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O modo de objetivação jornalística Beatriz Alcaraz Marocco ano 2 - nº 27 - 2004 - 1679-0316
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Aloysio Bohnen, SJ Vice-reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Instituto Humanitas Unisinos Diretor Inácio Neutzling, SJ Gerente Administrativo Jacinto Schneider Cadernos IHU Idéias Ano 2 – Nº 27 – 2004 ISSN 1679-0316 Editor Inácio Neutzling, SJ Conselho editorial Berenice Corsetti Dárnis Corbellini Fernando Jacques Althoff Laurício Neumann Rosa Maria Serra Bavaresco Stela Nazareth Meneghel Suzana Kilp Vera Regina Schmitz Responsável técnica Rosa Maria Serra Bavaresco Editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Revisão – Língua Portuguesa Mardilê Friedrich Fabre Revisão digital Rejane Machado da Silva de Bastos Impressão Impressos Portão
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Instituto Humanitas Unisinos Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467 www.ihu.unisinos.br
O MODO DE OBJETIVAÇÃO JORNALÍSTICA Beatriz Alcaraz Marocco1
Poucos instrumentos conceituais foram elaborados até este momento para dar conta de um tipo de imprensa que pode ser localizada no Brasil, mais concretamente em Porto Alegre entre o final do século XIX e meados do século XX. Noções de “objetividade”, sensacionalismo e ética, entre outras, que explicam as práticas de jornal, são incompatíveis com aquelas condições históricas de produção. O mesmo se pode dizer em relação aos gêneros jornalísticos clássicos. Não correspondem a um discurso que se apropria das técnicas literárias, que está ligado a uma série de instituições, exigências econômicas imediatas e urgências políticas de regulação social ditadas por uma cultura burguesa profundamente artificial, “profundamente identificada com a vida francesa”, um discurso que nasce independentemente da existência de uma teoria do jornalismo, ainda que esse seja objeto de epistemes exógenas, as chamadas “teorias sociais da imprensa” (SEVCENKO, 1983, p. 30; HARDT, 1979; MAROCCO, 2004a). Foucault possibilita refletir sobre essa forma de discurso sob outra perspectiva: como uma mecânica de poder, que faz funcionar um modo de objetivação jornalística, transforma os seres humanos em sujeitos por meio de “práticas escindentes”2
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Professora e pesquisadora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS. Doutora em Periodismo y Ciencias de La Comunicación. Universidad Autonoma de Barcelona, Espanha. Mestre em Comunicação, pela PUC/RS e graduada em Jornalismo, pela UFRGS.
Optamos pela expressão «práticas escindentes» apesar da inexistência da palavra escindente (verbo escindir) em português, com base na tradução de M. Morey «prácticas escindientes» (v. escindir) para designar, com mais precisão, o conceito foucaultiano «pratiques divisantes».
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[pratiques divisantes]3. Nestas práticas, o sujeito é dividido no interior de si mesmo ou dividido dos outros, por um processo que faz dele um objeto. A divisão entre louco e homem com juízo, enfermo e indivíduo sadio, criminoso e bom rapaz, ilustram este processo na obra foucaultiana. No lugar dos discursos, constatamos que os jornais se ocuparam em dividir o indivíduo em relação a si mesmo à medida que estabeleciam limites claros e uma zona de sombra entre este e a sua condição de sujeito do discurso. Pouco podemos saber por meio destes discursos sobre o indivíduo, mas muito poderemos conhecer sobre o sujeito que compartilhava os seus hábitos com um grupo determinado ou com os pobres em geral: suas atividades, os lugares em que vivia, as ruas por onde passeava, as más companhias que buscava, etc. A outra característica deste mesmo modo de objetivação – promover a divisão do sujeito dos outros – pode ser reconhecida nos discursos jornalísticos por dois procedimentos. 1. Na França ou no Brasil, os jornais ocuparam-se obsessivamente dos seres humanos, apresentando-os, obsessiva e diariamente, como um “inimigo sem rosto”, para erguer uma barreira de moralidade entre os delinqüentes e as camadas populares (FOUCAULT, 1986, p. 291-2). 2. A imprensa porto-alegrense ia além: empreendia uma tática de confusão entre ambos, considerando-os indivíduos “sem importância4” para os planos dos reformistas de limpeza e embelezamento das cidades. Mais do que se dedicar a levantar uma sólida barreira moral entre pobres e delinqüentes, as práticas jornalísticas dos jornais de Porto Alegre objetivavam ambos – à medida que eram pobres – como inimigos a combater, utilizando duas técnicas – o “exame” e a “classificação” – e uma retórica de combate, fortemente influenciada pelo pensa3
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Foucault reconhece três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos: «Primeramente, están los diferentes modos de investigación que buscan acceder al estatuto de ciencia: pienso, por exemplo, en la objetivación del sujeto que habla en la gramática geral, filología y lingüística. O bien, y siempre en este primer modo, la objetivación del sujeto productivo, del sujeto que trabaja, en la economía y el análisis de riquezas. O también, para dar un tercer ejemplo, la objetivación por el mero hecho de ser un ser vivo, en historia natural o biología. En la segunda parte de mi trabajo, he estudiado la objetivación del sujeto en lo que llamaré las prácticas escindientes [pratiques divisantes]. Finalmente, he buscado estudiar – y éste es mi trabajo en curso – el modo en el que el ser humano ha aprendido a reconocerse como sujeto de una sexualidad» (1990b, p. 20-1). Estende-se a expressão «homens infames» na qual Foucault reúne os personagens obscuros, que não «tinham direito à história», à expressão indivíduos «sem importância», porque, assim como aqueles, estes foram excluídos da história, mas, a seguir, foram incluídos em outros discursos, inclusive no discurso jornalístico, porque, resumidamente, contrariavam o que era considerado «importante» pela sociedade urbano-industrial decimonônica (1990a, p. 193).
