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GETÚLIO E A GIRA: A UMBANDA EM TEMPOS DE ESTADO NOVO Artur Cesar Isaia

Introdução Os anos em que Vargas permaneceu no poder foram coincidentes com o aumento da visibilidade da Umbanda e com sua ascensão como componente do campo religioso brasileiro. O crescimento da Umbanda e das religiões mediúnicas acontecia simultaneamente com o aprofundamento de fenômenos bem visíveis no terreno social, como o inchamento das camadas médias urbanas. Isso levou alguns analistas a vincularem esses processos diretamente ao desenvolvimento da Umbanda. Autores como Diana Brown e Renato Ortiz passaram a analisar a Umbanda brasileira, tendo como chave interpretativa seu viés de classe média e sua feição tipicamente urbana, em uma sociedade que ganhava em complexidade. Particularmente, Renato Ortiz e Maria Isaura Pereira de Queiroz, enfocam o “crescendo” umbandista, fazendo menção ao fenômeno de legitimidade racional weberiana, capaz de emprestar às exegeses dos intelectuais umbandistas da época um teor claramente distante das raízes africanas, aparecendo uma religião essencialmente branca e próxima dos padrões tolerados socialmente. Neste trabalho, vamos perseguir a Umbanda como fenômeno religioso não redutível a explicações macroestruturais e, muito menos, a uma visão globalizante, capaz de abarcar todo o universo simbólico umbandista e explicar, de maneira perfeitamente acabada e racional, o seu discurso. Conforme já nos referimos em outros trabalhos, preferimos enfocar o surgimento e as transformações históricas inerentes à Umbanda, remetendo-as para a infinita capacidade de ressemantização própria da atividade discursiva. Como objeto discursivo, a Umbanda passa por todos os jogos inerentes à construção da sociedade, interagindo com situações, conjunturas, interesses e com toda uma bagagem simbólica, com a “comunhão de sentidos” a que se refere Bazcko1. 1

BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Mémoire et spoirs colleectifs. Pa-

ris: Payot, 1984.


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Adquire especial interesse a construção da figura de Getúlio Vargas na memória de umbandistas e africanistas. É bastante conhecida do grande público a repressão a que a Umbanda e as Religiões Africanas estiveram sujeitas à época de Vargas. Essa repressão, efetivamente existiu, e as fontes comprovam-na. Contudo, ela é apenas um dado da questão. Há outro que precisamos tornar claro para não perdermos de vista o papel desempenhado pela Umbanda diante da construção da ordem pós-1930. Como explicar a simultaneidade da repressão e da tolerância à Umbanda em tempos de Vargas? Como explicar que, ao mesmo tempo que casas de Umbanda e de Religiões Africanas são invadidas, o Estado Novo tolere a realização do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda, celebrado em 1941, com seus Anais sendo impressos e circulando livremente, apesar da extrema vigilância dos órgãos repressivos? Essa é uma primeira questão que levantamos e que nos levou a consultar a documentação do Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais. Além disso, como a Umbanda responde às expectativas nela depositadas pelos órgãos de poder? Perseguindo essa questão, trabalhamos com evidências empíricas referentes à consolidação da Umbanda nas décadas de 1930 e 1940, particularmente com as teses do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Perseguindo as tensões entre a repressão e a tolerância, trabalhamos com alguns registros da memória de próceres umbandistas, contemporâneos à ditadura estadonovista, tendo em conta os jogos da memória, capazes de formatar uma imagem do ditador para muito além da repressão. A Umbanda e a Ditadura Varguista Em 1938, um documento do Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais do Estado Novo fazia um levantamento das principais forças religiosas existentes no País, procurando detectar as possibilidades reais ou virtuais de oposição ao regime. Como é de se esperar, em documento dessa natureza, os perigos virtuais ou fantasmagóricos não estavam ausentes, e o documento detectava opositores ou possibilidades de contestação a Vargas no seio da própria hierarquia católica, um dos pilares da sustentação do regime. Segundo o documento, a Igreja Católica apresentava todas as características históricas de uma instituição que, mais dia menos dia, entraria em confronto com os rumos tomados pela política varguista. Ao lado de uma possível aliança entre o integralismo e as bases católicas, detectadas pelo documento, ele apontava para a questão principal que, na sua ótica, poderia ser a causa da ruptura da hierarquia católica com o regime: a perda do poder da Igreja diante das massas urbanas, produto da política social em curso. Segundo o documento, a ascendência moral da hierarquia sobre o povo tenderia a diminuir


