093cadernosihuideias

Page 1

A RELIGIÃO NA SOCIEDADE DOS INDIVÍDUOS: TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO RELIGIOSO BRASILEIRO Carlos Alberto Steil

A diversidade religiosa no Brasil é um fenômeno moderno que aponta para a ruptura do monopólio do catolicismo como a religião dominante na sociedade brasileira. Um monopólio que é quebrado particularmente pelo avanço da “razão secular”1, que se impõe tanto por meio de projetos e opções políticas que produziram o rompimento da relação orgânica entre Estado e religião católica quanto pela hegemonia das ciências positivas na conformação da ideologia moderna contemporânea. Assim, a perda de um aparato estatal que garantia ao catolicismo a sua exclusividade enquanto religião oficial introduziu uma transformação estrutural, que redefiniu o papel e o conceito de religião na sociedade brasileira. A pluralidade e a diversificação de agências religiosas que, a partir do início do século XX, vão, pouco a pouco, configurando o campo religioso brasileiro, atestam antes uma condição estrutural da religião nas sociedades de indivíduos, do que um retorno ao passado2. Na medida em que a religião deixa de um aparato ideológico do estado e perde seu caráter fundante do social, ela permite a emergência de diferentes grupos religiosos que irão atuar ao nível da cultura e do conhecimento3. Esta situação vai dar origem a uma nova configuração social de desajuste entre a base estrutural da sociedade e as suas expressões religiosas no nível da cultura. Ou seja, se, de um ponto de vista estrutural, a sociedade moderna paulatinamente assume um perfil se1

2 3

Tomo a “razão secular” no sentido dado por Milbank em seu livro Teologia e Teoria Social, no qual o autor mostra a contingência histórica do secular e seu caráter “teológico”, ou melhor, “anti-teológico” do discurso das ciências sociais (1995). Estamos usando aqui o conceito de sociedade de indivíduos proposto por Dumont (1985) e Norbert Elias (1994). A melhor síntese sobre o processo religioso na sociedade moderna possivelmente seja a do antropólogo francês Marcel Gauchet, em seu livro Le désenchantement du mond (1985). Uma apresentação do livro de Gauchet e a discussão de suas idéias pode ser encontrada em Steil (1994).


2

Carlos Alberto Steil

cular, no âmbito da cultura, do sistema de significados e símbolos que conformam a ação humana, ela permanece religiosa. Assim, ao mesmo tempo em que como sociedade se organiza a partir de instâncias seculares autônomas – como o Estado e o Mercado –, os diferentes indivíduos que a compõem podem cultuar uma imensa diversidade de deuses (Steil, 1993). Justamente por não ser religiosa, torna-se capaz de abrigar todas as religiões, sejam elas tradicionais – como o catolicismo, o protestantismo, o budismo, o islamismo –, sejam emergentes, como as igrejas e grupos neopentecostais, como a Nova Era, em sua diversidade de formas e sistemas de crenças. A pluralidade e fragmentação religiosa, portanto, são frutos da própria dinâmica social. A secularização multiplica os universos religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como interna e estrutural ao processo da modernidade. A secularização e a diversidade religiosas estão associadas diretamente a um mesmo processo histórico estrutural, que possibilitou que as sociedades existissem e funcionassem sem precisar estar fundadas sobre um único princípio religioso organizador. Em suma, ao analisarmos a sociedade brasileira em relação ao projeto da modernidade, nos deparamos com resultados bastante contraditórios. Enquanto, no campo do social, constatamos deficiências profundas na consolidação do projeto moderno, que foi incapaz de estender à maioria da população brasileira as promessas de “bem-estar social”, no campo religioso parece que a modernidade realizou efetivamente os seus objetivos. A sociedade brasileira ingressa no segundo milênio com seu campo religioso profundamente transformado e reordenado, em que diferentes formas de expressão religiosa – institucionais e nãoinstitucionais, tradicionais e novas, permanentes e efêmeras, fundamentalistas e performáticas, sectárias e ecumênicas – convivem no contexto de um pluralismo que parece não colocar limites à diversidade. A pluralidade da religião na sociedade dos indivíduos A emergência da sociedade dos indivíduos abriu a possibilidade para múltiplas escolhas e pertencimentos religiosos, rompendo com uma situação em que o pertencimento religioso estava dado de antemão e, de certo modo, inscrito na cultura. Ser católico no Brasil, até pouco tempo, era tomado como algo “natural”, causando grande estranhamento quando alguém se apresentava como pertencente a outra religião. Como me relatava um informante: “A alma humana é naturalmente católica. Agora, há algumas pessoas que renegam a sua natureza e passam para os crentes”. Mas convém lembrar aqui que a pluralidade religiosa atingiu o próprio catolicismo, tornando-o também moderno. As op-


