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HUMANIZAR O HUMANO Roberto Carlos Fávero

Introdução Este trabalho tem por objetivo aprofundar o conhecimento sobre Albert Camus e Jean-Paul Sartre, enfocando a possibilidade de um novo humanismo, através de um diálogo com os principais comentadores dos filósofos franceses. Tematizar a questão do humano apresenta-se como uma tarefa relevante, não só pela sua importância dentro da história e do pensamento dos autores, mas ainda porque vem ao encontro de um interesse: mostrar a angústia existencial que acomete o nosso momento histórico. Estudar o humanismo é entender o tempo presente com suas contradições e significações. A ânsia de compreensão da vida levou-nos a pesquisar Albert Camus e Jean Paul Sartre, dois pensadores que podem atender a este objetivo. No envolvimento concreto da cultura, são apresentados, avaliados e discutidos os modos de ação e participação do homem. O homem não quer apenas viver, mas encontrar um sentido para este viver. Levados pelo impulso de buscar as causas e tematizar o “sentido” e o “sem-sentido”, recorremos ao estudo de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre. 1 Por que estudar Albert Camus? Por que realizar um trabalho de filosofia em cima de um autor que não escreve só filosofia, mas também literatura e romances? Exatamente porque, mesmo não escrevendo tratados estritamente filosóficos, não deixa de fazer filosofia. A filosofia apresenta-se com uma forma própria e vem sendo tratada de um modo especial: é formulada em termos literários. É desenvolvida a partir da sensibilidade própria da vida e dos fatos da realidade, não se apresentando de modo sistemático. É papel da filosofia problematizar o real, o homem, a vida. A grandeza e o mérito de um pensador nem sempre resulta do fato de seu nome constar em manuais de filosofia. A preocupação demasiada com o formalismo encobre, às vezes, o essencial.


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Para tratar o problema do homem e da vida, não há uma linguagem específica e única. Talvez o excessivo formalismo seja responsável pelo fato de a filosofia ficar enclausurada em quatro paredes e distante dos verdadeiros problemas que afligem o homem. É fora de dúvida que, num escritor, a atitude existencialista é favorável à criação artística. A linguagem poética é a forma de Camus expressar seu pensar. O seu pensar sempre esteve em consonância direta com a vida e o homem. Os problemas por ele sentidos são expressos de modo original, daí seu mérito. Camus faz da vida um problema filosófico de contínua descoberta, mas a expressão deste atinge o seu público naquilo que lhe é próprio: dizer com simplicidade o sentimento do mundo e sua complexidade. Ele falou e abordou problemas que considerava do homem; aquilo que, como homem, “sentia” pelo coração e pela razão. Ele mesmo diz: não sou um filósofo e só sei falar do que vivi.1 A simplicidade e, ao mesmo tempo, a grandeza com que Camus encara os problemas reais fazem com que ele próprio se sinta um tanto distante do mundo da filosofia acadêmica. Via o filósofo como um possuidor da verdade suprema, posição, entretanto, que ele mesmo sempre recusou, afirmando não ser possuidor de qualquer verdade absoluta. Não considerar Camus um filósofo é, no nosso entender, um erro, o que separa a arte da filosofia. Se considerarmos Camus um grande artista, o que lhe falta para ser um grande filósofo? O trabalho de reflexão, próprio do homem, é explicitar as intuições fundamentais à nossa existência, mostrando como viver com tais verdades. Pensamos que esta foi uma característica marcante de Camus. Por isso, no nosso entender, merece o reconhecimento de um grande filósofo. A literatura é um fecundo meio de formação. Para Camus, nossos maiores moralistas não são fabricantes de máximas, mas romancistas-filósofos. A importância social e individual da moral é mais ampla do que a simples apresentação de dogmas. O verdadeiro moralista não impõe, não exige, mas demonstra e propõe, pois supõe a liberdade. Levando em consideração que Camus não tinha por pretensão escrever um tratado sistemático sobre a questão do absurdo, vemo-nos obrigados a detectar em sua obra um esquema lógico e coerente procurando elaborar um trabalho compreensivo. Procuramos ser fiéis ao pensamento do autor, esforçando-nos por elaborar uma interpretação que evite erros e distorça o verdadeiro pensar do autor.

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Camus. Albert. Actuelles II. Paris: Gallimard, 1960, p. 83.