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mento orgânico, para construir argumentos sobre a sua “periculosidade”. No texto, a seguir, nos dedicaremos a mostrar como essa mecânica foi materializada nos jornais5. 1. O exame Assim como o “olhar normalizador” do “exame6”, a maneira de observar e apresentar a realidade do jornalista decimonônico era distorcida e dominada pela intenção prévia de enfocar certos indivíduos e tornar transparentes7 os seus comportamentos virtualmente “perigosos” para salientá-los entre a população em geral e combatê-los. Como o jornalista decimonônico realizava o “exame”? Os discursos jornalísticos indicam que o jornalista não ouvia quem tomava como objeto, raramente identificava os indivíduos pelo nome e costumava confundi-los com o seu grupo de referência. Apenas realizava um trabalho superficial de coleta de informações alheias; ouvia as histórias que circulavam, que, geralmente, eram sobre os conflitos entre estes indivíduos e a vizinhança, e observava os corpos movimentando-se indistintamente pela cidade. Não procurava saber o que havia ocorrido, nem atualizava o acontecimento com seus protagonistas ou com fontes próximas. O que interessava era incluir nos jornais quem não se comportasse como devia, mas, sobretudo, visibilizar alguns espaços emblemáticos em que esses indivíduos poderiam ser encontrados e amplificar a ameaça que representavam para toda a cidade. Em outubro de 1897, por exemplo, o jornal denunciava uma “malta” formada por “crianças viciadas” e alguns “praças”, que, sem outra ocupação além do vício, costumava se reunir nas proximidades da Rua Clara, perturbando o bem-estar dos vizinhos. Em nome da vizinhança, o jornalista reivindicará um “corretivo” para todos eles: A área compreendida entre as ruas (...) possui um grande morro o qual tem uma entrada pela Rua Clara. É esse o lugar predilecto dessa malta que não tem outra ocupação
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Este texto está baseado no trabalho de investigação que realizamos sob a forma de tese doutoral intitulada «Prostitutas, jugadores, pobres y vagos en los discursos periodísticos. Porto Alegre - siglo XIX». UAB, Barcelona, 2002, publicado parcialmente em livro com o mesmo nome pela Editora Unisinos (Marocco, 2004b). Para dar consistência à análise, reunimos e exploramos um conjunto de 200 fragmentos de textos publicados pela imprensa brasileira, principalmente pelos jornais porto-alegrenses Gazetinha e Gazeta da Tarde. O «exame», segundo Foucault, «es una mirada normalizadora, una vigilancia que permite calificar, clasificar y castigar. Establece sobre los individuos una visibilidad a través de la cual se los diferencia y se los sanciona» (1986: 189). A extensão na sociedade da lógica de um «poder por transparência» foi descrita por Gaudemar (1981, p. 236) e por Foucault (1989, p. 17).
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Beatriz Alcaraz Marocco que não seja a do vício. Ali reúnem-se cotidianamente muitas crianças acompanhadas também de alguns praças e entregam-se o dia inteiro ao jogo do osso, do vintém e mesmo muitos outros para os quais andam habilmente preparadas. É pois em nome dos moradores destas circunvizinhanças que solicitamos um corretivo não só àquelas crianças viciadas (3 de outubro, 1897).
Mal identificados, mas muito bem radicados nos lugares em que viviam ou pelos quais passavam; assim por este modo jornalístico de conhecimento da realidade se revelava o entorno, em boas condições, e a deterioração que esses indivíduos provocavam com a sua presença real, para poder associá-los ao todo, ou seja, a todos os lugares, estes, sim, territórios fantasmáticos da falta de higiene, que já estariam “disseminados” pela cidade, como se pode verificar, por exemplo, no relato do jornalista da Gazeta da Tarde sobre a hospedaria noturna que havia na Praça da Harmonia, junto à Farmácia Estrela do Sul: Entre as providências de saneamento da capital, reclama a atenção da higiene municipal a aglomeração de indivíduos nas hospedarias noturnas. Existem disseminadas pela cidade numerosas casas, de propriedade de estrangeiros, onde à noite dormem grande número de indivíduos. Conheço algumas, que podendo acomodar no máximo quatro indivíduos, recebem vinte, assim como uma que existe junto à Praça da Harmonia, junto à Farmácia Estrela do Sul. Em um salão escuro, úmido, sem ventilação suficiente, armam à noite numerosas macas de lona que alugam a 200 réis. Nelas dormem indivíduos sujos, de acordo com o assoalho, que não vê água há muito tempo e as paredes que não têm cal (12 de abril, 1897).
