VOLUME 3 . EDIÇÃO 3
EDITORIAL: A GERONTOPSICOMOTRICIDADE COMO PRÁXIS TERAPÊUTICA DE MEDIAÇÃO CORPORAL
A pessoa idosa está sujeita a uma diminuição progressiva das capacidades gnoso-
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(angústia da queda, da separação, da fragmentação, da liquefação, ... da morte).
práxicas, da capacidade em reagir a situações
As alterações corporais que vão
emocionais ou físicas, e dos processos
acontecendo ao longo do tempo, influenciam
mnésicos ou atencionais. O desenvolvimento
negativamente a organização da personalidade
psicossomático que o ser humano adquire ao
e as relações que o idoso estabelece com os
longo dos primeiros anos de vida sofre uma
outros e o mundo. No entanto, a consciência de
involução com o avançar da idade. Desta forma,
envelhecer aparece num curto espaço de
o idoso pode expressar lentidão psicomotora,
tempo, como que de um dia para o outro,
perda de força, fadiga, aumento do tempo de
através de um espelhamento que é precedido
reação, problemas práxicos, problemas espaço-
por um acontecimento traumático, como por
temporais, problemas de marcha, fobia da
exemplo vivenciar uma queda, um luto, ou uma
queda, dificuldades de comunicação em grupo,
doença. Desta forma, a pessoa reconhece-se
abulia, problemas de regulação emocional,
como idosa e assume essa identidade
angústias, ou desvalorização da imagem
exteriorizando comportamentos associados à
corporal.
dor, revolta, resignação, submissão, ou auto-
Com o envelhecimento acontecem várias
recriminação. Podemos então dizer que a vida
metamorfoses sobre as quais os profissionais
psíquica e a vida somática estão sujeitas a
de saúde devem ter um olhar atento. Do ponto
formas diferentes e particulares de
de vista psicomotor esta escuta deve centrar-se
(dis)funcionalidade, mas que existe uma
sobre a forma como o idoso investe, sente, e
interdependência funcional entre elas, o que
vive o seu próprio corpo, tanto na dimensão real
fundamenta a importância da prática
como imaginária. O corpo de qualquer sujeito
psicomotora para as pessoas idosas, ou seja da
constitui um espaço corporal, que permite situar
gerontopsicomotricidade. Se o termo
o sujeito em relação ao envolvimento, e o
(gerontopsico)motricidade envolve a
envolvimento em relação ao sujeito. Esta
importância do corpo e do movimento como
dicotomia entre espaço interno e externo cuja
mediadores da própria intervenção através de
fronteira é a pele, torna-se fundamental na
técnicas de estimulação sensorial e de
estruturação da identidade corporal e do
relaxação, do toque terapêutico, da expressão
sentimento de si. No entanto, o idoso tem
artística e emocional, ou dinâmicas de grupo
afetada e comprometida a sua identidade, na
que permitem trabalhar, para além das
medida em que esta se operacionaliza a partir
estruturas gnoso-práxicas, o envelope corporal
de um corpo real fragilizado. Este corpo que
que constitui os fundamentos da identidade e
traduz um espaço vazio e o luto inerente às
reconstrução egóica do sujeito idoso. O termo
respetivas faltas no corpo, provoca insegurança
(geronto)psico(motricidade) está associado ao
e consequentemente reativa as angústias
objetivo global da intervenção, que envolve (i)
arcaicas associadas às perdas no corpo
em termos reeducativos a melhoria do equilíbrio,
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da regulação do movimento, da memória e
seu envelope corporal, o seu continente
outras capacidades cognitivas; e (ii) em termos
psíquico, e consequentemente (re)valoriza a sua
terapêuticos objetiva a aquisição de processos
imagem corporal. A estratégia inerente à
que permite ao idoso renarcisar o seu corpo,
consecução deste objetivo passa por não
ajudando-o a ultrapassar o luto de uma
considerarmos o corpo do sujeito como meio
determina imagem de si próprio, e ter a
privilegiado de intervenção, mas, e
possibilidade de desenvolver uma nova
fundamentalmente, considerarmos que existe
identificação especular. O terapeuta, o
um sujeito que possui um corpo em relação.
