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DA RELIGIÃO E DE JUVENTUDE: MODULAÇÕES E ARTICULAÇÕES Léa Freitas Perez

As minhas palavras surpreendem-me a mim próprio e me ensinam o meu pensamento. Merleau-Ponty

As temáticas da religião e da juventude têm assumido nos tempos atuais uma inusitada centralidade1. Afinal, acreditava-se que o mundo havia sido desencantado e que, assim, a religião estava ou bem morta ou bem reduzida a um assunto de foro íntimo. Acreditava-se igualmente que o jovem, imaginado segundo a figura do contestador cultural e/ou militante político dos anos 1960-1970, não se interessava por religião, mas por política. Ora, o que se vê hoje é o flagrante desmentido dessas crenças (pois trata-se de suposições calcadas em modos de pensamento e em regimes de verdade, tomados como habituais, logo não contestados e, no mais da vezes, desapercebidos) por um inesperado retour des choses2. A religião mostra estar bem viva e atuante, tanto na esfera privada como na esfera pública, situando-se, para surpresa de muitos, entre o civil e os fins últimos. Ser jovem (belo e malhado) é um valor cardinal na cultura de consumo3. Seu papel na sociedade é objeto de reflexões e de polêmicas. A juventude, desdobrada em “problema social” e em “questão sociológica” recebe especial atenção das políticas públicas e também das ciências 1 2

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Para um revisão da literatura sobre juventude e religião veja-se Tavares e Camurça, 2004. Vale relembrar a arguta observação de Otávio Velho segundo a qual “boa parte das crenças (em sentido amplo) com que lidamos em nossa sociedade e sobretudo em nossa época não possui a solidez dos manuais pois (e isso é da ordem da impossibilidade) não podem se manter imunes às vicissitudes da história concreta” (1995, p. 176, 177). Para uma história da noção de juventude e seu papel na modernidade, entre outros: Ariès, 1986.


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sociais, nas quais os estudos sobre juventude têm constituído um campo em franca expansão. Os jovens (para espanto de muitos que ainda insistem em pensar que juventude é mera rebeldia sem causa ou agência de utopias e de projetos de tansformação) demonstram um vivo interesse pela religião, que, diga-se de passagem, muitos persistem em tratar como alienação enclausurante. O fato é que a juventude contemporânea interessa-se muito mais por religião do que pela política. Queiramos ou não, é preciso pensar tanto a religião quanto a juventude, quer em separado, quer em par, visto que ambos os temas, cada vez mais, marcam presença na vida e nos debates contemporâneos. Mas, afinal, do que estamos falando quando nos referimos à religião e à juventude? Que modulações e articulações esse par compõe? É sobre isso que este pequeno exercício, de caráter assumidamente experimental, quer tecer algumas observações conceituais a partir do diálogo com dados empíricos oriundos da pesquisa “Pesquisa Religião, Cultura e Política entre a Juventude de Minas Gerais”4. * Os dados da pesquisa apontam fatos e indicam tendências muito interessantes, que possibilitam indagações a respeito de algumas modulações e articulações entre o par juventude-religião. Peço, então, a complacência do leitor para apresentar algumas evidências empíricas. Em primeiro lugar, cabe observar que os resultados gerais da pesquisa confirmam em suas linhas gerais as tendências observadas no último Censo, bem como o de outras pesquisas sobre juventude e religião5. Em termos de pertencimento religioso, o grupo pesquisado, formado por estudantes do terceiro ano do ensino médio da rede pública estadual de Belo Horizonte, é majoritariamente católico (67,4%). Todas as outras confissões somadas perfazem 32,5%6.

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Sobre a pequisa e seus primeiros resultados, consulte-se: Tavares et alli, 2004 e Perez et alli, 2004. Sobre outras pesquisas sobre juventude e religião veja-se, entre outros: Novais, 2002 e 2004; e Debates do Ner, 2001. O grupo belohorizontino embora seja majoritariamente católico, o é em percentual menor do que o do Estado de Minas como um todo: 79,40%. Para o Estado, todas as outras confissões somadas atingem 18,3%. Segundo o Censo de 2000, 77,3% dos brasileiros são católicos, uma diminuição percentual em relação ao Censo de 1991, no qual declaram-se católicos 83,76%. Entre os mineiros, de acordo com o Censo de 2000, 78,89% são católicos, sendo Minas o Estado mais católico da região sudeste. Na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, 65,0% dos entrevistados em todo o país declararam-se católicos (Novais, 2004).