2. A classificação O modo de objetivação jornalística se caracterizava, em segundo lugar, pela organização e classificação dos indivíduos “sem importância” no espaço do jornal. Nesta operação, o jornalismo lhes proporcionaria uma existência verbal própria e mobilidade irrestrita no seio de uma grande família de quatro figuras básicas: a) Os vagabundos e mendigos: muitos entre eles apenas resistiam ao trabalho na fábrica; eram operários que tinham se rebelado contra qualquer regularidade de horário ou de hábitos, escravos recém-libertados, camponeses sem terra para explorar, ou ex-soldados empobrecidos e desempregados após o final das guerras (A Voz do Operário, 1º de abril, 1899). Mas sob o ponto de vista dos jornais, todos eram malfeitores que contaminavam a cidade. Porto Alegre tinha sido contaminada por um conjunto de vagabundos malfeitores que
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era necessário corrigir severamente, “acabar com eles” (Gazetinha, 27 de julho, 1897). Sobre os mendigos autênticos muito pouco se dizia. Eram os inaptos para o trabalho: inválidos, débeis, enfermos ou velhos que, de algum modo, não aceitavam as exigências de um emprego formal. Desde a monarquia, recomendava-se interná-los em asilos para pobres. Os falsos – segundo os jornais – fingiam para evitar os problemas de um trabalho estável. Eram, diariamente, convertidos em notas e perseguidos com igual intensidade pela polícia. Contra eles os jornais pediam mais repressão policial. A Gazetinha encontrou um deles e denunciou-o: um “italiano”, que acompanhava um jovem acordeonista cego. Ao mesmo tempo, o jornalista alertava a polícia sobre o grande número de vagabundos que mendigavam pelas ruas: E por falar em indigentes, lembre a sábia polícia municipal o grande número de vagabundos que andam esmolando por estas ruas (...). Diariamente vem pelas ruas da capital um robusto italiano, conduzindo pela mão um rapaz cego, que, dedilhando uma sebosa sanfona anda de porta em porta esmolando (12 de agosto, 1897).
No começo do século XX, o cronista Paulo Barreto, o João do Rio8, considerado pela historiografia como o primeiro repórter brasileiro, dedicou-se a observar a “complicada e diversificada sociedade” dos indivíduos que pediam esmola. “É a exploração mais constante da cidade”, disse em As mulheres mendigas, primeira de uma série de crônicas publicada no jornal do Rio de Janeiro, Gazeta de Noticias. Um ofício rentável, que, segundo João do Rio, era próprio dos homens que não tinham valor e das mulheres realmente desgraçadas: Os homens exploradores não têm brio. As mulheres, só quando são realmente desgraçadas é que não mentem e não fantasiam (30 de maio, 1904, em João do Rio, 1997, p. 290).
Os homens mendigos, segundo o mesmo jornalista, se dividiam em: os mendigos cínicos, como Pietro Mazzoli; os agentes da depravação e os profissionais das enfermidades falsas. As mulheres mendigas formavam uma constelação de estrelas cuja luz se havia apagado na mais “aflitiva desgraça”: eram as mendigas burguesas, as mendigas mães de família, as mendigas alugadas, dirigidas por rufiões, as mendigas cegas, as car-
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Os críticos brasileiros relacionaram João do Rio com Raul Gusmão, jornalista da galeria de personagens de Recordações do escrivão Isaías Caminha, que o escritor e jornalista Lima Barreto descreveu como uma «figura inflada, mistura de porco e macaco, de gestos inéditos e frases imprevistas» (1956, p. 22). Ao próprio João do Rio, Lima Barreto atribuía, em seus comentários, a «vaidade de um dândi» (S. Endler, 1994, p.29).
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tomantes ambulantes e as vagabundas. Em frente às portas de igreja, elas exibiam um ritual observado pelo cronista: Há a Antônia Maria, a Zulmira, a viúva Justina, a d. Ambrosina, a excelente e anafada tia Josefa; umas magras; amparadas aos bordões, chorando humildades; outras gordas, movendo a mole do corpo com tremidinhos de creme. Às portas das igrejas param, indagam quem entra, a ver se a missa é de gente rica; postam-se nas escadarias, agachadas, salmodiando funerariamente, olhando com rancor os mendigos – negros roídos de alcoolismo, velhos a tremer de sífilis (Gazeta de Noticias, 30 de maio, 1904, em João do Rio, 1997, p. 291-2).
João do Rio conta que “estas criaturas” se entregavam de corpo e alma ao ofício. Controlavam o tempo da jornada diária com “cronômetro suíço”. Saíam de casa cedo, às seis da manhã; assistiam à missa devotadamente antes de colocar-se em frente à porta da igreja que só abandonariam depois de conseguir dinheiro suficiente para o almoço. À tarde, voltavam ao trabalho, peregrinando pelos bondes ou pedindo esmola de porta em porta. Uma delas, segundo João do Rio (1997, p. 292), Isabel Ferreira, “mulata magra e má”, costumava pedir esmola também durante a noite, porque acreditava que pedir na escuridão era “mais emocionante”: Têm naturalmente uma vida regrada a cronômetro suíço, criaturas tão convencidas do seu ofício. Saem de casa às seis da manhã, ouvem missa devotamente porque acreditam em Deus e usam ao peito medalhinhas de santos (Idem nota anterior).
b) As prostitutas: geralmente os jornalistas se referiam às prostitutas como as crioulas, que chamavam a atenção pela sua pele escura e desafiavam a ordem por seu modus operandi nas ruas. Elas eram crioulas “naturalmente licenciosas”, levadas ao vício pela necessidade. Assim, aos “20 anos, estarão velhas, roídas pela sífilis e pelo álcool”: (...) Essas infelizes, aos 20 anos, quando as outras estão em pleno vigor, estarão velhas, roídas pela sífilis e pelo álcool (O Independente, 24 de agosto, 1911).
