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Igreja Universal do Reino de Deus no contexto do emergente mercado religioso brasileiro: uma análise antropológica Airton Luiz Jungblut ano 3 – nº 36 – 2005 – 1679-0316
Cadernos IHU Idéias: Apresenta artigos produzidos pelos convidados-palestrantes dos eventos promovidos pelo IHU. A diversidade dos temas, abrangendo as mais diferentes áreas do conhecimento, é um dado a ser destacado nesta publicação, além de seu caráter científico e de agradável leitura.
IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS NO CONTEXTO DO EMERGENTE MERCADO RELIGIOSO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA
Airton Luiz Jungblut
1 – O contexto Os dados sobre opção religiosa do último Censo Demográfico confirmaram o que os cientistas sociais da religião já vinham alertando há duas décadas: o rebanho evangélico vem crescendo de modo extraordinário e acelerado no Brasil. Segundo o IBGE, os adeptos dos diferentes ramos e denominações evangélicos praticamente dobraram de número entre 1991 e 2000, saltando de 13,3 para 26,1 milhões, o que representa, em termos proporcionais, um avanço de 9,1% para 15,4% da população brasileira. A maioria desses religiosos (67,6%), cumpre frisar, pertence à vertente pentecostal, isto é, a igrejas, como Assembléia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Evangelho Quadrangular, Deus é Amor, Universal do Reino de Deus, entre outras. Tais dados atestam que as igrejas do protestantismo tradicional, oriundas da Reforma Protestante, vêm perdendo terreno para os pentecostais. O que os dados do IBGE não revelam, mas pesquisas sociológicas e antropológicas mostram sobejamente, é que tal crescimento vem ocorrendo concomitantemente com uma ampla transformação na conduta e no modo de ser dos pentecostais. Mudança que se estende à forma desses religiosos se relacionarem com a sociedade e a cultura envolvente, o que é tanto causa como conseqüência dessa expansão numérica. Em suma, o tradicional rigorismo puritano e o notório sectarismo desse grupo religioso vêm sendo, paulatinamente, minimizados nos últimos anos. São diversos os motivos da ocorrência desse fenômeno: ao se tornar uma grande minoria religiosa, esse grupo, antes organizado em pequenas comunidades de crentes, foi perdendo sua capacidade de impor regras comportamentais restritivas, sobretudo nas igrejas que, em seus enormes templos e catedrais, passaram a realizar os cultos espetaculares de massa, vários
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dos quais centrados em exorcismos coletivos; ao diversificar-se institucionalmente e socialmente, passou a abranger cada vez mais segmentos de classe média, que, em geral, são pouco afeitos a condutas rigoristas e puritanas; ao adotar novas estratégias proselitistas e, sobretudo, ao inserir-se em inusitados e inesperados espaços sociais – em detrimento de seu pregresso sectarismo, que apregoava, por exemplo, “crente não se mete em política” –, tais como a mídia eletrônica e a política partidária, teve de se acomodar às pressões, regras e exigências dessas instituições midiáticas e políticas; ao optar pelo marketing, viu-se constrangido a adaptar seus cultos, crenças e práticas religiosos às demandas, sempre diversificadas, mas, principalmente, das massas pobres, de indivíduos interessados na solução mágico-religiosa de seus problemas cotidianos. Com isso, eles, em particular os neopentecostais, cuja principal representante é a Igreja Universal do Reino de Deus, vêm se tornando cada vez mais indistintos da cultura e da sociedade envolventes. Pode-se dizer até mesmo que, em diversos casos, vigora como que uma inusitada e, aparentemente paradoxal, fascinação de muitos evangélicos pela mundanidade que os envolve. Fascinação que se expressa por certa avidez em se apropriar de tudo aquilo que, produzido para finalidades mundanas ou não-religiosas, mostra-se simbólica e esteticamente sedutor, mobilizador de atenções, consumível em grande escala, racionalizador de esforços. Mídia, marketing, computação, Internet, artes visuais, moda, estética moderna, músicas profanas, estilos e comportamentos de vanguarda, rapidamente são incorporados, ressemantizados ou instrumentalizados, individual e institucionalmente, por crentes e grupos de todas as vertentes evangélicas para incrementar a pregação e divulgação do Evangelho. Vários cientistas sociais têm pesquisado as particularidades e, sobretudo, as conseqüências da expansão desse vigoroso movimento religioso no Brasil e na América Latina. As pesquisas e análises de campo permitem observar que, em territórios como os da política partidária (Freston, 1992; Mariano, 1995; Oro, 2001), de esportes como o futebol (Jungblut, 1994) e dos ritmos e estilos de musicalidade profana (Pinheiro, 1998), todos anteriormente não somente desabitados, mas também repudiados e demonizados – em razão de seu mundanismo – por esses religiosos, ingressam os evangélicos pentecostais e de modo cada vez mais intenso, participativo, visível, vocal. Isso só faz aumentar o impacto social e cultural que a adesão aos grupos evangélicos provoca nos imaginários, nos valores e nas práticas de grupos e indivíduos excluídos da sociedade brasileira. Seja pela valorização da autonomia empresarial e desvalorização do trabalho assalariado, promovidos pelos difusores eclesiásticos da Teologia da Prosperidade nos templos neopentecostais (Freston, 1992; Mariano, 1995), seja em decor-
