Direito e liberdade renata sandro 16 1 2018

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Renata Ramos Sandro Lucena Rosa

&

DIREITO LIBERDADE

goiânia | fasam | 2018



Sobre a capa


Faculdade Sul Americana – FASAM CONSELHO EDITORIAL Dr. Arnaldo Bastos Santos Neto Dra. Elenise Felzke Schonardie Dr. Eriberto Francisco Beviláqua Marin Dr. Felipe Magalhães Bambirra Dr. Germano Schwartz Dra. Leila Borges Dias Santos Dr. Saulo de Oliveira Pinto Coelho Programação Visual e Editoração Eletrônica: ad.artefinal: [62] 3211-3458

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SumĂĄrio

Ăşltimo a ser feito


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Prefácio

A aventura no empreendimento da civilização se confunde com a própria aventura individual em prol da liberdade. Associar a luta contra o arbítrio, em todos os tempos, a adjetivos que descrevem movimentos muito específicos e sem qualquer unidade teórica, a exemplo de neoliberalismo ou liberalismo, este último manejado pela primeira vez no 18 Brumário de Napoleão, ou a substantivos marcados pelo mesmo desacordo semântico, pode contribuir para que o intérprete permaneça confinado em teias mentais divorciadas do mundo dos fatos.

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Hegel perspicazmente observou que liberdade é um conceito somente assimilável no âmbito das instituições. Nesse particular, a intuição de Hegel relaciona-se, em alguma medida, a dos pensadores tributários do individualismo metodológico, uma vez que a ação humana deve ser o motor das avaliações sociais desde a moldura de um quadro institucional que a respalde. E certa vertente liberal, ou programa evolucionário, desenvolveu um panorama bem definido e sistemático de princípios que englobam as muitas nuances da salvaguarda à liberdade individual em relação ao poder político. Como todo programa de princípios, a tentativa em identificá-lo a um modelo pronto e acabado de sociedade, ou a uma perspectiva única de civilização, despreza as sutilezas do argumento, consoante explica F. A. Hayek: “o princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações”. 9


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O economista austríaco, um dos principais herdeiros dessa tradição, rejeitou a diferença usual no Continente entre liberalismo político e econômico (elaborada principalmente pelo filósofo italiano Benedetto Croce, como a discriminação entre liberalismo e liberismo), porquanto percebeu que a liberdade de ação é um todo indivisível, e a visualizou, sobretudo, como esfera privada inviolável em relação ao poder político. Enquanto os adeptos da liberdade no sentido negativo se preocupam em limitar a autoridade como tal, os simpatizantes da liberdade no sentido positivo querem a autoridade colocada em suas próprias mãos, mormente nas esferas social e econômica. “Não são duas interpretações diferentes de um único conceito, mas duas atitudes profundamente divergentes e irreconciliáveis para com os fins da vida”, nas palavras de Isaiah Berlin.

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Conquanto a obra de John Rawls seja conhecida como o mais importante livro do Filosofia Política do Século XX, também em razão da importância em retomar o debate quanto às questões normativas após a hegemonia do positivismo lógico, e da terra arrasada proporcionada pelos projetos totalitários, o texto Os fundamentos da liberdade, publicado em 1960, não teve o mesmo impacto que o de Rawls, lançado somente onze anos após à obra de Hayek. O pioneirismo do economista austríaco, no debate institucional, permanece pouco reconhecido, uma vez que sua tradição de pensamento, filiada ao que Berlin nominou liberdades negativas, o manteve em descompasso ao liberalismo contemporâneo, paradigma em que as liberdades positivas resplandecem como o grande projeto redentor da humanidade. Em uma perspectiva um tanto quanto cética no tocante a projetos redentores que desprezam a condição humana, mas totalmente ciente da importância de planejamentos afinados à sobrevivência de nossa espécie, Autores como Hayek recusaram-se a compulsar locuções como neoliberalismo e liberalismo, uma vez que nas últimas décadas, nos Estados Unidos, o termo liberalismo assumiu, inclusive, o formato de intervencionismo estatal em benefício de vazios teóricos como justiça social que, em última instância, dizem bem mais sobre o poder político, ou a respeito da liberdade como poder, do que sobre a liberdade em relação ao poder. Os entusiastas da liberdade como poder, muito influenciados pela obra de Rousseau, visualizam nas instituições uma perspectiva emancipatória em relação aos mais variados entraves humanos. Ao afirmar 10

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que o “o homem nasce livre, mas que em toda parte encontra-se acorrentado”, Rousseau romantiza o real da condição humana desde a fantasia de um jardim de delícias primitivo, em que os homens viveriam em estado de igualdade e de liberdade naturais. Por sua vez, para a tradição das liberdades negativas, os seres humanos já nascem constrangidos por instituições e tradições responsáveis por sua própria existência. Com efeito, é perfeitamente possível que o indivíduo lute por emancipação em relação às tradições do direito burguês, por julgar que o contrato e a propriedade só foram inventados nos últimos 300 anos. Não obstante, a história atesta que o vale-tudo institucional de engenharias sociais sem qualquer vínculo com o real da condição humana, e com as tradições que já se afirmaram imprescindíveis à evolução da nossa espécie, respondem pelas trágicas carnificinas ideológicas do Século XX.

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No importante texto Reflexões sobre a revolução em França, o vidente Edmund Burke rejeitou a definição direitos do homem – a base teórica para as liberdades positivas, porquanto a enxergava como legitimadora tanto de um arbítrio sem limites quanto da falta de moderação do poder político. Para Burke, os revolucionários franceses eram destemperados e extremistas, uma vez que a pretensão emancipatória quanto às religiões e à monarquia não materializava apenas uma recusa a tradições e a costumes específicos, mas sim um ataque a toda e qualquer autoridade decorrente da tradição. Ao contrário de observarem a educação ao longo da história, a literatura e as ciências voltadas a disciplinar e a elevar a recalcitrante condição humana, os revolucionários desejavam reformulá -la integralmente, a fim de enquadrá-la na razão abstrata dos direitos do homem. Não é à toa que a genialidade de Burke antecipou tanto o terror jacobino quanto os totalitarismos do Século XX, uma vez que a fé dos revolucionários em modificar a condição humana, via poder político, era um convite manifesto a toda espécie de violência desumanizadora. Os pensadores não adeptos da escola construtivista, a exemplo de Burke, Tocqueville e Hayek, sempre enfatizaram que a liberdade nunca produziu bons resultados na ausência de convicções morais firmemente arraigadas, ou tradições apropriadas, e que a coerção somente poderia ser reduzida a um mínimo do momento em que se pudesse esperar que os indivíduos, de modo geral, observassem voluntariamente determinados princípios. Para esses Autores, instituições como as Religiões, o

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Mercado, a Moral, a Família etc. são importantes na compensação do caráter marcadamente coercitivo dos poderes políticos.

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Para sobreviver no curso de milênios o homem desenvolveu as referidas instituições, responsáveis por sua proteção diante da natureza intempestiva, e da arbitrariedade de seus semelhantes, instituições estas que evoluem, ou são abandonadas, a depender das contribuições que oferecem à conservação de nossa espécie. O conjunto dessas instituições, quase todas fomentadas, mesmo que em condições germinais, pelos antigos gregos, pelos italianos no começo da Renascença, e pelos holandeses, também desde importantes contribuições de franceses e alemães, foram incorporadas, sobretudo, ao panorama institucional da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos.

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Ao contemplarmos o brilho dessas comunidades políticas, e desejarmos que suas glórias se estendam a todos os povos, mormente àqueles que mais sofrem, é comum uma enorme insensibilidade, talvez fruto de obscurantismo, quanto aos fundamentos que permitiram o êxito destes povos em remediarem o real da condição humana. No belíssimo ensaio O que se vê e o que não se vê, Bastiat aponta para a dificuldade que os indivíduos possuem em associar as causas e os efeitos dos fenômenos sociais. A despeito de Bastiat ter dirigido o texto a economistas munidos de boas intenções, mas inocentes quanto aos efeitos não pretendidos por seus programas benevolentes, a proposição é adequada na tentativa articular um exame sobre os fundamentos das duas maiores experiências de liberdade da história registrada: Atenas e os Estados Unidos da América. Atenas e os Estados Unidos da América, ao contrário de suas contemporâneas Esparta e Rússia, triunfaram pelo conhecimento como mecanismo à conquista de um fim maior, que é a salvaguarda da liberdade individual, e não pelo conhecimento apenas como ferramenta ao recrudescimento do poder político, ou ordem pela ordem. Com efeito, o conhecimento é símbolo para o que não se vê nesse particular. A despeito da chaga da escravidão, defendida por Aristóteles e por homens do quilate intelectual de Thomas Jefferson, já na modernidade, a liberdade econômica conquistada em um primeiro momento, lançou as luzes necessárias às liberdades políticas posteriores: igualdade perante a lei e não discriminação em razão de raça, berço e gênero. Na essencial lição de Hayek: “a luta pela liberdade foi desde sempre uma luta por igualdade”. 12

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O enigma para a supremacia da Atenas de Péricles, e da América de Jefferson, encontra-se em um elemento comum: o império da lei, ou o governo das leis, e não o dos homens, como limite ao arbítrio para a proteção das liberdades. E o império da lei, nesses povos, repousava sobre uma melhor compreensão da condição humana, e sobre um ceticismo quanto à arrogância das pretensões demiúrgicas em modificar essa condição pela via institucional, ao contrário de adaptar o quadro institucional a essas mesmas condições. Nas palavras de Madison, um dos Founding Fathers: “caso fossem anjos a governarem os homens, não existiria a necessidade de controles externos e nem internos ao governo”.

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O invisível da civilização livre repousa em princípios ordenadores que possibilitam aos indivíduos conquistar relativo êxito na sobrevivência da espécie. A despeito das diferenças entre povos, as instituições que mais contribuem para o florescimento humano são aquelas que convergem na direção de uma principiologia comum, e a liberdade individual resplandece como o grande valor a embasar esses princípios. A ancestralidade do mencionado princípio pode ser aferida em textos que, inclusive, não fazem parte da tradição ocidental, a exemplo do Tao te ching: “A fome do homem é devida a seu superior alimentar-se de impostos em demasia. Por isso existe fome. A difícil governabilidade de cem famílias é devida a seu superior agir intencionalmente, por isso existe o desgoverno [...]”. A principiologia comum em questão, e os gérmens do conceito de poder limitado – o Rule of Law – surgiram na antiguidade clássica, a exemplo de Aristóteles em A Política: “é mais certo que a lei governe, e não qualquer cidadão” [10], e o ideal brilhou com força soberana nos Estados Unidos da América a partir da arquitetura desenhada pelos Founding Fathers. Estes, por sua vez, foram buscar na Grécia Clássica, na República de Cícero, e em certos valores judaico-cristãos, o desenho institucional mais consentâneo à volúvel condição humana. Não por acaso Hayek dedicou a obra Os fundamentos da liberdade “à civilização desconhecida que se desenvolve nos Estados Unidos da América”. Ao estabelecer como “verdades auto-evidentes” a igualdade de autoridade entre todos os homens, a Declaração de Independência nada mais fez do que materializar o conceito de isonomia muito caro a certo período helenístico, ou isonomy, no sentido de “leis gerais aplicáveis direito & LIBERDADE

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igualmente a todos”. Na lição de John Adams: “a América é uma nação de leis, não de arbítrios”. O termo isonomia vigorou até o século XVII “até ser substituído gradativamente pelas expressões ‘igualdade perante a lei’, ‘governo da lei, ou ‘Estado de Direito’”, consoante explica Hayek.

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Para Heródoto, é a isonomia, e não a democracia “a mais bela de todas as palavras de uma ordem política”. E Jefferson parece ter rendido vênias ao historiador grego ao afirmar: “173 indivíduos podem ser tão despóticos quanto 1 só”. Não por acaso a palavra democracia é desprestigiada tanto na Constituição Federal quanto nas Cartas Estaduais, que privilegiaram o Rule of Law no sentido de isonomia. Conquanto as instituições dos Estados Unidos operem pelas instâncias democráticas, mormente como método pacífico para a substituição de seus representantes políticos, o alicerce institucional da mais bem-sucedida experiência moderna de liberdade não é a democracia, mas sim o constitucionalismo compreendido como limite ao Poder. Os Dois tratados sobre o governo civil, de Locke, tiveram enorme impacto sobre os Fathers e, por conseguinte, sobre a Revolução Francesa, a ponto de Jefferson se referir a Bacon, Locke e Newton como “os três maiores homens que já passaram pela Terra”. Locke também rendeu tributos aos gregos antigos quando afirmou que o governo das leis, e não o dos homens, era a única possibilidade de preservação e ampliação da liberdade, uma vez que “onde não há lei, não há liberdade”. Não obstante, emerge dessa proposição o seguinte impasse: será que toda e qualquer lei consegue responder por um quadro geral de liberdades? O enigma em análise nos aproxima de outro importante elemento invisível das civilizações livres: a diferença entre Lei e Legislação (Law e Legislation na lição de Hayek). A acepção de Lei que responde a um quadro de liberdade negativas é aquela que prioriza um sentido moral para o Direito na perspectiva de nomos (thesis é aferida desde o contexto de nomos), que é o conteúdo evolucionário do princípio da liberdade individual. Ao se insurgir contra o decreto de Creonte que a impedia de realizar as cerimônias fúnebres do irmão, Antígona imortalizou o ideal moral do império da lei, na qualidade de preservação das tradições consentâneas à liberdade individual, em oposição ao poder político. Para Antígona, o decreto de Creonte não era Lei, mas sim Legislação produzida em descompasso à tradição que embasava sua liberdade. 14

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Ao distinguir Lei de Legislação, Hayek afirma que a segunda é muito pródiga em sufocar a primeira. Para o Autor, o simples fato de legislações serem promulgadas com lastro na vontade da maioria, não significa que se encontrem em consonância àquilo que entende por Lei formulada pela maioria. A simples validade não é suficiente para conferir justiça às normas. Normas válidas podem significar apenas Legislação, consoante o Autor. Com efeito, um ordenamento que se vincule à liberdade individual como valor soberano é aquele que mantém o poder político sob a mais estrita vigilância, e o compreende somente como árbitro e arquiteto das instituições necessárias à cooperação. Existe um limite ao poder, e o limite é sempre o indivíduo visualizado como fim em si mesmo.

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Na hipótese, as leis que fundaram a República de Jefferson eram Leis no sentido moral de salvaguarda às liberdades, e não mera Legislação produzida por vontade política desvinculada de nomos. Anteriormente à Darwin, e aos economistas que ofereceram suporte as suas ideias, era muito comum o uso da expressão Direito Natural em atenção ao ideal do Rule of Law. Todavia, a expressão também oportuniza divergências semânticas labirínticas, e pode ser melhor compreendida quando afirmamos um Direito Evolucionário com raízes pré-históricas e funções adaptativas. Os seres humanos evoluíram em pequenos grupos sociais também em razão de tradições mais favoráveis à adaptação, a exemplo da propriedade e do contrato. E as civilizações grega e romana eram civilizações do contrato e da propriedade. Contudo, somos filhos de uma época em que indagações saudáveis a certas tradições não afinadas à sobrevivência, abriram as portas do inferno rumo a toda espécie de desconstrução, e a um enorme desprezo inclusive à certa biologia que nos condiciona. Parece que a liberdade econômica, destravada nos últimos séculos, criou as bases para nossa auto-destruição, uma vez que gerou encruzilhadas não apenas perigosas à civilização, mas sobretudo a ela fatais. Hayek certa vez afirmou que “as antigas verdades devem ser constantemente reafirmadas na linguagem e nos conceitos de sucessivas gerações”, oportunidade em que contemplou consternado os ataques às instituições do Ocidente como um todo, empreendidos por indivíduos que desconhecem os próprios pilares que sustentam sua existência nesse planeta. direito & LIBERDADE

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A redução expressiva dos índices de pobreza, em todo o mundo, bem como a rede de segurança oferecida por grande parte dos Estados Nacionais na atualidade, via confisco compulsório de recursos, oferecem aos indivíduos um mínimo para a subsistência ou, na terminologia de Foucault, biopolíticas necessárias à sobrevivência. Não obstante, existe um verdadeiro abismo entre viver e sobreviver. E, ao desprezarmos os elementos invisíveis que nos transformaram de primatas a astronautas, corremos o risco de retornarmos à condição de primatas (se é que algum dia a abandonamos de fato), e nos apartarmos, cada vez mais, dos dispositivos que nos permitem usufruir da vida do espírito, a exemplo de antibióticos, vacinas, aviões e tecnologia. Lutar para que os elementos invisíveis da civilização livre se tornem visíveis, significa “reafirmar na linguagem e nos conceitos de sucessivas gerações” o mais sublime dos ideais humanos em todos os tempos: a liberdade individual.

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Por tudo isso, o propósito desse primeiro volume da coletânea Direito e liberalismo é reafirmar esses importantes conceitos em uma Academia que a todo instante deles se divorcia, na confiança de que a comunicação entre vivos e mortos, via tradição, bem como os ventos da benfazeja evolução, se restaurem no mais genuíno espírito de liberdade.

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Introdução

A liberdade é um assunto recorrente na História da humanidade. Conquanto existam aqueles mais ousados que arrogam para si o condão de apontar com precisão o nascimento do liberalismo, associando-o a um ou outro evento histórico, fato é que a essência do conteúdo dessa corrente de pensamento nos remonta a datas distantes. A origem é certamente imprecisa.

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Nos últimos anos, bem tentamos respirar os ares de liberdade em nosso país. Não porque caminhamos no sentido de uma sociedade mais livre, mas porque um súbito interesse emergiu, decorrente dos lastimáveis acontecimentos que assombraram nossa República. Desemprego, inflação, corrupção, impeachment. Quatro palavras-chave que passaram a fazer parte do vocabulário de qualquer brasileiro, do mais erudito ao mais simples. Naturalmente, nasce o questionamento sobre a relação entre o Estado e o indivíduo: novamente entre em pauta a questão fundamental da liberdade. Quais os limites de atuação legítimos do Estado? O que pode ser considerado ou não arbitrário? Esse debate, embora recorrente na sociedade civil, ainda que de maneira pulverizada, esparsa e pouco aprofundada, não encontra o mesmo respaldo no ambiente acadêmico, dominado por uma linha de pensamento que pretende ouvir o canto de uma só voz. Diante disso, a proposta da presente obra é ser uma voz dissonante à canção de uma nota só, ecoante no meio acadêmico brasileiro, principalmente nas universidades públicas. Busca-se, com rigor científico, levar 17


à Academia a discussão da questão fundamental da liberdade, mediante a reunião de seletos artigos que contribuem, de alguma maneira, para acalorar o debate.

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Nesse breve introito, tenho ao mesmo tempo a honra e a difícil missão de apresentar o que pode ser encontrado no presente livro, tendo por objetivo final encorajar o leitor a uma imersão no tema liberdade. Célebre adágio, cujo autor dispensa referência, sentencia: ideias e somente ideias podem iluminar a escuridão. Busco, aqui, apenas entreabrir a porta para que se enxergue a beleza da luz da liberdade que sai pela fresta. O primeiro ponto de destaque diz respeito ao calibre dos pensadores cujas ideias foram objeto de estudo. Apenas a título exemplificativo, sem pretensão de esgotá-los um a um, registre-se nomes da patente de Locke, Stuart Mill, Levi-Strauss, Hobbes, Beccaria, Freud, Edmund Burke, Heráclito, Cícero, Platão, Sócrates, John Rawls, Jason Brennan, Hayek, Michael Oakeshott, Cass Sunstein, Rasmussen, Douglas Uyl, Dworkin, Nozick, dentre outros.

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Aproveitando o ensejo, imperioso registrar a notável contribuição dos autores na compreensão do pensamento de vários desses nomes. De início, destaca-se a análise realizada sobre o princípio da diferença de John Rawls, principalmente no que tange ao problema da intertemporalidade. De igual pompa, a crítica à Dworkin quanto à igualdade como (suposto) núcleo constitutivo do liberalismo. Ainda, o conceito do “paternalismo libertário” de Cass Sustein, bem como a análise sobre ceticismo e idealismo em Oaekshott, levando por referência a análise de suas obras, principalmente Experience and its modes e The Voice of Poetry. Pensamentos que por vezes são de difícil entendimento foram verticalizados e aprofundados nos artigos da presente obra, que indubitavelmente auxilia em uma compreensão mais completa das ideias dos mencionados pensadores. O segundo ponto de destaque, por sua vez, consiste no caráter interdisciplinar do trabalho. Sem cometer o pecado de ater-se a um único ramo do conhecimento, estudos conjugados entre (principalmente) Direito, Economia e Filosofia descortinam a abrangência e a importância da presente obra. Voltamos, aqui, aos questionamentos fundamentais mencionados anteriormente. 18

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Introdução

Iniciemos esta incursão com uma pergunta: quando nasce o Direito? É um questionamento que intrigou diversos pensadores ao longo da História e que ainda hoje é objeto de um debate aceso. Não se fala aqui apenas em um marco temporal capaz de caracterizar a gênese do que se entende por direito, mas, antes, uma investigação sobre o que pode ser considerado direito.

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O que pode ser reconhecido por Direito? Qualquer ato legislativo, prescrevendo condutas, que tenha nascido das mãos dos homens ou, em verdade, existem leis divinas, acima das intenções humanas, que não poderiam ser contrariadas? As linhas vindouras tentarão, na medida do possível, contribuir para que se chegue às respostas. Ainda sobre o nascimento do Direito, é cediço que ele, como instituição, tem sua gênese bastante remota – quiçá ancestral. Investiga-se também, na presente obra, o conceito de Rule of Law na perspectiva do renomado pensador Friedrich Von Hayek. Diferentemente do que normalmente encontramos na esmagadora maioria das traduções, o referido conceito não se limita à ideia de Estado de Direito, pois apresenta conteúdo mais amplo.

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Fala-se, adequadamente, em Império da Lei, conceito que para o autor sob comento possui uma amplitude muito maior do que a simples função legislativa e a obediência do Estado às prescrições normativas. Trata-se de uma doutrina metalegal, um ideal político, características que carregam uma carga axiológica relevante, que reclama respeito à liberdade e que vai muito além de uma simples ideia de “poder estatal limitado”. Até porque ele, com muita propriedade, distingue o que entende por Lei e o que entende por Legislação. Esta, como o conjunto de normas válidas, regularmente instituídas. Aquela, noutro giro, fulcrada em um princípio fundamental de respeito à liberdade, alicerce da prosperidade de civilizações ocidentais. Afinal, o que seria mais limitador ao arbítrio de um governo tirano, ainda que regular e formalmente instituído, do que o respeito à liberdade individual e à perspectiva de que cada um de nós, como indivíduos, somos início e fim em si mesmos? Ao que diz respeito ao nosso país, o que se pode aproveitar dessa discussão? Nas linhas que seguirão, o leitor encontrará um rascunho do que o país tem se transformado nos últimos tempos: um inferno tropical. direito & LIBERDADE

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O delineio de uma sociedade em que o Estado de Direito pode vir à ruina, por diversos fatores, dentre os quais a curiosa existência de diversas leis, decretos, atos que, em vez de garantirem aquilo que é fundamental, lhe ameaçam a existência – a perversão da lei, de Fréderic Bastiat.

