iniciativa da literatura e da filmografia. O homem do século XXI é pós-humano por esta tendência cultural que torna fascinante o sonho de uma transferência definitiva das suas responsabilidades e da fadiga do pensar a hibridação irreversível homem-máquina. Mas, digamos logo, o pós-humano, no nosso século, se manifesta não somente como anti-humano, ou como despedida definitiva do humano, mas como superação/conservação (Überwindung), capaz de acertar as contas com a crise do humano. Desenvolverei mais adiante este conceito.

IHU On-Line – Qual será o nosso destino?

Mario Signore – A pergunta parece pressupor um lado imprescindível e inevitável do “destino”, portanto, a admissão de um sentido atribuído ao mesmo. Se o “destino” é l’Ananche, o fato, uma força metaistórica e obscura que conduz malgré-nous as vicissitudes do homem e da sua história, certamente me sinto impedido de dar qualquer resposta. Para um filósofo da “responsabilidade” e teorizador de uma ética da responsabilidade, desde a origem inevitável, que é o pensar, o destino introduz uma contradição interna ao pensamento, logo, ao agir humano, que não permite nem mesmo gaguejar qualquer resposta plausível. No horizonte irrenunciável da responsabilidade e da consciência do resultado derivado do homem ter comido o fruto da árvore do conhecimento (“fruto suculento, mas perturbador”, como diria Max Weber), o nosso “destino”, entendido desta vez como a realização do nosso presente e o planejamento do nosso futuro, como homens e como humanidade, será aquilo que teremos sido capazes, entre fracassos e sucessos, entre derrotas e vitórias, de construir. Naturalmente, na relação mais fecunda conosco mesmos, com os outros homens, com as forças da natureza.

IHU On-Line – Quais são os aspectos positi-

vos e negativos do conceito de pós-humano? Mario Signore – Sobre os aspectos negativos já falamos na resposta anterior. Acrescentaremos que a suposição da saída do literário, para a realização da superação total do homem na máquina, configura cenários aterrorizantes de solidão do humano, que honestamente parece muito difícil imaginar. Neste cenário, a ética, como assunção responsável de comportamentos ligados sempre a um certo nível de imputabilidade (quem faz, o que e por que), perderia qualquer significado. A aproximação positiva ao pós-humano é colhida no projeto de superar a pretensão humanística do humano como “universo isolado”, não somente como centro epistemológico e ético, mas como sujeito auto-referido e impermeável à contaminação externa. Trata-se, na nossa opinião, de um aspecto positivo, no qual, na verdade, trabalha-se muito neste período, que colhe no pós-humanismo a

IHU On-Line – O que é o pós-humanismo? Podemos dizer que o homem do século XXI

é pós-humano? Por quê? Mario Signore – Somos conscientes do fato de que o pós-humano pode assumir uma postura, freqüentemente ao anti-humano, ou seja, como definitiva despedida do humano, levando à exasperação o movimento do homem versus a máquina, com as questões ético-filosóficas que receamos na resposta à primeira pergunta, relativas à perda e conseqüente colonização das consciências,

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tendência à superação de algumas concepções do humanismo inadequadamente fundadas e incapazes, entre outras coisas, de interpretar a aceleração dos processos de contaminação (por outro lado irrefreáveis) provocada pelo desenvolvimento tecnológico.

para o qual toda consideração de pureza, perfeição, completude, não é mais pertinente em modo absoluto. O homem do pós-humanismo, assim como nós o construímos rapidamente neste confronto, é plural, não pode comedir, nem epistemologicamente (como cientista, como pesquisador), nem eticamente (sujeito de escolha e responsabilidade), somente com a amplitude da sua razão. Não pode nem mesmo compreender a si mesmo, se não entra em diálogo e não se deixa, por assim dizer, hibridar na realidade externa. Estamos empenhados em pensar nesta nova humanidade, diante dos enormes desafios das relações, com o outro homem (o estrangeiro!), com a natureza, com a técnica (que o próprio homem criou), com Deus.

IHU On-Line – Como a tecnologia ajuda na

construção da identidade do sujeito contemporâneo? E como ela é aceita pelos pós-humanistas? Mario Signore – Como dizíamos, respondendo às perguntas anteriores, se a identidade humana pretende exaurir-se na concepção substancialmente estática do humanismo clássico (homo sum, nihil umani a me alienum puto!), não há tecnologia que possa de qualquer maneira interferir na sua construção. A tecnologia torna-se um “destino” que não deixa de parecer anti-humano: do desenvolvimento irrefreável da tecnologia, provirão cenários catastróficos para o homem e o seu habitat. Nesta direção, os pós-humanistas (não anti-humanistas) não se lançam em direção à passiva e não-crítica aceitação da tecnologia avançada, mas ousam supor modificações importantes na relação do homem com a realidade externa e imaginar pontes híbridas entre o primeiro (o homem) e a segunda (a técnica, a realidade externa), substituindo as concepções universalistas e/ou isolacionistas lógicas conjuntas e pluralistas.

IHU On-Line – Onde está a ética neste novo

conceito? Mario Signore – A ética, ante este novo imperativo do diálogo, da relação, até mesmo do hibridismo, não se obscura, mas se transforma. Está empenhada em enfrentar novos desafios. Não mais somente aquele da consciência individual, da pureza da auto-referência, da tranqüilidade da consciência, da plena realização da própria convicção. A ética se faz ética da responsabilidade, capaz de olhar “além” da consciência individual, para colher os efeitos da ação, mesmo boa, naquele outro de si (outro homem, natureza, Deus), que, a essas alturas, numa lógica pós-humana, lhe pertence como êxito do diferente percurso híbrido com a realidade, que a abre incessantemente para o aparecimento interrogador da alteridade. Deste ponto de vista, o pós-humano só pode pretender um novo gesto ético, que se configure na irrenunciável relação com o outro (homem, natureza, Deus).

IHU On-Line – A tecnologia criou pós-hu-

manos? Vivemos um novo conceito de humanidade? Mario Signore – Certamente, a tecnologia, tanto entendida como “prótese” para o homem, consciente de estar num estado de inferioridade com relação aos outros seres vivos providos de um patrimônio de instintos capaz de determinar sem erros a relação com os outros seres vivos e com a natureza em geral, como entendida na sua pretensão substitutiva do humano, impôs a exigência, nova para o homem, de imaginar-se numa posição “post”, ou seja, de auto-superação. Isso certamente contribuiu para a constituição de um novo conceito de humanidade no qual o homem se coloca como um ser “transicional heteroreferido”,

IHU On-Line – É possível traçar, num futuro

próximo, quais serão os nossos maiores desafios como seres humanos? Mario Signore – É sempre muito difícil tentar previsões que digam respeito ao nosso futuro como seres humanos. Certamente, é sustentável a convicção de que, tendo alcançado este ponto, os desafios que nos envolvem sejam tomados todos em

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perspectiva conjunta e não mais como desafios “só para o homem”. Bastaria levar em consideração os desafios lançados pelo fenômeno histórico-econômico da “globalização” para entender o quanto não se pode negligenciar a ótica do complexus, que estimula a desconfiar das simplificações. Tudo isso significa aceitar o grande desafio que, segundo a nossa perspectiva, diz respeito à uma “nova centralização” da pessoa. Remete o

homem ao centro, como ponto de partida dos condutores de responsabilidade, que são orientados em direção à realidade, os desafios da defesa do planeta (desafio ecológico), da paz, da democracia, dos direitos universais do homem (desafio político) do “estrangeiro” e da “face” do outro (desafio ético). Significa, hoje, invocar o homem “responsável” para que se aproprie novamente do seu futuro e responda por si mesmo e pelos outros.

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O pós-humanismo como ato de amor e hospitalidade Entrevista com Roberto Marchesini

Roberto Marchesini é estudioso de Ciências Biológicas e de Epistemologia, além de escritor e ensaísta. Publicou vários artigos e pesquisas sobre o relacionamento entre homens e animais nas aplicações didáticas. Marchesini é presidente da sociedade italiana das Ciências Comportamentais Aplicadas e diretor da Scuola di Interazione Uomo Animale. Ele também ensina Ciência Comportamental Aplicada em algumas instituições italianas. Entre seus livros publicados, citamos: Il concetto di soglia (Theoria, 1996); La fabbrica delle chimere (Bollati Boringhieri, 1999); Bioetica e scienze veterinarie (ESI, 2000); Lineamenti di zooantropologia (Edagricole-Calderini, 2000); Post-human (Bollati Boringhieri, 2002); Imparare a conoscere i nostri amici animali. Guida per insegnanti (Giunti, 2003); Nuove prospettive nelle attività e terapie assistite dagli animali (Edizioni Scivac, 2004); Canone di Zooantropologia Applicata (Apeiron, 2004); e Fondamenti di Zooantropologia. Zooantropologia applicata (Alberto Perdisa Editore, 2005). Na entrevista que Marchesini concedeu por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2005, ele afirma que “a tecnociência não é uma celebração do homem, mas um meio para favorecer a conjugação do homem e para conhecer melhor e apreciar o não-humano”.

dade para aumentar o domínio do homem, mas sim como um modo para aumentar o laço da nossa espécie com o mundo, por meio do conhecimento e da responsabilidade operativa. A lógica pós-humana não se baseia na superação do homem, mas na admissão de que as qualidades humanas se constroem na realização com o não-humano, por exemplo, com os outros animais. As qualidades humanas são, portanto, consideradas fruto da relação com os outros seres viventes. Desse modo, o homem deve reconsiderar tal relação, incentivando-a e valorizando as alteridades. O que é rejeitado é exatamente a pretensão de considerar o homem como único protagonista do universo. Segundo o pós-humanismo, o erro é considerar o homem como centro e medida da realidade, ideal humanístico que nos vê como especiais porque somos separados dos outros seres viventes, auto-suficientes na realização ontológica e totipotentes, com o próprio destino firmemente em nosso poder. Esta visão nega qualquer forma de alteridade não humana, seja terrena ou divina – até mesmo Deus existe enquanto e na medida em que é pensado pelo homem – e condena o homem ao total isolamento e à presunção de ser suficiente a si mesmo. O pós-humanismo rejeita esta idéia: a tecnociência não é, portanto, uma celebração do homem, mas um meio para favorecer a união do homem e para conhecer melhor e apreciar o não-humano.

IHU On-Line – Como o homem contemporâ-

neo vive a dicotomia de permanecer o único protagonista do universo e a necessidade de mergulhar e deixar-se moldar pela alteridade tecnológica? Roberto Marchesini – O paradigma pós-humanístico coloca em discussão a visão antropocêntrica, portanto não lê a tecnociência como uma ativi-

IHU On-Line – Como a técnica auxilia na

construção da identidade do sujeito contemporâneo? Roberto Marchesini – A ciência é uma grande experiência educativa antes mesmo de ser portadora de conhecimento e de aplicações técnicas. 18


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Explico-me melhor: graças à ciência, o homem sai dos preconceitos e, principalmente, da visão da realidade por meio da projeção, ou seja, afasta-se do antropocentrismo mediante uma obra de descentralização. Isso é muito importante na concepção da identidade: o nosso perfil – individual, cultural, humano – nasce do encontro e do acolhimento do outro, e não da sua exclusão. Acredito que o grande risco para o homem contemporâneo seja o de considerar a técnica como uma casca que o separa do mundo; ao contrário, é necessário compreender que o saber não nos torna mais auto-suficientes, e sim mais necessitados um do outro. O saber conjugativo do enfoque pós-humanístico é muito diferente do saber de domínio de tipo baconiano. Precisamos aprender a usar mais seguidamente o nós – toda vez que conhecemos nos declinamos, ou seja, hospedamos a alteridade –, e isso deveríamos aprender com os cães, que vivem perto de nós em uma dimensão co-extensiva.

víduo. Entretanto, isso não é uma simples expressão de poder, ao contrário: transforma a pessoa em uma raiz declinável ou, se preferirmos, em um palco onde o não-humano faz surgir novos roteiros. Se confrontarmos estes temas com o velho paradigma humanístico, não os compreenderemos: a nossa tecnociência nos tornou mais híbridos, está dando espaço ao não-humano, faz-nos ver sob uma nova luz. Somos pós-humanos simplesmente porque compreendemos que ser homens significa acolher os outros, que se fazer animais significa progredir, e não regredir, que as máquinas não são externas, mas nos modificam. IHU On-Line – Como propor uma ética uni-

versal com base nesta realidade? É ainda possível pensar em ética no contexto em que vivemos? Roberto Marchesini – A ética é a reflexão sobre as tensões que o homem sente na sua relação com o mundo: essa é ao menos a minha visão, e neste sentido não posso evitar a religiosidade. Obviamente, cada técnica interpreta um modo particular de enfocar a religiosidade. Para algumas religiões, a realidade terrena é somente um rascunho, ou até mesmo é contrastante à elevação moral: isso leva ao abandono do laço com os outros seres vivos e a sonhar com uma outra dimensão, o paraíso, por exemplo. Junto com essa visão sempre houve uma religiosidade fundada no revelar as leis do mundo como um ato de humildade e de fé: penso no pensamento de Demócrito10, Epicuro11, Plutarco12, Francisco de Assis13, Espinoza, Bruno, Einstein14. Essa ética se baseia no estupor, no amor pelo mundo e na responsabilidade. Considero que todo bom cientista no fundo esconde no seu coração esta tensão, mas é evidente que este

IHU On-Line – A técnica criou sujeitos “pós-

humanos”? Vivemos um novo conceito de humanidade? Roberto Marchesini – A questão não se refere tanto ao que somos, mas a como nos percebemos. O homem do mundo antigo se sentia parte de um conjunto de tensões gravitadas em um ponto final, sustentado pelo fato; obviamente, a sua percepção de si era muito diferente da do homem moderno, completamente responsável pelo próprio percurso e propenso a submeter o mundo aos seus objetivos. O nosso tempo, por meio das tecnologias, torna o homem uma entidade mais conexa, e isso reforça a expressão multiforme da pessoa, quer dizer, a percepção de uma entidade múltipla e mutante: o multivíduo no lugar do indi-

Demócrito (460 a.C. – 370 a.C.): foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos. (Nota IHU On-Line) 11 Epicuro de Samos, filósofo grego do período helenístico. Seu pensamento foi muito difundido e numerosos centros epicuristas se desenvolveram na Jônia, no Egito e, a partir do século I, em Roma, onde Lucrécio foi seu maior divulgador. (Nota IHU On-Line) 12 Plutarco de Queronéia (45-120 ?), filósofo e prosador grego do período greco-romano, estudou na Academia de Atenas (fundada por Platão). (Nota da IHU On-Line) 13 São Francisco de Assis, nascido Francesco Bernardone (1181-1226), foi um Santo vindo de uma família de comerciantes. Em Assis ficou conhecido como Francisco, ou seja o “pequeno francês”.(Nota da IHU On-Line) 14 Albert Einstein (1879-1955): físico alemão naturalizado americano. Premiado com o Nobel de Física em 1921, é famoso por ser autor das teorias especial e geral da relatividade e por suas idéias sobre a natureza corpuscular da luz. É provavelmente o fí10

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êxtase com relação ao mundo é da arte, da música e de toda atividade da cultura.

da a desaparecer. A tecnociência não toma o lugar de Deus, mas acrescenta em nós o estupor em relação ao mundo, torna-nos de algum modo panteístas, faz-nos enfocar a religião de um modo menos projetivo. Devo dizer que talvez esta seja a minha esperança, porque constato, com horror, como o antropocentrismo, também na religião, está destruindo o mundo e desvalorizando o homem.

IHU On-Line – Podemos aproximar o concei-

to de pós-humano ao do “além-do-homem” nietzschiano, responsável pela construção da vida como obra de arte, sem amarras religiosas e metafísicas? Roberto Marchesini – Acho que Nietzsche entendeu, antes de todo o mundo, o declínio do humanismo e não teve medo disso, ao contrário de Heidegger. Todavia, as raízes humanísticas do homem demiurgo são ainda fortes nele, e o “alémdo-homem” se realiza por meio de um ato individual e não da hibridação: essa é a diferença. No pós-humano, “eu sou” porque fui invadido pela alteridade e não porque me realizo solipsisticamente. Não acredito, no entanto, que o abandono da metafísica corresponda à renúncia da religiosidade: podemos sentir o êxtase até mesmo abraçando um cavalo, como fez Nietzsche, ou na compaixão pânica pelas criaturas, como nos ensinou Leopardi. Ir além do homem é a diretriz pós-humanística, não para destruir o homem, mas para doar-lhe uma dimensão relacional, para superar aquela arrogância destruidora, que é a verdadeira blasfêmia contra toda forma de religiosidade. O “além-do-homem”, como o pós-humano, é um ato de amor e de hospitalidade, e não um modo para elevar-se sobre os outros.

IHU On-Line – O que seria o antropocentris-

mo ontológico? O pós-humano é a exacerbação do conceito de homem, que não depende de nada e a nada deve dar satisfações? Roberto Marchesini – Este é o ponto nevrálgico do assunto. O antropocentrismo ontológico significa considerar o homem autofundado, ou seja, acreditar que para reforçar as qualidades humanas se deva purificar o homem do não-humano. Acredito que as coisas estejam caminhando em um sentido inverso: os predicados humanos se realizam na medida em que o homem acolhe o mundo e se faz menos auto-referido. Parece um paradoxo, mas nós realizamos as nossas qualidades antropo-decentrando-nos, ou seja, não desligando-nos do mundo e fechando-nos em nós mesmos, mas assumindo outras perspectivas. A cultura é o exemplo mais claro do nosso débito com relação aos animais: a dança, a arte, a moda, a música e a técnica são formas de hibridação com os animais. As máquinas são o melhor exemplo da nossa fusão com as outras espécies; as máquinas são quimeras, meio homens e meio animais; são instrumentos que se animam, e o universo das outras espécies é a grande fonte inspiradora da taxonomia maquínica. Superar o antropocentrismo ontológico significa entender este débito e respeitá-lo. É um pouco como o egocêntrico que não cresce se não supera a falsa impressão de que o mundo gira ao seu redor. O conhecimento nos faz híbridos, não nos purifica; nos torna mais dependentes, não mais autônomos.

IHU On-Line – É possível compreender o

pós-humano com base na experiência niilista da morte de Deus? A técnica ocupa hoje o lugar da religião? Roberto Marchesini – Se a idéia de Deus for aquela mesma antropomórfica de muitas religiões – Deus feito à imagem e semelhança do homem –, acredito que esteja se consumindo um divórcio profundo, não ainda explícito, mas em progressão rápida. Perdendo a idéia de homem como medida, também esta forma de religiosidade é destina-

sico mais conhecido do século XX. Sobre ele, confira a edição nº 135 da revista IHU On-Line, sob o título Einstein. 100 anos depois do Annus Mirabilis. A publicação está disponível no sítio do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), endereço www.unisinos.br/ihu. A TV Unisinos produziu, a pedido do IHU, um vídeo de 15 minutos em função do Simpósio Terra Habitável, ocorrido de 16 a 19 de maio de 2005, em homenagem ao cientista alemão, do qual o professor Carlos Alberto dos Santos participou, concedendo uma entrevista. (Nota da IHU On-Line)

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inúmeras intolerâncias que ainda persistem, como a religiosa, a sexual e racial? Roberto Marchesini – O mito da pureza, a submissão dos animais ao homem, a idéia existencialística da forma perfeita, foram as bases de toda a forma de discriminação. Santo Agostinho já havia entendido isso, pois onde há discriminação humana versus não-humano e maltrato aos outros viventes, há o modelo para submeter o homem ao homem. Não é por acaso que o operador discriminativo sempre apelou à natureza zoomorfa do discriminado: o louco, a mulher, a criança, o estrangeiro sempre foram representados como animais ou como portadores de uma maior dose de animalidade. Para entender as máquinas, precisamos começar a entender melhor as nossas relações com os outros seres vivos e sair desta solidão de espécie. O pós-humanismo é o contrário da auto-referência: é a celebração da hibridação, a consciência de que o homem não apenas não é a medida do mundo, mas não é nem mesmo a medida de si mesmo.

IHU On-Line – Como fica a alteridade nesse

cenário? E a representação democrática, se o homem é auto-referente? Roberto Marchesini – O pós-humanismo reforça o valor da alteridade e tolhe ao homem aquela auto-referência que o humanismo lhe havia consignado. As alteridades constroem a nossa identidade, o que significa que, destruindo as alteridades, nós colocamos uma pesada hipoteca sobre as nossas possibilidades de identidade. Quem tinha bem entendido isso era o escritor Philip Dick, que afirmava que não poderia haver um futuro para o homem além da relação com os animais, e é por isso que também os seus replicantes sonham com ovelhas, mesmo que elétricas. O homem não é um compasso para o mundo (a idéia de Leonardo teve o seu tempo) e hoje corre o risco de transformar o mundo em um deserto. Aí sim é que a tecnociência se tornaria uma arma perigosa e devastadora. IHU On-Line – Essa concepção auto-refe-

rente pode ser a base para entendermos as

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Uma escolha suicida Entrevista com Marcello Buiatti

Marcello Buiatti é professor de genética e vice-diretor no Departamento de Biologia Animal e Genética Leo Pardi da Universidade de Firenze, na Itália. Buiatti é também presidente do Centro Interdepartamental Biotecnologia Agrária Química e Industrial (CIBIACI) e presidente nacional da Associação Ambiente e Trabalho, além de membro da Comissão Ministerial Ambiente Biodiversidade e Bioética. O professor costuma vir ao Brasil porque faz parte de um projeto de cooperação Brasil-Itália, que tem sede em Brasília, mas estende-se por quatro zonas do País e refere-se à conservação da diversidade das agriculturas. “Se a nossa escolha suicida for mantida, infelizmente muitas espécies de microorganismos, de animais e de vegetais diminuirão muito”, disse Buiatti. Apoiado em cálculos elaborados no Millennium Ecosystem Assessment, uma fonte da ONU, ele disse também que a velocidade de extinção das espécies animais e vegetais é de mil vezes superior a dos períodos precedentes, incluindo os de máxima extinção. “Tudo isso acontece exatamente pela tendência humana a submeter a um único modelo produtivo o nosso Planeta, mudado pelas revoluções industriais”, conclui Buiatti em entrevista à IHU On-Line por e-mail, em 16 de outubro de 2006.

so é que a nossa variabilidade genética atual, medida com refinados métodos moleculares, é muito menor do que a do gorila ou a do chimpanzé, mesmo que estes dois animais sejam muito mais numerosos do que nós. Isso deriva, no entanto, do baixo número de indivíduos que compunham a nossa espécie antes que, 50.000 anos atrás, os homens africanos se movessem daquele continente e rapidamente se expandissem por toda a Terra. Como éramos poucos, tínhamos pouca variabilidade, que se conservou como tal, mesmo que tenhamos ocupado ambientes diversos. Isso porque, enquanto os animais, e assim também os outros primatas, adaptaram-se aos diversos ambientes, modificando, com a seleção natural, a sua estrutura genética, a estrutura humana permaneceu quase igual, e nós nos adaptamos com a nossa variabilidade cultural. Isso nos permitiu modificar, em muitos modos, os ambientes nos quais nos encontrávamos. São indícios disso as 6.000 linguagens que ainda existem na Terra, mesmo que se estejam extinguindo com grande rapidez. Portanto, a nossa estratégia de adaptação utiliza a enorme capacidade de invenção do nosso cérebro15, muito superior àquela do nosso DNA. Hoje sabemos que temos somente 23.000 genes, enquanto possuímos cem bilhões de neurônios que podem formar infinitas conexões. Portanto, a capacidade de informação do cérebro é infinitamente superior à do genoma. É óbvio, pelo que foi dito, que as diversas culturas são a nossa única riqueza, sem a qual a nossa espécie, muito fraca e pouco variável geneticamente, seria rapidamente extinta. Infelizmente, está ocorrendo um processo muito perigo-

IHU On-Line – O conceito de pós-humano

pressupõe evolução biológica e/ou cultural? Marcello Buiatti – A estratégia de adaptação humana, diferentemente do que ocorreu com outros primatas, não se baseou na variabilidade genética, mas na variabilidade cultural. A prova dis-

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Sobre o assunto, conferir a edição 194, disponível para download em www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line)

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so de eliminação da nossa variabilidade cultural, com a extinção de linguagens, alimentos, religiões, ritos, literaturas, músicas. Estamos perdendo, contemporaneamente, também a variabilidade genética das plantas cultivadas e dos animais criados, extremamente importante para termos agriculturas independentes dos adubos, pesticidas e outros aditivos químicos. O que está acontecendo é que os camponeses são expulsos das suas terras pela agressão das agriculturas industrializadas e vão para as grandes cidades para morrerem de fome, perdendo, assim, o sentido das suas comunidades, as línguas, as culturas, e abandonando sementes e animais que são completamente perdidos. Tudo isso porque acreditamos na equivalência dos viventes às máquinas, computadores dotados de um só programa. Se isso fosse verdade, então o nosso objetivo seria o de nos tornarmos todos iguais e “ótimos”. Na vida, as coisas não são assim: não vence quem é homogêneo e “ótimo”, mas vencem aqueles que são flexíveis, mudando facilmente quando é necessário, e assim se adaptam aos diversos ambientes, aos diversos contextos, às diversas condições de vida. Se a tendência não mudar, o pós-humano não será diferente do ponto de vista genético, no sentido que a nossa bagagem hereditária não mudará em nenhum modo. Será, porém, diferente do ponto de vista cultural, porque terá perdido a capacidade de invenção, abandonando a estratégia de adaptação que nos permitiu viver em ambientes muito diversos. O pós-humano será idêntico, ou quase, a nós, do ponto de vista físico, mas estúpido (incapaz de invenções para a mudança) tanto individualmente quanto coletivamente. Ou melhor, mais do que estúpido, muito provavelmente será morto, porque, se não mudamos, morremos e nos tornamos como umas máquinas. Depende de nós mudarmos essa tendência e voltarmos à nossa fonte de vida, a diversidade, que em nós somente pode ser cultural, assim como escrevi no meu livro A benévola desordem da vida.