Em sua figura jornalística, a prostituta era virtualmente perigosa. Tinha uma vida imoral que rompia com as normas e valores morais da vida coletiva. Era o germe de todos os vícios. Pervertia os jovens e seduzia os chefes de família; ao seu redor viviam os jogadores e os bebedores. Prostituía suas filhas, quando se retirava do negócio, como “a tal Firmina” (Gazeta da Tarde, 30 de abril, 1898, citado em Pesavento, 1998, p. 130); embebedava os jovens como a “crioula Domingas” (Gazetinha, 16 de junho, 1898, citado em Pesavento, 1998, p 131); ou ofendia as famílias com sua linguagem e o seu proceder, como “uma tal Avelina” (O
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Século, 17 de dezembro e 12 de fevereiro, 1882, citados em Pesavento, 1998, p. 135). Segundo os jornalistas, as prostitutas suicidavam-se com “ácido fênico por paixão”, eram agredidas pela polícia (Gazeta da Tarde, 13 de abril, 1897, citado em Pesavento, 1998, p. 135). Nas ruas, praças ou becos ofendiam as famílias com seus convites ostensivos aos pedestres ou com os bailes, que perturbavam o sono dos cidadãos, que iam se queixar de tudo isso diretamente aos jornalistas da Gazetinha: Moradores da Rua Riachuelo, quadra entre a Travessa Paissandu e Rua General Câmara, pedem-nos reclamar a quem de direito contra uns bailes de lupanar, verdadeiras chinfrineiras realizadas no edifício da Sociedade Floresta Aurora, que não escrupulizou em alugar seu salão para gente da mais ínfima classe social. Ainda no sábado aquele salão foi ocupado por meretrizes dos becos mais escuros desta cidade, acompanhadas de uma vagabundagem reles, não fazendo outra coisa mais do que transformar o prédio em verdadeiro alcouce. O que ali se passava de imoral e indigno ia repercutir na rua e nas casas próximas, nos palavrões mais ofensivos à moral. Até as famílias, quando saíam do teatro, foram insultadas ao passar pelo prédio em questão (8 de novembro, 1897).
A prostituta semeava a degeneração nos bordéis. Conforme o jornalista de O Independente, em sua companhia, a “juventude libertina” atravessava a noite fazendo brindes obscuros “de bordel em bordel”. Em sua companhia, os jovens cavavam com as próprias mãos a sepultura onde serão enterradas as ilusões de uma “vida inútil e rápida” e, junto com o “velho libertino”, gozavam com os beijos e as “carícias mercenárias” no “mais completo bem-estar deste mundo”. As prostitutas, por outro lado, queriam mais a companhia de ambos para matar a fome que as devorava. Em troca do prazer, exigiam, segundo o jornalista, “bifes com batatas regadas a vinho intragável”: Porto Alegre à noite, não resta dúvida, já tem os povos de uma grande capital, movimentada e perdida. A mocidade libertina, de bordel em bordel, atravessa uma noite inteira levantando brindes obscuros, mostrando no dia seguinte apenas o sulco fundo das olheiras roxas, atestado fatal de uma orgia onde embriagou-se e cavou com as próprias mãos mais e mais uma cova onde serão enterradas as ilusões de sua vida inútil e rápida. Ao lado das prostitutas, gozando beijos e afagos mercenários sem a reflexão precisa para evitar tamanho mal, encontram-se o moço e o velho libertino, trocando frases indecorosas, tresandando a cachaça, vinho e cerveja barata, no mais completo bem-estar deste mundo. Numa verdadeira romaria de perdição vê-se mulheres moças, perdidas, famintas, de tasca em tasca, que, em troca de instantes de prazeres, exigem para matar a
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Beatriz Alcaraz Marocco fome que as devora, bifes com batatas regadas a vinho intragável (6 de outubro, 1901).
A voracidade com que os jornais falavam das prostitutas indica que os jornalistas, assim como amplos segmentos da população, não vislumbravam outro método para combater os genes hereditários que transportavam e a depravação que espalhavam, que não fosse uma campanha sem trégua contra a prostituição até o fechamento dos lugares onde se concentrava. Nesse sentido, o jornalista da Gazetinha sustentava, na nota seguinte, que o jornal não descansaria enquanto não se cortasse, de uma vez e para sempre, “a cabeça da grande hidra da prostituição” que se levantava naquele momento, estendendo “sua cauda sibilante para todos os pontos da cidade”: ...conforme dissemos em nosso penúltimo número, (a Gazetinha) não descansará (...) enquanto não ver cortada de uma vez para sempre a cabeça da grande hidra da prostituição, que ora se levanta estendendo a cauda sibilante para todos os pontos da cidade (27 de fevereiro, 1896).
A retórica jornalística contra as cafetinas era bem mais rigorosa; apoiava-se no Código Penal da República brasileira, de 1891, que criminalizava o lenocínio. O artigo 278 estabelecia penas de prisão e multa para quem induzisse mulheres ou se dedicasse ao tráfico e exploração da prostituição, mas como denunciavam os jornalistas, a polícia era incapaz de aplicar o rigor da lei. Em vários momentos, os jornalistas se ofereciam para substituir a polícia, convertendo-se nos olhos que a mesma não tinha ou não queria utilizar. c) Os jogadores: viviam do negócio e contaminavam o entorno; eram os vagabundos que se dedicavam ao jogo do osso nas ruas ou os pobres diabos que poupavam para jogar e serviam de alvo fácil para a repressão policial que, geralmente, não se ocupava do controle das outras esferas do jogo. Eram, junto com os falsos mendigos e os ociosos, o grande referente da vagabundagem e da anormalidade. Viviam nos antros de “periculosidade”, muitas vezes, em companhia das cafetinas, como o português e sua crioula Marcolina. Os jogadores eram a encarnação da peste pelo perigo de contágio que transportavam, ou a síntese do mal que se opunha ao trabalho na fábrica e à família. Estavam perdidos para a sociedade e à beira da criminalidade: “de jogador a ladrão”, disse o jornalista da Gazetinha, “vai um passo, de ladrão a assassino talvez nem isso”: Como um indivíduo atacado de enfermidade epidêmica, ele torna-se prejudicial aos incautos com quem anda (...). De jogador a ladrão vai um passo, de ladrão a assassino talvez nem isso... (9 de setembro, 1897).