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em função da legislação social de Vargas. A hierarquia católica vendo-se alijada do controle sobre as massas urbanas, vendo-as passarem a gravitar em torno do Estado, tenderia a uma contestação ao status quo. Essa contestação católica era identificada no documento, como próxima do ideário integralista: Combatendo o integralismo, o Estado Novo criou, no seio do clero grandes adversários. O serviço secreto da Polícia tem constatado que, até mesmo presentemente, muitos padres continuam a fomentar a conspiração armada contra o Governo e o Regime. Essa disposição, – de uma minoria do clero católico, é verdade, – tende, entretanto, a alastrar-se. A Igreja, com o Estado moderno, perde, dia a dia, a sua influência direta sobre o povo. Em primeiro lugar, pela maior difusão do ensino leigo. Em segundo, porque o Estado vem chamando a si, e cada vez mais, a realização de obras de amparo social e, portanto, ele, e não a Igreja, torna-se o credor da gratidão dos menos favorecidos da fortuna. A Igreja Católica, ferida no seu prestígio mundial, pelos fatos apontados, vendo, entre nós, fugir o povo de sua tutela, por um um princípio rudimentar de defesa própria, para sua conservação, mais hoje, mais amanhã, procurará reagir2.

O relatório aponta claramente que o Estado, ao chamar a si a condução da questão social, já entrara em confronto direto com a Igreja, portanto, o que o documento prevê é apenas a agudização deste conflito. Segundo o relatório, as medidas principais que o Estado deveria perseguir para neutralizar a ação da Igreja centrar-se-iam no controle direto sobre as suas atividades financeiras e no aprofundamento das concessões de natureza social ao trabalhador. O documento prevê que, seguindo o Estado Novo essas diretrizes, uma possível campanha da Igreja contra o Estado não encontraria apoio popular, pois: ao povo não interessa saber se é governado por um rei, um presidente, um ditador ou um chefe de gabinete. Quer é ter o direito de viver com maior conforto possível, longe da miséria, pois onde a fome chega, a própria liberdade deixa de interessar ao indivíduo3.

Logicamente, a opinião do Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais não representava a unanimidade do Estado Novo. O Ministério da Educação e Saúde, por exemplo, capitaneado por Gustavo Capanema, tinha opinião totalmente contrária a esse documento, posicionando-se pela total sintonia entre a Igreja Católica e a ditadura estadonovista.4

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As Forças Religiosas no Brasil do ponto de vista de suas influências políticas e econômicas. Arquivo Filinto Muller (AFM). Ref. /Relatório CHP-SIPS, I, CPDOC/FGV. Idem, Ibidem. Algumas Informações sobre a nossa atualidade católica. Arquivo Gustavo Capanema (AGC). Ref. GC.39.05.25. CPDOC/FGV.


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O que nos interessa, sobretudo no Relatório do SIPS, são os indícios de uma simpatia muito grande de um órgão chave da repressão estadonovista pelas atividades espíritas no País. Essa simpatia vinha, antes de mais nada, da constatação de que o Espiritismo, devido à sua discreta atuação no terreno social, jamais confrontaria com o Estado em relação à condução da questão social, nem na direção moral da classe trabalhadora. Ao contrário do catolicismo, cuja presença na tessitura social era considerável, o Espiritismo contentar-se-ia, segundo o Relatório, com uma atuação assistencialista, caritativa, muito longe de pleitear ascendência sobre a massa operária. Politicamente, o Espiritismo era encarado como um aliado bastante confiável do Estado Novo, reconhecendo o documento que representava “depois do catolicismo a maior força religiosa existente no país”. Ao contrário do Catolicismo, julgado demasiadamente ligado a interesses extranacionais, o Espiritismo é descrito como dotado de uma “organização exclusivamente nacional, vivendo dos meios financeiros fornecidos pelos seus adeptos dentro do Brasil, sem qualquer ligação financeira internacional”. O documento salienta a seriedade doutrinária e a representatividade social de seus dirigentes, apresentando dados biográficos de expoentes da história do Espiritismo, como os médicos Bezerra de Menezes no Rio de Janeiro e Sebastião de Leão em Porto Alegre, descritos como membros humanitários de uma elite intelectual que abraçava a doutrina. O documento chega a dar voz ao líder espírita Inácio Bitencourt, procurado pelo SIPS, na redação do jornal semanário que dirigia, o Aurora, localizado na Rua Voluntários da Pátria, no Rio de Janeiro. O documento descreve ainda o que denomina de “medicina espírita”, evidenciando que esta, juntamente com a assistência caritativa desenvolvida com a população carente, longe estava de representar qualquer perigo à ditadura estadonovista: “Do ponto de vista político, o Espiritismo, não tendo homogeneidade, coesão, disciplina espiritual rígida e muito menos comando único, não apresenta, no momento, qualquer perigo para o Estado”.5 É claro que o Relatório do SIPS refere-se ao Espiritismo praticado pela Federação Espírita Brasileira. O mesmo Espiritismo “entre os sinceros”, que João do Rio opunha à invocação aos mortos entre os pobres, os negros, os incultos, reunidos nas macumbas e demais expressões da religiosidade afro-brasileira.6 É importante que se compreenda o jogo interdiscursivo que envolveu o substantivo Espiritismo na cultura brasileira, a fim de chegarmos à importância do reconhecimento governamental, como

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As Forças Religiosas no Brasil, op.cit. Ver a esse respeito. ISAIA, Artur Cesar. Allan Kardec e Joao do Rio: os jogos do discurso. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz; PATRIOTA, Rosângela. Hisitórias & Historiografia. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2003.


