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AUTONOMIA NA PÓS-MODERNIDADE: UM DELÍRIO? Mario Fleig

Introdução Autonomia do sujeito é uma das maiores conquistas da modernidade, inaugurada conceitualmente por Descartes (2002), a partir de seu prínicipio de recusar tudo que não esteja submetido ao exame da razão. Este princípio, de aplicação universal, propugna a refundação de todo saber por meio do aval da certeza subjetiva. Isso abarca tanto a refundação das ciências quanto a refundação das normas que regem as escolhas do sujeito individual. Deste modo, tanto as ciências quanto a moral entram em um novo paradigma. No campo da refundação da moral, vemos que a autonomia da vontade se relaciona com a noção de emancipação, ou seja, recusa qualquer lei que venha do outro e que não tenha passado pelo exame da razão. Trata-se, então, da radical recusa de um outro que não seja o próprio eu, ou o próprio homem ou a própria razão. A autonomia da vontade, como se vê, entra em choque como o modelo tradicional de fundamentação das normas morais. Assim, autonomia passa a significar repúdio de qualquer ordenamento heterônomo, como a lei sagrada e transcendente, imposta a partir de um Outro, seja na forma da religião ou da tradição. Positivamente, a autonomia da vontade significa, segundo a formulação de Kant (1980), com base na noção de liberdade proposta por Rousseau, a obediência à lei que nós mesmos nos prescrevemos, ou seja, a capacidade apresentada pela vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno. Kant, na sua busca de uma fundamentação da moral, que não encontra na teoria aristotélica da prudência e das virtudes, transforma a noção de liberdade de seu antecessor em autonomia da vontade, no exercício da qual situa o imperativo categórico, princípio supremo da moralidade. Negativamente, a autonomia da vontade se define pela negação de qualquer heteronomia no campo da normal moral, ou seja, que o indivíduo possa agir guiado por princípios que a pró-


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pria razão se autodetermina e livre de qualquer determinação alheia, de qualquer fator estranho ou exógeno com uma influência subjugante, tal como uma paixão e uma inclinação afetiva incoercível (subjetivamente) ou uma lei externa (objetivamente), vinda de uma ordem divina ou da tradição. Negativamente, a autonomia da vontade significa, então, não depender de nenhum outro que não seja o eu, o próprio ser humano e a própria razão. Assim, a autonomia do ser humano significa a capacidade de se autogovernar e o direito de um indivíduo tomar decisões livremente, no âmbito moral e no âmbito intelectual, ou seja, a autonomia da vontade remete ao princípio segundo o qual a vontade expressa livremente por pessoa capaz, e dentro das normas legais, deve ser considerada soberana. Não vamos aqui desenvolver e discutir esta importante e complexa teoria. Contudo, aonde levaria a exacerbação do princípio de não depender de nada e de ninguém, rompendo inclusive com a idéia kantiana de autonomia como submissão a lei comum calcada na solidariedade? Nossa hipótese é que encontramos na pós-modernidade a emergência de novos ideais que propugnam uma sociedade de indivíduos que reúne meros sujeitos de direitos, comandados por imperativos de gozar a qualquer preço, sem depender de ninguém e de nada e sem limites. Denominamos esse fenômeno emergente de delírio de autonomia e queremos aqui discuti-lo. Retornando à modernidade, neste mesmo período da conceituação da noção de autonomia da vontade, Adam Smith (1999), em sua Teoria dos sentimentos morais, propõe um outro caminho para a fundamentação da moral. O pensamento de Smith, tanto em economia quanto em filosofia moral, traz a marca do esforço constante de formular a teoria a partir da experiência. Partindo, então, da experiência, o que implica situar-se já no horizonte da busca de uma fundamentação não-transcendente da moral, ele procura responder a dois grupos de duas questões fundamentais: em que consiste a virtude e a justiça e o que define a felicidade e a plenitude do ser humano? Como se formam os sentimentos morais e o que nos leva a considerar uma conduta como correta e outra como errada? Sua hipótese é que a consciência moral não parte inicialmente de regras nem de princípios, mas da experiência concreta do sentimento, especificamente do fato da simpatia, cujas implicações normativas se evidenciariam gradualmente. Deste modo, a origem dos sentimentos morais, segundo Smith, se encontra na operação espontânea de um hábito mental socialmente adquirido, que é a simpatia. Ora, a simpatia supõe a capacidade de acompanhar afetivamente aos outros, constituindo o núcleo e a originalidade de sua ética. Trata-se da capacidade humana de se transportar na imaginação para o lugar e a situação dos outros, a começar pelos mais próximos afetivamente, e, deste modo, procurar ver e sentir