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Não queremos simplesmente repetir o que Camus disse. Queremos, isto sim, apresentar nossa interpretação, fazer uma leitura do que é dito nas entrelinhas. A profundidade será nossa meta básica. Cientes de que Camus procurou mais sensibilizar do que convencer por argumentos, estamos atentos às sutilezas de seu pensar. Queremos, deste modo, progressivamente, desvelar o pensamento do autor, elevar o implícito ao explícito. 2 Por que estudar Jean-Paul Sartre? Sartre não pode ser concebido como um filósofo ligado a um subjetivismo sem compromisso, ou seja, um subjetivismo pejorativo, que, em nome de uma pseudoliberdade, esconde a verdadeira essência do homem. A subjetividade sartriana é o comprometimento com a possibilidade de o homem conceber-se a si mesmo, ou, enquanto concreto, capaz de construir sua história. O filósofo recusa a concepção tradicional, segundo a qual o homem possuiria uma essência dada a priori. Isto implica na aceitação de que o ser humano, primeiramente, surge na sua radical espontaneidade e depois se define. Faz-se aquilo que vem a ser. O primado da existência significa precisamente esse ato de projetar-se, de lançar-se à frente de si mesmo, de fazer-se e de assumir-se no mundo. Essa prioridade da existência sobre a essência em sua explicação na ontologia fenomenológica de Sartre. Evidentemente, se as essências são a racionalidade imanente do ser, enquanto sentido a priori que o dinamismo do espírito atribui ao mundo fenomênico, elas só existem na e para a consciência, o pour soi. Sendo assim, a essência humana para anteceder à sua existência, necessitaria de um ser absoluto que a pensasse. Por isso, Sartre afirma não existir natureza humana, visto não existir Deus para concebê-la. Para Sartre, o homem é livre para escolher a pessoa que ele quiser ser. É livre para escolher os meios que considera mais adequados para realizar-se como pessoa. Para além desses dois patamares da liberdade, existe um terceiro patamar, que é a liberdade de poder trocar o projeto originário e ser de outro modo. Já que nada é definido, o homem pode esboçar para si ma outra pessoa, diferente daquela que até esse momento vinha sendo construída. 3 A valorização do humano em Albert Camus e Jean-Paul Sartre A resposta às questões que afligem a existência do homem não pode ser equacionada ou resolvida por meio da iluminação


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de um ser superior ou através de uma ontologia2 que nega a centralidade inquestionável do homem, como início e fim de todo o problema filosófico. A fim de alcançar esse objetivo, buscamos confrontar o pensamento humanista de Camus com o pensamento de Sartre, retratado sobretudo no texto O existencialismo é um humanismo. Privilegiamos a leitura desse texto porque nele está contido o conceito de humanismo. Além disso, recorremos ao conjunto de entrevistas concedidas por Sartre a Bernard Lévy, que estão reunidas no livro O testamento de Sartre. Recorremos aos autores que filosofam sobre esse ser abandonado na mais trágica, bela, derrotada, sutil e absurda existência humana. Fizemos a opção de estudar a filosofia francesa contemporânea, precisamente o pensamento dos filósofos Albert Camus e Jean-Paul Sartre, autores que situam a existência humana na temporalidade. É a partir deste estudo que visamos à compreensão do homem na singularidade. A questão é complexa, pois, além de fazermos escavações ontológicas em terreno árido, lidamos com uma proposta ética existencial, cujo ponto de partida é o sujeito concreto e finito, temporalmente situado e, acima de tudo, um sujeito livre para fazer suas escolhas, cuja liberdade de igual maneira está, também, situada na realidade objetiva, no campo da facticidade. É mediante um sem-fim de obstáculos com os quais este indivíduo se depara ao longo de sua existência, no exercício da sociabilidade, que temos que pensá-lo. Após duas Grandes Guerras, na Europa dilacerada pelos efeitos da racionalidade instrumental – confrontando o universo natural das possibilidades no mundo das impossibilidades reais –, vivência própria do estado absurdo, o existencialismo configura-se como um retorno concreto, cuja única verdade é a de que existe, sem uma essência predeterminada, no mais completo abandono das verdades “eternas” e condenado a exercer a própria liberdade. O ponto de partida, peculiaridade comum entre todos os existencialistas, é a preocupação com o ser humano e, nesse sentido, toda filosofia da existência é humanista, ou seja, tem como centro de investigação o homem. Também o fato de toda existência ser uma vivência individual faz do existencialismo uma filosofia da subjetividade. No entanto, ainda que o que fazer filosófico do existencialismo se volte para o ser individual, não se trata de uma filosofia individualista. Ao contrário, busca sempre o homem em sua situação concreta e este está sempre vinculado ao mundo e aos outros homens, nunca aparece ilhado. A existência humana é sempre a existência de um ser-no-mundo e

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A palavra ontologia deriva do particípio presente do verbo einai (ser) e logos (estudo). Então, ontologia vem a ser o estudo do ser. Refere-se ao estudo do ser, ou dos entes tomados enquanto objetos de conhecimentos. Cf. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia, p. 238-239.


