Espiritualidade e respeito Ă diversidade Juan JosĂŠ Tamayo-Acosta
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Vice-reitor Aloysio Bohnen, SJ
Instituto Humanitas Unisinos Diretor Inácio Neutzling, SJ
Conselho editorial MS Ana Maria Formoso – Unisinos
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Cadernos Teologia Pública Ano IV – Nº 30 – 2007 ISSN 1807-0590
Responsável técnica Cleusa Maria Andreatta Revisão André Dick Secretaria Camila Padilha da Silva Editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck Impressão Impressos Portão
Editor Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos
Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos Prof. MS Laurício Neumann – Unisinos MS Rosa Maria Serra Bavaresco – Unisinos Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos Esp. Susana Rocca – Unisinos Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos Conselho científico Profa. Dra. Edla Eggert – Unisinos – Doutora em Teologia Prof. Dr. Faustino Teixeira – UFJF-MG – Doutor em Teologia Prof. Dr. José Roque Junges, SJ – Unisinos – Doutor em Teologia Prof. Dr. Luiz Carlos Susin – PUCRS – Doutor em Teologia Profa. Dra. Maria Clara Bingemer – PUC-Rio – Doutora em Teologia Profa. MS Maria Helena Morra – PUC Minas – Mestre em Teologia Profa. Dra. Maria Inês de Castro Millen – CES/ITASA-MG – Doutora em Teologia Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner – EST-RS – Doutor em Teologia
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Cadernos Teologia Pública A publicação dos Cadernos Teologia Pública, sob a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, quer ser uma contribuição para a relevância pública da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pública pretende articular a reflexão teológica em diálogo com as ciências, culturas e religiões de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Busca-se, assim, a participação ativa nos
debates que se desdobram na esfera pública da sociedade. Os desafios da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje, especialmente, a exclusão socioeconômica de imensas camadas da população, no diálogo com as diferentes concepções de mundo e as religiões, constituem o horizonte da teologia pública. Os Cadernos de Teologia Pública se inscrevem nesta perspectiva.
Espiritualidade e respeito à diversidade1 Juan José Tamayo-Acosta
Aos meninos e meninas de Kibera, subúrbio mais povoado da África – 800.000 pessoas – e símbolo da exclusão por obra da globalização neoliberal, que me acolheram carinhosamente com a saudação de “karibu” (= bem-vindo) e com quem sonhei por umas horas em “outro mundo possível”. Oxalá que o Fórum Mundial de Teologia e Libertação e o Fórum Social Mundial, celebrados nestes dias na cidade de Nairobi, despertem a consciência dos governantes e gerem a rebelião dos excluídos.
Desejo expressar meu agradecimento pelo convite a participar deste painel sobre “Espiritualidade e respeito à diversidade” dentro do Fórum Mundial de Teologia e Libertação, celebrado em Nairobi de 16 a 19 de 1
janeiro de 2007. É, para mim, uma honra e um privilégio compartilhá-lo com a Sra. Eunice Santa de Vélez e com minha colega, a teóloga nigeriana Teresa Okure. Participei também do I Fórum Mundial de Teologia e
Conferência pronunciada no Fórum Mundial de Teologia e Libertação, celebrado em Nairobi (Quênia), de 16 a 19 de janeiro de 2007.
Libertação, celebrado em janeiro de 2005 em Porto Alegre (Brasil), onde iniciamos a construção de uma teologia mundial da libertação, com a participação de teólogas e teólogos de todos os continentes. Gostaria que esta conferência contribuísse para avançar e aprofundar o objetivo de uma teologia intercultural e inter-religiosa da libertação. Centrarei o enfoque na diversidade religiosa e cultural, em cujo horizonte é necessário repensar e viver a espiritualidade. Divido minha exposição em três partes. A primeira refere-se às patologias da espiritualidade. A segunda analisa o fenômeno da diversidade religiosa e cultural como um fato, como uma necessidade e como riqueza do humano e da experiência religiosa que se deve potencializar. A terceira é a proposta de um novo paradigma de espiritualidade, com as seguintes características: interculturalidade, inter-identidade, diálogo de civilizações, interespiritualidade, inter-libertação e perspectiva feminista2. Começo com uma breve introdução sobre a espiritualidade como dimensão fundamental do ser humano e sua relação com outras dimensões.
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1. A espiritualidade, dimensão fundamental do ser humano A espiritualidade é uma dimensão fundamental do ser humano. É-lhe tão inerente como sua corporeidade, sua sociabilidade, sua praxicidade. Pertence, por conseguinte, a um substrato mais profundo3. Pois bem, a espiritualidade não é independente de outras dimensões, sua autonomia não é absoluta, como tão pouco pode reduzir-se ou deduzir-se mecanicamente das condições materiais de existência. Possui autonomia, certamente, mas é relativa, já que se sustenta nas condições em que vive o ser humano: políticas, sociais, econômicas, culturais, biológicas, ao mesmo tempo em que as ilumina e transforma. É necessário, por isso, evitar dois perigos: a separação absoluta da espiritualidade das demais dimensões do ser humano, que desembocaria em dualismo e espiritualismo, e a identificação com ditas dimensões, formando um todo indiferenciado. A relação entre as diferentes dimensões é dialética: todas elas são determinantes e se
Para um desenvolvimento mais amplo deste paradigma, cf. Maria José Farinas e Juan José Tamayo, Culturas y religiones en diálogo. Sínteses, Madri, 2007. Cf. Jon Sobrino, Liberación con espíritu. Apuntes para uma nueva espiritualidad, Sal Terrae, Santander, 1985.
codeterminam4. Entre o espiritual e o material dá-se uma unidade diferenciada. A espiritualidade não é uma dimensão independente da libertação, como o espírito não está ou não deve estar separado da totalidade do ser humano. Jon Sobrino fala da necessidade de imbuir de espírito a prática da libertação, da necessidade de unir espírito e prática. “Sem espírito, – afirma, – a prática está sempre ameaçada de degeneração; e, sem prática, o espírito permanece vago, indiferenciado, muitas vezes alienante.”5 Não é possível a vida espiritual sem vida real e histórica, como tampouco viver com espírito, sem que este se faça carne. Três são os pressupostos que Sobrino estabelece para toda espiritualidade, tanto antropológica como teologal: a honradez com a realidade, a fidelidade ao real e o deixar-se levar pelo “mais” da realidade.