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as coisas como supomos que os outros estão vendo e sentindo. Isso se refere à abertura para os outros, para seus afetos e sua capacidade afetiva. Somente a partir do senso de conveniência é que se pode desenvolver a capacidade de julgar a propriedade e o mérito das ações, assim como olhar para nós mesmos de fora, ocupando um ponto de vista externo e neutro (espectador imparcial). Bem, não vamos ter como desenvolver todo o caminho proposto por Smith, mas apenas apontar para sua fina descrição do que resulta no sentimento de solidariedade com o outro. Deste modo, nossa hipótese é que o delírio de autonomia, à luz da concepção de Smith, se instalaria pela suposição de que se pode dispensar o compromisso consigo mesmo e com o outro, correlato do novo ideal, que se desenha no social, de viver junto mais sem outrem. O delírio de autonomia na nova economia psíquica Autonomia da vontade, correlato do conceito de liberdade, é uma das maiores conquista da modernidade, com já afirmara Hegel. Nossa proposta não é colocar em questão essa conquista, seja pela suposição de que ela seria a causadora dos infortúnios da vida coletiva atual e nem mesmo sugerir um retorno ao modelo de organização social pré-moderno. Contudo, os desdobramentos da exacerbação dos ideais de autonomia têm produzido efeitos sociais e subjetivos inquietantes, em formas que se apresentam em novos ideais configurados em modo de vida em que não haveria limites para nada, gozar a qualquer preço etc. Enfim, a autonomia alcança o limiar do delírio quando o ideal se orienta pela abolição da dimensão do impossível, ou seja, o ideal de vida perseguido pressupõe que tudo seja possível. Outro traço que caracteriza o que passou a ser denominado de pós-modernidade é, além da recusa de qualquer limite, a descrença generalizada em qualquer referência que seja transcendente ao contexto vivido. O delírio de autonomia poderia ser descrito, então, como a dissolução dos fundamentos da moral, à medida que a consistência da alteridade desaparece (o outro já não conta como uma das referências que orientariam a vontade na busca do que seria bom para o próprio sujeito em seu convívio com o semelhante), assim como a dimensão da autorecriminação. Esta problemática da expansão da descrença em ideais partilhados e no outro e o apagamento da auto-recriminação, somada ao advento do ideal de gozar a qualquer preço, requereria uma retomada cuidadosa da história da fundamentação da moral à luz da elaboração da noção de liberdade na modernidade. Poderemos tocar apenas em alguns aspecto deste percurso. Quais os determinantes disso? Trabalhamos com a hipótese de que estamos vivendo o advento de uma nova economia


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psíquica, assim denominada por Charles Melman (2005). Ela pode ser caracterizada como o efeito da economia neoliberal globalizada somado ao impacto subjetivo das tecnologias digitais e das transformações no campo da biológica (novas formas de sexualidade e de reprodução etc.), correlato a um progressivo declínio da dimensão do grande Outro (conforme a denominação de Lacan (1966)) e da lógica trinitária (própria da linguagem cotidiana, organizada pelas operações metafóricas de substituições e criação), e da supremacia crescente da lógica binária (sistema de informação), que determinam o deslocamento da responsabilidade centrada no sujeito para a responsabilidade atribuída aos procedimentos e enunciados sem sujeito. Esta sucinta caracterização de uma nova economia psíquica, que teria como um de seus produtos a emergência de sujeitos organizados na lógica da autonomia delirante, requereria o exame dos efeitos sociais e subjetivos das grandes revoluções que marcaram a Modernidade e cuja continuidade e desdobramentos vivemos na atualidade: a revolução da ciência moderna, as revoluções sociais (Revolução Inglesa, Revolução Americana, Revolução Francesa, Revolução Russa, Revolução Chinesa, Revolução de Maio de 1968 etc.), as revoluções biológicas, as revoluções industriais, as revoluções na informação, a revolução digital etc. Poderemos apenas tomar alguns detalhes. Quais poderiam ser, então, as razões que levam o ser humano a crer que tem poderes ilimitados nesse mundo? Uma das razões poderia ser encontrada no conjunto de fatores que determinaram o advento de uma nova economia psíquica. Hoje, a felicidade e a vida boa já não resultam mais da harmonia com o ideal de cada um partilhado socialmente, mas do objeto que possa trazer satisfação, equivalente ao objeto de consumo ofertado sem limites. São novos os modos de pensar, de ponderar, de fazer sexo, de conviver, de namorar, de constituir família, de viver os ideais etc. A nova economia psíquica é organizada pela exibição de prazer e determina novos deveres, dificuldades e sofrimentos. Os novos sujeitos tendem a operar no puro registro da demanda, ou seja, se há um desejo ou carência, a satisfação do mesmo se torna legítima. A demanda é então de encontrar sua satisfação, tomada como um direito, exigível a qualquer preço. A posição da autonomia tradicional, orientada por princípios que marcavam os limites, está em falta, e em seu lugar se encontra o excesso como norma. Uma outra razão, correlata à anterior, é que esta formidável liberdade é estéril para o pensamento, visto que o pensamento se organiza em torno daquilo que produz obstáculo. A queda dos obstáculos dispensa o pensar e apaga a condição de divisão própria do sujeito. Se o sujeito não é mais dividido, não há