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sempre um ser-com-outros. Sendo a filosofia existencialista uma reflexão sobre a existência concreta, da vivência subjetiva, não é de estranhar que os filósofos que aqui apresentamos tenham principiado suas reflexões mediante a vivência singular e que cada um tenha apresentado a configuração de mundo a partir da sua inserção histórica e social como ponto de partida para suas reflexões. A grande interrogação a ser respondida é se há no pensamento de Camus e Sartre uma proposta de humanismo que aponte para uma nova valorização do humano. Em outras palavras, se, a partir da leitura de Camus e Sartre é possível resgatar o humanismo escondido por traz das doutrinas filosóficas, que aprisionaram o homem dentro dos grandes sistemas metafísicos. 4 A questão da liberdade humana A subjetividade sartreana e camusiana é o comprometimento com a possibilidade de o homem conceber-se a si mesmo, sujeito concreto, capaz de construir a sua história. Para Camus e Sartre, a liberdade não é uma concessão metafísica ou algo dado ao homem, mas é uma conquista alicerçada na justiça e no comprometimento ético. A liberdade é o compromisso com pequenas e as grandes causas sociais e humanas de nosso tempo marcado por crises políticas, econômicas e ecológicas. Ambos filósofos nos advertem que os crimes e a violência urbana são um alerta na perspectiva de que precisamos aprender a viver com mais humanidade. Eles não aceitam um fundamento metafísico para sustentar a existência de Deus. Não fogem ao desafio de apresentar uma resposta para viver o humanismo no presente. Assim, nos confrontamos com um dos problemas básicos do existencialismo, a saber, a liberdade humana. Se a existência precede a essência, não há um princípio basilar para a fundamentação de valores objetivos. E, portanto, não há moral. Esta foi a conclusão de muitos adeptos e seguidores do existencialismo, segundo o qual a ausência de um fundamento a priori3 condenaria o homem a viver numa sociedade sem regras. Sartre, ao aceitar que a negação da existência de Deus levaria a um estado de imoralidade, afirmou em sua célebre conferência de 1946 – L’existencialisme est un humanisme – a famosa frase de Dostoiewsky: se Deus não existisse, tudo seria permitido. Mas qual é, então, a proposta ética dos existencialistas? O existencialismo não aceita os valores como algo feito e acabado. É necessário inventar os valores. Mas quem poderá, legítima e 3

A priori, pode ser entendido como o conhecimento que não depende da experiência. Ou, como escreve Kant, a estrutura da razão é a priori (vem antes da razão e não depende dela). Cf. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. p. 78.


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inquestionavelmente, criar valores, a fim de que a sociedade possa viver e organizar-se? É a questão que se apresenta. 5 A construção de um novo humanismo, a partir da liberdade do ser humano As condições de possibilidade do Humanismo na atualidade. O homem deve inventar valores, e não deve submeter-se ao que está fora dele. A vida tem sentido, se nos tornamos responsáveis ante os problemas emergentes. A responsabilidade é uma forma de tornarmo-nos mais humanos. A vida é nada, sem o compromisso responsável de cada um. Depende do homem dar-lhe um sentido. Segundo o humanismo existencialista de Camus e Sartre, a vida não é só conquista, é também fracasso. Por isso, o suicídio, a náusea e outros sentimentos fatídicos estão presentes na vida do homem. Entretanto, sempre há uma nova oportunidade para reconstruir um novo humanismo, por meio de uma vida não mais voltada, apenas, para problemas narcísicos e egocêntricos, mas direcionada à solidariedade humana, marcada pelo compromisso ético. O desespero diante das atrocidades totalitárias, o medo, a revolta e o absurdo são sentimentos do homem. Interessa-nos pesquisar sua origem e implicações. Os personagens de Camus não são seres indiferentes: se posicionam diante dos grandes problemas da vida concreta. A filosofia busca superar os impasses e as contradições, com coragem e vontade, buscando construir um discurso coerente com a práxis e que responda aos desafios de nosso tempo. Queremos ressaltar que, de todas as relações que se possa estabelecer na filosofia de Sartre, talvez não se possa apontar alguma mais íntima do que aquela que se dá entre liberdade e engajamento. Essas duas noções e a relação entre elas estão na base da própria definição sartriana de existência e, nesse sentido, desempenham função nuclear na filosofia existencial. O homem não é predeterminado por nenhuma superestrutura, pois nada é a priori. Ele escolhe seu projeto de vida e se torna responsável não só por ele, mas por todas as pessoas que vivem em sua volta. A recusa da concepção tradicional, segundo a qual o homem possuiria uma essência dada a priori (animal racional, por exemplo), implica a aceitação de que o ser humano primeiramente surge na sua radical espontaneidade e depois se define, se faz aquilo que vem a ser. O primado da existência consiste nesse ato de projetar-se, de lançar-se à frente de si mesmo, de fazer-se e de assumir-se no mundo por via da realização de alguma possibilidade. Tudo isso está contido na acepção de liberdade originária, espécie de grau zero da realidade humana enten-


