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Vieira M. ; Sá V. (2019) Leg ulcers: cutaneous manifestation of hematological diseases, Journal of Aging & Innovation, 8 (2): 16- 27 REVISÃO BIBLIOGRAFICA NARRATIVA: Vieira M.; Sá V. (2019) Leg ulcers: cutaneous manifestation of hematological diseases, Journal of Aging & Innovation, 8 (2): 16- 27

 Revisão Bibliografica Narrativa

Úlceras de Perna: manifestação cutânea de doenças hematológicas Leg ulcers: cutaneous manifestation of hematological diseases Úlceras de Pierna: manifestación cutánea de enfermedades hematológicas

Manuela Vieira 1 ; Vanessa Sá 2 1

CNS, USF Marginal; Pós-Graduada em Gestão de Feridas Crónicas: uma abordagem de boas práticas (FERIDASAU),

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Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Marginal, ACES Cascais

Corresponding author: manuelavieira71@gmail.com

Resumo Introdução: As úlceras das extremidades inferiores podem ter várias etiologias. 80% são de origem venosa, 15% de origem arterial e os restantes 5% resultam de causas fisiopatológicas menos comuns, onde se enquadra a causa hematológica. Objetivo: Realizar uma revisão narrativa da literatura acerca das úlceras de perna de origem hematológica, descrevendo as suas caraterísticas e a abordagem em contexto de cuidados saúde primários. Metodologia: Com base nos pressupostos metodológicos da revisão narrativa da literatura, foi efetuada pesquisa bibliográfica de artigos em bases de dados como a Pubmed e EBSCOhost, na plataforma Google relacionada com a temática, assim como outras fontes de consulta bibliográfica. Resultados /Discussão: Da revisão da literatura conclui-se que a úlcera de perna pode surgir como manifestação cutânea de várias doenças hematológicas. É mais frequente em doentes com hemoglobinopatias, sendo a anemia das células falciformes a que mais se associa ao aparecimento de úlceras de perna. A etiologia é complexa e multifatorial e causam grande impacto na qualidade de vida dos doentes, por serem muito dolorosas, de difícil cicatrização e elevada recorrência. É fundamental a avaliação da ferida, assim como uma avaliação global do utente, os antecedentes pessoais e familiares, um estudo analítico direcionado e, eventualmente, a utilização de outros meios complementares de diagnóstico. Quanto ao tratamento, não existe atualmente evidência científica que permita estabelecer qual o mais adequado, devendo incidir na monitorização e tratamento adequado da patologia base, nos princípios básicos de tratamento de feridas complexas e na promoção de estratégias de prevenção por parte dos doentes. Conclusão: É essencial que no contexto dos cuidados de saúde primários os profissionais de saúde estejam sensibilizados para identificar causas menos comuns de ulceração do membro inferior, por forma a proporcionar atempadamente um tratamento adequado aos utentes com esta condição.

Palavras-chave: Úlceras de perna, doenças hematológicas, feridas crónicas, cuidados de saúde primários.

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REVISÃO BIBLIOGRAFICA NARRATIVA: Vieira M.; Sá V. (2019) Leg ulcers: cutaneous manifestation of hematological diseases, Journal of Aging & Innovation, 8 (2): 16- 27 Abstract Introduction: Lower extremity ulcers can have several etiologies. About 80% are of venous origin, 15% of arterial origin and the remaining 5% result from less common pathophysiological causes, which include the hematological cause. Objective: The aim of this paper is to perform a narrative review of the literature about hematological leg ulcers, describe their characteristics and their approach in the context of primary health care. Methodology: Based on the methodological criteria of the narrative literature review, a bibliographic search of articles in databases such as Pubmed and EBSCOhost, research on the google platform related to the theme, as well as other sources of bibliographic consultation were performed. Results / Discussion: From the literature review, it can be concluded that leg ulcers may appear as a cutaneous manifestation of several hematological diseases. It is more common in patients with hemoglobinopathies, with sickle cell anemia being the most associated with leg ulceration. The etiology is complex and multifactorial. They have a great impact on patients' quality of life because they are very painful, difficult to heal and have a high recurrence rate. It is essential to evaluate the wound, as well as an overall assessment of the patient, personal and family history, a targeted analytical study and, eventually, the use of other complementary means of diagnosis. Regarding treatment, there is currently no scientific evidence to establish which is the most appropriate approach. Generally it should be based on monitoring and treating the underlying pathology, on following the basic principles of treatment of complex wounds and the promotion of prevention strategies among patients. Conclusion: It is essential that in the context of primary care, health professionals are aware of these less common causes of lower extremity ulceration in order to provide appropriate treatment to patients with this condition in a timely manner.

