AFIAR INFLUI NA ARTE DE TECER [ O SIMBOLISMO EM A FACA PELO FIO /

Page 1


2


AFIAR INFLUI NA ARTE DE TECER [O simbolismo em A faca pelo fio]

3


4


Alice Spíndola

AFIAR INFLUI NA ARTE DE TECER [O simbolismo em A faca pelo fio]

GOIÂNIA | 2021 5


[...] domam potros nos ares, saltam céleres, o brilho dos punhais solto nas lâminas, uma estrela na ponta, entre rubis recolhidos em vísceras rasgadas. [p. 309]

6


Na insônia, lendo Reynaldo Valinho, surpreendo-me com o início de uma alvorada. O livro: A FACA PELO FIO. O título diz muito, resume a imagem fiel do pensamento simbólico. Incontestavelmente o eco do vaivém do metal sobre a pedra que pule e que, molhada, ceifa as arestas, sega a seara das impurezas para perseguir o polimento, alcançar o fio e que, em algumas vezes, se cega para esconder o próprio fio. Afiar influi na arte de tecer. No sentido da urdidura, porque está associada à palavra fio, o eco da lançadeira sobre o bastidor, tecendo, tramando, aparando as fímbrias do tecido até formar uma tela. Na arte da escrita: vestir o poema. No vaivém das metáforas, sentir-se feliz com a própria aceitação de seu estilo e do trabalho literário, criando uma atmosfera para o poema fluir e, nele, fruir-se. 7


Pelo fio, transcender-se, fazer a travessia para um mundo mais elevado. Na vida, o ritmo vital da respiração. Na tecedura cósmica, as alternâncias do dia e da noite. Trabalho perigoso que tem de ser mantido em segredo.* Na madrugada, o dia rasga o véu da noite com a lâmina da aurora. Em toda alvorada o sol, que surge, viola os segredos da luz noturna. Com idêntica violência, a noite oculta a luz diurna, f[l]echa o tempo. No mito de Penélope, a imagem do tecido, que se termina durante o dia e é desmanchado à noite. As mudanças das estações do ano. Se o inverno oculta o calor e faz um trabalho de reclusão, a primavera floresce e traz as cores; o verão revive a independência das coisas, das causas e dos efeitos; o outono fornece um pouco de paz em meio a algumas inquietações. No solo em que pisamos, a terra guarda, como uma bainha, os cursos d’água subterrâneos. A lua, ei-la fatiada por faca* afiadíssima, modificando a aparência das fases lunares, que influem no fluxo e refluxo das marés, na colheita da lavoura, no ser humano. Como acontece com a força do verão, a tecelagem representa o agente da interdependência das coisas, das causas e dos efeitos. Mas o fio tântrico é também o da continuidade tradicional, daí, porque Reynaldo Valinho se manifesta, muitas vezes, através dos sonetos. O fio de Ariadne no labirinto da busca espiritual, a ligação com o Princípio de todas as coisas. O fio que retorna à luz.* Além destes mitos,

8


podemos nos lembrar das Parcas – pela fiação do tempo ou do destino. Recordar que a faca é instrumento de execução, a mão armada de Abrahão, e, também, instrumento dos sacrifícios e de cerimônias: o sacerdote a retira da sua bainha como o pênis do circuncidado sairá de seu prepúcio. Na busca para perpetuar a espécie, o ir e vir na pedra vem a ser o da fricção, conduzindo ao fogo, daí a concepção e o sentido fálico da faca e o da sua bainha. Freud evidencia o simbolismo fálico da faca, ao interpretar o sonho de seus pacientes. Também é considerado fálico o símbolo da pedra erguida. Reynaldo, nesta obra, evidencia o valor simbólico da pedra. A faca afiada tende a trancar os seus segredos. De outro modo, no passo a passo da urdidura de um livro, segar a messe das ilusões, para sentir-se livre para dar acesso ao aguçado estilo, adquirir o conhecimento da terra e o da história, onde se vive, trancar-se e depois esculpir o poema, polir a forma e criar um paradoxo com as idéias e com o figurado da trama. Para tal fim o autor usa o gume do talento para abrir a imaginação e descobrir o veludo da poesia. Recluso no ritual da tecelagem, polindo as palavras, para colher o seu significado, escolher o espaço no branco do papel e, ali, introduzir a idéia fertilizada pelo fogo e por uma aura de inquietações. Na chama, traduzir e conduzir ao auge o processo de busca da perfeição em lavrar a pedra e, assim, definindo 9