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dida fundamentalmente como existência. Não se trata, como se pensava na tradição filosófica, de compreender a liberdade como uma faculdade humana disposição ou capacidade para agir livremente. O caráter absolutamente originário da liberdade nos leva a entender que ela não é algo que o homem tenha, e sim algo que ele é. Ora, sendo antes de tudo liberdade, o homem não é propriamente nada além das possibilidades de ser. É isso que o distingue das coisas e dos animais: não poder ser concebido na sua integridade essencial antes que o processo contingente de existir o leve a assumir por si mesmo um projeto de existência que tentará realizar como um modo de ser no mundo. Vê-se como a liberdade originária, tal como é concebida por Sartre, só pode realizar-se a partir da escolha radical de um projeto a ser assumido num mundo contingente. O homem não é algo dado como uma natureza, mas vem a ser aquilo que se faz no devir da existência. Assim, a filosofia da existência supõe uma atitude interrogativa que nos afasta de qualquer idéia, natural ou metafísica, que se possa colocar como pressuposto explicativo do que seja o homem. Mas essa fenomenologia4 da existência só pode atingir o processo concreto de existir se a análise levar em conta as configurações efetivas de possibilidades em que se dá a escolha existencial pela qual o homem se faz projeto. A situação é a demarcação concreta do exercício da liberdade, isto é, da escolha do projeto. Por isso, Sartre diz que a liberdade é sempre situada, e que a situação é a configuração real da abertura originária da realidade humana aos possíveis. É esse ajuste fenomenológico que faz com que a liberdade não seja uma categoria transcendental ou uma idéia reguladora, mas um exercício real de construção processual de si mesmo. A essa variedade complexa que constitui o entorno, mudando da subjetividade livre Sartre denomina facticidade. É algo que supera o sujeito porque cada um de nós, ao surgir no mundo, já encontra um mundo, isto é, um conjunto de fatos dados em que nos inserimos, mas que nos procede e nos transcende: família, sociedade, ambiente histórico, condição social etc. desde fatores de ordem pessoal até condições gerais de ordem histórica. Há, portanto, um conjunto de fatos que constituem para cada sujeito a sua situação. Agir significa, em grande parte, reagir a tudo isso. E assim a liberdade é inseparável das condições

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A expressão fenomenologia utilizada por Husserl teve um cunho distinto daqueles usuais até esse tempo. Husserl sustenta que seu método é descritivo mas distinto da percepção psicológico. Todas as coisas do mundo aí estão, percebemô-las ou não. A consciência é constituída por atos (noesis) que visam algum componente desse mundo (noema). Husserl, Edmund. Meditações cartesianas. Introdução à Fenomenologia. São Paulo: Madras, 2001, p. 16.


