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ConferĂŞncia de Aparecida: caminhos e perspectivas da Igreja Latino-Americana e Caribenha Benedito Ferraro


UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS Reitor Marcelo Fernandes de Aquino, SJ Vice-reitor José Ivo Follmann, SJ

Instituto Humanitas Unisinos Diretor Inácio Neutzling, SJ

Conselho editorial MS Ana Maria Formoso – Unisinos

Gerente administrativo Jacinto Schneider

Cadernos Teologia Pública Ano V – Nº 40 – 2008 ISSN 1807-0590

Responsável técnica Cleusa Maria Andreatta Revisão André Dick Secretaria Camila Padilha da Silva Editoração eletrônica Rafael Tarcísio Forneck

Editor Prof. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – Unisinos Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Unisinos Prof. Dr. Laurício Neumann – Unisinos Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos Esp. Susana Rocca – Unisinos Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos Conselho científico Profa. Dra. Edla Eggert – Unisinos – Doutora em Teologia Prof. Dr. Faustino Teixeira – UFJF-MG – Doutor em Teologia Prof. Dr. José Roque Junges, SJ – Unisinos – Doutor em Teologia Prof. Dr. Luiz Carlos Susin – PUCRS – Doutor em Teologia Profa. Dra. Maria Clara Bingemer – PUC-Rio – Doutora em Teologia Profa. MS Maria Helena Morra – PUC Minas – Mestre em Teologia Profa. Dra. Maria Inês de Castro Millen – CES/ITASA-MG – Doutora em Teologia Prof. Dr. Rudolf Eduard von Sinner – EST-RS – Doutor em Teologia

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Cadernos Teologia Pública A publicação dos Cadernos Teologia Pública, sob a responsabilidade do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, quer ser uma contribuição para a relevância pública da teologia na universidade e na sociedade. A teologia pública pretende articular a reflexão teológica em diálogo com as ciências, culturas e religiões de modo interdisciplinar e transdisciplinar. Busca-se, assim, a participação ativa nos

debates que se desdobram na esfera pública da sociedade. Os desafios da vida social, política, econômica e cultural da sociedade, hoje, especialmente, a exclusão socioeconômica de imensas camadas da população, no diálogo com as diferentes concepções de mundo e as religiões, constituem o horizonte da teologia pública. Os Cadernos Teologia Pública se inscrevem nesta perspectiva.



Conferência de Aparecida: caminhos e perspectivas da Igreja Latino-Americana e Caribenha

Benedito Ferraro

1 Importância do acontecimento Quando falamos de conferência episcopal, trata-se de uma experiência original que acontece na Igreja da América Latina e do Caribe. Fruto da recepção criativa do Concílio Vaticano II, é um modo único de exercício da colegialidade no mundo. Diferentemente de um sínodo, a assembléia tem um peso maior, pois é dela que sai um documento com orientações para toda a Igreja do continente. É o exercício do magistério latino-americano e caribenho. Em vista do futuro da/s Igreja/s cristãs do continente latino-americano, somos convidados/as a manter esta experiência eclesial e tentar apresentá-la como benéfica para toda a Igreja universal. Algo similar se pas-

sa com o Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), que também celebrou a sua V Conferência, na Argentina, em fevereiro de 2007. Para que esta experiência eclesial se mantenha, é necessária uma articulação permanente entre todos os níveis eclesiais: articulação entre bispos, padres, religiosas, religiosos, diáconos permanentes, leigos e leigas, que assumem as lutas do povo em todo o continente. A V Conferência de Aparecida tem uma história que a precede. Antes dela, foram feitas as Conferências do Rio de Janeiro (1955), Medellín (1968), Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Cada uma destas Conferências marca a Igreja da América Latina e Caribe. A do Rio de Janeiro iniciou o processo de colegialidade entre as Igre-


jas e as Conferências Episcopais dos países latino-americanos, apontando para a co-responsabilidade entre elas na perspectiva da latino-americanidade, isto é, na busca de caminhos comuns para a evangelização. Em Medellín, houve todo um esforço para a recepção do Concílio Vaticano II que entende a Igreja como Povo de Deus. A Igreja que sai de Medellín é conhecida como a Igreja dos pobres. A conferência de Puebla, além de reforçar a Igreja dos pobres, apontou-lhe as marcas da comunhão e participação. A conferência de Santo Domingo, mesmo com todas as amarras advindas do contexto eclesial, fruto da centralização e do grande poder das instâncias romanas, indicou a inculturação como grande desafio.

2 Expectativas para a V Conferência de Aparecida Entre Santo Domingo e Aparecida, transcorreram-se 15 anos. É um período longo diante da rapidez das mudanças que ocorrem nos tempos atuais. A Igreja necessita, de tempos em tempos, fazer uma avaliação e propor novos caminhos que possam responder aos desafios do tempo presente na sociedade e na Igreja. Eis alguns deles que criaram expectativas para Aparecida:

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a) Como superar o processo de exclusão causado pelo processo de globalização legitimado pela ideologia do neoliberalismo? b) Como enfrentar o desemprego estrutural? c) Como superar a violência cada dia mais presente em nossas cidades? d) Quais as causas da migração do campo para as cidades e das cidades para os grandes centros do capital internacional, como Estados Unidos, Europa e Japão? e) Como conviver com o pluralismo cultural, com a emergência de novos sujeitos sociais? f) Como compreender o pluralismo religioso, visto que a maioria das famílias já tem seus membros participando de várias Igrejas e outras religiões? g) Qual o papel da mulher na Igreja? h) O que está impedindo os novos ministérios diante de tantos serviços necessários nas comunidades? i) Como cuidar da natureza como nossa casa comum, como a “mãe terra”, diante de tanta devastação e desrespeito para com as florestas, animais, águas?


