ENTRE CANÇÕES E VERSOS: ALGUNS CAMINHOS PARA A LEITURA E A PRODUÇÃO DE POEMAS NA SALA DE AULA Gláucia de Souza
1 Leitura e escrita: destinos de uma dupla viagem Havia um corredor que fazia cotovelo: Um mistério encanando com outro mistério, no escuro... Mas vamos fechar os olhos E pensar numa outra cousa...1 Falar de leitura e de escrita é falar de uma dupla viagem: a primeira, a que o ser humano empreendeu desde que se viu falante e desejoso de registrar sua própria história; a segunda, a que cada ser humano empreende em sua vida, desde que aprende a falar. Somos todos herdeiros dessa primeira viagem coletiva. Desde os homens primitivos, tentamos registrar nossa memória através de símbolos que transpassem os anos: pinturas rupestres nas paredes das cavernas, hieróglifos nos papiros, letras feitas por monges copistas, páginas impressas em livros, blogs acessados pela internet... Na segunda viagem, refazemos, em escala individual, um pouco do caminho percorrido pela humanidade: pelas mãos de pais, de professores, de bibliotecários, tentamos registrar nossas idéias através de desenhos, garatujas, palavras, pequenos textos, diários etc. O fato é que o ser humano não seria o mesmo sem a escrita, apesar de muitos ainda não poderem ter acesso a ela. Segundo Manguel (1997, p. 207), o homem inventou o leitor ao inventar a escrita: “O escritor era um fazedor de mensagens, criador de signos, mas esses signos e mensagens precisavam de um mago que os decifrasse, que reconhecesse seus significados, que lhes desse voz”.
1 Os versos que iniciam cada item desse texto são parte do poema “Segunda canção de muito longe”, do livro Canções, de Mario Quintana.
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Ler e escrever deveriam ser a viagem a ser empreendida por aqueles que freqüentam a escola. Contudo, conforme destacam Cavallo e Chartier (1999), as campanhas de alfabetização em massa sempre privilegiaram a capacidade de ler e não a de escrever, revelando uma forte ideologia por trás de um enfoque pedagógico e indo ao encontro do interesse da indústria editorial no público de leitores e não de escreventes. Isso se deve ao fato de que é possível controlar o que as pessoas estão lendo, mas, no caso da escrita, o controle e a censura se tornam bem mais difíceis, já que ela é uma atividade de iniciativa individual e livre. Cabe à escola, assim, ser o espaço também de promoção da escrita e a nós, professores, refletir sobre que formas podem nos servir de suporte para incentivar a produção de textos por parte de nossos alunos. Hauser afirma, acerca da promoção da leitura, que, quanto mais complexo o texto ou menos entendidos os receptores, mais necessária a mediação de professores, de diretores, de intérpretes e de críticos (Hauser, 1977, p. 590). O mesmo ocorre com a escrita: para existir plenamente, o que escrevemos tem que ser lido, entendido, e também discutido. Nesse sentido, arriscamos dizer, a partir da reflexão de Hauser, que a escrita precisa também de mediadores. Tais mediadores fazem-se necessários, principalmente no que diz respeito à leitura e à escrita de poemas em sala de aula. Se na viagem literária do ser humano enquanto tal a poesia esteve presente desde os primórdios, nas narrativas orais míticas, nas salas de aula, a poesia ainda está pouco presente, mesmo que esteja oralmente viva na vida das crianças que lá estão. Para falarmos acerca do poema e de suas relações com a infância, é preciso, antes, empreendermos uma outra viagem: a da poesia através dos tempos. 2 Quando crianças ainda não eram crianças: entre gregos e cavalarianos Vamos ouvir o ruído cantando, o ruído arrastado das [correntes no algibe, Puxando a água fresca e profunda. Havia no arco do algibe trepadeiras trêmulas. Nós nos debruçávamos à borda, gritando os nomes uns [dos outros, E lá dentro as palavras ressoavam fortes, cavernosas [como vozes de leões. Segundo Philippe Ariès (1981), em História social da criança e da família, a infância vista como algo diferente da vida adulta é “invenção” crescente do mundo moderno, pois, antes, o mun-
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do da infância e o da idade adulta eram, de certa forma, indiferenciados. Assim, a Idade Média desconhecia o sentimento de infância. A criança participava dos diferentes momentos da vida social, dentre eles das manifestações artísticas, muitas de caráter popular. Era assim na Idade Média e devia ser assim na Grécia Antiga. O contato das crianças com o poema era, portanto, o mesmo que tinham os adultos: através do poema cantado para uma platéia. Na lírica grega, de acordo com Johnson, a música estava a serviço das palavras: melodia, ritmo, voz, dança e instrumentos musicais enfatizavam as sílabas das palavras de modo a lhes conferir inteligibilidade. Assim, o ritmo era ditado pela sucessão de sílabas longas e breves (Johnson, 1982, p. 27). Como a poesia grega tinha íntima relação com a performance, não havia nela junção de palavras ou virtuosidades vocais e instrumentais, de forma a que a platéia se sentisse familiarizada com os poemas cantados. No dizer de Johnson, a música servia, então, para intensificar as palavras partilhadas por poetas e platéias (Johnson, 1982, p. 28). Há dessa forma, na lírica grega, não uma poesia musical, como no nosso sentido da palavra, mas uma poesia com música. Com a fundação do museu e da biblioteca de Alexandria, reuniu-se um grupo de críticos, dentre eles Aristófanes de Bizâncio. Com Aristófanes, surge já uma teoria do gênero lírico voltada para um estudo de suas propriedades formais, como metro e estratégias retóricas. Aristófanes tece seus estudos em um mundo não mais de poemas cantados, mas no de livros, que, no dizer de Johnson (1982, p. 87), via a música muitas vezes separada da poesia, bem como as circunstâncias de realização e as funções da lírica de uma forma diferente: junto com a dissociação música-poema, iam-se também os mundos, os dramas e as histórias internos e as intensidades que a música exaltou e confirmou (Johnson, 1982, p. 97). Poema e papel passaram a estar mais próximos. Mesmo que contasse com o suporte da escrita, na Idade Média, a voz permanecia ainda como legitimadora e instauradora de sentidos em um texto. Declamar e cantar faziam parte do rito poético. Zumthor assinala que: [...] desde a alta Idade Média, as técnicas pedagógicas se constituíam sobre uma estreita base de escrita, por memorização: conforme um costume que remonta à Antiguidade, cantarolam-se a sós ou em um grupo as fórmulas que condensam os rudimentos de uma ciência, esses versus memoriales dos quais nos resta um vasto corpus, ainda mal inventariado. Mais ainda: possuímos alguns manuscritos que foram estabelecidos no meio escolar medieval e que fornecem extratos de Horácio e Virgílio com uma notação musical! (Zumthor, 1993, p. 83).