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rência dos discursos disciplinares e higienizadores dirigidos às famílias dos estratos mais pobres pelos pastores em geral (Machado & Fernandes, 1985), seja pela eticização operada pelo incessante combate mágico-religioso às drogas e ao álcool (Mariz, 1994), a religião evangélica tem deixado marcas profundas em parcelas expressivas dos segmentos mais pobres da sociedade brasileira, onde ela mais se dissemina. 2 – A Igreja Universal do Reino de Deus, sua identidade e o mercado religioso A Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, ponta de lança desse movimento de crescimento evangélico no Brasil, ostenta uma identidade que é constantemente – e talvez mais do que qualquer outro grupo religioso no País – posta em contrataste por seus agentes com as identidades de outros grupos religiosos. Este exercício contínuo e, até certo ponto, agressivo, de ostentação da sua identidade, pela negação das identidades alheias, pode, num certo sentido, ser explicado pelo caráter nitidamente concorrencial e expancionista desta igreja. Sua estratégia de, insistentemente, desqualificar os concorrentes para com isso conquistar o maior número possível de fiéis, torna, portanto, a expressão de sua identidade um exercício fundamentalmente contrastivo. Como se dá esse exercício no caso dessa igreja? Várias são as possibilidades de que um grupo dispõe para afirmar sua identidade, negando, etnocentricamente, as identidades dos “outros”. Em determinadas modalidades de cultos afro-brasileiros, por exemplo, é comum que um determinado grupo advogue para si maior correspondência com modelos africanos, enquanto para os outros grupos concorrentes é atribuída uma negligência para com a manutenção destes modelos. Neste caso, contrapõe-se uma manutenção correta (“pura”) de crenças e procedimentos rituais a uma manutenção incorreta (“contaminada”, sincrética) dos símbolos em jogo. No caso da IURD, é possível notar que o mencionado exercício de contrastividade entre as identidades que representam o “nós” e os “outros” tem, como elemento simbólico fundamental, as representações e imagens do diabo. A imagem desse ente maligno é invocada em quase todos os momentos em que os agentes dessa igreja referem-se aos concorrentes. A intenção é clara: associando os concorrentes ao diabo e denunciando a periculosidade de tal associação, fica mais fácil chamar para si a exclusividade da associação com o ente benigno que o combate, Deus. Esta disposição polarizada, Deus – nós – versus o diabo – os outros – é freqüentemente manifestada nas palavras de seus pastores: “A Igreja Universal quer que vocês se tornem sócios de Deus e não do demônio, como tem muita gente queren-
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do aí fora, nos terreiros”. Um trecho de uma das obras do Bispo Macedo é também revelador: Tanto no alto espiritismo como no baixo, seja qual for o rótulo usado, o consulente é encaminhado sorrateiramente até envolver-se totalmente com o mundo dos espíritos. Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Kardecismo, Bezerra de Menezes, Yokanan, Exoterismo, etc., são apenas nomes de seitas e filosofias usadas pelos demônios para se apoderarem das pessoas que a eles recorrem, ora buscando ajuda, ora se envolvendo por mera curiosidade (1987).
Pode-se, contudo, observar que as associações que a IURD faz entre as religiões concorrentes e o diabo obedece a uma classificação diferenciada para cada caso. Com relação às religiões afro-brasileiras, a associação é percebida como direta, pois os adeptos de tais cultos são acusados de estarem lidando com o diabo, de forma explícita e consciente. No caso do catolicismo e do espiritismo, sugere-se que seus adeptos estão praticando uma religião considerada errada. Seus fiéis são, portanto, tidos como enganados pelo diabo e, em virtude disso, associados a ele. Já no caso das religiões evangélicas e pentecostais, reconhece-se que seus seguidores têm consciência da ação maléfica do diabo no mundo, mas esse reconhecimento, segundo a ótica dos membros da IURD, não é o suficiente, uma vez que se recusam a combatê-lo ferrenhamente. Este fato serve para colocá-las sob suspeita de estarem associadas ao diabo, mesmo que inconscientemente. As imagens e representações acerca do diabo são, portanto, altamente operacionais no exercício que os membros da IURD fazem para construir sua identidade religiosa, a partir das identidades que atribuem aos grupos religiosos concorrentes. Interessante é notar que o “nós somos” da IURD apóia-se mais na oposição ao diabo e seus aliados (as outras igrejas e religiões) do que nas associações com Deus, associações essas menos manifestamente presentes nos discurso dessa igreja. O elemento simbólico que acaba de ser analisado é, sem dúvida, o mais importante no exercício de construção da identidade da IURD. Há, no entanto, outros aspectos importantes a serem observados. Notou-se em pesquisa realizada por nós que pastores e obreiros dessa igreja demonstram reticência quando provocados a se manifestar sobre temas teológicos mais aprofundados. Geralmente, quando inquiridos sobre questões doutrinárias que exijam maior conhecimento teológico, costumam advertir que o mais importante não é procurar conhecer Deus, mas, sim, crer na sua existência e poder, e isso com a maior fé que se puder demonstrar. Muito mais do que revelar um certo despreparo destes agentes para com questões teológicas mais elaboradas, essa
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negligência informa sobre uma imagem que a IURD ostenta e opõe a certos concorrentes seus. Trata-se da oposição “fé versus sabedoria”, em que a primeira é valorizada em detrimento da segunda. Esta oposição serve para estabelecer que o “nós” da IURD está verdadeiramente comprometido com o exercício da fé – algo propagado por ela como positivo – enquanto alguns dos “outros” externos comprometem-se mais com o culto à sabedoria, que é vista como potencialmente inibidora da fé, portanto, negativa. Isso fica bem evidente quando o bispo Macedo afirma, em seu livro A libertação da teologia, o seguinte: A primeira coisa que o homem deve fazer para compreender a Deus é crer. Por isso, insistimos em dizer que fé é uma questão de prática, e nunca de estudos; ela só deve ser vivida, e não mentalizada. Experimente o leitor fazer isso, e viva em uma nova dimensão, na presença de Deus. (...) Infelizmente, existe hoje também dentro das igrejas uma idolatria acentuada da sabedoria. Os livros que falam acerca da Bíblia são mais lidos do que a própria Bíblia; os pregadores falam 80 ou mais por cento, em suas pregações, dos problemas sociais, de política, de filosofia ou de si mesmos e quase nada, de Deus ou de Cristo (s/d).