Marcello Buiatti – Se a nossa escolha suicida da qual eu falava antes for mantida, infelizmente muitas espécies de microorganismos, de animais e de vegetais diminuirão muito. Já hoje os cálculos elaborados no Millennium Ecosystem Assessment, uma fonte da ONU extremamente confiável e atualizada, nos dizem que a velocidade de extinção das espécies animais e vegetais (e não há dados sobre os microorganismos) é de mil vezes superior a dos períodos precedentes, incluindo os de máxima extinção. Tudo isso acontece exatamente pela tendência humana a submeter a um único modelo produtivo o nosso Planeta, mudado pelas revoluções industriais. Este é um modelo de alto consumo dos recursos não-renováveis, portanto determina profundas mudanças no clima e na própria estrutura da biosfera e dos ecossistemas que a constroem. E não é somente isso, mas a imposição de um único modelo de agricultura comporta, inevitavelmente, o aumento contínuo do desmatamento, e com isso a perda da flora e da fauna que vive nas florestas, contemporaneamente à perda de variabilidades de plantas e de animais domésticos. Em outras palavras, a autodestruição dos seres humanos é previsível exatamente porque o modelo de desenvolvimento prevalecente destrói, em geral, as condições de vida atuais. Naturalmente, não todas as plantas e animais serão eliminados, e principalmente os microorganismos serão capazes de sobreviver. Em última análise, os primeiros a sofrer pelo estado do Planeta seremos nós, espécie patroa, mas extremamente frágil se fica incapacitada de mudar de modelo. IHU On-Line – Como é possível entender os

aspectos positivos e negativos do conceito de pós-humano? Marcello Buiatti – A nossa espécie tem diante de si escolhas que devem ser feitas com grande rapidez, e serão estas escolhas que determinarão à positividade ou não do pós-humano. Se nos dermos conta rapidamente dos erros que estamos cometendo e compreendermos que as atividades humanas e a nossa própria vida dependem das vidas dos outros seres viventes que povoam o Planeta e que todos dependemos do estado deste e do seu clima, da presença de recursos renováveis

IHU On-Line – Qual será o espaço que ou-

tras espécies animais terão no mundo póshumano? O homem continuará sendo o centro das questões?

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e não-renováveis suficientes, poderemos também ter um desenvolvimento positivo para a vida em geral e também para a vida humana. Para que isso aconteça, são as próprias sociedades humanas que devem mudar. É necessário que seja instaurado um processo que leve à solidariedade mundial, à eliminação das diferenças nos níveis de vida e de bem-estar das populações, ao respeito e à valorização das diversidades humanas. Uma sociedade futura positiva não poderá surgir se os homens não souberem impor a si mesmos leis de mercado que não privilegiem o mais forte, que detenham o uso indiscriminado dos recursos, principalmente aqueles da diversidade dos seres viventes e das culturas humanas. Isso não será possível se não nos dermos conta do perigo ao qual estamos indo ao encontro, e se não compreendermos que o crescimento da circulação monetária (o GNP) não é de verdade o único índice de bem-estar que devemos levar em consideração, voltando a atribuir o valor de uso aos produtos e a tudo aquilo que nos circunda. Isto é, não é correndo mais para aumentar vertiginosamente a transferência de moeda e o consumo dos quatro elementos (ar, água, fogo, ou seja, energia, solo) e da vida que teremos resultados positivos.

mo valor ético que começa com o fim das guerras, das discriminações, das matanças em massa de nós, humanos, e dos outros, plantas, animais e microorganismos. IHU On-Line – Há como traçar um futuro

próximo? Quais serão nossos maiores desafios, como seres humanos? Quais serão os desafios de outras espécies de animais? Marcello Buiatti – A nossa espécie, na sua versão atual, na minha opinião, começou a existir quando nasceu no ser humano a capacidade de representar a natureza externa como forma de arte. O processo foi o seguinte: simplesmente observando tudo o que nos circundava, passamos à sua elaboração no nosso cérebro, e, após a projeção na matéria externa do fruto desta elaboração. Isso aconteceu já há 27.000 anos, com esculturas que já representavam homens, mulheres e roupas com as quais se cobriam. Esta foi à primeira forma de projeto. E o que é um projeto, de fato, senão o recolhimento de dados, a sua elaboração e a sua transformação no projeto, que depois é projetado na matéria externa? Nenhum animal é capaz de fazer isso mesmo que use de modo monótono, de geração a geração, matéria externa para realizar algumas ações. Inicialmente, a projeção servia para encontrar instrumentos aos quais fossem adaptadas casas para proteger-se do ambiente, roupas para cobrir-se, e finalmente agriculturas, quando abandonamos a caça e a pesca. As agriculturas também eram construídas para adaptar-se aos ambientes diversos, que sempre eram respeitados. Mais tarde, começou-se a produzir máquinas cada vez mais sofisticadas, que tinham cada vez menos a ver com a adaptação, e sempre mais a ver com o objetivo de construir um mundo todo máquina e todo adaptado a nós. Aconteceram as revoluções industriais e, lentamente, construiu-se a idéia de que todo o Mundo era uma grande máquina para conhecer, e, portanto, para mudar, tornando-o otimizado, como sempre se faz com as máquinas. Na segunda metade do século XX, firmou-se a convicção de que também os seres humanos eram máquinas, e, mais precisamente, computadores, todos dotados de um só programa.

IHU On-Line – Como fica a ética dentro de

um mundo pós-humano? Ainda é possível pensar em ética nesse contexto? Marcello Buiatti – Eu, pessoalmente, acredito que haja uma ética da mudança positiva, que é aquela que eu descrevi anteriormente. Essa é uma ética laica, mas que, acredito, seja perfeitamente aceitável também por quem é religioso. Se ética quer dizer “não faça aos outros o que não queres que os outros façam a ti”, e, se estendermos o sentido de “outros” a todos os seres viventes, é bem evidente que somente com esta ética nós e os outros poderemos sobreviver. Desobedecer este princípio significa de fato desobedecer também ao mandamento de não matar, porque produzimos a morte com a nossa corrida em direção ao precipício. Somente restabelecendo os necessários laços positivos entre os seres humanos e entre estes e os outros seres viventes conseguiremos inverter a rota. Essa é uma operação de altíssi-

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Sujeitos objetos

preocuparmos quando o clima muda e a variabilidade se perde, porque todas essas são notícias que removemos. Não somente a nossa capacidade de adaptação é bloqueada, mas nem mesmo queremos nos dar conta dos perigos nos quais estamos nos precipitando, na tentativa de tornar “otimizada” a máquina do Mundo. Naturalmente, todo esse processo não é espontâneo, mas dirigido por grandes forças econômicas e militares que não se dão conta de quão efêmera seria sua vitória total, que levaria somente à sua destruição. O desafio que se põe é o de voltar a viver, a viver verdadeiramente, sentindo a necessidade de estar bem, de mudar para sobreviver, de mobilizar os nossos grandes recursos para a vida, e não para uma utopia suicida. Este desafio deve ser afrontado agora, porque somos a única espécie que, sozinha, é capaz de mudar todo o Planeta, e, por isso, temos uma força imensa capaz ainda de inverter o processo, mas somente se houver intenção de fazer isso. Portanto, o Mundo deve estar novamente em condições de confrontar-se com as verdades da vida, de escutar também o que a ciência diz nos primeiros anos do terceiro milênio, de não fazer a “política do avestruz”, quando chegam as notícias de catástrofes iminentes, tachando de loucos aqueles que defendem a vida. Temos que, ao invés, voltar a gozar a vida e a defender-nos de tudo o que a está suprimindo, incluídos os seres humanos aparentemente donos do Mundo, que serão os primeiros a sucumbir.

Deste modo, transformavam-se os sujeitos viventes em objetos, para poder modificar segundo a nossa vontade, sem nenhum perigo. De fato, as máquinas têm todas um só programa, dado pelo homem, e farão obrigatoriamente tudo o que o homem lhes disser que devem fazer. A partir daí, o passo seguinte é o de considerar todo o mundo como uma imensa máquina otimizada, regulando suas peças uma a uma. Esse é o modelo industrial que é bem representado no filme Metrópolis, de Fritz Lang. Hoje, além de manter essa “utopia mecânica”, estamos aderindo ao valor crescente da moeda como tal, pelo qual um objeto, ou uma parte da natureza, não serve porque é útil para a nossa vida, mas porque gera dinheiro. E, de fato, somente uma pequena parte da transferência de moeda que ocorre com os meios informáticos mais sofisticados é coberta pela matéria: o resto é moeda como tal. E, no mais, o PIB tornou-se índice de riqueza real, quando é, ao invés, somente índice de movimentos financeiros. O PIB, de fato, cresce quando há desastres, porque se investe nos reparos, cresce se o sistema sanitário público não funciona, porque se investe no privado etc., isto é, chegamos à última fase da alienação da matéria vivente que existe, quando existe somente porque tem um nome e movimenta a moeda. É esse nosso afastamento da realidade da nossa vida que nos torna incapazes de nos assustarmos diante de catástrofes naturais, incapazes de nos

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O ser humano e o animal se hospedam um ao outro Entrevista com Claudio Tugnoli

Claudio Tugnoli é professor do Departamento de Filosofia da dell’Università degli Studi di Bologna, na Italia. É colaborador do Departamento de Ciência Humana e Social da Faculdade de Sociologia de Trento. Entre suas últimas publicações, estão Bioetica della vita e della morte (AA.VV); La bioetica nella scuola (Franco Angeli, Milão 2002); os ensaios “L’unita di tutto ciò che vive. Verso una concezione antisacrificale del rapporto uomo/animale” (In: C. Tugnoli (Org.) Zooantropologia, Storia, etica e pedagogia dell’interazione uomo/animale (FrancoAngeli, Milão 2003, p. 13-74), “La teoria mimetica come superamento della logica sacrificale” (In: L’apprendimento della vittima. Implicazioni educative e culturali della teoria mimetica (em colab. com Giuseppe Fornari), Franco Angeli, Milão 2003, p. 13-137); e “Su verità e menzogna in senso storico” (In: La storia fra ricerca e didattica, ed. de B. de Gerloni, Franco Angeli, Milão 2003, p. 263-360). Outra publicação é La magnifica ossessione (Bruno Mondadori, Milão 2005). “A idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numa compreensão profunda da realidade humana, é precisamente a concepção da interdependência entre o homem e o animal, no qual o homem e o animal se hospedam um ao outro”, é o que disse Claudio Tugnoli em entrevista por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2006.

IHU On-Line – O que é zooantropologia?

Claudio Tugnoli – A zooantropologia existe como disciplina específica há uns vinte anos. Ela se desenvolve em particular na Europa e nos Estados Unidos, com o objetivo de fornecer uma resposta aos problemas da interação homem/animal, sobretudo para compensar a carência desta relação e para satisfazer a explosão do interesse relacional com o mundo animal. A zooantropologia tirou grande vantagem das pesquisas desenvolvidas no campo da bioética animal e da afirmação da tese continuísta, que considera as diferenças de habilidades e prestações entre animais humanos e não-humanos como diferenças de grau, não de natureza. A zooantropologia tem, depois, contribuído para consolidar esta concepção, que estende a noção de pessoa também aos animais. Não se exagera quando se consideram a zooantropologia e a bioética animal como uma verdadeira e própria revolução de ordem filosófica, ética e pedagógica. É a própria noção de vida que foi posta em discussão e a relação homem-animal foi refundamentada. A revolução é recente e ainda está em ato. Limito-me a assinalar a contribuição de Peter Singer16 nesta direção. Singer (Rethinking life and death: the collapse of our traditional ethics, 1994) observa que a teoria evolucionista de Darwin17 (A origem do homem é de 1871) por pelo menos um século nem sequer arranhou a concepção tradi-

Peter Singer: filósofo australiano. Concedeu entrevista na edição 191 da IHU On-Line: Por uma ética do alimento. Sobriedade e Compaixão. Seu último livro foi The way we eat. Why our food choices matter? (New York: Rodale, 2006). (Nota da IHU On-Line) 17 Charles Robert Darwin (1809-1882): naturalista britânico, propositor da Teoria da Seleção natural e da base da Teoria da Evolução no livro A origem das espécies. Teve suas principais idéias em uma visita ao arquipélago de Galápagos, quando percebeu que pássaros da mesma espécie possuíam características morfológicas diferentes, o que estava relacionado com o ambiente em que viviam. (Nota da IHU On-Line) 16

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cional, que assinala um status especial aos seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus. Agora, faz trinta anos que teve início um processo de difusão de uma nova consciência ecológica, determinada pelos sinais alarmantes de danos consistentes provocados ao ecossistema pelas atividades humanas. Um outro passo em frente foi realizado graças aos teóricos da libertação animal, os quais expressaram a exigência de pôr o problema da igualdade não só no interior da espécie humana, mas também com respeito às outras criaturas sensitivas. Os teóricos da libertação animal se bateram para superar os limites estreitos de uma moral restritiva, com o objetivo de estender também aos animais não-humanos o reconhecimento de interesses e direitos. Além disso, acrescenta Singer, um melhor conhecimento dos grandes símios exigiu a superação de velhos esquemas, que atribuíam a posse da inteligência somente aos animais humanos. A idéia de uma demarcação nítida entre animais humanos e não-humanos se desfez definitivamente quando foi possível dar-se conta de que muitos símios superiores são capazes de inteligência instrumental e até de usar uma linguagem (entender e usar um elevado número de sinais coordenados entre eles). O movimento de pensamento que funciona sob o nome de libertação (ou liberação) animal foi reforçado pelos estudos experimentais, que reduziram decisivamente a distância entre animais humanos e não-humanos. Além da inteligência, cujo uso e posse podem ter muitos graus, nós e os animais compartilhamos de aspectos decisivos da vida material e da organização social de um território: a busca de alimento, a conquista de um parceiro, a realização de uma posição de liderança ou o incremento de status, a proteção da família e a defesa do próprio território. Temos em comum com os outros animais, observa Singer, até mesmo os princípios morais fundamentais que disciplinam o nosso comportamento, como, por exemplo, a regra da reciprocidade, os deveres para com os consangüíneos e os freios ao comportamento sexual. As últimas pesquisas da biologia e da genética demonstram que o homem pertence à mesma família e ao mesmo gênero dos chimpanzés e dos gorilas: um resultado revolucionário com respeito à classificação de

Lineu, que atribui aos humanos não só uma espécie existente por si (Homo sapiens), mas também um gênero separado (Homo) e até uma família separada (Hominidae). Mas a classificação de Lineu obedece unicamente ao desejo de separar o homem dos outros animais. Também a definição de espécie como grupo de indivíduos interfecundos foi desmentida pela existência de espécies que se revelaram interférteis. É possível que espécies diversas não possam mais reproduzir-se por causa do desaparecimento dos tipos intermédios. Entre um ser humano e um chimpanzé não há reprodução; poder-se-ia coligar este limite ao número diverso de cromossomos do chimpanzé (48) e do homem (46). Todavia, Singer sempre argumenta que duas diversas espécies de símios que vivem na Malásia e na Indonésia, como o siamango e o gibão, resultaram interfecundos, não obstante o número diverso dos cromossomos (respectivamente 50 e 44). Isso impede excluir que homens e chimpanzés possam resultar interfecundos. IHU On-Line – Qual será o espaço que ou-

tras espécies animais terão no mundo póshumano? O homem continuará sendo o centro das questões? Claudio Tugnoli – Os indivíduos humanos são chamados com o termo “pessoa”, como se isso fosse sinônimo de “ser humano”. Nos textos de bioética, ao invés, o termo “pessoa” é usado para indicar um indivíduo que possui certas características, por exemplo, a racionalidade e a autoconsciência. Entre ser humano e pessoa, não subsiste nenhuma identidade semântica: há pessoas que não são seres humanos (por exemplo, Deus ou outros seres pertencentes a espécies diversas da humana, que vivem sobre a terra ou em qualquer outro planeta do universo) e há seres humanos que não são pessoas (como os sujeitos anencéfalos, os indivíduos mergulhados no coma irreversível, ou ainda, em sentido estrito, os indivíduos humanos assim ditos normais quando dormem). A teologia ocidental reconhece a qualidade de pessoa ao Pai e ao Espírito Santo, que, no entanto, não são seres humanos. Há pessoas que são seres humanos, mas também pessoas que não o são sem pertencerem aos nove sobre dez. Os grandes

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símios, escreve Singer, são pessoas sob todos os efeitos, mas no futuro poderão emergir ulteriores e definitivos elementos de prova que permitirão enumerar entre as pessoas também as baleias, os delfins, os elefantes, os cães, os suínos e outros animais, que sejam conscientes da própria existência no tempo e capazes de raciocínio. Enfim, se também fosse discutível a própria noção de inteligência e consciência, deveríamos ainda admitir que aos animais em geral seja reconhecido que sofrem, sentem dor de muitos modos e que o nosso cuidado por eles não pode depender do grau de racionalidade e de autoconsciência que possuem.

IHU On-Line – Como podemos caracterizar

o sujeito pós-humano? Claudio Tugnoli – O pós-humanismo vai além do velho humanismo, que insiste na separação entre o homem e o animal, mostrando que, ao contrário, o animal é parceiro de consciência. Um homem mostra uma relação de parentesco com o animal, seja do ponto de vista filogenético, seja pela abertura à hibridação animal. A cultura humana começou pela sinergia e pelo confronto, da parte do homem, com as habilidades e os modelos comportamentais das diversas espécies animais, com as quais o homem interage desde os primórdios. A tese da dependência cultural do homem com relação ao animal não implica nenhum reducionismo da parte da zooantropologia, que mostra quanto seja infundada a pretensão do velho humanismo, de que a cultura seja oposta com respeito ao teriomórfico e aos modelos animais. Que a cultura seja uma emancipação do homem ou um dom dos deuses, como ensina o mito de Protágoras18, ao qual se refere Platão no diálogo homônimo, é uma ilusão solipsista que induz a pensar na cultura como elemento de diferenciação do homem com respeito às outras espécies animais, sem reconhecer ao animal o papel de magister, que resulta, ao invés, ser central ao totemismo. O homem aprende dos animais, que são mediadores e próteses nos planos prospectivo, cognitivo, taxonômico, epistemológico, semiótico, estético, operativo. Roberto Marchesini19 interpretou, com razão, o mito de Protágoras como “manifesto” do humanismo clássico: a reconstrução que o sofista Protágoras oferece do nascimento da civilização humana expressa muito bem a concepção antropológica da incompletude. Segundo a tese da incompletude, a cultura seria um instrumento de compensação da falta de ser do homem. Diversamente dos animais que foram providos (segundo Epimeteu) de uma série de habilidades definidas e cumpridas, o homem não recebeu nenhum dom, de modo que sua natureza consiste no fato de não ter uma natureza, uma fisionomia própria. Na interpretação de Pico del-

Racionalidade e autoconsciência Aqui há um problema bastante sério, que Singer elude. Ele parece pressupor que racionalidade e autoconsciência são características que as diversas espécies possuem em grau diverso. Esta é uma tese que podemos definir como continuísta. Pode-se, todavia, sustentar que Felice Cimatti emprega uma tese oposta, descontinuísta, assinalando somente aos animais humanos a característica da racionalidade e da autoconsciência, negando-a totalmente aos animais não-humanos. Uma teoria zooantropológica, a de Cimatti, que repropõe a filosofia cartesiana. Assim, o neocartesianismo parece repropor uma barreira entre o homem e os animais, que os manteve, por longo tempo, separados e inimigos. Mas a pergunta de Singer, neste ponto, se torna atordoante: “Por que jamais deveremos tratar como sagrada a vida de uma criança anencéfala e sentir-nos livres para matar crianças sadias para retirar seus órgãos? Por que encerrar chimpanzés em gaiolas de laboratório e contagiá-los intencionalmente com doenças humanas fatais, se nos aborrece a idéia de fazer experimentos em seres humanos gravemente deficitários intelectualmente, que apresentam um nível mental análogo ao dos chimpanzés?”.

Mito de Protágoras: discorre sobre a criação do homem, a divisão de atributos e a instituição da arte política necessária para que os homens pudessem conviver em sociedade. (Nota da IHU On-Line) 19 Conferir entrevista com este autor nesta mesma edição. (Nota da IHU On-Line) 18

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la Mirandola20, o homem se distingue dos outros seres vivos pelo fato de não ter uma identidade. O homem não é nada, mas pode tornar-se tudo. O humanismo sempre tem, por conseguinte, necessidade do confronto com qualquer alteridade para definir o homem mediante a negação, a exclusão. O paradigma da incompletude, já bem expresso no mito de Protágoras, é representado na antropologia filosófica até o século XX. Isso vem, no entanto, acompanhado de uma concepção isolacionista da evolução cultural, a qual pretende identificar uma pureza identitária do ser do homem e de sua cultura, que está em aberta contradição com a tese da incompletude. Num certo sentido, porém, a concepção pós-humanista é a aplicação conseqüente da tese da incompletude. Se a essência do homem consiste em não ter uma essência, então a sua evolução será determinada, desde sempre, pela contaminação, pela hibridação, pela conjugação com a alteridade, com a adoção de modelos em condições de desenvolver potencialidades desconhecidas e imprevisíveis. Na história, o homem encontrou a alteridade em três acepções fundamentais: 1) os animais; 2) os homens pertencentes a culturas diversas; e 3) a técnica. A evolução da cultura nada tem a ver com o isolamento, com a preservação de uma pretensa essência própria, sob o risco de adulteração e corrupção. O isolamento e a defesa das contaminações são obstáculos à evolução cultural e são incompatíveis com a tese, também esta humanística, da incompletude. Humanistas como Heidegger21 e Hans Jonas22 consideram a técnica como uma ameaça para o homem, ao qual ela subtrairia predicados humanos. Reduzido a ser puramente passivo pelo progresso tecnológico, o homem seria desumanizado: também aqui o homem é definido indiretamente, por negação da alteridade. De fato, subentende-se que, se não existisse a alteridade tecnológica, ele poderia desenvolver sua essência de ho-

mem livremente. Sabemos, no entanto, que, se não se conjugasse com a alteridade, se não adotasse modelos externos, se o homem se iludisse com a idéia de poder ser discípulo de si próprio, não haveria nenhum desenvolvimento cultural. O humanismo cultiva o mito da originalidade e reivindica a propriedade no momento mesmo em que esse que não tem nada de próprio, de originário, sendo incompleto e vazio. A alteridade é concebida como um obstáculo à evolução e à formação de uma dimensão original própria, enquanto, em realidade, esta é uma condição, um pressuposto para que o homem se cumpra, convertendo as potencialidades em atualidade. A visão pós-humanística reconhece o papel essencial da alteridade (animal, cultural, tecnológica) no processo antropopoiético. O ser-do-homem não tem nenhuma completude e perfeição que se deva defender dos riscos de alteração; ao contrário, o homem pode desenvolver-se e realizar a própria humanidade somente hibridando-se. O pós-humanismo abandona toda visão fundada na separação e na dicotomia homem/animal, cultura/natureza, tecnológico/biológico e afirma “o estatuto dialógico da ontologia humana” (Marchesini). O homem do pós-humanismo reconhece o próprio débito nos confrontos das alteridades humanas e refuta toda concepção do homem como dominador da alteridade e rejeita a tentação do isolamento. “A cada passo hibridante, o homem aumenta sua necessidade de alteridade, e não o seu domínio sobre a alteridade: esta consciência deve ser uma admoestação para o homem do século XXI, a fim de evitar perigosas negligências no confronto com a realidade externa, que o conduzam a pensar como uma ilha totalmente auto-suficiente” (Marchesini). IHU On-Line – Que vias estamos seguindo

para novos modelos de existência?

Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) foi um erudito, filósofo neoplatônico e humanista do Renascimento italiano. (Nota da IHU On-Line) 21 Martin Heidegger de Messkirch (1889-1976): filósofo alemão. A seus olhos, o que define a ontologia e sua história é o esquecimento do ser como lugar de questionamento. Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19 de junho de 2006, e 187, de 3 de julho de 2006, disponíveis para download no sítio do IHU, www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line) 22 Hans Jonas (1902-1993): filósofo alemão, naturalizado norte-americano, um dos primeiros pensadores a refletir sobre as novas abordagens éticas do progresso tecnocientífico. A sua obra principal intitula-se Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation (1979). (Nota da IHU On-Line) 20

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Resulta daqui o estímulo à colaboração com os outros e à planificação em vista de um fim, do qual resulta, também, a compreensão das necessidades de medidas de proteção e de salvaguarda do ecossistema.

Claudio Tugnoli – Na Itália, a zooantropologia obteve notáveis progressos também no plano teórico, principalmente por mérito de Roberto Marchesini. A zooantropologia teórica procurou esclarecer o profundo significado da relação homem/ animal, que não se pode reduzir a mero desfrutamento. A extrema variedade das espécies vivas no plano morfofuncional, etológico e zôo-semiótico consegue, sim, que o animal assuma uma função formativa absolutamente primária para educar ao reconhecimento e à aceitação da alteridade, para potenciar e afinar a capacidade de compreensão, nos seres humanos, da linguagem dos animais. A zooantropologia aplicada tem como objetivo de intervenção não o homem ou o animal tomados em si mesmos, mas a dupla homem-animal, com o fim de utilizar todos os recursos desta parceria que, costumeiramente, são ignoradas ou sacrificadas na relação inter-humana. Desfrutando dos nexos emocionais e cognitivos, que coligam o ser humano às outras espécies, a zooantropologia aplicada solicita as valências formativas, didáticas e terapêuticas da interação interespecífica. No plano formativo, verificou-se que a interação com o animal aumenta o vocabulário imaginativo, facilita a familiarização com a diversidade, encoraja a comunicação e aumenta o grau de auto-estima.

IHU On-Line – Quais são os riscos trazidos

pelas tecnociências para a humanidade? Ela está ameaçada? Quais são os riscos para as outras espécies vivas? Claudio Tugnoli – As tecnociências podem representar uma oportunidade somente se a pesquisa estudar a fundo os mecanismos que mantêm o equilíbrio entre as várias espécies, para favorecer, se possível, não a diminuição, mas o aumento da biodiversidade. É possível imaginar que o homem, depois de haver aprendido a hibridar-se com os modelos das várias espécies animais, esteja ampliando a esfera de hibridação também com as máquinas. Não há nada de estranho ou de horrível em tudo isso, desde o momento em que o homem, por sua natureza, é sempre dependente do ambiente. O horror humanístico, suscitado pelo projeto de máquinas também mais inteligentes que o homem, funda-se na convicção de que existe uma diferença objetiva, uma linha de nítida separação entre o natural e o artificial. Adão, no fundo, foi apenas o primeiro andróide ou humanóide, feito à imagem e semelhança do Criador. O homem é, por definição, um animal capaz de imitações. As máquinas, como os animais, são e serão as suas próteses, os seus mediadores epistêmicos e culturais em geral. Se os outros entes vivos desaparecessem, seria uma catástrofe para o homem, a partir do momento em que o animal, não obstante o comportamento exigente do velho humanismo, permanece como o carburante cultural do desenvolvimento cultural do homem. A idéia fundamental do pós-humanismo, empenhado numa compreensão profunda da realidade humana, é precisamente a concepção da interdependência entre o homem e o animal, no qual o homem e o animal se hospedam um ao outro.

Centro de interesses No plano didático, o animal é um centro de interesses insubstituível, que permite experiências cognitivo-lúdicas, conectando os diversos ambientes (escola e casa), facilita o conhecimento de si mesmo e da própria corporeidade, desenvolve empatia cognitiva e estimula o interesse pela realidade. Esta valência é muito útil na recuperação de sujeitos em dificuldades de várias espécies. Um aspecto educativo sublinhado pela zooantropologia consiste na idéia de a criança é educada a cuidar do animal como ser indefeso que dela necessita.

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É um absurdo o homem querer criar algo que o ultrapassasse Entrevista com Remi Brague

Remi Brague é filósofo, historiador e professor na Universidade Paris I, Sorbonne, na França. É autor de Europe, la voie romaine (Paris: Critérion, 1992); A sabedoria do mundo (Lisboa: Edições Piaget, 2002); e La Loi de Dieu. Histoire philosophique d’une alliance (Paris: Gallimard, 2005). Ele concedeu uma entrevista publicada na 175ª edição da IHU On-Line, de 10 de abril de 2006. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2006 ele afirma que “Não há nada a colocar no lugar do cristianismo. Ele está longe de ter esgotado suas possibilidades”.

mo faz alguns anos somente, em particular a partir do livro de Fukuyama, Our posthuman future (2002). Mas Julian Huxley, o irmão do autor de Brave New World, que foi o primeiro diretor da Unesco, falava desde 1957 de “transumanismo”. O termo pós-humanidade é uma aplicação a mais dessa mania que quer a todo custo se colocar depois... Eu não sei muito se a expressão tem um sentido um pouco coerente. Situa-se ali em baixo das tentativas, sonhos e pesadelos, para refazer o homem a partir do controle presente ou futuro do genoma humano. IHU On-Line – Como é possível compreen-

der os aspectos positivos e negativos do conceito de pós-humano? Remi Brague – “Passar além do humano” (transumanar) era já a forma como Dante, no início do Paraíso, caracterizava o dom mais alto da graça divina. O autor diz também que nós não somos mais do que as larvas de onde sairão angélicas borboletas. O que tem de muito positivo é a ambição. Nós não estamos mais no mundo grego: o pecado não é a hybris, a desmedida. Trata-se antes da falta de ambição, o fato de se contentar com pouco, de querer se satisfazer com outra coisa e não com a santidade. Releiamos a esse respeito os Padres da Igreja: eles nos lembrarão a nobreza da natureza humana, certamente recaída sobre o primeiro Adão, mas liberada pelo segundo Adão, o Cristo. O negativo é não ver nada mais depois do humano do que seres que teriam muito mais daquilo que o homem decaído tem: mais orgulho, um cérebro maior, um poder maior sobre a natureza, uma vida mais longa.

IHU On-Line – O que é a pós-modernidade? Podemos dizer que o homem do século XXI

é pós-humano? Por quê? Remi Brague – “Pós-moderno” e as palavras que dela derivaram datam de alguns decênios atrás. Cada um as atrai para si e dá-lhes o sentido que deseja. Uma observação somente: o fato de se definir por sua situação depois de alguma coisa é uma atitude tipicamente moderna. Ser “moderno” é, no fundo, crer que se está situado depois de um tempo irrevogavelmente ultrapassado, aquele que chamamos Idade Média. Falar do que é pós-moderno, isto é, depois dos Tempos modernos, é, de uma certa maneira, mostrar que somos fiéis a esse gesto fundamental da modernidade, e então que ainda não saímos dela. A forma mais conseqüente de ser pós-moderno seria talvez renunciar a crer que o que vem depois é melhor do que o que tínhamos antes. A idéia da pós-humanidade quanto a seu conteúdo não tem muito a ver com a idéia de pós-modernidade. Começou-se a utilizar esse ter-

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alguma coisa que o ultrapassasse. Isso seria como sair por si mesmo das areias movediças, puxando os seus próprios cabelos como o barão Münchausen pretendia fazer. Da transcendência não podemos constatar mais do que a existência. Um sujeito que pudesse criar suas próprias transcendências seria também capaz de destruí-las e de substituí-las por outras. Seria ele que transcenderia todas as suas pretendidas “transcendências”.

IHU On-Line – Podemos aproximar o con-

ceito de pós-humano ao “além-do-homem” nietzschiano, responsável pela construção de sua vida como obra de arte, sem amarras religiosas e metafísicas? Remi Brague – A era moderna, a partir do início de século XVII, abriu-se sobre o sonho de uma dominação da natureza pelo homem, de um “reino do homem” (Francis Bacon) tornado “mestre e possuidor da natureza” (Descartes). Nietzsche, no final do século XIX, teve o mérito de reconhecer que “o homem é algo que deve ser ultrapassado” (Zaratustra). Para o humanismo moderno é uma constatação de fracasso. Entretanto, é interessante que o fracasso seja medido quanto ao próprio projeto moderno, com relação ao qual o homem se sente insuficiente. Conserva-se o modelo da dominação para pensar a relação do homem com a natureza, mas o homem, tal como ele é, não seria ainda capaz de assumir essa dominação. Fazer de sua vida uma obra de arte? Isso soa bem. Só que depende da concepção de arte que se tenha. Plotino falava de “esculpir sua própria estátua”. Isso quer dizer: eu sou o único que posso trabalhar para me transformar, mas essa estátua não deve representar-me; ela deve representar os deuses. A arte moderna rompeu bastante cedo com sua origem religiosa: celebrar o divino, torná-lo visível. Desde o início do século XIX, ela abandonou a idéia de belo em proveito do “interessante”. Atualmente, ela me parece quase totalmente obsessionada pela sede de originalidade. Queremos verdadeiramente que nossa vida seja parecida com certas obras contemporâneas?

IHU On-Line – Em entrevista concedida à

nossa revista, em abril deste ano, o senhor afirma que tanto o cristianismo quanto a modernidade estão em crise. O que está sendo erigido em seus lugares? Remi Brague – É fato que as grandes igrejas cristãs perdem a sua influência. Isso favorece o surgimento de uma religiosidade irracional. Por sua parte, a modernidade não se leva a si mesma suficientemente a sério. Somente os inocentes continuam acreditando num “progresso” automático para o bem, que seria paralelo aos avanços da ciência e da técnica, que são reais. As pessoas que pensam não acreditam mais nisso. Não defendemos mais o projeto pelas razões positivas, mas pelo medo das conseqüências do seu fracasso. É por isso que nós falamos com o maior cuidado do espectro do “obscurantismo” para poder continuar acreditando nas “luzes”. Não há nada a colocar no lugar do cristianismo. Ele está longe de ter esgotado suas possibilidades. Eu acredito mesmo que elas são infinitas, no sentido próprio desse adjetivo. IHU On-Line – “O papel do cristianismo e

IHU On-Line – O senhor recusa a idéia de

dos cristãos nos próximos anos é simplesmente fazer de modo que haja próximos anos”, disse o senhor nessa mesma entrevista. Como a sociedade pós-humana pode agir para que esses próximos anos existam? Remi Brague – Entenda-se bem, se o cristianismo e os cristãos desaparecessem, isso não impediria o tempo de passar. Eu queria simplesmente dizer que, estando o destino da humanidade mais e mais nas suas mãos, o problema de saber por que continuar a aventura humana será colocado mais nitidamente. Com base em que legitimar a exis-

que o homem pode criar uma transcendência, pois uma transcendência criada, ou horizontal, não é uma transcendência. O que o senhor quer dizer, exatamente, com isso? O pós-humano é aquele sujeito que cria suas próprias transcendências e deixa Deus de lado? Remi Brague – Na verdade, eu não rechaço nada. Não se pode rechaçar o que é real ou, ao menos, possível. Eu só queria fazer notar o absurdo da idéia segundo a qual o homem poderia criar

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tência do homem? Isso quer dizer bem concretamente: por que continuar a ter filhos, quer dizer, a chamar a existência, sem evidentemente poder perguntar-lhes a sua opinião, se não podemos garantir a esses seres que serão felizes? Que se continue a gerar filhos como sempre se fez ou que sejam fabricados graças a alguma máquina aperfeiçoada, o problema é o mesmo. Para que o ser tenha o direito de reproduzir-se, é necessário que seja de uma bondade intrínseca, tão imensa que ele valha infinitamente mais do que o nada. A Bíblia e, depois dela, o cristianismo confessam que o mundo é, apesar de todas as aparências, bom, porque é a criação de um Deus generoso. O cristianismo tem como primeiro papel afirmar que a vida presente é boa porque ela desemboca na vida eterna.

subumano, existem pedras, plantas e animais. Um mundo pós-humano seria um mundo pós-ético. IHU On-Line – A pós-modernidade seria uma

exacerbação existencialista, falando do pressuposto da existência antes da essência? Remi Brague – Melhor seria esquecer de uma vez o slogan de Sartre “a existência precede a essência”, que não é apenas mais do que um contra-senso sobre Heidegger. Parece-me, em todo o caso, que a genealogia da pós-modernidade é mais complexa. IHU On-Line – De que maneira a liberdade e

o determinismo podem ser relidos a partir do pós-humano? Remi Brague – Eles se conjugam de uma maneira perversa. O pós-humano poderia significar que o homem hoje é totalmente “livre”, mas que ele é livre de “determinar”, como ele quiser, às gerações futuras. Elas viveriam, então, numa total ausência de liberdade e não seriam mais do que a realização de um plano ou de um projeto exterior a elas. O mais horrível é que a liberdade dos planejadores não seria, segundo a concepção tradicional de liberdade, o poder de escolher o bem. Essa liberdade alcança a sua pureza máxima na ética. Mas a “liberdade” dos planejadores seria pura vontade de poder, pura embriaguez de criar sem medidas. Desejaríamos sermos o produto desse tipo de coisas? Isso seria realizar o pesadelo dos gnósticos dos primeiros séculos da era cristã: sermos as criaturas prisioneiras de um operário cruel.

IHU On-Line – Como fica a ética num mun-

do pós-humano? É possível ainda pensar numa ética nesse contexto? Remi Brague – A ética define o campo intermediário entre a razão teórica (digamos para simplificar: a faculdade que é capaz da matemática) e tudo o que diz respeito à nossa animalidade. É por esse campo intermediário que a razão pode influenciar nossa ação e não deixá-la à mercê dos instintos, dos desejos, das paixões. Se ele desaparecer, obteríamos o que C. S. Lewis chamava a “abolição do homem”: ficariam, de um lado, os anjos ou os computadores, do outro lado, os animais. Se um tal mundo fosse possível, a ética não poderia simplesmente existir, já que, no mundo

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A tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal Entrevista com Roberto Mancini

Roberto Mancini é filósofo e pesquisador de filosofia teórica e professor de hermenêutica filosófica no Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Macerata, na Itália. Publicou diversos livros e ensaios de ética e de filosofia da linguagem. Entre seus livros traduzidos ao português citamos Existência e gratuidade (1998) e Éticas da mundialidade (1999), publicados pela Editora Paulinas, de São Paulo. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, em 16 de outubro de 2006, Mancini fala que a visão dominante hoje é a de uma antropologia extremamente limitativa, que considera o ser humano como recurso (instrumento útil para produzir lucro) ou como excedente (um ser supérfluo e inútil).

IHU On-Line – Quais são as atuais antino-

mias da antropologia e da teologia? Roberto Mancini – As atuais antinomias da Antropologia e da Teologia não levam a uma contraposição entre elas, mas a uma falsificação de ambas. À identidade humana distorcida na figura do Homo economicus, contrapõe-se uma distorção não menos grave, aquela de uma identidade divina, concebida como exclusivamente típica de uma tradição étnica e como expressão de um poder pronto a exigir o domínio, a colonização, a guerra contra todos aqueles que são julgados “inimigos” ou “infiéis”. Nem o ser humano nem Deus vivo são assim; somente uma busca do rosto humano e misericordioso de Deus, que, ao mesmo tempo, ouça o surgir da identidade humana no trabalhoso caminho do aprender a amar, poderá abrir com fidelidade o horizonte de uma compreensão razoável da realidade, logo não só da humanidade e de Deus, mas também da vida do mundo. A verdadeira laicidade, como comum característica de todos no gênero humano e no ser criado, é o espaço hermenêutico em que uma tal procura é possível.

IHU On-Line – Quais são as diversas con-

cepções de ser humano? Roberto Mancini – Através do tempo e das culturas, surgiram diversas concepções do ser humano: desde aquelas que vêem o seu valor somente em casos privilegiados, até as universais, centradas na dignidade de todos, desde perspectivas coletivistas a impostações individualistas, desde pontos de vista que fazem dele parte de um todo (o mundo, a vida, a natureza, o divino) até pontos de vista que evidenciam a sua transcendência e unicidade. Hoje, a visão dominante, com a globalização, é o de uma antropologia extremamente limitativa, que considera o ser humano como recurso (instrumento útil para produzir lucro) ou como excedente (um ser supérfluo e inútil). Logo, pode-se dizer que haja dificuldade em reconhecer o real valor e a grandeza da identidade humana; este escasso discernimento, como conseqüência, leva a violar, de mil maneiras, os direitos humanos e a não dar atenção aos deveres humanos.

IHU On-Line – Como podemos caracterizar

o sujeito pós-humano? Quais são os nossos maiores desafios? Roberto Mancini – A categoria do sujeito póshumano surge como redefinição da nossa identidade com base na engenharia genética e nas possibilidades abertas pela tecnologia contemporânea. O pós-humano desponta como o espaço de construção de identidades funcionais, múltiplas, tecnológicas, mas substancialmente sem alma e sem autêntica humanidade. Devemos lembrar também que toda a semântica do “pós” (pós-mo34


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derno, pós-colonial, pós-humano) evoca uma renovação que nunca o é na realidade, mas somente um consumir-se e repetir-se com outras roupagens das tendências que se declaram superadas. A verdadeira tarefa essencial hoje é aprender a ver o valor humano universal, rosto por rosto, história por história, vendo junto o valor da vida do mundo. De uma visão ampla e completa como esta, pode resultar a ação da justiça restitutiva, que é o único caminho para a salvaguarda do ser criado e para o futuro da própria humanidade.

tanto como uma disciplina do saber, mas como o caminho histórico de emersão e de liberação da completa realidade humana na vida do mundo. IHU On-Line – Quais são as conseqüências

do pós-humanismo? Pode este levar a um redutivismo? Como podemos garantir que a humanidade não perca o umanum e a sua liberdade? Roberto Mancini – Como os humanismos que conhecemos foram parciais e ambivalentes, o pós-humanismo não representa por si só um caminho mais confiável e liberalizante, pelas razões que acenei. Eventuais “garantias” de tutela do humano e da liberdade devem ser procuradas, principalmente na disponibilidade para tomar conta dos efeitos do mal, para minimizá-los e superá-los, na ação daqueles que fazem parte das forças de cura da vida (educação, compaixão, misericórdia, responsabilidade generativa, perdão, esperança inteligência, generosidade, coragem, integridade, brandura), na escolha de partilhar a vida com os últimos da sociedade, na praxe de restituição dos direitos humanos e de assunção em primeira pessoa dos deveres humanos.

IHU On-Line – O sujeito pós-humano é um

sujeito auto-suficiente? Quais poderiam ser as conseqüências desta auto-suficiência? Roberto Mancini – O sujeito pós-humano não é de maneira nenhuma auto-suficiente, porque cada construção tecnológica é fragilíssima e exposta à deterioração e contradições, as quais, muitas vezes, mas nem sempre, fazem os efeitos da modernização darem um passo atrás e não um passo à frente no caminho da existência. Além disso, nenhuma realidade humana é efetivamente autosuficiente, mas vive, respira e floresce somente em uma rede de relações positivas com o outro por si, e com os outros. Quanto mais se persegue a ilusão da auto-suficiência, mais as conseqüências são autodestrutivas para o ser humano. Isso é válido também com respeito à relação entre o ser humano e o possível sentido da sua vida, o qual pede uma plena participação da pessoa e não o absurdo isolamento no falso caminho da auto-suficiência.

IHU On-Line – Qual será o espaço que ou-

tros animais terão no mundo pós-humano? O homem continuará a ser o centro das questões? Roberto Mancini – Mais do que seguir em um movimento linear que se esforça por ir para adiante, mas permanecendo sempre no mesmo trilho – o da lógica do poder –, a humanidade deve procurar a harmonização de todas as estruturas relacionais da vida. Logo, deve procurar também uma inédita aliança com o mundo natural e com as outras criaturas vivas, reconhecendo os seus direitos e praticando a universalidade como hospitalidade, ou seja, como a verdadeira justiça social, econômica, política, ecológica. Mas, para alcançar esta consciência ética, antropológica, cósmica e metafísica, é necessário aprender a ver, libertar o coração, a razão e a alma do delírio da onipotência, assim como da angústia da morte, que o inspira. Sabemos, também, que esse despertar já começou e que quem quiser participar desse percurso de liberação não está sozinho.