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o revelado por um importante órgão da ditadura varguista e a relação deste fenômeno com a afirmação da Umbanda em pleno Estado Novo. Se o substantivo Espiritismo tinha para seus adeptos, filiados à tradição francesa, kardecista, um sentido próximo à ciência, ao experimentalismo, à cultura livresca, para seus detratores, o sentido era justamente o de equiparação com o que de pior havia na sociedade brasileira. Em um momento cultural, ainda fortemente marcado pela raça como chave interpretativa da realidade brasileira, o Espiritismo era historicamente equiparado à incultura, à negritude. Sintomática dessa postura são os versos satíricos, publicados pela Bahia Ilustrada, no final do século XIX e transcritos por Ubiratan Machado, no qual o Espiritismo é apresentado como “candomblé de brancos”.7 Assim, o reconhecimento de um órgão estratégico do Estado Novo ao Espiritismo como aliado e como força política a ser considerada, integra todo um jogo de formação identitária dos primeiros umbandistas, no sentido de aproximar-se o mais possível da obra de codificação kardecista. É nesse sentido que compreendemos a presença (desconcertante e não-tolerada para os círculos kardecistas da época) do adjetivo espírita junto aos nomes de numerosos terreiros de Umbanda, de livros doutrinários umbandistas e no título da primeira grande reunião da nova religião: Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. A expressão “Espiritismo de Umbanda” encontra acolhida mesmo no saber sociológico, notabilizada por Roger Bastide.8 Pensamos que a face branca e conservadora da Umbanda, defendida por alguns analistas9, longe de impor-se como sua constituinte identitária, apenas pode ser pensada, remetendo-a a uma conjuntura específica. Desse modo, os anos pós-1930, que representaram a afirmação da Umbanda na sociedade brasileira, assistiriam a um explícito esforço nesse sentido, por parte dos setores intelectualizados e burocratizados da nova religião, o que não nos autoriza, nem de longe, a encará-la apenas sob

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MACHADO, Ubiratan. Os Intelectuais e o Espiritismo. Niterói: Lachâtre, 1996.

p.110-1. Roger Bastide estudou o que chamava de “Espiritismo de Umbanda”, explicando-o com base na dinâmica das transformações sociais operadas no Brasil, na primeira metade do século XX. A categoria “classe social” aparece como instrumental básico de análise. Assim, o “Espiritismo de Umbanda” seria o produto da afirmação do proletariado (de origem rural) e, portanto, da integração do negro no espaço urbano, onde não encontra receptividade, nem no Espiritismo de matriz francesa, muito menos no catolicismo. Ao contrário da explicação de Cândido Procópio Ferreira de Camargo, que advogava um “continuum” entre Espiritismo e Religiões Africanas, Bastide defendia a tese da existência de dois sistemas opostos, sujeitos a combinações de uma lógica inerente aos interesses de classe. Ver a esse respeito. BASTIDE, Roger. Le Spiritisme au Brésil. Archives de Sociologie des Religions, (24): 03-16, 1967. Entre esses trabalhos citamos os de QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Évolution et création religieuses: les cultes afro-brésiliens. Diogène.(115): 03-24, 1981.


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este prisma. Como nos referimos em outro trabalho, esta tentativa, mesmo nessa conjuntura, longe esteve de ter sucesso, na direção de uma padronização doutrinária e ritual: Preferimos dizer que a exegese dos intelectuais da Umbanda (no seu afã de ter a palavra definitiva do que seria a Umbanda), tentou impor a representação de uma religião letrada, nacional e perfeitamente harmonizada com as regras simbólicas orientadoras do agir coletivo, imposição nem de longe reproduzida canonicamente na cotidianidade umbandista10.

Fonte particularmente importante para o estudo do esforço umbandista em marchar na direção das expectativas sociais, buscando compor-se com um governo que passava a tolerá-la, são as teses do Primeiro Congresso do Espiritismo de Umbanda. Há um inequívoco esforço nas teses apresentadas, em aproximar a nova religião do âmbito governamental e assim separá-la do chamado “baixo Espiritismo”11, Macumba e demais religiões de matriz africana, suscetíveis sempre à ação repressiva dos órgãos policiais. Dessa forma, há o total endosso ao discurso governamental. O advento do Estado Novo é encarado sob o prisma da sua superioridade institucional, ante o passado liberal-oligárquico, incapaz de assegurar o clima propício ao desenvolvimento e à unidade nacional. Assim, “a experiência de 7 anos de regime ‘pós-revolução’, levou o Chefe do Governo a revogar a Constituição de 1934 e promulgar novo estatuto constitucional, mais consentâneo com a realidade nacional”.12 Interessante para a elucidação da questão referente, por um lado, à valorização do Espiritismo pelo Estado Novo e, por outro, à tentativa dos intelectuais umbandistas em aproximar a Umbanda de ambos, são as palavras do Chefe de Polícia, Major Filinto Muller, reproduzidas com destaque nos Anais do Congresso. Trata-se de despacho do Chefe de Polícia, datado de 1941, no qual Filinto Muller, livrava um determinado Centro Espírita de uma possível repressão policial: O maior interessado em salvaguardar a possibilidade das sessões espíritas é o requerente, a quem certamente teriam ocorrido as objeções apresentadas pelo Sr. Comissário Deocleciano Martins de Oliveira Filho... Entretanto, não é o 10 ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo: a obra dos intelectuais de Umbanda no Brasil da primeira metade do século XX. Anos 90. Revista do Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (11): 114, 1999. 11 Giumbelli, fazendo a genealogia da expressão, mostrou seu trânsito, da prática policial ao saber jurídico. GIUBELLI, Edson. O cuidado dos mortos. Uma história da condenação e legitimação do Espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. 12 FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA. Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1941, p. 73.