A oposição fé versus sabedoria serve, como se pode perceber, para fornecer à identidade da IURD mais um contraste operacional entre o que deve ser tomado como característica sua – a fé – e o que deve ser tomado como característica de outras igrejas – a fé inibida pela sabedoria. Essa contrastividade é exercida principalmente nas acusações que são dirigidas à Igreja Católica e às igrejas evangélicas mais tradicionais e faz parte do repertório de acusações que seus agentes (pastores e obreiros) dirigem a esses concorrentes. Vejamos o depoimento de um pastor: “As pessoas, os católicos, os evangélicos principalmente, querem se aproximar de Deus lendo livros. Isso é errado. Deus não quer que estudem ele. Deus quer fé e isso que a Igreja Universal faz”. A IURD, como se tem afirmado até aqui, disputa fiéis em várias frentes e contrapõe para cada caso facetas diferentes da sua identidade. Como não poderia deixar de ser, age também no território pentecostal. Ali, entre os seus semelhantes, um dos traços diferenciadores enfatizados é a tolerância ou ausência de vigilância para com os comportamentos cotidianos de seus adeptos, ou seja, a IURD, é bastante liberal, em se tratando de “usos e costumes” em oposição ao comportamento ascético e sectário das concorrentes. É claro que alguns comportamentos, tais como homossexualismo, alcoolismo, uso de drogas, etc., são combatidos pela IURD por serem interpretados como conseqüências de obras demoníacas, mas, contrariamente a outras denominações pentecostais mais tradicionais, não é feita uma cobrança mais firme sobre as atitudes dos fiéis. Uma informante
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por nós entrevistada relata, nesse sentido, que a sua conversão à IURD se deu em função do cansaço que experimentou quanto ao controle exercido sobre ela quando era fiel da Igreja Assembléia de Deus, onde era “forçada” a usar roupas demasiadamente sóbrias para seu gosto, além de não poder usar cabelo curto e ir a festas. A este ascetismo, encontrado em muitas igrejas pentecostais, a IURD contrapõe uma visível liberalidade para com os comportamentos profanos. Tem-se, assim, um pentecostalismo mais liberal do que aquele normalmente encontrado neste território, configurando-se, portanto, em mais um sinal constrativo. Outro elemento diferenciador que a IURD contrapõe ao pentecostalismo tradicional é a descontração que caracteriza suas reuniões ou cultos. São encontros que comportam momentos de verdadeira festividade, assemelhando-se a shows de auditórios, onde pastores, por vezes, parecem encenar a figura de um showman, que faz brincadeiras e conta anedotas. Em uma reunião, à qual nós assistimos, um dos pastores orquestrou, com uma canção, toda uma série de movimentos que os fiéis deviam fazer com o corpo, à semelhança de movimentos de ginástica aeróbica. Esse e outros expedientes utilizados pelos pastores da IURD são, comumente, vistos por outras igrejas pentecostais mais tradicionais como demasiadamente irreverentes para ocorrerem em templos que se pretendam evangélicos. Na IURD, eles são a expressão de mais um dos sinais diferenciadores que ela ostenta na contraposição com outras igrejas, principalmente as pentecostais tradicionais. Nesses dois aspectos mencionados, é preciso dizer, a contraposição de identidades não se expressa, como nos casos anteriores, por um discurso articulado, oral ou escrito, fruto de opções doutrinárias, mas, sim, por uma expressividade construída pelas estratégias performáticas adotadas pela igreja. A identidade contrastiva é, nesse caso, estruturada pelo que se faz – ou pelo que não se faz – e não pelo que é expressado discursivamente. O que um grupo ostenta como identidade precisa também ser pensado em termos do que é anunciado positivamente. Para tanto, é necessário que se analise também o conteúdo interno de uma identidade, o que não significa entendê-la por si própria, ignorando o mundo externo com o qual ela se comunica, mas, sim, com o que é eleito como substância para compô-la. É claro que não podemos abandonar de todo a dimensão contrastiva, pois não tem sentido pensar em traços próprios que não sejam também distintivos. O que, em síntese, se pretende aqui é saber o que a IURD positivamente afirma ser, buscando os elementos simbólicos que compõem a sua identidade e a lógica que inspira a escolha destes elementos.
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A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha aconselha a tomar a tradição de um grupo social como o “porão” ou o “reservatório” de onde os integrantes de um determinado grupo buscam “a medida das necessidades (...), traços culturais isolados do todo que servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação” (Cunha, 1987). O “reservatório” da IURD é, sem dúvida, o cristianismo, mas apenas uma “sala” dele – protestantismo – onde se situa um compartimento ainda menor – o pentecostalismo. É necessário, então, se fixar neste último compartimento para compreender a identidade da IURD. O que, exatamente, é retirado dali para compor a identidade desta igreja? A IURD retira da tradição pentecostal basicamente duas crenças fundamentais ao seu arranjo identitário: a de que o Espírito Santo age sobre o mundo ativamente, manifestando-se de várias formas (revelações, milagres, inspirações, batismos, etc.); e a de que o demônio, da mesma forma, mas em sentido contrário, age ativamente sobre o mundo, produzindo todo tipo de prejuízos para a humanidade. É lógico que outros elementos menos importantes também são retirados do pentecostalismo, mas os dois acima compõem o que poderíamos chamar de estrutura central deste empréstimo, dada a importância que assumem na identidade da IURD como fornecedora de serviços mágico-religiosos. É, principalmente, com essas duas crenças que essa igreja constrói a sua imagem de aliada e representante de Deus e inimiga e combatente do diabo, imagem essa que, como se verá, é altamente operacional na estratégia que este grupo desenvolve para assegurar seus interesses. Se levarmos em conta que uma identidade constitui também o modo pelo qual um grupo procura “se apropriar de um nicho econômico”, tal como sugere Manuela Carneiro da Cunha (1987), poderemos estar na pista certa em se tratando da compreensão da identidade da IURD. Por “nicho econômico” entenda-se aqui toda uma série de interesses não só materiais, mas também políticos e simbólicos. A IURD tem, inegavelmente, características empresariais e expancionistas. Não se pode deixar de levar em consideração a avidez que essa igreja demonstra em se tornar cada vez maior, disputando abertamente fiéis com outras igrejas e/ou religiões. O arranjo feito em torno de sua identidade, portanto, obedece a uma estratégia de interesses o que a torna algo muito próximo do que Abner Cohen chama de “grupo de interesses” (1978). Assim sendo, a identidade sustentada pela IURD deve ser pensada como uma “estratégia simbólica”, em que os símbolos ou traços identitários são escolhidos, ajustados e manipulados visando a atender aos seus interesses de expansão como grupo proselitista. Situada num universo de diversidade religiosa, em que são muitas as agências a oferecer soluções mágico-religiosas para