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Não se resumindo a uma só esfera de Poder. O ativismo ideológico do Poder Judiciário, sob a desculpa de realizar “justiça social”, acaba criando incongruências e insegurança jurídica. Tudo isso alimentado por uma seleta casta da sociedade e seus compadrios intelectuais, cuja hipocrisia é tão clara quanto a luz do sol – defensores de que tudo o que ocorre em sociedade é resultado de um problema sistêmico, como se inexistissem escolhas individuais e ações racionais. É curioso observar o que acontece quando criminosos são trancafiados: passam a, subitamente, entender e respeitar regras rígidas de conduta, temerosos de sanções desproporcionais e que não existem sequer no Código Penal. Encontram um lugar onde além de crime, existe castigo. Chegamos a uma indagação da mais alta relevância: será que os comportamentos transgressores são determinados por fatores externos e não por escolhas racionais? Pelo “sistema” e não por indivíduos? O quão pernicioso para o funcionamento das instituições pode ser a diluição da culpa de cada agente racional em entes abstratos?

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A resposta dessas perguntas nos leva, inexoravelmente, a meditarmos sobre a caracterização da punição desses comportamentos e qual a dosagem certa para que se evite novas transgressões sem, contudo, presentear a mão que pune com o chicote da arbitrariedade. Leva-nos, pois, a outra questão relevantíssima: a justiça. A teoria da justiça de John Rawls também é objeto de estudo da presente obra. A questão de seus princípios (liberdade, eficiência, igualdade equitativa de oportunidades) é trazida à baila, mormente no que tange ao conteúdo do princípio da diferença, que será verticalizado de maneira extraordinária. Esse aprofundamento permitirá ao leitor observar que a “versão final” do conteúdo desse princípio, advindo em sua obra Justice as Fairness não isentou o autor de críticas, como as de Jason Brennan, que tratou sua teoria de justiça como “paradoxal” e que construiu argumentos consistentes para embasar sua tese. Ademais, conteúdo que também foi objeto de “revisão”, como propôs Tomasi. 20

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Introdução

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Direito e Liberralismo é uma obra com conteúdo acadêmico do mais alto nível, que levará o leitor a uma edificante imersão nas ideias de grandes pensadores que meditaram no tema fundamental da liberdade e das suas questões afins. Em meio à singularidade de pensamento na Academia, tem os méritos de servir de contraponto ao pensamento dominante e, ao mesmo tempo, municiar aqueles que nela se inserem e que pensam diferente. É um marco importantíssimo, que simboliza mais um passo de uma longa caminhada rumo a uma sociedade mais livre.

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A ideologização da justiça: crime sem castigo Alberto Oliva 1

Os homens algumas vezes são senhores de seu destino: A culpa, caro Brutus, não é das estrelas, mas de nós mesmos, que somos inferiores (Shakespeare, 1998, p. 573). Assim como um planeta gira em torno de um corpo central enquanto roda em torno de seu próprio eixo, o individuo participa do curso do desenvolvimento da humanidade ao mesmo tempo em que busca seu próprio caminho na vida (FREUD, 1946, p. 135).

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A sociedade brasileira tem caminhado em direção a um quadro de esquizofrenia legal. Enquanto os parlamentares elaboram leis em profusão, a maioria delas desnecessária, no Judiciário cresce o número de adeptos do que tem sido chamado de modo eufemístico de justiça alternativa. De um lado os parlamentares fazem leis a granel, de outro, os juízes se constrangem cada vez menos em tomar decisões que as contrariam. E com isso o Estado de Direito vai sendo desfigurado de modo imperceptível. Pesquisa feita pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) há alguns anos mostrou que à conhecida morosidade da justiça brasileira se soma a relativização dos julgamentos, que leva muitos juízes a ignorarem a letra da lei. Um conceito equívoco de justiça social tem sido invocado para legitimar decisões manifestamente conflitantes com o que estabelece a lei. Ao relativizar o princípio da igualdade de todos perante a lei, e mesmo o que está sacramentado na Constituição, a chamada justiça alternativa tem se tornado um fator 1

Professor Titular do Departamento de Filosofia da UFRJ, pesquisador 1 do CNPq.

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de insegurança capaz até de inibir ou prejudicar a atividade econômica. Ninguém investe sem estar protegido por uma legislação que lhe garanta, a salvo das tentativas ad hoc de fazer justiça social, a apropriação do que vier a ganhar. Por isso a falta de segurança jurídica afeta o crescimento econômico. Fica-se sabendo pela pesquisa do IPEA que 78% dos juízes entendem que a busca de justiça social justifica decisões que violam contratos. O estudo feito com 800 juízes, desembargadores e ministros de tribunais tornou patente que entre os juízes com menos de 40 anos 83,7% advogam que a chamada justiça social deve predominar sobre o respeito aos contratos. Sem um conceito unívoco de justiça social fica ao arbítrio do magistrado definir como colocá-la em prática. Pior que as distorções eventualmente existentes é criar outras em nome de se fazer justiça material – por oposição à formal – contrariando a Lei.

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Cabe ter presente que a noção de justiça social é redundante em razão de só fazer sentido falar de justiça em termos relacionais ou societários. Para Robinson Crusoé, inexiste o problema ético geral e o específico da justiça. Nada do que fizer será condenável e ninguém lhe pode causar qualquer tipo de dano. Visto que a expressão justiça social é usada para fazer referência à desigualdade de renda e riqueza é mais apropriado, por mais que também seja problemático, falar de justiça econômica. A dificuldade reside em identificar o que cabe a cada um com base em informações precisas do que cada um faz. O que só pode ser feito caso a caso. É inegável que diminuir as distâncias materiais entre as pessoas é algo desejável. O desafio é fazer isso detendo efetivo conhecimento das causas que geram os fossos entre as pessoas. Recorrer a artificialismos redistributivistas, introduzidos e impostos pelo Estado, tem-se mostrado inepto e conducente à opressão. Buscar redimensionar as relações humanas por meio de legislação dirigista tem feito parte de projetos autoritários de poder. É por ideologia, e não com base no conhecimento de como funciona a sociedade, que uma autoridade atribui a si mesma a missão de fazer demiurgia econômico-redistributiva por meio do ativismo jurídico conflitante com as leis existentes. Como observa Sowell (1999, p. 12), “a justiça cósmica não concerne às regras do jogo”, baseia-se no pressuposto de que é imperioso “colocar determinados segmentos da sociedade na posição na qual estariam não fosse algum infortúnio imerecido”. 24

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A ideologização da justiça: crime sem castigo

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Os agentes sociais só conseguem contrair relações geradoras de resultados estáveis e produtivos quando confiam na justeza das regras do jogo social e em sua aplicação cogente e universal. Sendo assim, às normas do sistema legal não devem se sobrepor os conceitos não escritos de justiça adotados por aqueles investidos da autoridade de julgar. Para se justificar, a justiça alternativa invoca a necessidade de fazer a balança da justiça pender, ao arrepio da lei, para o lado dos que são econômica e socialmente mais vulneráveis. A falta de fidúcia gerada por um Judiciário que não se sente desconfortável em assumir posição frontalmente contrária ao que estabelece a Lei se presta a gerar insegurança nas relações sociais com impactos negativos sobre a atividade econômica. A incerteza jurídica desencadeia retração se os agentes tiverem dúvida quanto a se a fria letra da lei vai ou não prevalecer quando tiverem algum direito agredido. Não pode a decisão do juiz se chocar com o que determina a legislação sem que o subjetivo, idealizado ou ideologizado, predomine sobre a avaliação objetiva respaldada pelo que está estatuído. Por ser vaga, a noção de justiça social pode variar de magistrado a magistrado, provocando uma relativização nos julgamentos. Os investidos do poder de julgar, ao relativizar de modo recorrente o direito de propriedade e patrocinar o desrespeito aos contratos juridicamente perfeitos minam, ainda que involuntariamente, as bases de sustentação do Estado de Direito.

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Os encarregados de fazer justiça que, com seu ativismo, assumem um viés de classe em suas sentenças, adotam os pressupostos do marxismo vulgar, que retiram do Direito qualquer autonomia reduzindo-o a uma espécie de dispositivo de legalização do poder das classes dominantes. Subproduto do sistema econômico considerado iníquo, o Judiciário perde o papel crucial de aplicar de forma imparcial a Lei. Colocado a reboque da política e da ideologia, torna-se um componente da superestrutura sem vida e história próprias. Defensora da visão que encara “a jurisprudência como uma forma de ideologia, como um mecanismo ou função do poder que a tudo abarca em virtude de as relações de poder serem constitutivas da interação social”, Kerruish (1992, pp. 15-8) busca prover a fundamentação filosófica e sociológica para o que alguns juízes fazem na prática. Se a ideologia está “essencialmente vinculada, como advoga Thompson (1984, p. 4), ao processo de manter relações assimétricas de poder, ou seja, ao processo de manter a dominação”, a justiça concebida como uma forma de ideologia justifica

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contra-ideologias sobre seus conteúdos normativos e sobre os modos de aplicá-los a casos concretos. Depreciada como uma ideologia devotada a justificar ou legitimar as relações sociais existentes, reputadas perversas, a norma jurídica pode ser desrespeitada até por quem deveria velar por seu cumprimento julgando os transgressores. Com Hart (l994, p. 32) aprendemos que “assim como não poderia haver crimes ou ofensas, nem homicídios nem roubos, se inexistissem leis criminais de tipo compulsório que realmente se assemelham a ordens baseadas em ameaças, também não poderia haver compra, venda, doação, testamentos ou casamentos se inexistissem regras que conferem poder”.

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A alegação de proteção da parte mais fraca em um contencioso não é justificativa para se passar por cima do que foi livremente pactuado ou do que está sacramentado em lei. É preocupante o fato de o Judiciário estar se deixando politizar a ponto de muitos de seus membros perfilharem a tese de que só existe justiça de classe. Emitir sentenças impregnadas de carga ideológica e sem respaldo na Lei promove a desmoralização do Judiciário. Chega-se ao extremo de ver membros destacados do Poder Judiciário atuando como servidores de projetos partidários de poder. Se critérios ad hoc ideologizados são adotados, se o respeito à universalidade nômica é abandonado, o juiz se torna um militante político por mais que pretexte fazer justiça social. Posturas políticas que nominalmente se apresentam como defensoras dos fracos são as que mais acabam por prejudicá-los por criarem um ambiente socioeconômico hostil aos investimentos. A chamada justiça alternativa coloca o juiz acima da lei ao autorizá -lo a proferir sentenças em dissonância com o que manda a Lei. Deixa de ser juiz dedicado à aplicação da Justiça depreciada como formal e passa a pretender ser justiceiro social. Acaba, nesse caso, ocorrendo uma exorbitância de poder do juiz, que, no fundo, representa a negação da Justiça. Sociedades prósperas se distinguem, entre outras coisas, pelo maior respeito às regras morais essenciais e às leis que regulam o jogo político, econômico e social. Se os contratos juridicamente perfeitos são relativizados pelas autoridades que devem velar por seu cumprimento, fica dificultado o crescimento econômico pujante e duradouro. Se ninguém é dono do que legitimamente conquistou porque não vale o que está escrito e sim o que alguém investido da autoridade de julgar considera justo, 26

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então a insegurança passa a ser a tônica. Antes de firmados, contratos são passíveis de ampla negociação, não de revisão a posteriori levada a cabo pelo magistrado.

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Quando a autoridade competente deixa de julgar em consonância com o que estabelece a Lei, estimula-se o desrespeito ao que está socialmente pactuado gerando desconfianças entre os socii. A pretexto de melhorar as relações entre os cidadãos, o ativismo de quem julga gera mais problemas do que resolve. Os intervencionismos promovidos pela autoridade legalmente constituída geram no atacado a impressão de cumprirem função corretiva, mas, no varejo, causam distorções ainda maiores. Além do ativismo dos magistrados, prosperam por aqui as legislações invasivas que se apresentam como capazes de corrigir disfunções sistêmicas. São o mais das vezes desnecessárias e igualmente perniciosas na medida em que criam mais desvirtuamentos que aperfeiçoamentos nas relações entre os cidadãos, e destes com os poderes constituídos. Além de provocar o encolhimento da esfera das decisões individuais, o furor legiferante gera uma burocracia kafkiana que só serve para travar a economia. Além de criar entraves que impedem o funcionamento eficiente das instituições, de enredar o cidadão em uma teia desnecessária de controles, a profusão de leis, decretos e portarias tem se mostrado um redutor da liberdade individual:

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Onde houver mais leis do que seja fácil recordar, e que proíbam coisas que a razão não necessariamente veda, então [os homens] recairão, por ignorância e sem a menor má intenção, nas sanções das leis, como se estas fossem ciladas armadas contra sua liberdade inofensiva; e pelas leis da natureza os comandantes supremos estão obrigados a conservar essa liberdade para seus súditos (HOBBES, 1983, p. 165-166).

O clamor dos cidadãos por justiça pretende que casos semelhantes recebam o mesmo tipo de tratamento. Isso ocorrendo, a justiça formal anda junto com a processual. No caso de a lei ser compatível com o conceito negativo de liberdade – ser preferencialmente proscrição e não prescrição – , de possuir um substrato ético que permita caracterizá-la como regra universal de justa conduta, pode-se defender a tese de que agir de modo justo é a mesma coisa que agir de acordo com a lei. Mesmo porque ficam protegidos com imparcialidade os direitos, bem como os interesses fundamentais, de todos os membros da sociedade. direito & LIBERDADE

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Um conjunto de direitos e obrigações recíprocos dedicados a proscrever as ações causadoras de danos a terceiros é a base da moralidade de qualquer comunidade humana que pretenda fazer prevalecer a justiça nas relações interpessoais. Tratar as pessoas como iguais em termos de direitos e deveres está longe de poder ser depreciado como justiça formal que só interessa aos poderosos. Por mais que algumas leis possam ser acusadas de ter um conteúdo normativo ou regulador voltado para os interesses de grupos ou de segmentos específicos da sociedade, não cabe aplicar um juízo desse jaez ao Direito. Locke enuncia o princípio essencial segundo o qual a lei é indispensável para que haja liberdade. Visto que nem toda lei é compatível com a liberdade, é preciso que a primeira procure se coadunar com a segunda. A concepção negativa de liberdade – ausência de coerção ou impedimento – é mais harmonizável com uma legislação enxuta, que renuncie a qualquer pretensão dirigista ou intervencionista capaz de prejudicar a livre iniciativa individual:

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Em sua acepção verdadeira, a lei é menos a limitação que a guia de um agente livre e inteligente em direção a seu próprio interesse; não prescreve mais do que labora a favor do bem comum dos que estão sob a lei; se pudessem ser mais felizes sem ela, a lei desapareceria como um algo inútil. Não merece o nome de confinamento o que nos que nos resguarda apenas dos lamaçais e precipícios. A finalidade da lei, mesmo se errada, não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade. Mesmo porque em todos os estados de seres criados, suscetíveis a leis, onde não há lei não há liberdade (LOCKE, 1980, p. 32)

A pretensão de promover a “retificação social” da lei por quem está incumbido de aplicá-la implica desconsiderar conteúdos normativos em prol dos valorativos. Ao “ativismo do juiz” se soma o intervencionismo do poder executivo, que acalenta a ambição de elaborar programas de engenharia social para a implantação dos quais a legislação cumpre papel crucial. No Brasil, a proliferação de leis entra em cena como uma espécie de mecanismo de compensação para o fato de ser disseminado o desrespeito ao que Hume chamou de fundamental laws: a estabilidade da posse, a transferência consentida da posse e a obrigação de cumprir promessas. Da observância dessas leis dependem inteiramente, na óptica de Hume 28

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(1969, p. 578), a paz e a segurança da sociedade, de tal modo que “não há possibilidade de se estabelecer uma boa convivência entre os homens se são desrespeitadas”.

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A sociedade brasileira não é apenas leniente com as violações das leis fundamentais de Hume. Tímidas têm sido as manifestações contra o crescimento geométrico dos índices de criminalidade. Os formadores de opinião exibem olímpica indiferença diante da escalada do crime, a ponto de muitos defenderem a tese de que até mesmo frios assassinos são vítimas do Sistema. É imperioso rechaçar a dupla moral, o seletivismo ético, dos formadores de opinião que por um lado mostram elástica tolerância com os delitos cometidos por celerados, apresentando-os como subprodutos do Sistema, e, por outro, justificada, porém desproporcional, revolta com os preconceitos e o bullying. Todos merecem condenação, mas os crimes contra a vida não podem ser relativizados para que sejam magnificados os que se mostram suscetíveis de manipulação político-ideológica. A indignação com as ilicitudes deve ter natureza universal e proporcional. Chama a atenção o fato de a indignação dos ativistas e militantes se manifestar de modo “eticamente” seletivo. O atual cinismo é deletério por colocar a ética a reboque da ideologia, como fica mais claro ainda no tratamento dispensado à avalanche de corrupção que diariamente desaba sobre nossas cabeças. Os que encaram o latrocínio como subproduto da sociedade iníqua são os mesmos que repelem como intolerável a manifestação de falas e ações preconceituosas. Desaparece a coerência e o senso de proporcionalidade quando se adota esse esdrúxulo posicionamento que faz a defesa do laxismo penal para frios homicidas, e propõe duras e implacáveis penas para delitos de menor gravidade. A distorção decorre de o conceito de justiça ser cada vez mais explorado politicamente conforme a conveniência de grupos ideológicos organizados. A matança ideológica do século XX promovida pelo socialismo real, ao contrário da nazista, nunca mereceu uma explícita condenação por parte dos atuais neo-socialistas. A preservação da ideologia se faz ao preço de relativizar o sofrimento dos agredidos e ofendidos. O objetivo ideológico de minar o fundamento ético do ordenamento jurídico caracteriza, com pseudopreocupação humanitária, o homicida como vítima do sistema econômico. Essa atribuição da culpa final ao Sistema tira dos ombros de

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cada criminoso o ônus das decisões que toma e das ações que executa. É pedagogicamente deletéria a crença de que a sociedade é responsável pelos problemas que as ações individuais vão produzindo. Era utópica, e foi condenada pela história, a visão que apresenta como solução a substituição da sociedade atual por outra construída sobre pilares socialistas. Reputar culpada a sociedade por todos os males praticados em seus vários cenários é descabido e, na prática, serve para formar cidadãos passivos, desinteressados em aperfeiçoamentos pessoais que propiciem melhores formas de convivência. Além do mais, a suposição de que o mal é gestado no ventre da sociedade torna inócuo qualquer programa reformista dedicado a corrigi-la setorialmente.

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O Brasil está se tornando um inferno tropical: muita descontração cercada de violência por todos os lados. As autoridades pouco fazem de efetivo para combater o crime e os intelectuais de palanque se reportam a intangíveis variáveis sistêmicas que, sem a precisa identificação, dão origem uma retórica que associa sic et simpliciter as atividades delituosas à pobreza. A persistir o atual quadro de laxismo, a sociedade resvalará gradualmente para a anomia. Para a maldade não se pode apresentar justificativa sem de alguma forma legitimá-la. Apresentar atenuantes sistêmicas para a virulência inaudita é compactuar com ela. Basta viver em uma de nossas grandes cidades para estar sujeito a sofrer, de modo aleatório, todo tipo de agressão à vida e ao patrimônio. Diante do avanço selvagem da criminalidade, é inepto e cínico reagir soprando as nuvens da retórica com a boca torta da ideologia. Nada se faz de efetivo para deter o avanço do mal quando se defende o paternalismo penal escorado na visão de que a violência tem causas sociais. Os antolhos da utopia levam a crença de que a transformação radical do Sistema gerará um novo homem desprovido de instintos agressivos e destrutivos. Vistos como subprodutos da pobreza, os criminosos são retratados como as vítimas do Sistema, que, diferentemente dos trabalhadores organizados, respondem de modo feroz às injustiças sociais. A violência política seria o meio “racional” de promover as mudanças revolucionárias e a criminalidade nada mais seria que a negação selvagem e aleatória de “tudo isso que aí está”. O “modelinho” de análise desenvolvido pelos “sociólogos e antropólogos do crime” e pelos formadores de opinião parte da pressuposição de que a crueldade e a barbárie não têm 30

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responsáveis individuais, só sistêmicos. Com isso, não há gritos de dor que se mostrem capazes de perfurar a carapaça dos que se concedem a prerrogativa da “consciência crítica”.

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Encarar a bruta criminalidade como epifenômeno da luta de classes é fazer pouco caso do sofrimento das vítimas, é mostrar indiferença pelos agredidos, assaltados, estuprados e assassinados. Para agravar o quadro de laxismo, os “intelectuais” passaram a minimizar a corrupção de seus chefetes políticos simplesmente por haver interesse ideológico em fazê-lo. São visões desse tipo que têm arrastado o País para o corrosivo relativismo ético. Enquanto as autoridades propõem medidas cosméticas para enfrentar o desafio da progressão geométrica dos atos criminosos, os “intelectuais” os justificam invocando causas sistêmicas cuja existência nunca fica inequivocamente estabelecida por meio de teorias formuladas com base em metodologia confiável. O simplismo, a argumentação epidérmica e a falta de respaldo nos fatos não impedem o sucesso das teorias defendidas por grupos ideologicamente organizados que adoram repetir mantras como se fossem verdades comprovadas. A retórica sociologista e/ou economicista não se sensibiliza com o fato de o Brasil se destacar pela estatística desonrosa de estar entre os primeiros do mundo em homicídios e corrupção sistêmica ostentando elevados índices de impunidade. Pior que todo bem que se deixa de praticar é o pedaço de inferno que se ajuda a criar com o apoio do laxismo estribado em teorias que, em última instância, justificam o mal. A banalização do mal ocorre quando praticado por autoridades – caso do totalitarismo do século passado – ou quando a inépcia e a frouxidão do poder público fomentam a barbárie. Parte expressiva da intelligentsia retira do latrocínio a dimensão de perversidade intrínseca para anistiá-lo como produto da iniquidade socioeconômica. No fundo, toda condescendência com um mal praticado é cumplicidade com o próximo que está sendo gestado. Quem culpa o Todo acaba por absolver as partes. Os antiliberais são curiosamente adeptos do liberalismo penal: laisser-faire, laissez-passer que le monde – no caso, a brutalidade – va de lui-même. A crença que retira a responsabilidade do infrator por considerá-lo vítima de forças que o determinam de fora só serve para promover o afrouxamento da consciência ética e estimular a atividade criminosa. Se o autor de um homicídio não passa direito & LIBERDADE

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de ator no teatro da sociedade, se sua estória é determinada pela história, se seu destino é traçado pelas parcas, o mesmo se aplica aos demais tipos condenáveis de comportamento como, por exemplo, as diferentes formas de manifestar preconceito.

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Muitas das pessoas que ambicionam dar uma dimensão social à Justiça, que se apresentam como seus arautos, são as menos credenciadas a fazê-lo. Políticos e formadores de opinião julgam a “realidade social” sem efetivo conhecimento das causas que a fazem ser o que é. Na maioria dos casos, os ideólogos ignoram a complexidade dos processos e das estruturas sociais para poder manipular as aflições dos que estão mal situados na pirâmide social. Entendida como redistributiva, a Justiça deve ser vista como um artifício – um nomos por contraposição a physis – em virtude de precisar ser pactuada pelos homens. Qualquer preocupação com ela seria dispensável caso inexistisse o problema da escassez, caso tudo existisse em quantidade suficiente para todo mundo. Nada há na natureza que se assemelhe ao conjunto de convenções que os homens resolvem adotar com vistas a atingir determinados objetivos em seus processos de convivência. Só que inexiste órgão ou instituição que reúna expertise capaz de credenciá-la a promover a justiça macroscópica, costumeiramente chamada de social, tomando por base o que são e fazem os indivíduos.