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mais motivo para se interrogar sobre sua própria existência. E, na falta das referências que o pensar demarca, o indivíduo fica exposto, enfraquecido e deprimido, ansiando pela confirmação alheia, que busca nos objetos ofertados ao consumo, precipitando-se com freqüência em estados depressivos diversos. Estas patologias novas, que tanto atingem os indivíduos quanto o social, podem ser detectadas em uma espécie de perversão social generalizada, na medida em que o princípio kantiano de que jamais deveríamos tomar a pessoa como meio, mas somente como fim, parece já não contar mais. Quando alguém se deixa tomar como objeto do saber técnico, onde fica a interrogação sobre o desejo e o que resta de sua própria enunciação? O apagamento da história, seja pela destruição das marcas diferenciais presentes nos monumentos, na arquitetura de cada época etc., seja a dissolução da relação com tempos descontínuos, reflete o sujeito deprimido contemporâneo, homogeneizado e sem história. A autonomia como ideal da modernidade reaparece exacerbada na suposição de que se pode dispensar o compromisso consigo mesmo e com o outro, exceto o de gozar sem limites e a qualquer preço, correlato ao novo ideal, que se desenha no social, de viver junto mais sem outrem. Sabemos, apenas a título de exemplo, da dificuldade crescente das novas gerações em estabelecer relações de compromisso com seus parceiros, prevalecendo as formas de relações leves, fluidas, rápidas etc. A ponta nevrálgica desta cadeia emerge, em seus efeitos socialmente visíveis, nas formações paranóicas, nas alucinações tóxicas e nos surtos de violência incontida. O que ocorre é que o Outro, como referente da lei simbólica, entra em declínio e se inicia um crepúsculo do mundo, correlato à suspensão de toda imunidade psíquica, ficando o sujeito tomado em uma relação dual, com incidências mortíferas. Tais efeitos psíquicos e sociais se evidenciam no declínio das condições de enunciação, no incremento da impessoalidade (formações de massa) e em funcionamentos que pervertam as funções estruturantes da condição humana. Estes efeitos denominamos de patologias da responsabilidade, que aparecem de modo generalizado ao lado da progressiva impessoalização das relações de trocas (laços de parentesco, troca de bens e trocas lingüísticas). Ao lado de um crescente mal-estar na subjetivação, ocorre a implementação de um mundo sem-limites, que se reflete em novos modos de desresponsabilização. Seus efeitos aparecem, em sua incidência subjetiva, nas patologias do espaço (fobias, síndromes de pânico), nas patologias da imagem corporal (hiperatividade, transtornos na relação com o outro), nas patologias da oralidade (demanda desmedida de direitos, disparidade na alimentação), nas patologias do tempo (homogeneização do tempo, apagamento das marcas históricas, fim das narrativas,


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depressão), no incremento da paranóia (lógica do um: ou eu ou ele, sem mediação possível) e nas formas de instrumentalização de si mesmo e do semelhante (o sujeito está convencido de saber sobre qual é o objeto adequado para seu gozo). As incidências sociais mais relevantes, do ponto de vista das condições à vida em comum, do delírio de autonomia se manifestam na irrupção de formas inusitadas de violência contra o outro, contra si mesmo e contra os objetos. Qual seria a origem e a especificidade da violência que irrompe atualmente no meio urbano, na família, na escola, nas ruas? Não parece que podemos tomá-la com uma reedição da violência descrita como resultante do conflito (entre gerações, grupos, classes, nações etc.), segundo a hipótese hegeliana do negativo como motor da dialética que leva à sua superação. Assim, em contraposição com as formas clássicas de terror, como o terror desencadeado pela Revolução Francesa ou os genocídios a partir do século XX, aventamos a hipótese de uma violência fora do conflito e, além disso, oriunda da impossibilidade de conflito e confronto com as diferenças e interdições, organizada segundo a lógica infernal imposta pelo imperativo de gozar a qualquer preço e sem limites. Esta nova violência, considerada como um efeito tardio e inesperado da Modernidade, impediria que a violência estrutural própria da condição humana pudesse ser dialetizada, levando os sujeitos e os grupos a abandonarem o campo da fala e da linguagem, em troca da imersão no imediato e instantâneo. A sustentação de nossa hipótese implica: afirmar a tese da existência de uma violência estrutural da condição humana, que se apresenta nos sujeitos e nos grupos por meio da diferença simbólica entre gerações e lugares ocupados, sendo a autoridade simbólica o reconhecimento desta diferença. A subversão e deslegitimação do lugar simbólico da autoridade (lugar dessimétrico, transcendente, antes ocupado por Deus, pelo rei e pelo patriarca, mas que não pode ser confundido com eles), decorrente da confusão entre o ideal democrático e o que se pode denominar de democratismo (afirmação da simetria absoluta no discurso e não-reconhecimento da disparidade estrutural de lugar, específica da linguagem humana), impedem, por não terem mais a quem endereçar a violência, o conflito que permitiria a dialetização da violência estrutural (equivalente à pulsão de morte freudiana), destinando a geração jovem a abandonar o exercício do aprendizado do limite. Em lugar do embate com a geração precedente, engendra-se uma violência suplementar, que especifica aquela que encontramos hoje. Esta nova e inusitada violência faz sentido, segundo nosso raciocínio, à luz da noção de delírio de autonomia que propugnamos.


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Tradição e modernidade Para poder situar do modo mais pertinente os impasses próprios da modernidade e da pós-modernidade, necessitamos inicialmente delimitar o próprio conceito de modernidade. Propomos preceder pelo método de oposição: o que se opõe à modernidade é uma sociedade e uma cultura organizada segundo um modelo denominado de tradicional. Uma sociedade como um todo, conforme Dumont (1966; 1983), ordena-se segundo três princípios, que podem ser identificados tanto na modernidade quanto no que se denomina, de um modo abrangente e suficiente para nossa análise, de pré-modernidade ou sociedades tradicionais. O primeiro princípio, que rege a distribuição da sociedade entre hierárquicas e igualitárias, pressupõe que, por natureza, os seres humanos seriam desiguais. Nascem desiguais e continuam assim, porque faz parte de sua natureza. E não há nenhuma aspiração em ser diferente do que é sua natureza, cabendo apenas realizá-la, que como tal já está dada. Este modo de organização social e cultural, em múltiplas variantes, determina as concepções sobre o homem, a sociedade e o universo nas sociedades calcadas na tradição. A desigualdade como princípio organizador resulta numa forma de laço social altamente viável, pois, por meio do ordenamento de todas as entidades de forma hierárquica, determina uma intensa estabilização da cada sujeito num dado lugar social. Aliado a esse princípio, temos o segundo princípio, na oposição entre tradição e autonomia, em que o poder, a autoridade e a verdade coincidem sempre com a tradição. O campo dos ideais, como instância de onde se articula a normatividade, é sustentado pela força da tradição. Podemos compreender, então, que o ideal de vida de um sujeito situado numa sociedade pré-moderna é ser no amanhã como os seus antepassados foram ontem. Isto viabiliza a transmissão cultural, com rapidez e eficiência, de geração a geração, dispensando especialistas nesta função, como professores, instrutores etc. Não existem os problemas da modernidade como, por exemplo, no campo da educação, pois os que aparecem são resolvidos pela consulta à tradição, conhecida por todos e preservada na memória histórica, carregada de pai para filho, numa transmissão eficiente. A estabilidade social é um dos efeitos mais marcantes, pois se o ideal de amanhã é que ele repita o que foi ontem, e isso como critério do verdadeiro, então, manter-se fiel e repetir os ancestrais será sempre tomado como compondo essencialmente o campo dos ideais partilhados. À luz desta formulação, podemos compreender por que, numa cultura tradicional, os ideais partilhados de modo generalizado têm como efeito uma normatividade altamente coercitiva, bem diferente dos ideais da mo-