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Até o século XII, a palavra poética circulava também na voz dos trovadores, jograis, menestréis, que a traziam em estado de performance. Formada na boca dos nômades, a palavra poética oral espalha-se e difunde-se, com feições semelhantes, embora com tons regionais. Destaco nesse ponto a importância dos poetas do Languedócio, que, no curso do século XII, desenvolveram sua poética fundada no cantar palaciano de amor. Spina (1996, p.22) relata que, enquanto no norte da França, as canções de gesta celebravam o espírito guerreiro da sociedade aristocrática, cujo tema era a luta, no sul, surgiram composições sentimentais que transformaram a mulher em santuário de sua inspiração. O amor, tal como cantado por alguns trovadores, era integral e pressupunha a integração corpo e mente, a sensorialidade. A lírica occitânica fez surgir um tipo de produção veiculada pela voz, com traços de poema autoral: ela requer domínio de técnica, tanto do verso, quanto da música, “em que o trovador tem consciência de sua atividade artística” (Spina, 1996, p. 24). Traz a marca de uma poética própria, que pressupunha “a arte pela arte, a vassalagem amorosa e a consciência de seus meios de realização artística”, ao mesmo tempo em que utilizava temas de inspiração nos cantos de primavera, de origem popular, irmanados ao canto e à dança. No caso do lirismo galego-português, temas que apareciam também nas cantigas d’amigo, em que quem se expressava era a mulher. Mesmo com a difusão da escrita, a produção poética medieval transita entre a zona da escritura e da oralidade, o que fez com que Zumthor (1993, p. 98) falasse da poesia dos séculos XII e XIII como escritura que funciona em oralidade. A escrita que, dessa forma, passava pelos ouvidos do copista, estava ainda vinculada à oralidade, e escrever, conseqüentemente, era obra de tempo e de esforço físico. Era, portanto, recriação de quem ouvia e registrava o que ouvia: o escriba assinava sua cópia. Pouco importava a diferenciação entre autor, escriba e intérprete. Ao circular da voz e da memória do intérprete ao ouvido e à arca pectoris do escriba, a poesia na Idade Média ainda permaneceu essencialmente performática. Obra de um eu-trovador para um tu-platéia ou um tu-escriba. 3 Quando crianças passaram a ser crianças e foram para a escola: entre o olho que lê e a voz que recita Nós éramos quatro, uma prima, dois negrinhos e eu. Havia os azulejos reluzentes, o muro do quintal, que [limitava o mundo, Uma paineira enorme e, sempre e cada vez mais, os [grilos e as estrelas...
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Diz Ariès (1981, p. 165) que, com o advento do mundo moderno e com o progresso do sentimento de infância na mentalidade comum, a escola e o colégio, que na Idade Média eram reservados a um pequeno número de clérigos de idades variadas, passam a isolar cada vez mais as crianças como forma de separá-las do mundo adulto. Não obstante essa separação, a escola e o colégio também passaram a veicular o ideal de mundo adulto a ser cultivado pelos infantes quando crescessem. A literatura dita infantil, nascida por ocasião do despertar desse sentimento coletivo de infância, não se furtou ao caráter pedagógico que a escola lhe impôs. Poema e pedagogia passaram a se dar as mãos. No caso do Brasil, a produção poética para crianças, enquanto gênero literário, surgiu apenas no final do século XIX (Camargo, 2001) e esteve mais estritamente vinculada a uma preocupação pedagogizante, desvinculada da música, como nas cantigas cantadas e dançadas pelas crianças fora da escola. Contudo, não obstante a real preocupação em ensinar dos primeiros professores-autores que se dedicaram à escrita para a infância, é de se assinalar que muitos foram os grandes nomes a produzirem poemas ditos infantis. Arroyo (1969, p. 217) referencia sobre aqueles que produziram poemas para crianças no momento em que se costuma considerar como marco inicial deste gênero no Brasil: Em Zalina Rolim, Presciliana Duarte de Almeida, Francisca Júlia e Olavo Bilac, entre os precursores de nossa literatura infantil, encontramos as mais válidas vozes da poesia para crianças no Brasil. São quatro autores que nos deixaram uma obra clássica, classicamente poética, para a infância, mostrando assim os verdadeiros critérios de composição de uma lírica capaz de ser longamente amada pelas crianças. O Brasil inteiro, nas festas escolares, nas reuniões de família, pelos seus meninos e meninas, recitou versos de Zalina Rolim, Presciliana Duarte de Almeida, Francisca Júlia e Olavo Bilac (Fonte: http://www.itaucultural.org.br/index. cfm?cd_pagina=2006, acesso em 2 de outubro de 2005).