IHU On-Line – Quais são os caminhos que

estamos seguindo para buscar novos modelos de existência? Roberto Mancini – Fora do caminho economicista e tecnológico para renovar ilusoriamente a condição humana, o caminho mais fecundo e promissor me parece o da ampliação dos espaços da existência comunitária, no sentido de formas abertas de vida, em que cada um aprende a pensar segundo a relação, mais do que segundo si próprio, sentindo-se co-responsável pelo destino de todos. O diálogo intercultural, inter-religioso e interfilosófico tem a função de favorecer esta retomada da “antropologia” viva, compreendida não 35


Responsabilidade e transparência na pesquisa com células-tronco Por Pere Puigdomènech

Pere Puidomènech é professor de Biologia Molecular em Barcelona. Catalão, graduado em Física, doutor em Ciências Biológicas e pós-doutor em Biofísica, Puigdomènech é diretor do Instituto de Biología Molecular de Barcelona no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CID) do Conselho Superior de Pesquisa Científica (CSIC). Como pesquisador, trabalhou na Unité de Recherche en Biophysique, CNRS, Montpellier; no Portsmouth Polytechnic, na Inglaterra; no Max-Planck-Institut für Molekulare Genetik, em Berlin. Desde 2000, é membro do Comitê de Ética e Novas Tecnologias da União Européia. Participou do seqüenciamento do genoma da planta Arabidopsis thaliana, em 2000. É autor dos livros El gen escarlata (Barcelona: Rubens Editorial, 2000); Plantas transgenicas (Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2003); e ¿Que comemos? (Barcelona: Planeta, 2004). Trava intenso debate público na imprensa espanhola em torno do tema dos transgênicos e do uso das células-tronco. IHU On-Line entrevistou Pere por e-mail, no dia 28 de março de 2005, antes de ele viajar para os Estados Unidos, para uma série de conferências. O artigo que segue é sua resposta às nossas perguntas.

médica, ambas diretamente implicadas nos temas. Agora devemos todos responder com responsabilidade e transparência. O que se anunciou pode representar uma das legislações européias que oferece mais possibilidades tanto para a pesquisa biomédica como para a prática das diferentes alternativas de fecundação assistida. Tal como aparece na imprensa, é possível que se limite à prática denominada de mães de aluguel, algo que poderia ir na linha de um princípio de não-comercialização do corpo humano. Por outro lado, se abre a possibilidade de que um casal possa escolher as características genéticas do filho para tratar outro mediante transplante. Mas há outras conseqüências: a possibilidade do uso de embriões sobrantes da fecundação in vitro, com o consentimento dos pais; não se limitará o número de embriões que se produz nestes tratamentos sob alegação de interferência na decisão médica no processo. O uso de embriões sobrantes possibilitará que a pesquisa dirigida desenvolva os protocolos que deveriam permitir a produção de células capazes de regenerar tecidos e combater doenças, como Parkinson, infartos do miocárdio ou enfermidades em que um tipo de células não funciona, como é o caso do diabetes. Muitos outros projetos relacionados com estes estão avançando, e as possibilidades de aplicações são múltiplas. O uso das células embrionárias deu lugar a uma discussão complexa que impediu, em diversos países, se chegar a leis como a que se prepara em nosso país. De fato, na Europa, uma legislação assim não existe nem na França, nem na Itália, nem na Alemanha. Proporções significativas da população desses países rejeitam a destruição de

O Ministério da Saúde anunciou o envio ao Parlamento de uma nova Lei que modificará a regulamentação de temas que vão desde as condições em que fará a fecundação in vitro até o uso de embriões para a pesquisa com células-tronco e outras. Tal como se anunciou, a proposta abre as portas à pesquisa e à pratica médica em condições pedidas há tempos, especialmente pelas associações de pacientes e pela comunidade científica e

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embriões humanos, mesmo que isso seja inevitável, uma vez que se permite a fecundação in vitro. As pessoas vêem, nestas técnicas, o início de uma possível manipulação genética da espécie humana. Trata-se de discussões não triviais e que implicam decisões que não são fáceis para o legislador. Portanto, o uso de embriões humanos implica uma grande responsabilidade para os pesquisadores. Mesmo que só aos espanhóis repugnasse o uso de embriões humanos, essa utilização deveria ser feita em último caso. Uma das questões mais interessantes das que se abriram nos últimos anos, por exemplo, é o estudo de como o genoma de uma célula adulta se reprograma para dar lugar a embriões na transferência nuclear de células somáticas. É uma fascinante linha de pesquisa que pode chegar a ser importantíssima, se quisermos tecidos idênticos aos de um adulto, do ponto e vista genético. Muitos avanços científicos, nesta direção, podem ser dados com embriões de outros mamíferos que não da espécie humana. É evidente que nos interessam células que possam reparar tecidos em humanos e não curar ratos, mas minimizar o uso de embriões humanos é algo que deve fazer-se por respeito a um material precioso e para assegurar que o vai-e-vem da política não interfira no progresso das novas possibilidades médicas que a ciência nos abre. Também está claro que deve ser feito, ao mesmo tempo que se pesquisa com células embrionárias humanas, todo o possível na pesquisa em células-tronco procedentes de tecidos adultos. Qualquer linha de pesquisa prometedora deve ser levada a cabo para podermos resolver temas de saúde que interessam a todos. A priori, um tipo de pesquisa não deveria excluir a outro, e os resultados obtidos deveriam, essencialmente, ditar as prioridades. Assim, o uso das novas regras, que serão aprovadas em nosso Parlamento, deve ser feito com a maior responsabilidade por parte de todos. Não exagerar, de forma desmedida, as possibilidades médicas reais. O fato é que não sabemos se, algum dia, poderemos utilizar essas novas tecnologias. Seguimos afirmando que, daqui a dez anos, poderemos utilizar, de forma sistemática, na clínica, as pesquisas que agora estamos fazendo sobre este tema. No fundo, estamos dizendo que

não sabemos quando se tornará realidade. Todos esperamos que seja o quanto antes e cremos que precisamos rapidez nas pesquisas e que a esperança é grande. Mas, por mais que um pesquisador aposte numa linha de pesquisa, de forma alguma deve contribuir para a criação de falsas esperanças. É preciso lembrar que se trata de temas delicados em que a saúde de grande número de pessoas está em jogo. Lembremos que a terapia genética, outra grande esperança que ainda precisa ser pesquisada a fundo, segue, após anos de trabalho, com graves problemas em seus ensaios clínicos, mas que, esperamos, se resolvam. A responsabilidade no uso de técnicas em que há controvérsias significa transparência. As linhas de pesquisa que se desenvolvem devem ser aprovadas e acompanhadas por instâncias independentes, que asseguram haver razões suficientes para uso de embriões em cada projeto de pesquisa. Igualmente, que o grupo proponente tenha as garantias de levá-lo a cabo, não havendo alternativa a não ser o uso de embriões. Assim se faz no Reino Unido, e esse tipo de garantia também é importante em nosso país. Outro aspecto da transparência envolve a participação de empresas nesta pesquisa. Sabemos que estas técnicas requerem altos investimentos na etapa de pesquisa e nos ensaios clínicos. Portanto, é preciso estimular o investimento privado uma vez que as verbas públicas provavelmente serão insuficientes. Isso requer um certo tipo de proteção da propriedade intelectual, inclusive nas linhas celulares derivadas dos embriões humanos, como lembrou um recente informe do Grupo Europeu de Ética para as Ciências. Deverá estimular-se a criação de pequenas empresas biotecnológicas nas quais possam participar pesquisadores. Tudo isso implica grande nível de transparência. Se há uma respeitável proporção do nosso entorno repugna o uso de embriões, mais lhe repugnará a suspeita de que o uso de embriões se prioriza, porque alguém quer ganhar dinheiro com eles. Se há investimentos privados no desenvolvimento de técnicas baseadas em células-tronco, o que é legítimo e desejável, seus objetivos devem ser claros e devem distinguir-se das pesquisas com dinheiro público. A todo custo, devemos evitar conflitos de

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interesses, sobretudo num tema em que a opinião pública está muito sensibilizada. Não se deveria permitir a suspeita de que se tomem decisões que não estejam fundadas na necessidade do desenvolvimento da pesquisa, mas nos interesses eco-

nômicos das empresas. Está em jogo a credibilidade de uma lei e do sistema da ciência e tecnologia, que se faz com o consenso do da sociedade e garantias de nosso avanço no conhecimento.

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Conscientização como medida terapêutica Entrevista com Edimilson Migowski

Em setembro de 2004, o Ministério da Saúde brasileiro lançou o projeto de uma rede pública de bancos de armazenamento de sangue de cordão umbilical e placentário, o BrasilCord, que seria implantado ao longo de 2005. Contudo, desde janeiro de 2001, existem bancos privados de células-tronco de cordão umbilical. O pioneiro neste ramo é o Cryopraxis Banco de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário. É o maior do País e da América Latina, com mais de 4 mil embriões coletados e congelados. Para 2005, sua proposta é fazer-se presente em vários países andinos e também nos EUA. A instituição mantém parceria científica e tecnológica com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o Banco de Células do Rio de Janeiro e com o Programa Avançado de Biologia Celular Aplicado à Medicina – Associação Técnico Científica Paul Ehrlich. IHU On-Line entrevistou, no dia 28 de março de 2005, o diretor de marketing do Cryopraxis Dr. Edimilson Migowski, que é também professor de Infectologia Pediátrica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutor em Infectologia e mestre em Pediatria pela UFRJ, editor do Manual de vacinas da sociedade de pediatria do Estado do Rio de Janeiro (2004), é também co-autor do livro Guia prático de vacinação em empresas (2004), feito em parceria com Isabella Ballalai. Edimilson é secretário geral da Sociedade Brasileira de Imunizações, no Rio de Janeiro, e consultor em doenças infecciosas (diagnóstico, tratamento e prevenção) de várias empresas e diversos meios de comunicação. Não podemos deixar de frisar que é ainda articulista da revista Seu Filho e Você.

IHU On-Line – Quais são os medos que le-

vam as pessoas a quererem armazenar as células-tronco? Edimilson Migowski – Não são medos, e sim a conscientização da possibilidade de um dia poder utilizá-las como medida terapêutica em diversas doenças, desde as malignas, como leucemia e linfoma, até as crônicas, como esclerose múltipla, cardiopatias e diabetes. IHU On-Line – Como se faz a coleta, o que

se coleta e quais os cuidados necessários? Edimilson Migowski – Uma vez que a mãe deu à luz ao seu bebê, o médico ou a enfermeira, utilizando material descartável, espeta o cordão umbilical ligado à placenta e aspira o sangue contido nele. O sangue é coletado em bolsa apropriada e levado até o laboratório onde vários exames são realizados. Após estes procedimentos, o material restante é armazenado em tanques de nitrogênio líquido em temperaturas inferiores a 190º C negativos. IHU On-Line – Para que servirá esse mate-

rial coletado? Edimilson Migowski – Atualmente, podem-se utilizar as células-tronco de sangue de cordão umbilical no tratamento de vários tipos de leucemias e outros tipos de doença maligna. Existe uma grande possibilidade, em espaço de tempo muito curto, de utilização em diversas outras doenças conforme mencionado na questão anterior. IHU On-Line – Uma pessoa doente (doença

genética e mesmo leucemia) obterá a cura

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com as células do próprio corpo? Em outras palavras, os genes já não estão comprometidos, mesmo os coletados na hora do parto? Edimilson Migowski – Esta pergunta é excepcional. Lembre-se que não é apenas a presença de um gen que seria responsável por doenças conforme você mencionou. Vários são os fatores que poderiam desencadear um problema como este. O fato de você ter informações genéticas que poderiam predispor uma determinada doença não quer dizer que você a desenvolva um dia. Fazem-se necessários determinados fatores, como irradiação, infecções, agressores químicos, entre outros.

portes e acondicionamento especial do material, exames sorológicos, exames bacteriológicos e envio das células-tronco para qualquer país do mundo, caso o dono da amostra solicite, é de R$ 4.435,00. Nos anos subseqüentes, a taxa anual de armazenamento é de R$ 584,00. IHU On-Line – Quantos hospitais trabalham

com o Cryopraxis em coletas de sangue de cordão? Edimilson Migowski – As principais maternidades de todo Brasil trabalham com a Cryopraxis. No Rio Grande do Sul, o Hospital Mãe de Deus e o Hospital Moinhos de Vento são bons exemplos, mas também trabalhamos com os principais hospitais do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais.

IHU On-Line – Qual é o custo da coleta, do

congelamento e do armazenamento das células-tronco de um cordão umbilical? Há taxas anuais? Edimilson Migowski – O custo da coleta e primeira anuidade, já incluídos os gastos com trans-

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Células-tronco no tratamento do Mal de Parkinson Entrevista com Moacyr Faustino

Moacyr Faustino, advogado aposentado, é secretário do expediente da Associação Brasil Parkinson, uma entidade filantrópica particular, fundada em 1985, por um grupo de parkinsonianos, liderado por Marylandes Grosssmann (ela própria portadora da doença). É também membro do Conselho. A Associação presta inestimáveis serviços aos seus 2.000 associados, como fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, terapia ocupacional, oficina de artes com aulas de pintura, coral, atividades sociais, clube de xadrez, danças. Faustino é responsável pelo projeto Editoral da revista BeijaFlor, uma publicação voltada para parkinsonianos, seus familiares e amigos, editada pela Associação Brasil Parkinson. http://www.parkinson.org.br. IHU On-Line entrevistou Faustino, por e-mail, em 28 de março de 2005.

las-tronco, em especial as embrionárias, para o tratamento da doença de Parkinson? Moacyr Faustino – As expectativas são as melhores possíveis. Na verdade, atualmente, representam a única esperança de cura para a enfermidade. Não apenas para o Parkinson, mas também para outras doenças degenerativas, como Alzheimer, esclerose múltipla, diabetes, distrofia muscular, entre outras. Estamos muito otimistas, pois temos tido conhecimento de que muitas pesquisas (ainda com animais) têm demonstrado que é possível fazer com que o implante de células no cérebro possa vir a produzir a dopamina, que é produzido com insuficiência pelo organismo e que causa os sintomas da doença. IHU On-Line – Não há o perigo de que a libe-

ração das pesquisas com células-tronco crie expectativas irreais, visto que as pesquisas até hoje chegaram a poucos resultados concretos? Moacyr Faustino – Isso realmente pode ocorrer. É melhor ter alguma decepção no futuro do que nenhuma esperança no presente. Para quem, atualmente, não tem esperança de cura, qualquer avanço que se faça nessa área já representa muito. Praticamente, a doença de Parkinson ficou sem nenhum tratamento até 1969, quando surgiu o primeiro medicamento para tratar apenas os sintomas da enfermidade. Até hoje nada foi conseguido para curar a doença. Como bem afirmou o nosso presidente Samuel Grossmann ao jornal O Estado de S. Paulo, referindo-se ao interesse na liberação das pesquisas: “Luto por isso, pensando nos atuais parkinsonia-

IHU On-Line – Qual é a estimativa do núme-

ro de brasileiros e brasileiras portadores do Mal de Parkinson e qual é o impacto dessa doença na sociedade? Moacyr Faustino – Estima-se que existam cerca de 200 mil pacientes com a doença de Parkinson no Brasil. É uma doença bastante “democrática”, pois atinge a todos, independentemente de classe social, sexo, raça ou cor. A proporção é de aproximadamente 0,01% (um em cada mil) de toda a população, ou 1% (um em cada 100), se considerada a população acima de 60 anos. Esse é um critério universal, variando muito pouco de país para país. IHU On-Line – Quais são as expectativas da

Associação quanto às pesquisas com célu-

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nos, mas sei que as pesquisas e descobertas científicas podem levar anos e talvez não tragam benefícios para minha esposa, que tem a doença há quase 25 anos. Mas não podemos esquecer que é graças às pesquisas que, hoje, muitas doenças são curáveis”.

pesquisas com células-tronco em todo o mundo. Esperamos que agora também tenhamos pesquisas concretas em nosso país, pois temos cientistas capacitados para isso, e no mesmo nível dos que vivem no exterior. O que temos é menos investimentos nessa área, principalmente por conta dos poderes públicos. Quem sabe agora teremos um avanço nos investimentos.

IHU On-Line – A comunidade científica tem

sido transparente na apresentação dos resultados das pesquisas e todas as implicações necessárias até se chegar aos tratamentos, em especial da doença de Parkinson? Moacyr Faustino – Os resultados das pesquisas chegam ao nosso conhecimento por meio de algumas publicações, como jornais e revistas, além de noticiários em geral. Não temos um canal exclusivo de comunicação com a comunidade científica.

IHU On-Line – O sistema de saúde do Brasil

poderia criar alguma política pública que atenda aos diferentes pacientes com doenças degenerativas? Moacyr Faustino – Esperamos que isso venha a acontecer. Afinal, são milhões de pessoas que sofrem de doenças classificadas como degenerativas e que custam muito ao poder público. Imagine se até hoje não tivesse sido descoberta a penicilina. Qual seria o custo para o governo tratar de todos os doentes com doenças infecciosas? Nem dá para imaginar... Não é por outro motivo que o governo está procurando desenvolver “o maior programa de pesquisas com células-tronco para problemas cardíacos”. Dá para ter idéia da economia que isso representa, se houver sucesso nos resultados?

IHU On-Line – Um dos aspectos criticados

na aprovação da Lei de Biossegurança na Câmara dos Deputados foi a pouca discussão pública do tema e a mobilização das Associações de Pacientes. O senhor acredita que isso influiu na votação da lei? Moacyr Faustino – Acreditamos que o que mais influiu na aprovação da lei foi o maior conhecimento que os nossos parlamentares tiveram sobre o assunto por nossos principais cientistas. Infelizmente, alguns políticos não tinham (e ainda não têm) a menor percepção do que significa isso para a humanidade. Encararam o problema sob o ponto de vista religioso ou ideológico. Felizmente, a maioria da Câmara se inteirou melhor sobre o tema e ficou sabendo que nenhum crime irá ser cometido contra a vida humana. Além do trabalho dos nossos principais cientistas, a posição das associações, entre elas, a nossa, foi de fundamental importância para aprovação do projeto. Falaram fundo aos corações dos nossos políticos.

IHU On-Line – Qual é o posicionamento da

IHU On-Line – Como a Associação Brasil

Associação quanto ao uso das célulastronco embrinárias, tanto para a pesquisa como para a terapia? Com base em que argumentos? Moacyr Faustino – Nossa posição é inteiramente favorável ao uso de células-tronco embrionárias, tanto na pesquisa da cura como no simples tratamento dos sintomas. É preciso esclarecer que as células-tronco embrionárias, que serão utilizadas nas pesquisas e que poderão, no futuro, salvar a vida de milhões de pessoas, ou curar doenças hoje incuráveis, como a de Parkinson, são aquelas que estão destinadas ao lixo, pois não mais podem ser utilizadas para fertilização.

Parkinson vem acompanhando os estudos nessa área? Quais os elogios às pesquisas e quais as críticas? Moacyr Faustino – Estamos acompanhando, com o maior interesse, todas as informações sobre

IHU On-Line – Quais são os grandes dilemas que a Associação experimenta quanto a esse tema do uso das células-tronco, de modo especial as embrionárias?

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per to cri an ças e jovens afetados com doenças neuromusculares progressivas, condenadas irremediavelmente à morte: testemunhar o desespero dos pais que vêem seu filho, que nasceu saudável, perder a capacidade de andar, de elevar os braços e, finalmente de respirar. São eles que precisam ser ouvidos. Será que eles também não têm o direito de viver, amar e alegrar-se? Ou é mais digno preservar embriões congelados para sempre?”.

Moacyr Faustino – Não enfrentamos nenhum dilema pelo uso de células-tronco, inclusive as embrionárias. Como bem diz a nossa maior cientista, Dra. Mayana Zatz: “São células que estão congeladas há mais de três anos, em clínicas de fertilização, e não têm chance de se tornar uma vida, porque nunca serão implantadas em um útero. Seria fundamental que todos os que são contra as pesquisas com células-tronco embrionárias tivessem a opor tu ni da de de co nhe cer de

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“O sistema de pesquisa está regulado pela lei do mercado” Entrevista com Oliver de Dinechin

Olivier de Dinechin, jesuíta francês, é mestre em Teologia Moral e doutor em Demografia Geral. Leciona Teologia Moral, Ética Biomédica e Ética Familiar no Centre Sèvres, no Departamento de Ética Biomédica. Redator chefe da revista Cahiers de l’actualité religieuse et sociale, de 1975 a 1985, delegado do Episcopado francês para questões de ética biomédica e questões morais em relação à vida humana, de 1986-95, membro do Conselho Nacional de AIDS, de 1989-93 e do Comitê consultivo nacional de Ética (França) desde 1990, escreveu o verbete “Catolicismo Contemporâneo. A reflexão moral no catolicismo contemporâneo” no Dicionário de Ética e Filosofia Moral (Org. Monique Canto Sperber. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002) e os livros Le défi génétique (em colaboração J.-M. Moret ti, Centurion, 1987) e L’homme de la bioéthique (DDB, 1999). Entre os mais de 150 artigos recentes destacam-se “Les biosciences en débat” (In: Semaines Sociales de France, D’un siècle à l’autre, Bayard-Centurion, 2000); “Donner ou produire la vie” (In: Semaines Sociales de France, Que ferons nous de l’Homme?, Bayard, 2002); e “L’animation de l’embryon” (In: Sciences et avenir, n. 130, HS, mars-avril 2002). IHU On-Line entrevistou Dinechin por e-mail em 28 de março de 2005.

ções com ele) e o estatuto jurídico (as leis civis que o protegem). No nível ontológico, a discussão permanece aberta e talvez não seja possível dar uma resposta sem precisarmos recorrer a uma opção ética. No caso específico da Igreja Católica, por exemplo, mais do que dar definições do que seja um embrião, ela pode contribuir com perguntas para o debate. Já no nível ético, ela mantém uma posição mais firme: o embrião deve ser defendido como uma pessoa. As razões desta postura são essencialmente teológicas. Em continuidade com a Tradição, que se remete aos Santos Padres, ela afirma que o Criador começa a obra de criação humana a partir dos embriões. Além disso, os embriões não existem independentemente dos atos humanos que lhes deram a existência. Finalmente, no nível jurídico, como cristãos, cobramos a melhor proteção possível, especialmente não usando-os como um material para experimentação. O cardeal Jean Marie Lustiger e outros teólogos franceses, por exemplo, emitiram uma declaração a respeito do problema dos embriões congelados, defendendo sua conservação, embora lembrassem que o mal anterior foi tê-los congelado. IHU On-Line – Mas e os milhares de em-

briões congelados, o que fazer com eles? Oliver de Dinechin – Como já disse, não há uma solução moral satisfatória. A reflexão se orienta para o mal menor, ao menos: respeitar a humanidade enigmaticamente presente neles. Por outro lado, as pessoas que provocaram sua existência têm uma prioridade absoluta para decidir o que fazer com eles. Não esqueçamos que a decisão de congelar embriões já é em si mesma uma decisão gravíssima do ponto de vista ético.

IHU On-Line – Como podemos definir o es-

tatuto do embrião humano? Oliver de Dinechin – Parece-me útil distinguir três níveis: o estatuto ontológico ou filosófico (o que é um embrião humano), o estatuto ético (quais são seus direitos e quais são nossas obriga-

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parte do poder científico, médico social e político nos âmbitos nacionais e internacional.

IHU On-Line – Quais são as implicações éti-

cas em caso de uso científico e terapêutico dos embriões? Oliver de Dinechin – As células-tronco embrionárias estão muito próximas do estágio de embrião, vêm dos embriões, e/ou podem converter-se em embriões, portanto não deveriam ser usados como material de laboratório. Os objetivos terapêuticos não bastam para dar legitimidade a este uso científico. Um pesquisador pode objetar em consciência sua participação neste tipo de pesquisa. Contudo, na prática, me parece difícil impedir por completo o uso científico de embriões.

IHU On-Line – Hoje a emancipação dos se-

res humanos passa também por um processo tecnobiofísico. O desenvolvimento da ciência moderna, especialmente com o impulso das tecnociências da evolução e das tecnociências biomédicas, aponta para uma superação do ser humano como vivente simbólico e para uma crescente operacionalização da natureza humana como construção técnica. Como relacionar a simbólica e a técnica numa reflexão ética? Oliver de Dinechin – Não creio que esta “superação” seja verdade. Para mim, estamos diante de um esquecimento do ser humano como ser pessoal e social. Quando um ser humano sofre em seu corpo, aparece a pergunta pelo sentido. Sentido da sua vida nas suas relações fundamentais como a filiação, a maternidade e a paternidade, ou a relação entre homem e mulher. As ciências humanas mostram inúmeros aspectos por meio dos quais o homem e as sociedades buscam um sentido para a vida. É uma ilusão crer que a técnica pode, por si só, dar este sentido.

IHU On-Line – E das células-tronco adultas?

Oliver de Dinechin – Elas são diferenciadas, e por isso bastante semelhantes aos tecidos humanos. Ao contrário das células-tronco embrionárias, elas não podem converter-se em pessoas. Seguindo minha reflexão, não vejo dificuldade ética fundamental em usá-las para a experimentação ou para a terapêutica. IHU On-Line – Há implicações sociais, polí-

ticas e econômicas no tema? Oliver de Dinechin – Sem dúvida. Sou realista e chamo a atenção para um aspecto, entre muitos. Precisamos partir do fato de que o sistema de pesquisa, mais do que internacional, é global e por isso muito difícil de ser organizado e controlado. Está regulado pela lei do mercado e pelos grandes oligopólios que vão além das fronteiras nacionais. Na prática, os governos são impotentes frente a essa realidade que os ultrapassa.

IHU On-Line – Por que o debate sobre o uso

das células-tronco embrionárias tem sido mais de natureza político-social do que de natureza ética? Oliver de Dinechin – Considero que, apesar de os debates terem abordado a natureza ética, os argumentos esgrimidos deram mais importância ao bem-estar geral e futuro que para razões de respeito de seres individuais em situação enigmática e frágil e que não podem expressar-se.

IHU On-Line – Convivemos com uma divisão

entre o que é deixado à liberdade individual e o que deve ser normatizado em âmbito público e coletivo. Como trabalhar a ética nestes níveis? Oliver de Dinechin – Diria que precisamos conscientizar os responsáveis em cada nível e a opinião pública em geral. Os comitês de ética, incluindo os de âmbito internacional, podem ajudar a propor linhas e preparar convenções. Mas é necessário o compromisso positivo de todos os que têm uma

IHU On-Line – Qual poderia ser uma plata-

forma de discussão entre cientistas, médicos, filósofos e teólogos no tocante ao tema do uso das células-tronco embrionárias? Oliver de Dinechin – Entre os filósofos, se pode discutir como considerar em sua unidade as dimensões corporal e espiritual, material e moral, como reunir o vir a ser destas células. Devem ar-

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gumentar sobre o fato de que o que se diz do embrião se diz do ser humano em geral. Os teólogos cristãos estão próximos desses e contribuem para aprofundar o sentido que lhes brinda sua fé na criação e na encarnação. Igualmente, nutrem o debate com a meditação sobre estes mistérios que se levou a cabo desde os tempos dos Santos Padres até hoje. Os médicos e cientistas contribuem com base em uma prática que é profundamente humana, e não só biológica. Devem refletir sobre a humanização do manejo dos novos poderes que receberam da ciência da procriação e do feto. Os médicos devem questionar a fundo a pretensão de utilizar o humano como simples medicamento.