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todos os tipos de demandas, a IURD, como mais uma destas agências de fornecimento de soluções sobrenaturais, procura tornar-se a mais atraente possível para conquistar uma clientela cada vez maior. Seus interesses, portanto, traduzem-se na sua vontade de crescer e tornar-se poderosa num mercado de fé em constante expansão que obedece ao processo de “ressacralização” da sociedade urbana. Retomando a polaridade central expressa na identidade da IURD antes mencionada, entre ser aliado de Deus e inimigo do diabo, torna-se oportuno perguntar como e por que esta polaridade atende aos interesses identitários da IURD, ou seja, qual sua importância dentro de sua estratégia simbólica. É possível constatar, observando a IURD, suas tentativas de conquistar e atrair para seus templos, com seu discurso proselitista, principalmente os católicos e os adeptos dos cultos mediúnicos (espiritismo e religiões afro-brasileiras). Para os católicos, a polaridade cumpre a função de ser o espaço de argumentação onde se tenta demonstrar que a presença e a ação do diabo no mundo são bem mais intensas do que eles podem imaginar. Veja-se, por exemplo, o que diz o Bispo Macedo (1987): “Doenças, misérias, desastres e todos os problemas que têm afligido o homem desde que este iniciou sua vida na terra, têm uma origem: o diabo”. Como no catolicismo atual a figura do diabo não é mais apresentada como causa de todos esses acontecimentos, pois normalmente eles são explicados por causas histórico-sociais e/ou pela “sábia vontade de Deus” (provação divina), a advertência acima visa a criar um estado de não-aceitação para aquilo que é, na ótica católica, segundo a IURD, visto como inevitável do ponto de vista espiritual. Deus e o diabo estariam no mundo efetivamente em contenda, medindo forças, e essa igreja apresenta-se, então, como bem mais capaz do que a Católica de articular para os interessados uma aliança mais forte com Deus, combatendo, de modo ferrenho, o diabo. No caso dos cultos mediúnicos (espiritismo e religiões afro-brasileiras) a polaridade, além de comportar a idéia do bem (nós) versus mal (eles), cumpre outra função importante: a de fornecer um contraponto em termos de imagens para a idéia espiritualista de que seres desencarnados de toda ordem agem e influenciam na vida das pessoas. Se, nas religiões afro-brasileiras, existe todo um panteão de orixás, exus, caboclos, pretos velhos, etc., os espíritos desencarnados do bem e do mal, que são imagens mentais altamente impressionantes e operantes na religiosidade popular, no pentecostalismo há, também, a imagem impressionante do Espírito Santo a operar permanentemente no cotidiano das pessoas. Se há entidades espirituais no espiritismo e nas religiões afro-brasileiras capazes de fazer milagres, atendendo aos desígnios do diabo (discurso dessa igreja), há na
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IURD uma entidade análoga a estes, o Espírito Santo, derraman-
do sobre os fiéis todo o tipo de bênçãos, manifestando-se cotidianamente em transes espirituais (batismo no Espírito Santo, transes proféticos, etc.). Tal como os primeiros, o segundo possui a capacidade de servir como imagem de força viva e atuante no pensamento daquelas pessoas que buscam religiões que prometem contatos explícitos com o sobrenatural. A IURD, portanto, ao valer-se desta polaridade entre forças ativas do bem (Espírito Santo) e forças ativas do mal (diabo, entidades espíritas e afro-brasileiras, etc.), na qual se apresenta como legítima representante das primeiras, estabelece uma estratégia simbólica que visa a garantir seus interesses de igreja em expansão. Para cada concorrente que se apresenta como detentor de um sistema simbólico atraente, ela contrapõe uma argumentação discursiva que tem como estrutura central a referida polaridade. Esta polaridade, como vimos, é retirada do pentecostalismo clássico, ou seja, de uma tradição religiosa anterior à sua existência. Tomada de empréstimo, ajustada e devidamente manipulada, ela torna-se o território semântico a partir do qual a IURD pode anunciar positivamente a sua identidade de grupo religioso a serviço de Deus. Um fato importante que ainda cabe mencionar em relação a esse vínculo da IURD com o pentecostalismo, é o quanto este pode ser redefinido em função de exigências políticas específicas que estão relacionadas com a trajetória desse grupo. Trata-se de relatar o abandono verificado, há cerca de uma década, de uma postura antiecumenista da IURD para com setores do universo evangélico brasileiro em função dos ataques que começou a sofrer da mídia televisiva, encabeçada, principalmente, pela Rede Globo. Utilizada para a obtenção de um fatia do mercado religioso envolvente esta postura antiecumenista – que, sectarizante e fragmentadora, é própria daqueles momentos em que um grupo tenta forjar uma identidade exclusiva por contrastividade, advogando para si a exclusividade da eficácia religiosa – acabou por ser superada por uma estratégia de articulação intereclesiástica, que visava a obter mais legitimidade em um campo religioso maior, no caso o campo evangélico brasileiro. Assim, se é possível identificar na trajetória da IURD, quando da sua aproximação a outras denominações evangélicas (pentecostais, principalmente), uma estratégia visando, no caso especifico, a obter a legitimidade historicamente conquistada pelas demais igrejas evangélicas para se fortalecer diante das hostilidades que sofria, tanto no interior quanto no exterior do universo evangélico. Isso ocorre porque, tanto a unidade quanto a fragmentação, via, neste caso, antiecumenismo, são possibilidades virtuais no protestantismo e correspondem a estratégias que podem ser utilizadas em contextos históricos diferentes de cada igreja.