tando-se de sua função libertadora e transformadora, da qual se tem falado reiteradamente neste Fórum. Concentrar-me-ei em seis: a) Espiritualidade entendida e praticada como negócio e submetida ao assédio do Mercado; b) Espiritualidade manipulada politicamente por interesses espúrios a serviço do império e submetida a seu serviço; c) Espiritualidade vivida e praticada patriarcalmente nas religiões monoteístas; ou como discriminação feminina sob o assédio do patriarcado; d) Espiritualidade uniforme e monolítica nos discursos identitários e nos monoteísmos; e) Espiritualidade institucional sem e(E)spírito; f) Privatização e despolitização da espiritualidade. a) O negócio da espiritualidade na religião do Mercado
2. Patologias da espiritualidade, hoje A espiritualidade vive hoje uma série de patologias que a desalinham e falseiam de maneira extrema, afas4
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São cada vez mais reduzidos os âmbitos da existência que escapam ao mundo do negócio. O ócio, a vida privada, as relações pessoais, a cultura, espaços vitais que outrora estavam mais ou menos preservados dos cír-
Cf. Ignácio Ellacuría, “Espiritualidad”, em Casiano Floristán e Juan José Tamayo (eds.), Conceptos fundamentales del cristianismo, Trotta, Madri, 1993; José Maria Castillo, Espiritualidad para insatisfechos, Trotta, Madri, 2007. Jon Sobrino, op. cit., p. 7.
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culos venais, caíram na armadilha da racionalidade calculadora, produtivista, interesseira, instrumental, numa palavra, científico-técnica, que busca resultados na forma de benefícios efetivos. A dialética dos meios- fins e o princípio “vale o quanto produzes” acabaram por reger o mundo das experiências de profundidade do ser humano. Até a espiritualidade acabou por cair nas redes do mercado, submetendo-se às suas férreas leis, e por entrar nos círculos econômicos e financeiros que a converteram em mais um objeto de consumo e de compra e venda. O Wall Street Journal revelava, no ano 2000, que a espiritualidade movia no mundo mais de um bilhão de dólares. Creio que esse valor ficava aquém. Aí está para demonstrá-lo o mundo da magia e da superstição, em sua versão religiosa e laica, que se apropriou da espiritualidade e comercializa com ela a preços de mercado, além de esvaziá-la de sua dimensão vital profunda. Aproveita-se da debilidade psicológica e cultural do povo e negocia com os sentimentos, que vêm a ser o mais sagrado da pessoa. Cresce o número de adeptos da “cultura dos horóscopos”, que se converteu numa religião de gente crédula, carente de sentido crítico ante o bombardeio de uma publicidade enganosa. Aumenta, igualmente, a cli-
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entela nas consultas a videntes, cartomantes, magos/as, adivinhos/as etc. Trata-se de uma clientela de toda condição e idade em busca de mensagens otimistas que lancem um raio de esperança em meio a uma vida rasgada ou desgarrada por múltiplos conflitos. O preço a pagar é muito alto, tanto no plano econômico quanto no humano. Estamos ante uma nova forma de simonia, ainda mais perversa do que a de Ananias e Safira, descrita nos Atos dos Apóstolos (At 5, 1-11), já que se aproveita da debilidade psicológica e cultural do povo e negocia com os sentimentos, que são o mais sagrado que a pessoa possui. Pode-se aplicar à espiritualidade o que Sygmunt Bauman diz da ética: que ela está submetida ao assédio do mercado. A espiritualidade na religião do mercado converte-se em idolatria, em adoração, neste caso não ao bezerro de ouro, como em tempos de Moisés no Sinai, senão ao ouro do bezerro. Também as religiões orientais se converteram, no Ocidente, em negócio por violadores do sagrado. O que é um maravilhoso capital antropológico, sapiencial e místico da humanidade, passou a ser uma forma de exploração de gente crédula, sem capacidade de autodefesa frente às agressões dos manipuladores sem escrúpulos.
Na religião do mercado não há lugar para a gratuidade, a com-paixão, o compartilhar. Impõem-se a espiritualidade do consumo e o pagamento da dívida, até o último centavo. O neoliberalismo opera como uma religião monoteísta que professa a fé no dogma da Unicidade do Mercado, como um sistema de crenças com seu credo econômico único, cujos artigos se encontram no “Consenso de Washington”, do qual falou François Houtart em sua conferência, com seus sacramentos, templos, sacrifícios e clero, e com seu evangelho, o da competitividade. Uma competitividade que afeta todos os âmbitos da vida é a única tábua de salvação: “é como a graça – diz Riccardo Petrella –: se tem, ou não se tem. Não é divisível. Aqueles que a têm se salvarão. Aqueles que cometem o pecado de não serem competitivos estão condenados a desaparecer”6. A religião do Mercado tem também suas Tábuas da Lei, sua ética própria, seu código moral específico, que exalta a liberdade individual como valor absoluto, sem referência comunitária nem dimensão social, a livre iniciativa como desenvolvimento da liberdade individual, o culto ao dinheiro, convertido em ídolo e a não-solidariedade como estilo de vida.
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Os traços comuns a toda espiritualidade, religiosa ou não, são os seguintes: o respeito pelo ministério (que não é manipulável), a experiência comunitária da fé, a relação pessoal com a divindade ou as divindades, com o que nos transcende; a contemplação, o silêncio, a estética do sagrado, a fascinação pelo santo, a veneração pela natureza, o compartilhar, o reconhecimento do O(o)utro e suas conseqüências éticas, a com-paixão, inclusive a religião como consolo. Na religião do Mercado, no entanto, não há lugar para nada disto. Estes valores que já não se cultivam, nem sequer no seio das religiões ou igrejas – pelo menos no Ocidente. É necessário libertar a espiritualidade das faces do mercado e devolver-lhe sua profundidade e “trans- descendência”, vivendo a experiência de fraternidade- sororidade-sócio-cósmica que abranja todos os níveis da existência. Caso contrário, o E(e)spírito – com maiúscula ou minúscula – será engolido pelo sistema e ficaremos privados de uma das fontes de energia para a humanidade e a natureza. Sem o E(e)spírito não haveria mais dia, somente noite, não haveria mais vida, somente morte. A espiritualidade, sem embargo, desemboca na ressurreição,
Riccardo Petrella, El evangelio de la competitividad: Le Monde Diplomatique, dez. 2003/jan. 2004.