IHU On-Line – Como está o debate interna-

cional sobre esse tema? Oliver de Dinechin – Nos diferentes países que visitei, encontrei diversas posições. Na Europa, não é possível chegar a um consenso, tendo em vista estabelecer uma convenção comum sobre o uso, pois cada país tem suas próprias leis, mais liberais na Inglaterra, Espanha e Bélgica; mais rigorosas na Alemanha; médias, na França... Nos Estados Unidos, o presidente expressou sua posição, mas seu poder está limitado aos mecanismos que operam no nível federal, ficando um grande espaço de liberdade de pesquisa nos laboratórios privados.

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O embrião humano tem direito à vida Entrevista com Angelo Serra

Angelo Serra é jesuíta italiano e membro da Pontifícia Academia para a Vida. Livre Docente em Genética Humana (1961-96), foi pesquisador visitante junto à Medical Research Council Populatìon Genetics Unit, de Oxford. Professor visitante na Harvard University, em Boston (1965), professor de Genética Humana na Faculdade de Medicina Agostino Gemelli, da Universidade Católica del Sacro Cuore, de Milão, organizou o Instituto de Genética Humana no Policlínico Agostino Gemelli, de cujo Instituto foi diretor. É colaborador de 120 livros e publicou mais de 200 artigos em revistas internacionais sobre o tema genética humana, em especial sobre os aspectos bioéticos emergentes. É membro de quatro academias: a New York Academy of Sciences, a American Society of Human Genetics, a American Society for the Advancement of Science e a British Society of Cell Biology. É autor de L’uomo-embrione. Il grande misconosciuto (Ed. Cantagalli, 2003) e El inicio de la vida (BAC, 1999). A IHU On-Line entrevistou Angelo Serra, por e-mail, em 28 de março de 2005, após ele ter regressado de uma maratona de congressos nos Estados Unidos.

pêutica são gravíssimos abusos, porque, em cada uma destas tecnologias, vem intencional e gravemente violado o direito à vida que todo embrião humano tem desde o momento da sua concepção que resulta da fusão dos gametas paterno e materno. Naquele momento, com claros e indiscutíveis dados científicos, inicia a vida de um indivíduo humano que se autoconstrói, atuando gradualmente num plano-programa que traz inscrito no seu próprio genoma. IHU On-Line – Quais são as implicações éti-

cas da produção e uso científico e terapêutico das células-tronco embrionárias? Angelo Serra – A implicação ética fundamental que subjaz na produção de células-tronco embrionárais é a morte intencionalmente desejada e provocada de um sujeito humano no estágio de blastocisto, em torno do 15º dia, depois da fecundação. É necessário, de fato, extrair do blastocisto, constituído de cerca de 120 células, já organizadas, as cerca de 30 a 50 células, que formam a assim chamada Massa Celular Interna (ICM), as quais, postas em cultura e oportunamente tratadas, darão origem às células-tronco embrionárias indiferenciadas. Na realidade, este ato provoca a morte do dado sujeito humano no seu estágio embrionário.

IHU On-Line – Convivemos com práticas

como fecundação in vitro e uso dos embriões humanos para pesquisa, mas qual é o estatuto do embrião? Angelo Serra – Infelizmente, sob a pressão de uma ciência e de uma tecnologia dominantes, hoje com senso de onipotência, de absoluta liberdade de ação e de autonomia ética, o embrião humano tornou-se um puro objeto e instrumento de pesquisa. A fecundação in vitro, a produção de células-tronco embrionárias e a clonagem tera-

IHU On-Line – E em relação às adultas?

Angelo Serra – As células-tronco adultas são células presentes em organismo já formado e dotadas de características próprias. Elas são dotadas da capacidade de dar origem, em determinada situação, a células de um determinado tipo. Essas células-tronco se encontram em fetos abortados

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espontaneamente, no sangue do cordão umbilical, em todos os tipos de tecidos de organismos completamente formados. O seu uso, portanto, seja na pesquisa, seja na terapia não implica, de fato, um ato agressivo contra o sujeito. Antes, pode tornar-se fonte de doação. Por isso, os grandes desenvolvimentos e progressos das pesquisas sobre células-tronco adultas, sobre suas possíveis transformações e sobre suas aplicações no campo da medicina regenerativa demonstram, com toda a evidência, a inconsistência – mesmo somente sob o ponto de vista econômico – da vontade, em si perversa, de prosseguir a todos os custos as pesquisas e produção de células-tronco embrionárias humanas, sua diferenciação e transdiferenciação.

os médicos e os biólogos que operam assim, todos os embriões perdidos são de considerar-se homicídio doloso. Eles sabem claramente que são técnicas por eles utilizadas que impedem o seu desenvolvimento. O mesmo vale pelo menos para metade daqueles que são congelados: são mortos exatamente por causa desse tratamento. Já para os embriões congelados que sobrevivem ao congelamento, utilizá-los para a pesquisa implica a sua matança: é claro que não se pode praticar um mal para obter o bem. IHU On-Line – As associações de pacientes

e a comunidade científica e médica são as principais implicadas no tema da liberação das pesquisas e uso das células-tronco embrionárias. Para os pacientes, abre-se uma imensa esperança de utilizá-las de forma sistemática na clínica e na terapêutica. Para os cientistas, se abrem novas linhas de pesquisa. Como responder a esse quadro com responsabilidade e transparência? Angelo Serra – Uma primeira observação é que a maior parte das pessoas sofridas são enganadas por uma propaganda falsificadora da realidade, sustentada por aqueles que têm interesse em que o embrião não seja um ser humano, portanto pode não ser respeitado como tal e, antes, até pode ser morto, em vista do bem de outros. A segunda observação, que deveria fazer calar os especuladores das células-tronco embrionárias, é que, de 1998 até hoje, apesar de todo empenho para transformar as células-tronco embrionárias em preciosos instrumentos terapêuticos, os resultados obtidos são mínimos e não privados de risco. São prova disso a notícia da suspensão dos trabalhos sobre esta linha de pesquisa por três das maiores empresas farmacêuticas que haviam engajado muitos pesquisadores, os mais bem preparados. O fato veio à tona através de um artigo publicado na revista Science, de 21 março de 2003, “Le cellule staminali perdono il lustro del mercato” (As células-tronco perdem o brilho do mercado). A terceira observação é que qualquer que seja a técnica proposta, e que somente ponha em risco a vida do embrião – como, por exemplo, a crioconservação –, é eticamente inaceitável.

IHU On-Line – Alguns cientistas defendem

que o critério de morte cerebral também deveria ser usado no tema do uso dos embriões. Em outras palavras, que, por não terem cérebro, poderiam ser usados para a pesquisa e tratamentos. O que pensa sobre isso? Angelo Serra – É uma proposta que falha no seu fundamento lógico. Bem diversas são as situações. De um sujeito humano no qual foi constatada a morte cerebral total – feitos todos os exames necessários –, é certamente lícito usar os órgãos em vista de uma terapia. O embrião, ao invés disso, é certamente um sujeito humano vivente, que é morto para utilizar-se uma parte, as células da massa celular interna. IHU On-Line – Proporções significativas da

população rejeita o uso de embriões humanos para fins de pesquisa ou para tratamentos terapêuticos. Contudo, na fecundação in vitro, são produzidos embriões em excesso. Eles são armazenados e congelados e sua destruição parece inevitável. O que fazer com eles? Angelo Serra – A destruição dos embriões humanos produzidos em excesso na fecundação in vitro é ainda muito mais grave. Das estatísticas oficiais, emerge, com toda a evidência, que somente 10% dos embriões transferidos ao útero têm as condições para nascer e 90% são perdidos. Para

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IHU On-Line – O ser humano contemporâ-

Angelo Serra – Sem dúvida, não! Atualmente, todas as legislações vigentes relativas a estes dois amplos campos, num elevadíssimo número de nações, são, na maior parte, abertas a posições absolutamente inaceitáveis, mesmo sob o ponto de vista da ética natural.

neo convive com o que é deixado à liberdade individual e o que é normatizado em âmbito público e coletivo amplo. Como trabalhar a ética nestas dimensões? Angelo Serra – Não pode haver uma ética do compromisso entre o que é bom e o que é mau, entre o que é justo e o que é injusto e entre o que é lícito e o que é ilícito. A ética pública, na época atual, tornou-se, infelizmente, uma ética do compromisso, com todas as conseqüências, que são a desordem, a imoralidade e a injustiça. O compromisso do cristão, nesta situação, é duplo: aquele da fidelidade pessoal e plena à lei divina e aquele de iluminar o quanto seja possível sobre a verdade aqueles que sofrem as pressões culturais desviantes.

IHU On-Line – Uma das críticas que se faz à

Igreja Católica Romana é que ela fala em nome de todas as pessoas, quando estaria falando para os católicos. Como o senhor vê essa crítica? Angelo Serra – Uma atenta análise das interpretações, em diferentes campos, revela que a Igreja não faz nada mais que propor o que a mente humana revela, guiada somente à luz da razão. Isso é expresso claramente na Donum Vitae, onde se afirma: “A reflexão racional sobre valores fundamentais da vida e da procriação humana é por isso indispensável para formular a avaliação moral relativa às intervenções da técnica sobre o ser humano, desde os primeiros estágios do seu desenvolvimento”.

IHU On-Line – Elaborar leis para assegurar

a ética na pesquisa biomédica e para a prática da fecundação in vitro são uma boa resposta?

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O problema ético da destruição de embriões Entrevista com Juan-Ramón Lacadena

Juan-Ramón Lacadena é professor de Genética e Diretor do Departamento de Genética da Faculdade de Ciências Biológicas, da Universidade Complutense, Madri. Foi assessor da Comissão Especial do Congresso para o tema Fecundação in vitro e Inseminação Artificial (1985). Foi membro do Comitê Científico da Sociedade Internacional de Bioética e do Conselho de especialistas em Bioética e Clonagem, da Fundação de Ciências da Saúde. Participou do grupo de trabalho sobre o Estatuto do Embrião, no Instituto de Bioética. Desde 1998, é membro do Conselho da Subcomissão Episcopal para a Família e a Defesa da Vida, da Conferência Episcopal Espanhola. É autor de Genética y condición humana (1983), En el centenario de Mendel: La genética ayer y hoy (editor y co-autor, 1984), La genética: Una narrativa histórico-conceptual (1986), Nuevas técnicas de reproducción humana. Biomedicina, Etica y Derecho (en colaboración, 1986), En las fronteras de la vida: Informe sobre clonación (en colaboración, 1999), Fe y Biología (2001), Genética y Bioética (2002) e Dichos, refranes y Genética (2003). Mantém uma página Web sobre Genética e Bioética, com 58 temas: www.cnice.mecd.es/tematicas/genetica/. Lacadena foi entrevistado pela IHU On-Line, por e-mail, em 28 de março de 2005.

to do embrião”. A questão não é de fácil resposta, pois até hoje não existe consenso. Quando se fala do estatuto do embrião, precisamos distinguir que se pode analisar o embrião de diferentes pontos de vista ou aproximações. Portanto, podemos falar do estatuto biológico, do estatuto ontológico, do estatuto ético, do estatuto jurídico ou do estatuto teológico. A magnitude de todas estas perspectivas me impede de dar aqui uma resposta adequada. IHU On-Line – Quais são as implicações éti-

cas da produção e uso científico e terapêutico das células-tronco embrionárias? Juan-Ramón Lacadena – Sem sombra de dúvida, do ponto de vista da Medicina Regenerativa do futuro, a possibilidade de dispor de cultivos de células e de tecidos que poderão ser transferidos a um paciente para corrigir um tecido ou órgão danificado é um fim fantástico. Contudo, trata-se de um problema de fins e meios. O fim é fantástico, mas a custa de quê? Os meios para conseguir tais fins são a destruição de embriões humanos na fase do blastocisto. Nisso mora o problema ético. IHU On-Line – E das células-tronco adultas?

Juan-Ramón Lacadena – Seu uso não apresenta problema ético. A questão científica é que são células “multipotentes”, isto é, com um potencial inferior às células-tronco embrionárias, que são “pluripotentes”. Mesmo assim, alguns dados científicos parecem indicar que, em alguns casos, a potencialidade das células-tronco adultas chega a ser parecida com a das células embrionárias.

IHU On-Line – Há algum tempo convivemos

com a prática da fecundação in vitro, e, mais recentemente, com o uso de embriões na pesquisa com células-tronco. Por isso pergunto, qual é o estatuto do embrião? Juan-Ramón Lacadena – Há mais de 20 anos, discute-se, em todo o mundo, o chamado “estatu-

IHU On-Line – As associações de pacientes

e a comunidade científica e médica são as

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mais diretamente implicadas neste tema. Para os pacientes, abre-se uma grande esperança de utilizar, de forma sistemática, essa terapêutica e para a comunidade científica se abrem linhas de pesquisa. Como responder a isso? Juan-Ramón Lacadena – Muitas vezes, os pacientes e as associações de pacientes são manipulados e enganados. Passa-se a idéia, na qual eles acreditam, de que, se hoje forem autorizadas as pesquisas com células-tronco, amanhã estarão curados. A transmissão deste tipo de mensagem, dando falsas esperanças, depende da atitude ética dos pesquisadores. Creio que responsabilidade e transparência, da parte da comunidade científica, são fundamentais.

briões já existentes (“por aquello de que ‘el mal ya está hecho’”) na Espanha, em novembro de 2003. Está em discussão a Ley de Reproducción Humana Asistida. Depois de aprovada e ratificada, o futuro dos embriões sobrantes terá um destino. IHU On-Line – Convivemos com uma divi-

são entre o que é deixado à liberdade individual e o que deve ser normatizado em âmbito público e coletivo (em nível nacional e internacional). Como trabalhar a ética nestes diferentes níveis? Juan-Ramón Lacadena – Em termos de uma ética principialista, sabemos que os princípios da não-maleficência e de justiça correspondem ao âmbito público. Já os princípios da beneficência e da autonomia são de gestão privada.

IHU On-Line – Proporções significativas da

população condenam a destruição de embriões humanos, mas na fecundação in vitro são produzidos embriões em excesso que são congelados. O que fazer com eles? Juan-Ramón Lacadena – O problema dos “embriões sobrantes” dos programas de fecundação in vitro se deve, entre outras causas, ao fato de que o critério de “eficácia médica” predomina sobre posturas mais prudentes. Estima-se que, na Espanha, há entre 100.000 a 120.000 embriões crioconservados. O que fazer com eles? Existem, ao menos, cinco alternativas: 1) Que os pais (ou a mãe) dos embriões decidam utilizá-los numa nova tentativa de conseguir descendência; 2) Os pais podem doá-los para outro casal (ou mulher) numa espécie de “adoção biológica”. Mesmo que haja movimentos sociais ou religiosos estimulando esta solução, na realidade, ela não contemplará todos os embriões congelados; 3) Decidir deixar os embriões num “limbo da congelação” por séculos e séculos. (Mas pergunto: que sentido tem criar uma vida para logo depois deixá-la na latência para sempre?); 4) Descongelá-los e deixá-los morrer “dignamente”, palavras da Conferência Episcopal Espanhola; 5) Se estão destinados a morrer por descongelamento, então, que sejam usados na pesquisa, como no caso das células- tronco. Esta é a alternativa que, com medidas preventivas de consentimento informado, legalizou o uso de em-

IHU On-Line – Há o perigo de que se exagere quanto às possibilidades médicas das células embrionárias. Por que não pesquisar mais as potencialidades das células-tronco maduras? Juan-Ramón Lacadena – Entre as duas alternativas de pesquisa com células-tronco, o ideal seria que se escolhessem as células-tronco maduras. Evita os problemas éticos da manipulação e destruição de embriões. Não sou médico, mas, hoje, sou da opinião de que as células-tronco adultas estão oferecendo melhores resultados no que se refere à parcialidade dos primeiros resultados. Nesta questão, corremos o risco de que as informações nos cheguem distorcidas para tentar convencer a sociedade de que é melhor uma linha de investigação do que outra. Muitas vezes, disse que, por trás da manipulação genética, pode haver a manipulação social e que uma coisa é a “opinião pública” e outra, a “opinião publicada”, com a qual os grupos midiáticos da informação manipulam a sociedade. IHU On-Line – A legislação jurídica é a melhor resposta para assegurar a ética para a pesquisa biomédica e para a prática da fecundação assistida? Juan-Ramón Lacadena – Dada a diversidade de critérios existentes na sociedade civil plural, pa-

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rece razoável considerar a ética de mínimos (deveres perfeitos) e a ética de máximos (deveres imperfeitos), como afirma a professora espanhola Adela Cortina. As leis, todos obrigados a cumpri-las, deveriam basear-se na ética de mínimos, mesmo que qualquer pessoa possa pensar que, para sua ética de máximos, essa lei seja curta. Posso impor-me uma ética de máximos, mas sendo consciente de que não posso exigi-la dos demais.

mente tecnificada que aceita quase cegamente o “imperativo tecnológico” frente ao “imperativo categórico” kantiano. Muitos estão convencidos de que é impossível parar a ciência, pois “parar o progresso científico é como querer pôr cancelas no campo”, uma vez que “tudo que se pode fazer, será feito” (imperativo tecnológico). Entretanto, é importante lembrar que “nem tudo o que é tecnologicamente possível pode ser eticamente desejável” e que “o fim não justifica os meios”. Utilizo para resposta frases feitas muito conhecidas, mas esclarecedoras.

IHU On-Line – Hoje, a emancipação dos se-

res humanos passa também por um processo tecnobiofísico. O desenvolvimento da ciência moderna, especialmente com o impulso das tecnociências da evolução e das tecnociências biomédicas, aponta para uma superação da idéia de ser humano como vivente simbólico e para uma crescente operacionalização da natureza humana como construção técnica. Como relacionar a simbólica e a técnica numa reflexão ética? Juan-Ramón Lacadena – Na era atual do progresso científico, vivemos numa sociedade alta-

IHU On-Line – Qual poderia ser uma plata-

forma de discussão entre geneticistas, associações de pacientes, filósofos e teólogos? Juan-Ramón Lacadena – Os problemas bioéticos de hoje devem ser objeto de reflexão de uma ética dialógica discursiva e em fóruns que reúnam as mesmas características que a declaração Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos de 1997 assinalou para todos os Comitês de Bioética: independência, pluridisciplinaridade e pluralismo.

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Ser humano: genética e ambiente Entrevista com Victor Hugo Valiati e Annette Droste

Victor Hugo Valiati e Annette Droste são professores e pesquisadores do Centro de Ciências da Saúde da Unisinos. Victor Hugo Valiati é Presidente da Sociedade Brasileira de Genética – SBG/Rio Grande do Sul, biólogo pela UFSM, mestre e doutor em Genética e Biologia Molecular, pela UFRGS, e professor do Curso de Especialização em Biologia Molecular e Biotecnologia, da Unisinos. Annette Droste é licenciada em Biologia, pela Unisinos, doutora e mestre em Genética e Biologia Molecular, pela UFRGS, professora do PPG em Biologia e coordenadora do Laboratório de Cultura de Tecidos Vegetais – LCTV da Unisinos. Os professores concederam entrevista à IHU On-Line, em 28 de julho de 2003, sobre o caso do bebê britânico geneticamente modificado, após a leitura do artigo “A falha da bioética”, de Slavoj Zizek, publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 22 de junho de 2003.

que é divulgado pela mídia para a população, o que gera um clima de grande especulação. Victor Hugo Valiati – E não é só na população. O Comitê de Ética do Estado trouxe o Rael da Clonaid, da França, e aquele show bizarro dele, para inaugurar a discussão sobre bioética no Estado. É uma barbárie. Procuram-se essas pessoas que aparecem, mas que não têm consistência nenhuma. Ele foi pago, presumivelmente, com dinheiro público, sendo que, no Rio Grande do Sul, há pessoas qualificadíssimas para falar e discutir sobre clonagem, transgênicos e outros temas que envolvem a genética. Contudo, buscou-se um louco que diz ter um pacto com extraterrestres, que Jesus é ET e que a salvação é a clonagem. É desinformação, sensacionalismo, que vende jornal. A mídia deveria ter um maior cuidado quando produz suas matérias, procurando pessoas adequadas e responsáveis, e não simples aventureiros.

IHU On-Line – Qual é a opinião de vocês so-

IHU On-Line – Por que esse desencontro en-

bre o caso do menino britânico? Victor Hugo Valiati – Já no título da matéria há um erro. Não há modificação genética. A resposta está no meio do texto: “não criamos nada de novo, somente escolhemos o embrião que, acreditamos, poderia salvar a vida de seu irmão”. A última frase eu acho filosofia barata. “Medos das seqüelas emocionais que afetarão o irmão salvador”, pois, quando afirmamos algo ou mesmo cogitamos, devemos possuir bons argumentos que os sustentem, o que não é o caso. Annette Droste – O medo em relação às seqüelas é hoje um medo abstrato, pois trata-se de especulação. Deve-se ter um cuidado especial com o

tre uma pesquisa séria nas universidades e população e a mídia desinformadas? Victor Hugo Valiati – A universidade sempre esteve distante da população. Isso é um fato. Ela se aproxima muito na extensão. Na pesquisa, seus resultados aparecem como subprodutos, não diretamente. Quando olhamos cada equipamento em nossas residências, o alimento que chega à nossa mesa, os recursos tecnológicos utilizados para os cuidados com a saúde, há muito trabalho e desenvolvimento científico, e isso não aparece. O que produz o distanciamento, nos grandes debates, é simples de ser explicado, pois, todas as vezes em que a universidade é chamada para al-

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gum assunto, as pessoas querem resultados de hoje para amanhã. É assustador pensar que os mesmos possam demorar 4, 5 ou 20 anos. Política e economicamente, somos preteridos por saídas mais simplistas.

tra o quão relativo é o ponto de vista de cada área. Há uma necessidade muito grande dessa interação, inclusive para que possamos influenciar na elaboração de leis. A troca de idéias entre os profissionais comprometidos com essas questões é vital para que arejemos nossas idéias. O cientista deve sair do laboratório para ver como a sua produção de conhecimento pode e deve interagir com o mundo. Victor Hugo Valiati – Eu concordo que é muito enriquecedor esse debate. A minha única restrição é conceitual: refere-se ao funcionamento do sistema biológico, mas o filósofo está fazendo o papel dele de questionar, isso é muito pertinente. Cada um de nós tem uma função na construção e compreensão da sociedade, não dá para ficar isolado. A biologia deixou de ser restrita ao biólogo, e isso é importante para superar a fragmentação do conhecimento.

IHU On-Line – A possibilidade de eugenia

também é especulação. Não há motivos para se preocupar? Annette Droste – Há razão para preocupação, sim, mas acredito que a preocupação deve estar voltada menos para a ciência e mais para a política. A questão ética é complexa a partir do momento em que a ciência atingiu o atual estágio. Conquistamos um determinado conhecimento e este avançará cada vez mais. Estou convencida de que hoje não basta mais termos uma ética individual, que regia boa parte da sociedade, mas que precisamos ter uma ética coletiva. Por outro lado, as questões sobre clonagem e desenvolvimento de embriões selecionados também desviam a atenção de outros problemas. Ingerimos grandes quantidades de agrotóxicos diariamente pela nossa alimentação. Por trás disso, há um programa político e econômico, não de um país, mas do mundo inteiro. Entretanto, ninguém fala muito sobre isso. Os prejuízos serão muito grandes a longo prazo, mas, no momento, essa política é interessante...