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O interessante é que, com base neste episódio conflitivo, duas formas de unificação se produziram: uma encabeçada pela Associação Evangélica Brasileira (AEVB), que pretendia deslegitimar as práticas da IURD, acusando-as de desvios intoleráveis do cristianismo evangélico; e outra de setores evangélicos simpáticos à IURD, já que, para estes, tal igreja, mal ou bem, representaria um avanço importante do protestantismo rumo à quebra da hegemonia católica no país. Esta ultima tendência foi encabeçada pelo Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), entidade engendrada pelo Bispo Macedo da IURD para este fim. 3 – A IURD como organização direcionada ao “mercado” Peter Berger, ao diagnosticar uma situação de disputa mercadológica entre as várias modalidades de religião existentes no Ocidente contemporâneo (2003, 149-51), nos faz perceber que os grupos religiosos são constrangidos, em razão da pressão que sofrem para obter bons resultados nesse mercado, a racionalizarem burocraticamente suas estruturas sociorreligiosas. Em se tratando de tradições religiosas que remontam a séculos ou milênios, essas readaptações organizacionais são sempre mais demoradas e difíceis de ocorrerem em função do peso do tempo que sobre elas incide, constrangendo aqueles movimentos de renovação e readaptação exigidos pela contemporaneidade. Já nas organizações mais novas, vê-se, normalmente, o contrário. Elas, como ainda não se solidificaram plenamente em termos identitários, organizacionais, dogmáticos, litúrgicos, etc., podem, mais facilmente, absorver aquelas transformações necessárias a um melhor desempenho mercadológico. Tem-se hoje no meio evangélico brasileiro, por exemplo, formatos organizacionais que, discreta ou escancaradamente, vêm assumindo feições empresariais adequadas às exigências do mercado que, em nada, lembram as formas tradicionais de congregações religiosas. Tais mudanças aparecem expressas, inclusive, na própria terminologia elaborada no calor da hora para classificá-las, como “agências de cura divina” (Monteiro, 1979), “supermercados da fé” (Jardilino, 1994), “igrejas-empresas” (Pierucci, 1997), “holdings da fé” (Fonseca, 1997), etc. Fenômeno que se observa igualmente na “marketização do sagrado” (Campos, 1996), que acompanha, de modo emblemático, as transformações organizacionais que vêm se processando nesse movimento religioso. O caso da IURD, nesse contexto, é bastante peculiar. Essa igreja já surge escancaradamente orientada para o mercado, pois, pelo que se observa, seu modelo organizacional foi racionalmente concebido para funcionar como empresa, como demonstra Paul Freston:
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A organização da Igreja Universal facilita o controle centralizado e a inovação metodológica constante. Em Economia e Sociedade, Weber mostra como a religião pode se descolar das demandas sociais através da formação de uma classe sacerdotal detentora do poder de definir a mensagem. A IURD procura minimizar a dependência das demandas leigas de várias maneiras. Primeiro, através da diversificação da origem dos ingressos. Em segundo lugar, por meio de um esquema eclesiástico que não cria fortes laços horizontais entre membros. Não permite a participação congregacional a nível decisório, evitando que o tradicionalismo se imponha. Em terceiro lugar, através de mudanças freqüentes dos pastores, evitando a formação de bases independentes de poder. As transferências são facilitadas pela padronização: “quem viu uma igreja Universal, viu todas”, dizem. E, em quarto lugar, pela economia de gastos por meio da utilização de muitos pastores baratos porque jovens, solteiros ou recém-casados sem filhos, muitas vezes com baixas expectativas de sustento porque recém-saídos das drogas ou outra forma de vida desorganizada. Para eles, o pastoreado oferece várias vantagens: uma disciplina e supervisão capazes de reforçar a recuperação; um contexto para compartir o deslumbramento da vida reconstituída; e um sentido de importância. Não menos importante é a garantia de sobrevivência, mesmo modesta. Alguns pastores ex-viciados estariam para a IURD um pouco como os “filhos da igreja” estavam para o catolicismo da República Velha: “donativos em espécie moldados pela corporação como mão-de-obra especializada” (Miceli, 1988, p. 97, 103, 107, 108). A IURD também conta com a mão-de-obra gratuita dos muitos obreiros e obreiras. Vestindo um uniforme que lembra o de comissários(as) de bordo, recepcionam as pessoas, expulsam os demônios, cuidam das crianças e limpam o templo (1994, p. 144-45).
A IURD, portanto, ao utilizar-se de uma estratégia administrativa bastante centralizadora e vertical que exclui o laicato das decisões eclesiásticas e, fazendo um uso otimizado da mão-de-obra barata (pastores e obreiros) que arregimenta entre suas bases, mostra uma eficiência organizacional nada amadora, relevando assim toda a sua ânsia de bem se posicionar no mercado religioso brasileiro. Outro flanco, pelo qual a IURD mostra toda a força de sua racionalidade mercadológica, é a utilização da mídia. Ao longo de sua trajetória meteórica de crescimento, essa igreja soube, como nenhum outro grupo evangélico brasileiro, bem utilizar os recursos de divulgação permitidos pelas modernas tecnologias de comunicação de massa para vender-se no mercado religioso local. Contando atualmente com duas redes nacionais de televisão, a Rede Record e a Rede Mulher (UHF), várias dezenas de rádios AM e FM e um jornal semanal (Folha Universal), com tiragem superior a um milhão de exemplares, a IURD pode ser considerada hoje um império midiático (FONSECA, 2003).
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Desde cedo, quando a nascitura IURD fazia um uso mais intenso dos espaços radiofônicos, já ficava evidente a intenção eminentemente concorrencial da utilização da mídia. Segundo o que informa Alexandre Brasil Fonseca (2003, p. 264-65), os pastores dessa igreja logo perceberam as vantagens, em termos de boa audiência, que seus primeiros programas radiofônicos obtinham, quando levados ao ar antes ou depois de programas de religiões mediúnicas (espiritismo, cultos afro-brasileiros, etc..). Com essa estratégia, a IURD passou a não só aproveitar a audiência radiofônica interessada em religião como também a contrastar a sua identidade a de grupos concorrentes no fornecimento de soluções mágico-religiosas para as aflições cotidianas, desqualificando-os e autopromovendo-se à custa de exercícios contrastivos. Com o tempo e o sucesso obtido em suas estratégias – igualmente expansionistas – no campo das modernas mídias, a IURD acabou por se firmar como uma espécie de paradigma brasileiro na utilização destas