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dernidade, não partilhados de forma homogênea e cuja normatividade carece de coerção. O terceiro princípio, na oposição entre holismo e individualismo, que organiza uma sociedade tradicional afirma que o valor se encontra sempre no todo. O todo, como valor prevalente nas suas diversas formas possíveis, se representa como povo, tribo, clã, família etc. Então, se há alguma coisa a ser defendida em primeiro lugar é sempre o valor prevalente, no caso o todo. E a vida de cada um só faz sentido na medida em que contribuir para preservar o valor máximo, o grupo ao qual pertence. Também a vida de cada um só faz sentido na medida em que ele realiza aquilo que já foi realizado pelos antigos. Quanto mais um indivíduo der de si para o grupo e quanto mais próximo estiver dos antepassados, maior reconhecimento receberá no próprio grupo. Daí que o lugar do ancião é especial, pois este se encontra mais perto da fonte de autoridade, a tradição, e pode testemunhar o quanto já pôde dar e ainda dá para a sobrevivência do valor prevalente, o grupo. Na modernidade, o lugar do ancião fica transtornado, visto que o valor de um indivíduo não mais se mede pelo seu potencial altruísta e nem por ser depositário da tradição, mas é assegurado, principalmente, pela via do acúmulo de bens. O projeto de fazer uma sociedade orientada pela razão é o que caracteriza a modernidade. A modernidade é um projeto histórico que vem se desenvolvendo, que tinha, e ainda tem, como ideal organizar uma forma de civilização orientada pela razão. A razão faz o seu exercício essencialmente pelo caminho da crítica, de modo que os três grandes princípios ordenadores das sociedades não-modernas – hierarquia, tradição e holismo – foram progressivamente postos abaixo. Assim, a modernidade realiza, por sua operação crítica, a destruição do que existe de tradicional na cultura (a crítica à dessimetria social e a crítica ao valor da tradição) e promove o advento do individualismo, aliado aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A difusão dos ideais da modernidade, firmando-se progressivamente pela crítica aos segmentos da sociedade tradicional, somando-se aos avanços das ciências modernas e aos inventos tecnológicos decorrentes, faz engrossar as fileiras de adeptos, cujo entusiasmo pelos novos ideais conflui na irrupção das revoluções sociais. São três grandes revoluções sociais, precedidas pela Revolução Gloriosa de 1688: a Revolução Americana, a Revolução Francesa e a Revolução Russa de 1917, provocando efeitos enormes na cultura, desde o mais corriqueiro cotidiano até a organização do Estado em novas formas. Cada uma dessas revoluções tem a sua especificidade, mas se consideramos o lema central da Revolução Francesa (Liberdade, igualdade e fraternidade), ele significa o quê? Significa que, de um certo ponto de vista, todos são iguais? A igualda-


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de é posta como um ideal, não ainda efetivado, mas resguardado como direito de todo cidadão. Se de fato existe a desigualdade, isso é uma contingência histórica e depende das condições materiais dadas, mas na modernidade não há nada que possa justificar a desigualdade do ponto de vista dos direitos. É a afirmação da igualdade formal de todos os seres humanos. E o que significa a liberdade? No mínimo que cada um possa dirigir a sua existência e inventar até o limite que lhe permite a condição de cidadania, ao passo que na sociedade tradicional o que dirige a existência é a autoridade da tradição. O conceito de liberdade é um dos grandes avanços que a modernidade irá produzir, abrindo o espaço da inventividade de novas formas de existência, tanto individual quanto culturalmente. Rompe com a concepção do destino como algo que já está pronto e abre-se para o sujeito a possibilidade de inventar a vida, trilhar outros caminhos, como modo de autodeterminação. Contudo, imediatamente alguém pode objetar: e onde fica a tese freudiana de que nós somos determinados pelo inconsciente e sofremos o determinismo psíquico? Talvez a contribuição mais surpreendente na tematização do ideal de autonomia na modernidade é que cada um de nós pode, nesse projeto de modernidade, se responsabilizar pelo que se passa consigo, mesmo aquilo que ele não quer que seja de tal modo, ou seja, as determinações que escapam a nós mesmos. Ainda assim, somos responsáveis por elas. O ideal de fraternidade, como sabemos, tem suas origens no preceito do amor ao próximo e no pressuposto da filiação divina passível de generalização para todo gênero humano, como é enunciado no cristianismo. Certamente, tal ideal, reeditado no projeto da modernidade como ideal de fraternidade universal, resulta numa transformação da figura do estrangeiro, bem como numa modificação nas relações de parentesco, na posição do pátrio poder e no erotismo (as relações fraternas incrementam o recalcamento do sexual). Podemos ver, então, que os princípios da modernidade implicam numa quebra do conceito de desigualdade, de autoridade, assim como um deslocamento do todo como valor prevalente, determinando o advento do individualismo. Evidente que este não apareceu do nada, visto que tem uma longa história. Sob este aspecto, a modernidade vai ser a aplicação generalizada da figura do renunciante à tradição, isto é, a modernidade produz, então, essa nova figura humana chamada indivíduo, que se compreende como sendo único, como sendo por si mesmo, marcado pelos ideais da igualdade, liberdade e fraternidade. Ou seja, o modo de subjetivação pré-moderno, regulado pela tradição que determina lugares relativamente fixos de assujeitamento, expresso na noção medieval de pessoa, é progressivamente substituído pelo advento de meros indivíduos. Ora, a condição