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que é a utopia pela qual todos sonhamos e que todos queremos ver realizada. b) A manipulação da espiritualidade na religião do Império
A espiritualidade está submetida igualmente ao assédio do Império na nova religião que este construiu à sua imagem e semelhança. O Império se apropria do Deus cristão como aliado seu a quem põe a seu serviço, neste caso a serviço da guerra. Apropria-se de Jesus de Nazaré, cuja personalidade suplanta. Faz do cristianismo sua religião oficial e a converte numa espiritualidade de reconquista, de combate, de trincheira contra o Islã, considerada por Samuel Huntington, um dos ideólogos do Império, “a civilização menos tolerante das religiões monoteístas”. O Deus do cristianismo se converte em ídolo e a religião cristã em mediação idolátrica. A manipulação de ambos termina por legitimar os comportamentos bélicos do Império. Nesta religião, se produz um uso e abuso de Deus, até matar em seu nome, com o que se converte Deus num assassino ávido de sangue para aplacar sua ira, como o deus Moloc. O Deus da vida se torna Deus da morte. Como se pode crer num Deus assassino? A palavra “Deus” é, então, a palavra mais mutilada e vilipendiada, como dissera Martin Buber: “As gerações humanas fize10
ram rodar sobre ela o peso de sua vida angustiada e a oprimiram contra o solo. Jaz no pó e agüenta o peso de todas elas. As gerações humanas, com seus partidismos religiosos, desgarraram esta palavra. Mataram e se deixaram matar por ela. Esta palavra leva seus rastos dactilares e seu sangue”. A espiritualidade do Império é necrófila, semeia a morte e a destruição por toda parte: na humanidade, na natureza, na atmosfera. c) Espiritualidade androcêntrica nas religiões monoteístas
As religiões estão configuradas patriarcalmente. E a espiritualidade institucional lhes corresponde com seu caráter patriarcal e androcêntrico. O varão constitui o modelo de espiritualidade, de encontro com Deus. As mulheres são distanciadas do mundo do sagrado, colocadas fora do altar e submetidas à invisibilidade. Seu lugar, na tradição cristã, é, junto à cruz, sua espiritualidade, a do sofrimento redentor, imitando a Cristo, nunca participando de sua glória, de sua ressurreição, e isso quando elas foram as primeiras testemunhas do Ressuscitado, as primeiras crentes na igreja cristã e as que difundiram a mensagem de Jesus de Nazaré com plena autenticidade, bem além do mundo judeu. A espiritualidade do varão é a do mérito, da autoridade, do êxito, do reconhecimento,
da visibilidade, em definitivo: da aparência, muito parecida à do fariseu do Evangelho. A espiritualidade das mulheres, pelo contrário, se caracteriza pelo silêncio, pela abnegação, pela submissão, pela invisibilidade, pelo cuidado, pela entrega, pelo serviço, pela imagem de Cristo que não veio para ser servido, mas para servir. Dito modelo de espiritualidade não é específico do cristianismo. Costuma ser comum a todas as religiões, especialmente às monoteístas, com um Deus varão, patriarca, senhor e dono de pessoas, de vidas e bens. d) Espiritualidade uniforme nos discursos identitários e nos fundamentalismos
Hoje, predominam os discursos identitários que se elaboram em torno a uma concepção cerrada da própria identidade, seja esta étnica, cultural ou religiosa. Trata-se de uma identidade pura, não contaminada, que se constrói de maneira solipsista, autista, no interior de cada tradição, sem diálogo nem comunicação com outras identidades. Uma identidade que se opera como muro protetor 7
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frente a outras identidades e como trincheira em luta contra outras identidades. São discursos frentistas do “eu” frente ao “outro”, do “nós” frente aos outros, que não assumem nem integram as diferenças culturais e religiosas, senão que fomentam o choque, a confrontação e desembocam, com freqüência, em novas guerras de religiões e de culturas7. Dois exemplos emblemáticos de discurso identitário fechado: um cultural e outro religioso. O discurso identitário cultural está representado por Samuel Huntington, para quem as identidades culturais estão configurando as pautas de coesão e de desintegração no mundo do pós-guerra fria. A fidelidade cultural é o que, em seu juízo, resulta mais pertinente e significativo8. Huntington defende o choque de culturas e civilizações como lei da história no século XXI: “A fonte essencial de conflito neste novo mundo não será fundamentalmente ideológica nem fundamentalmente econômica. As grandes divisões da humanidade e a fonte predominante do conflito serão de tipo cultural. As Nações-Estado continuarão sendo os atores mais poderosos na política mundial, po-
Cf. Juan José Tamayo e Maria José Farinas, Culturas y religiones en diálogo, o. c., especialmente os capítulos dedicados aos fundamentalismos religioso, cultural, político e econômico, p. 13-102. S. P. Huntington, El choque de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial, Paidós, Barcelona, 1997; idem, ¿Quienes somos? Los desafios de la identidad estadounidense, Paidós, Barcelona, 2004.
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rém os principais conflitos de dita política produzir-se-ão entre nações e grupos de civilizações distintas. O choque de civilizações dominará a política mundial. As linhas divisórias entre civilizações serão as frentes de batalha do futuro”. O discurso identitário religioso está representado pela encíclica Dominus Iesus, publicada no ano de 2000 pela Congregação para a Doutrina da Fé. Seu objetivo é duplo: a) fixar nitidamente a ortodoxia católica em sua relação com a figura de Jesus, a identidade da Igreja e a relação com as ouras religiões, recuperando o velho princípio excludente “fora da Igreja não há salvação” e apresentando Jesus de Nazaré como salvador único e universal (cristologia e eclesiologia excludentes); b) condenar as teologias do diálogo inter-religioso e a complementaridade do cristianismo e das religiões, defendendo a identidade e a superioridade exclusivas do cristianismo sobre as demais crenças. “É, portanto” – afirma –, “contrário à fé da Igreja a tese do caráter limitado, incompleto e imperfeito da revelação de Jesus Cristo, que seria complementar à presente nas outras religiões. A razão que está na base desta asserção pretenderia dar-se através do fato de que a verdade acerca de Deus não poderia ser acolhida e ma9
F. Nietzsche, El libro del filósofo, Taurus, Madri, 1974, p. 91.
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nifestada em sua globalidade e plenitude por nenhuma religião histórica, e portanto, nem pelo cristianismo, nem por Jesus Cristo” (n. 6). São duas as afirmações que reforçam o discurso identitário fechado que desemboca no autismo e na exclusão: uma, que a revelação oferecida por Cristo compreende a plenitude da verdade sobre Deus; a outra, que somente a Igreja católica romana conservou de maneira fiel o testemunho da plenitude desta verdade. O problema que aqui se coloca é epistemológico: O que é a verdade? Como defini-la? Recorro à pergunta e à resposta de Nietzsche: “O que é, então, a verdade? Uma hoste ambulante de metáforas, metonímias e antropomorfismos”9. Dominus Iesus sublinha a perenidade do anúncio missionário da Igreja e vem afirmar que o pluralismo religioso desemboca no relativismo. Eis o texto: “A perenidade do anúncio missionário da Igreja está atualmente em grave perigo pelas teorias relativistas que tratam de justificar o pluralismo religioso, não somente de fato, senão também de iure (ou por princípio)” (n. 4). Ignace Berten vê neste texto um claro reflexo da distinção que, em 1863, a propósito das liberdades modernas, estabele-
cia entre tese e hipótese La Civiltá Católica: “As liberdades modernas, enquanto tese, quer dizer, enquanto princípios universais sobre a natureza humana em si mesma e na ordem divina do mundo, são absolutamente condenáveis... Porém, enquanto hipótese, quer dizer, como disposições características e especiais de tal ou qual país, podem ser legítimas”. O discurso identitário cristão específico e não contaminado é uma constante na hierarquia católica espanhola e em determinados teólogos a ela vinculados. Manifesta-se de maneira especial no recente documento Orientaciones morales sobre la situación em España. Identidade que eles vêem ameaçada, questionada, perseguida e negada pelo clima de laicismo crescente da sociedade espanhola. Os discursos identitários, instalados com freqüência nas cúpulas das religiões e da política, dão lugar a uma espiritualidade uniforme, fechada sobre si mesma, sem comunicação com outras espiritualidades e experiências, com clara intenção apologética da própria espiritualidade e condenatória de outras espiritualidades.