tecnologias para fins religiosos. Tornou-se, pode-se dizer, o grupo mais bem sucedido na exploração de uma maneira latino-americana de teleevangelismo bem diversa daquela existente nos E.U.A., conforme nos permite ver o livro de Jacques Gutwirth sobre o assunto (1998). Esse autor, que narra a saga dos grandes teleevangelistas norte-americanos das últimas décadas, demonstra que, nos E.U.A., o uso do rádio e da televisão tende a tornar o espaço privado dos lares o lugar privilegiado do vivenciamento da fé evangélica. A contrapartida financeira (dízimos e ofertas) desses “telefiéis” a essas “igrejas eletrônicas” é feita por telefone, informando o número do cartão de crédito e autorizando débitos. Ora, no Brasil, onde os espaços públicos e as catarses coletivas ainda são itens bastante valorizados pelas massas, os meios eletrônicos de comunicação devem ser utilizados para atrair os fiéis aos templos. Foi o que perceberam, desde cedo, as lideranças da IURD. E é ali que o fiel deve ser instado a contribuir. Assim, agindo com uma eficiente racionalidade mercadológica, a IURD, segundo constata Fonseca: “...não entra na mídia com o objetivo de arrecadar recursos, mas sim para divulgar seus produtos e atrair novos seguidores. Estes pagarão pelos serviços que utilizarão e poderão engrossar seu rol de dizimistas (2003, p.278). À guisa de conclusão Os aspectos acima analisados permitem a constatação inequívoca de que a Igreja Universal do Reino de Deus assumiu, em sua trajetória, feições identitárias e organizacionais claramente orientadas para o mercado religioso que emergiu nas últimas décadas. Essa situação faz da IURD um caso paradigmático no contexto religioso brasileiro, pois antes dela nenhum outro gru-
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po havia se lançado à disputa por fiéis com tamanha ambição mercadológica. A forma como a IURD, engenhosamente, constrói sua identidade, sempre de olho nos rivais e no que se mostra eficaz no mercado religioso envolvente, mostra que o sucesso desse grupo não se deve ao acaso, à sorte, mas, sim, a uma eficiente racionalidade mercadológica, construída ao longo de sua trajetória. Também o estilo empresarial emprestado a seu governo eclesiástico e à hábil utilização das modernas tecnologias de comunicação de massa para atrair féis a seus templos, atestam o profissionalismo das estratégias expansionistas adotadas por esse grupo. Com todo esse sucesso, não há exagero em se afirmar que o surgimento dessa igreja incendeia o mercado religioso brasileiro. Depois de uma gradual pluralização das modalidades religiosas brasileiras, iniciada a partir dos anos cinqüenta do século XX, o advento da IURD, no final dos anos setenta, transforma esse cenário pluralizante numa situação de mercado, onde, cada vez mais, se escancara a inevitabilidade da disputa aberta por fiéis. Referências bibliográficas BRANDAO, Carlos R. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo: Brasiliense, 1986. CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: uma análise da organização, rituais, marketing e eficácia comunicativa de um empreendimento neopentecostal – Igreja Universal do Reino de Deus. São Bernardo do Campo, IMES, 1996. Tese (Doutorado em Ciências da Religião). COHEM, Abner. O homem bidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo: Brasiliense / EDUSP, 1987. FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e mídia no Brasil. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. Dissertação (Mestrado em Sociologia), IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1997. FONSECA, Alexandre Brasil. Igreja Universal: Um império midiático In: Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003, v.1. p. 259-80. FRESTON, Paul. Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI, Antônio et al. Nem anjos nem demônios. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 67-159. FRESTON, Paul. Evangélicos na política brasileira. Religião e Sociedade (ISER) 16, 1/2, 1992: 26-44. FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Campinas, UNICAMP, 1993. Tese (Doutorado), IFCH, Universidade de Campinas, 1993. GUTWIRTH, Jacques. L’Église électronique: la saga des télévangelistes. Paris, Bayard, 1998. JARDILINO, José Rubens Lima. Sindicato dos mágicos: as religiões do espírito de orientação protestante no Brasil. (mimeo). In: CONGRESSO INTERNACIONAL AS NOVAS RELIGIÕES – MISSÕES E MISSIONÁRIOS, Recife, 1994: 1-14.
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Artigo enviado ao IHU em 05 de novembro de 2004
DEBATE Paulo (aluno Psicologia – UNISINOS) – O senhor tem algum dado sobre esse uso que eles fazem da mídia eletrônica nessas igrejas? Por que eles usam tanto isso? Aírton – O eficiente uso dos meios de comunicações de massa, principalmente televisão e rádio, é uma das marcas da Igreja Universal e do neopentecostalismo de um modo geral. No caso da Igreja Universal, muito mais a televisão do que o rádio. Basicamente, tal utilização está relacionada com esta mesma lógica de mercado que eu estou aqui querendo chamar a atenção e que ordena bastante a forma como a Igreja Universal se coloca no mercado religioso brasileiro, ou seja, há que aparecer na mídia para que os templos sejam bem freqüentados. Há nisso uma clara intenção propagandística que visa trazer as pessoas para o templo. Isso é diferente, por exemplo, do teleevangelismo norte-americano. O teleevangelismo brasileiro do qual, talvez, a Igreja Universal seja um dos grupos mais representativos, faz uso de uma espécie de propaganda para que o indivíduo vá ao templo. Nos Estados Unidos, segundo mostra Jacques Gutwirth (no livro: L’eglise électronique: la saga des télévangelistes), não ocorre assim. Lá os pastores pentecostais e neopentecostais utilizam a TV como um fim em si mesma, e não para chamar gente para os templos. Há, também, a cobrança de dízimos e de doações, mas isso é feito via telefone, cartão de crédito, coisas deste tipo. No Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus utiliza a TV para atrair pessoas para os seus templos e faz isso de forma também estratégica, bem pensada. Levam ao ar, por exemplo, programas sobre exorcismo, testemunhos de pessoas que encontraram na Igreja Universal soluções para todos os tipos de problemas, em horários inusitados (quatro, cinco horas da manhã), porque é, nesse horário, segundo o que eles constatam, que os aflitos, que as pessoas necessitadas, aquelas que estão à beira de um suicídio, estão acordadas sem ter nada que fazer e, por isso, ligam o televisor. Qual é a audiência de um programa desses, levado ao ar durante a madrugada? Na verdade, é muito baixa, mas a Igreja Universal consegue, desta forma, atrair para os seus templos muitas pessoas. Também consegue isso, utilizando-se de alguns horários um pouco mais tarde (seis horas da manhã, por exemplo), porque muita gente está acordando, e o programa da Igreja Universal é o único que está passando nesse