o estilo, o poeta estará de posse de sua própria aprovação, depois de algumas viagens, de vários estudos e de sagradas reflexões. Afiar o estilo é torná-lo apurado, esmerado. Como em RAZÃO DE NAVEGAR, na página 166, e REINVENÇÃO DA AURORA, na página 174, o poema derradeiro de uma série de quinze, fecha o encontro das chaves de ouro dos sonetos que o antecedem, resultando em poesia rica, planejada. Faca de cúmplice gume para cortar as arestas da urdidura, ceifar as fímbrias do tecido, cortar o molde, vestir o poema. Criar a poesia. Em O SOLITÁRIO GESTO DE VIVER, opera-se, além da técnica, a pesquisa na História do mundo, na mitologia grega, passando os olhos curiosos pelas campinas do Sul. Encontrando, pelo caminho, um solitário Pégaso, que nos longes, corta o espaço / como um grito que punge no ermo imenso.[...] Vê a aura de São Sepé e do Negrinho do Pastoreio, os guias na planície onde curte o guasca, Dom Quixote sem loucura. [Pag. 308.] Escondida na trama, a lâmina afiadíssima que rasga o manto que cobre os segredos e os medos de uma época perigosa. É mais do que proveitoso correr o risco de passar pelo fio desta navalha a marca de um tempo que feriu ideais, e em que tornou difícil a travessia para os sonhos. Na lâmina, que brilha, o talento do autor para reinventar metáforas, procurar a abertura para o eterno.

10


Segundo Samuel Penido, Valinho une o existencial e o social com sua poesia. ** o0o Obra cortejada pela crítica especializada do Brasil e do exterior, uma vez que um dos livros – O SOL NAS ENTRANHAS – mereceu o Prêmio Camaiore Internacional de Poesia 1 999, da Prefeitura de Camaiore, Itália. Detalhe especial: sobre a cor do sol, faixa estreita, colorida e reta, um movimento cênico cruza o livro pelo centro da capa e termina em disfarçado fio branco. Reynaldo Valinho Alvarez, reconhecido escritor carioca, conhece as artimanhas do processo editorial, já se sente maduro para empunhar A faca pelo fio, tanto que resolveu reunir em um só volume seis livros, todos premiados. Assim A FACA PELO FIO une – pelo fio condutor de aguçada poesia – poemas destes seis livros, todos com edições nacionais: Galope do tempo [Tempo Brasileiro, 1997]; O continente e a ilha [Tempo Brasileiro, 1995]; O sol nas entranhas [Editora Três, 1982]; Solo e subsolo [Antares, INL /MEC, 1981]; O solitário gesto de viver [Tempo Brasileiro, INL /MEC, 1980] e Canto em si e outros cantos [Salamandra – INL /MEC, 1979]. Como sói acontecer nas novas edições, algumas estrofes, versos ou títulos foram modificados pelo autor. Obras outras, como as dedicadas a crianças e adolescentes, enriquecem o universo deste autor.

11


Sempre mantendo o segredo de sua lavra, mesmo que seja necessário buscar o exílio na pele, ou seja, entrar no âmago, escondendo-se nas entranhas da própria pele, ou talvez na clausura da fala, ou nas sepulturas, quem sabe no útero das canções da corte? Ou não será rumo ao corte? De O EXÍLIO NA PELE, primeira parte do livro O CONTINENTE E A ILHA, vejamos o sentido dos versos com que o autor completa o poema que tem o mesmo título do livro: O CONTINENTE E A ILHA [...] impossíveis de conter num só golpe do mirar [...] [...]assim os ilhéus se dizem mais próximos do desterro porque se olham para dentro e mais por dentro se vêem quanto mais dentro se olham no ver-se dentro que vale para quem conhece pesca e estuda bem suas águas certeza de bom pescado em segura tarrafada [p. 89]