Keywords: Leg ulcers, hematological diseases, chronic wounds, primary health care.

1. INTRODUÇÃO As úlceras de perna são um problema de saúde crescente com consequentes implicações socioeconómicas importantes, nomeadamente ao nível dos encargos para os serviços de saúde. Podem ter várias etiologias, sendo as mais frequentes as de origem venosa (80% dos casos), seguidas das de origem arterial, com aproximadamente 15% do total. Os restantes 5% resultam de causas fisiopatológicas menos comuns, onde se englobam as úlceras de perna de causa infeciosa, metabólica, maligna, vasculítica, traumática, hematológica, entre outras (TODHUNTER, 2019). O diagnóstico diferencial da etiologia da úlcera de perna é de extrema importância, pois o sucesso do tratamento destas feridas depende do estabelecimento precoce de um diagnóstico preciso. Para isso, é indispensável uma análise anamnéstica detalhada e avaliação da ferida. Segundo Isoherranen et al. (2019) as feridas atípicas representam um amplo espectro de condições ou doenças, podendo ser causadas por inflamação, infeção, malignidade, doenças crónicas ou distúrbios genéticos. As doenças hematológicas estão incluídas nestas causas menos frequentes, sendo as úlceras uma manifestação cutânea das mesmas. Várias formas

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de anemia têm sido associadas à ulceração da perna, como a anemia falciforme, a talassémia, a esferocitose hereditária e a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (MEKKES et al., 2003). A abordagem das úlceras de perna nestas etiologias deverá ser realizada no âmbito multidisciplinar, envolvendo entre outros, os cuidados de saúde primários, a cirurgia vascular, a cirurgia plástica, a dermatologia, em articulação com podologistas, nutricionistas e psicólogos. Para isso, é importante a existência de diretrizes ou protocolos de referenciação que permitam esta colaboração. Neste artigo identificam-se as principais causas hematológicas que podem originar ulceração dos membros inferiores, descrevendo-se as suas características, tratamento e a abordagem a privilegiar em contexto de cuidados saúde primários.

2. Causas hematológicas de úlcera de perna São diversas as patologias do foro hematológico que podem ter como manifestação cutânea as úlceras de perna, sendo estas consideradas um marcador de gravidade da doença. Das patologias mais frequentes, associadas a essa condição, destacam-se a anemia das células falciformes e as talassémias α e β (ALAVI e KIRSNER, 2015). Estas hemoglobinopatias bem como outras variantes da hemoglobina, são as doenças hereditárias graves que apresentam maior prevalência em todo mundo, constituindo, ainda hoje, um importante problema de saúde pública. A sua distribuição nas diferentes populações é muito variável, atingindo incidências mais elevadas nas de origem mediterrânea, africana e oriental. Em Portugal, a distribuição é heterogénea, sendo as zonas de maior prevalência as regiões do Centro e Sul do País. A Drepanocitose, β Talassémia Major e Intermédia, com transmissão autossómica recessiva, são as formas graves das hemoglobinopatias mais comuns (DGS, 2004), não havendo, no entanto, dados conhecidos sobre a prevalência de úlceras de perna desta etiologia a nível nacional. No quadro 1 encontram-se elencadas as patologias hematológicas que podem ser causa de úlceração dos membros inferiores. Quadro 1. Causas Hematológicas de Úlceras Perna Doenças Hematológicas