Cadernos IHU Idéias

3

ções dentro do catolicismo se multiplicaram nestes últimos anos, de modo que as possibilidades de expressão do “ser católico” podem variar das formas tradicionais às formas libertárias e carismáticas. Alguns podem ser católicos, centrando sua prática no culto aos santos, outros participando de associações religiosas, outros ainda assumindo compromissos éticos e políticos de caráter libertário. E há também aqueles que se consideram católicos, sem que isto os vinculem a quaisquer compromissos explícitos de ordem religioso-institucional. Neste mesmo sentido, os vínculos também se diversificam dentro de um espectro de gradações que vai das formas mais coletivas às mais individualistas ou sectárias. Cada vez mais, as grandes instituições religiosas tradicionais estão perdendo o controle sobre os sentidos e os bens simbólicos que estão sendo produzidos pelos movimentos que emergem em seu interior. No campo católico, por exemplo, o esforço da instituição para assegurar uma “identidade católica” parece ir a contrapelo de uma tendência sincrética predominante que busca o intercâmbio entre símbolos pertencentes a diversos sistemas religiosos4. Neste sentido, parece que se abrem duas possibilidades para a Igreja Católica: a afirmação do exclusivismo, que delimitaria o seu universo a um círculo restrito de adeptos, ou da tolerância, que a abriria para a acolhida em seu interior da fragmentação produzida pela modernidade sobre o campo católico5. Há, na tradição católica, elementos históricos que efetivamente legitimam a opção pela diversidade. O sincretismo, na verdade, se coloca como uma tendência que perpassa a trajetória do catolicismo. Longe de se constituir num desvio ou numa expressão impura da verdade, pode-se vê-lo como uma estrutura de compatibilização das diferenças no interior do campo católico6.

4

5

6

Poderíamos citar aqui o movimento dos Agentes de Pastoral Negros, que têm não apenas realizado um trabalho intenso de diálogo do catolicismo com a tradição religiosa afro-brasileira, especialmente o Candomblé, mas também procurado incorporar seus símbolos, significados e rituais no universo cúltico do catolicismo. Para Beyer, estas duas alternativas se colocam hoje para as grandes religiões de modo geral. Este autor trabalha com a hipótese de duas tendências: a da funcionalidade, em que as religiões procurariam afirmar sua identidade a partir de um núcleo de valores exclusivos (culturais, étnicos, morais), e a da performance, em que as religiões buscam atuar ecumenicamente pela afirmação de valores universais, ligados especialmente ao campo dos direitos individuais e sociais (1994). A idéia do sincretismo como uma estrutura recorrente nos processos de entrontros culturais e religiosos foi desenvolvido por Sanchis no artigo “Para não dizer que não falei de sincretismo”. In: Comunicações do ISER, n. 45, 1994.


4

Carlos Alberto Steil

Algumas características da religião na sociedade dos indivíduos Uma primeira característica da religião na sociedade dos indivíduos é a da privatização, definida por Oro como a “ação dos indivíduos no sentido de moldar a sua própria religião, apropriando-se de fragmentos e de elementos provenientes de diversos sistemas religiosos” (Oro, 1997). A privatização da religião parece ser uma tendência recorrente na história do cristianismo. O trabalho de Peter Brown sobre a origem do culto aos santos nos séculos IV-VII, por exemplo, apresenta o conflito entre uma tendência privatizante, que buscava afirmar o caráter privado do culto, enquanto santos familiares e pessoais, e uma tendência comunitária, que pretendia transformar os santos em patronos de uma comunidade extensa de fiéis (1981). O trabalho de campo que realizei, entre 1991 e 1993, junto aos romeiros de Bom Jesus da Lapa, no sertão da Bahia, mostrou-me o quanto esta tensão entre o privado e o comunitário está presente em contextos tradicionais. Em muitas comunidades que pesquisei, foi possível reconstituir calendários de festas de santos ligados a famílias ou pessoas. Durante muitos anos, as práticas religiosas no sertão foram organizadas a partir destas devoções e festas particulares. A presença institucional da religião surgiu aí, quase sempre, como um movimento de afirmação do comunitário contra o privado. E, em alguns lugares, isto produziu conflitos carregados de muita violência. Mas, ao que parece, isto não é exclusivo do sertão. Uma pesquisa sobre o santuário de São Judas Tadeu, em São Paulo, realizada por Rodolfo Guttila em 1993, também aponta para a tendência recorrente entre os devotos deste santuário urbano em privatizar a devoção, desenvolvendo um culto ao Santo em suas casas, com rituais próprios, diferentes daqueles que são realizados no santuário7. Não se trata apenas de uma reação católica ao processo de romanização, como tem sido analisado por alguns autores, mas de uma reinvenção do culto aos santos num contexto urbano, onde ele aparece tanto numa forma comunitária, quanto privatizada8. Mesmo a idéia de uma bricolagem religiosa, apresentada como própria desta dinâmica de privatização da religião, parece não ser estranha ao processo de modernização da religião. A possibilidade de organizar o universo de representações simbólicas a partir de elementos provenientes de diferentes sistemas 7