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Os que acreditam que o Estado pode se desincumbir da missão de fazer justiça macroscópica perdem de vista que ele mesmo é fonte de muitas das distorções encontradas na vida social e que as decisões tomadas em seu nome são de políticos e burocratas possuidores, quando muito, de conhecimento precário sobre o Sistema. Não há central burocrática capaz de determinar o quanto cada pessoa se esforça para ter um bom salário, a casa própria, se lhe falta empenho para melhorar de vida ou se está sendo devidamente recompensada pelo tanto que faz para a empresa ou instituição na qual trabalha e assim por diante. Não há órgão público detentor de informação suficiente para julgar o quanto cada um merece. A “coletivização” da Justiça leva à problemática tese econômica de que todos de um mesmo segmento profissional devem receber idealmente uma remuneração que precisa – para ser justa – ser definida à margem do estado em que se encontra o mercado de trabalho. É questionável a suposição de que todos merecem uniformemente a mesma remunera32

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ção – independentemente de desempenho – apenas por fazerem parte de determinada categoria profissional.

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Muitos dos representantes da intelligentsia que se posicionam contra a falta de justiça social são eles mesmos exemplos da falta de justo mérito para ocupar a posição em que estão. Os “bons relacionamentos”, a afinidade ideológica e o acaso frequentemente ocupam o lugar do processo de seleção ou recrutamento fundado na meritocracia. Por aqui atores, atrizes, cantores, compositores e assemelhados são considerados intelectuais, e chamados a pontificar sobre assuntos como os políticos e os econômicos sobre os quais demonstram ter escassa informação e rala formação. É importante reconhecer o ingrediente de aleatoriedade nos processos por meio dos quais as pessoas encontram seu lugar no tabuleiro da vida social. O problema é a frequência com que são agraciadas com cargos e postos pessoas manifestamente desprovidas de genuíno mérito. Impressiona o número dos que se valem do “poder da patota” para obter cargos e galgar posições. Tudo culminando na “Lei de Getúlio” – aos amigos tudo, aos inimigos o frio rigor da lei – contra a qual os defensores da justiça social nunca adotaram, principalmente nos últimos tempos, um posicionamento crítico incisivo. Para evitar reconhecer que em muitos casos falta merecimento por parte dos que ocupam posição de destaque na sociedade, os ideólogos reduzem a injustiça social à exploração capitalista da força de trabalho. Não é preciso recorrer a lupas poderosas, a precisos aparelhos de medição de desempenho, para chegar à conclusão de que tem muita gente no palco que deveria estar na plateia. Há muito político, ator, diretor, empresário, professor, jornalista, comerciante etc. que está onde está por capricho do destino, pelas amizades que fortuitamente fez ou por otras cositas más. Tem gente que está no comando e deveria estar seguindo ordens. São muitos os que sabem bem mais que os poucos falastrões que monopolizam microfones com linguajar mendicante sem nenhuma vergonha. Muitas vezes é ralo o vestígio de inteligência mesmo nas pessoas que deveriam aplicá-la em sua atividade profissional. Na direção das instituições, salta aos olhos o despreparo, o comando nas mãos dos ineptos e incompetentes. A maioria das injustiças decorre de articulações espúrias, conchavos nada republicanos, alianças mafiosas, “proteções do chefe” e também de aleatoriedade. Visto que os fatores direito & LIBERDADE

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que levam as pessoas a ocuparem tal ou qual lugar no tabuleiro da vida social não são definidos por uma inteligência superior, são inevitáveis as injustiças. Muito depende do fortuito, de se “estar no lugar certo na hora certa”, para que o desejado sucesso seja alcançado. Isso não quer dizer que muitas pessoas, talvez a maioria, não estejam, tanto em termos de sucesso quanto de fracasso, onde merecem estar.

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A vida social não está dotada de dispositivos que lhe confiram o poder de promover a justiça cósmica, a que faria com que cada pessoa ocupasse o lugar na sociedade em perfeita conformidade com seus méritos e deméritos. A sociedade estratificada funciona com relativa eficiência porque a riqueza de ações e a diversidade de ocupações fazem parte de um complexo processo marcado pela possibilidade de ascensão social. Se todas as pessoas buscassem as mesmas coisas, gostassem das mesmas atividades, tivessem os mesmos talentos e fossem levadas pelo acaso das oportunidades a trilhar os mesmos caminhos de inserção profissional, a ordem social – enquanto conjunto de funções e posições integradas – enfrentaria ainda maiores dificuldades para se constituir e se reproduzir.

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Crueldades como os crimes cometidos contra a vida não deveriam ser encaradas com leniência pelos que, por razões político-ideológicas, tanto clamam por justiça social. É cínico só ter olhos para a justiça redistributiva, considerar crimes graves subprodutos do Sistema, usar antolhos ideológicos para deixar de ver a lama da corrupção, aceitar que cargos públicos sejam preenchidos tão-somente por razões partidárias etc. Os que dão a entender que os bandidos não fazem vítimas, que são eles mesmos vítimas do Sistema, são os mesmos que politizam e exacerbam o combate ao preconceito. Ora, se alguém é impelido por determinantes sistêmicas ao crime repulsivo, por impulsos que o tornam um ente sem compaixão, o mesmo vale para o preconceito. O seletivismo moral e legal, que considera alguns tipos de delito socialmente determinados, e “compreensíveis”, e outros não, tem ganhado terreno por ensejar toda espécie de manipulação ideológica. É moralmente incongruente e condenável atribuir o infortúnio causado pelos crimes graves a fatores sistêmicos e clamar por penas pesadas para delitos menores. Implícita na inculpação da ordem socioeconômica e na defesa da retificação das desigualdades sociais está a noção, como destaca Sowell (1999, p. 13), de 34

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que alguns segmentos sociais carecem de coisas – sem que possam ser responsabilizados por isso – que para outros caem do céu sem que para isso precisem ser virtuosos. Embora possa faltar merecimento nas posses de muitos, isso não fornece álibis sociais para criminosos.

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Tem razão Nagel (1979, p. 28) quando assinala que “nem tudo que acontece a uma pessoa está fora de seu controle, mas a gama de possibilidades ou de cursos prováveis de vida que se abrem a determinado indivíduo são em considerável extensão limitados por seu nascimento”. O que quer dizer que os caminhos que podem vir a ser trilhados pelo nascituro são em parte limitados pela posição socioeconômica e nível educacional de seus pais, pela ambiência na qual cresce e por sua bagagem genética. Em uma sociedade com uma economia competitiva as conquistas individuais dependem em alguma medida, frisa Nagel, de quão inteligente se é e da qualidade da educação recebida. Depois de fazer essas constatações, Nagel (1979, p. 27-28) advoga que nada há de errado em o Estado remediar essa distribuição desigual nos pontos de partida das pessoas para assim promover a igualdade de oportunidades. É desejável que uma sociedade busque oferecer igualdade de oportunidades às pessoas oriundas de diferentes estratos sociais, o injustificável é invocar assimetrias sociais como forma de tirar a responsabilidade dos criminosos por seus atos. No Brasil, sofremos na carne os efeitos da incompetência generalizada dos que nos governam e no espírito a manipulação ideológica da intelligentsia – ou seria burritsia? – que se considera apta a propalar supostas verdades que a autorizam a julgar a sociedade na sua funcionalidade sistêmica. É uma forma astuciosa de dirigir o “pensamento coletivo” desviando a atenção dos fatos para colocá-la em mecanismos sistêmicos supostamente determinantes. Nos últimos tempos, ficou claro que boa parte da intelectualidade – cega aos descalabros administrativos e às políticas econômicas ruinosas – aceita receber cabresto ideológico em nome dos objetivos do velho socialismo cansado de história. A derrocada da União Soviética, a supressão da liberdade e a mortandade com motivação ideológica não levaram os intelectuais à autocrítica que lhes permitiria revisar o patético apoio que contemporaneamente oferecem aos governantes com nítido vezo autoritário e repressivo. Esquecendo a advertência de Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte

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– “Hegel observa algures que todos os grandes fatos e personagens da história universal aparecem como que duas vezes, mas esqueceu-se de acrescentar: uma vez como tragédia e a outra como farsa” – sonham implantar regimes parecidos como os que foram derrubados por clamor de liberdade, autodeterminação e eficiência econômica. Assusta constatar que os intelectualoides têm proposto para a sociedade brasileira fórmulas de governança que representam a retomada requentada de ideias que levam a controles opressivos.

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Ninguém em sã consciência acredita que as diferentes formas de crime que assolam este país possam ser extirpadas. Nem a mais avançada sociedade pode acalentar esse sonho. Só que quando o problema assume proporções calamitosas passa a ser irresponsabilidade propor medidas paliativas ou recorrer ao escapismo das causas sistêmicas cuja incidência nunca é objetivamente estabelecida. É hora de enfrentar o desafio do crime sem subterfúgios, sem justificativas ideologicamente manipuladas; sem caracterizá-lo por meio de termos vagos como violência para desviar a atenção da progressão geométrica da barbárie. Cevar o monstro do mal com discursinhos ideológicos cínicos é uma forma de cumplicidade. Os governantes omissos e os “críticos do Sistema” têm tratado a serpente do crime como se fosse uma minhoca. A epidemia do crime, a septicemia que começa a provocar, não pode ser enfrentada com analgésico. Longe da atual espiral homicida, no século passado fazia algum sentido encarar o banditismo como fruto de um meio cheio de desníveis socioeconômicos. Hoje, encarar a inumanidade de homicidas como efeito do sistema perverso é ser conivente com o que o ser humano tem de pior. A alegação de que não é o próprio criminoso o culpado por seus atos leva à transferência de responsabilidade das pessoas para as entidades e instituições como se fossem entes morais. E a considerar as entidades que formam a superestrutura “lacaias” de um sistema socioeconômico colocado no banco dos réus. Com esse tipo de visão, vai-se aos poucos marchando para a anomia decorrente da impunidade generalizada. Furtos, assaltos, estupros e latrocínios se tornaram tão comuns que encará-los como decorrentes de iniquidades sociais só serve para impedir as formas eficazes de combatê-los. É despropositado fazer o respeito aos direitos da vítima depender de se chegar à sociedade perfeita promotora da justiça idealmente concebida. Como ensina Platão, uma 36

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sociedade perfeita pressupõe uma educação perfeita, e esta só existe em uma sociedade perfeita. Uma sociedade não pode ser justa in abstracto sem que os homens, responsabilizados por seus atos, se tornem justos em seus relacionamentos. É claro que as pessoas terão mais facilidades em ser justas em sociedades livres que ofereçam as condições indispensáveis para que possam agir com correção. A maioria das ONGs, por interesse ou ideologia, finge não perceber que no Brasil, como em boa parte da América Latina, o avanço da criminalidade é um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento socioeconômico. A barbárie não é efeito da sociedade perversa, e sim sua principal causa. Se a vida nada vale, o que mais pode ser respeitado nas relações entre os socii? Quantas coisas o cidadão de bem deixa de fazer – entre outras, consumir – com medo dos perigos que se escondem em cada esquina! A impunidade que grassa é filha de leis lenientes, da progressão de pena, da incapacidade que os poderes de investigação e julgamento têm de identificar e punir os autores de atrocidades rotineiramente cometidas em nossos grandes centros urbanos.

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Até nos Estados bem governados, nos quais há leis e punições previstas para os ofensores, constatamos que os indivíduos não viajam sem levar sua espada para se defenderem; tampouco dormem sem fechar suas portas para se protegerem de seus concidadãos e sem cerrar seus cofres e baús por temor aos domésticos. Poderiam os homens dar mais inequívoco testemunho da desconfiança que têm uns dos outros, e todos de todos? Assim agindo, tanto os países como os indivíduos professam publicamente seu temor e desconfiança mútua. Contudo, quando discutem, negam isso; o que significa que pelo desejo que têm de contradizer os outros acabam contradizendo a si próprios [...] embora os perversos existam em menor número que os justos, como não temos como distingui-los torna-se necessário suspeitar, acautelarmo-nos, anteciparmo-nos, subjugar, defendermo-nos, por mais isso afete até os mais honestos e bons (HOBBES, 1983, p. 32-33).

Na vida social, quando o mal é visto como causado por outros males, cria-se um círculo vicioso que gera indiferença e aumento da injustiça nas suas diferentes versões. Mais que fruto da pobreza, o crime está contribuindo para aumentá-la. Destarte, cabe combatê-lo por gerar vítimas fatais, traumas psicossociais e ambiente desfavorável aos invesdireito & LIBERDADE

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timentos econômicos e ao desenvolvimento humano. Enquanto não se implantarem políticas capazes de diminuírem sensivelmente a impunidade, a atividade criminosa a muitos seduzirá com seus incentivos. Em seu ensaio De l’art de conferer Montaigne (1948, p. 151) observa que “é costume de nossa justiça condenar alguns para que isso sirva de exemplo para outros; condená-los porque erraram seria inapropriado, como diz Platão, uma vez que o que está feito não tem como ser desfeito; mas é para que não voltem a errar ou a fim de que os outros atentem para o castigo. Não se corrige quem se enforca, corrigem-se os demais com o que aconteceu com ele”.

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As políticas de combate ao crime que obtiveram êxito não defendem medidas de eficácia duvidosa como a do “desarmamento da população”, ou as escapistas que se escondem sob o pomposo programa “Unidades de Polícia Pacificadoras” (UPPs) colocado em prática no Rio de Janeiro. “Pacificadoras”, como se houvesse uma “guerra” com a bandidagem e se devesse celebrar um acordo de paz. São bem sucedidas as políticas de combate ao crime que, à maneira do Tolerância Zero posto em prática em Nova Iorque por Bratton/Giuliani, implacavelmente reprimem as diferentes modalidades de delito com base no pressuposto de que muitos dos que despontam de menor monta se articulam a outros de enorme gravidade. A complacência diante do aumento vertiginoso do crime serve também para estimulá-lo como atividade econômica. É preciso colocar em prática a lição fundamental de que só por meio da severa e implacável punição pode a criminalidade ser contida. Quando combatida de modo ineficaz, uma ameaça como a do progressivo avanço da criminalidade deixa de ter efeitos circunscritos para gerar multiplicadores metastáticos sobre as diferentes esferas da vida social. O “crime organizado”, que chega a controlar territórios em muitas favelas do Rio de Janeiro, é uma afronta ao Estado e à sociedade em nome da qual atua. Nas situações em que a sociedade se torna refém do crime – desafiada em seu poder de garantir o sagrado direito à vida – a reação precisa ser dura e eficaz. Do contrário, os fora-da-lei dominarão completamente o espaço público, transformando-o em permanente cenário de rentáveis atividades ilícitas. Só nefelibatas supõem que o avanço do crime é compatível com crescimento econômico acelerado e a melhoria dos indicadores sociais. Os pseudoespecialistas em infernologia acreditam 38

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que o mal só desaparecerá quando a sociedade se transformar no paraíso da perfeita igualdade material, uma vez que nesse caso ninguém terá mais motivo para atacar o outro ou sua propriedade. Não precisará ser minuciosa e exatamente calculado quanto cada um merece receber porque tudo – o pouco produzido – será igualmente de todos. Independentemente da visão de paraíso adotada, é fácil identificar, percorrendo algumas das paisagens urbanas deste país, vários infernos criados pelo laxismo. Todo bem – mais até em sentido ético que econômico – que se deixa de proteger é um pedaço de inferno que se ajuda a criar. Com a humanidade existente, é irrealista acalentar a pretensão de transformar este planeta num recanto edênico, mas, por certo, jamais serão vãos os esforços no sentido de diminuir as altas taxas de sofrimento individual e coletivo escorados na justiça sem adjetivações e no direito encarado como essencial à existência e subsistência da própria civilização:

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O poder dessa comunidade é então estabelecido como “direito”, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização [...] a primeira exigência da civilização é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será infringida em favor de um indivíduo [...] o resultado final é o império da lei para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar em uma comunidade – contribuíram sacrificando seus instintos; o que não deixa ninguém – a não ser, de novo, os casos de exceção – à mercê da força bruta (FREUD, 1946, p. 59).

As imagens que com frequência nos chegam das penitenciárias brasileiras nos mostram que são centros produtores da mais aguda degradação humana. Nas rebeliões e nas lutas entre facções, as barbaridades cometidas evidenciam que a selvageria não conhece limites. O teatro de horrores das cabeças decapitadas no presídio de Pedrinhas no Piauí, e repetido em outros presídios como o de Cascavel, revela a face da crueldade que não tem como ser explicada pela iniquidade do sistema econômico. E o fato de os presos controlarem as penitenciárias torna patente a completa falência da administração e da autoridade públicas, nada tendo a ver com injustiças consideradas sistemicamente geradas. O inferno do mundo do crime pouco tem a ver com o purgatório do sistema socioeconômico. O que poucos desconfiam é que no direito & LIBERDADE

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interior nos presídios, apinhados de presos de alta periculosidade, existem regras draconianas cujo desrespeito acarreta duras punições. O estereótipo mais comum é o de que as relações entre bandidos são impermeáveis a regras. Há alguns anos, a revista Veja veiculou uma marcante matéria mostrando que na antiga Casa de Detenção de São Paulo, onde conviviam 7000 criminosos, havia “lei” e “ordem” para além dos regulamentos penais. Até pequenos desvios comportamentais eram duramente punidos pelos detentos. Segundo Thais Oyana, autora da matéria, a simples “falta de educação” suscitava reações enérgicas: por exemplo, usar o banheiro enquanto outro preso estivesse fazendo uma refeição era passível de espancamento.

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Mesmo quando privado da liberdade, o ser humano institui regras rígidas de convivência. O que mostra que o regramento dos comportamentos não depende obrigatoriamente da existência de molduras institucionais capazes de enquadrá-los. Os códigos não escritos se revelam em muitos casos tão efetivos quanto as leis codificadas; sem falar que a frequente violação, sem punição, das leis leva à sua desmoralização. A existência de preceitos informais possuidores, em termos relativos, de mais efetividade que a lei penal, em virtude de seu desrespeito ser dura e implacavelmente castigado, mostra que no interior das penitenciárias não vige só a “lei da selva”. É curioso constatar que os que cometem faltas graves quando livres não admitem, quando trancafiados, pequenos deslizes no espaço de convivência. O sistema econômico imperante na cadeia, capitalista na essência, define o calote como uma falta de extrema gravidade. O contrato verbalmente firmado é sagrado e nada justifica deixar de integralmente cumpri-lo. Esses aspectos, entre outros, tornam patente o fato, constatado por vários estudos, de que regras rígidas de conduta são adotadas até mesmo por quadrilhas, por mais que só valham para o ingroup, não para o outgroup. As regras cumprem a missão, em termos funcionalistas, de manter a coesão do grupo criminoso organizado segundo uma rígida hierarquia. Por mais que sua aplicação careça de universalidade ética, as regras são adotadas pelas quadrilhas que se dedicam às formas mais cruentas de crime como forma de definir as condutas “internamente” aceitáveis. Nos presídios – assim como no plano do senso comum – existe a consciência, ao menos difusa, de que sem punição à infringência das 40

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regras, até das não escritas, as formas de convivência se deterioram. A visão sociologista ou economicista é proposta pelos bem pensantes que encaram como sistêmicas as causas das agressões ostensivas e recorrentes às leis fundamentais. O mal sociologizado deixa de poder ser objetivamente combatido na amplitude requerida. Não há como ser sadia uma sociedade que se mantém indiferente diante do aumento exponencial do desrespeito aos seus fundamentos éticos e jurídicos. Se até a vida comunitária em uma penitenciária acaba dando origem a uma espécie de “direito consuetudinário” duramente aplicado aos comportamentos desviantes, não pode uma coletividade se deixar minar pela impunidade generalizada sem caminhar para a anomia. As instituições começam a se erodir quando deixam de se dedicar a servir aos cidadãos protegendo-os.

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É irônico comprovar que na sociedade em que atrocidades se banalizam, os presidiários imponham códigos de conduta draconianos. Talvez fosse interessante perguntar-lhes como deveria ser combatida a estatística desonrosa que faz do Brasil um dos campeões do mundo em homicídios. É quase certo que alguns proporiam a pena de morte como solução. O mais provável é que a maioria, com a devida prudência, respondesse que tudo tenderia a melhorar caso se criasse um sistema eficiente de vigiar e punir. Ora, se os presos têm consciência de que no presídio é preciso aplicar punição exemplar até para banais desvios de conduta, causa estranheza que a coletividade se recuse a aprender a lição elementar de que é imperioso proteger os cidadãos dos atentados perpetrados por uma ínfima minoria. Não se trata de defender a eficiência dos “julgamentos” implantados pelos presos, que adotam uma versão piorada da pena de talião, mas de observar que até quem agiu contra a lei tem clara noção de que o convívio está assentado em normas que, se desrespeitadas, tornam obrigatória a punição. Os teóricos que tiram a responsabilidade dos autores dos delitos endossam uma antropologia à luz da qual o ser humano é reduzido a uma espécie de marionete do Sistema. Os álibis sociais para a criminalidade servem para fomentá-la. A desresponsabilização do cidadão o transforma em receptáculo passivo de forças que fogem ao seu controle. É expressão de sociologismo rudimentar e de economicismo simplista culpar a sociedade em geral ou o sistema econômico em particular pelos graves delitos cometidos por agentes específicos. Invocar fatores sistê-

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micos para explicar o crime, sem comprovar como efetivamente atuam, equivale a justificá-lo. A gênese desse tipo de visão remonta ao holismo/ coletivismo que encara as classes sociais, e não os indivíduos, como os reais agentes – na verdade, regentes – nos processos que formam a teia do Sistema:

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Para evitar possíveis mal-entendidos, uma palavra: não pintei o capitalista e o proprietário de terra de nenhum modo couleur de rose. Aqui, os indivíduos são tratados apenas enquanto personificações de categorias econômicas, enquanto corporificações de relações e interesses de classe. Meu ponto de vista, a partir do qual a evolução da formação econômica da sociedade é vista como um processo da história natural, deixa de encarar, mais que qualquer outro, o indivíduo como responsável por relações das quais ele permanece, socialmente falando, a criatura por mais que subjetivamente se coloque acima delas (MARX, 1938, p. XIX).

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Freud (1946, p. 87-89) ressalta que “os comunistas acreditam ter descoberto um modo de nos livrar de nossos males”. Para tanto, adotaram o pressuposto rousseauniano segundo o qual “o homem é sinceramente bom e amistoso com seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza”. Freud considera as bases psicológicas dessa visão uma ilusão insustentável, uma vez que “a agressividade, que não foi criada pela propriedade, reinou quase sem limites nos tempos primitivos quando a propriedade ainda era muito escassa, e se faz presente no quarto das crianças”. As pseudoteorias sociais sobre as causas da criminalidade possuem uma matriz rousseauniana que desconsidera argumentos como os de Freud. Visto como subproduto do modo de produção capitalista, o crime só desaparecerá em uma sociedade socialista pretensamente geradora da perfeição funcional e da justiça modelar. Fazer desaparecer as causas que desencadeiam a criminalidade equivale, para esse tipo de visão, a instituir a completa igualdade material entre as pessoas pela instauração de um regime socialista. Esta forma de politização da violência é a premissa oculta da maioria dos argumentos complacentes sobre a espiral da violência que assola o país. Se as violações conhecidas de normas não são punidas, ou não o são de forma sistemática, tendem a se alastrar: 42

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Onde prevalece a impunidade, a efetividade das normas está em perigo. Nesse sentido, a anomia descreve um estado de coisas em que as violações de normas deixam de ser punidas [...]. As sociedades humanas são conjuntos de normas válidas que tornam o comportamento previsível. As normas são válidas não em virtude de serem realmente observadas ou, em um sentido absoluto qualquer, por serem moralmente corretas, mas porque a violação delas é punida com sanções (DAHRENDORF, 1985, p. 24-25).

