36
| designin
A fonte da Tipo gráfico associado ao modernismo e à falta de criatividade, Helvetica é tema de documentário cult que tem causado polêmica no mundo todo.
discórdia Virgínia Postrel
Q
uando vai (e volta) de metrô para seu trabalho na Plexifilm, uma produtora de cinema e selo independente de DVDs com sede no Brooklyn [em Nova York], Gary Hustwit vê a mesma coisa por toda
parte: a fonte Helvetica. O metrô, diz, “está coberto de Helvetica. Eu quis entender o porquê disso”. E não é apenas o metrô. Os números dos táxis de Nova York também estão em Helvetica. A fonte está presente nos formulários de Imposto de Renda, nas caixas do correio dos EUA e em caminhões da ConEd [empresa de
Helve energia].
A fonte “sansserif” criada há 50 anos [completos em 2007] é vista em inúmeras logomarcas: Sears, Fendi, Jeep, Toyota, Energizer, Oral-B, Nestlé.
Quando você se dá conta de que a Helvetica está em toda parte, diz Hustwit, “não consegue deixar de pensar nisso”.
37
| 04 de novembro do ano 3
Para descobrir a razão da onipresença dessa única fonte, Hustwit fez um documentário, seu primeiro como diretor (ele já tinha produzido cinco documentários sobre temas relacionados à música). “Helvetica” estreou em março do ano passado no festival de cinema South bySouthwest e, divulgado em grande parte porsites voltados ao design e pelo boca-a-boca, em pouco tempo se tornou sucesso cult internacional. O DVD foi lançado em novembro. Uma semana mais tarde, Hustwit foi indicado ao prêmio IndependentSpirit na categoria “Mais Verdadeiro que a Ficção”.
do chamado estilo suíço, o estilo interna-
Uma fonte tipográfica parece um tema improvável para um filme,
cional que ganhou imensa popularidade
mas o tema da Helvetica suscita reações fortes. Para alguns
mundial nos anos 1960.
designers, a fonte representa um tipo de beleza transparente,
Na década de 70, todo mundo que se
racional e moderna.
rebelava contra isso odiava a Helvetica,
Para outros, ela é tediosa, opressiva e empresarial demais. Hus-
porque ela simbolizava uma linguagem
twit usa a história da Helvetica para relatar a história do design
visual uniformizada, internacional, cor-
gráfico no pós-guerra e demonstrar a eterna tensão estética entre
porativa. Ainda existe uma divisão entre
o expressivo e o clássico. Abaixo, ele explica seu projeto.
designers, mesmo os jovens: há os que gostam daquele estilo clean, minimalista,
PERGUNTA - Por que não um filme sobre a [fonte] Times New
racional, e os que querem que as coisas
Roman? Por que a Helvetica se impõe a tal ponto?
sejam mais emocionais e expressivas. A
etica HUSTWIT - A Helvetica é uma questão que realmente polariza
Helvetica é a linha divisória que separa
opiniões dentro da comunidade do design. As pessoas que gos-
esses dois lados.
tam dela geralmente são pessoas interessadas no modernismo, e as que não gostam são pessoas que o rejeitam.
PERGUNTA - Como se sente, pessoal-
Ela se tornou símbolo do design gráfico modernista posterior e
mente, em relação à questão?
HUSTWIT - Acho que provavelmente me situo entre os modernistas. Nos últimos 20 anos, venho gostando dos dois lados. Meu pano de fundo está no punk rock, então
38
| designin
gosto daquele estilo visual anarquista, detonado, mas também gosto de elementos gráficos “clean”, inspirados na Bauhaus. Minha opinião não chega a ter muita importância no filme, que funciona como vitrine para todos esses diferentes designers gráficos e de fontes. Não gosto de documentários feitos na primeira pessoa. Não me interessam as opiniões do cineasta. O que me interessa é o tema das opiniões expressas no documentário.
PERGUNTA - O cinema está passando por algo semelhante à transformação que atingiu a tipografia no início dos anos 90, com ferramentas digitais barateando muito a produção e distribuição. Existe algo que os cineastas possam aprender
PERGUNTA - Você mesmo desenhou
com o que aconteceu na área das fontes?
algumas fontes um tanto quanto “grun-
HUSTWIT - A democratização da tecnologia, seja ela a tecnolo-
ge” no início dos anos 1990. O que se
gia do design gráfico ou a da cinematografia, é uma faca de dois
aprende quando se cria uma fonte?
gumes. Ela abaixa as barreiras de entrada, de modo que muitos
HUSTWIT - Descobre-se que o trabalho
designers ou cineastas novos podem se expressar.
dos designers de fontes é espantosa-
Ao mesmo tempo, enche a paisagem de muito lixo. Há algumas
mente complexo. O nível de detalhe que
coisas interessantes que o YouTube levou à atenção de um pú-
entra em todas as decisões tomadas
blico maior, mas, se você pensar na porcentagem de coisas no
quando se cria uma fonte tipográfica é
YouTube que valem a pena em qualquer sentido cultural, verá
simplesmente
inacreditável.