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Além da prevalência do catolicismo, em Belo Horizonte, observam-se três outras tendências evidenciadas para o Brasil: o crescimento do campo evangélico, dos sem religião e de outras religiões. Na declaração de pertencimento religioso de nossos jovens, o segundo lugar é ocupado pelos protestantes (12,0%) e o terceiro pelos pentecostais (9,0%)7. Os sem religião são 8,9%8. Entre os jovens metropolitanos, 6,4% declaram-se de outras religiões9. Mesmo que haja um crescimento dos sem religião, a maioria desses jovens tem religião: 91,1%10. Esses números apontam para algumas das características mais salientes do campo religioso na contemporaneidade: sua composição nitidamente diversa, o evidente declínio da hegemonia católica, mas sem perda de sua franca preponderância, e a maior expressão dos sem religião. Os dados indicam uma diminuição do número de católicos relativamente ao aumento do tamanho das cidades, o inverso acontecendo com outras religiões, notadamente o protestantismo e o pentecostalismo11. Como bem observam Fátima Tavares e Marcelo Camurça, os jovens mineiros comprovam que Minas Gerais “e, mais marcadamente seu interior ainda é um reduto da Religião Católica” (Tavares et alli, 2004, p. 65). Ainda no campo do pertencimento religioso, nota-se diversidade também na transmissão religiosa. Para 53,2% dos jovens da capital, os pais são a influência mais marcante em termos de escolha da religião12. Registre-se ainda que a família é a instituição apontada como a mais importante em suas vidas (82,0%), seguida pelo trabalho (57,6%) e pela religião (56,1%)13. No entanto, é bastante expressiva a escolha da religião por motivos pessoais: 37,8%14.

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No Estado, cai o percentual de jovens protestantes (7,70%) e de jovens pentecostais (6,0%). Na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, 22,0% dos jovens declararam-se evangélicos, sendo 25,0% pentecostais (Novais, 2004). Segundo o último Censo 15,4% dos brasileiros são evangélicos. Caindo para 5,1% no Estado. Segundo os Censos, em 1980, 1,6% dos brasileiros não tinha religião, percentual que aumenta vigorosamente, atingindo a cifra de 7,3% em 2000. De acordo com a pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, 11,0% dos jovens entrevistados no Brasil declarou-se sem religião (Novais, 2004). Entre jovens os mineiros como um todo, os de outras religiões são 4,3%. Segundo o Censo de 2000, 3,5% dos brasileiros têm outras religiões. 94,9% dos jovens no Estado declaram ter religião. A este respeito consulte-se Tavares et alli, 2004. Para 61,1% dos jovens do Estado, a família é a maior influência na escolha da religião. Para os jovens cariocas esse percentual é de 58,1% (Novais e Mello, 2002). Para o Estado, a ordem é a seguinte: família (83,1%); religião (59,8%º) e trabalho (56,1%). Para o Estado, 31,5% escolheram a religião por motivos pessoais.


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Sobre a importância da família e da religião um jovem evangélico, atuante em sua religião, assim se expressou15: Minha religião é muito assim, a base da minha vida, sabe, além da minha família.

Sobre a escolha da religião dois depoimentos são ilustrativos: Meus pais também são cristãos, vão à Igreja Metodista também, mas foi escolha própria eu ter começado a ir à igreja, porque meus pais já iam, eles nunca me obrigaram a ir na igreja. Foi escolha própria, entendeu? Sou católica. Vou à igreja sempre, ajuda muito a igreja. Já conheci outras religiões, já fui na igreja evangélica... Gostei muito lá porque eles louvam, essas coisas... e não fica naquela mesmice, então eu gosto. Mas eu gosto mesmo da minha religião e me sinto bem. […] Meu pai, ele não pratica, mas ele acredita em Deus. Minha mãe é católica e não aceita que eu mude de religião. Já falei que essa escolha é minha e que ela não tem nada com isso.