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A força, a eficácia, das normas jurídicas muito deve à prevalência de um sistema moral introjetado pelos indivíduos e incorporado às suas condutas. A lei deve operar como uma espécie de reforço externo, impositivo, da ética. Os complexos mecanismos psicossociais que fazem com que o comportamento seja moldado por regras não têm como ser reduzidos a dispositivos de poder dedicados a manter a ordem em prol dos interesses da classe dominante. Por isso Wittgenstein, (1958, p. 85e) depois de formular a pergunta “como sou capaz de seguir uma regra?”, sublinha que “se esta não é uma questão sobre causas, então é sobre a justificação para o fato de eu seguir a regra do modo que o faço”. As dificuldades no enfrentamento dessa questão são tantas que Wittgenstein argumenta que “caso tenha esgotado as justificações, cheguei à rocha e minha pá virou e que, nesse caso, estou inclinado a dizer: isso é simplesmente o que faço”. Visto que seguir regras é inerente à conduta humana, as normas vigentes em uma sociedade precisam ser universais e imparcialmente aplicadas. Desmerecê-las genericamente como imposições de um Sistema – cujos atributos funcionais, processuais e normativos servem apenas aos interesses dos poderosos – é defender que só teriam legitimidade as que fizessem parte de uma sociedade sem classes. O déficit ético que se observa na sociedade brasileira torna necessária a existência de um sistema duro de aplicação da lei. Os que se recusam a seguir o caminho do bem pela introjeção espontânea das normas éticas, os que resistem a regular suas ações por elas, precisam ser exemplarmente punidos quando cometem ilicitudes legalmente enquadráveis. Estando a fundamentação das normas legais localizada na moral, se o comportamento se pautasse estritamente pela ética seria autorregulado a ponto de tornar dispensáveis controles externos. Inexistindo uma modelagem ética universal dos comportamentos, a “legislação interior” da moral direito & LIBERDADE

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precisa ser reforçada pela “legislação exterior”, a da Lei, que demanda um Poder que a faça ter efetividade:

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Em determinada situação social sabemos que comportamento esperar de outrem porque sabemos que no caso de se comportar diferentemente será punido. A efetividade das normas as liga, por meio das sanções, ao poder, ou, melhor dizendo, ao poder institucionalizado, à autoridade. As sanções implicam uma agência que se mostre capaz de impô-las. Sob esta perspectiva, o contrato social, ou seja, a base fictícia da ordem social é necessariamente tanto um “contrato de associação” quanto um “contrato de dominação” (DAHRENDORF, 1985, p. 25).

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O reducionismo sistêmico se torna nocivo por reduzir as causas da criminalidade a epifenômeno da luta de classes, por encarar a aplicação da justiça como parte de uma superestrutura devotada a legitimar os interesses dos poderosos. No Brasil, o marxismo vulgar infesta o ensino – do nível básico ao universitário – e transparece nos escritos e nas falas dos formadores de opinião. O economicismo – o fator econômico determina em última instância os modos de pensar e agir – impede a avaliação dos comportamentos em termos de seus méritos ou deméritos morais intrínsecos. A atual tendência a relativizar quase tudo a alguma coisa faz do o crime efeito da “sociedade injusta”. Ações delituosas só merecem ser exemplarmente punidas quando seus autores pertencem à classe dos abonados. Os juízos ideológicos, insuscetíveis de comprovação empírica, têm-se disseminado porque tem ganhado espaço a visão de que não há fatos, de que tudo é sempre construção social. A concepção relativista – a punição do crime depende de quem o comete – e a reducionista – o econômico explica o que acontece em outras esferas – desconsideram os imperativos éticos, sociais, psicológicos e antropológicos que tornam indispensável o irrestrito respeito à Lei. Ainda que sem o pretender, esses ismos promovem a justificação das ilicitudes e do tratamento diferenciado dos que recorrem a ideologizações ad hoc nos julgamentos. Não foi a sociedade burguesa que inventou a lei para servir a seus interesses. Sendo imprescindível a qualquer forma de vida social, cabe discutir de que tipo deve ser para que seja compatível com o mais amplo usufruto da liberdade individual e com a expressão e realização das melhores potencialidades humanas. Encará-la como mero 44

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dispositivo de dominação significa desconsiderar a função capital que cumpre nas diversas culturas:

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No estudo do direito primitivo podemos perceber que [...] os selvagens não são governados por humores, paixões e acidentes, mas pela tradição e pela ordem [...] Longe de serem rígidas, absolutas, ou invocadas em nome de Deus, as normas de sua lei, são mantidas por forças sociais entendidas como racionais e necessárias, elásticas e capazes de ajustamento (MALINOWSKI, 1929, p. 72-74).

Os que rebaixam as forças policiais e o aparato da justiça a sistemas de repressão e julgamento postos a serviço da exploração econômica e da dominação política promovem a desmoralização das instituições. Em vez de buscarem formas de aprimorá-las as deslegitimam. Se a repressão e a punição ao ilícito têm sempre um viés de classe, não há como justificá-las. Como é produzido pela sociedade injusta, o crime não pode ser considerado um mal de primeira ordem. E assim a barbárie vai se aprofundando a ponto de se chegar a creditar também a espiral do crime ao Sistema. Sendo a sociedade reputada injusta pela forma com que reparte seus frutos, perdendo a legitimidade para combater os que atentam contra suas leis fundamentais de convivência, passa-se a ter o pior dos mundos: a suposta iniquidade do Sistema e a real selvageria de seus membros:

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Normas são válidas se e quando se mostrarem efetivas e morais, ou seja, se e quando forem (julgadas) reais e (julgadas) corretas [...] subsistem relações entre esta terminologia e o conceito de legalidade (a efetividade positiva das normas) e o de legitimidade (a coincidência entre efetividade e moralidade) (DAHRENDORF, 1985, p. 26).

O laxismo acaba por transformar problemas circunscritos em ameaças que vão se espraiando e se agigantando. O firme avanço da ilegalidade sobre o território da legalidade acabará, a se manter a progressão atual, por desembocar na anomia. Como bem observa Durkheim (1967, p. 72) “do fato de ser o crime um fato normal da sociologia não se segue que não devemos odiá-lo; também a dor nada tem de desejável; o indivíduo a odeia assim como a sociedade odeia o crime. E, no entanto, a dor faz parte da fisiologia normal”. Não sendo o crime enfrentado com firmeza porque só a sociedade ideal o vencerá, experimenta-se uma espécie de volta ao “estado de natureza” em que inexiste justiça (status iustitia vacuus), em que todo direito é incerto, já que passível de ser direito & LIBERDADE

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sempre desrespeitado sem sanção, e em que não há juízes que profiram sentenças escorando-se na força da lei.

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A não ser que seja pensada como um todo que determina as partes, como um Poder que plasma as ações de seus membros, a sociedade não tem como ser responsabilizada pelo caráter errado dos atos executados por tal ou qual pessoa. Indivíduos não são marionetes que seguem às cegas o script estabelecido pelo sistema de classes gerado pelo sistema econômico. É esdrúxula a sugestão de colocar a sociedade no banco dos réus e o criminoso no divã. São nefastas as consequências de se retirar da sociedade a função capital de ser, por meio de suas instituições competentes, juíza proba e rigorosa dedicada a punir as diferentes formas de violência e criminalidade. Gera mais distorções que correções a concepção de justiça que promove a subordinação da punição ao entendimento das condições socioeconômicas do autor do delito. O problemático pressuposto de que o crime é causado por fatores sistêmicos nebulosamente identificados envolve atribuir à sociedade, e só a ela, as disfunções que eventualmente possa abrigar como também a de responsabilizá-la pelos atos dos que atentam contra as leis. A verdade é que todo tipo de ilicitude precisa ser reprimido e punido por mais que se almeje recuperar o infrator. Condenar a sociedade por sua suposta iniquidade sistêmica, concedendo “álibis sociais” àqueles que infringem suas leis, corresponde a justificar, ainda que de modo tortuoso, atentados aos direitos dos cidadãos. Considerado carente de vida própria, depreciado como reflexo do sistema econômico, o Direito só logrará ser justo quando – fruto de uma sociedade sem assimetrias materiais entre seus membros – tornar-se desnecessário... Ao deixarem de encarar o homem como uma personalidade moral autônoma – capaz de fazer escolhas arcando com as consequências, de optar entre o certo e o errado –, as concepções sociologistas o reduzem a fantoche de forças sociais, tornando injustificada qualquer efetiva avaliação de sua conduta. Se o homem é refém de inelutáveis mecanismos sistêmicos, não tem como responder por seus atos. Com base na alegação de que é necessário transcender a esfera do “indivíduo isolado e abstrato”, algumas correntes adotam uma visão superssocializada de homem: tudo que é resulta do que a sociedade o faz ser. Programado pelas estruturas sociais, o indivíduo não responde por seus atos. Ao ser 46

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tirada da esfera individual, a responsabilidade deixa de ser objetivamente atribuível a ponto de a própria ideia de justiça se desvanecer. É peça de ficção “levar a julgamento” a sociedade fornecendo álibis sistêmicos para as condutas dos que desrespeitam as leis. O escapismo que tira o foco dos autores dos delitos para colocá-lo nas disfunções da vida social, do sistema econômico, da cultura etc. ignora a lição de Freud (1946, p. 86) de que “a sociedade civilizada está perpetuamente ameaçada de desintegração como consequência da hostilidade primária que os homens têm entre si”.

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Fatos dramáticos de uma história de vida podem em alguns casos ser invocados para explicar vários tipos de desvio de conduta, mas não para justificá-los. Atribui-se a Madame de Stäel a advertência de que “tout comprendre c’est tout pardonner”. Levada às últimas consequências, a “culpa sistêmica” que isenta as pessoas de responsabilidade por seus atos sugere o cenário imaginário em que a “sociedade” é levada ao banco dos réus para ser julgada pelas vítimas por ela criadas: os criminosos. Com isso, pode-se desembocar no argumento desconcertante de que as verdadeiras vítimas são vítimas (pobres) das vítimas (“ricas”). Como se a maior parte dos homicídios não ocorresse nas periferias dos grandes centros urbanos... O pressuposto dos utopistas é o de que há uma sociedade perfeita pronta a substituir a que se apressam a condenar. Em contraposição, Freud (1946, p. 138) sublinha que o que está em questão “é como afastar o maior obstáculo à civilização: a tendência constitucional dos homens para agressões mútuas”. Só desconsiderando a função capital cumprida pela sociedade no processo de formação e reprodução das virtudes morais fundamentais se pode acusá-la de ser a causa primária e originária dos crimes. Tirar a responsabilidade do indivíduo equivale a situar os móveis de suas ações fora do domínio de sua vida psíquica. Sendo os tipos de conduta subprodutos do sistema socioeconômico, espelhando a divisão da sociedade em classes e interesses antagônicos, não podem ser responsabilizados pelo que contenham de errado. Essa visão é acompanhada, de modo aberto ou velado, pelo pressuposto antropológico de que o homem é intrinsecamente bom, de que é a sociedade que o degrada e corrompe. Visto que o ser humano é um zoon politikon, que sua existência moral é fruto da vida social, é injustificável condená-lo pelo que ele faz de errado caso a sociedade tenha uma “funcionalidade perversa”. A condenação direito & LIBERDADE

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do Sistema só faz sentido porque se adota o pressuposto de que se pode colocar outra sociedade no lugar da existente ou, na pior das hipóteses, cambiar os processos e estruturas que a fazem se reproduzir com defeitos que causam iniquidades nas relações entre seus membros. A suposição de que a sociedade tem vida própria, de que se situa em um plano ontológico supra-individual e de que se reproduz com base em mecanismos autóctones, leva à visão de que os agentes são por ela determinados. Os indivíduos não respondem por seus atos nem possuem parcela importante de responsabilidade por essa obra defeituosa chamada sociedade por muitos adjetivada de capitalista. Como se por milagre ontológico, as funcionalidades sistêmicas nada devessem às decisões e ações individuais. Os socii são arrastados por forças que os levam a fazer escolhas como se fossem suas. Inexistindo culpa, apenas causas fora do controle do ser humano, então não faz sentido julgar comportamentos com o fito de puni-los. Mesmo porque isso equivaleria a castigar uma pessoa por algo que fez, mas sem desejá-lo realmente fazer porque foi impelida por causas sobre as quais não possuía controle: O contrato social significa o acordo tácito de se conformar a certas normas elementares e aceitar o monopólio da violência da parte de um poder comum estabelecido para proteger essas normas (daí a distinção entre um “contrato de associação” e um “contrato de dominação” ser redundante) (DAHRENDORF, 1985, p. 89).

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Está longe de ser fácil definir a justa e apropriada punição e indicar o objetivo precípuo que se pode perseguir por meio de sua aplicação. É fato que a punição serve, entre outras finalidades, para criar um “sentimento de justiça” entre os cidadãos, para proteger a vida e o patrimônio dos socii, para dar efetividade às regras de convivência adotadas por uma sociedade e, last but not least, para inibir novos potenciais criminosos. O poder da justiça se baseia em imperativos da racionalidade, na necessidade de prover segurança física e proteção psicológica aos socii, tudo definido no âmbito de um quadro normativo ao qual toda uma comunidade tacitamente adere. Sendo a autoridade de punir em última análise da sociedade, é desconcertante acusá-la de ser – por sua funcionalidade sistêmica – a fonte de todos os males. A legitimidade das autoridades é erodida quando a sociedade é vista como a geradora primeira dos impulsos delituosos ou a determinante causal última do ato criminoso. 48

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Os tipos de punição precisam se mostrar justos e eficientes para os que estão sujeitos a recebê-los. A questão é saber se as modalidades de punição adotadas se escoram em princípios cogentes, como os que integram uma ética deontológica, para a qual a norma vale e se impõe por si mesma, ou pelas consequências que geram para a vida social. Mesmo as mais incipientes versões de sistema normativo-legal introduzem uma proporcionalidade entre a gravidade do delito e o rigor da pena. O desafio de estabelecer a justa medida, a salvo da hybris punitiva, tem suscitado profusa reflexão na filosofia, no direito, na psicologia e na sociologia. Dificilmente alguém considera justa a punição que lhe é aplicada: Não se sofre a pena porque se a desejou, mas porque se quis executar uma ação passível de punição. Se o que acontece com alguém é algo por ele desejado, então não pode ser punição. Por conseguinte, é impossível desejar ser punido (KANT, 1978, p. 105).

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Quando uma pessoa “assume-se culpada”, o que é raro, normalmente o faz porque a consciência assim lhe impõe. O remorso a faz se sentir aliviada quando reconhece que deve pagar pelos danos causados a outrem. O arrependimento é incomum entre os criminosos. Os programas de ressocialização mostram que mesmo os que perseveram no caminho que os levou a sofrer duras punições só esporadicamente podem ser qualificados de psicopatas ou sociopatas. Por isso a recidividade tem sido um dos grandes desafios enfrentados pelos mais sérios programas de recuperação. Como são as instituições sociais que criam as figuras do desviante e do punidor, é importante entender como e por que esses tipos de agente são criados. Sendo o instituto do castigo um universal cultural, não cabe atrelá-lo a necessidades exclusivas a determinados tipos de organização e ordem sociais. Essa é a razão pela qual as figuras do castigador e do punido são encontráveis tanto nas sociedades arcaicas quanto nas modernas. Sem punição, a sociedade deixa de contar com os mecanismos dissuasórios mais eficazes na contenção dos desvios graves de conduta. Sem poderes para reprimir, julgar e punir, as sociedades complexas se condenam à anomia. A ubiquidade da punição, a constatação de que a vida social se define de modo essencial pela existência e vigência de regras – escritas ou não – torna fundamental determinar que razões podem ser invocadas, para além dos imperativos da convivência ordeira, para justificar a aplicação de sanções. Não sendo direito & LIBERDADE

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vendetta, expressão de revanchismo emotivo, a finalidade que a punição persegue, a função social que cumpre, vai além da de tentar “reparar” os sofrimentos dos atingidos por ofensas ou danos à sua vida ou patrimônio:

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Uma punição é um mal infligido pela autoridade pública a quem fez, ou deixou de fazer, o que a mesma autoridade considera transgressão da lei, a fim de que assim a vontade dos homens se torne mais disposta à obediência [...] qual é a porta por onde entra o direito ou autoridade de punir? Quando da constituição de um Estado, cada homem renuncia ao direito de defender os demais, mas não o de se defender. Obriga-se também a dar apoio àquele que detém a soberania na punição de outrem, mas não na de si mesmo [...] O direito de punir pertencente ao Estado (isto é, àquele ou àqueles que o representam) não se funda em qualquer concessão ou doação dos súditos [...] antes da instituição do Estado, todo homem tinha direito a todas as coisas e a fazer o que considerasse necessário à sua própria preservação – subjugar, ferir ou matar qualquer um a fim de obter o fim desejado. E é este o fundamento daquele direito de punir que é exercido em todos os Estados (HOBBES, 1971, p. 353).

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Não sendo a ação de punir um fim em si mesmo nem representando a aplicação de um conceito de justiça que se pretenda indefectível, o crucial é determinar o que ela proporciona. Nas sociedades remotas há uma forte consciência coletiva de que sem regras de convivência, cujo desrespeito leva à punição, não teriam como ser evitadas as lutas fratricidas que deságuam na ampla dissolução dos vínculos sociais. A isso se acrescenta, nas sociedades contemporâneas, o clamor pela proteção do indivíduo sempre sob a ameaça de ter sua vida, liberdade e patrimônios agredidos por “desconhecidos” que fazem parte da mesma sociedade, mas nem sempre da mesma comunidade entendida, a partir da célebre distinção estabelecida por Tönnies entre Gesselschaft e Gemeinschaft, como espaço de relações próximas e diretas como as de tipo face to face. A punição é um meio indispensável, principalmente na Gesselschaft, para tentar dissuadir os futuros ofensores e uma forma de a coletividade impor seu poder contra as tentativas de exercê-lo de modo anárquico por grupos e indivíduos. A punição pode ser vista como uma forma de proteger as pessoas umas das outras por meio de mecanismos que só uma ordem social – fincada em costumes ou em 50

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complexas instituições – tem como instituir e fazer valer. A punição é justificável pelos efeitos indiretos positivos que gera para a vida social e não por “dar o troco” ao criminoso. Os efeitos se mostram majoritariamente benéficos, a despeito da falibilidade dos julgamentos, caso sirvam para inibir a reincidência de ações merecedoras de sanção e para dissuadir potenciais candidatos a delinquir:

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Cada transgressão pode ser punida numa extensão e com uma severidade que se mostrem suficientes para torná-la um mau negócio para o ofensor, dando-lhe motivos para se arrepender e aterrorizando outros a fim de dissuadi-los de fazer coisas semelhantes (LOCKE, 1980, 12, p. 12)

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Sendo o exercício da punição tão antigo quanto a dos grupos humanos organizados, não se justifica reduzi-lo a componente do aparato de dominação de uma classe social assenhoreada do Estado. Antes mesmo de o Direito emergir como um grande avanço na promoção da justiça, povos ágrafos – norteando suas ações sociais tãosomente por aquilo que se costuma chamar de “moral tribal” – já costumavam recorrer à prática da punição. Não cabe entrar no mérito de se o faziam com a exigida isenção, proporcionalidade e ponderação, mas ressaltar que consideravam indispensável a ação de punir aquilo que, justa ou injustamente, era considerado merecedor de sanção. Não há registro de povo ágrafo cujas formas de convivência se mostrem livres de controles, impermeáveis a formas simples e incipientes de “vigiar e punir”. Os estudos dedicados às culturas ágrafas levam à conclusão de que onde existe comunidade humana pode-se encontrar o binômio castigo-recompensa ao qual corresponde, no campo da economia, o binômio custo-benefício, que também pode ter sua presença detectada mesmo onde o sistema econômico ainda não é o monetário e sim o de escambo. Basta um pequeno exercício de antropologia transcendental, dedicada a identificar as condições que tornaram possível o advento de determinada coisa, para que se conclua que se a punição inexistisse teria de ser inventada, pois corresponde à insopitável necessidade de regrar os relacionamentos humanos. É, na verdade, uma das condições de possibilidade da sociabilidade. Do ponto de vista da economia do delito, obriga o infrator a levar em consideração a relação custo-benefício de suas ações: direito & LIBERDADE

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É da natureza da punição ter por finalidade levar os homens a obedecer às leis, e tal fim deixará de ser atingido, e terá até efeito contrário, se os danos infligidos forem menores do que o benefício da transgressão (HOBBES, 1971, p. 355).

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Na civilização pode ser encontrada a gênese de controles dos mais diferentes tipos sobre o ser humano: dos formativos aos punitivos. As modalidades de repressão introduzidas pela civilização podem se apresentar de modo patente ou latente. É equivocado identificá-las com o arbítrio dos poderosos ou confundi-las com a sanha autoritária que promove um indiscriminado controle e uma minuciosa restrição dos modos possíveis do agir humanos. Seu objetivo precípuo é fazer valer as convenções comunitariamente instituídas que visam a coibir as condutas prejudiciais ao convívio interpessoal e ao bem-estar social. A civilização não se forma e se funda em interesses conscientes de pessoas ou grupos dominantes. Daí Freud (1946, p. 63) observar que “não se pode ignorar o quanto a civilização é construída com base na renúncia às gratificações instintivas, o quanto a existência da civilização pressupõe a não gratificação (supressão, repressão ou alguma outra coisa?) de urgências instintivas poderosas”. A tese que sustenta que “o que chamamos de civilização é em grande parte responsável por nossa desgraça e que seriamos muitos mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas” é por Freud (1946, p. 44) qualificada “de espantosa porque, seja qual for a maneira com que se defina civilização, constitui fato incontroverso que todas as coisas que buscamos a fim de nos proteger contra as ameaças oriundas das fontes de sofrimento, fazem parte dessa mesma civilização”. A teoria psicossocial de Freud exposta em O Futuro de uma ilusão e A civilização e seus descontentes é em boa parte caudatária do pensamento político de Hobbes, para o qual é manifesto o perigo difuso e insuperável a que estão submetidos os homens no estado de natureza. É a ameaça da anomia e da desintegração social que cria e legitima os poderes civilizatórios de controle e repressão, que não são apanágio das societés chaudes por oposição as societès froides (“primitivas”, “arcaicas”), como as distingue Lévi-Strauss: Há uma série de leis, tabus e obrigações em toda cultura humana que pesam enormemente sobre todo cidadão, que demandam grande sacrifício e que são obedecidas por razoes morais, sentimentais ou

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factuais, mas sem qualquer “espontaneidade” (MALINOWSKI, 1929, p. 13-14).