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e) Espiritualidade institucional sem espírito
As religiões tendem a preservar as instituições de toda ameaça externa e interna e a blindá-las em face de toda crítica. Dessa maneira, crêem assegurar melhor sua estabilidade e garantir sua sobrevivência. Sem embargo, esquecem-se com freqüência da mensagem originária, do espírito de seus fundadores e do contexto no qual surgiram. Qual é o resultado? Uma espiritualidade com poder – em algumas religiões, em conivência com o poder político, econômico e militar, e em outras, em clara aliança com ditos poderes –, porém sem espírito, com disciplina rígida, porém sem dinamismo, com autoridade, porém sem liberdade, com robustez institucional, porém sem profecia10. f) Privatização e despolitização da espiritualidade
Existe uma tendência cada vez mais acentuada a dividir a realidade em dois planos perfeitamente diferenciados e desconectados: público-privado, sagrado-profano, material-espiritual, celeste-terrestre, real-ideal, huma-
Desenvolvi esta idéia em José Maria Castillo e Juan José Tamayo, Iglesia y sociedad en España, Trotta, Madri, 2005, p. 97-137.
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no-divino, religião-sociedade, mito-história. Dita divisão de espaços pode-se sentir de maneira especial no terreno da espiritualidade, que costuma ser reduzida ao âmbito privado, encerrada na esfera da consciência e localizada somente nos espaços de culto, para preservá-la de seus assédios exteriores. Como justificativa da tal separação, costuma-se citar, fora de contexto e com uma forte carga ideológica, o texto evangélico que se põe nos lábios de Cristo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Segundo isto, o divino se encontra fora do humano, e o lugar natural da espiritualidade é a alma. Estamos no grau máximo de privatização, despolitização e espiritualização. Existe, por sua vez, um retraimento com respeito à política e, em geral, para com tudo o que tem a ver com a esfera pública, o público, até converter-se, como já vira, com extraordinária lucidez, Hannah Arendt, na “atitude básica do indivíduo moderno que, alienado do mundo, só pode revelar-se verdadeiramente no privado e na intimidade dos encontros cara a cara”11. Para ela, o âmbito público perdeu o poder de iluminação que caracterizava sua natureza original. 11 12
Pois bem, sem dimensão política, a espiritualidade desemboca em espiritualismo, e, sem espiritualidade – não necessariamente religiosa –, a política se converte em razão de Estado e passa a ser pura gestão administrativa rotineira e técnica eleitoral, que acaba sendo alheia aos cidadãos e cidadãs, vem legitimar a ordem estabelecida e renuncia à sua função libertadora.
3. Diversidade religiosa e cultural A diversidade é uma dimensão do humano e constitui a verdadeira riqueza da humanidade. Ela é um fato, uma realidade, como também um direito e uma necessidade. A diversidade está na natureza das coisas, é um valor a ser potencializado. Mais ainda: é a perfeição do universo, como assevera Tomás de Aquino na Suma Teológica: “A perfeição do universo consiste na diversidade das coisas. Assim como a Sabedoria divina é causa da distinção das coisas, assim o é da diferença das coisas”12. O Corão o sublinha assim: “Criamo-vos a todos como varão e mulher, e vos fizemos nações e tribos, para
Cf. Hannah Arendt, Hombres en tiempos de oscuidad, Gedisa, Barcelona, 1990, p. 24. Summa Theologica I, q. 47, a. 1-2.
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que vos reconheçais uns aos ouros” (49. 13). A diversidade oferece uma riqueza de possibilidades e possui um grande potencial criativo, de que carecem o pensamento único e a uniformidade. O mesmo sucede no terreno religioso. Vivemos num pluriverso religioso, não num universo religioso. A história das religiões é uma longa viagem pela geografia e pelo tempo em busca dos sinais religiosos deixados pelo ser humano nas diferentes culturas. Esta disciplina mostra a grande criatividade mítica, sapiencial, ritual, ética e simbólica da humanidade. Dá conta da transbordante imaginação dos seres humanos na busca de caminhos de salvação, tanto imanentes como transcendentes. Mostra, por sua vez, com todo luxo de detalhes, a pluralidade de manifestações do divino, do sagrado, do mistério na história, a pluralidade de religiões e de movimentos espirituais radicados em distintos contextos culturais e sociais, a pluralidade de mensageiros, profetas, personalidades religiosas, a pluralidade de perguntas em torno ao sentido da vida e ao sem sentido da morte, a pluralidade de respostas a ditas perguntas sobre a origem e o destino do mundo, o sentido da história e o lugar do ser humano no universo e na história, a pluralidade de mediações histó-
ricas, através das quais se têm expressado as religiões. Mostra, em definitivo, que existem múltiplos e muito variados universos religiosos, cada um com sua especificidade cultural, porém não fechados e sem comunicação entre si, mas em constante intercâmbio e reformulação de seus respectivos patrimônios culturais. A diversidade religiosa também se dá num mesmo território. Sirvam dois exemplos: o subúrbio de Kibera em Nairobi, que visitamos ontem, e meu país, a Espanha. Em Kibera, existem mais de 300 denominações religiosas e 50 etnias e não costuma haver conflitos por razões religiosas. A Espanha, país de religião e cultura únicas durante séculos: a católica – pela expulsão dos judeus e dos muçulmanos e pela perseguição do protestantismo –, é hoje um cruzamento fecundo de culturas, religiões e movimentos espirituais em diálogo. A diversidade religiosa não constitui uma ameaça contra a vivência e o desenvolvimento da própria religião. Pelo contrário, é uma vantagem, porque contribui para enriquecê-la. “Podemos aprender de outras religiões sem sacrificar a fidelidade à nossa própria tradição, ou se trata antes do sincretismo doutrinal da Nova Era contra o que aquilo sobre que o Papa nos advertiu recen-
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temente?” pergunta-se Gwen Griffith-Dickson13. A resposta não pode ser mais que afirmativa. Na cosmovisão cristã ocidental dominante, por exemplo, existem elementos espúrios que não lhe pertencem, mas estão muito afastados da mensagem originária do cristianismo e dos primeiros seguidores de Jesus de Nazaré e dos quais se pode prescindir, sem que isto suponha trair a mensagem e a práxis libertadoras do Evangelho. Pelo contrário, a renúncia a ditos elementos é condição necessária para a recuperação do núcleo autêntico da fé cristã. Tanto os textos sagrados do cristianismo como os do Islã reconhecem o pluralismo religioso, a pluralidade de manifestações e revelações de Deus e valorizam todas elas positivamente. A carta aos Hebreus, da Bíblia cristã, afirma que em outras épocas Deus falou de distintas maneiras através dos profetas e que agora o fazia por meio de Jesus Cristo. O Corão se refere de maneira insistente às distintas revelações de Deus: a Abraão, Isaac, Ismael, Jacó, às 12 tribos de Israel, aos profetas e a Jesus de Nazaré, bem como aos diferentes livros sagrados: a Tora, a Sabedoria, o Evangelho, o próprio Corão (3,3; 3, 48). Para o Corão, a diversidade religiosa não é, portanto, um