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de meros indivíduos, assim como a homogeneização do espaço e do tempo na física moderna, produz uma problemática nova relativa ao modo de diferenciação e singularização de um grupo e do indivíduo. Ao passo que na sociedade pré-moderna a subjetivação se fazia pela personalização, como pertença a uma coletividade que oferecia um nome, um título e um lugar social preestabelecidos e regulados pelos ideais de reproduzir a tradição, na modernidade se realiza o ideal de independência pelo surgimento de uma massa anônima de meros indivíduos. O individualismo como expressão do ideal de igualdade e liberdade só pode se afirmar à medida que opera o recalcamento da própria tradição onde se funda. Sabemos, a partir da formulação freudiana sobre o narcisismo (Freud, 1914c), que a constituição do sujeito é determinada a partir dos ideais veiculados pelos pais. Os ideais se apresentam sempre como um imperativo para o sujeito. Ora, em termos culturais, os ideais da modernidade se expressam no imperativo que cai sobre o sujeito: “seja livre”. Este imperativo é um absoluto impasse, pois realizá-lo é reconhecer-se não livre, e ser livre é não segui-lo, o que resulta em negar a própria liberdade. Resta para o sujeito apenas a saída pelo recalcamento da tradição que o funda, buscando um caminho de autofundação subjetiva. Dado que a condição de meros indivíduos é insustentável e insuportável, na modernidade vamos encontrar diferentes estratégias para tentar resolver tal impasse. Uma transformação importante na modernidade aparece com o surgimento da prevalência do Eu, como ocorre na fundação que Descartes (2002) faz dos saberes baseado no cogito, ergo sum, demarcando um novo lugar de fundação que não é mais a autoridade, nem a divindade, nem a tradição, mas sim a subjetividade. Essa formulação de Descartes, que é correlativa ao nascimento do discurso da ciência moderna, tem sua progressiva explicitação ao longo do desdobramento do projeto da modernidade como um ideal de autonomia. O idealismo alemão leva esse ideal às suas últimas conseqüências, na formulação do eu absoluto que se funda a si mesmo. É o paradigma da representação, no qual um ente somente é fundado como objeto de uma representação, e assim podendo ser submetido ao cálculo e produzido tecnicamente por um sujeito que ocupa o lugar de fundamento epistemológico, ético e ontológico. Este modo de fundamentação próprio da modernidade foi apontado e dissecado por Heidegger (1927; 1946), que nos mostra que a entificação do ser se dá pela afirmação da subjetividade como sendo o fundamento último, como sujeito pleno, reflexivo, auto-centrado, unificado e autônomo. Com o advento da supremacia do sujeito epistêmico, as crenças e verdades devem ser fundadas na certeza subjetiva alcançada pelo exercício da razão e não mais a partir da autoridade e da tradição. Como


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sujeito ético, as regras de ação passam a se originar no próprio âmbito das escolhas do sujeito, passando pela discussão e argumentação da comunidade dos iguais, descartando-se os padrões tradicionais. E o próprio estatuto ontológico da realidade se constitui a partir da representação que o sujeito faz das coisas, mediante idéias claras e distintas. O fundamento último de tudo é o próprio sujeito epistêmico, não apenas como sujeito empírico, mas sujeito como razão que se realiza na história. Autoconsciência e autodeterminação são os traços específicos do sujeito moderno como razão que se submete ao próprio tribunal da razão. A razão é guia de si mesma. Em outras palavras, é o ideal de construir uma sociedade melhor do que as anteriores a partir da ciência como saber que pretende alcançar a plenitude. Contudo, mesmo que a busca de sustentação do sujeito moderno pela expansão da esfera privada, por meio do fomento da interioridade como lugar de fortalecimento subjetivo, tenha contribuído para a identificação do sujeito, a via da autoconsciência e autodeterminação se mostrou insuficiente. A solução apresentada pela construção do sujeito epistêmico não dá conta da problemática em jogo. Quais são as conseqüências da idéia de liberdade e do ideal de autonomia? Que efeitos subjetivos e sociais ela produz? O ideal de autonomia significa: “Eu me fundo a mim mesmo”. Levado ao seu extremo, esse ideal implica conceber o mundo e a história centrados no indivíduo. O ideal de autonomia se estrutura a partir de um recalcamento da tradição, significando um apagamento progressivo das marcas e referências que assinalam ao sujeito o lugar a ocupar e como fazê-lo. Se, por um lado, isso corresponde, na história da modernidade, ao enfraquecimento e declínio da função paterna, por outro lado, significa a afirmação exacerbada desse ideal, na medida em que recusa que o sujeito esteja constituído de um outro lugar que não a partir de si mesmo. Um primeiro efeito se encontra no aparecimento de um estado de paranóia constante. Paranóia constante significa que a subjetividade, tomada nesse ideal que recalca a tradição, se apreende sempre numa fundação por auto-referência. A paranóia se caracteriza exatamente pelo predomínio da auto-referência, numa hiper-interpretação dos eventos, tomados como se referindo ao próprio sujeito. A relação com o semelhante não encontra mais uma referência comum que permita a manutenção das diferenças, ou seja, se o semelhante não for como o próprio sujeito, é tomado como uma ameaça, transformando-se num perseguidor. Isto se dá na medida em que a referência terceira, situada para além do próprio sujeito, tende a cair, entrando em colapso. Do paradoxo do ideal de autonomia exacerbado se pode deduzir tanto o risco de colapso do próprio sujeito quanto do te-