3 Documento de Aparecida: Caminhos e perspectivas O Documento da V Conferência retrata a realidade da Igreja Católica no continente latino-americano e caribenho com suas tensões, desafios e realizações. Saído deste contexto conflitivo, o documento, embora com muitas lacunas, pode nos oferecer luzes para iluminar os caminhos e perspectivas da Igreja Latino-Americana e Caribenha. 3.1. Exigência de se enfrentar o neoliberalismo

O Documento de Aparecida parte de uma constatação crítica e contundente: “É uma contradição dolorosa que o Continente de maior número de católicos seja também o de maior iniqüidade social” (Aparecida, 527). Estamos na mesma linha de Medellín, quando afirma que “a América Latina encontra-se, em muitas partes, numa situação de injustiça que pode chamar-se de violência institucionalizada” (Medellín, Paz, 16). E também na mesma linha de Puebla ao afirmar: “Vemos à luz da fé, como um escândalo e uma contradição com o ser cristão, a brecha crescente entre ricos e pobres. O luxo de alguns poucos converte-se em insulto contra a miséria das gran-

des massas. Isso é contrário ao plano do Criador e à honra que lhe é devida. Nesta angústia e dor, a Igreja discerne uma situação de pecado social...” (Puebla, 28). O texto de Aparecida define esta situação de iniqüidade social como fruto de um processo que, embora sem ser definido como neoliberal, pode-se, perfeitamente, subentendê-lo como tal: “Lamentavelmente, a face mais conhecida e exuberante da globalização é sua dimensão econômica, que se sobrepõe e condiciona todas as demais dimensões da vida humana. Na globalização, a dinâmica do mercado absolutiza com facilidade a eficiência e a produtividade como valores reguladores de todas as relações humanas. Este peculiar caráter faz da globalização um processo promotor de iniqüidades e injustiças múltiplas” (Aparecida, 61). Esta conclusão pode ser tirada a partir da explicitação que vem logo a seguir: “Já não se trata simplesmente do fenômeno da exploração e opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela a pertença à sociedade na qual se vive fica afetada na raiz, pois já não está abaixo, na periferia ou sem poder, mas está fora. Os excluídos não são somente ‘explorados’, mas ‘supérfluos’ e ‘descartáveis’” (Aparecida, 65). Este enfrentamento se apresenta sempre mais definido, se tomarmos algumas referências anteriores, como na Encíclica Ecclesia in America: “Domina cada vez mais, 7


em muitos Países americanos, um sistema conhecido como ‘neoliberalismo’; sistema este que, apoiado numa concepção economicista do homem, considera o lucro e as leis de mercado como parâmetros absolutos com prejuízo da dignidade e do respeito da pessoa e do povo. Por vezes, este sistema transformou-se numa justificação ideológica de algumas atitudes e modos de agir no campo social e político que provocam a marginalização dos mais fracos. De fato, os pobres são sempre mais numerosos, vítimas de determinadas políticas e estruturas freqüentemente injustas”.1 Outra referência importante é a Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina: “Fazer oposição ao neoliberalismo significa, antes de tudo, afirmar que não existem instituições absolutas, capazes de explicar ou conduzir a história humana em toda a sua complexidade. O homem e a mulher são irredutíveis ao mercado, ao Estado ou a qualquer outro poder ou instituição que pretenda impor-se como totalitária. Significa proteger a liberdade humana, afirmando que o único absoluto é Deus e que seu mandamento de amor se expressa socialmente na justiça e solidariedade. Significa, finalmente, de-

nunciar as ideologias totalitárias, pois elas, quando conseguiram se impor, só apresentaram como resultado injustiça, exclusão e violência”.2 Parece-nos que este é um caminho que a Igreja Latino-Americana e Caribenha é convidada a trilhar, se quiser realizar o Projeto de Aparecida: uma Igreja inserida no Continente e que quer proporcionar, através da evangelização, vida para todos seus habitantes e para a própria natureza. 3.2 Opção pelos pobres e excluídos e suas implicações

A opção pelos pobres tem despertado, a partir do Vaticano II e, de modo especial, a partir de Medellín e Puebla, uma intensa discussão com muitas tensões, incompreensões e tentativas de amortecer suas implicações práticas. Sem dúvida, esta opção, nascida na década de 60, tem suas raízes na Bíblia. Na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), esta compreensão está explicitada no canto: “Javé, o Deus dos pobres, do povo sofredor, aqui nos reunimos para cantar o seu louvor. Pra

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JOÃO PAULO II, Ecclesia in America. Exortação Apostólica Pós-sinodal do Santo Padre João Paulo II. São Paulo: Paulus, 1999, n. 56.

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O neoliberalismo na América Latina. Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina. Documento de Trabalho. São Paulo: Loyola, 1997, n. 11, p. 19. Este texto focaliza as razões do enfrentamento que se deve fazer ao neoliberalismo, oferecendo pistas concretas para a ação pastoral e social.

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nos dar esperança e contar com sua mão, na construção do Reino, Reino novo, povo irmão”. O livro do Êxodo mostra um Deus que age na história como libertador: “Eu vi, eu vi miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Êx 3,7-8b). Esta tradição do Deus libertador se expressa na profissão de fé do povo libertado: “Eu sou Iahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Êx 20,2). Estamos tomando consciência de que a opção pelos pobres, como já afirmou Gustavo Gutiérrez, é uma opção teocêntrica. Isto quer dizer que sai do coração de Deus, de sua gratuidade. Cremos ser importante pensá-la como opção trinitária: a opção pelos pobres é uma opção de Deus Pai (cf. Êx 3,7-10; 20,2; Mt 11,25-26), do Deus Filho, Jesus de Nazaré (Lc 4,16-21), e do Deus Espírito Santo, que envia Jesus para o meio dos pobres (Lc 4, 18-19). É interessante notarmos que, na seqüência da missa de Pentecostes, o Espírito Santo é proclamado como Pai dos Pobres (Pater Pauperum)! Esta opção é as3