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desvio do caminho de Deus, mas algo querido por Ele. No entanto, ele não pára no reconhecimento e na valoração positiva do pluralismo religioso, mas convida ao debate, à discussão, entre judeus, muçulmanos e cristãos. Uma discussão que deve caracterizar-se pelos respeito e pelos bons modos. Por acaso, a diversidade religiosa, a aceitação do pluralismo e a abertura a outras religiões levam ao relativismo e inclusive à crise das crenças e à perda da prática religiosa? Assim pensava o cardeal Ratzinger que, na homilia prévia ao início do conclave em que foi eleito papa, denunciou a ditadura do relativismo. Porém, o fez a partir do dogmatismo, a partir da crença de que o cristianismo é a religião verdadeira. Assim o crêem também alguns dirigentes eclesiásticos, para quem a existência de várias religiões num mesmo território gera desconcerto na cidadania e desemboca no ceticismo e, em definitivo, em descrença generalizada. Não parece ser esta, sem embargo, a realidade. Diferentes estudos sociológicos coincidem em que os países e as cidades com maior grau de diversidade religiosa possuem os índices mais altos de crença e prática.
Gwen Griffith-Dickson, ¿Es la religión una invención occidental?: Concilium 302 (Setembro de 2003), p. 24.
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4. Novo paradigma de espiritualidade no horizonte da diversidade A diversidade cultural e religiosa de nosso mundo e de nossas sociedades requer o repensar, reformular e reviver a espiritualidade dentro de um novo paradigma, que proponho, em continuação, em torno a seis chaves: interespiritualidade, diálogo de civilizações, interidentidade, inter-libertação e espiritualidade feminista. a) A interculturalidade, sinal dos tempos e imperativo ético
Creio, contra Samuel P. Huntington, que o choque de civilizações não é uma lei da história humana, como tampouco o signo de nosso tempo, e menos ainda uma espécie de imperativo ético. Na realidade, trata-se de uma patologia, de uma construção ideológica do Império para seguir dominando o mundo e, qual detetive privado e “grande irmão”, as consciências de seus habitantes. O sinal dos tempos e o imperativo ético é a interculturalidade, que dá lugar à interidentidade e à interespiritualidade. Entendo a interculturalidade como comunicação simétrica, inter-relação harmônica e interação dinâmica de diferentes culturas, filosofias, teologias, concepções morais, sistemas jurídicos, modos de pensar, estilos de
vida e formas de atuar, num clima de diálogo entre iguais e sem hierarquizações prévias. A interculturalidade parte do valor e da dignidade de todas as culturas, da não superioridade apriorística de uma sobre as demais e da relação não hierárquica entre elas. É um antídoto contra o fundamentalismo político, cultural e econômico. Além de tolerância, a interculturalidade implica uma comunicação fluida entre grupos cultural, religiosa, étnica e socialmente diferentes, diálogo inter-religioso e convivência interétnica dinâmica, enquanto isso supõe enriquecimento da própria cultura e das demais. E tudo isso assumindo os conflitos que a interculturalidade pode gerar, e de fato gera. Do ponto de vista moral, a interculturalidade implica chegar a alguns mínimos éticos comuns para uma convivência harmônica. Do ponto de vista da identidade, exige flexibilizar o conceito de identidade cultural, abrindo-o a outras identidades como forma de enriquecimento, questionamento e recriação da própria cultura. Neste sentido, constitui um importante corretivo ao fundamentalismo cultural instalado na cultura ocidental. A interculturalidade constitui uma experiência de abertura respeitosa ao “outro”, aos “outros”, mediante o diálogo e a acolhida, que obriga a redelinear a própria vida pessoal e a vida social. Não se trata de uma adapta17
ção forçada ou imposta pelas circunstâncias. Implica, antes, a abertura à pluralidade de textos e contextos, considerados todos eles como fontes de conhecimento, à pluralidade de culturas consideradas como fontes inesgotáveis de sabedoria, e à pluralidade de religiões, consideradas como espaços antropológicos privilegiados, nos quais, como vimos, se colocaram as grandes perguntas da humanidade sobre a origem e o fim do universo, o sentido e o sem-sentido da vida, da dor e da morte e se propuseram caminhos plurais de salvação. b) A espiritualidade no diálogo de civilizações
A interculturalidade dá lugar ao diálogo de civilizações, iniciativa proposta na década de 1970 do século XX por Roger Garaudy, retomada duas décadas depois por Jatami, presidente do Irã, reconvertida em Aliança de Civilizações pelos presidentes de governo da Espanha e da Turquia em 2004 e assumida pela ONU. O diálogo de civilizações apresenta as seguintes características, segundo Garaudy: • Luta contra o isolamento pretensioso do “pequeno eu” e a insistência na verdadeira realidade do eu, que é, antes de tudo, relação com o outro e relação com o todo. 18
• Ensina a conceber o futuro não como uma crença plácida no “progresso” nem como uma simples extrapolação tecnológica de nossos projetos, mas como a aparição de algo radicalmente novo mediante a ascese do não eu, do não agir, do não saber. • No plano da cultura, ajuda-nos a abrir horizontes infinitos. • Ajuda a descobrir (tomar consciência) de que o trabalho não é a única matriz de todos os valores, pois além dele estão a festa, o jogo, a dança, como símbolos do ato de viver. • Põe em tela de juízo um modelo de crescimento cego, sem finalidade humana, um crescimento cujo único critério é o incessante aumento quantitativo da produção e do consumo. • Exige uma política que não seja somente da ordem dos meios, mas da ordem dos fins, uma política que tenha por objeto, por critério, por fundamento, uma reflexão sobre os fins da sociedade global e uma participação de cada um, sem alienação de poder, na busca e realização desses fins. • Descobre a nova dimensão da fé na política e na cultura e vive a liberdade como participação de cada pessoa no ato criador.