Distúrbios da Coagulação

- Drepanocitose

- Factor V de Leiden

- Talassémia

- Anticoagulante Lúpico

- Esferocitose Hereditária

- Anticadiolipinas (Síndrome Anticorpos

- Deficiência Glicose-6-Fosfato Desidrogenase

- Trombocitopenia Essencial

Anti-Fosfolipídicos) •

- Alterações da fibrinólise

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- Púrpura Tombocitopénica - Trombótica

- Deficiência Factor XIII

- Policitemia Vera

- Deficiência Anti-- Trombina III

- Disproteinemias Monoclonais

- Deficiência Proteínas C e S

- Mieloma Múltiplo

- Coagulação Vascular Disseminada

- Doença de Waldeström

- Púrpura Fulminante

- Disproteinemias Policlonais

- Criofibrogenemia

- Aglutininas Frias

Drepanocitose ou Anemia das células falciformes A drepanocitose ou anemia das células falciformes é a patologia hematológica mais frequentemente associada a ulceração dos membros inferiores. É hereditária, com padrão autossómico recessivo, e afeta a formação da hemoglobina. Caracteriza-se por anemia e hemólise crónicas com agudizações (por exemplo, crises vaso oclusivas e/ou anemia aguda), (CRUZ et al., 2011; ALTMAN et al., 2015) bem como pelo aumento da suscetibilidade a infeções sistémicas. As manifestações clínicas da patologia falciforme surgem da polimerização da hemoglobina S no eritrócito, o que distorce a sua forma e leva à falciformização na microcirculação (OLUJOHUNGBE e ANIONWO, 2010). Estes eritrócitos anómalos têm uma semi-vida mais curta, não conseguem transportar adequadamente o oxigénio, são menos flexíveis e aderem mais facilmente às paredes dos vasos. Assim, dificultam a circulação sanguínea e provocam fenómenos de vaso-oclusão difusos (oclusões microvasculares) que resultam em isquemia, dor, necrose (processos envolvidos na ulceração da pele), hemólise prematura e infeções bacterianas secundárias (CRUZ et al., 2011; ALTMAN et al., 2015; KHATIB e HAKEY, 2016). Esta condição afeta vários órgãos, provocando crises dolorosas intensas e recorrentes, requerendo frequentemente o internamento hospitalar.

Talassémia A talassémia é um distúrbio hereditário da hemoglobina. Indivíduos com talassémia major não produzem hemoglobina suficiente, condicionado deste modo a produção de glóbulos vermelhos pela medula óssea. Os doentes com esta patologia podem desenvolver úlceras de perna semelhantes às de causa drepanocítica, sendo a localização mais frequente de ulceração a região maleolar medial. O processo de ulceração pode estar relacionado com o aumento da concentração da hemoglobina fetal, que apresenta alta afinidade para o oxigénio (CHAKRABARTY e PHILLIPS, 2003).

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Esferocitose hereditária A Esferocitose Hereditária é uma anemia hemolítica congénita que resulta de alterações quantitativas e/ou qualitativas das proteínas da membrana do eritrócito. Caracteriza-se por uma anemia de gravidade variável, com icterícia intermitente, presença de esferócitos no esfregaço de sangue periférico, fragilidade osmótica aumentada e esplenomegalia (CHAKRABARTY e PHILLIPS, 2003). As suas complicações incluem crise hemolítica (hemolítica,

aplástica

e

megaloblástica),

doença

da

vesícula

biliar

(colelitíase),

hemocromatose, mieloma múltiplo, massas extramedulares de tecido hematopoiético, dermatite nas pernas e úlceras crónicas nas pernas (GIRALDI et al., 2003).