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Malinowski mostrou não só que a vida do homem primitivo se insere em uma delicada trama de direitos e obrigações como também que é infundada a tese de que a vida primitiva se caracteriza pela ausência de leis. Sendo assim, defende uma visão antipódica à de Rousseau, para quem o selvagem tem uma forma de vida marcada pela liberdade e pela despreocupação, como se fosse o habitante de um éden que se perdeu com a civilização. Na verdade, o grande antropólogo polonês evidencia que em toda comunidade primitiva há mais excesso que parcimônia de leis. E que o direito dos povos primitivos não se reduz a um dispositivo mecânico de aplicação de um corpo de leis quando ocorre uma transgressão. Não se trata de submissão automática aos costumes da tribo e sim da prevalência de um princípio de reciprocidade que se aplica às diferentes modalidades de interação entre os primitivos. Para Malinowski, o direito primitivo não está baseado em um sistema de imposições, uma vez que nem todas as leis dos selvagens são criminais.

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Nas societés chaudes, a finalidade precípua do Estado é garantir a necessária coesão social, pois caso deixem de ser impostos limites às ações dos socii, como ocorre no estado de natureza em que se permite que cada um manifeste seus imoderados desejos de posse e poder, sua desmesurada cobiça e avidez, fazendo do homem lobo do homem (homo homini lupus), o resultado inevitável é a guerra intestina generalizada, que é ao mesmo tempo causa e causadora da anomia. A ideia de que o Estado foi criado como uma espécie de autodefesa da sociedade civil destinada a evitar sua desintegração fratricida por meio da belum omnia contra omnes implica que sem as restrições impostas a determinadas modalidades de conduta individual e grupal, sem as correspondentes sanções aplicáveis às violações de normas estabelecidas, fica inviabilizada a existência de uma ordem que promova a cooperação e regre a competição entre os socii pelo escasso. Sendo permanente a ameaça à vida de cada um na ambiência em que todos são livres irrestritamente, em que tudo pode ser tirado de qualquer um a qualquer momento, é alto o risco do caos e da desordem. O fato é que sem um quantum de controle e restrição compatível com a concepção negativa de liberdade – entendida como ausência de impedimento ou coerção – não há como existir vida social

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organizada. Aceito isso, passa a ser fundamental definir o que deve ser regulado e punido e por que meios:

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Permitir que a punição dependa da presença ou da ausência de condições atenuantes, ou considerá-la justificada quando estão ausentes, mas não quando estão presentes, é absurdo, sem sentido, irracional, injusto, imoral, ou talvez tudo isso junto (HART, 1961, p. 96).

Sendo o poder de punir exercido pela sociedade – em seu nome pelas autoridades competentes – contra aqueles que desrespeitam as regras do jogo social, o criminoso sofre pena não só por ter causado mal a alguém, mas também por ter desafiado a comunidade da qual é parte. Em nome de sua autopreservação, a sociedade guardiã das leis e zelosa de seu cumprimento encarrega-se, por meio dos que a representam, de punir os que as transgridem. É por isso que a sociedade, para se manter coesa e criar um ambiente seguro, precisa rechaçar a relativização na aplicação das leis que, mesmo cercada das melhores intenções, promove a impunidade e a sensação difusa de parcialidade:

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Não carregueis convosco dois pesos, um pesado e o outro leve, nem tenhais à mão duas medidas, uma longa e uma curta. Usai apenas um peso, um peso honesto e franco, e uma medida, uma medida honesta e franca, para que vivais longamente na terra que Deus vosso Senhor vos deu. Pesos desonestos e medidas desonestas são uma abominação para Deus vosso Senhor (BÍBLIA, Deuteronômio, 25:13-16).

É importante reconhecer que os posicionamentos assumidos diante de um tema candente como o da punição podem ser associados a diferentes imagens de homem ou de natureza humana. Uma antropologia que se pretenda realista é pouco compatível com a visão de homem que o encara como um bom selvagem corrompido pelo ambiente social ou pelo sistema econômico. Sendo o homem percebido como um potencial ofensor ou agressor de seu semelhante, sem que o sistema socioeconômico determine a natureza de suas ações, busca-se evitar isso pelo regramento da conduta humana por meio da lei tornada efetiva pelo poder do Estado, pois, como ressalta Hobbes, “os pactos sem a espada não passam de palavras, impotentes que são para proteger o homem”. Ao Direito incumbe, por delegação da sociedade e não de uma classe 54

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social, a função de especificar os comportamentos sobre os quais deve recair o peso da lei com suas punições previstas:

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Os homens como são não teriam razão para obedecer voluntariamente a quaisquer regras; e sem um mínimo de cooperação dado voluntariamente por aqueles que consideram ser de seu interesse se submeter às regras e mantê-las, a coerção de outros que não quisessem voluntariamente se conformar a elas seria impossível (HART, 1961, p. 193).

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Limitar a vontade que cada pessoa tem de fazer o que bem quiser sem considerar o outro não é fruto de arbítrio, mas da preservação de um espaço de convivência ordeiro e harmonioso. Visto que o puro laissezfaire comportamental é destrutivo, deve subsistir um rígido critério de demarcação, impermeável a relativizações, entre as atitudes elogiáveis e as reprováveis, entre as consideradas aceitáveis e as passíveis de punição. Com a antropologia aprendemos, sem que a lição nos leve obrigatoriamente ao relativismo cultural, que há uma rica diversidade de costumes e valores, de tal modo que os atos permitidos em uma cultura podem ser proibidos noutra, e vice-versa. Caso desviemos a atenção dessa real diversidade de costumes e valores em busca do que é universal, do que tem se mostrado presente em todas as culturas, letradas ou pré-letradas, deparamos com duas dicotomias: (1) o que é proibido/o que é permitido

(2) o que é obrigatório/o que é facultativo.

As ações dos membros de qualquer cultura são reguladas por normas de conduta que se enquadram em uma dessas quatro categorias. É o caráter universal e necessário da punição que confere legitimidade à lei capaz de infundir-lhe efetividade. Associadas, legitimidade e efetividade evitam que a lei seja letra morta. A aplicação da punição resulta da violação de regra ou norma marcada pela categoria deôntica do proibido. Pode-se discutir a justificação para o que se proíbe, mas a autoridade incumbida de julgar não pode deixar de aplicar a lei: Quanto aos crimes que os súditos cometem uns contra os outros, ele [o soberano] não pode de forma alguma exercer esse direito [de anistia], já que nesses casos a isenção de punição (impunitas criminis) constitui a maior injustiça para com seus súditos. Consequentemente, direito & LIBERDADE

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ele pode fazer uso de seu direito de perdoar apenas quando está em questão um dano cometido contra ele mesmo (crimen laesae majestatis) (KANT, 1978, p. 108)

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Supondo-se que a punição possa trazer efeitos positivos para a vida social, identificá-los claramente é passo importante para justificá-la e torná-la cada vez mais eficaz na diminuição dos índices de criminalidade. Uma das justificações mais invocadas em prol do castigo decorrente da aplicação da lei são os manifestos males causados pela impunidade que afligem, em maior ou menor escala, as sociedades atuais. Como ensina Beccaria (1973, p. 66), “um dos maiores freios contra os delitos não é a crueldade das penas, mas sua inexorabilidade e, por consequência, a vigilância dos magistrados bem como a severidade de um juiz implacável”. Se o que está em questão é humanizar a punição, o desafio é fazer isso sem levá-la a perder o poder de dissuasão. Refletindo sobre que justificativas podem ser apresentadas para a punição na sua acepção mais ampla, Walker (1991, p. 1-3) elencou aquelas que seriam suas sete características:

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(1) A punição envolve a aplicação de uma medida que, aos olhos daquele que sofre seus efeitos, não é considerada algo bem-vindo ou agradável. Do dissabor de uma censura pública à pena de morte, passando pelo encarceramento temporário, nenhuma pena será aceita de bom grado pelo criminoso. (2) A aplicação da punição é intencional e escorada em alguma razão. Um dano acidental, como o provocado por um motorista a ele mesmo por má direção, não deve ser considerado punível no sentido estrito do termo, apesar de o motorista poder dizer, valendo-se de linguagem figurada, que foi castigado pela imprudência. (3) Aqueles que aplicam uma punição são considerados pelos membros da sociedade, de uma família ou de uma empresa, como autorizados, por direito, a fazê-lo. Os Estados e as empresas definem de modo estrito e rigoroso quem está autorizado a aplicar sanções. (4) O motivo causador da punição é uma ação ou omissão que infringe uma lei, regra ou costume. Meras intenções que não se concretizam em ações não são consideradas passíveis de punição. Sentimentos 56

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de antipatia ou animosidade que não criam fatos “delituosos” objetivos são insuscetíveis de penalidade.

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(5) A pessoa punida executou uma ação voluntária quando praticou a infração. Ou, na pior das hipóteses, seus punidores nisso acreditam. É fundamental que a punição possa ser justificada como merecida para não ser vista como arbitrária. Sendo assim, equívocos não devem dar origem a punições. Esta é uma questão que não se coloca do ponto de vista de quem experimenta a punição, já que, justa ou injusta, não deixa de ser vista por quem a recebe como desagradável. E também não se coloca do ponto de vista de quem a aplica, a menos que sua medida punitiva resulte de ato arbitrário, não de possível equívoco. (6) As razões invocadas pela autoridade para a aplicação da punição são tais que podem ser justificadas. É preciso oferecer boas e consistentes justificativas para aplicar sanções. É considerado, portanto, injustificado o sadismo preocupado em infligir sofrimentos aos autores de delitos e crimes. A apresentação de justificativas é imperativa em virtude de não haver legitimidade em impor castigos a quem não os merece. Como a punição ocorre contra a vontade de quem a sofre, causando-lhe vários tipos de desconforto, sua aplicação precisa se mostrar justa.

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(7) É a crença ou a intenção da pessoa que ordena a aplicação da punição, e não a crença ou a intenção da pessoa que sofre seus efeitos, que estabelece se se trata efetivamente de punição. Uma sentença de encarceramento não perde sua legitimidade porque o detento a considera injusta. Green (1999, p. 141), um filósofo da Era Vitoriana, é um dos poucos a defender a tese, controversa, de que “quando as condições especificadas para a punição justa são preenchidas, a própria pessoa punida a reconhece como justa e devidamente merecida”. A verdade é que o fato de o sistema de punições ser protetor de direitos não é assim percebido pelo apenado. É inegável que a lista apresentada por Walker toca em pontos essenciais para a discussão das justificativas da punição. Cabe, porém, ter presente que o caráter complexo da noção de “punição” torna necessário levar em conta fatos e fatores investigados por várias disciplinas como a Pedagogia, a Psicologia, a Sociologia, o Direito, a Economia etc. Se a punição precisa ser branda e puramente pedagógica na esfera privada, como ocorre quando se procura corrigir um deslize comportamental de um filho, na esfera pública, a punição almeja manter a ordem social direito & LIBERDADE

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e proteger os cidadãos de bem. Uma vez que a ação punitiva pode ser aplicada em diferentes domínios – no ambiente doméstico restrito, em uma associação de classe, em um clube, em uma empresa, em uma repartição ou no espaço público, com diferentes finalidades, é natural que varie em modalidade e rigor. É comum se indagar se a punição é retributiva, preventiva ou reformatória. Para Green (1999, p. 136), a verdadeira resposta é que dever ser as três coisas.

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Pretender identificar as características fundamentais da punição envolve a dificuldade de hierarquizá-las e as razões capazes de justificá-la nunca são cogentes. A falta de consenso em torno de um conceito unívoco e rigoroso leva ao extremo da defesa do abolicionismo penal. É claro que a punição precisa satisfazer a alguns quesitos de racionalidade como, por exemplo, o da proporcionalidade entre a gravidade da infração e a pena. Para ser humana e ter caráter pedagógico, a punição não pode ignorar a diferença entre buscar corrigir e impor sofrimento. Um sistema ético universalmente partilhado e praticado tornaria a Lei, com seu poder de punição, praticamente desnecessária:

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O crime consiste num ato que ofende certos sentimentos coletivos dotados de uma energia e de uma nitidez particulares. Para que, numa dada sociedade, os atos reputados criminosos deixassem de ser cometidos seria necessário, por conseguinte, que os sentimentos com os quais se chocam se encontrassem, sem exceção, em todas as consciências individuais e possuíssem a força necessária para conter os sentimentos contrários (DURKHEIM, 1967, p. 67).

É fundamental que exista uma bem definida caracterização hierarquizada da gravidade das infrações e violações, de tal modo que a cada uma corresponda um tipo de punição. Nada mais injusto que um pequeno deslize receber dura punição e uma falta grave, uma simples advertência, configurando uma completa falta de critério corrosiva da autoridade da lei e de sua aplicação. Em todos os domínios da vida social há dois extremos a evitar: a impunidade e o caráter excessivo e arbitrário da punição. Não se pode considerar razoável que a Justiça de um país condene ao fuzilamento alguém que militou contra o regime opressivo ou à pena de 20 anos de encarceramento intelectuais e jornalistas que tiveram a ousadia de fazer críticas ao status quo, como aconteceu nos países que experimentaram o socialismo real. Entre os extremos da 58

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ausência e do excesso de punição, há que reconhecer com Aristóteles que a virtude é um meio-termo. No item (2) de sua lista, Walker faz uma afirmação – “a aplicação (da punição) é intencional e feita por determinada razão” – passível de gerar mal-entendidos na medida em que o conceito de punição está entre os peculiares da linguagem da moral, da ética e do direito; e nesses domínios se está no campo dos valores, não na dos fatos; se está no plano do que deve ser não no do que é ou se supõe que seja. Por isso talvez Walker devesse ter dito: “a aplicação (da punição) deve ser intencional e deve ser feita por determinada razão” no sentido forte de “deve”. Apesar de a aplicação da punição nem sempre ter um caráter intencional e nem sempre estar escorada em razões, deveria sempre ter e estar.

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Aquele que exerce a função de aplicar as punições precisa ser socialmente autorizado a fazê-lo. Na assim chamada “justiça com as próprias mãos”, os que a praticam não são portadores da autoridade de julgar e muito menos da de condenar. Dessa arbitrariedade que leva alguém a se investir de uma autoridade que não possui decorrem anomalias como os excessos punitivos e as ações orientadas pela ânsia de vingança. Esses componentes emocionais não devem se imiscuir entre as razões capazes de darem embasamento ao ato punitivo. De acordo com Locke, foram justamente as arbitrariedades punitivas, tal como as tipificadas pela “justiça com as próprias mãos”, que suscitaram a necessidade da criação de um árbitro imparcial. E isso só se tornou possível com o estabelecimento de um contrato social em que a sociedade humana viu-se compelida a abandonar o estado de natureza e a adotar um estado de direito (Rule of Law).

Quanto ao item (4) da lista de Walker, o que está em jogo é a ideia de que não devem ser punidas meras intenções, ou seja, o que não se materializa, mesmo que a ação tenha sido cogitada. Uma intenção perversa pode ser considerada um pecado, mas isso cabe a Deus julgar, não aos seres humanos; se o recôndito da própria alma é insondável mais ainda o é a do outro. Sem a execução do conjunto de movimentos que leva a uma ação tipificável, inexiste o objeto que torna o sujeito passível de punição. Per se, movimentos preparatórios para a prática de ato merecedor de sanção não são puníveis. Não se justifica a punição de intenções ou dos resultados esperados da execução de determinada ação. Quanto ao direito & LIBERDADE

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item (5), envolve um conceito complexo, o de ação voluntária, que se contrapõe aos atos reflexos, chamados por Weber de bloss reaktive, que são respostas dadas pelo sistema nervoso sem que para isso um indivíduo tenha concorrido com qualquer decisão de sua vontade. Exemplo disso é a pupila dos olhos que se dilata ou se contrai de acordo com o grau de luminosidade ambiental. Trata-se de caso diferente do das consequências não pretendidas de uma ação.

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Quanto à questão de a punição ser considerada merecida, é de se esperar que sempre seja. Discordamos da ideia de que uma punição imerecida deixe de ser uma punição, pois uma punição injusta – tenha sido ela aplicada deliberadamente ou decorrente de um erro de avaliação – não deixa de ser uma punição. É óbvio que perde seu caráter moral no caso de se revelar injusta. Independentemente de se é ou não justa, quem a experimenta não deixa de vivenciar o sofrimento que acarreta. Caso, no entanto, alguém indague se é preferível ser punido justamente ou injustamente, pode-se responder açodadamente que, do ponto de vista daquele que experimenta a punição, é preferível que seja justa, que a mereça. Sócrates não pensava assim. Conta-se que ao ter sido condenado pela justiça ateniense à pena de morte mediante a ingestão de cicuta, Sócrates foi visitado na prisão por sua esposa, Xantipa. Em prantos, ela teria exclamado: “Meu marido foi condenado por uma causa injusta!”. Por sua vez, Sócrates, irônico até a véspera de sua execução, teria dito: “E querias que a causa tivesse sido justa?”. Supondo que fosse, ele teria de se considerar culpado. E entre ser um culpado justamente punido e um inocente injustamente punido, Sócrates considerava preferível a segunda opção por mais que estivesse em jogo sua própria vida. É patente que a posição de Sócrates só se torna compreensível quando levamos em consideração a escolha de determinado quadro valorativo à luz do qual alguém considera perder a própria vida preferível a perder o respeito por si mesmo. O item (6) da lista de Walker talvez seja o mais importante por ressaltar que para a punição – em qualquer esfera, desde que aplicada pela pessoa autorizada – não ser um ato arbitrário decorrente de ânsia de vingança, sadismo etc., é imprescindível que esteja estribada em sólidas justificativas. Para que prevaleça a justiça, as razões para a punição precisam ser sempre firmemente embasadas. Ademais, espera-se que a 60

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punição produza efeitos considerados positivos como, por exemplo, (1) inibir a prática de futuras condutas do mesmo tipo da punida, (2) possuir caráter exemplificativo de um tipo tal que o punido sirva de exemplo para os que ainda não cometeram delitos. O caráter educativo, ou reeducativo, expresso em (1) e (2) indica que o fim visado é a eliminação futura da má conduta e não a imposição de sofrimento. As razões pelas quais a punição é indispensável à vida e à ordem sociais evidenciam que responsabilizar o Sistema pelos crimes é minar os fundamentos da boa e harmoniosa convivência humana. A impunidade é perniciosa porque passa a ideia de que o mal é socialmente aceitável. Ademais, a punição tem o poder de inibir condutas criminosas futuras e a impunidade o de estimular a violação da lei.

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Nos últimos tempos ficou claro que, no Brasil, parcela da opinião pública letrada passou também a ser leniente com a corrupção, e por motivações ideológicas. Os álibis agora invocados não são mais os “determinantes sistêmicos” a que estão submetidos os desvalidos. A roubalheira, sem freios e sem limites, começou a ser justificada como “histórica”: todo político sempre arrombou os cofres públicos. Ou racionalizada como ditada por projeto político voltado para a manutenção do “poder popular”. Preocupa o fato de nossas instituições não contarem com mecanismos que as protejam minimamente contra as traças e os ratos que as infestam. É fato que desde a fase de construção da nacionalidade vêm sendo criados esquemas de poder para saquear o Erário. Só que nos últimos anos, o patrimonialismo foi levado às últimas consequências. Fraco, o crivo das instituições não logra barrar a rapinagem sistemática das velhas e novas elites político-econômicas. O caminho para a corrupção sistêmica e sistemática não é encontrado aleatoriamente, é pavimentado pela engenharia dos (maus) costumes. Enquanto tantos negócios forem feitos pelo Estado, ou por obra de sua descuidada intermediação, inevitável será a recorrência da corrupção em escala monumental. A sociedade está cansada da teatralização das indignações seletivas que não condenam do mesmo modo fatos de igual ou maior gravidade. A intelligentsia brasileira acredita piamente que ideologizar é expressão de sabedoria. Docentes reféns de esquemas mentais enrijecidos fazem dos discentes receptáculos passivos de frases ideológicas de efeito e as

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apresentam especiosamente como expressões do pensamento crítico. Quando a complexa culinária da inteligência se reduz ao prato feito de uma ideologia não há mais como degustar os sutis temperos do pensar. Quando um vai concordando com a besteira do outro, um vai idiotizando o outro, forma-se um consenso na patota ideológica em torno do vazio intelectual. Quando o ideológico prevalece sobre a lógica e os fatos, o pensamento crítico deixa de ser possível. Espanta encontrar tantos bonecos de ventríloquo entre os portadores de títulos acadêmicos. Nossa sociedade não sai do lugar porque quando avança um pouco retrocede por culpa das ideias que nela predominam. O ramerrame de ideologias bolorentas nos mantém ainda presos ao século XX. O tempo passa cronologicamente, mas não historicamente, quando a agenda dos problemas e de possíveis soluções permanece a mesma. A catarse pela via da construção de significados emotivos é quase uma preferência nacional. O preço disso é o abandono do inóspito terreno da formulação e defesa de autênticas ideias. A igualdade de todos perante a lei começa com a intelligentsia aplicando o mesmo padrão de julgamento – a mesma severidade moral – aos mesmos tipos de ilicitude. Do contrário, a corrupção espiritual, muito pior que a material, dissemina-se. As vísceras de nosso velho patrimonialismo nunca estiveram tão expostas. Os mecanismos de corrupção institucionalizada foram aprimorados pela esquerda que chegou ao poder. Parte expressiva da intelligentsia não tem como deglutir isso por ter passado a vida toda confundindo integridade moral com ideologia esquerdista. A cegueira ideológica prefere abandonar os escrúpulos éticos a ter de reconhecer que a lei é igual para todos. REFERÊNCIAS

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O PATERNALISMO LIBERTÁRIO DE CASS SUNSTEIN: CONCEITO, LIMITAÇÕES E CONTRIBUIÇÃO PARA A TEORIA DO DIREITO Arthur Rodrigues Dalmarco1

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O objetivo do presente estudo é relativamente simples: investigar sob quais condições, ou em qual contexto de justificação, é possível admitirmos a compatibilidade entre certas noções de liberdade (manifestada por meio da autonomia individual) e qualquer tipo de paternalismo, para Cass R. Sunstein. Na primeira parte, proponho a investigação das raízes e amplitude dos conceitos de autonomia e arquitetura de escolha para o autor, com o objetivo de compreender sobre quais premissas se assentam o seu paternalismo libertário. Na segunda parte, contraponho tanto suas premissas para o conceito de paternalismo libertário (como as falhas de mercado comportamentais, defesa do bem-estar coletivo por meio da regulação, entre outras), quanto sua justificação em um sentido mais amplo em face das críticas mais comuns ao conceito, ao identificar limitações e objeções éticas aos argumentos do autor. SERIA O PATERNALISMO UM OXÍMORO? APRESENTANDO A QUESTÃO

Em um artigo publicado no ano de 2003, denominado Libertarian paternalism is not an oxymoron, Cass Sunstein e Richard Teller inauguram um grande debate que envolvia, e segue envolvendo, a compatibilidade de conceitos que para os autores não seriam mutuamente exclu1

Doutorando, Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em Administração Empresarial pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC/ESAG).

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dentes: “paternalismo” e “libertário”. A questão, é bom destacar, se inclui em um nicho específico de pesquisa atinente à chamada behavioral law and economics, em que se utilizam grandes insights da teoria econômica, a partir (i) da interdisciplinaridade com a psicologia e neurociência, e (ii) da estatística, a partir de grandes bancos de dados sobre preferências individuais, para identificar padrões e limites na capacidade de agentes (indivíduos) tomarem decisões racionais.

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O que pode parecer simples no contexto acima, em verdade irá demandar grande detalhamento para que se possam compreender tanto os elementos pressupostos pela teoria econômica, quanto a relação desses pressupostos com aqueles pertencentes à teoria do direito.