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cido social, constituindo um dos traços que definem o sintoma social de nossa cultura. Posto isso de um modo muito esquemático, pode-se fazer a constatação do predomínio do ideal de autonomia sem limites como sendo algo marcante na contemporaneidade. Basta pensarmos rapidamente no que significam os ideais da Revolução Francesa, calcada na recusa da tradição. Tudo o que representava a tradição, como a nobreza, o rei, o sistema político, a religião, a economia, enfim, todas as figuras da tradição, foi simplesmente rejeitado e a grande bandeira tornou-se o ideal de ruptura de qualquer forma de hierarquia, ou seja, a conquista do ideal de igualdade e autonomia. Assim colocado, a união entre a recusa da tradição e a busca de um modo de fundação em si mesmo determinam as condições para o surgimento de um sistema de auto-referência. A grande crítica ao projeto da sustentação subjetiva por intermédio do sujeito epistêmico aparece no seio do movimento literário que é o romantismo. É uma crítica violentíssima à razão moderna e, ao mesmo tempo, tentativa de uma outra saída para a sustentação subjetiva, na forma de uma busca do abissal, no abismo de desespero, onde o sujeito poderia em algum lugar se agarrar e então produzir algo, sua própria singularidade. Para o romantismo, que conserva a tese central da modernidade do sujeito como fundamento autofundante, os sujeitos são fundantes de um mundo não pela razão calculadora e representacional, mas como sujeitos expressivos de uma natureza interior profunda. O traço que nos interessa ressaltar na tradição do romantismo é a implicação do próprio sujeito em sua questão, diferentemente do sujeito epistêmico, que se põe numa distância imposta pela disciplina científica. Sabemos que é no seio do romantismo que vai nascer a psicanálise. A psicanálise está ligada com essas produções do romantismo tardio. Então, ao lado da sustentação subjetiva por meio do sujeito epistêmico, emerge o que Lacan (1966), com base em sua leitura do legado freudiano, denominará, com todas as diferenças que se interpõem, o sujeito do desejo. Se o sujeito epistêmico encontra sua sustentação na construção de um saber e advém como resultado do processo de conscientização, de tomada de consciência sobre si mesmo, reflexividade autocentrada, o sujeito desejante, ao contrário, se estrutura a partir do que lhe falta e da falta que se situa excêntrica a si mesmo, como nos lembra Badiou (1994). Sobre o que lhe falta não há saber que dê conta, de modo que o desejo aponta sempre para a insuficiência do saber (ainda que não se possa dispensar este saber). Dispensar o saber que podemos alcançar, mesmo que precário, seria cair no irracionalismo e no obscurantismo, que podemos de algum modo situar no romantismo tardio.


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Então, o que constitui esse sujeito desejante é a interrogação acerca do que lhe falta e esta falta emerge como um intervalo, uma brecha na existência. Concebê-lo como brecha nos ajudaria a entender como ele pode ser apontado como algo que pode acontecer no todo de uma cultura ou numa biografia, e em cada caso como algo singular. Não reduzindo o que somos nem à pessoa, nem ao sujeito epistêmico, nem a mero indivíduo, podemos suportar que em nossa existência ocorra um rompimento como emergência de sujeito, como um acontecimento ao qual podemos ser fiéis. Isso já seria iniciar a discussão de uma alternativa ao delírio de autonomia: reconhecer a alienação constitutiva ao Outro que se impõe a todo sujeito e delinear o movimento dialético entre a necessidade da alienação e as contingências da separação. O pivô desse movimento se situaria no encontro com o impossível próprio a cada situação, limite intransponível, e que teria a propriedade de fazer cair a certeza da autonomia exacerbada. Autonomia e lugar de gozo Podemos considerar que um dos impasses nodais da modernidade é a busca da sanção simbólica que legitimaria ao sujeito ocupar o lugar de gozo que lhe diga respeito. Contudo, diferentemente de uma cultura tradicional, esta garantia oferecida pela sanção simbólica se encontra esfacelada no Ocidente hodierno em múltiplos e coexistentes sistemas de crenças e representações. Em decorrência desta elasticidade do simbólico, como registro do lugar de pertença e participação de cada sujeito, a definição do lugar de gozo a ser ocupado por cada um dentro do tecido cultural, como momento crucial da própria constituição do sujeito, fica jogada no impasse entre se colar às imagens veiculadas pelos ideais de gozo suposto sem falha na forma do consumo do objeto circulante ou se eternizar na indefinição do lugar de gozo. Ora, isto caracteriza precisamente o impasse subjetivo denominado adolescência. Como ocupar um lugar de gozo? O que sanciona o exercício efetivo do sujeito? A ambigüidade da sanção simbólica resulta na formação da culpa por seu ato ou a tentativa de se fazer reconhecer pela punição do Outro. Assim, podemos admitir que a modernidade nos apresenta uma solução substitutiva para o insuportável da falta constituinte na forma do sintoma social da adolescência. A não garantia do lado do Outro, como lugar da operação da sanção simbólica, é o grande problema da instauração do lugar subjetivo habitável por cada um de nós. As soluções próprias de nossa cultura se estruturam, então, como tentativas sintomáticas. O deslocamento do ideal de gozo que se apresenta na modernidade pode, por outro lado, ser considerado a partir da perspectiva da antropologia dos valores de Dumont (1983), segundo