Policitemia Vera e Trombocitemia essencial Pertencem a um grupo de neoplasias mieloproliferativas de causa fisiopatológica ainda não totalmente conhecida, e são caracterizadas pela proliferação anómala de células sanguíneas. Na Policitemia Vera (PV) há um aumento expressivo da massa eritrocitária. No caso da Trombocitemia Essencial (TE) são as plaquetas as células implicadas. Ambos os distúrbios aumentam o risco de eventos vaso-oclusivos e, consequentemente, o risco de ulceração da pele, sendo que as manifestações cutâneas podem preceder em meses o diagnóstico hematológico (CHAKRABARTY e PHILLIPS, 2003). Os mesmos autores referem ainda que um quarto dos doentes, especialmente fumadores, apresentam manifestações arteriais isquémicas. No caso da trombose venosa, esta tem sido mais frequentemente associada à PV. Estes distúrbios, na maioria dos casos, são diagnosticados acidentalmente ao identificarse um valor elevado de hemoglobina/hematócrito ou de plaquetas, num hemograma pedido por outros motivos. Noutros casos, os doentes podem apresentar cefaleias, tonturas, eritromelalgia e alterações visuais. A PV, ao contrário da TE, pode ainda ser caracterizada por prurido aquagénico.

Distúrbios da coagulação Os distúrbios da coagulação que podem resultar em úlceras nas pernas incluem: síndrome antifosfolipídico, deficiência da proteína C e proteína S, fator V de Leiden, anticoagulante lúpico, deficiência do fator XIII e deficiência da antitrombina III (RAYNER et al., 2009).

Crioglobulinemia As crioglobulinas são imunoglobulinas séricas que se precipitam reversivelmente na exposição a temperaturas frias. A crioglobulinemia é classificada em diferentes tipos. No tipo I as crioglobulinas são monoclonais; no tipo II são imunoglobinas monoclonais e policlonais

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mistas; no tipo III são imunoglobinas policlonais mistas. O tipo I está associado nomeadamente a gamapatias monoclonais secretoras (ex. mieloma múltiplo, gamopatia monoclonal de significado indeterminado - MGUS). Os tipos II e III estão relacionados com doenças infeciosas, especialmente hepatite C, e doenças autoimunes. A precipitação de crioglobulinas provoca a trombose de vasos e vasculite. Há casos de oclusão de vasos que resultam em necrose cutânea e ulcerações atípicas das extremidades inferiores. Clinicamente, os doentes com crioglobulinemia podem apresentar ainda púrpura por exposição ao frio, livedo reticular, e fenómeno de Raynaud (CHAKRABARTY e PHILLIPS, 2003).

3. Características das úlceras hematológicas mais comuns Como descrito anteriormente, a anemia das células falciformes é a patologia hematológica mais frequentemente associada a ulceração da pele, principalmente as formas mais graves de doença, sendo o priapismo e a hipertensão pulmonar considerados marcadores de vasculopatia falciforme avançada (MINNITI et al., 2010). Nos doentes com esta patologia, a taxa de incidência de úlcera de perna pode variar entre 25% e 75% de acordo com a idade, o genótipo e a origem geográfica do doente (SERJEANT et al, 2005; RAYNER, 2009; ALAVI e KIRSNER, 2015). As úlceras na anemia das células falciformes são feridas de difícil tratamento e de processo de cicatrização lento. São muito dolorosas e incapacitantes tendo um impacto muito marcante na qualidade de vida dos doentes. Surgem na faixa etária entre os 10 e os 50 anos de idade, mais frequentes no sexo masculino, e apresentam uma alta taxa de recorrência (SERJEANT et al., 2005). Geralmente começam como pequenas lesões, que podem ocorrer espontaneamente ou de forma traumática, por contusões, picadas de insetos ou mordeduras de animais. Podem ser classificadas como agudas ou crónicas, não havendo consenso no que se refere ao período de tempo específico para definir a cronicidade. Para Minniti et al. (2010), uma úlcera aguda cicatriza habitualmente dentro de um mês, sendo que as úlceras crónicas são as que não cicatrizam por um período de tempo superior a 6 meses, mantendo-se por vezes durante anos com carácter recidivante. Para o mesmo autor, o índice de gravidade das úlceras de perna tem como base o tamanho, a profundidade e a duração da úlcera. As úlceras podem localizar-se em apenas um dos membros inferiores ou ocorrer bilateralmente, podendo ser únicas ou múltiplas. Tipicamente ocorrem em áreas com tecido adiposo subcutâneo mais escasso, pele fina e diminuição do fluxo sanguíneo, como por exemplo a região maleolar interna ou externa, tibial anterior e, mais raramente, o dorso do pé (KHATIB e HAKEY, 2016). Com dimensões habituais inferiores a 10 cm de diâmetro,