sumida também por Maria, a Mãe de Jesus (Lc 1,46-56). Somos todos e todas convidados/as a fazer esta opção pelos pobres, com os pobres contra a pobreza! Na verdade, esta opção é bíblica e evangélica e foi belamente descrita por Dona Luzia de Itumbiara-Go, ao dizer: “A Bíblia é o livro dos pobres, escrito para os pobres, dizendo para os pobres: chega de pobreza!”. Bento XVI afirma que a opção pelos pobres está implícita na fé cristã e faz parte integrante do discipulado como seguimento de Jesus Cristo: “Nossa fé proclama que ‘Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do ser humano’. Por isso ‘a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, enriquecendo-nos com sua pobreza. Esta opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito humano, que se fez nosso irmão’” (cf. Hb 211-212). (Aparecida, 392). O Papa afirma que o Deus revelado em Jesus de Nazaré é “o Deus de rosto humano; é o Deus-Conosco, o Deus do amor até a cruz”.3 Interessante observar que esta afirmação do Papa se aproxima do canto das comunidades eclesiais de base: “Tu és o Deus dos pequenos, o Deus humano e sofrido, o Deus de mãos calejadas, o Deus de rosto curtido. Por isso te falo eu,

Bento XVI, Discurso inaugural da V Conferência.

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como te fala meu povo, porque és o Deus roceiro, o Cristo trabalhador”. A opção pelos pobres continua sendo a pedra de toque da Igreja: “A opção pelos pobres é uma das características que marca ao rosto da Igreja latino-americana e caribenha” (Aparecida, 391). É a partir dela que se definem os modelos de Igreja. A grande questão, após a V Conferência, está relacionada com sua interpretação. Há, no documento, duas direções: a primeira daqueles e daquelas que vêem os pobres e excluídos como objetos de misericórdia, comiseração, de atenção e de cuidado. A segunda daqueles e daquelas que vêem os pobres como novos sujeitos emergentes e que apontam para um novo modelo eclesial e um novo modelo de sociedade. Esta segunda postura está em consonância com a análise da realidade latino-americana e caribenha em que os bispos reconhecem ser de iniqüidade social, de intoleráveis desigualdades sociais e econômicas que clamam ao céu e fruto de um processo promotor de iniqüidades e injustiças (Aparecida, 61). Nesta ótica, a V Conferência nos indica que “a opção pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres” e a vê-los como sujeitos de sua própria libertação (cf. Aparecida, 398). É uma opção pelos pobres, com os pobres, contra a injustiça. Este é o compromisso expresso em Aparecida: “Com10

prometemo-nos a trabalhar para que a nossa Igreja Latino-Americana e Caribenha continue sendo, com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio. Hoje queremos ratificar e potencializar a opção preferencial pelos pobres feita nas Conferências anteriores. Que seja preferencial implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais. A Igreja Latino-Americana é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça entre nossos povos” (Aparecida, 96). Nesta mesma linha, encontramos a exigência de mudanças estruturais: “O amor de misericórdia para com todos os que vêem vulnerada sua vida em qualquer de suas dimensões, como bem nos mostra o Senhor em todos os seus gestos de misericórdia, requer que socorramos as necessidades urgentes, ao mesmo tempo em que colaboremos com outros organismos ou instituições para organizar estruturas mais justas nos âmbitos nacionais e internacionais. É urgente criar estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política na qual não haja iniqüidade e onde haja possibilidade para todos” (Aparecida, 384). Na medida em que acreditamos nos pobres como sujeitos e protagonistas de sua própria libertação, compreenderemos os novos caminhos que a Igreja LatinoAmericana e Caribenha é convidada a seguir em relação


à leitura libertadora, popular e orante da Bíblia, a uma Igreja fonte, à memória dos/as mártires, ao diálogo ecumênico e inter-religioso, aos jovens, às mulheres, aos povos indígenas e afro-americanos, às mudanças que acontecem em diferentes países do Continente, à ecologia. 3.2.1 Leitura libertadora, popular e orante da Bíblia

A Palavra de Deus é apresentada como fundamental para a caminhada do Povo de Deus. Ao fazer a ligação da Bíblia com a vida, os pobres fazem a descoberta da presença de Deus na sua vida, como aconteceu no passado: “Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!” (cf. Ex 2,24;3,7).4 A Bíblia passa a ser apropriada pelos pobres e começa a fazer parte da sua vida cotidiana. Os pobres começam a interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Para que haja esta ligação profunda entre a Bíblia e a vida, “é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da realidade, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece como é 4 5

importante o intérprete ter convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e do seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas hoje”.5 Mesmo afirmando que esta ligação da Bíblia com a vida se dá nas Comunidades Eclesiais de Base, podemos compreender o valor da leitura popular, libertadora e orante da Bíblia como um dos caminhos que a Igreja é convidada a trilhar pela indicação da V Conferência: “Puebla constatou que as pequenas comunidades, sobretudo as comunidades eclesiais de base, permitiram ao povo chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos” (Aparecida, 178). E o Documento insiste: “Igual às primeiras comunidades de cristãos, hoje nos reunimos assiduamente para ‘escutar o ensinamento dos apóstolos, viver unidos e tomar parte no partir do pão e

MESTERS,C. e OROFINO, F., Critérios e método da leitura popular da Bíblia, texto inédito, 2007, p 1. MESTERS, C. e OROFINO, F., op. cit., p 01.