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Usualmente, grandes questões sobre o fundamento de validade de direitos individuais são categorizadas de acordo com duas grandes vertentes do pensamento jurídico que adquirem grande relevância na modernidade. A primeira, comumente denominada de jusnaturalismo, assenta seus fundamentos, grosso modo, no reconhecimento de que existem direitos a partir da, e inerentes a, própria existência do ser humano enquanto tal. Tal característica não equivale a admitir, por outro lado, que o jusnaturalismo seja uma vertente coesa dentro da própria história do pensamento jurídico2. Paralelamente, considera-se o positivismo como a grande linha teórica alternativa ao jusnaturalismo, de modo que o fundamento de validade dos direitos dos indivíduos, sob tal perspectiva, assumiria o formato institucional-positivo, estatuído em diplomas normativos e garantido por corpos jurídicos independentes, porém internos, à estrutura estatal moderna3. Reitera-se que tais considerações apenas ilustram, sob pálidos contornos, correntes que são tão diversas internamente que, para alguns juristas, não permitiriam sequer tal simplificação4. A distinção acima, no entanto, além de conter implicações no campo da validade do Direito, traz ainda consequências para a relação que o Direito possui com a Moral e a Ética. Destaque-se que seja em John Locke 2 As diferenças entre autores classificados internamente a tal corrente de pensamento variam enormemente no período pré-moderno e moderno, a exemplo de Alberico Gentili, Hugo Grotius, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, entre outros. 3 Primeiramente, com estrutura estatal moderna, refiro-me ao formato de Estado-nação surgido posteriormente à chamada paz da Westfália, em 1648. 4 Ver: HESPANHA, 2005.

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(2006), Frederic Bastiat (2010) ou John Stuart Mill (2001), a relação entre o Direito e a Moral era significativamente próxima – reflexo próprio de certo núcleo de paradigmas pertencentes ao Direito Natural, em que conceitos de Justiça, Moralidade e Legitimidade do Direito eram tidos como praticamente amalgamados uns aos outros.

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Ao longo da segunda metade do século XX, apesar da hegemonia observada em favor da corrente positivista, grandes escolas criaram segmentos teóricos que criticaram a corrente de maneira contundente, sobretudo em virtude das deficiências quanto à permeabilidade da corrente ao reconhecimento de valores por meio de princípios. Embora se trate de outro longo debate, importa identificar que tais críticas originaram a contemporânea linha chamada de pós-positivista5, em que o sistema jurídico passa a ser também tributário de valores morais como elementos integrantes do sistema jurídico – o que se dá por meio dos princípios. Um dos grandes expoentes dessa linha de pensamento jurídico é o jusfilósofo inglês Ronald Dworkin, que nos interessa por ser notadamente um dos juristas que mais dialogaram com o professor Sunstein.

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Embora não seja o escopo desse trabalho abordar a genealogia do pensamento de Sunstein, é inegável que pontos de contato (de concordância ou divergência) com Dworkin permitem o delineamento de um núcleo de ideias transversais à sua teoria, ao menos no que diz respeito a suas considerações sobre as formas de interação entre Direito e Moral em um campo de disputa sobre a validade, ou legitimidade, de determinadas regras jurídicas e do Direito em si. Pois bem. Ao apresentar o artigo que inaugura a questão aqui apurada, argumentei que seria necessário explorar certas definições para situar o conceito de paternalismo libertário de forma apropriada, sem indicar, todavia, quais definições seriam estas. A saber, são três os conceitos cujo desenvolvimento é necessário para realizar a mencionada tarefa: autonomia, ação humana e paternalismo. O conceito de autonomia, tal qual abordado originalmente por John Stuart Mill, é mais abrangente do que o simples direito ou capacidade do indivíduo para tomar decisões que digam respeito a sua própria vida6.

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Ver: DWORKIN, 1977. “The liberty of the individual must be thus far limited; he must not make himself a nuisance to other people. But if he refrains from molesting others in what concerns them, and merely

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Em Mill, a liberdade individual caminha conjuntamente à responsabilidade individual pelas consequências de ações e opiniões do indivíduo em face de terceiros – as manifestações da individualidade humana podem ser exercitadas maximamente, desde que respeitados tais limites. Conforme Mill sugere7, a liberdade exercitada dentro destas condições deve estar livre de coerção dos demais indivíduos, sendo um ingrediente tanto da felicidade humana quanto do progresso individual e social que tal máxima seja respeitada. A importância de trazer Mill à análise é justificada pela recorrente utilização de seus argumentos por Sunstein como objeções éticas ao emprego pragmático do paternalismo libertário em medidas de regulatórias diversas (como incentivos à exibição de informações aos consumidores, à poupança para aposentadoria, à utilização de cinto de segurança em automóveis, entre outras). Isso ocorre, em síntese, porque o conceito de paternalismo libertário está ele próprio compreendido em um conceito mais amplo, definido por Sunstein como arquitetura de escolha. A arquitetura de escolha é definida como o contexto, ou ambiente, em que os indivíduos fazem suas escolhas no dia-a-dia (Cf. THALER; SUNSTEIN, 2010, p. 428). Desse modo, a arquitetura de escolha cria incentivos sutis (nudges) que geram inclinações razoavelmente perceptíveis na maneira com que o processo de escolha dos indivíduos se dá.

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Exemplos práticos são inúmeros, e Sunstein os apresenta em grande diversidade, a partir de estudos empíricos, para demonstrar os modos como tais sutis incentivos à escolha são impostos pelo ambiente, ou contexto, em que as escolhas são realizadas. Afirma Sunstein (2015, p. 8):

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acts according to his own inclination and judgment in things which concern himself, the same reasons which show that opinion should be free, prove also that he should be allowed, without molestation, to carry his opinions into practice at his own cost. That mankind are not infallible; that their truths, for the most part, are only half-truths; that unity of opinion, unless resulting from the fullest and freest comparison of opposite opinions, is not desirable, and diversity not an evil, but a good, until mankind are much more capable than at present of recognising all sides of the truth, are principles applicable to men’s modes of action, not less than to their opinions” (MILL, 2001, p. 52-53). “It is desirable, in short, that in things which do not primarily concern others, individuality should assert itself. Where, not the person’s own character, but the traditions or customs of other people are the rule of conduct, there is wanting one of the principal ingredients of human happiness, and quite the chief ingredient of individual and social progress” (MILL, 2001, p. 53).

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Uma cafeteria possui um design, e este design irá afetar o que as pessoas escolhem. O mesmo é verdade com relação a websites. Lojas de departamento possuem arquiteturas, e elas podem ser estruturadas para promover ou desincentivar certas escolhas (como sair da loja sem fazer compras). Mesmo que o layout da loja seja resultado do acaso, ou não reflita o menor esforço de direcionar as pessoas, ele provavelmente será capaz de produzir consequências sobre aquilo que as pessoas acabam selecionando. Se as pessoas visualizam certos itens primeiro, há maior probabilidade de adquirirem tais itens. Tanto instituições privadas quanto públicas (incluindo Tribunais) criam regras padrão. Em verdade, tais instituições não podem dispensar tais regras. Um telefone celular, uma hipoteca, um tablet, e um programa de bem-estar naturalmente possuem regras padrão, que podem ser alteradas desde que as pessoas apropriadas concordem. O direito dos contratos é permeado de inúmeras regras padrão, que estabelecem o que ocorre caso as pessoas não estipulem nada. Regras padrão criam incentivos sutis (nudges).

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A esta altura já é possível observar que Sunstein não extrai, ao menos em um primeiro momento, a justificativa de aplicação do paternalismo libertário a partir de um axioma teleológico. A extensa base empírica que dá sustentação a grande parcela de suas posições o aproxima em muito de um consequencialismo pragmático, na medida em que ele mesmo qualifica as críticas a seus posicionamentos como fortes ou fracas a depender não apenas da natureza da crítica (se com base em um valor como a autonomia, por exemplo), mas da intensidade com que o elemento de crítica se manifesta em face de casos concretos (Cf. SUNSTEIN, 2015, p. 6). Portanto, ao menos por ora, destaco que tal consequencialismo para fins de análise dos resultados produzidos por arquiteturas de escolha jurídicas produziu diferentes formas de objeções por parte dos críticos. Uma grande corrente de objeções é aquela alicerçada no conceito que sigo analisando, a autonomia. A segunda grande corrente de objeções é denominada pelo próprio Sunstein como de “objeções de bem-estar ao paternalismo”. Situadas as correntes críticas, apenas anoto que após seguir a análise detida sobre a autonomia, aproveitarei para tratar da segunda grande corrente ao abordar o conceito de paternalismo. direito & LIBERDADE

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Conforme expus, o conceito clássico de autonomia tal qual definido por John Stuart Mill é relativamente abrangente, ao incluir mandamentos sobre respeito à manifestação das ações e opiniões individuais, compreendendo que no bojo de tal respeito reside uma dimensão de dignidade que não pode ser coagida, usurpada ou ilegitimamente limitada.

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Por conseguinte, existe um forte fundamento moral atrelado ao conceito de autonomia em Mill, que não permite ao indivíduo usufruir de uma vida plenamente feliz se não atendidas as condições anteriormente mencionadas – o que se poderia traduzir como uma espécie de bem-estar individualizado na medida das particularidades das escolhas e ações de cada pessoa. A grande objeção que surge, portanto, a partir de uma ideia consistente de autonomia individual, possui a natureza de um axioma teleológico fundamental – a de que todo indivíduo possui a liberdade de agir conforme seu melhor interesse, desde que não cause danos a terceiros. A autonomia, nesse sentido, é um bem em si, possuindo um valor intrínseco. Por outro lado, se considerarmos que a autonomia não é nada além de um valor em meio a uma miríade de diversos valores, e que enquanto tal deve-se entendê-la como um elemento da ação humana que serve para proporcionar maior bem-estar ao indivíduo, tem-se uma objeção diversa, calcada no bem-estar promovido pela autonomia.

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Dito de outro modo, no primeiro caso a autonomia é um bem em si. No segundo caso, a autonomia é apenas um elemento que proporciona bem-estar ao indivíduo – que, em tese, faz escolhas sobre si mesmo melhor do que terceiros o fariam por ele. Sunstein denomina essas duas formas variadas de críticas8 de: (i) objeção de autonomia robusta, e (ii) objeção de autonomia tênue. De acordo com Sunstein (2012, p. 44-45), podemos partir das seguintes premissas para analisar as duas formas de objeção: Suponha que acreditemos que liberdade de escolha possui um status especial e independente. Liberdade, e não bem-estar, pode ser o nosso guia. Nós podemos insistir que pessoas possuem um

8 Originalmente, Cass Sunstein utiliza os termos “thin” e “thick”, que optei por traduzir como “tênue” e “robusto” por entendê-las mais adequadas para estabelecer a relação de densidade entre as modalidades de críticas analisadas.

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direito à escolha e que o governo não pode interferir legitimamente no exercício desse direito mesmo se e quando ele (governo) de fato sabe o que seria melhor. Se as pessoas querem comprar garrafas de refrigerante de 600 ml, refrigeradores ineficientes ou carros que economizam pouco combustível, eles tem a prerrogativa de fazer exatamente isso. Se eles quiserem beber ou fumar, gastar seu dinheiro ao invés de poupar, ou fazer exercício uma vez por ano, o governo não pode interferir, ainda que tais escolhas causem danos. Sob essa perspectiva, as pessoas não devem ser consideradas como crianças; devem ser tratados com respeito. Devem ser vistos como fins, não como meios. Se o governo substitui tais julgamentos pelos seus próprios, ele viola tais princípios. O verdadeiro problema com essa visão é que qualquer forma de paternalismo, incluindo aqueles que incluem a compreensão crescente sobre falhas de mercado comportamentais, ameaçam a liberdade.

Quando abordamos a objeção de autonomia tênue, é interessante observar que, tal qual se disse anteriormente, essa posição sugere que a liberdade de escolha seria um elemento do bem-estar, e que ao autorizarmos o governo a interferir nesse tipo de liberdade deveríamos, igualmente, considerar os eventuais efeitos negativos que tal autorização poderia produzir.

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Não obstante, essa objeção revela que a própria liberdade de escolha, enquanto manifestação da autonomia individual, seria por si um mero processo de análise de custo-benefício, em que o valor da escolha é, em verdade, passado para segundo plano. Seria necessário concluir, inclusive, que se aquilo que se busca é aumentar o bem-estar considerando-se a escolha como um meio, em um certo número de casos uma ação considerada paternalista, realizada pelo Estado, poderia superar os ganhos que o indivíduo teria com sua ação individual. Por outro lado, podemos ter internamente à objeção de autonomia tênue um número considerável de pessoas que preferem não realizar qualquer escolha, ou prefere abrir mão de um considerável número de escolhas, sobretudo em áreas de que elas pouco ou nada sabem – casos em que a própria atividade de escolher pode se tornar um ônus relevante. Nenhuma dessas considerações, no entanto, passa ao largo da análise de Sunstein. direito & LIBERDADE

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Em verdade, Sunstein (2012, p. 46) alerta que existe um problema consideravelmente mais profundo ao analisarmos tais pontos. Esse problema consiste no fato de que as nossas arquiteturas de escolha diárias, sobretudo as institucionais, são moldadas por inúmeras outras escolhas, públicas ou privadas, da qual sequer temos plena consciência. Observa-se, contudo, que o autor apresenta certa apreensão quanto a esse fato, sugerindo que em certo sentido os indivíduos em sociedade seriam menos autônomos do que a apreciação do conceito abstratamente poderia sugerir.

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Por isso, afirma que a autonomia depende de um contexto social, cujos ingredientes básicos nós, na maioria das vezes, tomamos como se garantidos fossem – assim, na ausência de tal contexto, se nossa única alternativa enquanto indivíduos fosse a de ativamente tomar todas as decisões necessárias e possíveis, nossa autonomia prontamente desapareceria (SUNSTEIN, 2012, p. 47). A meu ver, no entanto, uma percepção mais apurada a partir do conceito de ordem espontânea em Friedrich Hayek9 seria suficiente para compreendermos que o ambiente em que a autonomia individual se manifesta – seja ela tênue ou robusta, nos termos de Sunstein – é também constantemente influenciado pela interação de ordens espontâneas distintas (linguagem, mercado, entre outras). É em virtude da associação cooperativa de indivíduos por meio de tais ordens que se é capaz de produzir, na larga maioria das vezes, resultados positivos em termos de bem-estar coletivo sem a necessidade de compreensão das nuances das infinitas decisões tomadas, por todos os indivíduos, em um contexto social. Para Sunstein (2015, p. 9) as ordens espontâneas representam, elas mesmas, uma forma de arquitetura de escolha, não menos do que o desenho intencional de arquiteturas de escolha. As ordens espontâneas incluiriam em seu bojo, portanto, também uma carga de incentivos sutis (que criam e perpetuam normas sociais em alguma medida). Embora concorde parcialmente com tal afirmativa, entendo que Sunstein ignora nesse ponto um elemento fundamental à análise hayekiana do fenômeno das ordens espontâneas: o problema do conhecimento.

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Ver: HAYEK, Friedrich. The market and other orders. Chicago: The University of Chicago Press, 2013.

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Dado ser impossível conhecer as preferências singulares de todos os indivíduos, a todo o momento, sobre os infinitos assuntos que nos transitam pela mente a todo instante, é impossível não assumir uma posição de certo ceticismo quanto à nossa própria capacidade de arquitetar soluções regulatórias para problemas complexos. Não obstante, Sunstein é otimista com relação à evolução do quanto sabemos sobre o comportamento humano, a quantidade de dados de que dispomos para imaginar novas soluções para problemas relativos a energia, aposentadoria, agricultura, meio-ambiente, obesidade, cobertura médica e assim por diante. Retomando, agora, a objeção de autonomia robusta, podemos explorar os dilemas éticos que surgem do conceito de autonomia. Afirmei anteriormente que esta objeção considera a autonomia um bem em si, com o objetivo de destacar o caráter valorativo que o reconhecimento da autonomia carrega nessa espécie de objeção.

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Como nesta objeção de autonomia, robusta, a liberdade de escolha não é considerada parte de uma ideia mais abrangente de bem-estar, mas um fim em si mesma, é também possível deduzir que sua flexibilização só poderia ocorrer por razões da mais alta ordem. Essa objeção é teleológica por natureza, constituindo um axioma inolvidável por quem a percebe como portadora de um direito indisponível – a autonomia sobre si mesmo. Para Sunstein (2012, p. 48), pelo fato de essa versão forte do argumento em favor da autonomia não se voltar para questões empíricas – sendo, em si, uma sorte de ponto final a qualquer discussão – não haveria mais espaço para debates ulteriores. Retorno à questão de que tratei no início deste trabalho: é possível perceber claramente, neste ponto em específico, as distintas naturezas dos argumentos apresentados como fundamento de validade em favor da autonomia, por um lado, e em favor do paternalismo libertário, por meio da arquitetura de escolha, por outro. No primeiro caso (autonomia robusta), tem-se um argumento com base em valores, nesse caso, a irredutibilidade abstrata da autonomia individual, em que o detentor do direito não admite uma cessão não consentida de sua amplitude. Na defesa do paternalismo libertário, tem-se um argumento com bases empíricas sobre comportamento humano em diferentes contextos, em que, em tese, se poderia maximizar o bem-estar direito & LIBERDADE

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dos indivíduos ao construirmos ambientes (arquitetura de escolha) que incentivem sutilmente a tomada de decisões mais benéficas aos indivíduos. O primeiro argumento, de natureza apriorística, axiomática; o segundo, de natureza consequencialista.

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Conforme se observa, Sunstein possui uma preferência especial pela contraposição aos argumentos da segunda natureza, que permitem a ele um debate mais abrangente sobre a aplicação de seu método – que é consequencialista, afinal. Não obstante, objeções pautadas exclusivamente na forma robusta do conceito de autonomia são impermeáveis a considerações de ordem consequencialista, conforme busquei demonstrar, o que denota certa contenção do autor ao tratar objeções dessa ordem – abstratamente éticas. Dito isso, é necessário migrar a análise aqui empreendida para o campo dos argumentos pertencentes à segunda grande corrente de objeções, que defini anteriormente como “objeções de bem-estar ao paternalismo”. Nessa etapa, delinearei (i) o conceito de paternalismo, (ii) as formas que as objeções pertencentes a esta corrente podem tomar e (iii) se é possível qualificar o conceito de paternalismo com o adjetivo “libertário”, na medida em que esta definição, por conter o conceito de autonomia em seu interior, é aparentemente incompatível com aquela.

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PATERNALISMO, BEM-ESTAR E FALHAS DE MERCADO COMPORTAMENTAIS (BEHAVIORAL MARKET FAILURES)

Inicialmente, importa ressaltar que a coerência no trabalho de Cass Sunstein, tal qual o apresentei, depende da utilização ostensiva de dados empíricos para fortalecer sua posição em detrimento de análises puramente deontológicas (tipicamente jurídicas) ou teleológicas (fundadas em valores ou princípios). E isso ocorre justamente com o objetivo de balizar seu sistema de abordagem a partir de pesquisas empíricas muito reconhecidas em seus campos (psicologia, principalmente), para integrar o Direito às mais recentes descobertas sobre cognição humana e sua relação com o risco de erro10. 10

Ver: GILOVICH, Thomas; GIFFIN, Dale; KAHNEMAN, Daniel. Heuristics e biases: The psychology of intuitive judgement. Cambridge: Cambridge University Press, 2002;

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Isso significa, de certa forma, que a aplicação de tais descobertas por formuladores de políticas públicas ou da regulação, em sentido amplo, é uma tendência razoavelmente identificável. Admitindo-se tal fato, migro para a pedra fundamental da análise cognitiva que integra as análises de Sunstein, para demonstrar como tais resultados empíricos informam e orientam a justificação de seu trabalho teórico-jurídico. Tal pedra fundamental é o reconhecimento de que a mente humana possui não um, mas dois “sistemas cognitivos”, na esteira do que expõe em sua obra Daniel Kahneman, Thinking, Fast and Slow (2011, p. 23). Em síntese, o “sistema 1” trabalha rapidamente, quase de forma automática, com nenhum ou quase nenhum senso de controle voluntário; o “sistema 2” aloca atenção nas atividades intelectuais que o demandam, inclusive considerações complexas. Assim, o sistema 2, mais deliberativo e reflexivo, é comumente associado com a experiência subjetiva de agência, escolha e concentração. Pela definição de Kahneman (2011, p. 22-23):

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Os rótulos de sistema 1 e sistema 2 são amplamente empregados pela psicologia [...]. Quando pensamos sobre nós mesmos, nós nos identificamos com o sistema 2, o eu consciente e racional que possui crenças, realiza escolhas, e decide sobre o que pensar e o que fazer. Embora o sistema 2 creia se situar onde a ação está, o automático sistema 1 é o herói deste livro. Eu descrevo o sistema 1 como o centro que gera impressões e sentimentos sem esforço, que são as origens principais de crenças explícitas e escolhas deliberadas do sistema 2. As operações automáticas do sistema 1 geram padrões surpreendentemente complexos de ideias, mas apenas o lento sistema 2 pode construir pensamentos em uma ordem concatenada de passos e etapas. Também descrevo em quais circunstâncias o sistema 2 assume o controle, derrogando os impulsos e associações impulsivas do sistema 1.

Por óbvio, não tenho a pretensão de explorar em detalhes, neste trabalho, todas as implicações possíveis do simples reconhecimento dos fatos acima (a existência e relação entre os dois sistemas cognitivos em operação na mente humana), mas sim a de apontar que tal existência não pode ser ignorada. Igualmente o pensa o professor Sunstein. Entre KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Choices, values and frames. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

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as inúmeras questões importantes que são suscitadas de tal reconhecimento, a mais estridente, a meu juízo, é: o fato de sabermos que a mente humana possui certos gatilhos, oriundos da existência de dois sistemas cognitivos, importa à justificação de uma intervenção mais calculada do Estado na vida das pessoas?

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Sunstein, conforme já ficou evidente a esta altura, pensa que sim. Ora, se a criação de arquiteturas de escolha é inevitável, e estamos sujeitos a elas a todo momento, por que não defender uma abordagem puramente consequencialista que qualifica a intervenção do Estado, tornando-a mais sutil, para meramente reparar tais falhas de cognição humana? A estrutura de tal argumento não é nova, sendo bem conhecida quando se aborda, na teoria econômica, a solução das chamadas falhas de mercado. A diferença aqui, essencialmente, é que a intervenção nos casos clássicos (assimetria informacional, correção de externalidades negativas, etc.) geralmente ocorre de forma mais incisiva, ao passo que neste caso, Sunstein defende uma abordagem de incentivos sutis, nudges, para contornar essa nova espécie de falhas de mercado – comportamentais.

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De um modo geral, o paradigma dominante, sobre a racionalidade dos indivíduos, na ciência econômica, é o da escolha racional (COOTER; ULEN, 2016, p. 18). Ela adota como postulados, em síntese, que (i) os indivíduos são autointeressados, significando que buscam maximizar seu bem-estar/utilidade; (ii) os indivíduos realizam escolhas consistentes, ainda que poucas informações estejam disponíveis, em face das alternativas existentes; e (iii) os indivíduos reagem a incentivos. Tais elementos são muito comumente estudados e tomados por fundamentos da maior parte dos estudos de law and economics. Quando migramos, contudo, para o campo da behavioral law and economics, o foco passa a ser dirigido às limitações empiricamente demonstradas que surgem do choque entre a ação dos dois sistemas cognitivos mencionados e o resultado provável que a teoria da escolha racional, e seus postulados, afirmam que deveriam ser esperados. Dito de outro modo, o principal insight da economia comportamental é que seres humanos cometem erros previsíveis de julgamento, cognição e tomada de decisão (COOTER; ULEN, 2016, p. 51) – uma “previsível irracionalidade”, que contesta a teoria da escolha racional. 76

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Para ilustrar algumas das chamadas falhas de mercado comportamentais, passo a sintetizar brevemente seu conteúdo. São exemplos das referidas falhas (i) o viés do presente e inconsistência-temporal; (ii) ignorar detalhes ambientais importantes; (iii) otimismo irrealista; e (iv) problemas com probabilidades.