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o qual uma sociedade não pode ser caracterizada e descrita sem se definir os valores priorizados. Ora, na cultura ocidental o valor prevalente se encontra no indivíduo, tomado não no sentido moral ou psicológico, mas como valor social principal. Seguindo o método comparativo, Dumont (1966; 1983) pode opor a cultura ocidental, centrada na primazia do indivíduo como valor social (individualismo), às demais culturas, ditas tradicionais, que se caracterizam pela primazia do grupo como valor social (holismo). Cada cultura produz suas próprias estratégias para preservar o que é o valor. Podemos acompanhar algumas destas estratégias na modernidade. Vejamos o que se passa com a questão do morrer e o advento da criança como dotada de valor. São dois temas tratados exemplarmente por Ariès (1960), que nos mostra a invenção da infância na modernidade e as mudanças diante da morte. Podemos partir do problema da manutenção do valor prevalente na cultura. Sendo o indivíduo o próprio valor social prevalente, quais são as estratégias que se organizam para preservar tal valor? Considerando que o desaparecimento de cada indivíduo coincide com o desaparecimento do valor prevalente, as estratégias buscaram preservar que algo de cada um de nós, como indivíduos, perdure para além da morte. Podemos sobreviver à nossa morte por meio de nossos filhos, por meio de nossas obras, por meio da autoria na invenção, por meio de imortalização de nosso nome etc. O que se passa com a criança? A criança vai ocupar o lugar do rei decapitado. O rei era o valor máximo. Ele é decapitado. Quem é posto no lugar do rei? A criança. É o que Freud diz: “Sua majestade, o bebê”. Por aí podemos compreender o investimento libidinal que se desloca para nossas crianças na modernidade, determinando o narcisismo como condição indispensável para uma subjetivação viável em nossa cultura. A morte de cada um de nós implica no risco extremo do desaparecimento do valor prevalente, ao passo que numa sociedade tradicional a morte do indivíduo não põe necessariamente em risco o valor prevalente naquela cultura. Pelo contrário, pode acontecer que a morte do indivíduo é o que vai propiciar que o valor prevalente fique preservado. Se para que o grupo não pereça é necessário que um morra, este vai fazer questão de morrer, vai morrer com honra, sendo imortalizado pelo seu grupo. Aí é que se situa a figura do mártir, de algum modo presente em todas as sociedades tradicionais: é aquele que não vacila em morrer para que o valor prevaleça. Isto determina sempre um fortalecimento do todo da cultura, preservando-se o valor como alocado no grupo, no laço social, como rede de parentesco e na tradição, que sempre se põe como algo a ser preservado para além de cada um. O deslocamento do valor prevalente para o âmbito do indivíduo, na modernidade, implica um progressivo esfacela-


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mento destes valores ditos tradicionais. Como a modernidade é uma invenção cultural sem par, ela se apresenta para nós como uma aventura, no sentido de que não temos termos de comparação e assim não temos uma referência que nos diga algo sobre o destino que nos está reservado. Ou seja, não sabemos se a modernidade é uma invenção cultural que dará as condições de viabilidade social e subjetiva adequadas ou nos conduzirá ao pior. Podemos até lastimar a perda dos valores próprios do modelo de cultura anterior, pois ali tínhamos parâmetros claros que tornavam possível uma definição do lugar de gozo adequado a cada um em cada momento. Sendo assim, morrer passa a ser algo que causa extremo horror para o sujeito moderno. Sobreviver a qualquer custo se torna a preocupação prevalente na existência. Preservar a imagem de si mesmo até alcançar a imortalidade é uma meta generalizada. Mas, certamente, a estratégia mais generalizada de preservar o valor se dá pela prevalência dos objetos, inicialmente no modo de acúmulo de bens, passando pelo consumo de bens até alcançar as formas de gozo dos bens (armazenagem de bens, consumo e ostentação de objetos e, mais extremamente, o gozo oriundo da destruição dos bens, na forma da pura depredação). Assim, se quiséssemos encontrar um traço que distingue a nossa cultura de todas as outras é este: somos uma cultura dominada pela prevalência dos objetos. A suposição que aí aparece é a de que por meio do objeto eu vou preservar o valor e que por meio do objeto eu vou alcançar a forma de gozo que a relação com o semelhante não me fornece. Podemos aí considerar duas incidências da prevalência do objeto: de um lado, situaríamos a raiz subjetiva do advento da economia de mercado, do acúmulo de capital, porque tudo isso visa ao acúmulo dos objetos, os objetos transformados em capital. É sempre a busca desesperada de uma garantia subjetiva de se fazer reconhecer como dotado de valor e preservar esse valor, na forma do valor passível de acúmulo, isto é, o capital. O que também está pressuposto é que o acúmulo de bens produziria uma garantia subjetiva que levaria o sujeito a viver melhor. Entretanto, a constatação empírica, cotidiana, é de que isto não diminui a angústia do sujeito, dado que os bens acumulados, consumidos e/ou destruídos, não alcançam produzir a garantia suficiente de que o valor prevalente está a salvo de risco. De outro lado, essa insuficiência da sustentação subjetiva, que tenta se resolver pelo acúmulo de bens, necessita se ancorar no sujeito epistêmico. É perfeitamente compreensível que para alguém poder juntar dinheiro precisa ter muita esperteza ou muita inteligência. Às vezes, não precisa ter nada de inteligência, só esperteza; depende do país. É uma espécie de efeito do sujeito epistêmico e, de outro lado, a prevalência do objeto, como um artefato