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nas orações’ (At 2,42). A comunhão da Igreja se nutre com o Pão da Palavra de Deus e com o Pão do Corpo de Cristo” (Aparecida, 158). Ainda podemos observar como método orante pode influenciar a caminhada da Igreja Latino-Americana e Caribenha: “Entre as muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura existe uma privilegiada à qual todos somos convidados: a Lectio divina ou exercício de leitura orante da Sagrada Escritura. Essa leitura orante, bem praticada, conduz ao encontro com Jesus-Mestre, ao conhecimento do mistério de Jesus-Messias, à comunhão com Jesus-Filho de Deus e ao testemunho de Jesus-Senhor do universo. Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (cf. Jo 3,1-21), a Samaritana e seu desejo de culto verdadeiro (cf. Jo 4,1-42), o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (cf. Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente (cf. Lc 19,1-10)... Todos eles, graças a esse encontro, foram iluminados e recriados porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai que se oferece por sua Palavra de verdade e vida. Não abriram o coração para algo do Messias, mas ao próprio Messias, caminho de crescimento na ‘maturidade 12

conforme a sua plenitude’ (Ef 4,13), processo de discipulado, de comunhão com os irmãos e de compromisso com a sociedade” (Aparecida, 249). 3.2.2 Igreja fonte: papel protagônico das CEBs

Embora não haja uma afirmação explícita de uma Igreja fonte que se nutre dos valores da Teologia da Libertação em suas novas vertentes de gênero, etnia, ecologia, ecumenismo e diálogo inter-religioso, presentes nas teologias índias, afro, de gênero, ecológicas, notamos que o Projeto de Aparecida indica a necessidade de se assumir os rostos presentes no Continente, para poder oferecer uma evangelização inculturada. As Comunidades Eclesiais de Base desempenham, neste sentido, um papel protagônico na construção de um novo modelo eclesial, na medida em que são apresentadas como célula inicial de estruturação eclesial e foco de evangelização, sendo verdadeiras escolas que formam discípulos/as missionários/as do Senhor. Esta reafirmação das CEBs ficou consignada no texto saído dos bispos, no dia 31 de maio de 2007: “Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e missão profética e santificadora das CEBs, no seguimento missionário de Jesus. Elas têm sido uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja da


América Latina e do Caribe depois do Vaticano II. As comunidades eclesiais de base, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade e a orientação de seus pastores como guia que assegura a comunhão eclesial. Demonstram seu compromisso evangelizador e missionário entre os mais simples e afastados, e são expressão visível da opção preferencial pelos pobres. São fonte e semente de variados serviços e ministérios a favor da vida na sociedade e na Igreja” (Aparecida, 179). 3.2.3 Memória dos/as mártires

Na América Latina e Caribe, a grande maioria dos/as mártires está ligada à luta pelo Reino de Deus e sua justiça. Para ser fiel à memória de Jesus de Nazaré, a Igreja deste Continente não pode perder a memória de seus mártires, sob pena de perder o rumo da história. A memória dos/as mártires nos ajuda a manter o projeto defendido por eles e que os levou, como Jesus, até a morte: “Seu empenho [da Igreja] a favor dos mais pobres e sua luta pela dignidade de cada ser humano tem ocasionado, em muitos casos, a perseguição e inclusive a morte de alguns de seus membros, os quais consideramos testemunhas da fé. Queremos recordar o testemunho valente

de nossos santos e santas, e aqueles que, inclusive sem terem sido canonizados, viveram com radicalidade o Evangelho e ofereceram sua vida por Cristo, pela Igreja e por seu povo” (Aparecida, 98). Devemos estar abertos ao seu testemunho: “Estimula-nos o testemunho de tantos missionários e mártires de ontem e de hoje em nossos povos que têm chegado a compartilhar a cruz de Cristo até a entrega da própria vida” (Aparecida, 140). E acolher seu estilo de vida evangélico: “Com a paixão de seu amor a Jesus Cristo, foram membros ativos e missionários em sua comunidade eclesial. Com valentia, perseveraram na promoção dos direitos das pessoas, foram perspicazes no discernimento crítico da realidade à luz do ensino social da Igreja e críveis pelo testemunho coerente de suas vidas. Nós, cristãos de hoje, acolhemos sua herança e nos sentimos chamados a continuar com renovado ardor apostólico o estilo evangélico de vida que nos transmitiram” (Aparecida, 275). O receio e o medo, antes expressos em várias ocasiões, cedem lugar ao apreço e ao reconhecimento do valor do martírio. 3.2.4 Diálogo ecumênico e inter-religioso

O Decreto Unitatis Redintegratio afirma que “esta divisão, sem dúvida, contradiz abertamente a vontade de 13


Cristo, e se constitui em escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda criatura” (UR, 1). Aparecida reforça esta afirmação, afirmando que “a compreensão e a prática da eclesiologia de comunhão nos conduz ao diálogo ecumênico. A relação com os irmãos e irmãs batizados de outras Igrejas e comunidades eclesiais é um caminho irrenunciável para o discípulo e missionário, pois a falta de unidade representa um escândalo, um pecado e um atraso do cumprimento do desejo de Cristo: ‘Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti. E para que também eles estejam em nós, a fim de que o mundo acredite que tu me enviaste’ (Jo 17,21)” (Aparecida, 227). Além de insistir no ecumenismo do ponto de vista de sua exigência evangélica, trinitária e batismal (cf. Aparecida, 228), nota-se que a fé é questionada em nosso Continente, embora com maioria católica e cristã, pela injustiça social em relação aos pobres e excluídos. J. B. Libânio afirma que “a mais grave ameaça à fé em nosso continente é a miséria”6 (cf. Puebla, 28). “A ineficácia de tal revelação na ordem da práxis desabona-a como divina.”7 Neste sentido, o ecumenismo se torna uma exigên6 7

cia para a evangelização na América Latina e no Caribe e a Igreja Latino-Americana e Caribenha é convidada a se converter e assumir este caminho já apontado pelo Vaticano II. Aparecida insiste, também, na importância do diálogo inter-religioso: “O diálogo inter-religioso, além de seu caráter teológico, tem significado especial na construção da nova humanidade: abre caminhos inéditos de testemunho cristão, promove a liberdade e a dignidade dos povos, estimula a colaboração para o bem comum, supera a violência motivada por atitudes religiosas fundamentalistas, educa para a paz e para a convivência cidadã; é um campo de bem-aventuranças que são assumidas pela Doutrina Social da Igreja” (Aparecida, 239). É nesta perspectiva que a Igreja Latino-Americana e Caribenha é convidada a caminhar para contribuir com a construção da justiça e paz no mundo, como afirma Hans Küng: “A meta de um entendimento universal entre as religiões deve ser um etos comum da humanidade, mas um etos que não deverá substituir a religião – como às vezes se tem erroneamente pensado. O etos é e continua a ser apenas uma dimensão dentro das diferentes religiões,

LIBÂNIO, J. B., Eu creio, nós cremos: Tratado da fé. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 203. LIBÂNIO, J. B., op. cit., p. 35.