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d) Os jovens: na classificação jornalística, os jovens não eram nunca inocentes. Jogavam e perturbavam a ordem nas ruas, freqüentavam as tavernas ou viviam sob a proteção dos jogadores. As meninas eram, invariavelmente, as vítimas. Os jornais se referiam a elas como vítimas das mães, que as prostituíam, ou da crueldade dos pais abusadores. A Gazetinha publicava freqüentemente notícias sobre delitos no ambiente familiar, como o que ocorreu em São Leopoldo, cidade próxima a Porto Alegre, onde um pai vivia uma “pouco escrupulosa união com a própria filha” da qual já haviam nascido “três pobres crianças, todas defeituosas”: Ainda há pouco veio ao nosso conhecimento que na cidade de S. Leopoldo um pai vivia amancebado com sua própria filha e dessa pouco escrupulosa junção haviam nascido três pobres crianças todas defeituosas (28 de setembro, 1897).
Os meninos eram geralmente demonizados. Nas ruas, dedicavam-se ao jogo do osso, à vagabundagem e ao vício, eram relacionados com as algazarras que perturbavam o sossego dos cidadãos. Para eles, o jornalista da Gazetinha sugeria o exército, que lhes daria a educação, que seus pais, por falta de recursos, não puderam proporcionar-lhes, para que pudessem “ser úteis a si e à sociedade”: Infelizmente a educação adotada hoje, na sua generalidade, está muitíssimo corrompida e é a causa predominante destes maltrapilhos que por aí existem entregues não só a jogatina como também a vícios libidinosos e perversos. (...) Que sejam punidos esses que dão o exemplo e que essas crianças cujos pais não têm posses para dar-lhes a devida educação sejam matriculadas em nossos arsenais de onde poderão sair uns homens úteis a si e à sociedade (Gazetinha, 3 de outubro, 1897).
Em A exploração das crianças, João do Rio disse que “não há nada mais pavoroso” que o meio familiar e a “mendicidade malandra” em que “adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes” estavam sujeitos a todas as passividades: Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de ama-
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Beatriz Alcaraz Marocco nhã, para a prostituição em grande escala (Gazeta de Notícias, 6 de junho, 1904, em João do Rio, 1997, p. 303).
3. A retórica de combate O modo jornalístico de descrever os acontecimentos e os indivíduos “sem importância” se apoiava, em terceiro lugar, em uma retórica de combate a estes indivíduos, composta por um conjunto de táticas estratégicas tomadas de empréstimo de outros saberes. A primeira era uma tática da medicina, que estendia aos discursos jornalísticos a missão de observar os corpos, diagnosticar e combater as enfermidades. Sua materialização nos discursos se daria pelas metáforas orgânicas. A segunda era uma tática do saber criminológico, que se expressava nos discursos pela noção de “periculosidade” que ocupava o centro do processo de seleção do acontecimento jornalístico, assim como a estrutura das figuras jornalísticas. Nos limites da criminologia, os indivíduos interessavam aos jornais em função de suas virtualidades, e não de seus atos, e não eram considerados em relação às infrações que haviam, efetivamente, cometido a uma lei, mas sim em relação às virtualidades de comportamento que estas representavam. Sob a influência da criminologia positivista e da medicina, os jornalistas os consideravam pobres e delinqüentes como uns enfermos, e sugeriam a intervenção da polícia, ou dos médicos, ou a ação de ambos para promover um “saneamento” geral da cidade (Gazeta da Tarde, 30 de março, 1897). As metáforas orgânicas, na visão de H. Arendt, interpretam a sociedade em termos biológicos e apresentam as ações violentas, ou melhor, cirúrgicas, contra os indivíduos, como aspectos de um processo natural, como o são a luta pela sobrevivência e a morte violenta (1973: 175). Seguindo, em certa medida, a lógica do pensamento orgânico, os jornalistas descreviam Porto Alegre como uma “sociedade enferma” na qual os indivíduos “sem importância” eram os “sintomas” mais evidentes da enfermidade, que devia ser combatida e exterminada. Os jogadores: “indivíduos que sofriam de uma enfermidade epidêmica” (Gazetinha, 3 de setembro, 1896). As prostitutas: a “chaga cancerosa da sociedade” (Gazetinha, 11 de maio, 1898). Os meninos e os jovens: “filhos das últimas camadas sociais”; “filhos do mal e do lodo” (O Independente, 12 de outubro, 1905; 16 e 30 de janeiro, 1908, citados em Pesavento, 1998, p. 123). Contra estes “agentes da desmoralização social”, os “ratos e ratões das bodegas”, O Independente queria uma “guerra sem trégua” em que a polícia lutasse como as autoridades públicas sanitárias que combatiam e exterminavam os ratos, as pulgas e a peste bubônica: ...assim como as autoridade públicas sanitárias batem-se numa guerra sem trégua contra os ratos, as pulgas e a bu-
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bônica, a vós cumpre também seguir-lhes os exemplos, batendo-vos contra os ratos e ratões das bodegas, esses genuínos agentes da desmoralização social (12 de janeiro, 1902).