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concretas do seu exercício. Eis um ponto a propósito do qual é necessário enfatizar que o existencialismo sartriano, longe de propor uma liberdade que seria pura e simples fruição da espontaneidade da consciência, nos faz defrontar com o trabalho duro de vencer a adversidade, num enfrentamento difícil de tudo aquilo que temos de superar para realizar autenticamente um projeto livre de ser. A noção de facticidade leva-nos ao engajamento ou ao compromisso. O compromisso é, por assim dizer, uma espécie de noção mediadora entre a liberdade e facticidade, posto que representa de algum modo a decisão tomada a respeito de como devo lidar com os fatos. Assim, os elementos da facticidade, que pesam sobre mim com a força das determinações, não são irremediavelmente determinantes: tudo depende da conduta que cada um assume em relação a eles. Por isso, Sartre insiste na contingência do mundo histórico; ninguém está predeterminado a qualquer coisa, por mais fortes que sejam os fatos que configuram uma situação. Eu sou aquilo que faço com o que fazem de mim. O contexto familiar, a condição de classe, a formação cultural, a herança histórica, tudo isso pesa sobre o indivíduo; mas esse indivíduo é sujeito de sua história. Se tudo isso viesse a determiná-lo, como se ele fosse passivo, é porque ele se terá feito passivo e determinado; terá sido uma escolha, porque, de tudo o que nos constitui, a única coisa que não podemos escolher é deixar de ser livre. Daí a célebre frase de Jean-Paul Sartre: “O homem está condenado a ser livre”. 6 A Filosofia como Política Camus e Sartre, ambos pensadores e ativistas políticos, assumem o humanismo como instrumental teórico. Contudo, há uma divergência filosófica de fundo que repercutirá nos desdobramentos conceituais. Essa será, ainda, motivo da ruptura de uma amizade que começou com laços de afinidades muito fortes. A razão da ruptura será a publicação de O homem revoltado, de Camus, obra na qual o autor explica sua filosofia anti-sistêmica e antitotalitária. Camus dá ênfase ao conceito de revolta e demonstra a falibilidade da idéia de revolução, conceito caro a Sartre, que a julga imprescindível para a evolução da história. Camus aparece como o “filósofo do absurdo”. Mas qual é a sua compreensão de absurdo? Que vem a ser o absurdo de que Camus tanto fala? Camus pretende manifestar que o absurdo está no início, é o começo. Ele não vê o mundo senão na pergunta de como estamos no absurdo? Esta pergunta nasce do quadro trágico em que se encontrava a Europa com a iminência da guerra. Inicia a colocação da questão do absurdo a partir de perguntas, como esta: “A vida tem algum sentido?” Encontramos nesta pergunta um problema filosófico. Saber se a vida tem ou


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não sentido, se vale a pena ou não ser vivida é discutir questões centrais que mostrarão ou não o sentido da vida. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia.5 O mundo de Camus não é vontade de um Deus transcendente, que ele não conhece, mas é vontade incessante do homem decidido a “fazer-viver” o absurdo para continuar sendo homem. O homem absurdo de Camus é um homem que diz sim e não, esclarecendo lentamente o quê. O homem absurdo é um homem sem amanhã, está cercado. São os homens encerrados na cidade de Oran, lutando contra a peste, sem saber se no dia seguinte estariam vivos ou mortos, porém deveriam continuar a lutar. Não há como fugir, nem meios para fugir; a única saída é enfrentar a situação. Assim acontece com o absurdo: trata-se de respirar com ele; de reconhecer as suas lições e de lhes encontrar a carne.6 A permanência no absurdo não está em querer o absurdo como tal, mas é um amor à vida. É um modo de mostrar que se está vivo e que se quer permanecer vivo. Para Camus, toda recusa do absurdo é um suicídio. Suicídio este que se traduz de modo físico quando se põe fim ao corpo; suicídio espiritual quando se apela a princípios transcendentes que extrapolam o nível humano. Preocupa-se com os suicidas; estes não resistem ao absurdo, colaboram com ele, “dão” a morte. Os assassinatos não são naturais, mas sim provocados pelo homem. Daí a preocupação de Camus com estes homens e a conclusão de que o único problema filosófico é o suicídio, pois dele parte a análise e a compreensão do absurdo e consequentemente a tematização da vida do homem. Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia.7 Ao homem não cabe fugir, mas permanecer no absurdo de modo consciente e nele procurar caminhos que façam com que o homem possa superá-lo. Ele analisa e descreve o absurdo. Vai, contudo, paulatinamente, abandonando-o. Assim, verificamos esta procura de sentido, sem a qual a própria revolta seria incompreensível. 7 A revolta e a Revolução Toda obra de Camus tem uma característica comum que é a defesa da vida humana. Isso está expresso de diversas formas e com várias entonações, sendo a revolta uma delas. A revolta é vista por Camus como uma característica pertencente ao homem do século XX em todas as latitudes. Camus esforça-se para 5 6 7

Cf. Camus, Albert. O mito de Sísifo. p. 13. Cf. Ibidem. p. 117. Cf. Ibidem. p. 13.