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horário em alguns canais. Trata-se, eminentemente, de estratégias mercadológicas. Participante 1 – Sobre as condições legais destas seitas... Eu vou ser sincero a respeito do que eu penso da Igreja Universal: é um bando de bandido. Eu não tenho compromisso com ninguém, acho que eu posso dizer isso aqui... Mas como estas coisas se manifestam em uma sociedade que está legalmente organizada? Como é possível isso em nome da liberdade de pensamento? Porque não há vínculo realmente. A ligação com o pastor é esta: o cara chega bêbado, dá o dízimo e vai embora. Para mim, isso é a antítese do que se pode chamar de religião. Não há vínculo nenhum, é só uma empresa que não paga imposto, que se beneficia de toda a legislação vigente e está aí roubando, como mostrou aquela matéria da revista VEJA: o Edir Macedo dando risada dos pobres. Isso é horrível para mim. Como é que a sociedade globalizada permite que isso exista? Aírton – O Professor Ricardo Mariano, que tem pesquisado a Igreja Universal e tem conversado com pessoas que pesquisam essa igreja na França, tem afirmado, em função de comparações com o que lá ocorre, que realmente há, no caso brasileiro, uma tolerância para com essa igreja bastante interessante de ser analisada. A Igreja Universal, por exemplo, acusa a sociedade brasileira de ser intransigente com ela, de persegui-la, mas, na verdade, se a gente for comparar a nossa legislação em relação à religião com outras de outros países, como a França, por exemplo, vamos ver que o Brasil é extremamente tolerante com os grupos religiosos. Há aqui, inegavelmente, liberdade religiosa. Há muito pouco que se possa fazer, em termos legais, contra grupos religiosos moralmente incômodos como a Igreja Universal. Na França, existe um Departamento do Estado que avalia, que analisa os grupos religiosos, que os investiga atentamente. Eles só podem funcionar, como um grupo religioso legalmente constituído, se obtiverem este aval. No Brasil, não existe nada disso. Existe uma liberdade absoluta. Isso é bom por um lado, mas também cria problemas, porque alguns grupos mal-intencionados podem simplesmente abusar dessa liberdade. Então é uma questão que tem a ver com esta nossa legislação de cultos. Em alguns aspectos, nós somos bem liberais. Marco Antônio (estudante no Seminário Concórdia e na ULBRA) – Gostaria de saber até que ponto esta atitude da Igreja Universal de colocar problemas reais, do dia-a-dia, como culpa de demônios ou de diabos, não influencia o não-enfrentamento real dos problemas? Pode acontecer de a pessoa, ao invés de enfrentar o problema pelo qual está passando, seja por meio de
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terapias, seja por meio de uma boa conversa, pensar que é coisa do diabo? Aírton – A Igreja Universal faz exatamente isto: ela desculpabiliza o indivíduo de qualquer tipo de problema. Satanás e suas legiões de demônios, exus e orixás, são, no final das contas, os responsáveis pelos problemas. Isso é péssimo para alguém que tem um problema real e não consiga, com esta explicação, encontrar solução real para ele. Mas há que se ter em mente que, muitas vezes, este discurso acaba funcionando como uma espécie de motivador. A Igreja Universal, segundo o que constatou Paul Freston, começou, num determinado momento, a fazer discursos do seguinte tipo: “Não adianta você ser um desempregado e só pedir a Deus e nada fazer para que Deus o ajude, você tem que criar as condições mínimas para que Deus o ajude, ou seja, se você não consegue arranjar um emprego, abra uma carrocinha de cachorro-quente que Deus vai ajudá-lo”. Então, acompanhado de um discurso que culpabiliza o demônio e seus auxiliares pelos malefícios humanos, vem a versão popular de um discurso de auto-ajuda, de um discurso que diz: “Bom, mexa-se! Deus vai ajudar, mas ajude Deus a ajudá-lo, também.” Então, é um pouco mais complexo. Isso, em muitos casos, tem eficácia. Um discurso como o da Igreja Universal do Reino de Deus é, em muitos contextos, o único capaz de devolver a auto-estima de alguém que não consegue consultar um psicanalista, alguém que não consegue ler um livro de auto-ajuda de um autor famoso. Nesse sentido, alguns pesquisadores têm mostrado que a Igreja Universal do Reino de Deus oferece aos pobres uma espécie de técnica de auto-ajuda. Claro que a gente pode criticar isso, claro que a gente pode pensar que seria melhor se ele buscasse apoio no Sindicato, ou se ele tentasse resolver isso de forma mais racional e menos mágica, mas também não podemos ser completamente etnocêntricos, desqualificando qualquer tipo de ação que ocorra na esfera da religiosidade popular. Participante 2 – Discurso assim catastrófico de constatações que deixa a gente indignado, como o fez nosso amigo aqui, é comum em nossas reflexões, no meio universitário. Eu gostaria de saber se tu constataste, apesar das dificuldades, pessoas da Igreja Universal que têm alguns momentos de lucidez, por exemplo, no meio da política, que comecem a descobrir que existe por trás a racionalidade de uma lógica de mercado? Aírton – Na Igreja Universal, não só entram pessoas, também saem. Há algumas pesquisas que mostram que, assim como há muitas pessoas entrando, há muitas pessoas saindo. Algumas parecem se dar conta de que a Igreja Universal seria muito mais uma empresa, seria muito mais um negócio do que uma igreja. Insatisfeitas com isso, elas vão embora e, às vezes, se tornam
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extremamente críticas dela. Está cheio de sites na Internet com pessoas testemunhando que a Igreja Universal é um grande embuste ou coisa que o valha. Mas a Igreja Universal, mesmo assim, ainda é uma espécie de portal de entrada para o neopentecostalismo, uma espécie de uma via de entrada para pessoas ingressarem no mundo evangélico. Elas vão para a Igreja Universal do Reino de Deus e, ocorrendo a decepção, não voltam ao catolicismo, se eram católicas. Não voltam a ser descrentes, se eram descrentes. Não voltam às religiões afro-brasileiras, se a elas encontravam-se ligadas. Elas se dirigem a um outro grupo evangélico, menos empresarial, “mais sério”, “mais interessante”, “mais humano”, “com uma mensagem verdadeiramente cristã”. Há que se perceber que nem tudo funciona às mil maravilhas para essa igreja, algumas coisas dão erradas. Há pessoas saindo da Igreja Universal, processando-a, criticando-a, etc. Há pessoas que deram todos os seus bens para a Igreja Universal e agora os querem de volta. Há que se