8

Esta pesquisa posteriormente foi desenvolvida por Rodolfo Guttila em A casa do santo & o santo de casa. Um estudo sobre devoção a São Judas Tadeu do Jabaquara. São Paulo, Dissertação de Mestrado/PUC/SP, Depto. de Ciências Sociais, 1993. O conceito de catolicismo privatizado como uma reação ao processo de romanização foi trabalhado especialmente por Ribeiro de Oliveira (1985).


Cadernos IHU Idéias

5

religiosos se efetua, de um lado, com a diversificação do campo religioso e, de outro, com a centralidade posta no indivíduo como um sujeito autônomo capaz de escolher diante de uma gama de alternativas religiosas postas em seu caminho. Em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa coloca na boca do sertanejo esta fala: Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, emprenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles (1974, p. 15).

As fontes religiosas em que o personagem de Guimarães Rosa vai beber são ainda mais diversas, incluindo os cultos afro-brasileiros, as benzedeiras etc. Mas creio que é suficiente a citação para se perceber como a pluralidade religiosa é incorporada na experiência religiosa, mesmo em contextos tradicionais e rurais, como este que serviu de cenário para o romance de Guimarães Rosa. Possivelmente, o que poderíamos tomar como novo no contexto atual seria, de um lado, a intensidade desta diversidade e, de outro, a disseminação da cultura de mercado dos bens simbólicos que atinge o campo religioso. Este está muito mais eclético. O processo de globalização, ao mesmo tempo em que aproximou sistemas religiosos distantes através da compreensão do espaço-tempo, criando uma situação de interculturalidade9, também produziu uma mercantilização do campo religioso, em oposição uma visão tradicional que enfatizava a sua dimensão sagrada. Se, no contexto tradicional, o sincretismo se fazia a partir da crença de que o campo religioso era obra divina, e portanto, todas as religiões eram sagradas e não podiam ser excluídas, no contexto da modernidade, as escolhas e as bricolagens religiosas parecem se darem a partir de uma visão secular do campo religioso, onde a idéia de consumo ou de mercado são predominantes. É o indivíduo, em sua liberdade, que opta frente a uma imensa variedade de alternativas religiosas que se apresentam. O trânsito religioso Um outro traço da religião na sociedade dos indivíduos é o trânsito religioso, que consiste no deslocamento dos atores reli9

O conceito de compreensão do tempo e do espaço como uma caratecterística da pós-modernidade é desenvolvida especilamente por David Harvey, em seu livro Condição pós-moderna (São Paulo: Loyola, 1992).


6

Carlos Alberto Steil

giosos por diversos espaços sagrados e/ou crenças religiosas e na prática simultânea de diferentes religiões (1997, p. 8)10. Um trânsito que se dá tanto entre as religiões institucionalizadas quanto entre as religiões e outros sistemas produtores de sentido menos estruturados. Segundo Jean Séguy, o campo religioso passou a incluir, a partir do final do último milênio, além das religiões estruturadas enquanto tais, um grande número de sistemas que o autor denomina de “religiões analógicas ou metafóricas”, de orientação espiritual, ecológica, terapêutica ou psicológica (1988). Ao falarmos de trânsito religioso, queremos chamar a atenção para a lógica inclusiva de funcionamento do campo religioso na sociedade dos indivíduos, em contraposição à lógica das identidades exclusivas que predominaram no decorrer dos séculos XIX e XX. Esta lógica inclusiva, em oposição às instituições religiosas centradas na doutrina e na comunidade como uma totalidade fechada em relação ao mundo, procura organizar a diversidade de crenças e sistemas religiosos em configurações pessoais a partir das biografias particulares dos indivíduos. A idéia de que os diferentes sistemas religiosos são complementares, e não excludentes, parece se constituir numa das marcas preponderantes da sociedade contemporânea, embora a mesma contraste com os fundamentalismos que emergem como uma reação à tolerância e aos trânsitos religiosos. Neste sentido, do ponto de vista dos atores individuais, que se posicionam no pólo inverso dos fundamentalismos, as religiões não estariam em competição entre si, mas se somariam em vista da garantia de uma maior proteção para aqueles que as buscam como resposta à sua aflição11. Junta-se a isto uma visão imanente da religião presente na contemporaneidade de que as instituições religiosas não esgotam as forças do sagrado. Há algumas dimensões do sagrado que só se realizam para além das fronteiras institucionais. Uma espécie de “sagrado selvagem” que não cabe dentro da ordem e limites que as instituições procuram estabelecer na distinção entre o sagrado e o profano. Algo que se realizaria apenas numa situação de communitas, da forma como é entendida por Victor Turner, enquanto um fenômeno liminal, que se concretizaria em alguns momentos especiais, como nas peregrinações e nos rituais coletivos, ab-rogando por completo a estrutura social e es-