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responsável pela realização das sessões que as considera prejudicadas pelo ambiente – este ponto de vista é o da autoridade policial a quem incumbe a vigilância e assegurar a ordem pública, permitindo entretanto, a absoluta liberdade de todos os atos que não afetem a segurança coletiva ou a moral pública. Em nenhum destes casos incide o Centro requerente, que também não contaria nenhuma das disposições legais ou regulamentares ou as instruções do serviço baixadas por esta chefia...13

Os Anais do Congresso reconheciam a legitimidade do Estado Novo, da Constituição de 1937 e do novo Código Penal. Segundo essa fonte, os dois textos legais assegurariam a total liberdade à Umbanda. A nova religião, não se enquadrando nos casos passíveis de sanção penal e previstos pela Constituição, poderia reclamar contra qualquer desmando e arbitrariedade policial Se o culto se limita simplesmente à celebração de cerimônias religiosas, solenidades e ritos, por muito extravagantes que sejam e desde que sejam observadas as disposições do direito comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes, recebe a proteção constitucional do artigo 122, parágrafo 4º, regulada a repressão contra os que desrespeitarem pelo artigo 208 do Código Penal a vigorar a partir de 1º de janeiro de 194214.

De especial importância para o nosso estudo é a tese, defendida nesse Congresso por Antônio Barbosa. O autor, que era médico clínico, defende a necessidade de a ciência médica caminhar ao lado da doutrina espírita, reinterpretada pela Umbanda, a fim de tratar os doentes mentais. É interessante que Antônio Barbosa enfoca dois fenômenos, lidos pela ciência médica da época em aproximação com o comportamento dos pobres na esfera pública: a loucura e o alcoolismo. Tanto um fenômeno quanto o outro já haviam sido trabalhados pela ciência médica do século XIX como dotados de um parentesco explícito com a pobreza e com a classe trabalhadora. Dessa forma, são importantes os estudos de caso de Charcot e principalmente de Janet sobre os chamados automates ambulatoires, que vagavam pelas grandes cidades francesas, sem rumo, sem trabalho, entregues a uma existência improdutiva15. Sendo assim, é muito sintomática a presença da referida tese, ao contextualizarmos o momento histórico no qual se insere: a busca de legitimidade da Umbanda diante de um regime, que tentava reverter uma visão somatizada da sociedade, procurando a formação de um opera-

13 Idem, p. 83 14 Idem, p.85-6. 15 Ver ISAIA, Artur César, op. cit.


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riado são e apto para o trabalho.16 A tese de Barbosa coabitava um interdiscurso capaz de valorizar o “patrimônio hereditário” do brasileiro, por meio de medidas de natureza eugênica ou de reformulação mesológica. Barbosa assumia a hereditariedade como um dos fatores explicativos principais para o entendimento da doença mental, daí surgindo a necessária intervenção médica: Múltiplos são os fatores que concorrem para as doenças mentais, tornando-se difícil fazer uma observação completa num indivíduo doente de suas faculdades, de acordo com os ensinamentos da semiologia, isto é, desde a sua infância, histórico de família, etc., até se chegar ao ponto final que é a doença que motivou a sua internação, embora sejam feitas todas as reações sorológicas, e que estas sejam positivas e que se trate de indivíduos sifilíticos, here-sifilíticos (...) Um dos fatores acima citados é a hereditariedade. Vamos estudar a hereditariedade, primeiro, porque é o único fator a invocar, à guisa de um certo número de doenças mentais; segundo porque em certas condições imprime não só caracteres especiais ao predisposto, mas uma particular feição às formas da loucura17.