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para oferecer um gozo sem falhas. Por quê? Porque a forma de gozo que nós encontramos na interação com o semelhante é uma forma de gozo muito precária, com muitas falhas. Então, é frente à decepção na relação com o semelhante que nossa cultura produz esses artefatos. É claro que produz esses artefatos ligados diretamente, também com o afã de acúmulo de bens. Ou seja, a sociedade de consumo é a expressão ou efeito oriundo de dentro do próprio capitalismo. Não podemos esquecer que o projeto de modernidade somente foi e é possível graças às diferentes revoluções que o fazem acontecer: as revoluções sociais, as revoluções científicas e tecnológicas e as revoluções industriais. A Revolução Industrial – possibilitada pelas revoluções científicas/tecnológicas subjacentes – que ocorre no século XIX está centrada na descoberta dos meios de produção de objetos em série, determinando o progressivo desaparecimento da produção de bens de forma artesanal. Nesta perspectiva, a cultura toda se organiza para produzir objetos em abundância, especialmente pela descoberta dos modos de domínio da força, inicialmente por meio da máquina a vapor e, posteriormente, por outras modalidades de utilização de fontes de energia que não o braço humano ou a força animal. Atualmente, estamos na segunda ou terceira revolução, dependendo de como se considera, que se centra em três pontos: a revolução da energia atômica, a revolução na informática e a revolução na biologia. A energia atômica implica a produção de fontes de energia quase ilimitadas. A revolução na informática potencializa as possibilidades de produção, acúmulo e circulação de informações por meio dos circuitos integrados, articulando todos os meios de informática. Isto possibilita o advento da era do instantâneo, encurtando o intervalo entre o ato e o objeto, e assim criando a suposição da produção de um mundo virtual capaz de preencher todas as faltas que marcam a existência humana. A revolução biológica ocorre no âmbito da microbiologia, tendo sua expressão maior no projeto do mapeamento completo do genoma humano. Por meio dos avanços possíveis neste campo, podemos já presenciar a interligação entre a informática e o código genético. Isto implica o advento crescente de possibilidades de intervenção e controle no suporte biológico dos seres humanos. A partir do que até aqui desenvolvemos, é possível determinar com mais clareza as conseqüências do deslocamento do valor prevalente na cultura, especialmente o surgimento de outras formas de gozo determinadas a partir da veiculação de uma promessa de gozo sem falhas. Aquilo que era prometido para depois, a pós-modernidade exige que se dê o mais rápido possível, aqui e agora. E, se observarmos essa aceleração da produção do objeto, sempre mais próximo e mais adequado ao gozo sem falhas, encontramos aí a promessa e a suposição da exis-


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tência deste objeto que possa preencher perfeitamente a falta que constitui o desejo. É isso que chamamos de instantâneo, elemento que compõe o quadro do ideal de autonomia: não mais depender dos limites que o tempo descontínuo poderia impor ao sujeito e não mais depender do outro. A ironia do ideal de autonomia levado a seu extremo, de querer absolutamente não depender de nada e de ninguém, se revela na produção de sujeitos empobrecidos em sua capacidade de enunciação e entregues a formas inusitadas de heteronomia: o mundo parece cada vez mais povoado de indivíduos submetidos ao comando dos objetos, e por isso mesmo emancipados do outro. Referências bibliográficas ARIÈS, Philippe. L’enfant et la vie familiale sous l’Ancien Régime. Paris:

Plon, 1960. BADIOU, Alain. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relu-

me-Dumará, 1994. DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Paulus, 2002. DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: le système des castes et ses implica-

tions. Paris: Gallimard, 1966. _______. Essais sur l’individualisme. Paris: Seuil, 1983. FREUD, Sigmund (1914c). Introdução ao narcisismo. Rio de Janeiro: Ima-

go, 1976. HEIDEGGER, Martin (1927). Sein und Zeit. 11.ed. Tübingen: M. Niemeyer,

1967. _______ (1946). Brief über den Humanismus. Em: _______. Wegmarken (p. 313-364), Frankfurt am Main: V. Klostermann, 1976. KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980. LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966. MELMAN, Charles. O homem sem gravidade, gozar a qualquer preço. Rio

de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes,

1999.


Mario Fleig (1947) é natural de Santa Maria/RS. Possui graduação em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, e em Psicologia, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É mestre em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e doutor em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente, é professor titular da Unisinos e analista membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de Estudos Psicanalíticos. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica, atuando principalmente com os seguintes temas: Psicanálise, Linguagem, Ética, Heidegger e Hermenêutica. Algumas publicações do autor FLEIG, M. Aristóteles com Lacan: ousia/hypokeimenon e os destinos do não-predicável. Natureza Humana, v. 8, p. 313-330, 2006. FLEIG, M. Os implícitos do discurso da ciência e suas conseqüências éti-

cas. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v. 4, n. 6, p. 133-158, 2003. FLEIG, M. Heidegger e a refundação da psicopatologia. Filosofia Unisi-

nos, São Leopoldo, v. 2, p. 155-181, 2001. FLEIG, M. (Org.). Psicanálise e sintoma social – Livro 1. São Leopoldo: Ed.

Unisinos, 1993. FLEIG, M. (Org.). Psicanálise e sintoma social – Livro 2. São Leopoldo: Ed.

Unisinos, 1998.


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