10 O trânsito religioso como uma característica do modo de ser religioso atual também é apresentada por Carlos Brandão (1994). 11 Creio que a “guerra religiosa” se coloca basicamente a nível institucional, de conquista de território e de “almas”. Mesmo em relação à Igreja Universal do Reino de Deus e sua luta contra os cultos afro-brasileiros, mais do que uma lógica de exclusão, é a lógica da inclusão que preside as ações. Muitas análises da IURD têm mostrado que grande parte do seu sucesso se deve à incorporação da linguagem e do panteão afro-brasileiro em seu universo discursivo.


Cadernos IHU Idéias

7

tabelecendo uma situação ideal de igualdade e convivência amorosa (1978). Ampliação e deslocamento do sagrado Uma terceira característica da religião na sociedade dos indivíduos refere-se ao alargamento das suas fronteiras para setores que até há pouco eram considerados avessos ou impermeáveis ao religioso. Diversos autores que trabalham a temática da Nova Era, por exemplo, têm chamado a atenção não apenas para as formas esotéricas e alternativas com que o movimento tradicionalmente se apresenta, mas também para a porosidade das fronteiras entre o religioso e outras esferas sociais, até pouco vistas impermeáveis ao sagrado. Neste sentido, pode-se citar como exemplo o trabalho de Paul Heelas, que tem mostrado como o meio empresarial, especialmente no marketing e na área de formação de recursos humanos, vem incorporando discursos e dinâmicas religiosas em suas estratégias de produção e de vendas (Heelas, 1993; Amaral, 1994). A Nova Era se coloca, no entanto, uma forma emblemática no campo religioso de um movimento mais geral que marca a experiência social contemporânea de uma certa diluição das fronteiras entre as diversas esferas que se conformaram na sociedade moderna como unidades relativamente autônomas de práticas e produção de significados. Talvez se possa pensar numa realidade mais geral, que estaria atingindo não apenas o campo religioso, mas o campo do conhecimento como um todo, como parece sugerir Clifford Geertz com o conceito de “gêneros confusos”. Como o próprio autor explicita, questões filosóficas que se apresentam sob a forma de crítica literária, debates científicos que lembram fragmentos de literatura, fantasias barrocas que aparecem como observações empíricas, ou ainda relatos de história que consistem em equações e tabelas ou em testemunho de tribunais de justiça (1994, p. 31). No campo da religião também podemos observar uma mixagem de gêneros, formando aquilo que Jacques Maître chama de “nebulosa das heterodoxias”12, na qual se cruzam religião, ciência, filosofia, ecologia, psicologia (1987). Neste sentido, têm se multiplicado na sociedade contemporânea os espaços ou instâncias que procuram preencher algumas funções da religião como sua força coercitiva, sua capacidade integradora, sua produção de sentidos e sua demarcação de identidades (Oro, 1997). Mas, como vimos tentando demonstrar, essa transforma-

12 “Nebulosa das heterodoxias – segundo Maître (1987, p. 397) – são zonas de interstício, de vazios que as religiões estabelecidas abandonaram e que a ciência não se ocupou. São espaços das incertezas, dos imponderáveis da vida, do mistério, do acaso, dos fracassos, da morte, da espiritualidade profunda”.