A Gazeta da Tarde, por outro lado, afirmava que Porto Alegre necessitava de um “saneamento geral” e que, para executá-lo, não seria necessário ácido fênico nem outros desinfetantes, mas tão somente a ação repressiva da polícia. Como escreveu o jornalista, a ação da polícia contra os bordéis, “verdadeiros germes do vício e do crime”, era necessária pelo “bem da moralidade, da ordem e da tranqüilidade públicas”: Porto Alegre está precisando de um saneamento em regra. Não será este, porém, de ácido fênico ou outros tantos desinfetantes. Faz-se tão somente necessária a ação da polícia, sob um ponto de vista importante. É a bem da moralidade, da ordem e da tranqüilidade públicas. Dia a dia vai aumentando por toda parte desta capital o número de bordéis, verdadeiros germens do vício e do crime (30 de março, 1897).
A batalha contra estes indivíduos e suas enfermidades havia sido declarada por sua “periculosidade”. Os códigos brasileiros reconheceram em 1841 e, posteriormente, em 1891, os “atos ou estados preparatórios ao crime”, que se enquadravam neste conceito e eram considerados “crimes especiais9”. Estes crimes “derivam do direito de defesa da sociedade” e justificavam a intervenção do poder público sobre as liberdades individuais em sua tarefa de defesa da ordem e prevenção da desordem e no interesse da sociedade como um todo. Eram considerados “crimes especiais”: o hábito de beber e os bebedores habituais; o negócio do jogo e os jogadores viciados; a prostituição e as prostitutas que perturbam o sossego público; os tumultos e os indivíduos turbulentos que, com palavras ou ações, ofendam a moral, a tranqüilidade pública e a paz das famílias (Projectos 33 A-1888, p.67-8). Freqüentemente, os jornalistas porto-alegrenses citavam este dispositivo legal para criticar a ineficiência da polícia, que parecia desconhecê-lo, e para reivindicar sua aplicação por meio de ações policiais repressivas. Em sua campanha contra a prostituição, por exemplo, a Gazetinha chegou a reproduzir literalmente o artigo 278 do Código Penal brasileiro que criminalizava o lenocínio: Induzir mulheres, quer abusando de sua fraqueza ou miséria, quer constrangendo-as por insinuações ou ameaças, a empregarem-se no tráfico da prostituição; prestar-lhes por 9
Os legisladores brasileiros definiram os crimes especiais como atos preparatórios ao crime, não propriamente criminais, porque tal princípio em sua totalidade seria perigoso e aniquilador da liberdade individual (Projectos Nº 33 A-1888, p. 67).
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Beatriz Alcaraz Marocco conta própria ou de outros, sob sua ou alheia responsabilidade assistência, habitação e auxílios para conferir, direta ou indiretamente, lucros desta especulação (5 de agosto, 1898).
Na seqüência da mesma nota, o jornalista enriqueceria de detalhes a letra fria da legislação, informando que os prostíbulos eram dirigidos por mulheres, “cafetinas da pior espécie”, que, na prática deste “infame comércio”, não se limitavam a esperar que a “impura clientela” viesse trabalhar na casa por sua livre e espontânea vontade. Segundo o jornalista, no comando desta “imunda especulação”, as cafetinas induziam suas vítimas, as intimidavam à prática da prostituição em troca de assistência, um dormitório e outras ajudas: Das informações que temos colhido a respeito, vimos a saber que estas casas são dirigidas por mulheres, cafetinas da pior espécie, que não se limitam na prática do seu infame comércio à espera que a impura clientela lhes venha em casa, de livre e expontânea vontade; elas introduzem-se nas casas de suas vítimas, induzindo-as, constrangendo-as, intimidando-as para a prática da prostituição, prestam-lhes assistência, habitação e auxílios, auferindo lucros da imunda especulação (Idem nota anterior).