Os dados sugerem que estamos diante de uma outra modulação de transmissão religiosa, mesmo em um Estado nitidamente religioso e fundamentalmente católico como Minas Gerais. Não se pode negar que se trata aqui da ação pedagógica da famigerada “tradicional família mineira”, em articulação com o catolicismo em sua face de “religião da família brasileira” (Novais, 2004, p. 277). Entretanto, igualmente não se pode negar que, para os nossos jovens, a religião já não é mais exclusivamente uma herança familiar, isto é, a escolha individual tem um peso que não é negligenciável. Todavia, é ainda inegável que esses jovens escolhem sua religião em um campo religioso plural e competitivo e mantêm-se majoritariamente católicos, seguindo a religião de seus pais. Vale dizer, portanto, que tradição familiar e religiosa modulam-se com autonomia individual, evidenciando os marcos sociológicos nos quais se insere a vivência da religião pela juventude contemporânea. Um outro conjunto de dados sugestivos diz respeito às crenças religiosas dos jovens belorizontinos. Quando se cruza crença com ter ou não religião, evidencia-se que se declarar sem religião não necessariamente implica ausência de crenças religiosas, pelo contrário. Pode-se mesmo delimitar, tomando de empréstimo a expressão de Regina Novais, um claro segmento de “religiosos sem religião” (2004, p. 272). O quadro de crenças dos sem religião é nitidamente menos católico, mais variado,

15 Todos os depoimentos de jovens aqui transcritos foram obtidos durante a realização de grupos focais com estudantes do terceiro ano do ensino médio da rede pública estadual de Belo Horizonte.


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sincrético mesmo16. O quadro de crenças dos que declaram ter religião, embora seja mais católico, não o é em exclusividade17. Quando se cruza crença e pertencimento religioso, o que desde logo sobressai é a sintonia entre crença e religião confessada. Esses jovens sabem do que estão falando quando falam em/de religião. Posicionam-se ativamente e criticamente em relação ao corpo doutrinal de suas religiões, que deixa rastros indeléveis em certas opiniões acerca de temas da atualidade, notadamente aqueles que dizem respeito à moral e à sexualidade. Fátima Tavares e Marcelo Camurça notam, com razão, que nesses campos “a religião é uma variável importante” (2004, p. 16). Uma jovem auto-declarada kardecista assim se posicionou relativamente à homossexualidade: Com a minha religião, não concordo com isso. Porque não é errado. A pessoa vai casar com uma mulher, viver o resto da vida infeliz, porque a sociedade ou alguma religião fala que é errado!

Argumenta ela: A minha, como a maioria das religiões, fala que se nasceu homem, se nasceu mulher, é pra procriar entendeu? Então homem com homem não vai procriar, então não tem jeito deles se relacionarem. É meio complicado explicar isso. Mas eles acham errado mulher com mulher, homem com homem. Na minha religião se fala que isso é errado. É uma coisa que eu não concordo, entendeu?

A relação crítica com sua religião modula-se-se com experimentalismo. Uma jovem católica declarou: Eu gosto de outras religiões. Já ouvi muitas coisas sobre o espiritismo. Eu acho bastante interessante esse negócio de reencarnação. Já ouvi algumas coisas sobre isso. Mas, assim, tem certas coisas na minha religião com as quais eu não concordo.

Um evangélico disse: Gosto muito de conhecer outras religiões, sabe? Informação para mim nunca é demais. Gosto muito de conhecer a opinião de outras pessoas, o que elas pensam, entendeu? Não tenho nada contra as outras religiões, nada, nada mesmo... 16 Virgem Maria e santos, crenças nitidamente católicas, ocupam posições inferiores, respectivamente 7º e 8º lugares em Belo Horizonte; 6º e 7º para o Estado. O 1º lugar em Belo Horizonte e no Estado, entre os sem religião, é ocupado pela crença em anjos/demônios. 17 Tanto na capital quanto no Estado, entre os que têm religião, a crença em milagres vem em 1º lugar. Opera-se uma interessante mudança nos 2º e 3º lugares. No Estado, temos Virgem Maria em 2º e santos em 3º. Em Belo Horizonte, anjos/demônios vêm em 2º, Virgem Maria aparecendo em 3º, enquanto os santos ficam no 4º lugar.