Observa-se, no trecho de Arroyo, a referência à declamação como forma de difusão do texto em versos. Tal referência pode ser observada no prefácio de Gabriel Prestes para o Livro das crianças, de Zalina Rolim. Data de 1897 a publicação do Livro das crianças, em edição promovida pelo governo do Estado de São Paulo para distribuição nas escolas públicas. Há nele uma preocupação pedagógica que, em relação ao vínculo poema-performance, destaca a importância dos poemas enquanto exercício através da voz. No prefácio do livro de Zalina, Gabriel destaca a importância dos poemas como forma de exercitar a “leitura expressiva e exercícios de recitação”, essenciais “para a
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educação estética e literária” dos estudantes (Lajolo e Zilberman, 1986, p. 269-270). É de se destacar também que, concomitante à produção de autoria, observava-se no trabalho dos pioneiros da produção poética destinada à infância no Brasil uma preocupação com o registro de poemas de folclore puro. Um exemplo é o livro de Alexina de Magalhães Pinto, intitulado Cantigas das crianças e do povo. Publicado em 1912 por Francisca Júlia e seu irmão Júlio César da Silva, Alma Infantil, como se lê em seu prefácio, é “[...] uma coleção de monólogos, diálogos, recitativos, comédias escolares e brincos infantis [...]” (Lajolo e Zilberman,1986, p. 278), para ser adotada na rede pública de ensino. Em seu volume, os irmãos poetas desempenham o papel de “poetas didáticos”, aqueles que escrevem poemas para o ensino, conforme definição do próprio prefácio de Alma infantil. Coube aos poetas dessa geração, que marcadamente destinou seus textos à infância, a produção de poemas de autoria de fundo didático-escolar, em contraste com as formas orais coletadas por eles da tradição popular. Nos meios escolares, o poema escrito encontrou suporte nas artes declamatórias, como atesta o Manual de Califasia e artes de dizer, de Silveira Bueno, publicado pela primeira vez em 1930, para uso em Escolas Normais e Cursos de Declamação. Em sua obra, Bueno destaca elementos na arte do dizer, tais como ritmo, tonalidade, cadência e intensidade do movimento da fala. Sobre ritmo, diz Bueno: Para uma boa dicção é indispensável observar o ritmo da linguagem. As modificações de duração, intensidade e altura das sílabas na formação dos vocábulos, e dos vocábulos na formação dos períodos, auxiliam muito não só na beleza da dicção, mas também ao próprio entendimento do assunto. Há uma constante alternativa de sílabas fracas e fortes, átonas e tônicas, nas frases, que produz a graça do dizer (Bueno, 1930, p. 77).
Com os ventos de mudança que passou a sofrer a escola a partir do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, o poema para a infância aos poucos foi se distanciando do vínculo com o didático, com o ensinar a arte declamatória, para se aproximar cada vez mais de valores estético-literários, já propostos pelos poetas modernos na poesia dita “adulta”. Se Zalina Rolim e Olavo Bilac já demonstravam uma preocupação estético-literária com os poemas que destinaram à infância, Henriqueta Lisboa (O menino poeta foi publicado em 1943), Sidónio Muralha (A televisão da bicharada teve primeira edição em 1962) e Cecília Meireles (Ou isto ou aquilo data de 1964) abriram caminho para que essa produção no Brasil se libertasse, enfim, do didatismo presente nos primeiros poemas produzidos. Abriram caminho,
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também, para uma produção literária que não necessariamente fosse feita por professores-autores. Com Henriqueta, Cecília e Sidónio, Vinicius de Moraes também destacou-se com A arca de Noé (1970), cujos poemas, musicados por Toquinho, Paulo Soledade, Bacalov, Fagner e Tom Jobim, tiveram lançamento em discos no ano de 1982 (Poesia infantil, 1996, p. 29). O lançamento dos discos Arca de Noé 1 e 2 são um marco para a recente retomada da palavra cantada na produção de poemas de autoria para a infância. As décadas de 1980 e 90 do século XX viram não só o boom da literatura dita infantil em geral, mas foram particularmente significativas no que tange à publicação de livros de poemas autorais para a infância, através de nomes como Bartolomeu Campos Queirós, Elias José, José Paulo Paes, Maria Dinorah, Reinaldo Alves Valinho, Ricardo Azevedo, Roseana Murray, Sérgio Capparelli, dentre outros. Através de seu fazer poético-literário, esses autores abriram caminho para uma produção poética que não se preocupou apenas com o ensino, mas com a qualidade estética dos poemas, independentemente da idade para que foram destinados. Alguns exemplos são as antologias que buscam não só poemas escritos para um leitor mirim, mas todos aqueles que possam ser fruídos por adultos e crianças, tais como o livro Poesia fora da estante 1 e 2 (Editora Projeto), organizados por Vera Teixeira de Aguiar, Simone Assumpção e Sissa Jacoby, bem como livros, originalmente direcionados ao público adulto, mas redirecionados à infância, através de