• Interrogar sobre os fins, o valor e o sentido de nossas vidas e de nossas sociedades, que permita, ao mesmo tempo, uma transformação dos seres humanos e das estruturas, é tradicionalmente um papel e uma função reservados às religiões14. Para Garaudy, no diálogo de civilizações resulta fundamental a espiritualidade entendida como o esforço por encontrar o sentido e a finalidade de nossas vidas. Uma espiritualidade que se pode e deve viver nas sabedorias sem Deus, como o budismo, no Tao na China, nos Upanishad na Índia, nas religiões tradicionais africanas... Todas elas ajudam a dominar e, inclusive, a extinguir “o eu pequeno” e a tomar consciência de que “o centro mais íntimo do eu é o centro do universo” e de que são “uma chamada a ser um com o todo”15. Eu acrescentaria: nas religiões africanas, nas teologias da libertação. É a espiritualidade assim entendida que pode livrar-nos do “suicídio planetário” que se manifesta nos seguintes fenômenos: crescimento da desigualdade entre Norte e Sul e, dentro dos países desenvolvidos, entre os que têm e os que não têm; natureza em vias de extinção 14 15
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pela contaminação e esgotamento dos recursos; estilo de vida ocidental insustentável e não universalizável; lógica da vida submetida à lógica do mercado. “Uma revolução tem mais necessidade de transcendência do que de determinismo”, sentencia Garaudy16. c) Interidentidade
A interculturalidade e o diálogo de civilizações levam diretamente à interidentidade. Não existem identidades puras, incontaminadas, nem religiosas, nem culturais. A identidade se constrói no diálogo com e em abertura a outras identidades. Culturas e religiões se desenvolvem em interação, em permanente comunicação, em constante tensão dentro da dialética de encontro e de enfrentamento. A identidade, afirma Zygmunt Bauman, é como um mosaico ao qual falta uma peça. “Que eu descubra minha própria identidade – afirma Charles Taylor – não significa que eu a tenha elaborado no isolamento, mas que a negociei por meio do diálogo, em parte aberto, em
Ibidem, p. 228. Roger Garaudy. El diálogo entre Oriente y Occidente. Las religiones y la fe en el siglo XX, El Almendro, Córdoba, 2005, p. 9. Cf. tb. Roger Garaudy, Diálogo de civilizaciones, Cuadernos para el Diálogo, Madri, 1977. Roger Garaudy, El diálogo entre Oriente y Occidente, op. cit., p. 12.
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parte interno, com os demais. Por isso, o desenvolvimento de um ideal de identidade que se gera internamente atribui uma nova importância ao reconhecimento. Minha própria identidade depende, de forma crucial, de minhas relações dialógicas com os demais.” A Bíblia judaica e a Bíblia cristã são um bom exemplo dessa relação dialógica, crítica e mutuamente fecunda entre o helenismo e o judaísmo, entre o pensamento grego e o cristão. Ambos os livros representam um dos exemplos mais luminosos de interidentidade, de diálogo intercultural e inter-religioso entre Atenas e Jerusalém, entre cristianismo, judaísmo e helenismo, embora não isento de conflitos e inclusive de guerras. Um diálogo que deve prosseguir hoje em seu estudo e interpretação17. d) A interespiritualidade como alternativa
A interculturalidade, o diálogo de civilizações e a interidentidade levam diretamente à interespiritualidade, 17 18
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em correspondência com a atual era interespiritual, na qual vão se eliminando as fronteiras e os antagonismos que, ao longo de milênios, separaram e tornaram inimigas as religiões18. O momento presente se caracteriza pela transgressão de fronteiras e o surgimento de novas identidades inter-religiosas. A interespiritualidade tem o mesmo signo: ser cruzamento das experiências espirituais, morais e rituais das diferentes tradições religiosas, dentro do respeito e do reconhecimento das diferenças e participar “dos tesouros espirituais, ascéticos, morais e psicológicos que existem nas diferentes tradições de espiritualidade que vivem nas religiões do mundo” (Teasdale). Um dos lugares privilegiados para dito encontro é a mística que, segundo a fenomenologia da religião, constitui a essência da religião, entendida esta como dimensão do ser humano e não como organização, segundo Ramón Panikkar, que crê ser necessário libertar a religião dos estreitos moldes em que tem sido enquadrada no Ocidente19.
Antonio Piñero, Bíblia y judaísmo, El Almendro, Córdoba, 2006. Parece-me muito esclarecedor neste tema o n. 280 (1999) da revista Concilium, dedicado à Transgressão de fronteiras: ¿Surgimiento de nuevas identidades? E especialmente o artigo El misticismo como cruce de fronteras últimas: reflexión teológica, de Wayne Teasdale, p. 122-128, que inspira esta secção. Cf. Ramon Panikkar, Hacía una teologia de la liberación intercultural y interreligiosa, in Juan José Tamayo e Raúl Fornet-Betancourt (dir.s)m Interculturalidad, diálogo interreligioso y liberación. I Simpósio Internacional de Teologia Intercultural e interreligiosa de la liberación. Verbo Divino, Estella (Navarra), 2005, p. 61-68.
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Na origem das religiões, há uma experiência mística, vivida em sua radicalidade pelos fundadores e primeiros seguidores, a qual brota do encontro com o mistério. O hinduísmo remonta aos nishis, quer dizer, aos sábios do bosque20. O drama budista arranca do momento da iluminação de Sidarta Gautama, o Buda21. O judaísmo tem sua origem na revelação de Javé aos patriarcas e às matriarcas de Israel, a Abraão, Isaac e Jacó, a Moisés, o Libertador, e à sua irmã Miriam, aos profetas e profetizas críticos do culto e defensores da justiça e da subjetividade da fé. O cristianismo nasce do encontro de Jesus com Deus, a quem, num gesto de confiança, se dirige chamando-o Abba (= papai-mamãe)22. A origem do islã encontra-se na revelação de Al-lah a Muhammad e na experiência mítica do Profeta, que tem sua continuidade no sufismo, cuja figura e autoridade máxima é o teólogo e 20 21
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poeta espanhol Ibn-Al’Arabi (1165-1240)23. A mística constitui o elemento de inspiração e de dinamismo das religiões indígenas da Ameríndia e da religião africana, como tivemos ocasião de conhecer em distintas exposições deste Fórum. O que se passa é que a religião e a cultura dominantes têm tentado sufocar e desacreditar a experiência mística nestas religiões, acusando-as de idolátricas, antiquadas e a-históricas. Esta atitude de superioridade da cultura dominante em relação com as religiões e culturas indígenas da Ameríndia é muito bem expressa por Eduardo Galeano: “A cultura dominante admite os indígenas e os negros como objetos de estudo, porém não os reconhece como sujeitos de história; eles têm folclore, não cultura; praticam superstições, não religiões; falam dialetos, não idiomas; fazem artesanato, não arte”.