Há sempre um propósito anunciado em cada livro. Há sempre um sentido direcionando as águas da poesia, indicando o que o autor pretende, a cada início da página, em cada final de poema, no virar das páginas. Isto 12


se verifica no poema PÓRTICO, que abre o livro O GALOPE DO TEMPO: No alto da página: Se não se vê no início uma alvorada o fim de um livro é a porta para o nada. No final do poema: [...] O canto do poeta é coisa vã se o sol canta por si, toda manhã. [p. 11] E, logo à frente, diz do sentido do fim: O fim do livro é a porta para o nada, se não se vê no início uma alvorada. [p. 83] Há sempre uma advertência para a vida: Não te iludas com o pouco que perdeste: é tudo parco e temporário neste momento enclausurado em tua fala. [p. 122] Ou sobre o uso da palavra: [...] palavra sem substância ou consistência que é preciso evitar, para que a fala não se entranhe de caos e de estranheza[...]. [p. 160]

Afiar é executar ordens e / ou enumerar em ordem. No livro, O CONTINENTE E A ILHA, no subtítulo da segunda parte do livro – RAZÃO DE NAVEGAR -, poemas numerados de 1 a 15, no último verso, o poeta lembra Camões, renova-o: o mar assassinado em que navego. [166]

13


Mas... Reynaldo Valinho pertence a tempo nenhum, embora seja o cantor do tempo e do seu galope. O tempo que recordo e já não tenho perdeu-se no menino que voava. [p. 167]

No bloco de 1 a 15, de REINVENÇÃO DA AURORA, todo poema deixa o seu lastro para o poema seguinte: o verso que termina um soneto passa a ser o verso que inicia o seguinte. O fim é o começo. O mesmo acontece em RAZÃO DE NAVEGAR. O último poema resulta da soma de todos os finais, mas sendo concluído com o verso primeiro da série. Assim bebido como o sumo da manhã [p. 167] vem a ser o verso que desencadeia a série e o mesmo que a termina. Notando-se que esta é uma das partes mais eróticas de A faca pelo gume. bebido como o sumo da manhã tomei teu seio em minha mão faminta

Poemas de renovado encantamento, poemas de forma clássica em tema moderno, pois o pensamento que exprime é atual e gira pelo mundo, transgride limites. e brilhava na cor da madrugada teu rosto emoldurado por meus braços tu amiga lavavas tuas mãos nas águas que fluíam dos relógios [169].

14


Existe [p. 214].

uma

CONTESTAÇÃO

CONTESTADA.

[...] daqui a pouco alguém apontará uma arma e limpará o bolso dos passageiros. [p. 215]

O poeta pervaga pelas ruas da cidade, procura becos, corredores, abre janelas; deambula por outros horizontes, anda pelo solo de suas origens, fala outros idiomas, percorre mares e, cativo de tantos encantos, cata a alquimia destas terras longínquas para lhe dar sustento na ausência do sabor e do cheiro do ar destes mundos. O CÉU PROGRAMADO, série de poemas do livro SOLO E SUBSOLO, obra escrita ainda dentro do período da repressão, do golpe militar no Brasil, da qual alguns poemas primam pelos diálogos do autor consigo próprio, os questionamentos psicológicos, a busca por outras razões e por algo que defina o roteiro da vida. O poema UBI SUM testemunha isto: [...] entre amarras, ameias, grito preso, a garra do silêncio me cortando, [...] [...] soando em meu ouvido como o gongo de um despertar terrível. [p. 286]

Um pouco mais à frente, no Poema O Objeto : [...] No espelho do meu rosto a imagem se adivinha dos dias que não fui, porém deixei-me ser. [p. 287]

15


Ou [...] Que jeito me darão, que modo ou tique de falar, de dormir, de levantar. [p. 288]

Ou ainda: Ali onde não sei já meu nome gravaram. Espera-se que eu siga o programa traçado. [p. 288]

Existe sempre o fio afiado de uma lâmina cortando a vida, não importa de que material esta lâmina seja feita. Em O SILÊNCIO QUEBRADO – poema da série O CÉU PROGRAMADO, do livro SOLO E SUBSOLO – o que significará a metáfora da capa escura, senão... ? Naquele tempo era preciso ser inteligente e inventar metáforas que dissessem do nosso medo, ou do segredo de nossos desejos. O silêncio quebrado entre as raízes deste sono perdido na memória quer libertar o grito, mas o mito em sua capa escura o esconde e leva para trancá-lo em arcas, nos armários, em sótãos e porões, para impedi-lo de se mostrar ao sol. Que hei de fazer para recuperá-lo ou esquecê-lo? Bate-me o coração sob a armadura, a sotaina rasgada, este burel grosseiro que me cobre nos caminhos por onde vou, molhado até os ossos, de chuva ou de suor. Ainda bate? Ou é apenas eco? É tudo espera. [p. 286]