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No que tange ainda à sintonia crença-religião, é nítida, por exemplo, a diminuição do percentual de crença na Virgem Maria entre os protestantes (14,4%) e pentecostais (9,9%), bem como a proximidade entre católicos (88,9%) e afro-brasileiros (83,3%) quanto dela se trata. O que não elimina que eles operem outras outras articulações que extrapolam o núcleo duro de crenças de sua religião, como, por exemplo, a prevalência, em todas as religiões consideradas, com variações, é claro, da crença em anjo/ demônios e em milagres18. Ou o percentual de crença nos santos ligeiramente maior entre os que se declaram afro-brasileiros (83,3%) do que entre os católicos (80,2%). Trata-se certamente de uma refração no campo das crenças do declínio da hegemonia do catolicismo, da sua crescente romanização, bem como do crescimento do pentecostalismo, mas também de outras modulações entre pertencimento e sentimento religioso19. O primeiro mais institucional e formal; o segundo mais poroso e difuso. Assim tem-se tanto uma clara proximidade (partilha sincrética) entre católicos e afro-brasileiros, quanto um afastamento (polaridade contrastiva) entre católicos e protestantes/pentecostais20. ** Com relação à juventude, Regina Novais, como sempre, diz o essencial. Ela nos relembra não somente que “toda experiência geracional é inédita”, como também que – e isto é fundamental para o que aqui se propõe – “a compreensão das experiências dos jovens de hoje desafia velhas classificações”, entre as quais quero destacar aquelas que colocam em posições antitéticas juventude e religião, sobretudo a reificação da religião como ópio e da juventude como agente da revolução, dois evidentes anacronismos relativamente à juventude de hoje (Novais, 2004, p. 264). Precisamos levar a sério a observação de Regina Novais para não ficarmos escandalizados com o fato evidente de que os jovens de hoje têm uma relação positiva com a religião, que ela 18 A crença em milagres é o 1º lugar no ranking de afro-brasileiros, protestantes e pentecostais. Vem em 2º tanto para católicos quanto para de outras religiões. A única exceção é entre os espíritas, para os quais ela ocupa o último lugar. A crença em anjos/demônios vem em 1º lugar para protestantes e de outras religiões e em 2º para pentecostais e afro-brasileiros. Diminui entre os católicos (4º) e espíritas (6º). 19 Inspirada em Mauss (1968, p. 99), trato refração como o processo de contínua gestação da vida religiosa, pelo qual e no qual ela se segmenta e se dissemina diferencialmente nas sociedades, em diferentes pontos do tempo, em termos seja de atração, de entusiasmo, seja de difusão ou de negação, de repulsa e de afastamento. Vale dizer que uma religião dada é percebida de um certo ponto de vista e praticada de um certo modo. 20 Como se sabe, a devoção aos santos é associada ao catolicismo popular, núcleo por excelência do sincretismo religioso em nosso país.


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diz mais a eles do que a política. O que não quer dizer, como quer uma certa doxa, que a juventude atual é conservadora e alienada. Precisamos levar em conta os marcos sociológicos da experiência geracional de nossos jovens. Essa juventude nasceu num mundo globalizado, mediático, tecnológico. Vivem em tempos de intensa efervescência, numa sociedade que passa por profundas modificações nas formas de constituição do vínculo e nas modalidades do estar junto. O avanço tecnológico praticamente aboliu a morte, criando o padrão da eterna juventude, afetando drasticamente nossas noções usuais de duração da vida e de seus ciclos. A cultura de consumo pauta no par juventude-beleza como um estilo de vida altamente valorizado e almejado. Os jovens que “ficam com” nas baladas são os mesmos que defendem com vigor a fidelidade. Vivem em famílias de composições heterodoxas relativamente ao clássico padrão nuclear. Em seu cotidiano mais imediato convivem, entre outros, com os dilemas das reconfigurações do dito mundo do trabalho e com a morte prematura causada pela dita violência urbana. Têm a sua disposição um mercado religioso, no qual abundam ofertas de salvação de toda ordem. Em síntese, é esse mundo efetivamente tornado aldeia global, em tempos de incerteza generalizada e de hibridações inesperadas, que compõem os marcos sociológicos, nos quais se insere a experiência geracional da juventude de hoje. Todos concordam com o sintoma. No entanto, o mesmo não acontece com o diagnóstico, para usar uma velha, mas ainda produtiva, alegoria clínica. Tudo se passa como se na compreensão do mundo contemporâneo esquecêssemos da história que o engendrou, na qual a religião ocupa um lugar de destaque. Lembremos, então, en passant, dois fatos das complexas relações entre religião e modernidade. Max Weber nos mostrou como o racionalismo “destronou o politeísmo em proveito do ‘Único de que temos necessidade’”, tornando a religião “uma rotina quotidiana” e o mundo, desencantado. No entanto, pontua ele, quando “confrontado com a realidade da vida interior e exterior”, o racionalismo se vê constrangido a realizar compromissos e acomodações, de modo tal que […] a multidão dos deuses antigos sai de suas tombas, sob a forma de potências impessoais porque desencantadas, e se esforçam novamente, retomando suas lutas eternas, para fazer nossas vidas regressarem a seus poderes (Weber, 1986, p. 85, 91).