Cf. Gallul Jardiel, E., El hinduismo, Ediciones del Orto, Madri, 2000; Ramana Maharshi, Enseñanzas espirituales, Kairós, Barcelona, 1986. Nyanaponika, B., El corazón de la meditación budista, Cedel, Barcelona, 1992. Panikkar, R., El silencio del Buddha, Siruela, Madri, 1996; Román, T., Buda. El sendero del alma, UNED, Madri, 1997; Vélez de Cea, A., Buddha, Ediciones del Orto, Madri, 1998; Idem, El buddhismo, Edicones de Orto, Madri, 2000. Cf. Jeremias, J. “Abba”, in: idem, El mensaje central del Nuevo Testamento, Sígueme, Salamanca, 1966, 11-37. Para a mística européia, cf. Haas, A. M., Visión en azul. Estúdios de mística europea, Siruela, Madri, 1999. Cf. Ibn-Al-Arabi, El secreto de los nombres de Dios, introd., trad. e notas de Beneito, P., Editora Regonal de Murcia, Murcia, 1966; Idem, Las contemplaciones de los mistérios, trad. de Hakim, S. e Beneito P., Editora Regional de Murcia, Murcia, 1995; Idem, Guia espiritual, trad. de M. Amrani, T. Bayrak, Editora Regonal de Murcia, Murcia, 1995; Pablo Beneito, Galindo Aguilar, E., La experiencia del fuego. Itinerario de los sufies hacia Dios, Verbo Divino, Estella, (Navarra), 1994; Idries Shah, Los Sufis. Introd. de Graves, E., Kairós, Barcelona, 1996.
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Um exemplo do encontro de espiritualidades, dentro do respeito à diversidade cultural e religiosa, pode ser encontrado num texto paradigmático do místico muçulmano espanhol Ibn-Al’Arabi: Houve um tempo em que eu rechaçava meu próximo se sua religião não era como a minha. Agora, meu coração se converteu em receptáculo de todas as formas religiosas: é prado de gazelas e claustro de monges cristãos; templo de ídolos e Kaaba de peregrinos; tábuas da Lei e folhas do Corão. Porque professo a religião do amor e vou aonde quer que vá sua cavalgadura, pois o amor é meu credo e minha fé.
A mística como lugar de experiência inter-religiosa e interespiritual é incompatível com os dogmatismos, instalados nas religiões, e constitui um bom antídoto contra o fundamentalismo. Representa, por sua vez, a melhor resposta e superação a todos os fundamentalismos e, por suposto, ao choque de culturas e civilizações24. e) Inter-libertação
A interespiritualidade deve integrar os diferentes caminhos e dimensões da libertação: pessoal e comunitária, política e econômica, interior e estrutural, religiosa e 24
cultural. É necessário levar a cabo a grande revolução dos valores, que comece pelo próprio ser humano e se estenda até as estruturas. Uma revolução que implica: • a libertação de nossa riqueza e bem-estar superabundantes e a opção por uma cultura do compartilhar; • a libertação de nosso consumo, no qual terminamos por consumirmos a nós mesmos, e a opção pela austeridade; • a libertação de nossa prepotência, que nos faz fortes ante os demais, porém impotentes ante nós mesmos, e a opção pela virtude que se afirma na debilidade; • a libertação de nosso domínio sobre os outros, a quem tratamos como objetivos de uso e desfrute, e sobre a natureza, dos quais nos apropriamos como se tratasse de um bem sem dono, e a opção por relações simétricas e não opressivas; • a libertação de nossa apatia ante a dor humana, e a opção pela misericórdia com as pessoas que sofrem; • a libertação de nossa suposta inocência ética, de nossa falsa neutralidade política e de nossa ten-
Desenvolvi esta idéia mais extensamente em La mística como superación del fundamentalismo, in Francisco Javier Sánchez Rodríguez (ed.), Mística y sociedad en diálogo, Trottam, Madri, 2006, p. 155-180.
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dência a lavarmos as mãos ante os problemas do mundo, e a opção pelo compromisso com a vida política, com os movimentos sociais e com as organizações não-governamentais; a libertação de nossa mentalidade patriarcal e machista, e a opção pela igualdade, não clônica, de homens e mulheres; a libertação de todo poder opressor e a opção pelas virtudes que não têm a ver com o domínio, como são a amizade, o diálogo, a convivência, o gozo da vida, o desfrute, a gratuidade, a solidariedade, a compaixão, a proximidade, o desprendimento, a contemplação, numa palavra, a fraternidade-sororidade; a libertação de nossa tendência excludente, e a opção por um mundo onde caibamos todos e todas; a libertação de espiritualismos evasivos e a opção pela “santidade política”, como reclamara Dietrich Bonhoeffer em suas cartas da prisão.