8

Carlos Alberto Steil

ção religiosa não acontece apenas nas formas emergentes de conformação da experiência religiosa, mas penetra também as formas tradicionais que incorporam esta nova lógica do religioso desde dentro. Neste sentido, gostaria de citar um livro marcante na literatura recente sobre peregrinações cristãs, organizado por Eade e Sallnow, Contesting the sacred. The anthropology of Christian pilgrimage, em que que os autores ressaltam como um traço fundamental do culto nos santuários uma espécie de “vazio religioso”, que se expressa como um espaço ritual capaz de acomodar uma grande diversidade de significados e práticas trazidos pelos peregrinos e performatizadas a partir de estilos e sínteses pessoais (1991, p. 15). Para estes autores, o universalismo é, em última análise, constituído não por uma unificação de discursos, mas, ao contrário, pela sua capacidade de incorporar e responder à pluralidade das demandas religiosas que são trazidas para os santuários13. No trabalho sobre as romarias de Bom Jesus da Lapa, procurei analisar o santuário a partir da diversidade de discursos e significados que os peregrinos, moradores locais, administradores faziam circular neste espaço (1996). Percebi, deste modo, que, do ponto de vista dos grupos particulares, trata-se de demarcar suas fronteiras, afirmar suas crenças, realizar os seus rituais, proclamar seus discursos; de uma perspectiva “universal”, tinha-se aí uma situação onde estas fronteiras se apresentavam extremamente diluídas e porosas14. Podemos observar, portanto, uma tendência recorrente nos culto dos santuário, mas que se estende para o campo religioso de um modo geral, para incorporar, integrar e juntar elementos de diversas tradições ou fontes, compondo sínteses personalizadas de crenças com um mínimo de intermediação institucional. Esta tendência se contrapõe à lógica que opera nos sistemas mais racionalizados, onde predomina a tendência para restringir, separar e analisar, tendo a instituição como árbitro.

13 Ao discutir a religião na modernidade, Otávio Velho ressalta o trabalho destes autores como representativo de uma determinada visão do campo religioso contemporâneo que busca evitar tanto “os determinismos quanto os fundamentalismos estruturalistas” (1995, p. 207-219). 14 Diversos estudos sobre os santuários têm destacado este universalismo transcultural que constitui o próprio culto. Os trabalhos publicados por Eade e Sallnow, no seu livro Contesting the sacred, assim como os de Fernandes (1982; 1994) e o meu (Steil, 1996) apontam para esta capacidade dos santuários para absorver e refletir uma multiplicidade de discursos, concepções, aspirações, crenças e rituais. Penso que podemos ver nestes cultos um modelo paradigmático, ou, para usarmos um conceito de Mauss, um fato social total, que de algum modo condensa e expressa este sistema de crenças que chamamos catolicismo popular tradicional.


Cadernos IHU Idéias

9

Elementos de aproximação entre formas religiosas tradicionais e novas formas de crer Não podemos, aqui, descrever e comparar exaustivamente as práticas religiosas tradicionais com aquelas que se situam entre as formas modernas de crer. O que nos propomos fazer, na verdade, é apontar algumas dimensões que seriam recorrentes nestes dois universos. Ao fazer isto, no entanto, não pretendemos de forma alguma afirmar que o moderno estaria repetindo ou reproduzindo o tradicional. Ao contrário, procuramos destacar que elementos da tradição são reinventados no moderno. Acreditamos que as novas formas de crer não estão simplesmente em ruptura com a tradição, mas estão reinterpretando-a, num esforço de traduzi-la para a esfera do indivíduo. Um aspecto que conecta estes dois universos é a centralidade da emoção que encontramos tanto nas práticas tradicionais quanto nas experiências religiosas neste momento histórico. Mas, se a emoção é um traço comum às formas tradicionais e contemporâneas de crer, ela também difere em cada um desses contextos, visto que enquanto na sociedade primitiva, como destaca Durkheim, a emoção é vivida “efervescência coletiva”, na sociedade dos indivíduos trata-se de uma experiência no âmbito do self. Como escreve Oro, é através de “manifestações sensíveis e do engajamento total do corpo e dos sentidos” que a religião estaria se expressando hoje nas novas formas de crer (1997, p. 12-14). Ou, ainda, como afirmam Françoise Champion e Danièle Hervieu-Léger, “a religião emocional passa a ser um dos sinônimos da modernidade religiosa” (1990, p. 62). A imediaticidade do sagrado e a valorização do simbólico Neste tópico, gostaríamos de apontar para alguns aspectos desta dimensão emocional que aparecem hoje sob a capa do contemporâneo. Um primeiro aspecto seria a imediaticidade do contato com o sagrado que se apresenta como uma marca definidora das novas formas de crer. O sagrado parece irromper no íntimo dos indivíduos como uma experiência que prescinde de uma instituição reguladora da ortodoxia ou que atua como uma instância de certificação externa da verdade. Um outro aspecto diz respeito à valorização do simbólico, sobrepondo-se de um modo geral à dimensão racional ou teológica da experiência religiosa. Ou seja, os símbolos, em seu aspecto visual, são a referência central nas novas formas de crer, em oposição às verdades doutrinárias, na medida em que eles são capazes de produzir adesões por identificação e não requerem necessariamente uma metanóia por meio de processos de conversão. Assim, na sociedade dos indivíduos, pode-se destacar como um de seus traços marcantes o privilégio do pólo sen-