Referindo-se aos tratados pela ciência médica da época como degenerados, Barbosa diz serem eles, “hereditários de grande tara”, reconhecidos na psiquiatria por caracteres físicos e morais, de histórico familiar (micro ou macrocefalia, estroduísmo, megalomania). Entre os vícios mais vulgares nesses indivíduos, Barbosa detectava o alcoolismo, os jogos de azar e a intoxicação por morfina ou cocaína. Segundo a tese defendida por Barbosa, a Umbanda poderia prestar um socorro a esses indivíduos, ajustando-os à sociedade e abrindo para eles “uma nova era de luz, de paz e de tranqüilidade”. A tese de Barbosa unia hereditariedade, como base explicativa para a doença mental, com a teoria espírita da reencarnação. Ambos os fatores, voltando-se para o passado do paciente poderiam explicar suas mazelas do presente, surgindo daí o consórcio entre médiuns umbandistas e médicos: Ora, estudando-se à luz do espiritismo o que acima foi citado, talvez possamos desvendar este véu misterioso, oculto atrás da ciência oficial, e chegarmos a conclusões mais lógicas do ponto de vista espiritual, principalmente no que diz respeito à Linha Branca de Umbanda, em que os indivíduos, com tendências diversas, quando açoitados pela dor procuram as Tendas, outros para lá são levados por circunstâncias especiais, e é ali, que eles deixam, nos terreiros, as suas misérias, pelos efeitos que produzem os banhos fluídi16 Ver, LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. São Paulo: Papirus, 1986. 17 BARBOSA, Antônio. A Medicina em fase do Espiritismo. In: FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA, op. cit, p. 165-7.


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cos, verdadeiros banhos de purificação, segundo o grande chefe Ogum Timbiri18.

Um outro assunto de capital importância para a compreensão das estratégias de convencimento praticadas pelos intelectuais da Umbanda prende-se às suas origens, em que podemos ler uma construção narrativa capaz de conciliar a ancestralidade africana, com uma bagagem discursiva extremamente refratária à valorização do negro. Se não era possível apagar a ancestralidade africana na Umbanda, os intelectuais reunidos no Primeiro Congresso remetiam, ou para o Egito, ou, mais engenhosamente, para o passado lemuriano, ou seja, para uma época em que o continente africano estaria unido à Ásia, a gênese dos conhecimentos que fundamentavam a Umbanda. Nos dois casos, defendia-se a idéia de que, se a África seria o berço da Umbanda, contudo, ela não teria uma origem negra. Na primeira tese, diretamente se remete à origem da nova religião ao antigo Egito: A Umbanda veio da África, não há dúvida, mas da África Oriental, ou seja, do Egito, da terra milenar dos faraós, do Vale dos Reis e das Cidades sepultadas na areia do deserto ou na lama do Nilo. O barbarismo afro de que se mostram impregnados os ecos chegados até nós, dessa grande linha iniciática do passado, deve-se às deturpações a que se acham naturalmente sujeitas as tradições verbais, melhormente, quando, além da distância a vencer no tempo e no espaço, têm elas de atravessar meios e idades em absoluto inadapatados à grandeza e à luz refulgente dos seus ensinamentos19.

Segundo o autor da tese, com a decadência do Egito, teria havido a dispersão dos conhecimentos guardados pela “casta sacerdotal” egípcia. Esses conhecimentos teriam ido parar na Etiópia e demais regiões negras da África, sendo, então, deturpados e degenerados. Vale a pena transcrever as palavras do autor, suficientes para compreendermos a composição dos primeiros intelectuais da Umbanda com um interdiscurso extremamente refratário à valorização da cultura negra:

18 Ogum Timbiri, trata-se de uma “entidade”, que passou a ser “ recebida” por Zélio de Moraes e ligada, no panteão da Umbanda, aos guias de proveniência oriental. (Ver a entrevista feita com as filhas de Zélio de Moraes. LACERDA, Zélia de Moraes. Entrevista concedida a Artur Cesar Isaia. Niterói, 11 out. 1997). Zélio é por muitos considerado o iniciador da Umbanda. Data de 1908 a primeira “manifestação” de uma “entidade”, o Caboclo das Sete Encruzilhadas, que teria dado a Zélio, a mensagem fundadora da nova religião. A partir daí, esse relato constitui o que Diana Brown denomina de “mito de origem” da Umbanda (Ver BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. In: BROWN, Diana et.al. Umbanda e Política. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985). BARBOSA, Antônio, op. cit., p. 168. 19 OLIVEIRA, Baptista de. Umbanda. Suas origens – Sua natureza e sua forma. In: FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA, op. cit., p. 114.


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Artur Cesar Isaia Imagina-se o que poderia resultar do contato da alta ciência e da religião dos egípcios... tão expressivas na sua forma representativa dos sentimentos de um povo grandemente civilizado, com os povos semibárbaros, senão bárbaros, do ocidente africano, das regiões incultas de onde, por infelicidade nossa, se processou o tráfico de escravos para o Brasil, de uma escória que nos trouxe com suas mazelas, com seus costumes grosseiros e com seus defeitos étnicos e psicológicos, os restos desses oropéis [sic] abastardados já por seus antepassados e de uma significação que ela mesma não alcançava mais20.