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De acordo com a teoria da escolha racional, indivíduos considerariam igualmente o curto e o longo prazo. Para tanto, levariam em consideração incertezas relevantes, de modo que para planejarem suas ações, as pessoas descontariam apropriadamente o futuro. Admitir isto implica que as decisões tomadas no presente refletiriam uma consideração plenamente racional sobre o balanço entre presente e futuro. No entanto, estudos demonstram que em várias áreas diferentes de escolhas, os indivíduos acabam tendo uma percepção enviesada sobre o presente (BENHABIB; BISIN; SCHOTTER, 2010, p. 205-223), prefere-se não incorrer em custos de curto prazo para obtenção de benefícios consideráveis no longo prazo – como demorar a contratar um plano de aposentadoria (KARLAN; MCCONNELL; MULLAINATHAN; ZINMAN, 2014), por exemplo. Em outros casos, inversamente, prefere-se obter um benefício de curto prazo ignorando-se um custo de longo prazo – como fumar cigarros ou consumir crédito no presente para antecipar poder de compra futuro (SHUI; AUSUBEL, 2004).

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Desse modo, a falha (i), que diz respeito ao viés do presente, representa uma contestação forte à teoria da escolha racional. Um das razões para tanto, de acordo com a literatura especializada, é que a região do cérebro chamada de córtex pré-frontal ventromedial (responsável pela forma como nos enxergamos enquanto indivíduos) é menos ativa quando pensamos sobre nós mesmos no futuro, de modo que ao projetarmos planos que consideram nosso “eu” futuro, falhamos em considerar que tais planos se referem a nós mesmos – a reação, diz-se, seria muito próxima do que sentimos ao ver um estranho (MITCHELL et al; 2010). Temos, portanto, um problema de cognição intertemporal que favorece decisões que hiperbolizam a importância do curto prazo. Diante da falha (ii), tem-se um problema de natureza diversa. Mencionando o experimento de Christopher Chabris e Daniel Simons (2011), Sunstein apresenta essa falha de percepção ambiental como decorrência da escassez de atenção que se pode ter em cenários complexos ou direito & LIBERDADE

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com informações em excesso. No mencionado experimento, um determinado grupo de pessoas era convidado a assistir um breve vídeo em que pessoas trocavam passes de basquete, sendo convidadas a contar o número de passes trocados por 6 pessoas comuns que apareciam em tal vídeo. Ao final, o experimentador perguntava aos participantes: “você viu o gorila?”. Os participantes riram, o vídeo foi passado novamente, e só então eles perceberam que visivelmente, em um dos quadros, o gorila entra em cena, faz gestos para a câmera, e sai de cena. O que fez as pessoas não notarem algo tão evidente? Segundo Sunstein (2012, p. 16), atenção é de fato um recurso escasso, sendo ativado pela saliência. E se a saliência é um fator tão determinante para nossa atenção e compreensão de fenômenos visuais, é importante destacar a relação entre os dois sistemas de cognição, novamente. O sistema 1 é incapaz de escrutinar todos os aspectos relevantes de situações sociais, e o sistema 2 pode estar ocupado demais com outros assuntos para captar detalhes. Assim, é comum esperar que em situações complexas os indivíduos simplesmente descartem informações que não sejam salientes, ainda que sejam de grande importância.

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A falha (iii), o otimismo irrealista, também decorre diretamente da atuação dos dois sistemas de cognição. Segundo Tali Sharot, Christoph Korn e Raymond Dolan (2011), o sistema 2 é realista, mas o sistema 1 não o é. Na mesma esteira, existem fortes evidências que apontam que a ampla maioria dos indivíduos é otimista de forma irrealista com relação às próprias previsões sobre seu comportamento, apresentando um forte viés na direção do otimismo (SHAROT, 2012). Assim, quando as pessoas imaginam seu futuro, existe uma tendência geral à projeção de um futuro muito bom, que pode induzi-las a não tomar precauções razoáveis com relação a sérios perigos. Ademais, ainda de acordo com Sharot et al (2011), uma das razões que explicam a manutenção de tal otimismo, mesmo que em face de repetidas experiências que deveriam fazê-las inclinarem-se em direção a um maior realismo, é que as pessoas processam informações de forma assimétrica – a saber, indivíduos dão maior valor a boas notícias do que a notícias ruins. O referido estudo demonstrou que quando as pessoas recebem informações melhores do que esperavam, há maior probabilidade de modificarem suas crenças; inversamente, quando as notícias são 78

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ruins, existe maior probabilidade de suas crenças permanecerem constantes. Desse modo, qualquer tipo de atualização nos planos pessoais depende diretamente da avaliação positiva ou negativa que os indivíduos fazem das novas informações que recebem.

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Quanto à falha (iv), temos um tipo de problema particular, relacionado à heurística11 de disponibilidade. Esse processo de redução de incertezas (heurística) associado à disponibilidade se refere ao fato de que, por várias razões, o sistema 1 não lida adequadamente com probabilidades. Assim, quando pessoas utilizam essa heurística, seus julgamentos são afetados caso um evento recente que experimentaram vier prontamente à mente (TVERSKY; KAHNEMAN, 1973, p. 207-232). Se tal evento estiver “cognitivamente disponível”, o indivíduo pode superestimar um determinado risco. Inversamente, se um evento dessa natureza não estiver disponível, o indivíduo pode acabar subestimando o risco.

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Para Sunstein, as falhas acima justificam uma postura paternalista por parte do governo. Mas o que isso quer dizer? Sunstein (2013) entende que ao agir de forma paternalista, o governo pode estar tentando (1) afetar resultados sem afetar as crenças ou ações das pessoas, (2) afetar as ações das pessoas sem influenciar suas crenças; (3) afetar as crenças das pessoas para influenciar suas ações; ou (4) afetar as preferências das pessoas, independentemente de afetar suas crenças, com objetivo de influenciar suas ações. Assim, qualquer abordagem paternalista, por mais variada que seja, implica em admitir a ideia de que o governo não acredita que as escolhas das pessoas promoverão seu bem-estar, e ele (governo) deverá dirigir ações para influenciar ou alterar as escolhas das pessoas para seu próprio bem. No entanto, o governo poderá promover tipos distintos de paternalismo, sendo que Sunstein (2012, p. 26) os divide em dois eixos, com dois tipos distintos em cada um deles: um eixo de intensidade, que contém o paternalismo forte ou fraco; e um eixo de finalidade, que contém o paternalismo de meios ou de fins. Veja-se o quadro do autor:

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Utiliza-se heurística, aqui, no sentido de estimativa. Nas palavras de Cristiano Carvalho, “o processo heurístico é uma forma adaptativa de reduzir incertezas. Quando o indivíduo se vê diante de uma escolha sob incertezas, em virtude da informação incompleta que possui, costuma estimar probabilidades de ocorrência de consequências”. Ver: CARVALHO, Cristiano. Teoria da decisão tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 74.

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Paternalismo de Fins

Paternalismo Fraco

Rotulagem de economia de combustíveis

Associação automática a partido político

Paternalismo Forte

Standards de economia de combustíveis

Proibição de relações homoafetivas

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Paternalismo de Meios

A diferença entre o paternalismo de meios e o paternalismo de fins, para Sunstein, pode ser sintetizada da seguinte forma: o paternalismo de meios é uma intervenção sutil que pode indicar aos indivíduos possíveis direções, mas não é mandatório quanto a seus próprios comandos – o exemplo dado é o de um GPS, que pode até indicar o melhor ou mais curto caminho, mas não pode obrigar o usuário a traçar aquela rota sugerida. Já o paternalismo de fins é mais intrusivo, ditando quais finalidades são prioritárias. Sunstein destaca, no entanto, que o foco da behavioral economics sempre foi, no sentido aqui empregado, o de paternalismo de meio.

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Quanto à distinção entre paternalismo forte e paternalismo fraco, pode-se sintetiza-la como um gradiente de “intensidade”. Assim, paternalismo forte se refere às “ações do governo que tentam melhorar o bem-estar da população ao impor custos materiais sobre suas escolhas”, ao passo que o paternalismo fraco se refere às “ações do governo que buscam melhorar o bem-estar da população por meio de influências sobre suas escolhas sem a imposição de custos materiais sobre tais escolhas” (SUNSTEIN, 2012, p. 27). No quadro extraído de um dos recentes artigos de Sunstein, logo acima, tem-se exemplos categóricos de cada uma dessas modalidades, quando combinadas. A pergunta que resta ser colocada, portanto, é em qual das modalidades se enquadraria o paternalismo libertário? Sunstein argumenta que o paternalismo libertário é aquele presente na intersecção entre o paternalismo fraco (intensidade) e o paternalismo 80

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de meios (finalidade). No entanto, ele faz uma importante ressalva. O paternalismo fraco só pode ser considerado libertário enquanto não impuser custos materiais sobre as escolhas dos indivíduos. Isso porque, embora o quadro não revele, podem ser considerados como exemplos de paternalismo fraco outras formas de condicionamento do comportamento não tão sutis, como proibições puníveis criminalmente, ou restrições puníveis com multas administrativas e assim por diante. Quando Sunstein afirma que o paternalismo libertário pode ser encontrado naquela intersecção específica, refere-se não apenas à prática de rotulagem com finalidade informacional aos consumidores, mas também a campanhas publicitárias com alguma finalidade específica – a adoção de algum plano de aposentadoria por jovens, por exemplo. Embora estabeleça algumas ressalvas, Sunstein concorda em linhas gerais com o conceito de paternalismo libertário de Riccardo Rebonato (2012, p. 84), que o define da seguinte forma:

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Paternalismo libertário é o conjunto de intervenções que objetivam superar os inevitáveis vieses cognitivos e inadequações cognitivas de um indivíduo ao explorarem-nos de uma maneira tal que influenciem suas decisões (de uma forma facilmente reversível) em direção a escolhas que seriam feitas caso o indivíduo possuísse tempo e informação ilimitados, e as habilidades analíticas de um tomador de decisões racional (o homo economicus).

Assim, Sunstein entende que onde as falhas de mercado comportamentais se fizerem presentes, a “ação corretiva” do governo estará justificada no quadrante superior esquerdo do quadro, a menos que alguma forte justificativa empírica de outra ordem, envolvendo custos e benefícios, sustente uma abordagem mais intervencionista. Desse modo, excetuados os casos de intervenções puramente informacionais (como rotulagens aos consumidores), o paternalismo libertário é, ainda, aquele em que temos uma opção de opt-out, ainda que minha escolha seja, ao fim e ao cabo, danosa exclusivamente ao próprio indivíduo. No rol de objeções que extrapolam a dimensão da autonomia, de cunho teleológico e já abordada em detalhes, Sunstein afirma que existem ao menos 5 grandes argumentos contra a consistência de seu direito & LIBERDADE

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paternalismo, de uma forma geral, e do paternalismo libertário, especificamente, as quais defini como “objeções de bem-estar ao paternalismo”. Tais objeções são denominadas por Sunstein como o “Quinteto Antipaternalista”, sendo relativas a: (i) informação; (ii) competição; (iii) heterogeneidade; (iv) aprendizagem; e (v) escolha pública (incluindo a behavioral public choice).

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No caso (i), argumenta-se que não é possível definir o que é bem-estar de forma genérica, cabendo apenas ao próprio indivíduo definir o que isso significa em sua própria vida – correr, dormir, cantar, beber, jogar, etc. Assim, desde que não causasse mal a terceiros, um oficial do governo não deveria estar autorizado a definir, de forma paternalista, quais objetivos os indivíduos devem perseguir, na medida em que não dispõe da informação para tanto. Na objeção (ii), argumenta-se que em uma sociedade livre, em que companhias competem entre si, as pessoas já podem optar entre uma grande variedade de opções. Assim, em uma sociedade majoritariamente orientada por regras de paternalismo forte, teríamos um congelamento do processo de mercado, que necessariamente reduziria o bem-estar de todos em virtude da redução da oferta de bens e serviços variados.

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Por seu turno, na objeção (iii), argumenta-se que a diversidade de populações humanas em termos de gostos e valores impossibilita a abordagem one-size-fits-all. Por isso, seja quanto a dieta, poupança, exercícios, cartões de crédito, celulares ou hipotecas, as pessoas possuem diferentes gostos e encontram-se em diferentes situações. O mesmo se aplica quanto a tradeoffs entre presente e futuro. A objeção (iv) é uma objeção reflexiva. Ela admite que as pessoas com frequência cometem erros, e de fato tais erros podem impactar seu bem-estar. No entanto, o governo não teria a prerrogativa de interferir ativamente no processo de aprendizagem a que todos os seres humanos se submetem ao ativamente fazerem escolhas ao longo da vida, arrependendo-se de algumas, adquirindo boa experiência com as escolhas acertadas, e incrementando seu bem-estar com esse processo. Por fim, a objeção (v) refere-se à igual aplicabilidade dos postulados das falhas de mercado comportamentais também aos agentes públicos. Por se tratarem de seres humanos, por óbvio possuem os mesmos vieses 82

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e falhas que acometem os demais indivíduos em sociedade. Assim, para todo viés identificado para indivíduos, existe necessariamente um viés correspondente no setor público (SUNSTEIN, 2012, p. 41). Isso significa que, também o ponto de vista comportamental, pode-se fortalecer análises no campo da escolha pública com a finalidade de identificar a natureza e intensidade da manifestação de falhas de mercado comportamentais naquele nicho. Embora contemporize a maior parcela das objeções acima expostas, Sunstein o faz com a visível finalidade de aprofundar certos debates específicos sobre política regulatória, evitando debates em abstrato sempre que possível. Em certa medida, a postura do autor é adequada, ao menos quando analisamos a discussão sob o prisma consequencialista em que se inserem suas ideias. Por outro lado, se retomarmos o argumento da autonomia desenvolvido na primeira parte deste trabalho, ficam claras as limitações no plano teórico do projeto do autor. Regressando àquele ponto, a ideia de autonomia, segundo Sunstein (2015, p. 7), não passaria de uma abstração ética, (como dignidade, manipulação ou auto-governo), que criaria obstáculos ao progresso (regulatório) se não for confrontada com situações concretas, em um exercício tipicamente positivo (não normativo). O que não significa que ignorar o elefante (as objeções de cunho ético/valorativo) o fará desaparecer da sala.

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Reconhecer a diferença entre as duas instâncias é essencial à análise da objeção a partir da autonomia robusta. Dos fatos empiricamente comprovados (no caso, as falhas de mercado comportamentais) não se podem extrair valores éticos ou morais, que operam em dimensão distinta. Isso decorre da básica aplicação da “guilhotina de Hume”, instrumento chamado por Dworkin (2014, p. 67) de “princípio de Hume”, que apenas reconhece que daquilo que é, não é possível extrair o que deve ser. A implicação prática da utilização desse famoso instrumento é que apenas uma objeção de cunho ético/valorativo pode ser utilizada como contra-argumento a uma afirmação de mesma natureza. Assim, não acredito que, de um modo geral, as críticas externas ao consequencialismo de Sunstein (principalmente as pautadas no conceito de autonomia robusta, abordada na primeira parte) possam ser simplesmente invalidadas pelo genérico contraste destas com casos concretos.

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CONCLUSÃO

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Após transitar pelos diversos campos de conhecimento que alicerçam a linha intelectual da teoria do Direito do professor Cass R. Sunstein, escrutinando premissas, argumentos e respostas a objeções internas e externas ao conceito de paternalismo libertário, entendo que em larga medida o esforço teórico do autor é consistente com as bases que propõe. Contudo, principalmente no que tange à raiz e natureza do termo “libertário”, que qualifica um tipo específico de paternalismo pouco intervencionista defendido pelo jurista, acredito que a defesa argumentativa, pautada sobretudo numa lógica interna à própria abordagem, deixa grandes margens para maiores objeções, especialmente aquelas de cunho teleológico. Conforme busquei demonstrar, internamente não há grandes inconsistências com a defesa sofisticada feita pelo professor Sunstein às objeções mais comuns endereçadas a seu trabalho. Por outro lado, a mera desconsideração das objeções de cunho valorativo em face de argumentos consequencialistas revela certa imprecisão filosófica, na medida em que, de um modo geral, a defesa de um paternalismo fraco e de meios, ainda quando qualificado como “libertário”, depende de uma teoria correspondente de valores, sob pena de rejeitarmos a aplicação do princípio de Hume.

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Outro traço marcante é a ausência, salvo na menção direta ao conceito de autonomia tal qual defendido por John Stuart Mill, ou do uso instrumental do conceito de ordem espontânea de Friedrich Hayek, a qualquer traço de autores que possam ser classificados como libertários nos trabalhos acadêmicos em que o autor defende tal modalidade de paternalismo. Uma investigação futura, amparada nos trabalhos de Robert Nozick, por exemplo, poderia confirmar e reiterar a necessidade de complementar as justificativas jusfilosóficas do autor quanto à necessidade de intervenção estatal para correção desse novo rol de falhas de mercado comportamentais. Por fim, creio que o conceito de paternalismo libertário não pode ser considerado um oximoro, caso aceitas as premissas e condicionantes impostas pelo autor. Inversamente, caso abracemos as objeções mais fortes opostas ao conceito, sobretudo a calcada no conceito de autonomia 84

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REFERÊNCIAS

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robusta, não acredito que resposta satisfatória tenha sido oferecida até o momento, motivo pelo qual acredito que, admitida a crítica externa pautada em valores (autonomia), o conceito não admitiria justificativa consequencialista – sob pena de violar o princípio de Hume.

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott: um estudo a partir de “A voz da poesia na conversação Da humanidade” Daniel Lena Marchiori Neto1

Michael Joseph Oakeshott (1901-1990) é considerado um dos mais importantes filósofos conservadores do século passado, embora seja um nome quase desconhecido no meio acadêmico brasileiro. Egresso da tradicional Gonville and Caius College, em Cambridge, Oakeshott atuou como fellow da faculdade e professor assistente no Departamento de História. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, lecionou brevemente na universidade de Oxford até ser nomeado Professor Catedrático de Ciência Política na London School of Economics and Political Science (LSE), Londres, em 1951.

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Dentre suas obras mais importantes, destacam-se Experience and its modes (1933), Rationalism in politics and other essays (1962), On human conduct (1975) e On history and other essays (1983). Como exímio erudito, Oakeshott escreveu sobre diversas temáticas, tendo tido grande destaque na Teoria da História e na Filosofia Política. Sobre a contribuição de Oakeshott, Bhikhu Parekh (1996, p. 7) considera sua obra uma proposta original em torno do conservadorismo, libertando-o das “tradicionais amarras da religião, historicismo, moralismo, hierarquia social e nacionalismo, ao mesmo tempo em que o reedificava sobre uma epistemologia cética e uma teoria da identidade humana rigorosamente construída”.

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Professor Adjunto de Teoria Geral do Estado da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando nos cursos de Graduação em Relações Internacionais e de Mestrado em Direito e Justiça Social. Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estágio de doutoramento no Departamento de Ciência Política do Colorado College, EUA. Formado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: danielmarchiorineto@gmail.com.

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Este capítulo volta suas atenções para o conceito de Filosofia. Em seu trabalho inaugural, Experience and its modes, Oakeshott apresenta uma clara influência do idealismo na constituição de seu argumento sobre a natureza do conhecimento. A análise deste trabalho permite extrair pelo menos quatro conclusões: (a) toda forma de experiência é uma forma de pensamento e julgamento; (b) a realidade, o mundo real, é uma afirmação da experiência a partir de um mundo coerente de ideias; (c) a experiência é passível de ser apreendida a partir de vários pontos de vista – sempre abstratos e parciais em relação à totalidade da experiência; (d) a filosofia não é uma modalidade, é a experiência de forma concreta, a experiência sem qualquer pressuposição ou reserva (MARCHIORI NETO, 2012). A segunda obra do autor, Rationalism in politics and other essays, retoma a discussão sobre o papel da filosofia e sua relação com as modalidades do conhecimento. No prefácio deste livro, ao apresentar o ensaio The voice of poetry in the conversation of mankind, Oakeshott o descreve como uma “retratação tardia a uma sentença tola de Experience and its modes” (OAKESHOTT, 1991, p. ii).

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A frase que Oakeshott se refere trata do mundo prático. Ele diz que a prática “inclui tudo o que nós chamamos por beleza” (OAKESHOTT, 1995, p. 296). Neste ensaio, Oakeshott sustenta que a Poesia é uma modalidade autônoma, da mesma maneira que a História ou a Ciência, por exemplo. Por Poesia, Oakeshott refere-se a toda forma de expressão estética, como pintura, música, escultura, dança, literatura, entre outros. A vontade de Oakeshott para escrever um ensaio completo para a simples correção de uma sentença escrita há trinta anos evidencia uma profunda ligação com seu trabalho anterior. The voice of poetry apresenta uma riqueza tamanha dentro de sua obra que consistiu em uma completa revisão de Experience and its modes (WELLS, 1994). Ao reconsiderar o lugar da poesia no mapa da atividade humana, Oakeshott acabou por reformular o grande tema de sua obra inaugural, ou seja, a relação dos modos de experiência entre si e em relação à Filosofia. Esta renovação é fundamental para desvendar as nuances da teoria do conhecimento de Michael Oakeshott. O autor promove uma alteração sensível que, em um primeiro momento, sugere o deslocamento da posição idealista de Experience and its modes para o ceticismo quanto ao papel da filosofia. 88

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

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Este capítulo se dividirá em três partes. Em primeiro lugar, serão analisados os principais elementos teóricos do ensaio The voice of poetry. Posteriormente, será analisada a configuração da modalidade estética como uma forma de apreensão da experiência. Por fim, iniciar-se-á um diálogo entre os principais comentadores de Oakeshott acerca da leitura deste ensaio no universo conceitual oakeshotteano. O objetivo é avaliar se a transição entre a obra inaugural e The voice of poetry implica efetivamente uma transição do idealismo ao ceticismo. A VOZ DA POESIA

Oakeshott inicia o ensaio The voice of poetry in the conversation of mankind reafirmando uma das principais premissas do livro Experience and its modes: o conhecimento humano não é passível de ser deduzido a partir de uma única modalidade de pensamento. No ensaio, porém, o termo modalidade (modality) é sutilmente substituído pela palavra voz (voice).

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Mas agora é tempo que a humanidade inventou para si outros modos de falar. A voz da atividade prática pode ser a mais comum de ser ouvida, mas é seguida de outros, cujo enunciado é em um idioma diferente. As mais notáveis são as vozes da “poesia” e da ciência, mas parece que recentemente a “história” também adquiriu, ou começou a adquirir, uma voz autêntica e uma linguagem própria” (OAKESHOTT, 1991, p. 488).