ilustrações e projeto gráficos adequados. É o caso dos livros Pedacinhos de pessoa (Ed. RHJ), com poemas de Fernando Pessoa e ilustrações de Angela Lago; O fazedor de amanhecer (Ed. Salamandra), com poemas de Manoel de Barros e ilustrações de Ziraldo; Poeminhas pescados numa fala de João (Ed. Record), com poemas de Manoel de Barros e ilustrações de Ana Raquel, entre outros. No que diz respeito à produção de poemas para crianças no Brasil, arrisco-me a dizer que, se o final do século XIX e a primeira metade do XX marcaram a época da poesia vinculada ao ensino, e se a segunda metade do século XX representou uma busca da literariedade, do prazer da leitura e de raízes folclóricas, o século XXI será, então, o momento do diálogo, da vinculação da poesia às demais artes (música, teatro, artes plásticas), como podemos observar a partir dos vários lançamentos de livros-CDs destinados a um público infantil: momento de busca da voz perdida do poema. Nesse sentido, cito um livro que congrega a música e as artes cênicas, intitulado A mulher gigante, de Gustavo Finkler e Jackson Zambelli, ilustrado por Laura Castilhos e publicado pela Editora Projeto em 2000. Significativa, também, é a coleção Poesia em Canto, das Edições Paulinas, cujos títulos Clave de lua,
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de Leo Cunha, e Garranchos, de Francisco Marques, foram publicados em 2001. Ambos foram ilustrados por pinturas de Eliardo França e musicados por Renato Lemos. O poeta Lalau teve alguns de seus poemas da coleção Brasileirinhos (Brasileirinhos – 2001; Novos brasileirinhos – 2002; mais brasileirinhos – 2003; e Bem brasileirinhos – 2004), da Editora Companhia das Letrinhas, ilustrados por Laura Beatriz e musicados por Paulo Bira em 2004. Já em 2005, José Paulo Paes teve alguns de seus poemas musicados por Paulo Bi, no CD José Paulo de Paes para filhos, lançado pela gravadora MCD2. 4 Quando crianças são feitas de roda: o resgate da voz e do corpo nos poemas presentes na sala de aula Havia todos os ruídos, todas as vozes daqueles tempos... As lindas e absurdas cantigas, tia Tula ralhando os cachorros, O chiar das chaleiras... Se, no Brasil, a poesia publicada para a infância esteve por muitos anos atrelada ao espaço da escola, ela sempre circulou de forma oral entre as crianças, através de suas brincadeiras, em diferentes épocas e culturas. Ao falar dos brinquedos da infância, Câmara Cascudo destaca que “o pião de madeira, com ponta de prego sacudido zoando na beira da calçada, é neto de estrombos grego, citado na Odisséia, de Homero, o turbo que os legionários romanos jogavam por toda parte dos domínios” (Cascudo, 1978, p. 52). O mesmo observa o autor em relação às rondas infantis. São registradas em diferentes épocas e em diferentes culturas, como a cantiga “Lá na ponte da Aliança”. A ponte da Aliança, também em suas variantes “ponte da Vinhaça”, “corda da Viola”, “do Gavião” e “ponte das Agulhas”, remete-nos à ponte d’Avignon que, segundo o autor, é “famosa nas festas da cidade papal do meio-dia francês, ponte destruída em 1669 e já citada no Orlando furioso quando Rodamonte visita ‘a ponte magnífica de Avinhão’, velha e célebre, mesmo nos primeiros anos do séc. XVI” (Cascudo, 1978, p. 53). Muitas são as classificações dadas à produção em versos presente na infância de forma oral. Por questões de organização, optei por utilizar a classificação feita por Veríssimo de Melo, em seu livro Folclore infantil (1985). Nesse livro, o autor reuniu 2 Detenho-me nesse texto apenas nos livros-CDs produzidos a partir de poemas musicados, não obstante a atual produção de CDs para a infância (canções em que letra e música são produzidas concomitantemente) ter-se destacado pelo cuidado e elaboração estético-criativas, como, por exemplo, no caso do selo Palavra Cantada.
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cinco ensaios que falam sobre acalantos, parlendas, adivinhas, jogos populares e cantigas de roda, com um rico acervo dessas modalidades de textos em forma de poema do folclore infantil. Passo, então, a diferenciar apenas as modalidades poéticas apresentadas pelo referido autor, de acordo com sua classificação e sua conceituação: 1. Acalantos: são pequenos cantos entoados pelas mães ou amas pretas para embalar ou consolar crianças. Dentre suas características, estão as interjeições seculares estudadas por Câmara Cascudo (oô, ô, ôôô etc.), bichos e pássaros horripilantes, além de espectros (fantasmas lendários, perseguidores dos meninos que custam a dormir). A maioria das cantigas de berço veio de Portugal, exceto a que fala do Cabeleira (um famoso criminoso, terror da zona pernambucana). Algumas cantigas de embalar meninos são fragmentos de modinhas populares, parlendas adaptadas, cantos negros misturados com fados, cantos de igreja. Muitas cantigas de ninar, segundo Melo, serviram de temas a músicos e poetas conhecidos, como Villa Lobos e Manuel Bandeira. 