Lima J. (2022) A saúde tem um preço? Devemos falar de Serviço Nacional de Saúde ou de Sistema Nacional de Saúde?, Journal of Aging & Innovation, 11 ARTIGO ORIGINAL: Lima J. (2022) A saúde tem- 58 um preço? Devemos falar de Serviço Nacional de (1): 54 Saúde ou de Sistema Nacional de Saúde?, Journal of Aging & Innovation, 11 (1): 54 - 58
ARTIGO DE OPINIÃO
A saúde tem um preço? Devemos falar de Serviço Nacional de Saúde ou de Sistema Nacional de Saúde? José Lima1 1 Enfermeiro especialista em saúde comunitária, coordenador da UCC Inovar – ACeS de Gondomar e presidente da direção da AUCC.
O estado de saúde de uma comunidade é muito influenciado por fatores de vária ordem. Podem ser fatores económicos, sociais, culturais e sempre por políticas de saúde. Assim, implica a adoção de medidas fortes de saúde pública e, nomeadamente, preocupações de saúde primárias. Estes ganhos globais em matéria de saúde da comunidade assentam em valores inalienáveis para a dignidade da pessoa humana. Três exemplos destes valores são a liberdade, a igualdade e a solidariedade humana. Só assim, podemos afirmar que existe uma relação estrutural entre os cidadãos portugueses e o estado. O estado social surge então como garante desses direitos. O objetivo principal é termos uma sociedade justa e solidária do ponto de vista ético. Vivemos com um Serviço Nacional de Saúde dos melhores a nível mundial, mas ainda se notam algumas fragilidades no bom cumprimento de alguns indicadores de saúde e sociais importantes. Estas falhas do governo levam-nos a ter que reinventar o estado social. O perfil dos doentes, utentes e/ou clientes mudou radicalmente nos últimos anos e nota-se principalmente no aumento das doenças crónicas. A continuidade dos cuidados e a articulação entre os vários níveis de cuidados tem de funcionar. Esta articulação é muito fácil de entender, mas muito difícil de colocar em prática!
JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, ABRIL, 2022, 11 (1) ISSN: 2182-696X http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v11i1-4
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É no domicílio que os profissionais conseguem objetivar a realidade em que o utente está inserido, adequando da melhor forma a intervenção. É no seu domicílio que os utentes querem permanecer e é aqui que encontram a resposta diferenciada às altas precoces, aos tratamentos de reabilitação, às doenças do foro oncológico e aos cuidados paliativos. A consequência destas alterações demográficas leva ao aumento dos custos com as prestações sociais e à contenção com as despesas públicas. A sustentabilidade das finanças públicas leva a uma profunda reforma do modelo de estado social, sendo esta uma das principais problemáticas dos políticos do nosso país. Temos que reconhecer que o atual estado de “bem-estar social” está parcialmente esgotado. Temos que equacionar um novo modelo em que exista uma ponderação justa entre direitos e deveres do cidadão, no exercício da cidadania responsável e que garanta a sustentabilidade do sistema. Esta redefinição funcional implica uma abordagem moderna e coerente da gestão empresarial pública. Entenda-se que esta gestão empresarial pública não é o mesmo que privatizar. A partilha de custos, através dos co-pagamentos, tem sido uma prática corrente em países desenvolvidos. No entanto, não podemos deixar de garantir o acesso de todos às prestações sociais básicas que o utente tem direito. O objetivo da maximização em saúde, condicionada pelos escassos recursos, instalam frequentemente as discussões em torno do “preço da saúde” versus o “preço da doença”. Podemos também pensar na contratualização de cuidados de saúde, que tem sido um sucesso nos Cuidados de Saúde Primários (CSP) ao nível das Unidades de Saúde Familiares (USF) - Modelo B. Não seria de levar este projeto para os cuidados diferenciados? Não se deve privilegiar o melhor desempenho dos profissionais de saúde? Não se deve tornar sustentável os cuidados de saúde? Não devemos privilegiar o acesso à saúde? Não deve existir um sistema de informação único e transversal a cada região? A configuração interna dos sistemas de proteção social deve ser revista para aproximar os decisores do cidadão e abrir o setor público aos operadores que melhor sirvam os interesses da sociedade portuguesa. A concorrência é saudável e deve ser encarada como investimento público e complementar sem gerar grandes lucros. JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, ABRIL, 2022, 11 (1) ISSN: 2182-696X http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v11i1-4
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O que se tem notado nos últimos anos é que a maior fatia do orçamento para a saúde passa para o setor hospitalar e não para os CSP. Como enfermeiro coordenador de uma Unidade de Cuidados na Comunidade (UCC) - unidade funcional do agrupamento de centros de saúde (ACeS), vejo finalmente, com muito agrado, no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) um forte investimento nos CSP. É aqui que tudo deve começar com a figura de “gestão de caso” centrado na pessoa e com a fundamental integração de cuidados. O modelo tradicional de financiamento baseado nos impostos cobrados aos contribuintes deve evoluir para a dinâmica de utilizador/pagador. Também os copagamentos diretos deviam ser ponderados, porque além do custo individual de cada contribuinte ser muito elevado, muitos cidadãos já aderiram aos seguros de saúde. Outro fator importante é a diminuição do desperdício na saúde, valor que ronda os 20%, sendo este um valor exuberante. Portanto, o problema maior do estado é a sua sustentabilidade financeira e, por isso, há que repensar o modelo de governação interna – o estado regula-se a si próprio. Esta regulação deve ser independente. A emergência da regulação do poder político coloca a questão de se determinar quais os mecanismos de controlo da sua atividade. O debate tem que existir em torno da translação de um modelo de EstadoPrestador para um modelo de Estado-Garantia, para melhor utilização dos recursos. Temos de alterar as linhas de orientação estratégica para uma