Já a tese de Diamantino Fernandes, construía uma narrativa, na qual ficava, igualmente explícito o arranjo entre ancestralidade africana e gênese afastada da negritude. Para Fernandes, a origem dos conhecimentos umbandistas radicavam-se na Ásia, mais precisamente entre os hindus. Para explicar o percurso dos conhecimentos hindus até as tribos africanas, o autor fazia menção a uma possível ligação entre África e Ásia, no passado lemuriano: Sabendo-se que os antigos povos africanos tiveram sua época de dominação além-mar, tendo ocupado durante séculos, uma grande parte do Oceano Índico, onde uma lenda nos diz que existiu o continente perdido da Lemúria, fácil nos será concluir que a Umbanda foi por eles trazida do seu contato com os povos hindus, com os quais a aprenderam e praticaram durante séculos. Morta, porém, a antiga civilização africana, após o cataclismo que destruiu a Lemúria, empobrecida e desprestigiada a raça negra, – segundo algumas opiniões, devido à sua desmedida prepotência no passado, em que chegou a escravizar uma boa parte da raça branca – os vários cultos e pompas religiosas daqueles povos sofreram do embrutecimento da raça, vindo de degrau em degrau, até ao nível em que a Umbanda nos tornou conhecida21.

As teses apontam para um claro sentido prescritivo: a deturpação de conhecimentos externos ao universo cultural dos negros requeria a necessidade de um trabalho ordenador, moralizador, civilizador, capaz de afastar os conteúdos residuais do barbarismo negro e restituir a antiga pureza ritual e doutrinária. Essa tarefa era encabeçada pelos intelectuais da nova religião, que assim, tanto se credenciavam internamente ao campo mediúnico quanto externamente ante um Estado que passava a contar cada vez mais com a Umbanda como virtual força política.

20 Idem, p. 116. 21 FERNANDES, Diamantino Coelho. O Espiritismo de Umbanda na evolução dos povos. In: FEDERAÇÃO ESPÍRITA DE UMBANDA, op. cit., p. 46.


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Mesmo encarando-se com alguma reserva a tese da vinculação classista da Umbanda22 defendida por Brown, é inegável que o Estado Novo e a posterior democracia populista getulista tinham pontos de contato mais que evidentes com a representação nacional, sincrética e harmônica propalada pelos intelectuais da nova religião. cabe reproduzir as palavras do líder umbandista Jacy Rego Barros, em um curso sobre Umbanda realizado durante o Estado Novo, com autorização das autoridades governamentais, obviamente, e reproduzidas em livro, publicado em 1939. O autor constrói uma representação essencialmente sincrética da nacionalidade (com afinidades culturais, tanto com a leitura da realidade propalada pelo regime quanto com a visão corporativa coabitada por Estado e Igreja). Falando sobre a convivência entre brancos e negros no Brasil, o autor enfatiza o passado “harmônico” e “não-violento” que os unia, enaltecendo a figura da “mãe preta”: Tão grande se fazia por vezes a ligação afetiva da mãe preta com seus filhos brancos, que, em tal condição, ela se esquecia da posição servil da própria entidade para dispensar carinhos iguais aos garotos brancos e pretos... Tendo o seu catolicismo africanizado, mãe preta passa a seus filhinhos pretos e brancos, todas as suas crendices, dizendo dos esplendores das ramas de gameleira, quando conta as histórias do compadre rico e do compadre pobre, tementes a Jesus um e outro23.

Por sua vez, a Umbanda habilitava-se ante a ditadura estadonovista com um panteão e com uma doutrina essencialmente próxima a uma ética do trabalho e de uma representação da nacionalidade, muitíssimo caras ao regime. Assim, não apenas ressignificava a idéia kardecista do trabalho como fundamento da vida terrena e das encarnações futuras24, como também cultuava o negro e o índio em total submissão às regras simbólicas e práticas orientadoras do agir coletivo. Tratava-se de um negro escravizado, próximo à familiaridade dos senhores, conformado com seu “destino” e de um índio, que embora altivo e valente (constuído próximo à visão romântica), colocava seus valores a

22 BROWN defende a tese de que a Umbanda expressaria o reconhecimento pelas classes médias, da força crescente das massas na condução da vida sociopolítica do país. Daí o trabalho dos intelectuais, encarados como uma “virada” de alguns segmentos médios vinculados ao Espiritismo, à Umbanda, no afã de “modelar e controlar” os setores populares, praticantes das religiões afro-brasileiras. (Ver BROWN, Diane, op. cit., p. 13.) 23 BARROS, Jacy Rego. Senzala e macumba. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1939. p. 107. 24 Ver ISAIA, Artur Cesar. Espiritismo, conservadorismo e utopia. In: PINTO, Elisabete A.; ALMEIDA, Ivan A. de (org.). Religiões: tolerância e igualdade no espaço da diversidade. São Paulo: FALAPRETA, 2004.