Trata-se do politeísmo dos deuses que é também (et pour cause) o politeísmo dos valores. Logo, não se pode negar que, na modernidade, a secularização é um fato. Weber também nos ensinou acerca da relação matricial entre cidade e religião. Em seu plano de estudo sobre a formação


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da economia ocidental moderna, analisa a significação e a função da cidade no desenvolvimento do processo de racionalização. Segundo ele, uma das características definidoras da cidade é a de ser uma “comunidade” que, enquanto “comunidade urbana”, só aparece como fenômeno massivo no Ocidente (Weber, 1982, p. 37). Como comunidade, a cidade é “uma associação fraternal”, isto é, uma “associação cultual”, que possui símbolos religiosos correspondentes como, por exemplo, um culto de união dos cidadãos por meio do deus da cidade ou de seu santo padroeiro, das festas religiosas oficiais próprias à cidade, assim como a sua igreja (Weber, 1982, p. 55, 63). A religião não é, portanto, estrangeira nem incompatível com o desenvolvimento urbano moderno, pelo contrário: é um fator privilegiado. A contextualização que Weber faz das condições de vivência da religião na modernidade nos possibilita ver de modo mais acurado o que tem se chamado de retorno do religioso, que atestaria que secularização não implica em absoluto o fim ou a invisibilidade da religião, mas sim uma outra forma de refração, pela qual a religião mantém-se viva e atuante, exatamente por causa dela. Secularização que seria mais apropriadamente entendida se articulada com o pluralismo dos valores e como, nos termos de Gianni Vattimo, relação de proveniência de um núcleo sagrado do qual ocorre um afastamento, mas que permanece ativo, ainda que decaído, distorcido, reduzido a termos puramente mundanos (1998, p. 9). Proselitismo religioso à parte, o posicionamento dos jovens evangélicos em relação à Virgem Maria vai nessa direção. Entre eles notou-se uma clara tendência em enfatizar a não sacralidade de Maria, considerada uma mulher como outra qualquer: Geralmente as pessoas acham que evangélico critica muito Maria, mas na verdade não é que critica Maria; a gente só não vê ela como santa. É uma visão que a gente tem de que Maria é uma mulher, que ela é virgem... é, mas ela não é santa, ela não é ela, não foi melhor do que ninguém; a gente não vê ela como mediadora entre nós e Deus. Só Jesus.

Em síntese, nas condições de secularização de uma sociedade globalizada e profundamente urbanizada, e nos quadros de uma cultura de consumo, a religião se dissipa em “complexos significativos” (que podem ser quase-religiosos e até mesmo não-religiosos) e se acomoda no mercado de consumo ao lado de outros complexos significativos (Featherstone, 1995, p. 157)21.

21 Vale dizer que “o consumismo continua a sustentar uma dimensão religiosa”, uma vez que na “cultura de consumo, o sagrado é capaz de se manter fora da religião organizada” (Featherstone, 1995, p. 159, 174).