Que
deve
distância
existir
entre duas letras diferentes quando elas aparecem lado a lado, como, por exemplo, um tê em maiúscula e um ó em minúscula? Que distância
“
Os estudantes de design gráfico são exatamente iguais em todos os países - até sua aparência é igual
aquele ó deve deslizar para baixo da trave
”
que ela é minúscula. O trabalho envolvido na criação de um documentário é muito maior do que pensa a maioria das pessoas quando assistem a um programa de meia hora ou a um documentário de uma hora na TV. É preciso muito mais trabalho
em termos da edição, do som, da fotografia e tudo o mais.
horizontal do tê? É preciso tomar essas decisões para
PERGUNTA - Você foi a 90 sessões de seu filme em todo o
cada par de letras que poderia ser forma-
mundo, algumas com públicos amplos e outras com platéias
do. É uma coisa capaz de enlouquecer.
formadas por designers gráficos. Quão diferentes foram as
Alguém como [o britânico] Matthew Carter
reações? Quais eram as perguntas que faziam?
é mestre nesse assunto. É uma daquelas
HUSTWIT - “Por que fazer um filme sobre uma fonte tipográfica?”
formas de arte feitas por pessoas comple-
é a pergunta mais freqüente. O que acho da Helvetica, como
tamente invisíveis.
escolhi os designers que trabalham no filme: essas foram as
É como se elas não quisessem que seu
perguntas feitas com mais freqüência.
trabalho fosse notado. Querem apenas que as pessoas leiam a mensagem e compreendam o que o texto diz, sem nenhum tipo de interferência da fonte. Quando as pessoas notam a fonte, geralmente é porque há algo de errado com ela: é difícil de ler ou as letras estão próximas demais uma da outra.
Mesmo quando mostramos “Helvetica” em festivais de cinema em que o público era formado não por designers, mas por pessoas que simplesmente gostam de documentários, a reação foi a mesma. Uma coisa que descobri foi que os estudantes de design gráfico são exatamente iguais em todos os países -até sua aparência é igual. Eles usam as mesmas roupas. É uma rede verdadeiramente global de designers. Eu me senti como se estivesse mostrando o filme 90 vezes diferente para o mesmo grupo de pessoas.
39
|
finalizado. PERGUNTA - Teria custado muito mais fazer o filme 20 anos atrás? HUSTWIT - Provavelmente. Rodamos 60 horas de filme. Se tivéssemos filmado com película de celulóide, o custo teria PERGUNTA - Uma das coisas divertidas do filme é que ele
sido maior. E o processo de edição custa muito menos hoje. Dá para fazê-lo num
mostra tantos usos diferentes da Helvetica. Qual é sua favo-
sistema Mac sofisticado. A maior despesa
rita?
ainda é a que se tem com as pessoas
HUSTWIT - No cartaz da Copa do Mundo de Berlim. Estávamos
-conseguir um bom diretor de fotografia,
passando de carro, por acaso, olhamos para cima e vimos um
um bom editor e bons técnicos de som.
sujeito suspenso de cordas a 15 metros de altura, costurando as
Isso é algo que não muda. Se você quer
letras gigantes em Helvetica no cartaz da Copa do Mundo, que
fazer um ótimo trabalho, precisa chamar
devia ter um quarteirão de comprimento. Quase todas as imagens
ótimas pessoas.
de Helvetica que filmamos em cidades foram encontradas aleatoriamente, por puro acaso. A meta era encontrar usos interessantes da fonte ou pessoas interagindo com ela. A bandeira da Copa do Mundo foi um exemplo perfeito disso. Eu também queria encontrar a Helvetica em letras grandes, e as do cartaz estão entre as maiores que encontramos. PERGUNTA - O filme discute se
PERGUNTA - Você já sabe qual será
“
Uma das coisas espantosas da Helvetica é que ela vem sendo usada há décadas, inclusive usada em excesso, mas, mesmo assim, ainda a vemos por toda parte
a Helvetica pode continuar a ser
”
seu próximo projeto? HUSTWIT - Os filmes de música com os quais trabalhei, e “Helvetica”, com toda certeza, tratam da criatividade -do processo criativo- e também da comunicação. Acho que esses dois temas vão reaparecer em meu próximo filme. Nos últimos cinco a dez anos, percebe-se uma tendência nas
neutra, depois de ser tão usada.
pessoas em acharem que um documen-
HUSTWIT - É verdade que as fontes tipográficas vão acumulan-
tário precisa ser político para valer a pena.
do bagagem em decorrência de como são usadas. Quando olho
Para mim, isso é lamentável. Há esse ou-
para a Helvetica, penso em em American Airlines.
tro lado do cinema documental que ana-
Uma das coisas espantosas da Helvetica é que ela vem sendo
lisa a criatividade e outras questões não
usada há décadas, inclusive usada em excesso, mas, mesmo
ligadas à justiça social ou à guerra, que
assim, ainda a vemos por toda parte. E alguns designers gráfi-
são igualmente merecedoras de análise. É
cos jovens, muito voltados ao futuro, ainda a usam da mesma
como se não pudéssemos ter literatura de
maneira como ela era usada nos anos 1960.
não-ficção, como se nunca pudéssemos
Não consigo explicar por que, com os milhares de fontes das
ter romances
quais as pessoas dispõem hoje, uma grande porcentagem delas ainda opta por usar a Helvetica. PERGUNTA - Como você financiou seu filme? HUSTWIT - Foi financiado por meu próprio dinheiro, meus cartões de crédito, meus amigos e minha família. Uma firma canadense de design chamada Veer entrou como patrocinadora,
.
04 de novembro do ano 3
quanto o projeto já estava perto de ser