2. Parlendas: são, muitas vezes, confundidas com jogos, brinquedos, adivinhas, rondas, acalantos, contos populares. Contudo, distinguem-se destes grupos por se constituírem em rimas, sem música, que servem para ensinar alguma coisa, divertir a criança ou criticar outra. Classificam-se, para Veríssimo de Melo, em três seções: os brincos, as mnemônias e as parlendas propriamente ditas. Os brincos são os primeiros agrados ingênuos de pais e mães carinhosos. São acompanhados de gestos, como quando se pega a mão do bebê, dedo por dedo, e se diz “Dedo mindinho, / Seu vizinho, / Maior de todos, / Fura-bolos, / Cata-piolhos...”. As mnemônias, citadas por Luís da Câmara Cascudo, são parlendas que têm por fim ensinar alguma coisa, como nomes ou números. Um exemplo é: “Um, dois, feijão com arroz, / Três quatro, feijão no prato, / Cinco, seis, feijão para nós três, / sete, oito, feijão com biscoito, / Nove, dez, feijão com pastéis”. Já as parlendas propriamente ditas circulam entre as crianças. Não há, por isso, iniciativa de adulto. São exemplos de parlendas propriamente ditas os ditos e as rimas infantis, os trava-línguas e os ex-libris. 3. Adivinhas: Melo ressalta que, segundo Alcides Bezerra, a adivinhação é quase sempre um conjunto de analogias e de personificação. Já Pitré, segundo o autor, define adivinha como um conjunto de palavras no qual está compreendido ou suposto algo que não se diz através de qualidades e características gerais, que se podem atribuir a outras coisas que tenham ou não semelhança
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Gláucia de Souza com a analogia. O autor cita, também, Teófilo Braga, que observa na adivinha a redução de qualquer objeto da natureza a uma personificação (esboço de formação mítica) e o desenvolvimento do mito nas analogias acidentais e imprevistas. Na Antigüidade, as adivinhas representavam a manifestação das faculdades especulativas do homem. Nessa época, as adivinhas eram expressão do culto e da magia religiosa e as decifrar rendia prêmios preciosos e reputação divina a quem o fizesse. Melo destaca que ainda hoje as adivinhas guardam vestígios deste mundo fabuloso e distante em que a decifração de enigmas constituía a mais alta prova de inteligência. 4. Cantigas de roda: para Melo, poesia, música e dança uniram-se nos brinquedos de rondas infantis. O autor ressalta que as cantigas de roda têm muito pouco de brasileiras. Elas sofreram influências das culturas lusitana, africana, ameríndia, espanhola e francesa. Utilizando-se de classificação de Luis Hoyos Sáinz e Nieves de Hoyos Sancho, Melo divide as cantigas em cinco grupos: cantigas amorosas (“Vestidinho branco”, “A margarida”, “Esta menina que está na roda”, “O cravo brigou com a rosa”, “Teresinha de Jesus”), cantigas satíricas (“A barca virou”, “Dona Chica”, “Pai Francisco”), cantigas imitativas (“Carneirinho carneirão”, “Seu lobo”, “Escravos de Jô”), cantigas religiosas (“Capelinha de melão”) e cantigas dramáticas (“O baú”, “A machadinha”).
Presente nas escolas e também nas ruas, o que chamamos de poesia destinada à infância transita por poemas de folclore puro, poemas de inspiração folclórica e poemas autorais3. O resgate das formas poéticas folclóricas tradicionais muitas vezes está sendo feito através da música, da composição de livros-CDs, com poemas cantados. Tal retomada do poema cantado, quer autoral, quer de folclore puro, é de suma importância, não apenas por reaproximar uma relação antiga entre poema e música, mas também por cumprir um papel importante, fundador da memória de um grupo, resgate de identidade entre crianças e adolescentes privados, muitas vezes, do espaço de convivência e interação. Para Perrotti (1990), é impossível que, por melhor que seja, qualquer produção cultural para a infância substitua os espaços
3 Por poemas de folclore puro, entendo aqueles de tradição popular, como as cantigas de ninar e de roda, as parlendas e as adivinhas. Como poemas de inspiração folclórica, entendo aqueles que, mesmo tendo sido criados por um determinado autor, apresentam características dos poemas de folclore puro. Por fim, denomino poemas de autoria aqueles que não apresentam características semelhantes aos poemas de folclore puro.
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de interação e experimentação perdidos pelas crianças com o crescimento das cidades. Segundo o autor, a produção cultural para a infância (e a poesia enquanto produção cultural) não pode ser: [...] um lenitivo para os males que a expansão do capitalismo criou. Ao contrário, nessa situação, necessita ser memória, resgate do lúdico, categoria incompatível com o sistema, e que, por ser irredutível, não se submete jamais à mercantilização total da vida, como pretendem as formas mais avançadas de capitalismo. E é enquanto resgate que a produção cultural poderá viver em harmonia com a vida. Só assim ela se justifica. Enquanto re-fazer, enquanto re-nascer, enquanto tensão dialética, processo de superação nessas condições, o simbólico será alargamento do real e vice-versa. Jamais substituição (Perrotti, 1990, p. 26).