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que percebamos que a revolta salvará o homem, na medida em que tiver uma percepção apurada e realista da história presente da humanidade. O propósito deste ensaio é uma vez mais aceitar a realidade do momento... trata-se de um esforço no sentido de compreender meu tempo.8 É importante frisar que revolta não é sinônimo de revolução. A revolta permite ao homem tomar consciência de seu próprio valor, que se transforma então na própria razão de ser de sua existência. Ela nasce do sentimento de ameaça de uma determinada ordem. A revolta é própria do homem informado, consciente dos seus direitos. A revolta é no fundo a descoberta, por homens conscientes, da existência de outras pessoas. O homem revoltado abandona seu egoísmo e dá as mãos para o seu semelhante. Deste ponto de vista, escreve Camus, a solidariedade humana é uma certeza filosófica.9 O homem revoltado sai de seu egoísmo e dá as mãos ao semelhante. Procura juntamente com o outro, o próximo, a construção de um projeto novo onde não haja exploração. Por outro lado, a revolução representa um movimento que vai de um extremo a outro. Começa com uma idéia estabelecida e clara. O mundo pelo qual luta já está, claramente, definido na teoria. Não há espaço para autocrítica, há apenas o desejo incontrolável pelo poder e práticas, muitas vezes, arbitrárias. A revolução consiste no transplante da idéia para a experiência histórica. A revolta, pelo contrário, é movimento que leva da experiência histórica às idéias.10 As conquistas revolucionárias acabam negando a solidariedade humana. O revolucionário não consegue conciliar a liberdade com a justiça. A revolta genuína trata de forma semelhante a justiça e a liberdade. A justiça tornar-se-á uma realidade construída na medida em que houver permanente liberdade de protesto e aumento da comunicação humana. A história do século XX está repleta de exemplos eloquentes a esse respeito. Os bons e generosos propósitos dos revolucionários acabam em tirania, injustiça, fome e campos de concentração. Camus concebe a revolta do ponto de vista histórico, metafísico e artístico. Na revolta metafísica, o homem se revolta contra sua condição e contra a criação. Os revoltosos metafísicos exigem do próprio criador o respeito a um princípio de justiça. A revolta torna-se mais universal, contestando toda ordem estabelecida, inclusive a ordem divina. A revolta metafísica procura atingir o âmago dos problemas humanos desvendando as angústias e as causas dos grandes sofrimentos.

8 Cf. Camus, Albert. O homem revoltado. p. 12. 9 BARRETO, Vitor. Camus: Vida e obra. Lisboa: José Álvaro, 1978, p. 72. 10 Ibidem, p. 73.


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O revoltado metafísico procura descobrir as causas de seu mal. Procura uma razão que justifique seu sofrimento. A revolta é em última análise a busca inconsciente de uma moral.11 Apresenta-se como manifestação nobre do ser humano, porque não quer apenas desconstruir o estabelecido, mas exigir uma nova moral, acima das máscaras e vaidades que obnubilam o verdadeiro significado da existência humana. Na revolta histórica, Camus mostra, em uma ampla análise, que a história contemporânea é o atestado mais eloquente das manifestações de revolta. Todo esforço de Camus consiste em superar o absurdo, sem negá-lo, todavia. Como superar essa aparente contradição? A revolta aparece como meio à disposição do homem para reagir diante do absurdo. Manifesta-se como atitude filosófica que serve de transformação existencial. O revoltado crê em algo. Quer uma vida melhor. A revolta é protesto contra as injustiças e a incompreensível condição humana. A revolta artística foi, também, objeto de preocupação do pensamento camusiano. Um pensador com essa aguçada sensibilidade não poderia deixar de explorar essa dimensão da sensibilidade. Para ele, a arte é a mais pura realização da essência da rebelião, esta que se deve observar fora da história, no seu estado puro, longe das contingências dos acontecimentos históricos, na sua manifestação primitiva. A arte, em última instância, deve dar-nos uma perspectiva definitiva sobre o conteúdo da rebelião. Quando o homem não é respeitado, o revoltado faz-se ouvir. A revolta constitui-se como recusa a uma situação confusa, sem valores distintos, aos quais o homem possa apegar-se. É o movimento de alguém que diz não, que não está disposto a suportar sua servidão. Trata-se de recuperar a dignidade perdida ou ofendida. A revolta é a expressão do clamor por um direito inalienável do homem. Nem todos os valores conduzem à revolta, mas todo o movimento de revolta invoca tacitamente um valor.12 Há contra-valores que alienam o homem, sufocando-o, impedindo que a transformação social ocorra. O radicalismo político, que prega a verdade única na luta por justiça, a ignorância e o fanatismo religioso que impedem o homem de atingir a verdade plena são exemplos de contra-valores. A revolta implica, ao mesmo tempo, é negação e afirmação. A afirmação é a existência de um valor, é a existência de uma parte à qual o revoltado adere. Um homem que diz não. Mas, ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, a partir do seu primeiro movimento.13 Por isso, o mais importante não é a resposta verbal que o ser humano dá, mas, sobretudo a respos11 Ibidem, p. 83. 12 CAMUS Albert. O homem revoltado. p. 26. 13 Ibidem, p. 25.