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serviço da sociedade dominada pelos brancos, assumindo uma identidade, igualmente e eles próxima: um caboclo.25 O esforço legitimante das primeiras lideranças que tentaram organizar a religião e o endosso do Estado Novo a elas, vão se compor com os jogos da memória. Dessa forma, vamos encontrar, ao lado de evidências empíricas que comprovam a repressão às religiões afro-brasileiras no Brasil, um inequívoco processo de “apagamento”, no qual a figura de Getúlio Vargas passou a representar, antes a de um benemérito do que a de um repressor. Em alguns casos temos a inequívoca postura política pró-getulista por parte deles. É sintomática a atuação de Zélio de Moraes, figura a quem se liga o mito de origem da Umbanda26, como chefe local fiel a Vargas, detectando Brown várias lideranças de pioneiros da Umbanda como defensores da política varguista.27 É sintomático, igualmente, o fato de que a filha de Zélio de Moraes, Dona Zélia, tenha ocupado o cargo de chefe de gabinete de Ernani Amaral Peixoto, casado em 1939 com a filha de Getúlio, Alzira Sarmanho Vargas. O entusiasmo de Dona Zélia por Getúlio Vargas e Amaral Peixoto é evidente na entrevista que com ela realizamos em 1997. Essa entrevista é altamente reveladora da proximidade entre as primeiras lideranças umbandistas e o varguismo.28 Como na fala de Dona Zélia, a figura de Getúlio Vargas aparece completamente distante e sem responsabilidade pela repressão ao africanismo e à Umbanda no depoimento da Moab Caldas, baiano, chegado ao Rio Grande do Sul na década de 1930 e primeiro representante umbandista no parlamento estadual gaúcho, lá permanecendo por três legislaturas. Alinhando-se totalmente com Leonel Brizola e João Goulart, Moab Caldas teve seu mandato parlamentar cassado pelo regime militar. Referindo-se à ação repressiva contra a Umbanda e Religiões Africanas, ocorridas à época de Daltro Filho, Moab creditava-a apenas à pressão da hierarquia católica, chefiada pelo Arcebispo D. João Becker e à “maldade” do interventor, tudo se resolvendo no âmbito de seu arbítrio pessoal. Sua interventoria aparecia completamente à parte do poder centralizado que o nomeara: O general era um homem mau, o propósito dele era péssimo. Publicamente dizia que ia destruir a ferro e fogo o africanismo (...) manda que as tropas policiais destruíssem os 25 Ver ISAIA, Artur Cesar. Ordenar progredindo. A obra dos intelectuais de Umbanda no Braasil da primeira metade do século XX, op. cit. 26 Foi a 15 de novembro de 1908 que, em uma sessão espírita kardecista, no interior do Rio de Janeiro, “manifestou-se”, através de Zélio de Moraes, pela primeira vez, o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Essa “entidade” é considerada pelos umbandistas, como portadora da mensagem fundadora da nova religião. 27 Ver BROWN, op. cit., p. 13 28 LACERDA, Zélia de Moraes. Entrevista concedida a Artur Cesar Isaia. Rio de Janeiro, 11 out. 1997.


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terreiros. Era uma coisa horrorosa, uma ditadura a ferro e fogo (...) uma vergonha histórica pior do que ocorria na Bahia, onde eu nasci...29

Vale a pena transcrever a forma totalmente coadjuvante que Getúlio Vargas aparece em sua fala. Referindo-se à morte do interventor, creditada por muitos seguidores da Umbanda e Religiões Africanas aos “trabalhos” realizados pelos pais e mães de santo a Xapanã, Moab Caldas recorda: Os médiuns e filhos de santo eram levados para o xadrez algemados. Uma coisa horrorosa. E por causa disso há uma história, que verifiquei ser legítima. Era narrada na forma de lenda. O general Daltro Filho foi advertido que parasse com a perseguição aos cultos afro. Terminasse, porque tínhamos aqui muitos babalorixás oriundos da África, detentores de poderes mágicos, e eles iam trabalhar contra a vida dele, se prosseguisse na sua sanha mortífera. Ele duvidou publicamente disso e os tambores começaram a rufar e o certo, o rigorosamente certo é que ele foi acometido de um fogo selvagem e apodreceu em vida. Levado para o hospital, inclusive o presidente da república, Dr. Getúlio Vargas, veio visitá-lo e não pode entrar na sala, na enfermaria, tal a sua fedentina...30

Extremamente próximo a Vargas, foi o líder espírita riograndense Egydio Hervé, correligionário de Getúlio no Partido Republicano Rio-Grandense, no Partido Republicano Liberal e, posteriormente, no Partido Trabalhista Brasileiro31. Egydio Hervé teria sido, inclusive, sondado para um ministério, quando do retorno de Vargas como presidente eleito32. Seu filho, o médico Ivan Hervé, transitaria do Espiritismo Kardecista para a Umbanda. Sua adesão à Umbanda, devido à posição social que desfrutava, representou um momento importante no processo legitimador da nova religião, já nos anos 195033. Fora dos círculos governamentais, abundam os depoimentos de antigos umbandistas, nos quais Vargas aparece completamente distante da repressão, como, por exemplo, o de Dona Luci Calvoso de Souza34. Trata-se de uma antiga passadeira da Marinha, cujo pai foi um dos pioneiros da Umbanda no interior do Rio de Janeiro. Segundo este depoimento, sua família, devido à repressão policial, mudou-se para a capital, onde teria ido trabalhar para Gregório Fortunato. Dona Luci fala das persegui29 30 31 32

CALDAS, Moab. Entrevista concedida a Artur Cesar Isaia. Porto Alegre, 24 abr. 1995.