IHU On-Line – Mas, ao longo de nossa con-

versa, vocês comentaram diversas discordâncias... Annette Droste – Do ponto de vista de um biólogo, em alguns momentos, esses autores fazem afirmações pouco sustentáveis. O que Zizek diz sobre a doença de Huntington não confere com a realidade e soa, inclusive, de maneira simplista. O que também me choca é a idéia que os textos passam: de que o ser humano é exclusivamente dirigido pela genética. Um geneticista sério não afirmaria isso. Realmente, nosso DNA comanda a maioria das informações necessárias para nossa existência. Mas não podemos subvalorizar o ambiente, o ambiente externo e interno, inclusive o ambiente intrauterino (antes do nascimento). O que recebemos de influência ambiental durante os nove meses de gestação tem uma influência muito grande sobre toda a nossa vida. Acredita-se, por exemplo, que um clone do Pelé daria origem a um outro jogador de futebol de sucesso. Ora, a clonagem de Pelé pode originar uma pessoa que não se interessa por futebol e possui um dom para a música, podendo vir a ser um grande concertista. Victor Hugo Valiati – O mesmo autor disse, também, que “ao lidarmos com a biogenética, perdemos a consciência disso e tratamos a nós

IHU On-Line – Como avaliam as opiniões de

pensadores como Habermas, Zizek, Fukuyama sobre as questões de reprodução, clonagem etc...? É importante a interação com outras áreas do conhecimento? Annette Droste – Com certeza. O cientista precisa da coexistência do filósofo, de um profissional que nos dê as diretrizes, inclusive, éticas. Precisamos desse diálogo e de fundamentação teórica. Acho que é efetivo para nós e para nossos alunos discutirmos em mesas-redondas com profissionais de diversas áreas. Também acho que o filósofo precisa do cientista, para ter um respaldo em sua área de conhecimento. Eu tenho participado de mesas-redondas com debates sobre questões como a do embrião, com diferentes profissionais. Cada um expressa uma opinião diferente sobre o momento em que inicia a vida humana. Isso mos-

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mesmos como se fôssemos simples organismos biológicos”. Mas não somos? Que pretensão pensar que não somos! Há medo de se reconhecer que cada um de nós faz parte de um sistema biológico, que somos produtos dos mesmos processos evolutivos dos demais seres vivos. Esta é uma das restrições que comentei anteriormente. A discussão é extremamente importante. No entanto, não podemos esquecer que a biologia produziu um conhecimento sólido do funcionamento dos organismos. Assim, estes devem fazer parte do debate como significam, e não como especulação. Annette Droste – Além disso, é oportuno dizer que o termo biogenética não existe. A genética se refere ao estudo do DNA, das características que são passadas de geração em geração. Não existe genética sem “bios”. O DNA é o cerne da vida. Ou agora existe uma “genética inorgânica”? Victor Hugo Valiati – Deveria haver pessoas com personalidade para dizer àqueles que querem aparecer, inventando termos, que eles estão falando da mesma coisa! Gostaria de salientar que tal fato é comum. Em todas as áreas da atividade humana, na economia, nas ciências humanas, nos deparamos diariamente com novas denominações, fusões de palavras com o intuito de redefinir conceitos e, algumas vezes, construindo verdadeiras anomalias, como o caso da tal “biogenética”. Alguém inventa uma palavra nova, depois se escreve um livro atrás do outro, e estamos fazendo uma ciência complicada que, na realidade, não existe.

altura de 1m80cm. No entanto, dependerá de uma boa alimentação, e não somente de sua “programação” genética. Annette Droste – A maior parte de nossas características é determinada pelos genes, mas fatores ambientais agem sobre as informações genéticas, atribuindo ao organismo a forma final dessas características se expressarem. IHU On-Line – Vocês estão querendo mos-

trar que a individualidade de cada ser humano não está em perigo? Victor Hugo Valiati – Pelo menos não biologicamente. Pode-se clonar o indivíduo, mas não todo o ambiente onde ele crescer. Inclusive os gêmeos monozigóticos, clones naturais, não vivenciam as mesmas experiências, nem intra-uterinamente (espacialmente estão em posições diferentes, a mãe fala mais com um do que com o outro etc...). Todo organismo tem sua individualidade. O egoísmo prevaleceu em todos os organismos e não temos como eliminá-lo dentro dos sistemas biológicos. Apesar de sua proliferação clonal, ou seja, sua similaridade genética, um grupo de bactérias pode redefinir seu comportamento em conseqüência de modificações ambientais. Cabe salientar que não significa o princípio da plenitude, ou seja, tudo pode acontecer. Há um limite de respostas que dependerá, geneticamente, do indivíduo e da espécie. IHU On-Line – Clonagem reprodutiva ou te-

rapêutica, em que casos vocês apoiariam? Victor Hugo Valiati – Não tenho nada contra a clonagem reprodutiva. No entanto, ela não deve envolver recursos públicos. É uma opção reprodutiva que a pessoa deve pagar pelo investimento realizado pelos laboratórios. O grande problema, atualmente, é metodológico: há muitos embriões que serão descartados. A clonagem terapêutica possui um alcance maior e não é somente uma alternativa reprodutiva, mas também curativa. Nesse último caso, deve haver investimentos públicos para torná-la acessível a um maior número de pessoas. Annette Droste – Eu me preocupo com os caminhos da clonagem reprodutiva. Hoje, existem muitas outras alternativas para a reprodução, que po-

IHU On-Line – Mas o que realmente pode ser definido dentro dos caracteres de um embrião? Victor Hugo Valiati – Todos os caracteres que têm poucos genes envolvidos podem ser determinados. Quanto aos demais caracteres, que dependem de um grande número de genes, podemos definir sua(s) função(ões). Contudo, todas suas relações com o meio intracelular e extracelular são um pouco mais complicadas. Assim, é factível definir individualmente a importância de cada gene, mas não todas as suas inter-relações. Por exemplo, hipoteticamente, poderíamos definir geneticamente que uma pessoa poderia alcançar uma

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deriam ser utilizadas antes de uma clonagem. Também me preocupo com as prováveis conseqüências psicológicas para uma pessoa-clone, que não possui as figuras paterna e materna. Quanto à clonagem terapêutica, acredito que possa vir em benefício da qualidade de vida do ser humano, embora não concorde com a técnica atual, pois utiliza-se um conjunto de células com capacidade para, de acordo com os estímulos quími-

cos recebidos, dar origem a um organismo inteiro ou um órgão específico. Portanto, ainda se utilizam células embrionárias. Potencialmente, esses conjuntos celulares poderiam dar origem a um indivíduo. Então, estamos colocando a questão no seguinte patamar: estamos desenvolvendo um músculo cardíaco em detrimento de uma vida humana. E é inaceitável que coloquemos os valores nesse patamar.

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“Há uma fantasia de que qualquer avanço médico é ganho independente do custo” Entrevista com Renato Zamora Flores

Renato Zamora Flores é graduado em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1984, obteve o título de mestre em genética no curso de pós-graduação em genética e, em 1997, o título de doutor em ciências no programa de pós-graduação em genética e biologia molecular pela mesma universidade, com tese intitulada Incesto: freqüências, efeitos e fatores intervenientes. É coordenador de projetos de extensão que prestam atendimento clínico e psicológico em escolas e na Febem. Coordena também o ambulatório de genética do comportamento no departamento de genética da UFRGS, que atende crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos. O professor conversou com IHU On-Line sobre o caso em questão no dia 1º de julho de 2003.

Renato Zamora Flores – Eu sou favorável ao aborto, quando o feto não tem sistema nervoso, até as 20 ou 22 semanas. Ele, nessa fase, para mim, não tem estrutura de gente. Se não, daqui a pouco, vamos pensar que até o espermatozóide tem estrutura de gente. IHU On-Line – E a clonagem ?

Renato Zamora Flores – Acho também uma hipocrisia. O DNA de ninguém é tão valioso que precise ser clonado. Isso é um gigantesco egoísmo, com tanta criança para ser adotada. Pela mesma razão, a fertilização assistida é um desperdício de dinheiro. Além disso, eu questiono a fantasia de que qualquer avanço médico é um ganho independente do custo. Será que qualquer gasto em tecnologia justifica qualquer ganho, uma vez que não há leitos nos hospitais, por exemplo? Isso não é verdadeiro.

IHU On-Line – Como o senhor vê o caso do

bebê inglês? Renato Zamora Flores – Constrange-me muito essa questão de produzir crianças com fins específicos, mas, na condição de pai, faria a mesma coisa. A questão maior é que essa criança seja bem cuidada, o restante fica em segundo plano.

IHU On-Line – Nesses casos, haveria uma

sobrevalorização do genético em detrimento de outros elementos? Renato Zamora Flores – Uma sobrevalorização de seu genético. Além disso, o mau uso da fertilização pode trazer vários embriões para ver se um deles é parecido com a Xuxa ou com Gianechini, ou qualquer outro galã de novela, e não para saber se ele é sadio. Eu vejo que se espera de nós, cientistas, que trabalhamos com genética ou biologia molecular, uma ética que a sociedade não tem. A sociedade é tremendamente irresponsável com as crianças, com a saúde, com a educação. Vamos cobrar comportamento moral de todos. O cientista poderia dizer à sociedade: “Estou sendo tão ganancioso e materialista quanto você”.

IHU On-Line – Estas novas possibilidades tec-

nológicas caminham em direção à eugenia? Renato Zamora Flores – Isso já é uma eugenia indiscutível. A utilização de métodos para melhorar o conjunto da espécie é eugênico. Só que é diferente da eugenia nazista, porque, neste caso, alguém é beneficiado. IHU On-Line – Qual é a sua opinião em rela-

ção aos direitos do embrião e à discussão sobre o início da vida humana? 57


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tos violentos ou baixa auto-estima, o lucro da indústria farmacêutica em busca de uma sociedade química? Renato Zamora Flores – Por um lado, parece a conquista de uma felicidade química, mas é um assunto complexo. Eu trabalho muito com crianças que apresentam transtornos de atenção. Em tribos de índios, isso não é uma doença. Na realidade, a sociedade está exigindo essa atenção da criança. Muitas crianças são hiperativas, o que pode ser resolvido com um video game, cursos, bons livros etc....Mas e as crianças pobres que não têm nada disso e são hiperativas? A elas eu dou um remédio. Acho que tanto você quanto eu preferiríamos tomar um remédio a fazer coisas pelas quais terminemos presos. O cérebro de uma criança que cresce em ambiente violento se adapta ao ambiente. Nem todas as pessoas que crescem em ambiente violento são violentas, mas todas as que são violentas crescerem nesse tipo de ambiente, e o cérebro se modifica, às vezes, irreversivelmente. Eu gosto das novidades tecnológicas, mas quando são democratizadas entre países e entre pessoas de um mesmo país. Não me horroriza que o homem brinque de Deus, mas o uso não democrático das tecnologias. Vamos acabar salvando só a vida dos ricos.

IHU On-Line – Como está a situação no

Estado do Rio Grande do Sul? Renato Zamora Flores – Aqui, há mais tomógrafo por habitante que no Canadá. Há vários programas que gastam dinheiro com doenças raras. Vejo uma supervalorização das tecnologias empregadas de forma ineficiente. Nas universidades públicas, produzimos novos testes que não são aplicados no SUS, e sim nas clínicas particulares, porque o SUS não se interessa. Mesmo em Porto Alegre, estando há tantos anos na prefeitura, o PT não conseguiu uma saúde boa e não é problema de recursos, mas de gerência. IHU On-Line – Atualmente, qual é o assunto

que mais ocupa seu tempo de trabalho e pesquisa? Renato Zamora Flores – Eu trabalhei muitos anos com genética. Fiz o mestrado nessa área. Atualmente, trabalho num ambulatório de Genética do Comportamento, com duas questões: comportamentos violentos e com uma certa militância de divulgação científica para ajudar a valorizar as tecnologias pelo benefício público que elas possam trazer, e não pelo mero avanço da tecnologia. IHU On-Line – Como o senhor vê o uso de

medicamentos para resolver comportamen-

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“É o maniqueísmo entre o endeusamento e a demonização da ciência” Entrevista com Volnei Garrafa

Volnei Garrafa é presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília e membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde. Defensor da ciência livre, desde que sua aplicação seja controlada de forma participativa, o médico concedeu entrevista telefônica à IHU On-Line, em 28 de julho de 2003.

de cor de olhos e outras características humanas, é interferência na gênese. Isso é tentativa de purificação de raça. Não estou pensando nas conseqüências para cada um. Eu fico pensando que não é moralmente aceitável que se definam essas coisas, pois, a partir disso, você abre a perspectiva de começar a selecionar sempre os mais aptos. Isso é prática eugênica. A opção sexual, por exemplo. Você vai definir o sexo. Isso é espantoso! Começa-se a gerar desequilíbrios demográficos no mundo com conseqüências imprevisíveis. Deve-se trabalhar num controle dessas tecnologias. Eu não sou contra os avanços tecnológicos. A ciência deve ser livre na busca do conhecimento, desde que as pesquisas sejam feitas dentro de parâmetros éticos. A conseqüência da descoberta, da aplicação tecnológica, que é o que a ciência busca, precisa ser controlada. E o controle tem que ser social e não pode ficar na mão de cientistas; precisa ficar na mão das democracias modernas, participativas, plurais etc.

IHU On-Line – O que o senhor acha do caso

do bebê britânico? Volnei Garrafa – Eu trabalho na Universidade de Brasília. A nossa linha é da bioética light. Nós não partimos de absolutos morais, por mais conflito que isso possa trazer. Partimos do princípio da busca da qualidade da vida, desde que isso se dê dentro de parâmetros éticos, obviamente. Nesse caso específico, há uma vida humana que está em jogo. Se esta medida não fosse tomada, essa vida provavelmente seria perdida. Então, esses casos, que marcam um limite, têm que ser discutidos caso a caso, aprofundados cuidadosamente por comitês de bioética: multidisciplinar, quanto à formação, e pluralista, quanto ao ponto de vista de moralidade. Eu não digo que tenha que haver leis universalizadas, porque isso é muito difícil

IHU On-Line – Até aonde deve ir a pesquisa

nas universidades e até onde essa pesquisa pode se tornar prática social? Volnei Garrafa – A pesquisa tem que ser livre. Eu defendo a liberdade da ciência. A busca da ciência precisa ser a busca do conhecimento, que deve ser antecipatório. Se o conhecimento tivesse antecipado a Aids, não teria morrido tanta gente. A aplicação da tecnologia, que é a conseqüência do que vem com a ciência, deve ser controlada. Temos de trabalhar com mais prudência nesse campo. Por exemplo, todos esses aspectos de reprodução assistida vieram da descoberta da ciência. Já se sabe que é possível fazer uma pessoa de

IHU On-Line – Estamos nos aproximando

da construção de uma sociedade na qual algumas pessoas escolhem os atributos genéticos de seus descendentes? Volnei Garrafa – Sou absolutamente contrário a isso. Para mim, trata-se de eugenia. É exatamente por isso que eu estou defendendo a contextualização de cada caso. A questão de definição de sexo,

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olho azul, mas fazer todo mundo de olho azul, não. É possível, porque, a partir dessa pesquisa, de repente se pode controlar outras doenças, outros problemas. A pesquisa não é só para aquilo especificamente. Consegue-se trabalhar com clonagem terapêutica de células de cordão umbilical com a descoberta da busca da cor do olho.

são nacional de bioética, e é urgente sua criação. A Sociedade Brasileira de Bioética, a qual estou presidindo atualmente, encaminhou o expediente para o Presidente da República, pedindo isso. Foi uma decisão do 6º Congresso Mundial, realizado aqui em Brasília, no ano passado. A Presidência da República encaminhou isso, há dias atrás, para o Ministério da Saúde e Ministério de Ciências e Tecnologia. A nossa proposta é que essa comissão fosse criada pelo Presidente da República, como na França, onde já existe, desde 1982, uma comissão ligada ao Primeiro Ministro. Na Itália, também é ligada ao Primeiro Ministro. No Brasil, parece que está se caminhando para ser criada pelo Ministério da Saúde. Tudo bem, mas o ideal seria ser criado pela Presidência da República, porque essa comissão não tem que discutir tecnologia, e sim moralidade. É necessário haver uma comissão ampla. A francesa tem 40 membros com representantes de todos os setores da sociedade. A Sociedade Brasileira de Bioética está à disposição do governo para contribuir na construção de uma proposta para uma comissão nacional. Isso precisa ser muito discutido com a sociedade, para ela realmente ter força depois.

IHU On-Line – Como está essa situação,

aqui no Brasil, no campo da experimentação genética? Que passos se tem dado? Volnei Garrafa – O Brasil está muito atrasado em termos de legislação em todos esses campos mais polêmicos. Por exemplo, na área de reprodução assistida, o primeiro bebê de proveta no Brasil nasceu em 1984. Nós estamos em 2003 e ainda não há regulamentação para a fecundação assistida no Brasil. Este é um exemplo típico. A prática está lá na frente e a legislação lá atrás. O Congresso Nacional discute essas coisas de forma muito polarizada. É o maniqueísmo entre o endeusamento e a demonização da ciência. Temos que procurar o diálogo, a democracia, a educação, a informação, o aprimoramento dos canais democráticos. O País não conta ainda com uma comis-

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“Há muita informação genética codificada nas raças tradicionais” Entrevista com Ian Hacking

Ian Hac king é fi ló so fo da ciên cia. Ele gra du ou-se na Universidade de Columbia e na Universidade de Cambridge, onde estudou no Trinity College. Doutorou-se em Cambridge e lecionou por vários anos na Universidade de Stanford, e, mais tarde, na Universidade de Toronto. Em 2001 foi apontado para a cátedra de Filosofia e História dos Conceitos Científicos do Collège de France. De sua vasta produção acadêmica, destacamos: Representing and intervening. (Cambridge: Cambridge University press, 1997); Por que a linguagem interessa à filosofia? (São Paulo: UNESP, 1999); The social construction of what? (Cambridge: Harvard University Press, 1999); e Historical ontology (Cambridge: Harvard University Press, 2002). É mundialmente reconhecido como um dos mais importantes e originais filósofos contemporâneos. Sob o título “Linguagem, racionalidade e discurso da ciência”, o casal de filósofos canadenses Ian Hacking e Judith Baker ofereceu um seminário de 19 a 23-03-2007 no curso de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos, sob a coordenação dos professores doutores Adriano Naves de Brito e Anna Carolina Krebs Pereira Regner. Em entrevista concedida à IHU On-Line, em 23 de abril de 2007, em Porto Alegre, Hacking falou sobre inúmeros aspectos que tratou em suas conferências: pessoas como alvos móveis de classificação; Raça, genética e identidade biossocial; e Nietzsche: “Assombrosamente, mais depende do como as coisas sejam chamadas do que do como as coisas sejam”. De acordo com Hacking, “há muita informação genética codificada nas raças tradicionais ou [na] origem geográfica. Não é só negro, branco e amarelo. Você pode distinguir com probabilida-

de genética significativa, olhando para a origem genética, se o legado genético, ou a maior parte dele numa pessoa, vem da Itália ou da Noruega. Se a pessoa é européia, vão poder te dizer se ela é ‘nórdica’ ou ‘mediterrânea’, a não ser que tenha havido muitos casamentos mistos. Precisamos nos dar conta de que isto simplesmente é um fato e dissociá-lo de toda e qualquer implicação de racismo”. Sua vinda à Unisinos repercutiu amplamente no meio filosófico como um dos eventos mais importantes de 2007. IHU On-Line – O senhor afirma que nós mu-

damos assim que conhecemos mais sobre nós mesmos. Como o conhecimento pode nos dar condições de nos tornamos um novo tipo de pessoa? Em que sentido as pessoas são “alvos móveis”? Ian Hacking – Antes de mais nada, eu não disse que pessoas são alvos móveis. Eu disse que classes ou tipos de pessoas são alvos móveis. Falo de um tipo específico de ciência que vai da sociologia, passando pela psiquiatria, até a medicina clínica. Quando um sociólogo ou psiquiatra clínico ou fonoaudiólogo quer saber mais, por exemplo, sobre o autismo, é claro que talvez queiram saber mais sobre esta criança específica, ou aquele adulto. Mas, no fundo, o que querem saber é o que causa o autismo, como posso tratar o autismo. Então, o alvo móvel não é a criança nem o adulto, mas todo o tipo da pessoa, como costumo dizer: a criança autista ou o adulto autista pensado como um tipo de pessoa. A postura costumeira é a de pensar que existe aquela “coisa” chamada autismo, que é uma deficiência nos indivíduos, e queremos descobrir mais sobre ela. É claro que ali

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existe algo, mas o que ela é, evolui ao longo do tempo, à medida que a redefinimos, que a conhecemos melhor e na medida que pessoas autistas se conformam a certos estereótipos sobre como deveriam ser. Pode-se compreender isto melhor no caso de assim chamados autistas “de alto funcionamento”, os quais desenvolveram um modo de vida, em parte à luz do que se supõe saber a seu respeito, mas em parte também resistindo a isto. E os médicos mudam então sua opinião sobre o que são autistas. Portanto, não são os indivíduos que são alvos móveis, o que naturalmente podem ser em outro sentido, mas sim o tipo de pessoa, algo que não é tão fixo como, por exemplo, um tipo de metal o é na mineralogia: se você se interessa por níquel, você saberá quando estará lidando com níquel, mas se estiver interessada em autismo, ele poderá não continuar sempre igual. Tomemos um exemplo da vida real: eu me interesso pelo mineral jade23, mas a gema para jóias na verdade é um mineral bem distinto. Na China, costumavam trabalhar com um tipo de jade, até que em 1784 descobriu-se um novo tipo de jade na Birmânia, agora chamado de jadeíta24, que então se tornou o mais valioso. Bem, estou falando de um mineral bem definido, na verdade de dois minerais. O nome “jade“ surgiu quando os espanhóis vieram para a América do Sul e viram os nativos usando o jade como remédio, usado no lado das costas, e o chamaram de “iade” em espanhol, que se tornou jade em inglês e algo parecido em português. Portanto, estou falando de uma substância química muito bem definida. Sabemos muito mais a seu respeito: a análise química da jadeíta verde brilhante chinesa foi feita em 1846. Podemos enunciar todos os fatos a seu respeito – mas continua sendo a mesma substância. O historiador da medicina, ao lidar com autismo, se deparará com muitos problemas reais: não conseguimos identificar autismo no passado com clareza, porque as pessoas não eram reco-

nhecidas como autistas. Alguns especialistas em autismo querem identificar no passado certos indivíduos como autistas. Com efeito, em novembro de 2008 haverá um congresso muito grande da Sociedade Real e da Academia Britânica em Londres, onde discutirão casos históricos de autismo e talento. Eu irei a essa conferência, mas discordo totalmente de suas premissas, porque não acredito que se possa projetar autismo para o passado da maneira como posso projetar aquelas duas substâncias jade e jadeíta para o passado. IHU On-Line – Quer dizer que apenas com

as características é impossível identificar esse problema no passado? Ian Hacking – Não é impossível, mas é muito difícil, porque autismo não é “apenas” um distúrbio neurológico, mas é um modo específico de se comportar numa comunidade e numa sociedade. Autista “de alto funcionamento”, suponhamos que seja (não sabemos se é) um tipo de má programação genética que produza estruturas neurológicas diferentes no cerébro. Pode ser que alguém em 1840 tenha tido esse tipo de defeito genético, talvez até consigamos identificá-lo. Então, mesmo assim, tal pessoa não terá sido autista da mesma forma como uma pessoa é autista hoje. Esta é uma das razões pelas quais digo que o tipo de pessoa, o autista, é um alvo móvel. Mas não que indivíduos sejam alvos móveis. Claro, todos somos [alvos móveis], mas isto é outra coisa. Eu uso [essa formulação] como uma metáfora bem específica. IHU On-Line – Recuperando outro de seus

tópicos de suas conferências aqui na Unisinos, em que medida podemos ser conhecidos por nossos genes ou pelas companhias que escolhemos? Ian Hacking – Eu não sei. É uma questão que o futuro dirá. Estive conversando com o professor

Jade: pedra ornamental muito dura e compacta, variando, na cor, de esbranquiçada a verde-escura. Designa a associação de dois minerais, a forma em nefrite da actinolite e um mineral chamado jadeite. É geralmente empregada em objetos de adorno, em estatuetas etc. (Nota da IHU On-Line) 24 Jadeíta: mineral do grupo das piroxenas, inossilicatos de cadeia simples encontrados em múltiplas rochas ígneas e metamórficas, em muitas das quais constituem o grupo mineral dominante. (Nota da IHU On-Line) 23

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Salzano25 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele é um dos especialistas brasileiros em estrutura genética, particularmente dos povos ameríndios no Brasil. Não temos a menor idéia de como essa gente quererá identificar-se no futuro: se pelo entorno social ou se pela origem genética, e até que ponto haverá uma interação, se vamos nos realinhar. As pessoas estão começando a formar grupos de pessoas com as mesmas características genéticas. Isto é mais típico atualmente entre pessoas que apresentam fatores de risco para certa doença: elas querem juntar-se, elas se reúnem quintas à noite, e, aos poucos, vão formando grupos sociais e mantêm companhia genética. Isto está acontecendo atualmente, mas não sei o que vai acontecer no futuro. Estou falando de um movimento, algo realmente novo na história da raça humana. Acabo de dizer à Professora Ana Carolina Regner – isto eu não contei nem para minha esposa – que decidi enviar minha saliva para várias empresas de genética diferentes para que determinem minha história racial, não porque isto me importe, de forma alguma, mas apenas como experimento, para ver se todos dão a mesma resposta. Atualmente, há três empresas principais online em inglês, uma inglesa e duas americanas, de alto gabarito, que por uma soma considerável, cerca de R$ 750, te darão um print-out genético – na verdade não é muito, daqui a um ano baixará para cerca de R$250, e as empresas baratas o farão por R$100. Então posso me dirigir a quinze empresas diferentes. Não custa tanto assim, e vou receber todos esses resultados e descobrir até que ponto concordam entre si. Isto não poderia ser feito cinco anos atrás. Muita gente, por diferentes razões, está muito interessada em descobrir algo sobre suas raízes.