16


No verso último de inúmeros poemas, instala-se o inquieto ponto de interrogação, será preferível deixar o leitor na dúvida e/ou fazer com que ele, também, se questione? Ah, como o poeta Reynaldo Valinho sabe ao gesto do questionamento! Afora todo e qualquer comentário, já estava com saudades de ler poemas com todos os sinais de pontuação, com isso trazendo linguagem lúdica, forte, em que ponteia o sentimento pátrio, ou o erotismo, ou mesmo a indignação, ou o respeito pelo belo num exclamar que brilha. Quase sempre, brota uma pergunta: Afinal, onde a mesa ficou posta, [...] as manchas de café, os velhos quadros, a muda despedida dos que foram e as vozes que chamavam para o afago? [p. 371]

Em A MÃO E A PEDRA – do livro CANTO EM SI E OUTROS CANTOS – 1979 –, as palavras dançam na página. O poema é paisagem. O poema lastra sobre o papel e indaga de nossos olhos se o que está ali é para nos fazer pensar e se a mente é que maquina fazendo a máquina de ponte. [p. 386]

17


Inquire-nos, sem nos interrogar se aquela mão arrancada não é uma simples mão

Evoca, sob a égide de uma metáfora: seus dedos duros, do nada, retiram o verbo são [p. 397]

O poeta mesmo vai à procura de suas origens ibéricas, viaja por rios e por mares, colhe relíquias para enriquecer o acervo de palavras, de jargões novos e de conhecimentos e, depois, nos transmite em forma de literatura. Algumas vezes, uma ironia refinada aponta, aqui e ali, para o quão importante é a inteligência. Que bom! Concordo com Francesco Belluomini: Um magma de incandescência poética, um verso real e surreal que atravessa a forma para fazer-se ele próprio forma, que penetra a linguagem [...] Reynaldo Valinho Alvarez, um poeta, um escritor que nos guia com voz forte ao conhecimento das belezas, das amarguras, da cor e do calor de sua terra: um Brasil sugestivo e brioso, onde as contradições sociais vêm sendo interpretadas historicamente por vozes imortais. Com este A FACA PELO FIO prestes a cortar outros uni/versos, surge o novo livro Das rias ao mar oceano, em 18


que se prova que o autor não interrompe seu fazer poético e nos brinda com novos e refinados poemas. Eis uma amostra: o mar escrespa / seus cabelos sob o sol. / São como nenas que se penteiam / com pentes de caracol. / As ondas como que dançam / nuas à luz de um farol. Como se vê na aparente simplicidade, a linguagem metafórica, vez que, aqui, ele se refere à Caravela Pinta de Cristóvão Colombo, da qual existe uma réplica em Baiona, cidade de nítida lembrança galega na mente do poeta.*** O autor acaba de ser laureado com o Golfinho de ouro, do Conselho Estadual de Cultura – Rio de Janeiro/RJ – pelo conjunto da obra, como contribuição para a Cultura do Estado. Mais do que um poeta, Reynaldo Valinho Alvarez é o homem que sofre, que gargalha, que cria artifícios para a sua Arte, mas que, sobretudo, nos faz pensar além, muito além. Alice Spíndola Goiânia, 11 de dezembro de 2002. • –

Bibliografia e frases em itálico: DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS – 10ª edição Jean Chevalier / Alain Gheerbrant – JOSÉ OLYMPIO EDITORA – A faca pelo fio – livro de Reynaldo Valinho Alvarez – poemas reunidos – IMAGO – 1999. ** Jornal do Comércio – Livro – 18/09/02, Rio de Janeiro/RJ *** Observações colhidas no texto do Professor Leodegário A. de Azevedo Filho – Jornal do Comércio – Livro – p. A-34 – 22/012/01, Rio de Janeiro / RJ.

19


Valinho, Fernández Labrador e Alencart (Salamanca, 2004)

20


Valinho e sua esposa Maria Jose de Sant`Anna (foto de Jacqueline Alencar)

Alencart, Aguiar, Fernández Labrador, Valinho y Malta Sobreira, en el Fonseca (foto de Jacqueline Alencar) Fonte: Imagens retiradas de: http://www.crearensalamanca.com/. Acesso em set.2021.

21


22


23


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.