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apresentam-se com bordos elevados e margens bem definidas, com tecido necrótico, exsudado significativo e presença de descamação na pele circundante (SERJEANT et al., 2005).

4. Abordagem diagnóstica De uma forma geral, a abordagem das úlceras envolve o conhecimento aprofundado do quadro clínico, dos fatores patogénicos e etiológicos potencialmente envolvidos, dos fatores de risco e proteção do indivíduo, bem como dos princípios gerais da abordagem terapêutica, tanto sistémica, como local, orientada à causa. Na presença de uma ferida com características atípicas (ver Quadro 2) deverá ser feita reavaliação da mesma no sentido de excluir outros diagnósticos menos frequentes (ISOHERRANEN et al.,2019).

Quadro 2. Quando suspeitar de úlcera atípica? Ferida que não se enquadrada numa categoria típica (p.ex. úlcera venosa, arterial, mista, de pressão ou pé diabético) Não responde a tratamento padrão otimizado Evolução rapidamente progressiva Características e/ou localização pouco comuns Dor desproporcional à ferida Tempo de evolução (não consensual) •

4-12 semanas sob tratamento otimizado (ISOHERRANEN et al.,2019);

6 meses (ARAÚJO e KIRSNER, 2010; CRUZ et al., 2011)

Para além da recolha anamnéstica criteriosa e de um exame físico adequado, poderá ser realizada uma avaliação dirigida à causa hematológica. Este estudo deverá ser mais ou menos exaustivo de acordo com o nível de cuidados em que o doente se encontra, admitindose como prioritária a referenciação precoce dos cuidados de saúde primários para cuidados específicos, secundários. A avaliação laboratorial deverá ser orientada pela anamnese e poderá incluir hemograma com contagem de plaquetas, velocidade de sedimentação, proteína-C-reactiva, antitrombina III, proteína C e S, factor V de Leiden, protrombina G20210A, esfregaço de sangue periférico, homocisteína, electroforese da hemoglobina, crioglobulinas/crioaglutininas, glicose-6-fosfato desidrogenase, estudo do complemento, D-Dímeros, PT e aPTT. Para a avaliação do

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componente imunológico poderá ser necessário avaliar ainda: ANA, fator reumatóide, doseamento

das

antifosfolipídico,

imunoglobulinas, ANCA,

ac.