10

Carlos Alberto Steil

sorial na produção de sentidos religiosos em detrimento do pólo ideológico. Em outras palavras, os símbolos parecem mobilizar mais do que as idéias. E, por isso mesmo, as adesões religiosas estão marcadas pela multivocalidade, a polissemia e a condensação que são as características e o modus operandi dos símbolos (Turner, 1978, p. 246-249). Diretamente relacionado à esta dimensão emocional e concreta da religião está o lugar central que os milagres ocupam nas novas formas de crer. Mais do que uma referência ao imponderável que irrompe na ordem natural do mundo, os milagres podem ser lidos como textos15. São unidades ou frases significativas dentro de uma narrativa que busca situar as ações humanas num mundo “re-encantado”. São interpretações que apontam para o caráter ficcional dos relatos religiosos. E, deste modo, percebe-se que os sentidos são construídos no ato narrativo e não como nominação de uma realidade dada de antemão que estaria encoberta, pronta para ser desvendada. Ou, se preferirmos, dentro de uma ficção histórica e culturalmente produzida que se impõe mais pelos seus efeitos de verdade do que pelos seus postulados16. Os rituais são outro espaço onde podemos perceber esta ponte entre as experiências religiosas tradicionais e as novas formas de crer. No contexto da cultura secular, herdeira de uma tradição racionalista e deísta, a abundância dos rituais na sociedade dos indivíduos acabam causando certo desconforto para os arautos do “fim da religião”, que associam diretamente a religião com tradição e resistência à modernidade17. O esforço por construir um culto adequado aos parâmetros estabelecidos pela cultura racionalista dominante levou os defensores da seculariza-

15 Tomo aqui os milagres como um sistema de comunicação da mesma forma que Evans-Pritchard procurou explicar a feitiçaria entre os Azande. Para este autor, as acusações de feitiçaria eram na verdade parte de um sistema complicado de relações sociais. Por conseguinte, não era algo apaixonado ou estúpido, como queriam os antigos estudiosos da magia, mas era algo que possuía uma racionalidade interna que apontava para uma compreensão da realidade que estava ausente no discurso racional dos sistemas religiosos mais elaborado (1976). 16 Chamo a atenção do leitor para a crítica do teólogo inglês John Milbank às ciências sociais. Para este autor, o discurso das ciências sociais é tomado como uma narrativa ficcional construída em oposição à narrativa cristã, esta também ficcional. Como ele afirma: “a teologia só encontra na sociologia uma teologia, e na realidade uma igreja disfarçada, mas uma teologia e uma igreja dedicadas a promover certo consenso secular” (1995, p. 15). Neste sentido, as ciências sociais são tomadas não apenas como anti-religiosas, mas como heresias em relação à narrativa cristã. 17 Em seu artigo “A religião e os antropólogos”, Evans-Pritchard faz uma crítica à atitude dos antropólogos e cientistas sociais racionalista que buscam substituir a religião cristã (católica ou protestante) com seus dogmas, profecias, milagres, teologia, rituais, tradição, por uma “religião baseada num código de conduta apropriado a cavalheiros vitorianos” (1976, p. 16).