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uma dimensão das religiões entre si. Não se trata, pois, de chegar a uma religião única, nem a um coquetel de religiões, nem de substituir a religião por uma ética. Mas, antes, de um empenho pela paz entre os homens das diferentes religiões deste mundo, o que constitui uma necessidade urgente. Pois: Não haverá paz entre as nações, se não houver paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões, se não existir padrões éticos globais. Nosso planeta não irá sobreviver, se não houver um etos global, uma ética para o mundo inteiro”.8 3.2.5 Jovens

Aparecida se preocupa com os jovens. Indica seu potencial, mas reconhece as dificuldades que os jovens enfrentam em relação às seqüelas da pobreza, a carga de alienação advinda da globalização, as crises pelas quais passa a família de hoje, a educação de baixa qualidade, a descrença da política, a problemática advinda do desemprego estrutural, o fenômeno da migração que os afeta diretamente (cf. Aparecida, 444-445). Há, porém, uma 8

novidade no Documento de Aparecida: enquanto Puebla apontava duas opções, pobres e jovens, notamos, agora, uma única opção, na medida em que se afirma que a maioria dos jovens são pobres e, portanto, os jovens devem fazer própria a opção preferencial e evangélica pelos pobres (cf. Aparecida, 446 e). 3.2.6 Mulheres

Notamos, no Documento de Aparecida, o reconhecimento do papel da mulher na Igreja e na sociedade a partir do mistério da Trindade que nos convida a viver uma comunidade de iguais e diferentes. A Síntese da CNBB fala do “acesso das mulheres ao ministério ordenado como uma dívida pendente”. O Documento também aponta a necessidade de se superar o machismo presente na sociedade latino-americana e caribenha: “A antropologia cristã ressalta a igual identidade entre homem e mulher em razão de terem sido criados à imagem e semelhança de Deus. O mistério da Trindade nos convida a viver uma comunidade de iguais na diferença. Em época de marcado machismo, a prática de Jesus foi decisiva para significar a dignidade da mulher e de seu valor indis-

KÜNG, H. Religiões do mundo: Em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus, 2004, p. 17.

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cutível: falou com elas (cf. Jo 4,27), teve singular misericórdia com as pecadoras (cf. Lc 7,36-50; Jo 8,11), curou-as (cf. Mc 5,25-34), reivindicou a dignidade delas (cf. Jo 8,1-11), escolheu-as como primeiras testemunhas de sua ressurreição (cf. Mt 28,9-10) e incorporou mulheres ao grupo de pessoas que lhe eram mais próximas (cf. Lc 8,1-3)” (Aparecida, 451). Importante também ressaltar a afirmação da reciprocidade: “A relação entre a mulher e o homem é de reciprocidade e colaboração mútua. Trata-se de harmonizar, complementar e trabalhar somando esforços. A mulher é co-responsável, junto com o homem, pelo presente e futuro de nossa sociedade humana” (Aparecida, 452). Reconhece-se também a opressão vivida pela mulher na sociedade atual e se aponta a necessidade de se superar tal situação na sociedade e na Igreja: “Lamentamos que inumeráveis mulheres de toda condição não sejam valorizadas em sua dignidade, estejam com freqüência sozinhas e abandonadas, não se reconheçam nelas suficientemente o abnegado sacrifício, inclusive a heróica generosidade no cuidado e educação dos filhos e na transmissão da fé na família. Muito menos se valoriza nem se promove adequadamente sua indispensável e peculiar participação na construção de uma vida social mais humana e na edificação da Igreja” (Aparecida, 453). A/s 16

Igreja/s são convidadas a abrirem-se aos movimentos das mulheres que buscam ser iguais e diferentes, vivendo em comunhão e colaboração. 3.2.7 Povos indígenas e afro-americanos

Os indígenas e os afro-americanos foram por muitos séculos invisibilizados, mas hoje estão se fazendo presentes em vários países latino-americanos e caribenhos e indicam a necessidade de mudanças estruturais. Há, no Documento de Aparecida, um reconhecimento dos povos indígenas e afro-americanos, convidando-nos a acolher seus valores, suas histórias e seus conhecimentos. A Igreja Latino-Americana e Caribenha é convidada a se converter e olhar com respeito à alteridade presente nos povos indígenas e afro-americanos. Sem esta perspectiva, não haverá possibilidade de uma inculturação do Evangelho. Neste sentido, é preciso rever a retirada da teologia índia da redação do Documento de Aparecida, se quisermos, de fato, levar a sério a afirmação de Aparecida: “Como discípulos e missionários a serviço da vida, acompanhamos os povos indígenas e originários no fortalecimento de suas identidades e organizações próprias, na defesa do território, na educação intercultural bilíngüe e