Com a perda gradativa dos espaços de socialização (praça, ruas, jardins etc.), a escola começou, então, a resgatar a rua para dentro de si mesma, o que trouxe uma maior preocupação com as formas orais trazidas pelos diferentes grupos sociais, com a performance dessas formas (com o corpo que move e a voz que ecoa). 5 Canções, de Mario Quintana: uma ciranda de poemas Onde andará agora o pince-nez da tia Tula Que ela não achava nunca? A pobre não chegou a terminar a Toutinegra do [Moinho, Que saía em folhetim no Correio do Povo!... A última vez que a vi, ela ia dobrando aquele corredor [escuro. Ia encolhida, pequenininha, humilde. Seus passos não [faziam ruído. E ela nem se voltou para trás! Da rua para os recreios, dos recreios para a sala de aula, surge o reconhecimento da escola acerca da importância do poema, do corpo e da voz. Quando se fala em leitura e escrita, muitas vezes fica à margem das salas de aula a leitura e a escrita de poemas. É nesse momento que trago para essa discussão o livro Canções, de Mario Quintana. Publicado pela primeira vez em 1946, Canções, de Mario Quintana, é uma coleção de trinta e cinco composições que retomam a temática de poemas populares de folclore puro, tais como as cantigas de ninar e de roda. A começar pelo título Canções, palavra presente nos trinta e cinco poemas originais do livro, percebe-se a aproximação da obra de Quintana com o uni-
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verso da música e da dança. São poemas, quer de inspiração folclórica, quer autorais, que nos remetem, tanto explícita quanto sugestivamente, através da musicalidade, a poemas do folclore. Em “Canção de muito longe”, o verso inicial “Foi-por-cau-sado-bar-quei-ro” dialoga com a cantiga de roda “A canoa virou”. Já o poema “Canção da janela aberta” retoma a cantiga “Passarás, não passarás”, por meio dos versos “Passa nuvem, passa estrela, / Passa a lua na janela”. O poeta também utiliza formas poéticas de origem popular, tal como se observa na quadra “Canção de Inverno”: “Pinhão bem quentinho! / Quentinho o pinhão!” / (E tu bem juntinho/ Do meu coração...) (Quintana, 1982, p. 93). Eminentemente popular, a forma poética quadra está presente na tradição cultural de todo o país. Em Santa Catarina, os “pão-por-Deus” (pedidos formulados em versos, geralmente quadras, escritos em papéis cortados em forma de coração e distribuídos na primavera) são exemplo de circulação de quadras populares. As quadras dos “pão-por-Deus” expressam pedidos, na maioria das vezes amorosos, como a quadra de Quintana. São exemplos de versos de pão-por-Deus: Lá vai meu coração Já que eu não posso ir Vai levar lembranças minhas Pão-por-Deus vai lhe pedir. Lá vai meu coração Já que eu lá não posso ir Vai saudade, vai lembrança, Pão-por-Deus mando pedir. Lá vai meu coração Passando altos e serra Me mandais o pão-por-Deus Linda flor desta terra. (Piazza, Valter F. Em Boletim catarinense de folclore, ano VI, nº 22, Florianópolis, janeiro de 1956 – disponível em http://jangadabrasil.com.br/outubro38/cn38100a.htm, acesso em 27 de maio de 2006) Os poemas de Quintana retomam, também, algumas brincadeiras populares, muitas circulantes no universo infantil, tais como o contar histórias (“Segunda canção de muito longe”), a roda de ciranda (“Canção do meio do mundo”) e as danças (em “Canção da chuva e do vento”, o verso “Põe mais pé. Pé. Pé” remete-nos aos versos “Ora palma, palma, palma / Ora pé, pé, pé”, da cantiga “Caranguejo peixe é”).
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Um outro poema do livro Canções, “Canção de domingo”, de inspiração folclórica, proporciona-nos a associação com a estrutura de textos de folclore puro: Que dança que não se dança? Que trança que não se destrança? O grito que voou mais alto Foi o grito de criança. Que canto que não se canta? Que reza que não se diz? Quem ganhou maior esmola Foi o Mendigo Aprendiz. O céu estava na rua? A rua estava no céu? Mas o olhar mais azul Foi só ela quem me deu! (Quintana, 1962, p. 71) Nesse poema, as perguntas “Que dança que não e dança? / Que trança que não se destrança?” e “Que canto que não se canta? / Que reza que não se diz?” aproximam-se da forma como se apresentam muitas das adivinhas, como as coletadas por Sebastião Almeida Oliveira, publicadas em Literatura oral no Brasil, de Luís da Câmara Cascudo: Quem não tem Não quer ter; E quem tem, Não quer perder. (Questão) Que é que tanto mais cresce menos se vê? – a escuridão Passa de noite sem parar? – o rio. (Câmara Cascudo, 1978, p. 70) As adivinhas refletem como os diferentes povos vêem o mundo, seus conceitos, suas idéias. Por esse motivo, muito se tem estudado acerca de suas origens culturais. Ao se aproximar da fórmula das adivinhas, Quintana, em “Canção de domingo” (título que, por si só já no evoca a parlenda “Hoje é domingo...”), lança ao leitor suas perguntas enigmáticas. Contudo, ao contrá-
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rio das adivinhas, possivelmente, elas não possuam resposta. Diante da dúvida em saber qual a dança que não se dança, qual a trança que não se destrança, qual é o canto que não se canta e qual é a reza que não se diz, o leitor é posto frente a frente com três únicas certezas “O grito que vou mais alto / Foi um grito de criança”, “Quem ganhou maior esmola / Foi o Mendigo Aprendiz” e “[...] o olhar mais azul / Foi só ela quem me deu!”. Tais certezas são igualmente enigmáticas. Mario Quintana, por meio de seu livro Canções, retoma o universo da poesia popular, mas conferindo a ele um forte tom subjetivo autoral. Nesse sentido, ao trabalhar com os poemas do referido livro em sala de aula, o professor tem nas mãos a oportunidade de, através do resgate da linguagem primitiva dos alunos, aquela que remonta à tenra infância, e das experiências sensoriais e corporais, chegar à leitura e à escrita de um tipo de poema que traga uma maior marca autoral e subjetiva. Como isso seria possível? Em seguida, apresento uma atividade com o poema “Canção da janela aberta”, de Mario Quintana, através da qual alunos e professores podem vivenciar momentos de percepção, discussão e criação de poemas na sala de aula. 6 Entre Canções e versos: uma sugestão para a leitura e a produção de poemas na sala de aula Para a realização dessa atividade, baseei-me no que diz Jolibert (1995, p. 57-63) sobre as oficinas de trampolim afetivo e imaginário. Ao propor estratégias para formar crianças leitoras e produtoras de poemas, a autora e seu grupo de pesquisa destacam a necessidade de que os poemas estejam em todos os momentos da vida escolar, inclusive em alguns a que o grupo intitula “talleres de trampolín afectivo e imaginário” (oficinas de trampolim afetivo e imaginário). Tais oficinas, conforme Jolibert (1995, p. 57), permitem que as crianças “ponham seu imaginário a trabalhar, a partir de uma situação de desencadeamento, a que denominamos situação trampolim, aproveitada ou provocada pelo professor; experimentem seu poder de criação sobre a língua em produções originais de poemas”. As oficinas de trampolim afetivo e imaginário funcionam a partir de uma situação de partida, que ative o imaginário do grupo, que suscite emoções e que provoque imagens. Por isso, não elas têm compromisso preponderantemente cognitivos, mas sim existenciais. As T.A.I. (“Talleres de Trampolín Afectivo e Imaginario”) devem ocorrer em um momento e em um espaço marcadamente diferenciado das demais atividades de aula.