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*** Com base nos dados empíricos e nas considerações conceituais acima expostas, quero aqui propor que pensemos a experiência geracional de nossos jovens como sendo pautada pelo que, na falta de uma expressão clara e distinta (graças aos deuses, felizmente), chamarei de duplo efeito cidade/secularização. Esse duplo efeito tem como propriedade refratar-se em diferentes modulações e em permanente articulação com o espírito da época. No plano da urbanidade (simultaneamente e a um só tempo, como diria Mauss), opera no sentido do cosmopolitismo, do afrouxamento dos laços tradicionais, da autonomia, do individualismo, da diversidade e da heterogeneidade. No plano da religião, opera no sentido da diversidade e da porosidade, sem, no entanto, provocar seu desaparecimento. O pertencimento religioso escapa da clausura do exclusivismo das crenças e práticas tradicionais, tornando-se difuso e aberto à experimentação e à hibridação. A tendência à autonomia individual na escolha da religião entre os jovens mineiros, como viu-se, não implica necessariamente o rompimento com os pertencimentos tradicionais, uma vez que eles no geral seguem a mesma religião dos pais, mas se relacionam com ela de um modo outro, evidenciando, assim, o quanto “nenhum de nós”, na cultura ocidental – “e se calhar em qualquer cultura – começa do zero na questão da fé religiosa” (Vattimo, 1998, p. 8). A composição entre tradição e modernidade, que esses jovens realizam em termos de escolha religiosa, contraria frontalmente as clássicas teorias da secularização, segundo as quais a escolha individual apontaria para a privatização da religião, seu confinamento ao domínio do foro íntimo e, assim, levaria ao rompimento com os pertencimentos comunitários, logo para o desencantamento do mundo. Ao contrário, é graças à secularização, e por intermédio dela, que podem relacionar-se de outro modo com a religião. Ir à igreja e/ou ao culto, ou participar de associações e atividades religiosas, é, para muitos dos jovens entrevistados, elemento fundamental de socialidade, de sua agitada rotina. Ou seja, são coisas que eles gostam de fazer. Neste plano, religião é lazer, insere-se entre outras referências culturais, como atestam os conteúdos religiosos em letras de certos segmentos de rap e de hip-hop, que tanto sucesso fazem entre eles. O que quero pontuar é que, para o jovens mineiros pesquisados, a religião continua a atuar sobre a vida, a ser fonte de sentido e de experiência, mas não necessária e unicamente sob a forma exclusivamente formal da religião institucional e tradicional ou do mero produto de consumo. Ela faz parte das referências culturais mais imediatas desses jovens. Talvez fosse mesmo apropriado dizer que não se trata mais da Religião, mas de


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religiosidades, ou, mais ainda, de sensibilidades religiosamente fundadas que acionam o sagrado, sobretudo em sua propriedade de colocar coisas e/ou idéias antes separadas em contigüidade, criando um amplo campo de possibilidades de modulações e articulações. Gostaria, para terminar, de sugerir que se faz necessário repensarmos nossas definições usuais da religião e de juventude. Não se trata, todavia, de rejeitá-las em bloco, pois são não somente necessárias, mas também incontornáveis de nosso pensamento. Trata-se de, como bem disse Jacques Derrida de “pôr em evidência a solidariedade sistemática e histórica de conceitos e gestos de pensamento que, freqüentemente, se acredita poder separar inocentemente” (1973, p. 15). Na clausura de nossas idéias claras e distintas, tratamos juventude e religião como entes universais, como coisas sociologicamente configuradas e claramente delimitadas, ou seja, tendo referências empíricas objetivas, unas, fechadas e coerentes, dotadas de essência e de sentido naturais e originais. O ponto aqui é que uma tal visão participa de um modo de pensamento e de uma época – refiro-me ao logocentrismo e à metafísica da presença (herdeiros e tributários da onto-teologia judaico-cristã) –, e como tal designa as condições de inteligibilidade e de plausibilidade daquilo a que se refere. Não se trata, no entanto, de perguntar ao nosso nominalismo logocêntrico o que juventude e religião significam, ou de buscar seus verdadeiros sentidos ocultos sobre a camada das representações. No caso de juventude, não se trata, sobretudo, de colocar no mesmo plano heurístico o “problema” social (delinqüência, violência, trabalho etc.) e o “problema sociológico” (fase da vida liminar, moratória), termos aos quais muito frequëntemente a juventude é reduzida e aprisionada. No caso da religião, não se trata de buscar uma definição única que abarque a diversidade religiosa contemporânea. Como foi acontecer de o mal-entendido revelar-se produtivo, trata-se de perguntar o quanto juventude e religião podem significar, mas desde uma perspectiva que não apele à presença do ente, ao significante transcendental, mas que as pense como signos/rastros imotivados, como operadores de ligação, aos quais variadas significações podem ser agregadas. Oxímoros reveladores que observamos em certas enunciações de nossos jovens entrevistados, como por exemplo, ateísmo concomitante com crença em Deus, ficar com e fidelidade, aceitação do aborto e defesa da pena de morte, não deveriam ser considerados única e exclusivamente como contradição ou como desinformação, enfim, “coisa de jovem” (o que podem mesmo ser, sem dúvida), mas também como expressões de articulações e modulações outras, enunciados outros, que não encontram necessariamente equivalentes em nossa linguagem corrente relativamente ao par religião-juventude.