na defesa de seus direitos. Comprometemo-nos também a criar consciência na sociedade a respeito da realidade indígena e seus valores, através dos meios de comunicação social e outros espaços de opinião. A partir dos princípios do Evangelho, apoiamos a denúncia de atitudes contrárias à vida plena em nossos povos de origem e nos comprometemos a prosseguir na obra de evangelização dos indígenas, assim como a procurar as aprendizagens educativas e de trabalho com as transformações culturais que isso implica” (Aparecida, 530). A mesma observação vale para os afrodescendentes, pois “o seguimento de Jesus no Continente passa também pelo reconhecimento dos afro-americanos como desafio que nos interpela para viver o verdadeiro amor a Deus e ao próximo” (Aparecida, 532). Por isso, o caminho da Igreja é lutar contra os preconceitos e as discriminações, visando à construção de uma sociedade fraterna e solidária: “A Igreja denuncia a prática da discriminação e do racismo em suas diferentes expressões, pois ofende no mais profundo a dignidade humana criada à ‘imagem e semelhança de Deus’. Preocupa-nos que poucos afro-americanos cheguem à educação superior, sem a qual se torna mais difícil seu acesso às esferas de decisão na sociedade. Em sua missão de advogada da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária aos afro-americanos

nas reivindicações pela defesa de seus territórios, na afirmação de seus direitos, na cidadania, nos projetos próprios de desenvolvimento e consciência de negritude. A Igreja apóia o diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça social, e incentiva a participação ativa dos afro-americanos nas ações pastorais de nossas Igrejas e do CELAM” (Aparecida, 533). 3.2.8 Em busca da Pátria Grande: Um Continente de justiça e de paz

Na perspectiva de que haja vida para todos e todas, como também vida para a natureza, a Igreja Latino-Americana e Caribenha se vê frente o desafio da construção de um continente de justiça e de paz como tarefa principal da política. A Igreja não pode ficar fora da luta pela justiça: “A misericórdia sempre será necessária, mas não deve contribuir para criar círculos viciosos que sejam funcionais para um sistema econômico iníquo” (Aparecida, 385). Deste modo, alertando para a complexa relação entre justiça e caridade, o Documento nos alerta afirmando que “a ordem justa da sociedade e do Estado é tarefa principal da política” e não da Igreja. Mas a Igreja “não pode nem deve colocar-se à margem na luta pela justiça” (Aparecida, 385). 17


A busca da integração dos povos da América Latina e Caribe, para a formação da Pátria Grande, exige a construção de um consenso que nos leve às mudanças estruturais necessárias para acabar com a desigualdade que fere a dignidade da pessoa humana. É dentro deste horizonte que o Documento saúda os passos que estão sendo dados: “Nos últimos 20 anos, apreciamos os avanços significativos e promissores nos processos e sistemas de integração de nossos países. As relações comerciais e políticas se têm intensificado. É nova a comunicação e solidariedade mais estreita entre o Brasil e os países hispano-americanos e caribenhos” (Aparecida, 528). Se a Igreja Latino-Americana e Caribenha, de fato, quiser contribuir nesta integração, visando à construção de um Continente de justiça e paz, ela tem o desafio de preparar com mais afinco e seriedade a VI Conferência, buscando a articulação dos mais diferentes setores da realidade eclesial, especialmente aqueles mais articulados com as lutas populares na defesa da vida dos pobres e excluídos e na defesa da ecologia. Será necessário um trabalho de articulação entre os leigos/as, sobretudo dos Conselhos do laicato, assim como entre bispos, presbíteros, diáconos, religiosas, religiosos mais próximos desta visão de sociedade e de Igreja. É um caminho a ser trilhado! 18

3.2.9 Defesa da natureza (ecologia)

Aparecida, frente à dura realidade da miséria gerada pela injustiça social, reforça o cuidado com a natureza, pois reconhece que quem mais sofre com a devastação da nossa irmã mãe terra, são os pobres, especialmente as mulheres, os camponeses e os indígenas. Por isso, retoma a importância das culturas dos povos originários no seu trato com a natureza e nos convida a sermos como São Francisco que soube louvar a nossa Irmã Mãe Terra: “A América Latina e o Caribe estão se conscientizando da natureza como herança gratuita que recebemos para proteger, como espaço precioso da convivência humana e como responsabilidade cuidadosa do senhorio do homem para o bem de todos. Essa herança muitas vezes se manifesta frágil e indefesa diante dos poderes econômicos e tecnológicos. Por isso, como profetas da vida, queremos insistir que, nas intervenções sobre os recursos naturais, não predominem os interesses de grupos econômicos que arrasam irracionalmente as fontes de vida, em prejuízo de nações inteiras e da própria humanidade. As gerações que nos sucederão têm direito a receber um mundo habitável e não um planeta com ar contaminado” (Aparecida, 471).


A Igreja é chamada a contribuir na procura de “um modelo de desenvolvimento alternativo, integral e solidário, baseado em uma ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e humana, que se fundamenta no evangelho da justiça, da solidariedade e do destino universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e individualista, que não submete os poderes econômicos e tecnológicos a critérios éticos” (Aparecida, 474 c). Pedro de Oliveira mostra a necessidade da geração de um modo de produção socioecológico, que respeite as pessoas e a natureza.9 3.3 Manutenção da ligação fé-vida e do método ver, julgar e agir

Para se levar adiante o Projeto Aparecida, é preciso manter a ligação da fé com a vida, presente nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e na Teologia da Libertação, pois aí se encontra a grande novidade da Igreja na América Latina e Caribe: “A inserção nas lutas populares pela libertação tem sido – e é – o início de um novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé para muitos 9

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cristãos da América Latina. Provenham eles das próprias camadas populares ou de outros setores sociais, em ambos os casos observa-se – embora com rupturas e por caminhos diferentes – uma consciente e clara identificação com os interesses e combates dos oprimidos do continente. Esse é o fato maior da comunidade cristã da América Latina nos últimos anos. Esse fato tem sido e continua sendo a matriz do esforço de esclarecimento teológico que levou à teologia da libertação”.10 A ligação fé-vida (fé-economia, fé-política, fé-sabedoria) configura uma nova compreensão da missionaridade da/s Igreja/s em sua ligação com o mundo, assumindo o espírito presente na Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, 1). A partir da entrada dos cristãos e cristãs na luta política de libertação dos pobres e excluídos, poderemos compreender as novas questões que são colocadas à fé. Por isso, esta ligação deve ser

Cf. RIBEIRO DE OLIVEIRA, P. A. Consciência planetária, ecossocialismo e cristianismo, em SOTER (Org.), Sustentabilidade da vida e espiritualidade. São Paulo: Soter-Paulinas, 2008, p. 63-87. GUTIÉRREZ, G. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 245.