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Para trabalhar com o poema “Canção da janela aberta”4, a situação de partida pode ser a cantiga popular “Lá na ponte da Vinhaça”. Câmara Cascudo, como já foi dito anteriormente, destacou algumas variantes para essa cantiga, como “ponte da Aliança”, “corda da Viola”, “do Gavião” e “ponte das Agulhas”. A opção pela variante “Ponte da Vinhaça” deveu-se ao fato de a palavra “Vinhaça” constituir rima com a palavra “passa”, o que marca significativamente o limite de cada verso. No primeiro momento da atividade, momento da percepção auditiva, o grupo deve se dividir, aos poucos, para formar um “jogral”. Inicialmente, todos cantam, os dois primeiros versos da cantiga (“Lá na ponte da Vinhaça / Todo mundo passa”). Aos poucos, os grupo vai se subdividindo até cada um ter as seguintes atribuições: s Primeiro grupo: Esse grupo deve cantar os dois primeiros versos da cantiga (“Lá na ponte da Vinhaça / Todo mundo passa”); s Segundo grupo: Esse grupo deve cantar os versos seguintes da cantiga (“As costureiras fazem assim / As costureiras fazem assim, assim, assim...”); s Terceiro grupo: Esse grupo deve dizer os versos de Quintana “Passa a nuvem, passa estrela, / Passa a lua na janela”; s Quarto grupo: Esse grupo deve dizer os versos de Quintana “Deito-me ao fundo do barco, / sob os silêncios do céu”. No segundo momento, o da discussão, o professor, junto com os alunos deve estabelecer comparações rítmicas, fônicas, semânticas e sintáticas entre a cantiga “Lá na Ponte da Vinhaça” e o poema “Canção da janela aberta”, de Mario Quintana. Por se tratar de uma proposta que se inspira no modelo de oficina T.A.I. (Talleres de Trampolín Afectivo e Imaginário), descritos por Jolibert e equipe, cuja finalidade é o despertar do imaginário do grupo, o suscitar de emoções e a provocação de imagens, os momentos de discussão não devem ter compromisso preponderante com um direcionamento interpretativo, mas com a livre expressão acerca do que os poemas trabalhados despertam nos participantes. Esse momento deve servir, antes, para a conscientização do modo pelo qual foram compostos os poemas trabalhados, sem a preocupação em aprofundar teorias da versificação, bem como da retórica. No terceiro momento, o da criação, cada participante é convidado a escrever um texto, em forma de poema ou não, cujo título seja “Da minha janela, vejo...”. Após a produção dos textos, é necessário que todos sejam partilhados, quer pela leitura oral, 4 O poema “Canção da janela aberta” encontra-se em anexo a esse texto.
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quer pela silenciosa, através de saraus, exposições etc. Ao descrever os diferentes momentos das oficinas de trampolim afetivo, Jolibert destaca a importância desses momentos de socialização, que chama de “intercâmbios e interações”: “Para que todos os meninos possam cultivar sua imaginação, parece-nos indispensável socializar os achados como microtrampolins que reativam os imaginários individuais” (Jolibert, 1995, p. 59). Uma outra estratégia para criação de poemas a partir de “Canção da janela aberta” é a elaboração de “janelas imaginárias”, com paisagens, pessoas, costumes de diferentes lugares. Cada aluno, num exercício de descentramento, deve-se colocar no lugar da paisagens/pessoa ou viver o costume mostrado na imagem que recebeu. É importante que, antes da produção, sejam descritas as sensações que a imagem trouxe a quem vai escrever o poema. Tal atividade proporciona a seus participantes a compreensão de que o poema não é uma mera transposição das emoções de quem escreve, mas um entrelaçar dessas emoções com as emoções humanas, em uma forma lingüstica trabalhada. Em seu texto “Tradição e talento individual”, publicado em 1920, T.S. Eliot defendeu que o poeta deve desenvolver a consciência do passado e, também, continuar a desenvolvê-la ao longo de sua carreira. Para expor sobre relação autor-poesia, Eliot criou uma analogia entre o fazer poético e a catálise. O autor destaca a necessidade do filamento de platina para que se forme o ácido sulfuroso. Apesar de estar presente no processo de formação do ácido sulfuroso, o filamento de platina não o afeta. Diz Eliot: A mente do poeta é o filamento de platina. Ela deve operar parcial ou exclusivamente sobre a experiência do homem propriamente dito, mas quanto mais perfeito o artista, o mais separado estará dele o homem que sofre e a mente que cria; o mais perfeitamente a mente vai digerir e transmutar as paixões que são seu material (Eliot, 1920, cap. II, disponível em http://www.bartleby.com/200/sw4.html, acesso em 29 de março de 2006).