Cadernos IHU Idéias

11

ção como caminho do progresso e da racionalização a desvalorizar os rituais como um elemento significativo da experiência humana e religiosa. Este movimento de “re-encantamento” do mundo, que se observa nas novas formas de crer, ao mesmo tempo que questiona as religiões transcendentes, que se fundam sobre a dualidade e a disjunção entre as ordens da natureza e do sobrenatural, também resgata elementos das tradições religiosas fundadas sobre a sacralização do mundo e da natureza (Steil, 1994, p. 32). Não se trata, no entanto, da volta a um sagrado fundante do social, mas de uma recriação de um mundo que, embora autônomo em sua base estrutural, está habitado por deuses, forças, energias, mistérios, magias. A experiência místico-espiritual A integração da experiência místico-espiritual no universo das práticas identificadas com as novas forma de crer é outro aspecto que tem sido destacado no contexto religioso contemporâneo. Uma situação em que o misticismo aparece como uma de suas marcas fundamentais contrapondo-se à visão pedagógica ou educativa que tem predominado na ação das instituições religiosos até recentemente. E, de algum modo, poderíamos dizer que os tempos atuais são favoráveis a um crescimento dos movimentos místicos, enquanto as dimensões educativas ou pedagógicas do culto parecem passar por uma crise bastante profunda. Enfim, a experiência religiosa hoje parece apontar para um processo de recuperação dos sentidos como linguagem significativa. O conflito entre emoção e razão, que perpassa a experiência moderna no Ocidente, parece dar lugar a uma nova relação em que razão e coração andam juntos. Não se trata de escolher, entre o dogma e a experiência, mas de buscar a autenticidade afetiva nas vivências espirituais incorporadas nas trajetórias pessoais. Ainda no âmbito da dimensão místico-religiosa, podem ser destacadas as articulações entre o sagrado e a busca de saúde, de equilíbrio psíquico e de bem-estar pessoal. As novas formas de crer aparecem quase sempre relacionadas com tentativas de eliminar estados mórbidos ou de preencher o vazio deixado pelo estado de insatisfação difusa presente na sociedade moderna. Muitas das práticas religiosas no quadro da experiência religiosa, centrada no indivíduo hoje, estão efetivamente relacionadas com questões terapêuticas e que se configuram, em alguma medida, como parte de um sistema de cura. Um sistema que pode abranger desde rituais massivos até procedimentos restritos e individualizados realizados no espaço. A centralidade da cura recoloca o significado teológico da dialética entre sofrimento corporal e restauração do corpo, que


12

Carlos Alberto Steil

vai muito além de uma mera troca transacional de penitência humana por favor divino. A ênfase no corpo e na cura seria uma característica das novas formas de crer numa sociedade de indivíduos que contrastaria com a visão dogmática e doutrinária das grandes instituições religiosas. Conclusão Nosso esforço até aqui foi o de mostrar como as transformações que estão ocorrendo no campo religioso apontam para uma centralidade dos símbolos, dos rituais e da mística na sociedade dos indivíduos. O que, num certo sentido, tem produzido um certo abalo nas certezas definidas pelo paradigma da secularização, que associava de modo direto e imediato modernidade e o “fim da religião”. Mas, ao invés de nos posicionarmos nesse debate polarizado entre secularização ou re-encantamento do mundo, preferimos analisar os sentidos e as experiências produzidos e vividos pelos indivíduos em suas práticas religiosas, a partir das quais procuramos compreender as transformações que estão ocorrendo no interior do campo religioso, com fortes repercussões sobre o próprio conceito de religião, que aponta para a incorporação de novas formas de crenças de caráter mais místico, em detrimento dos elementos ideológicos que compunham o seu horizonte de significados. Enfim, este estudo esteve menos comprometido com a demarcação de fronteiras, e mais com a tentativa de entender como o movimento mais abrangente das transformações que estão ocorrendo na sociedade de um modo geral se reflete no campo específico da religião. Procuramos, assim, compreender de que modo a mudança do paradigma religioso, no sentido de uma intensificação das formas místicas de expressão religiosa, está produzindo uma diversidade de movimentos transversais de espiritualidades que atravessam as instituições religiosas, engendrando novas articulações religiosas entre o tradicional e o moderno, o popular e o institucional, o local e o universal. Com isto, nos damos conta de que a religião não é algo que existe em si, como uma substância permanente, mas, antes, se apresenta como uma configuração histórica que resulta da negociação contínua entre formas diversas de expressar a experiência religiosa. E, o que podemos observar é que o conceito de religião muda juntamente com os contextos sociais. Ou seja, se a demanda religiosa dos anos 1970 e 1980 era principalmente por formas religiosas que fossem capazes de traduzir a mensagem codificada no ritual para o cânone racional e teológico, hoje, como tentamos demonstrar neste artigo, a demanda principal é por religiões ou caminhos que possibilitem o contato direto com o sagrado, dentro de modelos místicos.