relatar isso também. Participante 3 – Como é que eles formam os pastores? Existe uma literatura religiosa, teológica consistente, produzida por esta igreja? Aírton – Eles têm literatura própria, têm uma editora, que já publicou uns 20 títulos, a maioria do Bispo Edir Macedo. Sobre a formação dos pastores, eu não estou bem inteirado. Ouvi relatos de que tentaram fazer com que os pastores tivessem uma formação teológica básica. Acho que foi quando eles foram acusados de charlatanismo, mas parece que não seguiram adiante nesse propósito. Eu sei pouco sobre isso. Sei que o sujeito entra, começa a trabalhar como “obreiro” na igreja espontaneamente, deve conquistar a confiança dos pastores, deve ser identificado como alguém que realmente é um fiel, que honra a obra, que paga os seus dízimos. Se conquistar essa confiança, ele pode ser convidado a ser “obreiro”. Ele pode ficar a vida inteira como “obreiro”, entretanto, se algum pastor achar que se trata de alguém promissor, que ele poderia ser mais bem aproveitado, ele pode se tornar pastor. Até onde eu sei, os critérios funcionam mais ou menos assim: se o sujeito é bonito, bem apessoado, fala bem, etc. tem alguma chance. Quanto à formação teológica, talvez ele até receba algum treinamento básico. Isso deve existir, porque funciona um pouco como empresa e toda empresa tem o seu serviço de treinamento em algum momento. Águeda – Se a gente tiver bastante dinheiro, vamos dizer assim, uma quantia inusitada, pode ser uma franqueada da empresa Igreja Universal? Aírton – Até onde eu sei, não funciona desta forma. Eles têm um controle total. Eles não abrem a possibilidade de a Igreja Univer-
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sal tornar-se uma marca famosa no mundo pentecostal, ser explorada mediante contratos de franquia. Eles têm um controle rígido e centralizado. O Professor Ricardo Mariano relata em um dos seus textos que o deputado federal Carlos Rodrigues, bispo e fundador dessa igreja, admite tranqüilamente que o governo eclesiástico da Igreja Universal é uma “ditadura”. Assumir-se assim não os constrange nem um pouco, porque, para eles, democracia na igreja não funciona, pois não tem sentido fazer uma assembléia para saber se um pastor deve ou não comprar um órgão, se deve ou não abrir um programa de televisão ou de rádio. Segundo este pastor, “todas as igrejas democráticas não crescem, porque uma ovelha não pode mandar em um pastor”. A igreja, portanto, é concebida de uma forma que a comunidade e os pastores não têm nenhuma autonomia sobre as decisões que a afetam administrativamente, teologicamente, liturgicamente, etc. Na Igreja Universal, não existe franquia, porque eles querem manter o monopólio e o controle centralizado e muito forte sobre as igrejas, não deixando nada sair do padrão. Eles tentam manter um serviço padronizado. Eles não deixam cada templo assumir características próprias. A liturgia, os rituais, tudo é padronizado. Participante 4 – Existe um núcleo que planeja, que pensa a igreja e aí vem a pergunta: “Que continuidade se pode esperar de uma igreja que está centralizado em uma pessoa ou em um grupo pequeno?” Aírton – Segundo o professor Ricardo Mariano, a Igreja Universal é, “ditatorialmente”, controlada por Edir Macedo. Claro que ele divide alguns poderes com aqueles bispos que estão mais próximos, mas é um grupo muito pequeno realmente. Esse sistema está dando certo até agora, mas existe uma pergunta a ser feita: “Até quando dará?” Aparentemente, do ponto de vista administrativo, parece ser um bom modelo, pois a igreja não pára de crescer. Em alguns lugares, ele dá errado também. O professor Ari Pedro Oro me relatou que, no México, eles fracassaram. Não conseguiram se instalar no México, porque lá o culto à Virgem de Guadalupe, por ser muito forte, inviabilizou suas pretensões expansionistas. Pode ocorrer que este modelo de administração, em algum momento, comece a dar problema. É possível, quem sabe, que ocorra alguma cisão no futuro. Já houve uma cisão no início, quando a IURD não era ainda uma igreja forte. Para melhor entender as questões que envolvem os dilemas atuais dessa igreja, há um livro que está para ser lançado que se intitula Igreja Universal do Reino de Deus: os novos conquistadores da fé. Ele foi organizado pelo professor Ari Pedro Oro e pelo professor belga-canadense André Corten, com prefácio do famosíssimo Harvey Cox. Contém cerca de 20 importantes artigos sobre a
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Igreja Universal. É um livro fundamental para entender a Igreja Universal. Ele forma uma espécie de marco referencial básico para entender também algumas importantes características do atual campo religioso brasileiro como um todo. Pode-se dizer que, não entendendo a Igreja Universal, não se entende muito o que acontece no universo religioso brasileiro.
Airton Luiz Jungblut (1962), natural de Três de Maio, RS, é antropólogo com mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Sua tese intitula-se Nos chats do Senhor: um estudo antropológico sobre a presença evangélica no ciberespaço brasileiro. Desde 1999, atua como professor e pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde concluiu sua graduação em Ciências Sociais (1988) e a especialização em Antropologia Social, em 1990. Desenvolve pesquisas antropológicas relacionadas à religião contemporânea brasileira, comunicação mediada por computador, individualismo e organizações sociais e, mais recentemente, práticas de consumo. Últimos trabalhos publicados: JUNGBLUT, Airton Luiz. A heterogenia do mundo online: algumas refle-
xões sobre virtualização, comunicação mediada por computador e ciberespaço. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre: PPGAS/UFRGS, v. 21, p. 97-121, 2004. _______. Exercícios identitários no ciberespaço brasileiro: o caso dos “chats” evangélicos. In: MEDEIROS, João Luiz; DUARTE, Maria Beatriz Balena (org.). Mosaico de identidades: interpretações contemporâneas das ciências humanas e a temática da identidade. Curitiba: Juruá, 2004. p. 15-30. _______. Os domínios do maligno e seu combate: notas sobre algumas percepções evangélicas atuais acerca do mal. Debates do NER, Porto Alegre, n. 4, p. 35-42, 2003. _______. A religião e a ética num mundo em processo de globalização. In: MALLMANN, Maria Izabel (org.). Paz e guerra em tempos de desordem. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 57-83. _______. O individualismo de nossos dias e a (des)ordem no ciberespaço: um olhar sobre as organizações sociais ambientadas em redes de computadores. In: SILVEIRA, Flavio (org.). Organizações e sociedade: identidade, poder, saber e comunicação na contemporaneidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 97-115.