IHU On-Line – O senhor poderia falar um

pouco sobre como os novos eventos médicos mudaram as antigas concepções de raça? Quanto eles afetam os grupos sociais que formaremos ou reconheceremos? Ian Hacking – Preciso dizer novamente que não posso predizer o futuro. Querendo ou não, ao falar de raça ou de grupos geográficos, costumava-se afirmar com a maior certeza, até recentemente, durante 30 anos, que duas pessoas de uma mesma raça tradicionalmente não têm geneticamente nem mais nem menos em comum que duas pessoas de raças completamente diferentes. É o que se costumava dizer, em função de um artigo muito influente, de um geneticista e biólogo molecular muito importante, Richard Lewontin26. Ele afirmou que se você tomar meus genes e os genes de outro canadense com ancestrais escoceses e do norte da Grã-Bretanha (no Canadá há muitos deles), e comparar meus genes com os de alguém que vive no noroeste da China, os meus não serão mais similares aos do anglo-canadense do que aos do habitante do noroeste da China. Isto não é verdade! Com efeito, foi somente nos últimos três anos que as pessoas encararam a realidade de que isto realmente não é verdade. Em certos casos específicos, por razões práticas, algo que na palestra na Unisinos abordei, no caso de um antígeno humano para leucemia, as pessoas estão tendo os assim chamados registros raciais de medula óssea por aproximadamente 20 anos agora. Então, estamos começando a perceber que os tradicionais agrupamentos geográficos ou de ancestralidade também portam consigo muita informação genética. Por um tempo, dizíamos que esse negócio de raça não existia, idéia apoiada pelos cientistas. Agora estes estão dizendo que existe, efetivamente, uma grande quantidade de mar-

Francisco Mauro Salzano: historiador natural, especialista em genética e em biologia molecular pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde leciona. Doutor em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor pela Universidade de Michigan, Estados Unidos. Autor de quase 180 artigos técnicos e nove capítulos de livros, escreveu, entre outros, Evolução do mundo e do homem: liberdade ou organização? (Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1995);The evolution and genetics of Latin American populations (Cambridge: Cambridge University Press, 2002); e DNA, e eu com isso? (São Paulo: Oficina de Textos, 2005) (Nota da IHU On-Line) 26 Richard Lewontin: biólogo e geneticista norte-americano, importante por sua contribuição para o desenvolvimento de uma base matemática para a genética populacional e teoria evolutiva. É pioneiro na noção do uso de técnicas da biologia molecular. Autor de, entre outros, The triple helix: gene, organism, and environment. Cambridge: Harvard University Press (2000). (Nota da IHU On-Line) 25

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cadores genéticos para a origem geográfica. Isto obviamente tem que mudar a forma como temos pensado sobre raças. Racistas – refiro-me a autênticos racistas loucos, que falam da nação ariana e esse tipo de coisa; é muito fácil encontrá-los na internet – costumam dizer que isto prova que eles estavam certos desde o princípio, de que Hitler estava correto desde o começo. Isto é besteira. Essas identificações geográficas não têm implicação alguma para qualquer diferenciação em termos de habilidades, qualidades ou qualquer outra coisa. Ao mesmo tempo, na minha opinião, a estratégia correta é ser bem explícito e claro, e dizer que há muita informação genética codificada nas raças tradicionais ou [na] origem geográfica. Não é só negro, branco e amarelo. Você pode distinguir com probabilidade genética significativa, olhando para a origem genética, se o legado genético, ou a maior parte dele numa pessoa, vem da Itália ou da Noruega. Se a pessoa é européia, vão poder te dizer se ela é “nórdica” ou “mediterrânea”, a não ser que tenha havido muitos casamentos mistos. Precisamos nos dar conta de que isto simplesmente é um fato e dissociá-lo de toda e qualquer implicação de racismo.

(Food and Drug Administration) norte-americano liberá-lo como medicação específica para um grupo racial – algo que ocorreu pela primeira vez. Isto provocou um clamor geral e muito forte, houve todo tipo de reunião a respeito. Haverá um congresso para esclarecer todo esse tipo de coisa, inclusive as questões éticas pertinentes ao assunto – penso que será em junho deste ano. Algumas pessoas dizem que realmente não deveríamos ter medicamentos baseados em raça porque isto estimula raça e racismo. Já outras dizem que isso ajuda as pessoas! Portanto, essas questões estão ligadas a aspectos éticos e morais. Outras têm uma atitude mais sutil. Elas dizem que é quase certo que isto não é algo que está específica e profundamente na estrutura química e biológica dos afro-americanos, e sim, muito pelo contrário, está ligado ao estilo de vida e à pobreza; na verdade, a pesquisa seria sobre pessoas de determinada classe social, em vez de sobre pessoas de determinada classe de cor. Talvez tenham toda a razão, e este é um dos grandes problemas da sociedade americana: não há dinheiro para se investigar desigualdades sociais. Isto eu descobri muito cedo, quando meu interesse estava voltado para a questão do abuso de crianças, por volta de 1970, mais ou menos, ou um pouco mais tarde, quando a política e as leis norte-americanas sobre abuso de crianças passaram por uma mudança radical. Temos um registro por escrito sobre essas discussões, quando elas se deram. Um dos principais políticos envolvidos nessa mudança das leis foi o vice-presidente dos Estados Unidos, Walter Mondale27. Temos isto registrado: quando quiseram introduzir aspectos como “muitas vezes os pobres abusam e batem em seus filhos porque vivem em condições horríveis, por isso toda a sua vida familiar desmorona” – aí ele disse, categoricamente, que abuso de crianças não é um problema social! Abuso de crianças não é um problema ligado à pobreza! Não admitem nenhuma pesquisa sobre esta questão, se não as pessoas ficarão confusas! – Isto é um disparate! Asneira total! É dificílimo introduzir investigação social ou de classe nos Estados Unidos. Você pode fazer pesquisa sobre raça, mas não sobre as

IHU On-Line – Quais podem ser as maiores

dificuldades éticas que esses novos eventos médicos podem nos trazer? Ian Hacking – De certo modo, a nova medicina sempre cria novos problemas éticos. Um problema ético é simplesmente que estão obtendo uma noção clara das novas conseqüências da genética para nossas noções antigas de raça, parando com as insinuações de pensamento racista nisso tudo. Há três anos, nos Estados Unidos, houve testes com um medicamento especificamente – como diziam – baseado em raça, ligado ao tratamento de insuficiência cardíaca congestiva, problema este muito mais freqüente entre afro-americanos do que em americanos com ancestrais europeus. Havia um medicamento projetado para ser particularmente bom para afro-americanos com insuficiência cardíaca congestiva, que mostrou ser especialmente bom para eles, a ponto de o FDA 27

Walter Mondale: politico norte-americano, 42º vice-presidente dos Estados Unidos (1977-1981) no mandato de Jimmy Carter. (Nota da IHU On-Line)

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consequências da pobreza. Então, uma das questões éticas que surgem é que talvez toda essa assim chamada medicina baseada em raça seja uma conseqüência da negativa americana em encarar de frente a desigualdade social. Eu vejo isto como uma questão ética. É uma questão muito prática, e como todas as questões da vida real ela é muito complexa, diferenciada, política etc. etc.

teza, é nominalismo em algum sentido simples. Não penso que seja literalmente verdade que aquilo que as coisas são chamadas seja inefavelmente mais importante do que aquilo que elas sejam em si. Existe essa idéia de que denominar uma coisa determina o que ela seja. Penso que isto vale mais em relação a seres humanos do que em relação a minerais ou pedras preciosas como o jade. Pode ser importante no mercado, no qual o nome de uma pedra pode representar alguma coisa, mas, ao fim e ao cabo, o que ela é em si é mais importante. Entretanto, não penso que isto valha para muitas das nossas classificações de pessoas. Estou profundamente impressionado com o aforismo de Nietzsche28, mais especificamente pela seção 58 de A gaia ciência29. É realmente um problema, e que sempre volta à tona no pensamento humano. Nessa conferência de 22 de março, introduzi alguns textos de um antigo pensador taoísta na China, de 2.300 anos atrás. Ele parece dizer quase a mesma coisa. As pessoas parecem perplexas, freqüentemente confusas com a relação entre nomes e coisas – por pelo menos 2.300 anos, neste caso.

IHU On-Line – O senhor poderia mencionar

alguns aspectos sobre sua última conferência aqui na Unisinos? Quais são suas principais críticas ao aforismo nietzscheano “Há algo que me causa a maior dificuldade e continua a causá-la sem descanso: assombrosamente, mais depende do como as coisas sejam chamadas do que de como as coisas sejam”. Seria ele uma espécie de nominalismo? Ian Hacking – Bem, ele diz que os nomes que se dá às coisas são imensamente mais importantes do que aquilo que elas são. Isto com certeza enfatiza nomes. Nominalismo abrange muitas coisas. É um termo filosófico usado desde 1492, não na Antigüidade, é um termo da escolástica. Com cer-

Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, conhecido por seus conceitos além-do-homem, transvaloração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno retorno. Entre suas obras, figuram como as mais importantes Assim falou Zaratustra (9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998); O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916); e A genealogia da moral (5. ed. São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que nunca o abandonou, até o dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema de capa da edição número 127 da IHU On-Line, de 13-12-2004. Sobre o filósofo alemão, conferir ainda a entrevista exclusiva realizada pela IHU On-Line edição 175, de 10 de abril de 2006, com o jesuíta cubano Emilio Brito, docente na Universidade de Louvain-La-Neuve, intitulada Nietzsche e Paulo. A edição 15 do Cadernos IHU Em Formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche. (Nota da IHU On-Line) 29 A gaia ciência (Die fröhliche Wissenschaft): título da última obra da fase positiva da filosofia de Friedrich Nietzsche, publicado em 1882. A expressão “Gaia Ciência” é uma alusão ao nascimento da poesia européia moderna que ocorreu na Provença no século XII. Deriva do Provençal, a língua usada pelos trovadores da literatura medieval, em que gai saber ou gaya scienza corresponde à habilidade técnica e ao espírito livre requeridos para a escrita da poesia. Dividida em 5 capítulos, a obra tem 383 aforismos e é nele que aparecem, pela primeira vez, suas teorias sobre o eterno retorno e a morte de Deus. (Nota da IHU On-Line) 28

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As biotecnologias e a construção social de um corpo perfeito Entrevista com Lucien Sfez

Lucien Sfez é professor de Ciência Política na Universidade de Paris 1 – Panthéon-Sorbonne, onde dirige o Departamento de Comunicação, Tecnologias e Poder, o Centro de Investigação e de Estudos sobre a Decisão Administrativa e Política (CREDAP) e a Escola Doutoral de Ciência Política. Após ter trabalhado sobre a ideologia da decisão linear, racional e livre, importante para a administração nos anos 1960 e 1970, Sfez dedicou-se a estudar a ideologia da comunicação nos anos 1980 e 1990, e depois, a ideologia-utopia da “saúde perfeita”, nova religião deste início de século. Ele consagrou os seus mais recentes trabalhos à dupla tecnologia/poder. Entre seus livros publicados, citamos Le rêve biotechnologique (Paris: PUF, 200) e Technique et idéologie: Un enjeu de pouvoir (Paris: Seuil, 2002). Em português foram publicados os seus livros A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia (São Paulo: Loyola, 1995) e Crítica da comunicação (São Paulo: Loyola, 2000). Lucien concedeu entrevista à IHU On-Line, em 24 de outubro de 2005.

as de depois de amanhã. Sempre me interessei pelas tecnologias dominantes do momento. Por exemplo, nos anos 1960 e 1970, a tecnologia dominante com o aparecimento do computador era a NCB – Nationalisation des Choix Budgétaires (Nacionalização das Escolhas Orçamentárias). Ou seja, graças ao computador tentaram criar cenários científicos sobre o que deveria normalmente se realizar. Nesta primeira seqüência, me interessei muito pelas decisões, pela maneira como se podem tomar decisões nessas condições. Decisões que são tomadas nessas condições são eficazes? Por exemplo, o senhor McNamara30, que era Secretário da Defesa dos EUA, tinha tomado a decisão, com o presidente Kennedy, de invadir Cuba31. Por quê? Por que os com pu tado res di ziam isso, e que iria com certeza dar certo, porque era uma excelente decisão técnica e tecnológica, e que Cuba era incapaz de responder a tal ataque. Bem, da mesma forma, os computadores disseram que o Vietnã seria vencido sem problemas pelos Estados Unidos, que tinham um grande número de aviões e de bombas e os meios tecnológicos de informação. Era o que dizia o computador. Esqueceram da possibilidade de uma estratégia de disseminação. Em um território muito vasto disseminaram tudo com bombas. Os americanos não tinham pensado nisso, tinham pensado em um exército contra o outro, numa grande imbecilidade. Foi isso que critiquei na época. A ultra-racionalização. Dizia que há muitos elementos irracionais na decisão.

IHU On-Line – Como aconteceu sua passa-

gem acadêmica do processo da comunicação para a elaboração de uma teoria sobre a utopia da saúde perfeita? Lucien Sfez – Esta passagem se explica pela adaptação. As tecnologias dominantes hoje não são as mesmas de amanhã e as de amanhã não são

Robert McNamara foi secretário de defesa dos EUA nos governos de Kennedy e Johnson, além de ter sido o 5º presidente do Banco Mundial, de 1968 a 1981. (Nota da IHU On-Line) 31 Aqui, o entrevistado se refere ao episódio de novembro de 1962, por ocasião dos mísseis russos instalados em Cuba. (Nota da IHU On-Line) 30

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Pensar as decisões de outra forma

dade da imprensa escrita e a publicidade audiovisual. Esse era um aspecto da coisa. O outro era que começaram a me dizer que, graças ao computador e à inteligência artificial, era possível mudar radicalmente a vida das pessoas. Foi esse tipo de discurso que ouvimos mais tarde em uma segunda “camada”, nos anos 1980 e nos 1990: o discurso suplementar sobre a Internet. Diziam que iria mudar a consciência humana, que iria suprimir as desigualdades, que iria permitir a educação para todos, o lazer para todos etc. Isso vai recriar a comunidade em sua base? É possível em alguns casos, mas será muito mais limitado do que se imagina. É preciso adaptar a alguns casos e a certos territórios.

E justo no Ocidente, houve, na Europa, um grande entusiasmo que mudou esta hiper-racionalização tecnocrata no final do governo de De Gaulle32 e de Giscard33, presidentes da república na época. Não somente em Paris, mas em vários lugares na Europa se queria sair disso. Era um dos efeitos indiretos da revolução de 1968, de querer pensar o sistema de decisões de outra forma. E, então, se ouviu dizer que a política iria mudar as coisas. Era justamente o retorno da política contra a tecnocracia. Escrevi um livro sobre isso, não traduzido no Brasil nem em Portugal. Chama-se L’enfer et le paradis – Politique symbolique34. Ele mostra que pode haver, em certas condições, um retorno das políticas. Isso não durou muito, pois as ilusões da esquerda, tanto na Europa como em qualquer país, não duram. Os homens continuam iguais.

Uma crítica à comunicação tecnológica Foi aí que fiz minha crítica à comunicação, que era uma crítica à comunicação tecnológica. Não critico a comunicação como tal, evidentemente, mas como comunicação tecnológica, que afirma poder resolver os problemas da comunicação social. E chego, então, à sua questão, pois não poderia respondê-la sem explicar o que eu disse até agora. Nesta passagem da tecnologia da comunicação à saúde perfeita, há uma coisa que tenho tendência a dizer: que as modas tecnológicas evoluem constantemente. E o que foi considerado, em uma determinada época, como a forma mais maravilhosa de racionalidade, hoje se tornou ridículo. Ninguém acredita que a própria política possa mudar o que quer que seja. Mas é melhor isso do que nada. Melhor isso do que a ditadura. Quanto à comunicação tecnológica, ela própria não é eterna, pois a moda passa. Isso não quer dizer que a Internet seja tão negativa, nem que eu seja contra a televisão. Quer dizer que me falaram de coisas ilusórias e que um dia terminaram por se dar conta de que se trata somente de um instrumento, como o carro que me permite andar por aí.

O interesse pela comunicação Comecei a me interessar pela comunicação no início dos anos 1980, uma vez que sentíamos que a esquerda não resolvia os problemas que afirmava poder resolver. Esse interesse surgiu, primeiro, porque havia uma grave crise no audiovisual e surgiam muitas idéias tecnológicas, um grande número de canais. Isso não existia antes. Cito o exemplo da França, quando, no princípio dos anos 1950, havia apenas um canal. Depois, apareceu um segundo nos anos 1960 e um terceiro nos anos 1970. Eram três canais em todo o país. A partir do momento em que as tecnologias nos permitem ter um grande número de canais, acontece uma crise no audiovisual. Houve, igualmente, uma crise econômica nesta época. Quem iria pagar por isso? Como a publicidade se apresentaria? O que iria ocupar o lugar da publicidade dos jornais? Há toda uma relação entre a publici-

Charles de Gaulle (1890-1970): general e presidente da França de 1958 a 1969. (Nota da IHU On-Line) Valéry Giscard d’Estaing foi presidente da França de 1974 a 1981. (Nota da IHU On-Line) 34 SFEZ, Lucien. L’Enfer et le paradis. Critique de la théologie politique. Paris: PUF, 1978. (Nota da IHU On-Line) 32 33

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Qual será o próximo golpe tecnológico?

gista na França, brincando, mas com razão: “Hoje não se morre mais do coração”. É verdade. E, se você tiver um acidente cardíaco, mesmo no interior, você será salvo no hospital. Você morrerá do coração se estiver preso em um engarrafamento, após ter tido um acidente cardíaco. Mesmo o câncer teve progressos consideráveis, não de forma tão espetacular como as doenças cardíacas, pois é muito complicado. E, quando houve o projeto genoma, fomos alertados. Ele consiste em analisar todos os genes do indivíduo, de toda a humanidade, pois temos o mesmo capital genético. Quando houve o projeto genoma, decidi trabalhar nesse campo.

A Internet é um bom instrumento para a correspondência. Mas para fazer pesquisas, não creio, pois nada pode substituir uma pesquisa conceitual. É o conceito que se elabora em sua cabeça que permite interrogar os arquivos. Então, não inventemos história. Eu sabia que essas coisas iriam passar, que estavam passando. Então, pergunto-me qual será o próximo golpe. Qual vai ser o próximo golpe tecnológico? Pois é sempre no campo tecnológico que isso acontece. Então vi que na imprensa o que acontecia era cada vez mais significativo. Tudo isso ia girar em torno da ciência. Mas qual? Quais as ciências que duram? Ao final, compreendi que isso se faria com a biologia, porque ela corresponde ao nosso corpo e não há nada mais importante no mundo do que isso. Desde que o homem existe, ele quer ser eterno. É um sonho muito antigo. Hoje, se vê que isso pode se realizar. Não totalmente, mas em parte. Segundo a Bíblia, no início dos tempos, havia homens e mulheres que viviam 500 anos. Está escrito lá. Evidentemente, é uma metáfora, como muitas coisas que estão na Bíblia. Biólogos estão pesquisando, por exemplo, os genes do envelhecimento e querem alongar a vida. Há biólogos que dizem que, trabalhando sobre esse tipo de gene do envelhecimento, vamos poder viver normalmente até 120 anos, em média. Não esqueçamos que se dorme três meses por ano nos países desenvolvidos. Não falo do Brasil, ou, em todo o caso, falo do Brasil da classe rica.

Biosfera 1: um projeto “louco” dos americanos Fui também atraído por um outro projeto americano espetacular, que foi o Biosfera 1, o contrário do Biosfera 2. Biosfera 1 era uma pequena unidade que foi criada no Arizona, com 3.400 espécies vegetais, alguns animais e oito humanos, quatro homens e quatro mulheres, que ficaram encerrados lá durante dois anos em um hangar de vidro que só deixava passar os raios solares para permitir a fotossíntese. Tudo era fechado. Houve mulheres que se relacionaram com os homens, e outras não. Como na vida normal. Ficaram trancados por dois anos. Alimentaram-se do que era cultivado na terra e de animais criados. Até o ar foi produzido por fotossíntese. Era um projeto louco dos americanos para ter um planeta limpo, sem poluentes. Esse projeto era apoiado pela NASA e um dia iria ao espaço, pois seria preciso enviar colônias espaciais desse modelo. Dei-me conta de que se havia ido longe demais nesse tipo de brincadeira, criando-se populações de seres artificiais, os quais se tinha programado a vida, aos quais se daria de comer, se permitiria ter filhos etc., e que, em seguida, ficariam doentes e depois morreriam. E isso foi o cúmulo da racionalidade abstrata nesse domínio. É verdadeiramente a sobrevivência da espécie humana como seres artificiais. Interessei-me por isso simplesmente porque vi que há uma revolução com o espírito público,

O desejo do corpo perfeito Esse processo de prolongar a vida é uma vontade de ir além. Então, eu questiono: como vai ser a aposentadoria? Estaremos mal nessa questão. E é claro que com boa saúde, pois ninguém vai querer viver tanto sem saúde. Então nos damos conta de que as populações dos países desenvolvidos trocaram todas as suas aspirações de ideologias políticas, igualitárias, justicialistas, por uma vontade individualista de ter o corpo perfeito, ou quase perfeito. Como disse meu cardiolo-

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na passagem da obsessão fanática pela comunicação tecnológica para uma obsessão fanática pelo corpo. Como muitas pessoas, tenho um computador que utilizo todos os dias, não tenho nada contra. Simplesmente não faço dele o centro de minha vida. Todavia, isso era dito nos anos 1990. Dizia-se que o computador iria mudar tudo. A mesma coisa para a saúde perfeita hoje, mas aí de maneira muito mais durável. Toda essa tecnologia se liga ao corpo, à sobrevivência, e a uma sobrevivência quase eterna. A passagem de um assunto a outro se explica pela passagem das modas tecnológicas.

desiguais do mundo, a busca da saúde e do corpo perfeito? Lucien Sfez – Vou ser detestado pelos brasileiros pelo que vou dizer. Se há algo que os brasileiros não suportam é que critiquem seu país. Eles aceitam criticá-lo e o fazem. Mas, quando um estrangeiro critica, ficam furiosos. São extremamente suscetíveis. Então você quer que eles fiquem brabos comigo? IHU On-Line – E, então, como o senhor vê a

questão da saúde no Brasil? Lucien Sfez – A saúde perfeita não é um sistema. Não há sistema de saúde social ou privado que seja perfeito. Em um país tão desigual como o Brasil, é impossível se pensar em um sistema de saúde privado para a maioria da população. Então, só é possível pelo sistema público. Não quero dizer com isso que o sistema público de saúde funcione tão bem assim. Mesmo para os mais pobres, funciona muito mal. Ainda mais se considerarmos o fato de que os hospitais são lugares cheios de gente competente. A medicina brasileira não está sendo contestada. Ela tem uma tradição, é uma boa medicina. Simplesmente, nos hospitais públicos, tem gente demais. Se você tem um problema, marcarão uma consulta para daqui a três meses. Se você tem uma crise cardíaca, a mesma coisa: “Venha daqui a três meses”. Se tiver uma peritonite, três meses. Você terá tempo de morrer várias vezes. O único meio de se tratar no Brasil é o de passar pela assistência privada. É o que faz a classe média. Não falo somente dos ricos: a classe média se empenha em poder pagar o serviço privado e poder entrar em clínicas privadas.