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ta comportamental, através de atitudes inovadoras que visem incluir na sociedade de consumo o homem, ou criem novas formas de solidariedade. A revolta nos traz aquilo de que precisamos para sobreviver. É por ela que nos humanizamos. Na revolta se funda o valor da existência humana. Ela afirma um valor, qual é esse valor? É um valor absoluto? Camus prescinde de princípios absolutos ou transcendentes. A revolta afirma a liberdade. O ato rebelde apresenta uma experiência ontológica. Portanto, Sartre e Camus buscam reconciliar a liberdade do homem no mundo complexo e desafiador, porque são várias as formas de mascarar a felicidade e apresentar projetos de vida para o homem, mas nem todas o satisfazem, plenamente. O humanismo deve ter por norte e meta-síntese a liberdade que sempre acontece no compromisso com as pequenas ou grandes causas de nosso tempo. Onde houver alguma ameaça ao humanismo ou a um homem concreto, devemos estar presentes, seja através de nossas atitudes e ações, com responsabilidade, seja, por meio de uma reflexão séria e coerente, buscando superar as aparências de juízos preconceituosos, a fim de se chegar à condição verdadeira do ser humano. A filosofia tem um compromisso ético: o de apontar saídas nessa fragmentação que a razão contemporânea vem sofrendo, ante a hegemonia de um logos que humilha e condena milhões de pessoas à exclusão. Quanto mais a sociedade parece evoluída tecnocientificamente, maiores são as desigualdades e as marcas de abandono do homem. Um triste início de terceiro milênio assinala um aumento do número de pessoas injustiçadas de todas as formas, em todo o mundo. Considerações finais Camus e Sartre se inscrevem entre os nomes mais fortes na defesa da liberdade incondicional do ser humano, pois, enquanto os homens são reféns de ideologias, sejam religiosas ou políticas, jamais estarão em condições de viver a plenitude da liberdade. Este é o objetivo de toda a reflexão e de todo o exercício filosófico. A filosofia deve ajudar a encontrar meios, para que se possa, cada vez mais, humanizar o homem, apesar de parecer uma utopia. O consumismo representa um das grandes formas de afastamento do homem de sua verdade plena, pois prende o homem, condenando-o a viver sem a alteridade, negando o outro, pois este está excluído da sociedade de consumo, já que nem todos podem usufruir das benesses que o sistema econômico pode proporcionar. Se o existencialismo tem um legado ou um testamento, este é bem profundo e incisivo. O homem deve vi-


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ver, plenamente, sua liberdade e esta não é algo que se dissolve no ar, mas é a liberdade que se completa com a felicidade. O humanismo do século XXI deve ir além do humanismo dos filósofos franceses do século XX, porque de lá para cá os desafios para o humanismo aumentaram, em virtude de um esfacelamento ético cada vez maior. O tecido social foi se estilhaçando à medida que a ambição e a negação da alteridade foram se manifestando no cotidiano da vida. Ambos filósofos enfatizam a autoconsciência e a auto-responsabilidade do ser humano frente ao mundo. Depositando, assim, total confiança e credibilidade no homem e nas suas possibilidades de realizações e transformações. Precisamos intensificar nossas habilidades para lidar com o real, olhando de forma mais ampla e crítica para a realidade. Procurar não só dentro de nós mesmos, mas interagindo, permanentemente, com o social. O ethos, que tenha amor, dá um novo sentido de viver. Amar o outro, seja o ser humano, seja cada representante da sociedade, é dar-lhe razão de existir. Esse amor respeita a alteridade, abre-se a ela e busca a solidariedade para todos. Busca-se a inclusão social sendo esta a nossa tarefa a ser executada, incansavelmente, todos os dias. Referências bibliográficas BARRETO, Vitor. Camus: vida e obra. Lisboa: José Álvaro, 1978. BENNY, Lévy. O testamento de Sartre. v. 1, Porto Alegre: L&PM, 1986. (Série Oitenta Especial) BOSCH, Philippe Van Den. A Filosofia e a felicidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. CAMUS. Albert. Actuelles II. Paris: Gallimard, 1960, p. 83. _______. Cadernos I e II. Buenos Aires: Losada, 1963. _______. Calígula. Tradução de Maria da Saudade. Rio de Janeiro: Cortesão, 1963. _______. Diário de viagem: a visita de Camus ao Brasil. Tradução de V.R. Chaves. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1978. _______. O estrangeiro. 16. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. _______. O exílio e o reino. Tradução de Cabral de Nascimento. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. _______. O homem revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. _______. O mito de Sísifo. (Ensaio sobre o Absurdo). Lisboa: Livros do Brasil, 1961. _______. Noces. Paris: Gallimard, 1959. _______. A peste. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. _______. A queda. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1999. ETCHEWERY, A. Os conflitos atuais dos humanismos. Porto: Tavares Martins, 1958.