f) Por uma espiritualidade feminista
A perspectiva de gênero deve desempenhar um papel fundamental no novo paradigma que estamos deli-
neando. O resultado é uma espiritualidade feminista, que começa por questionar as formas clássicas – majoritariamente masculinas e autoritárias – de representação do Divino e as concepções morais do eterno feminino que exigiam das mulheres uma vida religiosa de renúncia, resignação, silêncio, evasão, inimizade com a vida, desprezo do próprio corpo e negação do prazer. Na nova espiritualidade, a mulher se redescobre como sujeito, vive a experiência religiosa a partir de sua própria subjetividade e não aceita mediações clérico-patriarcais ou hierárquico-institucionais que, no fundo, pretendem negar sua subjetividade. Não aceita as tradicionais divisões entre sagrado e profano, espiritual e material, natural e sobrenatural etc. O lugar da nova espiritualidade é o mundo sem fronteiras, a natureza toda onde se faz sentir o mistério, a vida como dom e tarefa, a realidade sem compartimentos estanques. Seu espaço são todos aqueles lugares nos quase se desenvolve a existência humana: a profissão, a atividade política, a comunicação, a via pública, a ágora, a vida cotidiana etc. Isso não significa que se pretenda neo-sacralizar o mundo. Pelo contrário: respeita-se sua autonomia, reconhecendo-a como o verdadeiro cenário em que se joga o destino humano. Sua presença no mundo se orienta em transmitir o dinamismo libertado do E(e)spírito. É uma espiritualidade sa23
piencial política, não intimista, ativa, que levanta a voz e luta em favor das pessoas indefesas e da natureza dominada. Neste sentido, é rebelde e inconformista com o sistema excludente e todo-poderoso. Caracteriza-se por uma profunda inspiração ético-prática. Guia-se pelos imperativos da fraternidade-sororidade, justiça-libertação, igualdade-diferença. Uma espiritualidade sem ética é vazia; uma ética sem espiritualidade é cega. A nova espiritualidade se expressa através da linguagem dos símbolos, do corpo, dos sentimentos, das paixões, da experiência. Parte da vida em toda a sua riqueza e complexidade, com suas contradições e problemas, com suas aspirações e frustrações. É, enfim, uma espiritualidade ecológica, que não utiliza a natureza como objeto de domínio, senão – fazendo minha a idéia de R. Panikkar – como espaço de encontro cosmoteândrico. É uma espiritualidade inter-religiosa, à qual convergem as experiências místicas e contemplativas mais autênticas, não mediadas pelos interesses de poder de cada religião, mas animadas pelo encontro humano-divino pleno de gratuidade. A nova espiritualidade feminista, que se apresenta em chave ética e sapiencial, ecológica e inter-religiosa, vai às fontes da experiência religiosa e constitui o melhor corretivo à cada vez mais extensa mercantilização da reli24
gião por parte do sistema, à sua manipulação da religião por parte do império, à sua uniformização por parte dos fundamentalismos e à sua espiritualização por parte dos funcionários do sagrado. Bem outro é o traçado da hierarquia católica, através de seus documentos e de suas práticas excludentes das mulheres do universo religioso. Elas são acusadas de serem responsáveis pela violência doméstica, por defenderem a libertação sexual; são reclusas no lar e, no caso de trabalharem fora do lar, defende-se a incompatibilidade entre ambos os trabalhos, submetendo-as a jornadas intermináveis e sem descanso. São valorizadas por sua função reprodutiva e cuidadora, não pelo fato de serem pessoas. São excluídas do ministério sacerdotal, alegando que não podem representar sacramentalmente a Cristo, porque Jesus de Nazaré não ordenou mulheres, quando tampouco ordenou varões, mas criou um movimento igualitário de homens e mulheres. São excluídas dos âmbitos de poder e de responsabilidade dentro da comunidade cristã, reproduzindo, assim, a idéia patriarcal de que o exercício do poder compete aos varões. Critica-se a “ideologia de gênero” que questiona o “eterno feminino”, e os estereótipos que dele dimanam, quando o que defende dita ideologia é a não discriminação por razões de gênero, a igualdade de homens e mulheres em direitos
e deveres, a paridade no exercício do poder. É a própria organização eclesiástica hierárquico-patriarcal que reforça as desigualdades de gênero. Não se pode defender uma espiritualidade feminista quando não se condena, com a devida contundência, a violência contra as mulheres, os abusos sexuais, a prostituição.
5. O gentio e os três sábios: uma espiritualidade aberta Termino com o relato de Ramon Llull em seu Livro do gentio e os três sábios25, escrito no século XIII, um exemplo de interespiritualidade entre as religiões monoteístas, que deveria estender-se ao conjunto das religiões. Um gentio que não conhecia Deus, nem acreditava na ressurreição, nem que houvesse nada depois de sua morte, vivia num permanente estado de insatisfação. A cada passo, seus olhos se enchiam de lágrimas e seu coração de tristeza. Saiu de sua terra e foi a um bosque solitário, em busca da verdade. O gentio se encontrou com três sá25
bios, um judeu, um cristão e um muçulmano, os quais lhe foram demonstrando a existência de Deus e sua relação com as criaturas, e lhe expuseram o peculiar e distintivo de cada religião. Llull descreve as leis de cada uma das religiões com grande erudição. Previamente, fixara para si as condições a ter em conta no diálogo, compartilhadas pelas três religiões. Após escutar os argumentos dos três interlocutores, o gentio pôde constatar que cada religião possui suas próprias leis, porém tinha que tomar uma decisão sobre a religião a abraçar. O gentio dirigiu uma oração de adoração e de ação de graças a Deus em atitude reverente. Quando terminou de rezar, lavou as mãos e o rosto numa fonte que ali havia e disse aos três sábios: “Neste lugar onde tanta boa ventura, felicidade me tem sido dada, quero, em vossa presença, escolher aquela lei que me é significada como verdadeira pela graça de Deus e pelas palavras que vós me haveis dito. Nesta lei quero estar e por ela quero trabalhar todos os dias de minha vida” (p. 268). Os três sábios abençoaram o gentio e este os três sábios. Eles se abraçaram, beijaram e choraram de alegria juntos. Antes que os três sábios partissem dali, o gentio se admirou de que não lhe perguntassem que lei
El libro dei gentil e deis três savis, in Obras selectas de Ramon Llul (132-1316), ed., introd. e notas de Antoni Bonner, Editorial Moll, Mallorca, 1989, p. 89-272.
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escolheria. Os três sábios responderam que, qualquer que fosse a opinião de cada um, não queriam saber que lei tinha abraçado. Se tivessem conhecido a escolha do gentio, ter-se-ia dado por terminado o diálogo entre as três religiões. A atitude do gentio também abre o caminho ao diálogo com os não crentes, e não só ao diálogo
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inter-religioso. Antes de despedir-se e de partir cada um para seu lugar de residência, os três sábios pediram perdão uns aos outros e concordaram em seguir dialogando. Nairobi, 19 de janeiro de 2007.
Juan José Tamayo-Acosta é teólogo espanhol, nascido no dia 7 de outubro de 1946. É graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade de Comillas, 1971, e doutor em Teologia pela Universidade de Salamanca, 1976. Obteve graduação em Filosofia em 1983 e doutorado em 1990 pela Universidade Autônoma de Madri. Atualmente, é diretor da cátedra de Teologia e Ciências das Religiões “Ignácio Ellacuría”, da Universidade Carlos III, secretário geral da Associação de teólogos João XXIII e membro do Comitê Internacional do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.
Publicações recentes do autor Nuevo paradigma teológico. Madrid, Trotta, 2003. Adiós a la cristiandad. Barcelona, Ediciones B, 2003. Fundamentalismos y diálogo entre religiones. Madrid, Trotta, 2004. Iglesia y sociedad en España. Madrid, Trotta, 2005. (Publicação em colaboração com José Maria Castillo). Nuevo diccionario de teología. Madrid, Trotta, 2005.