Conclusões Este modo de objetivação, aparentemente distante da racionalidade jornalística, que, mais tarde, vestirá a armadura da “objetividade”, estava subordinado diretamente a um processo que sofreu a chamada sociedade tradicional e que desembocou na sociedade industrial – capitalista, urbana, liberal, disciplinar, moderna. De um lado, materializava uma atividade com certo grau de especialização na transmissão de informações e opiniões, que colocava em prática alguns procedimentos para filtrar, manipular e difundir informações. De outro, possibilitava incluir o indivíduo improdutivo em um espaço diferente e, por meio desta ação que exercia sobre as coisas, permitia controlar os movimentos dos corpos, semear as pressões disciplinares que emanavam do estado e de uma rede de instituições e difundi-las a um grande número de indivíduos. Uma e outra face eram partes do dispositivo jornalístico, uma face era complementar da outra; uma era a aparente no espaço do jornal, a outra era uma peça do jogo político. Naquele momento, o jornalismo se anunciava e consumava como um dispositivo de poder em sua dupla face – institucional e discursiva – que incluía, no espaço do jornal, um tipo de indivíduo que pretendia corrigir, manipular em conjunto com uma
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rede de diferentes instituições que esboçaram entre si um diagrama10 micropolítico do modo de poder da ordem burguesa. Durante um breve lapso de tempo, quando a observação do jornalista e o registro de seu relato ainda não se tinham comprometido de todo com o discurso informativo e os seus efeitos de poder intrínsecos, foi possível demonstrar mais facilmente como funcionava esse modo de objetivação dos indivíduos e dos conceitos que estavam dados na ordem que era imposta para viver. As práticas jornalísticas se aproximavam da literatura, os jornalistas pactuavam com os saberes consagrados e as instituições. Os diários abriam-se à opinião dos cidadãos acomodados. E a nota jornalística não era mais do que a materialização deste trabalho em rede tecido entre os diversos discursos que pretendiam o controle social. Referências bibliográficas ARENDT, H. Crisis de la República. Madrid: Taurus, 1973. DELEUZE, G. Foucault. Barcelona: Paidós, 1987. ENDLER, S. Recordações do escrivão Isaías Caminha: ficção e jornalismo. Porto Alegre: PUC-RS, 1994. Dissertação (Mestrado), Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1994. FOUCAULT, M. Vigilar y castigar. Madrid: Século XXI Editores, 1986. FOUCAULT, M. El ojo del poder. Entrevista con J.-P. Barou y Michelle Perrot, trad. de Julia Varela y Fernando Álvarez-Uría. El Panóptico, Madrid: La Piqueta, 1989. FOUCAULT, M. Tecnologías del yo y outros temas afines. Barcelona: Paidós/ICE-UAB, 1990b. FOUCAULT, M La vida de los hombres infames. Madrid: La Piqueta Ediciones, 1990a. GAUDEMAR, J.P. de. La movilización general. Madrid: La Piqueta, 1981. GAUDEMAR, J.P. de. Preliminares para una genealogía de las formas de disciplina en el proceso capitalista de trabalho. Espacios de poder. Madrid: La Piqueta, 1991. HARDT, H. Social theories of the press. Early german & american perspectives. Beverly Hills: Sage Publications, Inc., 1979. (Livro reeditado recentemente pela Rowman & Littlefield). JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas. In: ANTELO, Raúl (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MAROCCO, B. Zona de sombra sobre o jornalismo. In: ENCONTRO DA REDE ALCAR, 2, 2004a. Florianópolis, 2004a. MAROCCO, B. Prostitutas, jogadores, pobres e vagabundos no discurso jornalístico. Porto Alegre – século XIX. São Leopoldo: Unisinos, 2004b.
10 Baseamo-nos na compreensão do diagrama de Deleuze: o diagrama, disse, «es la exposición de las relações de fuerzas que constituyen el poder» (1987, p. 63).
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PESAVENTO, S. Os pobres da cidade. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1998. SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983.
O tema deste caderno foi apresentado no IHU Idéias, dia 19 de agosto de 2004.
DEBATE Reinaldo Luís (coordenador do Jornal Boca de Rua) – Eu coordeno o jornal Boca de Rua, que já é quase uma referência aqui no Rio Grande do Sul na área de Direitos Humanos. A tua explanação foi muito enriquecedora, muito descritiva. A obra de Michel Focault se debruçou sobre complôs midiáticos, jurídicos, metafísicos, econômicos que se voltam contra o indivíduo, tornando-o homogêneo, e que estão a serviço de um Estado opressor, que muitos historiadores e jornalistas situam em uma visão de nova história, dessa história que esquece dos grandes mitos tradicionais, dos vencedores, e que se volta para os esquecidos, para os vencidos. Essa obra que se constitui como pressuposto para a formatação de um novo jornalismo, de um jornalismo como este que tentamos fazer aqui, de uma imprensa mais crítica, mais livre, menos facciosa, mais voltada para aqueles dois terços da população que vivem abaixo da linha de miséria e que são praticamente esquecidos, que não têm voz neste tipo de jornalismo. Eu queria que tu me dissesses de que maneira essa obra de Foucault exerceu influência sobre este novo tipo de jornalismo. Beatriz Marocco – A tua pergunta é extremamente interessante. Na minha banca de doutorado, me fizeram uma pergunta muito semelhante: como é que Foucault poderia contribuir para se fazer um novo tipo de jornalismo? Ele, na prática, contribui. Eu acho que estudei o jornalismo do final século XIX, início do XX, porque é quando o jornalismo começa a se cristalizar como uma ferramenta da sociedade capitalista. É assim que podemos ver como começou a funcionar. E como começou a funcionar? Na proximidade do Estado, das instituições que queriam alguma coisa efetiva na busca do controle do social. O jornalismo trabalha como uma ferramenta do controle social. Isso Park fala muito. Como se vai buscar um novo jornalismo? Muitas vezes, com determinados focos de luz. Foucault, por exemplo, fala em contrajornalismo, que seria este jornalismo contra os “colarinhos brancos”. Park fala em novo jornalismo, isso no final do século XIX, início do século XX, que seria um jornalismo que trabalharia com uma metodologia científica, para se aproximar com mais precisão das coisas que acontecem na realidade. Existia, naquela época, também o jornalismo muckraking, que trabalhava na denúncia dos políticos corruptos da época. Hoje, podemos visibilizar, com a Internet, o que Foucault chama de rede. O jor-