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mantida, se a Igreja quiser, de fato, contribuir para a mudança da sociedade. a) Entrada nos movimentos populares de reivindicação com as mais diferentes lutas que se fizeram e se fazem pelos direitos mínimos: água, luz, esgoto, posto de saúde, escola, estradas, telefone, preço dos produtos... b) Entrada e participação nos movimentos específicos: } Luta pela Terra: ocupações com a participação ativa das CEBs. } Luta das mulheres. } Luta dos povos indígenas. } Luta dos negros. } Luta ecológica. c) Participação nos Conselhos de Cidadania. d) Entrada no movimento sindical: a grande questão da luta ideológica e a primazia do trabalho sobre o capital. e) Entrada nos partidos políticos com proposta popular. f) As Pastorais sociais (Saúde, Criança, Mulher Marginalizada, Negros, da Terra, Operária, dos Pescadores, carcerária) como fruto do engaja20

mento dos cristãos/ãs concretizando a opção da Igreja pelos pobres: caminho de cidadania. As pastorais sociais levam para dentro da Igreja a importância do engajamento. Procuram traduzir a importância de uma Igreja comprometida com as lutas sociais. Iniciam o processo de ser cidadão/ã a partir das comunidades. Este processo, explicitado por Gustavo Gutiérrez, provoca uma transformação na prática dos cristãos e cristãs, na interpretação da Bíblia e transmissão da fé, como também na sua celebração. a) Um novo modo de viver a fé: A Igreja assume os novos desafios do mundo de hoje. Os cristãos e cristãs, movidos pelo Espírito do Ressuscitado (a cristologia é vista como o seguimento de Jesus no Espírito, mostrando, portanto a ligação da missão do Filho e a missão do Espírito), abrem-se para os problemas do mundo. b) Um novo modo de transmitir a fé: Uma nova leitura da Bíblia a partir do pobre-excluído (classe), a partir da mulher (gênero), a partir das diferentes culturas (etnia), a partir dos idosos, jovens, crianças (geração), a partir da luta pela defesa da natureza (ecologia). Encontramos


também no interior de todo esse processo uma nova forma de fazer teologia (Teologia da Libertação), uma nova catequese, martirial, fazendo a ligação fé-vida. c) Um novo modo de celebrar a fé: A partir da ligação fé-vida, a liturgia expressa-se a partir das diferentes culturas (a exigência da inculturação, presente na Evangelii Nuntiandi, Puebla e Santo Domingo e retomada pela CNBB em suas diretrizes gerais da ação evangelizadora) e celebra as lutas em defesa da vida, com grande respeito pela alteridade do outro/a. Ao lado da manutenção da ligação fé-vida, é de fundamental importância a retomada do método ver-julgar-agir, que nos ajuda a analisar a realidade e seus desafios, e com a luz da Palavra de Deus e dos valores da tradição da Igreja descobrir onde Deus nos está falando hoje e, ajudados com a força do Espírito e com a união dos irmãos e irmãs encontrar ações que nos ajudem a concretizar as mediações necessárias para que todos os povos tenham vida e vida em abundância como é o desejo expresso de Jesus (Jo 10,10). É nesta perspectiva que o Documento de Aparecida recoloca a importância deste método: “Em continuidade com as Conferências Gerais

anteriores do Episcopado Latino-americano, este documento faz uso do método “ver, julgar e agir”. [...] Muitas vozes, vindas de todo o Continente, ofereceram contribuições e sugestões nesse sentido, afirmando que este método tem colaborado para que vivamos mais intensamente nossa vocação e missão na Igreja: tem enriquecido nosso trabalho teológico e pastoral e, em geral, tem-nos motivado a assumir nossas responsabilidades diante das situações concretas de nosso continente. Este método nos permite articular, de modo sistemático, a perspectiva cristã de ver a realidade; a assunção de critérios que provêm da fé e da razão para seu discernimento e valorização com sentido crítico; e, em conseqüência, a projeção do agir como discípulos missionários de Jesus Cristo” (Aparecida, 19 –Texto de 31-05-07).

4 A modo de conclusão Toda a Bíblia é uma grande promessa de salvação. A mensagem bíblica começa com um grande anseio de libertação: uma terra onde corre leite e mel. É a célula inicial da Bíblia (cf. Êx 3,7-10). A profecia aponta para a busca da justiça e do direito dos pobres. A literatura sapi21


encial busca manter a vida do povo sob o jugo e opressão das grandes potências. A vida de Jesus de Nazaré foi inteiramente voltada para a libertação dos pobres e excluídos de seu tempo (cf. Mt 9,35-36; Lc 4,16-21; Mt 11,2-6; Lc 7,18-23) e pode ser resumida na expressão que o evangelista João colocou na boca de Jesus, o Bom Pastor: “Eu vim para que todos e todas tenham vida e tenham vida em abundância” (Jo 10,10). O Apocalipse proclama a vinda do novo mundo, onde não haverá mais lágrima, morte, nem grito de dor (Ap 21,1-7). A V Conferência de Aparecida retoma esta memória no seu tema e tem a vida como o grande objetivo a ser defendido. Esta defesa da vida, em todas as suas dimen-

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sões, é ser fruto do seguimento de Jesus de Nazaré, proclamado o Cristo, o Senhor por aqueles e aquelas que são suas discípulas e discípulos, missionárias e missionários. A opção pelos pobres e excluídos de nosso continente Latino-Americano e Caribenho é a marca de nossa Igreja Latino-Americana e Caribenha e tem o selo dos/as nossos/as mártires que, por amor aos irmãos e irmãs, deram seu sangue, como Jesus o fez, em favor da vida de todos. É neste caminho que somos convidados/as a trilhar, tendo como horizonte o desejo expresso por Jesus de Nazaré: que todos e todas tenham vida em abundância. Que Deus nos ajude a completar esta caminhada nos caminhos da América Latina e Caribe!