Cadernos IHU Idéias

13

Referências bibliográficas AMARAL, Leila. Nova Era: um movimento de caminhos cruzados. In: CNBB. A Igreja Católica diante do pluralismo religioso no Brasil, III. São Paulo: Paulus, 1994. p. 101-145. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A crise das instituições tradicionais produtoras de sentido. In: MOREIRA, A. e ZICMAN, R (orgs.). Misticismos e novas religiões. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 23-41. BROWN, Peter. The cult of the saints. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1981. CHAMPION, Françoise & HERVIEU-LÉGER, Danièle. De l’émotion en religion: renouveaux et traditions. Paris: Centurion, 1990. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985. EADE, John & SALLNOW, Michael. Contesting the sacred: the anthropology of Christian pilgrimage. London: Routledge, 1991. ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. EVANS-PRITCHARD, Edward E. Brujeria, magia y oraculos entre los Azande. Barcelona: Anagrama, 1976. EVANS-PRITCHARD, Edward E. A religião e os antropólogos. Religião e sociedade, v. 13, n.1, mar. 1986, p. 4-19. FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros de Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo, Brasiliense, 1992. _______. FERNANDES, Rubem César. Romarias da paixão. Rio de Janeiro: Relume & Dumará, 1994. GAUCHET, Marcel. Le désenchantement du monde: une histoire politique de la religion. Paris: Éditions Gallimard, 1985. GEERTZ, Clifford. Conocimiento local: ensayos sobre la interpretación de las culturas. Barcelona: Paidós, 1994. GUTILLA, Rodolfo W. A casa do santo & o santo de casa: um estudo sobre devoção a São Judas Tadeu do Jabaquara. São Paulo, Dissertação de Mestrado/PUC/SP, Depto. De Ciências Sociais, 1993. HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola,1993. HEELAS, Paul. The New Age in cultural context the pre-modern, the modern and the post-modern. Lancaster: Lancaster Univ. Press, 1993. ISAMBERT, Franóis-André. Le sens du sacré: fête et religion populaire. Paris: Les Editions de Minuit, 1982. MAÎTRE, Jacques. Régulations idéologiques officielles et nébuleuses d’hétérodoxies. A propos des rapports entre religion et santé. Social Compass, XXXIV/4, 1987, p. 353-364. MAUÉS, Heraldo. A tensão constitutiva do catolicismo: catolicismo popular e controle eclesiástico. Tese de doutorado. UFREJ/Museu Nacional, Depto. De Antropologia, Rio de Janeiro, 1987.


14

Carlos Alberto Steil

MILBANK, John. Teologia e teoria social: para além da razão secular. São Paulo: Loyola, 1995. ORO, Ari Pedro. Modernas formas de crer. REB, n.225, mar. 1997, p. 39-56. RIBEIRO DE OLIVEIRA, Pedro. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. SANCHIS, Pierre. Para não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do ISER, n. 45, 1994, p. 4-11. SÉGUY, Jean. L’approche wébérienne des phénomènes religieux. In: CIPRIANI & MACIOTI (orgs.). Omaggio a Ferrarotti. Roma, Siares, 1988, p. 163-185. STEIL, Carlos Alberto. Aparições de Nossa Senhora, tradição e atualidade. Revista Grande Sinal, ano XLIX, set/out. 1995, p. 545-555. _______. Homens e mulheres crentes numa sociedade atéia. Cadernos de Liturgia, n. 2, 1993, pp. 34-51. _______. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa-BA. Petrópolis: Vozes, 1996. _______. Para ler Gauchet. Religião e sociedade. 16/3, maio 1994, p. 24-49. TURNER, Victor & TURNER, Edith. Image and pilgrimage en Christian culture. Oxford: Basil Blackwell, 1978. VELHO, Otávio. Besta-fera: recriação do mundo. Rio de Janeiro: Relume & Dumará, 1995.


Carlos Alberto Steil (1953) é natural de Brusque/SC. É mestre em Filosofia da Educação, pela FGV/RJ, e doutor em Antropologia Social, pela UFRJ. Atualmente é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no Departamento de Antropologia, lecionando nos cursos de Graduação em Ciências Sociais e de Pós-Graduação em Antropologia Social. É pesquisador do CNPq e coordenador do Núcleo de Estudos da Religião (NER) e vice-coordenador do Núcleo de Cultura e Turismo (CulTus). Seu interesse de pesquisa se concentra nas áreas da antropologia da religião, da política e do turismo. Algumas publicações do autor STEIL, Carlos Alberto. Aparições de Nossa Senhora, tradição e atualidade. Revista Grande Sinal, ano XLIX, set./out. 1995, p. 545-555. STEIL, Carlos Alberto. Homens e mulheres crentes numa sociedade

atéia. Cadernos de Liturgia, n. 2, 1993, p. 34-51. STEIL, Carlos Alberto; MARIZ, Cecília Loreto; REESINK, Mísia Lins (Orgs.).

Maria entre os vivos: reflexões teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico

sobre o santuário de Bom Jesus da Lapa-BA. Petrópolis: Vozes, 1996. STEIL, Carlos Alberto. Para ler Gauchet. Religião e sociedade. 16/3, maio

1994, p. 24-49.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.