IHU On-Line – E, sobre a cultura contempo-

rânea, o que o senhor diz sobre as várias tentativas de se chegar à imortalidade? Lucien Sfez – Em primeiro lugar, não é uma idéia nova. Há vários textos sobre essa questão. É um velho sonho, como o de voar. Esse sonho está mais próximo de se realizar hoje, certamente. A cultura da super-humanidade, da eternidade, da imortalidade, se desenvolve em virtude da criação de medicamentos em todo o mundo. Cada subcultura toma formas particulares. No Brasil, isso existe há muito tempo. Quer-se um corpo absolutamente perfeito, então se passa o tempo todo a se refazer e mudar o corpo e o rosto. Não digo que isso não exista na França, mas no Brasil isso de desenvolveu particularmente. Falo do culto da beleza, que não quer ser efêmera, mas sabemos que a beleza é efêmera. O Brasil quer ser bonito, conservado sob o conceito eterno de beleza. Na França, somos os campeões de barbitúricos. Não suportamos a mínima contrariedade; em conseqüência, tomamos medicamentos para ficarmos calmos, felizes. É preciso admitir que se possa ter tipos de contrariedades, de contradições, de raivas, o que as pessoas não querem, então tomam medicamentos. Cada país tem suas características, mas todos querem viver totalmente em boa saúde, sem contradições, de forma helênica e eterna.

O novo sagrado do Brasil: a beleza do corpo Parece-me que o Brasil, com seus 160 milhões de habitantes, tem 40 milhões que são muito pobres, 40 milhões que são ricos, e 80 milhões que estão no grupo que é chamado de classe média. Os 40 milhões de pobres podem morrer; entre os 80 milhões, há muitos que não podem pagar a assistência privada, que também vão morrer. A

IHU On-Line – Como o senhor fez estudos

sobre o Brasil, na sua opinião, como se manifesta no nosso país, que é um dos mais

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parte que paga pode continuar vivendo. O que sobra para a saúde perfeita? Sobra o culto do corpo, o culto do esporte, a beleza dos homens e mulheres, em todas as classes da sociedade. Isso é o novo sagrado. O sagrado cotidiano dos brasileiros que não têm dinheiro para se tratar é, evidentemente, a beleza do corpo. É o novo sagrado do País. Tem também a magia de poder embelezar uma vida que não é muito bela. Penso, por exemplo, na França, na Bélgica, ou, ainda, na Inglaterra. Mesmo a Inglaterra tendo dificuldades, possui um sistema de saúde que funciona bem. Nos Estados Unidos, no tempo de Bill Clinton, tentou-se aprovar uma lei sobre o sistema de saúde pública para todos, principalmente para os pobres, e que foi recusado pelo Congresso. Há algo como entre 45 e 50 milhões de americanos que podem morrer. Se eu disser isso nos Estados Unidos, serei expulso. Mas é a realidade. Se você cair na rua, irão conduzi-lo ao hospital. Depois, apresentarão a fatura e se você não tiver como pagar, tudo bem. Mas que médico irá acompanhá-lo? Que medicamentos você tomará? Você poderá morrer.

maioria reinante faz interiorizar os comportamentos. A utopia é mais complexa. Ela tecnicamente corresponde a critérios literários. Começou por Platão, passando por todos os utópicos do século XV. Há cinco características literárias na utopia: a primeira é o isolamento. A ilha utópica, de Thomas More (advogado, escritor e político inglês, autor do clássico A utopia. São Paulo: Martins Fontes, 1993) é uma ilha isolada dos outros, de difícil acesso. A segunda é o fato de que, bruscamente, a comunidade utópica pode instalar regras. Por exemplo, quando houve a doença da “vaca louca” na Europa, no outro dia, as pessoas pararam de comer carne. Foi 50% da população européia que agiu dessa forma. Esse é um modo de governo utópico. A terceira característica são as regras de higiene, a transparência, a limpeza. A quarta é a técnica como solução de todos os problemas. A técnica é, ainda, um instrumento totalitário da utopia. A quinta característica é o retorno às origens, pois elas nos reconduzem a Adão, ou seja, a antes que o homem tenha sido tocado pela decadência dos costumes, da sociedade etc. Não é por acaso que os teóricos do genoma chamaram a genética de Adão II. É a idéia de que se vai retornar à natureza graças à tecnologia.

IHU On-Line – Como o senhor define o

conceito de utopia da saúde perfeita? Lucien Sfez – A utopia não funciona como a ideologia. A ideologia funciona pela dominação, a

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O corpo e as novas tecnologias Entrevista com David Le Breton

David Le Breton é professor de sociologia e antropologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Estrasburgo. Ele é autor de, entre outros, Usages culturels du corps (Paris: L’Harmattan, 1997); Anthropologie du corps et modérnité (Paris: PUF, 1998); Signes d’identité (Paris: Éditions Métailié, 2002); L’adolescence à risque (Paris: Hachette Pluriel, 2003); e Les conduites à risque (Paris: PUF, 2004). O livro Adeus ao corpo. Antropologia e sociedade (Campinas: Papirus, 2003), de David Le Breton, foi apresentado no dia 12 de agosto de 2002, no evento Abrindo o Livro, promovido pelo IHU, pelo Prof. Dr. José Roque Junges, do PPG em Ciências da Saúde da Unisinos. David Le Breton foi entrevistado, por e-mail, pela IHU On-Line, no dia 1º de novembro de 2004.

mundo “pós-evolucionista”, “pós-biológico”; os americanos falam atualmente em “pós-humano”. Uma ala radical da tecnociência pretende remanejar este corpo, reconstruí-lo a fim de torná-lo eficaz, em total performance e durável. Sonha-se em acoplar a informática e a carne, esperando desembaraçar-se da carne. Geneticistas nos afirmam, sem rir, que bem cedo as doenças terão desaparecido da superfície da terra. Cada sociedade fantasiou sobre as fontes da juventude, e as nossas não escapam disso, apenas lhes falta terrivelmente o humor. Quer-se mudar o corpo para mudar a vida, mas é a vida que nos muda. Há uma supervalorização da técnica como instrumento de salvaguarda do mundo. Cai-se, de maneira ingênua, no mito do “progresso” da ciência, confundindo progressão das técnicas e “progresso” moral, quando, a meu ver, há uma relação inversa. Parece-me que o mal-estar de nossas sociedades – e o que dizer das outras, alhures no mundo – é muito grande atualmente. O desprezo do corpo, o sentimento de que a técnica é o único horizonte desejável, nos desenraiza de nossas existências, porque a condição humana implica presença real dos outros em torno de si. O autismo não é um valor social. A exaltação do corpo coisificado é o fantasma irrisório de quem abandona toda a soberania sobre sua existência, para entregar-se às técnicas.

IHU On-Line – Em que medida o sentido da

existência humana está ameaçado pelo avanço da tecnociência e seu apelo à exaltação de um corpo reificado? David Le Breton – Nossas sociedades não consideram mais o corpo como um destino, uma cepa identificadora radical, mas como um acessório da presença, uma forma a ser posta em cena ou reconfigurada da melhor maneira possível. A fragilidade do corpo, sua vulnerabilidade à doença e ao envelhecimento são, hoje, intoleráveis. O corpo sempre tem sido o grão de areia irônico que recorda ao homem a humildade de sua condição. Atualmente, a vontade de poder de nossas sociedades não o aceita mais, não suporta mais esses limites nos quais estamos encerrados. Donde a emergência desse discurso religioso, neognóstico, que se exalta com a idéia de que nós entraremos num

IHU On-Line – O senhor recomenda que fa-

çamos uma pausa no que diz respeito à tecnociência e nos ocupemos da vida. Mas a cibercultura não pode ser colocada a serviço da vida? Ela conduz, inevitavelmente, à transformação do corpo em “um acessório de presença”?

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encontros reais. A cibercultura é uma faca de dois gumes: ela veicula o pior e o melhor. Mas creio que o preço a pagar pelo pior não vale que se mantenha o melhor. Certamente, pode-se dizer que a cibercultura é uma arma para aqueles que se batem contra a mundialização econômica e por mais humanidade, pois ela procura informações preciosas. Ela permitiu, porém, a mundialização do terrorismo, a organização de redes de pedofilia, procurando a possibilidade de uma vigilância infinita dos usuários e mil outras coisas igualmente prejudiciais para as democracias e as liberdades individuais. Mas nós não estamos lá. Eu creio que a cibercultura nos enriquece por uma parte, mas ela nos torna mais vulneráveis. No entanto, ela deve permanecer como um simples utensílio.

David Le Breton – Os valores que nos regem são os do mercado: a comunicação (contra a palavra), a urgência (contra o passo do homem), a eficácia (contra a expansão de si no trabalho), a utilidade (contra o dom, a gratuidade), o dinheiro (contra o tempo) e a competição (contra a sociabilidade). Isso não são valores de expansão do homem ou do estreitamente do laço social, mas uma pavorosa corrida para diante, no decurso da qual o outro, que não seja eu, é um cúmplice ou um obstáculo – provisório, bem entendido, já que os dados se invertem facilmente. A questão do gosto de viver me parece ser a questão essencial. O progresso da ciência nada tem a ver com o progresso moral. As técnicas são apenas meios, mas elas tendem a tornar-se fins em si mesmas. Quando se vê o mau modo de viver de nossas sociedades ocidentais, o medo do futuro, o terrível fosso que se abre entre os ricos e os pobres, entre as sociedades ocidentais e as outras, só se pode tirar a conclusão de que é tempo de se fazer uma pausa, de se aproveitar dessas riquezas, repartindo-as de maneira mais justa, de tomar o tempo de viver. Neste mundo em que as técnicas abundam, o sentido desaparece. A felicidade dos homens não se tece na acumulação das técnicas, mas no sentido de que eles dão à sua existência. Eu sou, acima de tudo, favorável a um outro uso das técnicas, e fortemente oposto à sua fetichização atual, quer se trate da genética, quer da Internet. O sabor do mundo vem dos sentidos, do fato de ver, de entender, de tocar, de degustar, de sentir. Eu penso como Jankélévitch35, de que nos incumbe conjurar a mortalidade, que é a nossa, pelo fervor de existir. Quando se mantém a cibercultura como um simples utensílio, sem fetichizá-la, as coisas são diferentes; eu mesmo a utilizo um pouco, mas, a verdade é que a Internet me toma pouco tempo cada dia, e, se não houvesse o correio eletrônico, eu me livraria dela facilmente, pois eu prefiro a leitura e os 35

IHU On-Line – O uso de tatuagens e de pier-

cings, por exemplo, revela a adoção de um padrão de beleza necessariamente subordinado aos poderes alienantes da tecnociência? David Le Breton – Por muito tempo, o corpo estava aprisionado por uma sacralidade que impedia que ele fosse modificado em profundidade. Hoje, o corpo pode ser transformado, sem grandes cuidados em romper interditos: transexualismo, língua dividida, implantes subcutâneos, sonho de adição de chips eletrônicos à carne etc. Se o corpo não é mais raiz identificadora, mas simplesmente matéria-prima disponível para produzir uma boa versão de si, então realmente não há mais limites. As marcas corporais implicam uma vontade de atrair o olhar, de fabricar uma estética da presença. Elas permanecem sob a iniciativa do indivíduo e encarnam, então, um espaço de sacralidade na representação de si. A superfície cutânea irradia uma aura particular. Ela acrescenta um suplemento de sentido e de jogo à vida pessoal. Ela é, com freqüência, vivida como a reapropriação de um corpo e de um mundo que escapam. Inscreve-se

Vladimir Jankélévitch (1903-1985). Filósofo francês que, com apenas 23 anos, foi enviado a Praga como professor no Instituto Francês e em 1935 se doutorou em Letras. Foi discípulo de Henri Bergson, sobre o qual escreveu seu primeiro livro, Henri Bergson (1931). Escreveu as obras filosóficas, Traité des vertus (1949), Philosophie première (1954), Lo no sé qué y lo casi nada (1957), Lo puro y lo impuro (1960), La muerte (1966) e La paradoja de la moral (1981); assim como reflexões sobre o mundo da música, Fauré (1938), Ravel (1939), La Rapsodia (1955), La musique et l’ineffable (1961), La vida y la muerte en la música de Debussy (1968), Liszt y la rapsodia: ensayo sobre la virtuosidad (1979) e La presencia lejana. Albéniz, Séverac, Mompou (1983). A maior parte de sua extensa obra filosófica gira em torno dos problemas da experiência da vida cotidiana (Nota do IHU On-Line).

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nele fisicamente a sua própria maneira de ser, toma-se posse de si, inscreve-se um limite (de sentido e de fato), um sinal que restitui ao sujeito o sentimento de sua soberania pessoal. A marca é um limite simbólico desenhado sobre a pele, fixando um alvo na busca de significação e de identidade. O indivíduo brinca com as referências, as tradições e constrói um sincretismo que se ignora; a experiência da marca torna-se, então, uma experiência espiritual, um rito íntimo de passagem. Na falta de se exercer um controle sobre a sua existência, o corpo é um objeto ao alcance da mão, sobre o qual a soberania pessoal quase não tem entraves. Serão as marcas corporais uma reação à cibercultura? Eu penso que elas não têm nenhuma relação com ela. Elas não são a tentativa de investir a carne num mundo de tecnologias, e sim se inscrevem em outro lugar, numa busca de proclamação de si, de estetização de si.

mente minoritária, da cibercultura. O desprezo do corpo é uma forma do desprezo de si, o que não é verdadeiro para todas as sociedades humanas. Em algumas, as transformações do corpo realçam uma dimensão lúdica ou uma construção de si próprio. IHU On-Line – O senhor não acredita que o

virtual anule o existencial. Se assim é, que lugar ocupa a idéia de “cibersexualidade” na sociedade, de acordo com as suas pesquisas? David Le Breton – O virtual não anula o existencial, e sim lhe dá um outro estatuto. A cibercultura procura, sem dúvida, sensações e prazeres bem reais, apoiando-se num imaginário do outro, numa desencarnação, no desaparecimento de sua fisionomia. No ciberespaço, o sujeito se libera dos constrangimentos da identidade, metamorfoseia-se provisória ou duradouramente, naquilo que ele quer, sem temer o desmentido do real. Os canais, os caracteres sexuais, a idade, são objetos de uma descrição cuja origem é inverificável e que autorizam toda e qualquer licença. Imaterial, o sujeito se reduz estritamente às informações que ele dá. Seu corpo não corre mais o risco de traí-lo e de fazê-lo ser reconhecido. A rede favorece a pluralidade de si próprio, favorece a todo o momento a possibilidade de desaparecer. Toda a responsabilidade se desfaz. Além disso, é dada uma chance às pessoas obstaculizadas, ou gravemente enfermas, para se moverem ao seu modo, sem temor das dificuldades físicas, ou para encadearem comunicações sem temer a estigmatização. O peso do corpo é desfeito, quaisquer que sejam a idade, a saúde, a conformação física; os internautas estão num plano de igualdade, pelo fato, precisamente, de porem entre parênteses o corpo. A sexualidade torna-se textualidade e faz a economia do corpo. Há uma troca de bons procedimentos, cujo prazer está à disposição. Na rede, um bom número de internautas troca de sexo e gargalha com a idéia de pregar uma peça ao outro. O contato virtual, dados contra dados, toma o lugar do contato corpo a corpo. A pele é uma tela. O táctil se converte em digital, o teclado substitui a pele, o mouse substitui a mão. E o interativo suplanta o dialógico. As identidades sexuais se dissolvem, já que ninguém

IHU On-Line – O corpo, em si, historica-

mente, já foi suficiente para assegurar uma existência plena? A relação do homem com o seu corpo não esteve sempre sob a influência de alterações tecnocientíficas? David Le Breton – Não, sem dúvida. Sob uma forma ou outra, as sociedades remanejam, culturalmente, o corpo de seus membros. Os sinais corporais são, por exemplo, sinais de demarcação com a natureza e as outras comunidades de pertença, ou a busca de uma singularidade pessoal numa trama comum. Eles são susceptíveis a diversos significados, por vezes, simultâneos: sexualização, passagem à idade adulta, beleza, decoração, erotismo, fecundidade, valor pessoal, hierarquia, proteção, adivinhação, propiciação, luto, estigmas etc. Eles são indeléveis ou provisórios. Acrescenta-se ao corpo (tatuagem, maquilagem, escarificação, jóia, implante subcutâneo, recapagem dos dentes, incrustação dentária etc.), subtrai-se dele (circuncisão, excisão, infibulação, depilação, mutilação, perfuração, extração ou limagem dos dentes etc.), modela-se uma ou outra de suas partes (pescoço, orelha, lábios, pés, crânio). Todas as sociedades humanas burilam o corpo, mas nenhuma mantém um discurso de desprezo ou de insuficiência, como o faz uma ala puritana, certa-

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mais está seguro do sexo ou da aparência de seu parceiro em interface e que cada um é suscetível de endossar numerosas definições provisórias de si, segundo as circunstâncias. A identidade está em modulação variável, e o ciberespaço permite um carnaval permanente, conduzindo a lógica da máscara ao seu auge. Uma vez dissimulada a fisionomia, tudo é possível. O interlocutor invisível está sem possibilidade de visão, além de toda a moral e, então, sem poder de julgamento. A presença mútua é um feixe de informação despido de carne. Eliminar concretamente o corpo da sexualidade é o melhor meio que existe de ser posto fora da condição de prejudicar a sexualidade. O contato exige, com efeito, que se saia de sua reserva pessoal, que a gente se submeta à prova do corpo, sendo confrontado com uma difícil alteridade, eventualmente portadora de dano físico ou moral.

O único risco do cibersexo é o de um curto-circuito no dispositivo, ou de um fio desencapado nos vibradores. A sexualidade telemática inventa uma dimensão elegante e pós-moderna do onanismo, fazendo da imagem mental um resíduo arcaico em proveito da simulação, isto é, de um não-lugar, nem mental, nem real, sendo, ao mesmo tempo, um e o outro. A Aids reforçou o desprezo pelo encontro do corpo, tornando-o um lugar perigoso e suspeito. A América contemporânea reata com o puritanismo e exibe, por vezes, abertamente um desgosto ou um mal-estar profundo diante da sexualidade. A sexualidade sem corpo do ciberespaço é, sem dúvida, um sintoma disso: ela poupa todo e qualquer risco de contaminação, e nada estimula a sair do conforto da vida pessoal: não há mais necessidade de sair de casa e de se furtar aos riscos da sedução e do encontro.

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“A pergunta ética leva a humanizar o poder tecnológico” Entrevista com Márcio Fabri dos Anjos

Márcio Fabri dos Anjos é padre Redentorista, doutor em Teologia Moral pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma e Presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião. É autor do artigo “Bioética e Liberdade – uma leitura teológica”, publicado no livro A esperança dos pobres vive (São Paulo: Paulus, 2003), uma coletânea em homenagem aos 80 anos de José Comblin. Márcio concedeu entrevista à IHU On-Line, em 28 de julho de 2003.

tenha para serem doados. Para chegar a ele, poder-se-ia passar por 50 ou 60 embriões, o que também seria complicado. Uma vez analisado o caso, se ele não trouxe riscos, acho um gesto bonito. IHU On-Line – Como está o debate em rela-

ção aos embriões e o momento em que inicia a vida humana? Márcio Fabri dos Anjos – O embrião é, inegavelmente, o início de uma pessoa humana. As células não são pessoas. Há uma necessidade de interpretar e se necessita de uma dose de hermenêutica. A Igreja interpreta o zigoto, o óvulo já fecundado, como um embrião que merece respeito como se fosse pessoa. É o processo que dá origem a um ser humano. A fecundação é o ponto de partida. Portanto, a Igreja o respeita como pessoa desde tal momento. Na Idade Média, a Igreja tinha a Teoria da Alma, de Santo Tomás de Aquino, na qual ele defendia que, aos 40 dias da fecundação, para os homens, e 80 dias, para as mulheres, o embrião demorava para ter alma, para se constituir em ser humano. Eram concepções que, na época, não poderiam ser demonstradas. Evidentemente, hoje, não se pensa assim, mesmo porque a teoria é tremendamente machista. Parece que a mulher era uma tentativa frustrada de homem... Hoje, sabemos que não cabe à Igreja determinar a definição de pessoa humana. Ela optou por considerar pessoa humana desde a fecundação. Outros defendem que haveria uma fase pré-embrionária na qual não está tudo decidido e, portanto, pode ser usado o pré-embrião para a pesquisa. Para os abortistas, até os seis messes de gestação não há pessoa humana e existe a concepção de que só quando nasce o bebê é pessoa

IHU On-Line – Qual é sua opinião sobre o

caso do bebê britânico? Márcio Fabri dos Anjos – A princípio, utilizar um ser humano em função de outro pode ser delicado. O cristianismo tem um critério ético que privilegia a autonomia da pessoa humana para a referência ética de todo procedimento, porque do contrário perdemos o referencial de nossas relações sociais. O ser humano não é instrumento. Por outro lado, essa autonomia não pode ser de forma absoluta. Neste caso, eu vejo como um gesto bonito pensar a vida partilhada: a fecundidade sempre é social. Se o bebê é desejado, e cresce com o mesmo amor que os pais têm pelo primeiro bebê e os levou a querer salvá-lo, a partilha do segundo bebê com seu irmão é um gesto de gratuidade muito bonito. Ambos os bebês poderiam chegar à idade adulta, e o segundo olhar com alegria para sua vida por ter podido ajudar seu irmão. O que eu não conheço, em relação ao caso, são os riscos e custos até chegar a esse bebê. Diferente seria se o segundo bebê ficar com alguma deformidade. Esse dado é importante, porque se corre o risco de instrumentalizar o ser humano, criar pessoas com dois ou três rins, para que já os

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humana.. Essa definição tem uma força simbólica muito grande, porque cada uma delas abriria ou não o espaço à experimentação e colocaria em risco a vida.

gia nos leva a diminuir nossa capacidade de amar, não serve para nada. Por outro lado, a sabedoria da vida do cristianismo abre um ambiente amplo para a bioética quando busca a aceitação do mais fraco, contrário à corrida de bem-estar, quando valoriza a capacidade de dar a vida e não só garanti-la, esses elementos criam um ambiente interessante. Ainda destacaria a contribuição do cristianismo em relação ao sentido que dá à vida humana.

IHU On-Line – A Universidade tem um papel

importante nesse debate? Márcio Fabri dos Anjos – Há um consenso muito grande sobre a necessidade de diálogo sobre as questões do embrião e de bioética em geral. A bioética é um grande anfiteatro, não pode haver percepções únicas. São necessárias a reflexão e a argumentação. Devemos chegar a critérios comuns, fruto de um consenso, que possam iluminar a sociedade. Demos um grande passo, levando a ética para dentro da ciência. O poder tecnológico, separado do poder ético, seria muito pernicioso. A pergunta ética leva a humanizar o poder tecnológico. Se não o humanizamos, corremos o risco de perder nossa dignidade. Nesse meio, ocorrem também vaidades, interesses econômicos etc. O Brasil, desde 1996, deu um grande salto com a resolução do Ministério de Saúde sobre a ética na pesquisa que envolve seres humanos. Já existem normas para isso, mais ainda estamos muito mais atrasados em relação a outros países.

IHU On-Line – O senhor acredita que a Teologia deva dialogar mais intensamente com a ciência no espaço da universidade? Márcio Fabri dos Anjos – Eu acho que a Teologia tem três aspectos fundamentais. O da confessionalidade seria o espaço de reflexão da fé. As pessoas têm fé, ou religiosidade e a reflexão sobre elas é Teologia. É fundamental uma teologia para as comunidades se entenderem como pessoas ou grupos. Em segundo lugar, como essas pessoas são cidadãs, devem incidir na sociedade, e a Teologia tem que mostrar sua força de cidadania. Já houve grupos que organizaram sociedades teocráticas, ou, no outro estremo, grupos que organizaram suas sociedades excluindo a dimensão religiosa. Algumas formas de teocracia podemos constatar ainda hoje, no oriente ou em determinados grupos pentecostais que têm bancadas no Congresso. A Teologia é também o espaço para discutir essa sociedade. Em terceiro lugar, e, para fazer esse diálogo, a Teologia precisa da força da cientificidade, devendo ganhar o espaço universitário. A Teologia estabelece argumentações de um grupo. Existem muitas teologias. No diálogo com as outras ciências, a sociedade só tem a ganhar.

IHU On-Line – E a Teologia?

Márcio Fabri dos Anjos – No amplo diálogo, a contribuição da Teologia tem sido muito apreciada desde que dialogue. Há uma certa rejeição, caso seja vista como autoritária. O motivo dessa abertura é que o cristianismo oferece alternativas para superar o pragmatismo e uma simples visão de eficiência diante do ser humano, que coloca a gratuidade como realização da vida. Se a tecnolo-

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