psicomotricista deve permitir que o idoso
A terceira característica está centrada na
construa uma imagem corporal, que contrarie ou
especificidade da relação psicomotricista/idoso,
minimize a existência real de um corpo
que envolve o estabelecimento de uma
fragilizado que sofreu perdas sucessivas, de
ressonância tónico-emocional empática, onde o
forma a adquirir uma continuidade na razão da
psicomotricista desempenha a função de
sua existência. Desta forma substituirá o
continente corporal de forma a colmatar as
sofrimento, o medo ou a angústia pelo prazer
fragilidades do Eu-pele do idoso. Coloca-se a
em viver.
tónica no encontro entre terapeuta e idoso, na
No meu entender, a gerontopsicomotricidade
utilização da linguagem corporal, no corpo a
apresenta quatro características específicas que
corpo, no infra-verbal e no verbal. É com base
a delimita como práxis terapêutica de mediação
nesta relação e respetivos processos
corporal. A primeira é a grande diversidade de
transferenciais que se vai construir toda a
patologias em que o psicomotricista pode
relação terapêutica.
intervir como terapeuta. Estas podem envolver
A quarta e última característica, de âmbito
as (i) patologias somáticas que influenciam as
mais conceptual, reflete a importância de
funções relacionais associadas à
entendermos que por detrás de um problema
sensorialidade, locomoção e comunicação, os
físico e dos seus sintomas pode esconder-se
(ii) problemas psiquiátricos, como a deterioração
um fenómeno psicológico. Por exemplo, as
mental, a demência senil, a depressão, a
alterações no equilíbrio ou na marcha são
psicose, a neurose, ou (iii) os problemas
muitas vezes a expressão de fenómenos
neurológicos como a doença de Parkinson, a
ansiosos, depressivos, ou neuróticos, cuja
epilepsia, o acidente vascular cerebral.
origem é sempre uma falha narcísica que altera
A segunda característica centra-se num
a imagem do corpo. Portanto, não devemos cair
objetivo específico desta intervenção, que tem
na tentação de centrarmos as causas dos
como propósito aprimorar o corpo envelhecido,
comportamentos observados apenas em
de forma a ajudar a pessoa idosa a adquirir
síndromes neurológicos ou
novas percepções e representações do seu
neuromotoras e, assim, realizarmos uma
corpo real e imaginário. Desta forma o idoso
intervenção motora por repetição funcional do
vivencia e ressente a sua unidade corporal, o
défice.
disfunções
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Para terminar, gostaria de referir que o conjunto destas características e especificidades permitem diferenciar a gerontopsicomotricidade de qualquer outra intervenção que utilize o corpo e o movimento como mediadores. Gostaria também de reforçar que o foco de qualquer terapia de mediação corporal não está no corpo isolado ou na prática de exercício, mas no corpo em relação, numa motricidade em relação, e neste caso especifico no idoso que habita o seu corpo em relação. Quando falamos de relação estamos a referirnos à empatia estabelecida entre o sujeito cuidador e o sujeito cuidado, entre o psicomotricista e o idoso. A transferência que o idoso projeta no psicomotricista, e a contratransferência e respetiva resposta realizada por este, acima denominada de ressonância tónico-emocional empática, é fundamental para se criarem as condições necessárias para a renarcisação e reestruturação egóica da pessoa idosa. Estas serão as características fundamentais que caracterizam a intervenção gerontopsicomotora como terapia de mediação corporal. Jorge Fernandes Professor Auxiliar no Departamento de Desporto e Saúde da Universidade de Évora, Coordenador do Curso de Reabilitação Psicomotora