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Roberto Carlos Fávero

FÁVERO, Roberto Carlos. Humanizar o Humano – Uma leitura de Camus e Sartre. Porto Alegre: Evangraf, 2007. GUIMARÃES, Carlos Eduardo. As dimensões do Homem: mundo, absurdo, revolta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. JANER, Cristaldo. Mensageiros das fúrias: uma leitura camusiana de Ernesto Sábato. Florianópolis: Editora da UFSC, 1983. JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas. Porto: Tavares Martins, 1961. ____. Sartre ou a Teologia do absurdo. São Paulo: Editora Derder, 1968. MOREJON, Juan Valdano. Humanismo de Albert Camus. Cuenca: Monterey, 1977. PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade. Uma introdução à Filosofia de Sartre. Porto Alegre: L &PM, 1995. PIRES, Cecília Maria. Ética da necessidade e outros desafios. São Leopoldo: Unisinos, 2004. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987.(Coleção Os Pensadores) ____. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia fenomenológica. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.


Roberto Carlos Fávero nasceu em Nova Roma do Sul/RS. Licenciou-se em Filosofia na Universidade Católica de Pelotas, graduou-se em Teologia na PUCRS e especializou-se em Filosofia na UCS. Defendeu sua dissertação de Mestrado em Filosofia na Unisinos. Atualmente, coordena o CONER (Conselho Religioso), é professor titular da Faculdade Cenecista, padre, orientador e conferencista. Pesquisador em Filosofia Contemporânea com ênfase no Humanismo. Algumas publicações do autor FÁVERO, Roberto Carlos. Humanizar o humano. Uma leitura de Camus e Sartre. 2. ed. Porto Alegre: Evangraf, 2007. FÁVERO, Roberto Carlos. Reflexões sobre o Humanismo. Correio do

Povo. Porto Alegre, 12. jun. 2007, p.12. FÁVERO, Roberto Carlos. A Peste. Correio Riograndense. Caxias do Sul,

13 ago. 2008, p. 2. FÁVERO, Roberto Carlos. A Peste: mal que ainda hoje atinge a humanida-

de. Correio Vacariense. Vacaria, 20 set. 2008, p. 2. FÁVERO, Roberto Carlos. Viver = Construir. Jornal Gazeta. Bento Gonçal-

ves. 9 mar. 2009, p. 5.

N. 106 N. 107 N. 108 N. 109 N. 110 N. 111 N. 112 N. 113 N. 114 N. 115

Justificação e prescrição produzidas pelas Ciências Humanas: Igualdade e Liberdade nos discursos educacionais contemporâneos – Profa. Dra. Paula Corrêa Henning Da civilização do segredo à civilização da exibição: a família na vitrine – Profa. Dra. Maria Isabel Barros Bellini Trabalho associado e ecologia: vislumbrando um ethos solidário, terno e democrático? – Prof. Dr. Telmo Adams Transumanismo e nanotecnologia molecular – Prof. Dr. Celso Candido de Azambuja Formação e trabalho em narrativas – Prof. Dr. Leandro R. Pinheiro Autonomia e submissão: o sentido histórico da administração – Yeda Crusius no Rio Grande do Sul – Prof. Dr. Mário Maestri A comunicação paulina e as práticas publicitárias: São Paulo e o contexto da publicidade e propaganda – Denis Gerson Simões Isto não é uma janela: Flusser, Surrealismo e o jogo contra – Yentl Delanhesi SBT: jogo, televisão e imaginário de azar brasileiro – Sonia Montaño Educação cooperativa solidária: perspectivas e limites – Carlos Daniel Baioto


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