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Hermenêutica da tradição cristã no limiar do século XXI – Johan Konings, SJ Teologia e Espiritualidade. Uma leitura Teológico-Espiritual a partir da Realidade do Movimento Ecológico e Feminista – Maria Clara Bingemer A Teologia e a Origem da Universidade – Martin N. Dreher No Quarentenário da Lumen Gentium – Frei Boaventura Kloppenburg, O. F. M. Conceito e Missão da Teologia em Karl Rahner – Érico João Hammes Teologia e Diálogo Inter-Religioso – Cleusa Maria Andreatta Transformações recentes e prospectivas de futuro para a ética teológica – José Roque Junges, SJ Teologia e literatura: profetismo secular em “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos – Carlos Ribeiro Caldas Filho Diálogo inter-religioso: Dos “cristãos anônimos” às teologias das religiões – Rudolf Eduard von Sinner O Deus de todos os nomes e o diálogo inter-religioso – Michael Amaladoss, SJ A teologia em situação de pós-modernidade – Geraldo Luiz De Mori, SJ Teologia e Comunicação: reflexões sobre o tema – Pedro Gilberto Gomes, SJ Teologia e Ciências Sociais – Orivaldo Pimentel Lopes Júnior Teologia e Bioética – Santiago Roldán García Fundamentação Teológica dos Direitos Humanos – David Eduardo Lara Corredor Contextualização do Concílio Vaticano II e seu desenvolvimento – João Batista Libânio, SJ Por uma Nova Razão Teológica. A Teologia na Pós-Modernidade – Paulo Sérgio Lopes Gonçalves Do ter missões ao ser missionário – Contexto e texto do Decreto Ad Gentes revisitado 40 anos depois do Vaticano II – Paulo Suess A teologia na universidade do século XXI segundo Wolfhart Pannenberg – 1ª parte – Manfred Zeuch A teologia na universidade do século XXI segundo Wolfhart Pannenberg – 2ª parte – Manfred Zeuch Bento XVI e Hans Küng. Contexto e perspectivas do encontro em Castel Gandolfo – Karl-Josef Kuschel Terra habitável: um desafio para a teologia e a espiritualidade cristãs – Jacques Arnould Da possibilidade de morte da Terra à afirmação da vida. A teologia ecológica de Jürgen Moltmann – Paulo Sérgio Lopes Gonçalves

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N° 24 – Nº 25 – N. 26 – N. 27 – N. 28 – N. 29 – N. 30 – N. 31 – N. 32 – N. 33 – N. 34 – N. 35 – N. 36 – N. 37 – N. 38 – N. 39 –

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O estudo teológico da religião: Uma aproximação hermenêutica – Walter Ferreira Salles A historicidade da revelação e a sacramentalidade do mundo – o legado do Vaticano II – Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM Um olhar Teopoético: Teologia e cinema em O Sacrifício, de Andrei Tarkovski – Joe Marçal Gonçalves dos Santos Música e Teologia em Johann Sebastian Bach – Christoph Theobald Fundamentação atual dos direitos humanos entre judeus, cristãos e muçulmanos: análises comparativas entre as religiões e problemas – Karl-Josef Kuschel Na fragilidade de Deus a esperança das vítimas. Um estudo da cristologia de Jon Sobrino – Ana María Formoso Espiritualidade e respeito à diversidade – Juan José Tamayo-Acosta A moral após o individualismo: a anarquia dos valores – Paul Valadier Ética, alteridade e transcendência – Nilo Ribeiro Junior Religiões mundiais e Ethos Mundial – Hans Küng O Deus vivo nas vozes das mulheres – Elisabeth A. Johnson Posição pós-metafísica & inteligência da fé: apontamentos para uma outra estética teológica – Vitor Hugo Mendes Conferência Episcopal de Medellín: 40 anos depois – Joseph Comblin Nas pegadas de Medellín: as opções de Puebla – João Batista Libânio O cristianismo mundial e a missão cristã são compatíveis?: insights ou percepções das Igrejas asiáticas – Peter C. Phan Caminhar descalço sobre pedras: uma releitura da Conferência de Santo Domingo – Paulo Suess


Benedito Ferraro possui graduação em Filosofia pelo Seminário Central do Ipiranga (1967), licenciatura em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1970), bacharelado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1969), licenciatura em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1971) e doutorado em Teologia pela University Fribourg (1975). Atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e da Diocese Campinas. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática. É assessor da Equipe Ampliada Nacional das CEBs e assessor da Pastoral Operária de Campinas-SP.

Publicações mais recentes do autor: FERRARO, B. Encarnação: Questão de gênero?. São Paulo: Paulus, 2004. FERRARO, B. Cristologia. Petrópolis: Vozes, 2004. v. 1. FERRARO, B. (Org.); TAMEZ, E. (Org.); LIBANIO, J. B. (Org.); COMBLIN, J. (Org.); CAVALCANTI, T. (Org.). CEBs: Espiritualidade libertadora. 2. ed. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2004. v. 1. FERRARO, B.; BEOZZO, J. O.; BOFF, L.; BARROS, M.; OLIVEIRA, P. R.; ANDRADE, W. C. O código genético das CEBs. São Leopoldo: Oikos, 2005. v. 1.


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