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Os jovens estudantes do 3º ano do Ensino Médio da rede pública estadual de Belo Horizonte nos dizem de uma vivência intensa da religião, mas de uma religião secularizada, profundamente humanizada, em sintonia com o espírito da época, na qual o acento é dado no estar junto e na possibilidade sempre ampliada de experimentação. A religião “funciona” para eles tanto como “marco socializador” de práticas sociais quanto como linguagem por meio da qual podem expressar suas opiniões e inquietações (Novais, 1994). Ou seja, é a religião como religare, algo fundamental para eles, nesse momento de suas vidas, em que se não são (e não querem ser) crianças, também não são (e nem querem ser) adultos. Nem crianças nem adultos, mas que se vêem confrontados com o futuro, representado pelo vestibular e querem se abrir ao mundo, “aproveitar a vida”, como nos disse um dos jovens entrevistados. Ou como a jovem que declarou: “Eu adoro ser adolescente, porque é a fase que você mais descobre as coisas”. Descoberta matizada por outra: Quando a gente é criança, a gente não tem maldade, a gente é muito ingênuo e nessa idade a gente começa a ver as maldades do mundo; a gente começa a ver a podridão toda, entendeu? Então, isso machuca muito, porque é de uma vez assim, não é aos poucos; é de uma vez que aquela sua ingenuidade é quebrada entendeu? E isso, sei lá, é muito ruim, deixa a gente triste, pelo menos me deixa triste.

Aproveitar a vida, descobrir as coisas, mas cheios de temor, pois, como informou um de nossos estudantes “Belo Horizonte hoje em dia é difícil, né? Você vai sair, o cara assalta você, você pode morrer por coisa boba”. Parafraseando Lévi-Strauss, sempre ele: juventude é bom para pensar, sobretudo quando se modula e se articula com religião, pois coloca em pauta e em discussão temas cardinais da modernidade, entre os quais vida/morte, razão/emoção, corpo/espírito, duração/fim etc., em seu confronto com a vida tal como ela é. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro:

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Léa Freitas Perez (1957) é natural de Porto Alegre/RS. É graduada em História (1980) e mestre em Antropologia Social (1985) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É doutora em Anthropologie Sociale et Ethnologie pela École des Hautes Études en Sciences Sociales – EHESS, Paris, França (1993), com a tese La ville au Brésil: formation et développement (XVIe- XIXe siècle). Atualmente, é professora no Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Membro do Conselho Fiscal da Associação Brasileira de Antropologia – ABA. Algumas publicações da autora From a writing lesson (com REINHARDT, B. M. N). Horizontes Antropológicos, v. 1, p. 1-15, 2006. Conflito religioso e politeísmo dos valores em tempos de globalização. In: Religião e violência em tempos de globalização (Organizado com PEREIRA, Mabel Salgado; SANTOS, Lyndon de A.). São Paulo: Paulinas, 2004. p. 53-75. Passagem de milênio e pluralismo religioso na sociedade brasileira (Organizado com VARGAS, E. V.; QUEIROZ, R. C.). Belo Horizonte: UFMG, 2003. v. 1. 181p. Dionísio nos trópicos: festa religiosa e barroquização do mundo – por uma antropologia das efervescências coletivas. In: PASSOS, Mauro (Org.). A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 15-58. Pour une poétique du syncrétisme tropical. Les cahiers de l’imaginaire, Paris, v. 13, p. 9-16, 1996.


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