Idem. Biografia de Egýdio Hervé. Arquivo Particular Ivan Hervé. HERVÉ, Ivan. Entrevista concedida a Artur Cesar Isaia. Porto Alegre, 20 out. 2001. 33 Idem. 34 SOUZA, Luci Calvoso de. Entrevista concedida a Artur Cesar Isaia. Rio de Janeiro, 11 out. 1997.


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ções policiais à casa presidida por seu pai no interior, resguardando totalmente a figura de Getúlio. No terreiro de seu pai, havia a fotografia de Vargas, cultuado como um brasileiro providencial. Quando perguntada sobre repressão getulista à Umbanda e Religiões Africanas, Dona Luci respondeu que isso jamais aconteceu depois que Vargas ascendeu ao poder. Nascida em 1919, Dona Luci recorda da repressão policial à casa de seu pai, quando ela já trabalhava na Umbanda, aos 17 anos, portanto, às vésperas da ditadura estadonovista. Getúlio, contudo, aparece em sua fala como o líder político que garantiu a existência da Umbanda e Religiões Africanas, não permitindo jamais que as mesmas fossem molestadas. No Rio Grande do Sul, a primeira casa de Umbanda fundada em Porto Alegre, em 1936, a Congregação dos Franciscanos Espíritas de Umbanda, também enfrentaria a repressão policial durante a ditadura do Estado Novo. O interessante é que a incursão repressiva mais violenta foi localizada por nossas entrevistadas, Núbia Guedes e Gilda Centeno, nos anos de 1941 e 1942. Portanto, enquanto a ditadura estadonivista já tolerara a realização do primeiro grande congresso da Umbanda. A invasão da casa, confisco de objetos rituais, quebra de imagens e constrangimento físico aos freqüentadores, aparecem na memória das entrevistadas completamente à parte da conjuntura política nacional, totalmente desarticulados da ditadura e da ação política consentida por Getúlio Vargas. Em São Paulo, Lísias Nogueira Negrão evidencia, igualmente, o apagamento da repressão à Umbanda e Religiões Afro-Brasileiras na memória de seus entrevistados. Um deles, Alfredo da Costa Moura, fundador da Federação de Umbanda do Estado de São Paulo (FUESP), identifica em Pedro Aurélio Góes Monteiro, o principal representante dos interesses umbandistas e africanistas junto a Vargas. Getúlio, mais uma vez, aparece como um benemérito da Umbanda e, inclusive, como médium, devendo a sua eloqüência à “incorporação” do caboclo Serra Negra35. Procurando sedimentar as alianças que sustentavam politicamente o Estado Novo, a política varguista procura manter o tradicional apoio da hierarquia católica. Assim sendo, compreendemos a obliqüidade do relacionamento da ditadura com a Umbanda e Religiões Africanas. Ao mesmo tempo que a ditadura tolerava o esforço estruturante da Umbanda (atestado pela celebração de seu Primeiro Congresso e publicação de seus Anais), não hesitava em compactuar com investidas repressivas que pudessem ir ao encontro dos interesses da economia de forças que a sustentavam. Já a presença de um Vargas tolerante e 35 NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a cruz e a encruzilhada. São Paulo: Editora de USP, 1996. p. 82.


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benemérito da Umbanda, de uma repressão acontecida à revelia de sua vontade e ciência nos registros de muitos umbandistas, remetem-nos para os intrincados jogos da memória. Nessa auto-elaboração de sua imagem, os umbandistas não ficam imunes às redes de convenção verbal, aos discursos36, que os envolviam e envolvem, colocando-se como aptos para nomear e interpretar a realidade. Além disso, precisamos compreender que esses depoimentos, com suas possíveis fabulações, silêncios, omissões, integram um esforço no qual esses homens e mulheres tentam operativamente, no presente, atribuir significados ao passado, construindo-se socialmente37. Se pensarmos a memória como construída da linguagem, não causará estranhamento a forma como a figura paternal de Getúlio Vargas eclipsou a do ditador, capaz de compactuar com a perseguição à Umbanda e Religiões Africanas, coerente com uma determinada escolha política. O mito falou mais alto e o “Gegê”, paternal e bonachão, passou a coabitar os Congás, dividindo espaço com valorosos Caboclos e os conselheiros Pretos Velhos.

36 HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires, 1952. 37 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 2(3): 03-15, 1989.



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