electroforese

anticardiolipina,

proteica,

imunoelectroforese,

anticoagulante

lúpico,

anti-ENA

ac. e

imunocomplexos circulantes. Relativamente à avaliação bioquímica geral, analisando a necessidade de cada caso individualmente, poderá será útil avaliar ureia, creatinina, enzimologia hepática, marcadores de hepatites, perfil lipídico, electrólitos (Na+, K+, Cl-, Ca2+, PO43-, Mg2+), albumina/préalbumina e sedimento urinário (CRUZ et al., 2011). A avaliação imagiológica por ecografia-Doppler dos membros inferiores e a avaliação IPTB impõe-se para exclusão de etiologia vascular (arterial e/ou venosa). A biópsia cutânea ganha valor na presença de quadro refratário ao tratamento otimizado, isto é, após 12 semanas (CHAKRABARTY e PHILLIPS, 2003). Na suspeita de infeção, a avaliação clínica sobrepõe-se aos exames microbiológicos superficiais da ferida no estabelecimento diagnóstico, uma vez que os últimos revelam frequentemente apenas microrganismos colonizadores da pele (MINNITI et al., 2016). Por outro lado, estudos por exsudado profundo da ferida, aspiração de exsudado purulento e/ou por biópsia cutânea poderão identificar o agente patogénico e auxiliar no estabelecimento da linha de antibioterapia mais adequada, em caso de falência da terapêutica empírica (SINGER, 2017). Nas situações em que a hipótese de osteomielite se coloca poderá ser necessário estudo por Ressonância Magnética, sendo o diagnóstico definitivo dado pela biópsia óssea e impondo-se tratamento dirigido (MINNITI et al., 2016).

5. Tratamento Para o tratamento das úlceras associadas a doenças hematológicas é essencial uma abordagem multifacetada, com elaboração de um plano de cuidados bem estruturado, direcionado à etiologia da úlcera e aos seus fatores de agravamento. Este plano deverá envolver intervenções locais e sistémicas (ver Quadro 3), permitindo alcançar uma abordagem com melhor relação custo-efetividade.

Quadro 3. Princípios do tratamento de feridas em doentes com anemia de células falciformes e úlceras (traduzido de MINNITI e KATO, 2016) Tratamento local

Tratamento sistémico

- Desbridamento

- Vasodilatadores para HTA sistémica

- Identificação e tratamento da infeção

- iECA/ARA para proteinúria/microalbuminúria

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- Absorção do excesso de exsudado

- Hidroxiureia por dor recorrente, SCA, anemia

- Manter a superfície da ferida húmida

grave

- Verificar avanço dos bordos epiteliais

- Quelantes para sobrecarga de ferro

- Proteger a ferida contra infeção ou trauma

- Vasodilatador pulmonar e/ou diuréticos para

- Aliviar o edema perilesional por

hipertensão pulmonar

compressão

- Correção de deficits de vitamina D ou Zinco

- Uso de calçado adequado

- Suplementos para má nutrição calórico-proteica - Anticoagulação se TVP recém- diagnosticada - Apoio psicológico - Controlo da dor

HTA - Hipertensão arterial; iECA - Inibidor da Enzima de Conversão da Angiotensina; ARA - Antagonista dos Receptores da Angiotensina; SCA - Síndrome Coronário Agudo; TVP - Trombose Venosa Profunda

No tratamento local das úlceras de perna são aplicados os princípios gerais no tratamento de feridas crónicas, com enfoque no controlo de eventuais barreiras à cicatrização, aplicando o conceito TIME (T= Tecido não viável; I= Infeção ou Inflamação; M= Exsudado em desequilíbrio; E= Bordos da Ferida) na escolha do material de penso (ISOHERRANEN et al.,2019). De acordo com as características das feridas poderá ser necessário efetuar desbridamento de tecido desvitalizado, controlar a infeção e inflamação, gerir o exsudado e, em alguns casos, recorrer a terapias locais mais avançadas para estimulação dos bordos epiteliais. De acordo com Minniti et al. (2010), numa fase inicial o tratamento das úlceras poderá passar por repouso e cuidados locais, já que, habitualmente, nesta fase estas são superficiais e de pequenas dimensões. Evoluindo para lesões maiores, as úlceras tornam-se mais profundas, muito dolorosas e incapacitantes. Desta forma, é fundamental o início precoce de um tratamento específico, dirigido à causa. Para o tratamento sistémico é necessário ter em conta a etiologia de base incidindo a abordagem na sua monitorização e tratamento específico, sejam distúrbios hematológicos ou da coagulação. Tendo em conta que, a doença falciforme é o distúrbio hematológico mais frequentemente associado a ulceração do membro inferior, aprofundamos, de seguida, a sua abordagem sistémica. Segundo Minniti e Kato (2015), nas últimas cinco décadas houve uma melhoria na mortalidade e morbilidade da doença falciforme, principalmente devido à profilaxia contra complicações