reconfiguração sustentada do Estado Social. Isto deve ser feito com planeamento e priorização em saúde. Esta modernização não deve colocar em causa os valores das democracias plurais. As prestações sociais devem ser complementadas pela responsabilidade de cada contribuinte. Cada pessoa é única e possuidora de dignidade intrínseca pelo fato de ser pessoa. Esta pessoa tem que entender que vive em comunidade porque “o que há de melhor no homem somente desabrocha quando se envolve numa comunidade”. A modernização do estado social depende, em grande parte, de uma nova política fiscal, também resultante das alterações demográficas. O cidadão também devia ter o direito de optar por escolher uma modalidade privada de proteção social como alternativa ao sistema público através de regimes de benefícios fiscais atrativos. A descentralização administrativa devia também ser perspetivada como uma fase de reforma estrutural do estado social. Nota-se, que um modelo de financiamento assente na participação direta do cidadão implica uma redução da carga fiscal. Só o JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, ABRIL, 2022, 11 (1) ISSN: 2182-696X http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v11i1-4
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aumento correlativo do rendimento disponível dos portugueses poderá permitir suportar os custos de utilização. O novo estado social deve incluir os valores humanos e terá que ser moderno e sustentável. Para além de respeitar os valores principais das democracias plurais, deve respeitar o impacto da globalização económica e cultural dos níveis de rendimento e de saúde do cidadão. Não há doentes, mas sim pessoas doentes. As políticas sociais devem tentar conciliar os princípios éticos e os direitos e deveres dos doentes no financiamento com o imperativo também ético de ganhar eficácia, eficiência e combate ao desperdício. Estas políticas sociais existem para as pessoas. Nos dois últimos séculos, razões de natureza política, ideológica, social e económica suportaram os governos a intervir fortemente na saúde, uma vez que as instituições caritativas já não respondiam suficientemente aos problemas emergentes. Segundo Simões (2004) os sistemas de saúde emergiram motivados por vários fatores, como os acidentes de trabalho e as doenças infeciosas, que reduziam a produtividade. Apoiado neste direito constitucional surge o Serviço Nacional de Saúde, universal e gratuito, cujo financiamento era proveniente dos impostos. A crise económica dos últimos anos e a crescente globalização colocaram os governos sob pressão. Assim, levou-os a tomar medidas de contenção de custos e a adotarem medidas pragmáticas, muitas vezes com a política a sobrepor-se aos aspetos técnicos. O século XX e já o XXI foram marcados por sistemas de saúde alternativos, pelas sucessivas reformas introduzidas e pela discussão em torno da sua viabilidade, eficiência e equidade. Nesta conformidade foram ensaiados novos modelos de gestão de serviços públicos de saúde com a intenção de flexibilizar e aumentar a eficiência dos sistemas de saúde. Surge, nesse caso, uma forma de privatização da própria administração pública que se consubstanciaram quer em mudanças organizacionais dos hospitais pertencentes ao setor público administrativo (SPA), quer na introdução de novas formas de gestão com a sua transformação em empresas públicas, quer, ainda, através do recurso a parcerias entre o setor público e o privado. Com a lei nº 48/90 (Lei de Bases da Saúde), o Serviço Nacional de Saúde (SNS) deixa de ser visto como o único prestador de serviços de saúde e os cuidados JOURNAL OF AGING AND INNOVATION, ABRIL, 2022, 11 (1) ISSN: 2182-696X http://journalofagingandinnovation.org/ DOI: 10.36957/jai.2182-696X.v11i1-4
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prestados pelo SNS passam de gratuitos a tendencialmente gratuitos. Além disso, admite também a gestão privada em unidades de saúde públicas e que a gestão de unidades de saúde passe a obedecer a regras de gestão empresarial. A concorrência dentro do próprio setor público torna-se uma realidade, desde as USF aos hospitais EPE que procuram competir entre si por melhores resultados e maior satisfação dos seus utilizadores. Estas governações clínicas e políticas deram maior versatilidade à gestão, desburocratização dos aspetos ligados ao financiamento e às compras, alteração da política de incentivos aos profissionais e outras que, de acordo com vários estudos, tem melhorado a eficiência destes serviços. Estabelece-se um verdadeiro mercado de cuidados de saúde composto pelo “tradicional” do setor social e privado, o mercado das convenções e concessões do SNS e o “mercado administrativo” dos cuidados de saúde no setor público, o qual engloba a prestação de cuidados de saúde pelos serviços e estabelecimentos públicos aos beneficiários do SNS e dos subsistemas. A evolução nos modelos de gestão e estatuto jurídico dos hospitais em Portugal, iniciada em 2002, de 34 hospitais do SPA levou a 31 hospitais SA e posteriormente transformados em EPE. Pelo exposto, posso afirmar, sem qualquer dúvida, que a saúde tem um preço e que apesar de não ser um mercado perfeito está sempre sujeito às regras da economia. A saúde é um bem, no qual todos devemos investir, quer a nível individual, quer a nível coletivo. Um dos pilares essenciais passa pela promoção da saúde e pela prevenção da doença e, simultaneamente, pela capacitação/empoderamento para a literacia em saúde dos cidadãos. Estes, devem estar preparados para se manterem saudáveis e quando doentes participar ativamente de forma consciente e informada na tomada de decisão. Por isso, a resposta é sim. A saúde tem um preço, que depende do que estamos disponíveis para pagar! Na saúde o dinheiro não é infinito, mas no momento pandémico que atravessamos vimos o homem a enfrentar as causas sociais e a dar maior atenção à prevenção. Notamos também que é na complementaridade entre o Serviço Nacional de Saúde e no Sistema Nacional de Saúde que todos temos a ganhar e a afirmar que a saúde é um bem Maior!
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