A poesia, tal como propôs Eliot, não deveria ser feita a partir de uma única emoção, a do próprio poeta, mas a partir de várias, das quais o poeta seria o porta-voz. Vazia de si mesma, a mente do poeta passava a ser o receptáculo que armazenava diferentes vivências, sensações, frases, imagens, partes que lá permanecessem, até que fossem unidas no poema, para formar um novo todo. Para Eliot, o poeta não tinha uma personalidade para expressar, mas uma combinação de impressões e experiências importantes para os seres humanos em geral. Por isso, a tarefa do poeta não era a busca de novas emoções, mas o resgate das cotidianas, trabalhadas no interior do poema. Essa proposta não pretende, de forma alguma, que a escola seja responsável pela formação de poetas, mas objetiva que,
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dada a urgência em se resgatar o poema na sala de aula, cada aluno possa resgatar o sentido da poesia em seu cotidiano, assim como vivenciar o processo de escrita do poema. Afinal, diz-nos Quintana sobre janelas, poemas e poetas: Emergência Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Poe isso é que os poemas têm ritmo – para que possas, profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado. (Quintana, 2005, p. 46) 7 Juntando as mãos: uma breve conclusão para essa roda de ciranda Sem dúvida, ler e escrever devem ser a viagem empreendida por aqueles que freqüentam a escola. Viagem essa mediada por professores, diretores, bibliotecários, todos os profissionais vinculados à educação. Como todos os trajetos, ela tem seus percalços, seus acidentes, mas também suas paisagens inéditas, suas praias intocadas... No caso da leitura e da produção de poemas, muito ainda se tem a fazer, mas sempre buscando resgatar do universo oral a essência do poema e dos vínculos com o corpo e com a voz que o precedem. Assim como Quintana fez em Canções, cabe a nós, professores, resgatar do universo oral dos alunos a emoção necessária à compreensão e à escrita do poema oral (cantigas de roda, de ninar, parlendas, adivinhas, quadras populares), para, então, aproximar leitores jovens e crianças da poesia escrita de origem autoral. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1981. ARROYO, Leonardo. Poesia para crianças. In: Literatura infantil brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1969. BUENO, Silveira. Manual de califasia e arte de dizer: para uso das escolas normais e cursos de declamação. São Paulo: São Paulo, 1930. CAMARGO, Luís. A poesia infantil no Brasil. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Lima-Hanover, ano 27, n. 53, p. 87-94, 1º semestre del 2001.
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[Também disponível em: http://www.blocosonline.com.br/literautra/prosa/artigos/arti021.htm; acesso em 17 out. 2005.] CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1978. CAVALLO, Guglielmo, CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. v. 2. São Paulo: Ática, 1999. p. 203-227. ELIOT, T. S. Tradition and individual talent. In: ELIOT, T. S. The sacred wood: essays on poetry and criticism. Disponível em http://www.bartleby.com/200/sw4.html, acesso em 29 de março de 2006. HAUSER, Arnold. Sociología del arte. v. 4. Barcelona: Labor, 1977. JOHNSON, W. R. The idea of lyric. Bekerley and los Angeles: The University of California Press, 1982. JOLIBERT, Josette; SRAIKI, Christine; HERBEAUX, Liliane. Formar niños lectores y productores de poemas. Santiago de Chile: Dolmen, 1995. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira – história, autores e textos. São Paulo: Global Universitária, 1986. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MELO, Veríssimo de. Folclore infantil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. PERROTTI, Edmir. A criança e a produção cultural. In: Zilberman, Regina (Org.). A produção cultural para a criança. 4. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 9-27. PIAZZA, Valter F. Boletim catarinense de folclore, ano VI, nº 22, Florianópolis, janeiro de 1956 – disponível em http://jangadabrasil.com.br/outubro38/cn38100a.htm, acesso em 27 de maio de 2006. Poesia infantil. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1996. QUINTANA, Mario. Apontamentos de história sobrenatural.São Paulo: Globo, 2005. QUINTANA, Mario. Canções. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1982. SPINA, Segismundo. A lírica trovadoresca. São Paulo: Edusp, 1996. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ANEXO CANÇÃO DA JANELA ABERTA Passa nuvem, passa estrela, Passa a lua na janela... Sem mais cuidados na terra, Preguei meus olhos no Céu. E o meu quarto, pela noite Imensa e triste, navega... Deito-me ao fundo do barco, Sob os silêncios do Céu. Adeus, Cidade Maldita, Que lá se vai o teu Poeta. Adeus para sempre, Amigos... Vou sepultar-me no Céu! (Quintana, Mario. Canções. Porto Alegre: Globo, 1946)
Gláucia Regina de Souza (1966) é natural do Rio de Janeiro/RJ. Possui bacharelado em PortuguêsLiteratura, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e especialização em Literatura Infantil, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Fez o mestrado em Educação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) e o doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professora do Colégio de Aplicação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem experiência na área de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura, com ênfase em Literatura Infantil, atuando principalmente com os seguintes temas: literatura infantil, poesia, literatura e escola, produção de texto e interdisciplinaridade. Algumas publicações da autora SOUZA, Gláucia de. Bestiário. Porto Alegre: Projeto, 2006. SOUZA, Gláucia de. Cantigas de ninar vento. São Paulo: Paulus, 2007. SOUZA, Gláucia R. R. Grande Sertão: algumas reflexões acerca do narrar de Riobaldo. Letras de Hoje, v. 40, n. 2, p. 53-61, 2005. SOUZA, Gláucia R. R. A mão direita tem uma roseira: quando os versos se movem com o corpo. Projeto: revista em educação, v. 6, p. 39-41, 2002. SOUZA, Gláucia de. Tecelina. Porto Alegre: Projeto, 2002.