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infeciosas, transfusões eritrocitárias, terapia com hidroxiureia e avanços no tratamento de suporte. No entanto, no que se refere ao tratamento das úlceras de perna, sendo uma complicação rara de uma doença rara, existem poucos protocolos ou guidelines que forneçam níveis de evidências claros para orientar a prática clínica (MINNITI e KATO, 2015). O controlo da anemia é um aspeto essencial, assim como a avaliação e o tratamento adequado da dor e, conforme o caso, a utilização de terapia compressiva após a realização de um estudo vascular dos membros inferiores. A hidroxiureia tem demonstrado efeitos favoráveis em muitos sintomas da doença falciforme, no entanto os seus efeitos nas úlceras de perna não são tão claros. De acordo com Khatib e Hakey (2016), embora altos níveis de hemoglobina fetal estejam indiscutivelmente associados à diminuição da gravidade das úlceras de perna, existem casos de úlceras de perna decorrentes do uso de hidroxiureia que mostraram melhoria após a descontinuação do medicamento. Mais ainda, segundo os mesmos autores, várias outras terapias, como a imunossupressão, terapia por pressão negativa, a utilização de óxido nítrico e, em casos refratários, a intervenção cirúrgica, têm sido experimentadas sem evidência robusta de eficácia. Desta forma, as opções atuais para o tratamento das úlceras de perna são limitadas e os resultados insatisfatórios, com baixas taxas de cura e altas taxas de recidiva. Após a cicatrização, a possibilidade de recorrência da úlcera é comum, podendo surgir meses ou anos depois. Segundo Khatib e Hakey (2016), 80% a 90% dos casos recidivam até 2 anos após ter ocorrido a cicatrização. Nesta perspetiva, o aconselhamento e a implementação de medidas educativas e preventivas a estes doentes assume um papel primordial. A existência de história prévia de úlcera de perna é um fator preditivo importante no desenvolvimento de outra lesão. Enquanto as úlceras espontâneas não podem ser evitadas, as de origem traumática podem e devem ser prevenidas. Os doentes devem ser encorajados a inspecionar a pele dos membros inferiores, evitar traumatismos, utilizar calçado adequado e realizar tratamento precoce de pequenos traumas ou ferimentos. A hidratação da pele e o uso de repelente de insetos para evitar picadas também é fundamental. Descartada a etiologia arterial, a utilização de meias de compressão e a elevação das pernas permite evitar a estase venosa, reduz o edema e previne o aparecimento de ulcerações (JONES et al., 2013; ALTMAN et al., 2015; KHATIB e HAKEY, 2016).

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6. CONCLUSÃO Esta revisão delineou as causas hematológicas mais frequentes que podem conduzir à ocorrência de úlceras de perna. Sendo situações pouco frequentes, de diagnóstico difícil, é importante sensibilizar e capacitar os profissionais de saúde na abordagem destas patologias, por forma a serem tomadas decisões baseadas na melhor evidência científica disponível e orientadas para as necessidades específicas destas pessoas. Ao nível dos cuidados de saúde primários, a abordagem engloba a prevenção, identificação precoce, o encaminhamento atempado para centros de referência, e a estreita colaboração com outros especialistas da área hospitalar. Importa assegurar uma abordagem multidisciplinar, alicerçada numa prestação de cuidados de qualidade, tendo como premissa fundamental, o cuidar da pessoa de forma integrada.

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