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nalismo hoje (eu não estou bem certa disso, se realmente aconteceu) até pode mudar o resultado de uma eleição, como aconteceu na Espanha. Participante – Eu gostaria de entender mais um pouco como era feita esta narrativa do jornalismo sobre os mendigos, as prostitutas... Podemos considerar como texto noticioso ou era apresentado como um comentário? Estas pessoas tinham voz ou elas sempre estavam presentes nos jornais pela voz de jornalistas? Que práticas você consideraria que ainda são mantidas no jornalismo atual? Beatriz Marocco – Vamos ver se eu consigo te responder tudo. O discurso da objetividade é o marco divisório disso aí, é uma noção que o jornalismo cristaliza mais ou menos na metade do século XX. Estes discursos que eu analiso são anteriores ao paradigma da objetividade jornalística, que é o primeiro grande paradigma do jornalismo. O que acontecia é que o espaço era loteado de outro modo nestes jornais; a redação, o modo da escritura era outro. Por exemplo, não temos a figura da notícia como hoje, em que há a figura, espacialmente falando, e há a temporalidade do ontem. Já naqueles jornais, nos fragmentos que estudo, os acontecimentos eram configurados em notas, mas que, na minha visão, seguiam o mesmo modo de configurar a realidade que a notícia segue. Eu não posso chamá-las de notícias, porque elas eram figuras que ainda não se tinham constituído nesta época. Eu as chamo de notas no meu trabalho e explico: essas notas saíam na capa, em páginas internas, normalmente agrupadas, mas que tinham relação, com um título. Elas falavam sobre a cidade. Os indivíduos nunca tinham voz, os jornalistas é que falavam por eles e também pelos vizinhos, porque os jornalistas se colocavam no discurso na primeira pessoa do plural, então eles transitavam entre a terceira pessoa do singular, a primeira do plural e, às vezes, a primeira do singular. A diferença é que, hoje, os jornalistas ouvem fontes, logo o que eles transmitem para o leitor tem que ser uma “verdade”, com base no depoimento do outro. Os jornalistas se escoram nas fontes e, naquela época, não, os jornalistas eram auto-suficientes. Não há discurso do outro entre aspas. Em uma das primeiras reportagens que li, mais para o fim do período que eu estudo, um jornalista da Gazetinha vai fazer uma reportagem em uma casa de prostituição. Ele começa descrevendo o caminho até a casa de prostituição. Ele vai junto com alguém que vai levá-lo, porque ele não pode ir sozinho a uma casa de prostituição, pois ele, teoricamente, não conhece esse tipo de casas (eu estou interpretando assim). Quirino, um conhecido, o leva. Lá chegando, batem na porta, e a prostituta os recebe. E começa um curto diálogo, a prostituta tem uma breve fala. Em seguida, vem a resposta dele. Neste texto, eu encontrei apenas essa fala, uma fala meteórica, mas significativa, porque fundamenta o lugar da fonte.
TEMAS DOS CADERNOS IHU IDÉIAS N. 01 – A teoria da justiça de John Rawls – Dr. José Nedel. N. 02 – O feminismo ou os feminismos: Uma leitura das produções teóricas – Dra. Edla Eggert. O Serviço Social junto ao Fórum de Mulheres em São Leopoldo – MS Clair Ribeiro Ziebell e Acadêmicas Anemarie Kirsch Deutrich e Magali Beatriz Strauss. N. 03 – O programa Linha Direta: a sociedade segundo a TV Globo – Jornalista Sonia Montaño. N. 04 – Ernani M. Fiori – Uma Filosofia da Educação Popular – Prof. Dr. Luiz Gilberto Kronbauer. N. 05 – O ruído de guerra e o silêncio de Deus – Dr. Manfred Zeuch. N. 06 – BRASIL: Entre a Identidade Vazia e a Construção do Novo – Prof. Dr. Renato Janine Ribeiro. N. 07 – Mundos televisivos e sentidos identiários na TV – Profa. Dra. Suzana Kilpp. N. 08 – Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho – Profa. Dra. Márcia Lopes Duarte. N. 09 – Oligopólios midiáticos: a televisão contemporânea e as barreiras à entrada – Prof. Dr. Valério Cruz Brittos. N. 10 – Futebol, mídia e sociedade no Brasil: reflexões a partir de um jogo – Prof. Dr. Édison Luis Gastaldo. N. 11 – Os 100 anos de Theodor Adorno e a Filosofia depois de Auschwitz – Profa. Dra. Márcia Tiburi. N. 12 – A domesticação do exótico – Profa. Dra. Paula Caleffi. N. 13 – Pomeranas parceiras no caminho da roça: um jeito de fazer Igreja, Teologia e Educação Popular – Profa. Dra. Edla Eggert. N. 14
Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros: a prática política no RS – Prof. Dr. Gunter Axt.
N. 15 – Medicina social: um instrumento para denúncia – Profa. Dra. Stela Nazareth Meneghel. N. 16 – Mudanças de significado da tatuagem contemporânea – Profa. Dra. Débora Krischke Leitão. N. 17 – As sete mulheres e as negras sem rosto: ficção, história e trivialidade – Prof. Dr. Mário Maestri.
N. 18 – Um initenário do pensamento de Edgar Morin – Profa. Dra. Maria da Conceição de Almeida. N. 19
Os donos do Poder, de Raymundo Faoro – Profa. Dra. Helga Iracema Ladgraf Piccolo.
N. 20
Sobre técnica e humanismo – Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Junior.
N. 21
Construindo novos caminhos para a intervenção societária – Profa. Dra. Lucilda Selli.
N. 22
Física Quântica: da sua pré-história à discussão sobre o seu conteúdo essencial – Prof. Dr. Paulo Henrique Dionísio.
N. 23
Atualidade da filosofia moral de Kant, desde a perspectiva de sua crítica a um solipsismo prático – Prof. Dr. Valério Rodhen.
N.24
Imagens da exclusão no cinema nacional – Profa. Dra. Miriam Rossini.
N. 25
A estética discursiva da tevê e a (des)configuração da informação – Profa. Dra. Nísia Martins do Rosário.
N. 26
O discurso sobre o voluntariado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS – Rosa Maria Serra Bavaresco.