A utilização da expressão voz em detrimento de modalidade não é fruto de mero capricho ou descuido de Oakeshott quando da redação do ensaio. Pelo contrário, insinua uma mudança significativa de percepção quanto à natureza do conhecimento e a relação entre as modalidades. Para se compreender esta mudança, é necessário retomar alguns pontos. O primeiro diz respeito ao conceito de totalidade da experiência delineado em sua obra inaugural. Em Experience and its modes, Oakeshott afirma que a totalidade da experiência é o todo concreto, entendido como o conhecimento livre de qualquer abstração ou parcialidade, reserva ou pressuposição. Uma atividade deste nível é alcançada apenas pela reflexão filosófica. Somente

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a Filosofia é crítica em si mesma, visto que sua tarefa é conhecer e indagar os postulados de cada modalidade, sem qualquer compromisso com aquilo que cada modalidade efetivamente investiga. Por esta razão não padece, segundo Oakeshott, da parcialidade de cada modo. Não há ponto de vista no pensamento filosófico porque a Filosofia preocupa-se com o conhecimento em sua totalidade – o conhecimento acerca do que é o próprio ato de conhecer.

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As modalidades são mundos de discurso, formas autônomas de compreender a experiência de acordo com determinados postulados. Os postulados são o ponto de vista na experiência, o referencial pelo qual o agente interpreta e conhece os eventos que ocorrem no mundo. Mas não são meros pontos de vista, mas sim formas logicamente coerentes de se compreender a experiência. Assim, o cientista percebe a experiência em sua totalidade como um mundo de ideias científicas, o historiador como ideias históricas e assim por diante. Todavia, esta totalidade é sempre abstrata, parcial, pois a totalidade da experiência, de fato, não pode ser sintetizada a partir de uma única modalidade, de um único ponto de vista. A experiência não se resume à experiência científica ou à experiência histórica. As modalidades, em comparação com a Filosofia, não atingem todo concreto, justamente porque estão limitadas pelos pressupostos – a totalidade da experiência, por ser total, não pode ser mediada por nenhuma reserva ou pressuposição. A totalidade da experiência somente é alcançada pela Filosofia. Já em The voice of poetry, Oakeshott abandona a expressão totalidade da experiência. Em sua nova configuração, os diversos idiomas de expressão humanas, que outrora havia denominado modalidades, possuem um local de encontro onde juntos compõem uma diversidade. E, segundo o autor, a imagem deste local de encontro, a nova totalidade, é mais bem visualizada não pela imagem de uma investigação ou de um argumento, mas como uma conversa. Segundo Oakeshott: Em uma conversa, os participantes não estão envolvidos em uma investigação ou um debate, não há “verdade” a ser descoberta, nenhuma proposição a ser provada, nenhuma conclusão a ser buscada. Eles não estão preocupados em informar, persuadir ou refutar uns aos outros, e, portanto, a coerência de suas afirmações não depende de falarem no mesmo idioma: eles podem ser diferentes, sem

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discordar. É claro, uma conversa pode ter passagens de argumento e um interlocutor não é proibido de ser demonstrativo, mas o raciocínio não é nem soberano, nem solitário, e a conversa em si não compõe um argumento (OAKESHOTT, 1991, p. 489).

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Muitas considerações importantes podem ser extraídas deste parágrafo. Em primeiro lugar, diferentemente de Experience and its modes, as modalidades não mais são tomadas como mundos de ideias obcecadas pelo todo concreto, pela busca da constituição da totalidade da experiência, e que, devido a sua parcialidade, tornam-se meramente abstratas. As modalidades, agora, são vozes dentro de uma conversa que não pode ser caracterizada por nenhuma linguagem específica, nem mesmo pela Filosofia. A concepção de um todo único na experiência, concretizado anteriormente apenas pela reflexão filosófica, dá lugar a uma concepção mais pluralista do mundo, que é realizada pelo que ele denominou conversa.

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A conversa é o local de encontro dos diversos idiomas do conhecimento humano: a totalidade da experiência é, portanto, o conjunto dessas linguagens e não mais uma distinção entre uma experiência concreta e abstrata – ou entre o conhecimento parcial e o conhecimento sem reserva ou pressuposição, entre as modalidades e a Filosofia. Esta opção pela expressão voz torna ainda mais claro um ponto aparentemente confuso em sua obra inaugural, e que agora pode ser finalmente analisado: a relação entre pensamento e linguagem. Em Experience and its modes, Oakeshott sustenta uma postura idealista quanto ao conhecimento. Para ele, o pensamento não é uma forma de experiência, mas sim é experiência. Toda experiência é pensamento, não há experiência que não seja pensamento, não há nada que não possa ser pensado. Aquilo que não pode ser pensado não pode ser conhecido e, portanto, não existe. Agora, a unidade básica da experiência ou do pensamento é a ideia. A ideia, por sua vez, é uma representação cuja análise se divide em dois elementos: (a) uma atividade de experimentar ou pensar (experiencing) – um como se pensa; e (b) um algo a ser experimentado ou pensado (what is experienced) – um sobre o que se pensa. Estes dois elementos são inseparáveis, pois todo conhecimento implica uma atividade de pensar associada inexoravelmente a um algo a ser pensado. direito & LIBERDADE

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Dito isto, Oakeshott considera que o pensamento não segue nenhuma espécie de lógica linear, não há um início, meio e fim passíveis de determinação. O que é dado pelo pensamento é uma situação complexa, em que não existem pré-requisitos ou ponto de partida necessários para se começar a pensar. O pensamento surge desde os primeiros momentos da consciência (OAKESHOTT, 1995). Uma criança nasce e, portanto, já começa a pensar, ainda que de forma bastante precária. A partir de então, o mundo começa a ganhar novos contornos e sentidos e a atividade de pensar será contínua e ininterrupta até o último momento da vida.

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A linguagem, por sua vez, é uma espécie de artifício humano, uma criação humana expressada a partir de uma maneira autônoma de pensar, de uma forma de apreender a experiência a partir de um determinado referencial. A linguagem não é algo que surge de forma simplesmente natural: uma criança, ao nascer, inicia sua atividade de pensar desde os primeiros momentos de consciência, mas não necessariamente pensa e se expressa através de uma linguagem. A linguagem é apreendida ao longo da vida e reconhecida como uma forma específica de compreender o mundo e de tornar este mundo mais coerente para si de acordo com as situações contingentes. O que se verifica em Oakeshott é que não há a linguagem, mas sim linguagens. A Matemática, a Ciência, a História, entre outros, por exemplo, são mundos de discurso, formas de expressão criadas pelo homem e que juntos compõem o arcabouço do conhecimento humano. A totalidade da experiência, em The voice of poetry, não mais significa o conhecimento sem reserva ou pressuposição. A totalidade é, agora, o conjunto das diferentes formas de expressão e de pensamento. A escolha cuidadosa do termo conversa sinaliza a importância de destacar duas coisas: primeiro, a pluralidade do conhecimento humano; segundo, que o conhecimento não existe de forma premeditada e tampouco serve a apenas uma forma específica de linguagem. Como se depreende da citação anterior, numa conversa os interlocutores não estão envolvidos em um o debate ou investigação. No diálogo, não há o compromisso, por parte dos interlocutores de chegar a alguma conclusão – a conversa existe justamente para demonstrar a diversidade das formas de pensamento. Como afirma Oakeshott, “uma conversa 92

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

pode ter passagens de argumento e um interlocutor não é proibido de ser demonstrativo, mas o raciocínio não é nem soberano, nem solitário, e a conversa em si não compõe um argumento” (OAKESHOTT, 1991, p. 489).

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Outra observação importante é que as modalidades (as vozes na metáfora da conversa) não estão preocupadas em informar, persuadir ou refutar uns aos outros. Aqui, Oakeshott retoma o argumento da ignoratio elenchi, ou falácia da irrelevância, de Experience and its modes: as diferentes modalidades são formas autônomas de pensar a partir de seus próprios postulados. O tipo de conhecimento formulado dentro de uma modalidade não pode ser aproveitado ou explicado por outra modalidade e nem mesmo nada de significativo tem a contribuir para outro tipo de discurso (o exemplo disso é a tentativa de querer explicar a História a partir do referencial da Ciência, o que, para Oakeshott, constitui uma confusão entre modalidades).

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Na conversa, a coerência das afirmações de cada interlocutor não depende de falarem no mesmo idioma: eles podem ser diferentes, sem discordar. O que se extrai desta assertiva é que o critério de coerência de uma modalidade somente pode ser inferido dentro dos postulados da respectiva modalidade e jamais fora dela. O que é falso ou verdadeiro dentro de uma experiência científica, por exemplo, é algo que somente pode ser averiguado levando-se em conta o método científico. Para Oakeshott, não se pode buscar na História, por exemplo, o critério de veracidade para a Ciência e vice versa. Por isto, as modalidades podem ser diferentes e não discordarem, pois seus postulados são distintos e o que cada uma pode oferecer em termos de experiência será sempre algo único em comparação com as demais.

À semelhança de Experience and its modes, as vozes na conversa não compõem uma hierarquia. “A conversa não é uma realização concebida para designar um ganho extrínseco, uma competição onde o vencedor ganha um prêmio, nem é uma atividade de exegese, é uma aventura intelectual não ensaiada. Na conversa, como no jogo, o seu significado não reside em ganhar ou perder, mas sim em apostar” (OAKESHOTT, 1991, p. 490). A eliminação da diversidade das vozes é algo impossível de se realizar. É justamente nesta diversidade que os universos de discursos se encontram, reconhecem-se mutuamente e “desfrutam de uma relação direito & LIBERDADE

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oblíqua que não requer nem projeta serem assemelhados um com o outro” (OAKESHOTT, 1991, p. 490).

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Cada modalidade da experiência é uma forma de pensamento, uma forma de apreensão da experiência, e cada uma possui sua própria voz (sua linguagem, seu universo de discurso). As vozes de nenhum modo são destacadas do corpo de conhecimento com a qual ela é embasada (JOHNSON, 1999). A experiência, como foi visto acima, é a conjunção de um como se experimenta e um o quê a ser experimentado; as modalidades são formas de pensamento (um como e um o quê) apreendidas a partir de um referencial (os postulados de cada modalidade, aquilo que torna a experiência científica e não prática ou histórica, e.g.). A linguagem é a forma de representação destas modalidades de pensamento, das modalidades da experiência. Segundo Oakeshott, “cada voz é a reflexão da atividade humana, iniciada sem previsão de onde iria parar, mas adquirindo para si mesma, no decurso da atividade, um caráter específico e uma maneira de falar de si mesma, e dentro de cada modo de expressão o tom é ainda discernível” (OAKESHOTT, 1991, p. 491). Não há nenhum número fixo de vozes nesta conversa, embora as mais familiares sejam as da História, Prática, Ciência e Poesia.

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O papel da Filosofia na experiência sofre uma alteração radical de Experience and its modes para The voice of poetry. Antes, a Filosofia era considerada a experiência concreta, a totalidade, e por isto estava hierarquicamente acima das demais modalidades – consideradas como abstratas e parciais. Agora, a Filosofia é colocada lado a lado das demais modalidades: a voz da Filosofia é apenas uma voz dentre as demais vozes que compõem a totalidade da experiência, ou seja, a conversa. Esta é uma mudança importante para a compreensão da teoria do conhecimento de Michael Oakeshott. Seus efeitos, como se verá adiante, levaram alguns críticos a questionar uma suposta ruptura com o idealismo de Experience and its modes. De todo modo, o conceito de Filosofia em si não sofreu nenhuma alteração. A Filosofia é considerada o “impulso para estudar a qualidade e estilo de cada voz, e de refletir sobre a relação de uma voz com a outra” (OAKESHOTT, 1991, p. 4910. A Filosofia em The voice of poetry permanece como uma espécie de meta-conhecimento, ou ainda, na 94

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linguagem oakeshotteana, a análise crítica dos postulados de cada modalidade da experiência.

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A afirmação metafórica de que o filósofo é uma vítima do pensamento é insinuada no novo ensaio. Oakeshott descreve a Filosofia como uma atividade parasitária, pois ela “nasce da conversa, porque é sobre ela que o filósofo reflete, mas não faz nenhuma contribuição específica sobre ela” (OAKESHOTT, 1991, p. 491). O filósofo preocupa-se com a definição de cada modalidade, analisa o que faz a experiência científica ser Ciência e não História, por exemplo, mas é incapaz de ela mesma de interferir no método científico – dizer o que o cientista deve ou não deve fazer ou dizer se determinada conclusão científica está certa ou errada.

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Antes de encerrar este primeiro ponto, há uma última observação a ser feita. Trata-se de uma modificação terminológica empreendida em The voice of poetry. Como relatado anteriormente, em Experience and its modes, a teoria do conhecimento de Oakeshott utilizou a asserção idealista de que a experiência e o processo de experimentar não podem ser tomados de forma isolada. Ambos estão inequivocamente envolvidos pela ideia de que a experiência se revela, ela mesma, como pensamento e julgamento, ainda que expressos através de distintas modalidades. No ensaio The voice of poetry, Oakeshott não mais se refere à experiência como pensamento e julgamento, mas sim como ato de imaginar. A partir disso, cada modalidade é constituída por um mundo não de ideias, mas sim de imagens. Segundo W. H. Greenleaf (1966), esta mudança tornou-se necessária para conformar a visão particular de Oakeshott acerca da qualidade e significância da experiência estética, enquanto contemplação e deleite de imagens por sua própria conta (tema a ser discutido no próximo ponto). Agora, resta a dúvida: uma imagem, dentro da nova linguagem de The voice of poetry, é o mesmo que uma ideia? Pensamento e imaginação devem ser tidos como a mesma coisa?

Analisando o contexto da obra de Oakeshott, há um sentido divergente entre a formulação do conceito de pensamento em Experience and its modes e em The voice of Poetry. Na obra inaugural, pensamento está vinculado à noção de julgamento e, consequentemente, à noção de verdade. Logo, uma ideia pode ser julgada falsa ou verdadeira de acordo com o nível de coerência alcançado na experiência, de acordo o grau de satisfação alcançado a partir de um dado de mundo de ideias. Ainda neste direito & LIBERDADE

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mesmo livro, a experiência estética estava incluída dentro do mundo prático e, portanto, sujeita ao mesmo esquema teórico.

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Já em The voice of poetry, Oakeshott corrige sua posição, retirando do mundo prático o que ele convencionou chamar de Poesia. Para ele, agora, a experiência estética constitui uma modalidade autônoma na experiência. Sua principal característica é apreender a experiência como contemplação de imagens para seu próprio bem, sem qualquer interesse pragmático ou manipulativo. Na arte, não há formulação de juízos de verdade ou inverdade. Retornando às perguntas anteriores, o que se pode observar é que Oakeshott, na verdade, expandiu sua formulação inicial. A experiência julgamento e também contemplação. Greenleaf (1966) atribui esta mudança à incorporação por Oakeshott do termo Geist, que, na linguagem do idealismo, considera pensamento como atividade mental de qualquer espécie. Esta opinião é plenamente possível de ser inferida no texto de The voice of poetry. Segundo Oakeshott:

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Vou chamar esta atividade de “imaginar”: o eu criando e reconhecendo imagens, e movendo-as de uma maneira apropriada a suas características e com vários níveis de aptidão. Portanto sentir, perceber, querer, desejar, pensar, acreditar, contemplar, supor, conhecer, preferir, aprovar, rir, chorar, dançar, amar, cantar, aproveitar, elaborar demonstrações matemáticas, e assim por diante, cada uma é, ou tem seu lugar em, um modo de imaginação identificável e movem-se sobre ele de uma apropriada maneira entre imagens de certo tipo (OAKESHOTT, 1991, p. 496).

A escolha da palavra imaginação abarca todas as diversas formas de atividade vinculadas ao pensamento. Assim, a experiência estética é uma modalidade autônoma de pensamento, uma forma de apreensão da experiência, com o mesmo status das demais modalidades, mas que não reflete julgamentos como a Prática, a História ou a Ciência o fazem. A atividade de imaginar “não é uma condição do pensamento; em um dos seus aspectos é pensamento” (OAKESHOTT, 1991, p. 497). Portanto, o pensamento envolve ideias (ou imagens), e estas podem dizer respeito tanto a julgamento como contemplação. 96

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Por outro lado, uma assertiva imprescindível de Experience and its modes manteve-se inalterada no novo ensaio: a realidade é sempre mediada pelo pensamento. O pensamento (ou imaginação) é composto por imagens que, no entanto, não existem de forma independente, como uma espécie de realidade física a ser descoberta. As imagens são criadas. Assim, como afirma Oakeshott:

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No entanto, o ser e o não-ser, imaginar e imagem, não são nem causa e consequência nem consciência e seu conteúdo: o ser é constituído na atividade de criar e mover-se entre imagens. Além disso, estas imagens não são feitas de outra coisa, como materiais menos definíveis (impressões de sensações), porque nenhum material deste tipo está disponível. Nem são representações de outras existências, imagens de “coisas”; por exemplo: o que nós chamamos de “coisa” é meramente um certo tipo de imagem reconhecida como tal porque ela se comporta de uma certa maneira e responde a nosso questionamento apropriadamente. Mais uma vez, embora as imagens possam muitas vezes serem vagas e indefinidas na aparência, elas são sempre específicas em seu caráter, isto é, correspondem a um modo específico de imaginar, que pode ser distinguido (se quisermos discerni-lo) por determinar que tipo de questões são relevantes a serem questionadas sobre suas imagens: não há imagem elegível para ter todos os tipos de perguntas relevantemente feitas sobre ela. E, finalmente, uma imagem nunca é isolada ou sozinha, ela pertence ao mundo ou campo de imagens que em qualquer ocasião constitui o não-ser (OAKESHOTT, 1991, p. 496-497).

Para finalizar, o que Oakeshott denominou conversação da humanidade é a experiência em sua totalidade, o encontro das várias modalidades de imaginação ou pensamento. A humanidade traduz-se na experiência humana, e diz respeito à habilidade humana de pensar e de fazer uso de sua linguagem. Utilizando a conversa como uma expressão metafórica, vislumbra a imagem de que cada modalidade possui sua própria voz, é constituída por uma própria linguagem. As vozes, nesta conversa, não são “divergências de algum ideal, uma maneira não-idiomática de falar, elas divergem de uma para outra. Consequentemente, especificar um idioma é discernir como que ele se distingue, e de que modo está relacionado aos demais” (OAKESHOTT, 1991, p. 497). As vozes são converdireito & LIBERDADE

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sáveis, mas cada uma delas preserva sua autonomia e independência quanto às demais. O grande desafio a ser evitado, segundo Oakeshott, é o de não confundir as vozes, não acreditar que alguma delas é mais valiosa que a outra, ou que a partir de um idioma é possível deduzir ou explicar os demais.

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A POESIA COMO UMA EXPERIÊNCIA O ensaio The voice of poetry in the conversation of mankind analisa, novamente, as modalidades da experiência tratadas em Experience and its modes, a exemplo da Prática e da Ciência. Não há, entretanto, qualquer consideração significativa no novo texto que valha a pena retomar aqui. É chegado o momento de apresentar, com acuidade, a experiência artística (ou Poesia). O elemento estético tem uma importância ímpar para a obra filosófica do autor.

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Oakeshott conceitua a Poesia como uma atividade autônoma dentro da experiência, uma modalidade de criar imagens de certo tipo e de movê-las de uma maneira apropriada ao seu caráter. A pintura, escultura, atuação, dança, canto, composições musicais e literárias são diferentes tipos de experiência poética (OAKESHOTT, 1991, p. 509). Contudo, como capciosamente alerta Oakeshott, não é o ato de abrir a boca em uma canção que a atividade estética se realiza2. A Poesia é uma modalidade da experiência autônoma, uma maneira própria de apreender a realidade a partir de seus próprios postulados. Agora, como especificar estes postulados? A estética é uma forma de experiência na qual a criação de imagens e o movimento destas imagens (a recriação de imagens) são feitas para a contemplação e deleite. Na arte, as imagens são reconhecidas como meras imagens. Em princípio, esta assertiva parece contraditória com os princípios elementares de Experience and its modes, no que concerne ao fato de a experiência jamais ser mera experiência. Na obra inaugural de 2

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“É claro que nem todo mundo que coloca pintura sobre a tela, que esculpe uma pedra, que move ritmicamente seus membros, ou abre sua boca em uma canção, ou coloca a caneta num papel em verso ou prosa fala o idioma da poesia, mas somente aqueles empenhados nestas ou em operações similares de certa maneira” (OAKESHOTT, 1991, p. 509).

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Oakeshott, as ideias nunca são meras ideias, mas sim ideias relacionais, componentes de um mundo ou campo de ideias autônomo. Contudo, não é neste sentido que Oakeshott utiliza a expressão meras imagens. As imagens (ou ideias) produzidas pela experiência estética, a exemplo de qualquer outra modalidade, não são entidades isoladas, preexistentes ou livres de qualquer relação com o sistema de ideais que lhe dá sentido. Pelo contrário, “as imagens contemplativas devem ter conexões uma com as outras” (OAKESHOTT, 1991, p. 509).

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As imagens são meras imagens porque a experiência estética está preocupada com as imagens pelo próprio caráter de serem imagens e por nada mais. Nesta atividade, não há julgamento, mas sim contemplação e deleite. Logo, as noções de verdade ou falsidade, fato ou não-fato, existência ou não-existência, tão caros para as outras modalidades, não se aplicam à atividade contemplativa. Não há, para a estética, imagem falsa ou verdadeira. Há apenas imagens. Elas são criadas e satisfeitas quando do próprio ato de contemplar. Como afirma Oakeshott, “esta imagem pode ou não pode ser um ‘fato’, mas ao contemplá-la eu ignoro a possibilidade de seu caráter factual” (OAKESHOTT, 1991, p. 509). As imagens nunca podem se alienar das considerações que determinam a sua característica (no caso da experiência estética, sua atitude contemplativa) e estão sempre presentes neste tipo de modalidade. Quando conhecer (imagining) é contemplar, fato ou não-fato não aparecem. E, consequentemente, estas imagens não podem ser reconhecidas nem como possíveis e nem prováveis, pois estas categorias retornam à distinção entre fato e não-fato. Efraim Podoksik (2002) resume bem este ponto ao afirmar que: Oakeshott denomina a experiência estética como uma atividade “poética” e define-a em termos de “contemplação” ou “deleite”. Suas imagens não estão preocupadas em fazer proposições, e são individuais e únicas, porque elas não podem mudar ou serem destruídas. Elas existem apenas no presente, e nenhuma imagem pode tomar o lugar de outra. A combinação destas imagens não constitui um argumento, e sua composição não tem final premeditado ou conclusão. A voz da poesia não está preocupada com as imagens das vozes práticas, tais como desejo ou aversão, aprovação ou desaprovação, e “verdade” ou “não-fato” (PODOKSISK, 2002, p. 725).

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Quando Podoksisk afirma que as imagens na contemplação não podem ser mudadas ou destruídas, o que isso significa? Segundo Oakeshott, o julgamento de veracidade não pertence ao campo da atividade contemplativa. Desta maneira, uma imagem contemplada representa sempre um fenômeno único e diz respeito a uma imagem que, enquanto expressão estética, está imune de qualquer juízo acerca do seu caráter. Por consequência, uma imagem poética não confirma nem refuta outra: no máximo, podem juntar-se para formar outra imagem. Além disso, as imagens em contemplação são sempre presentes, pois não há contemplação pretérita ou futura. A contemplação é indiferente a qualquer aspecto que possa ser objeto de julgamento. Não provocam nem especulação nem questionamento sobre a ocasião ou as condições em que surgem, mas somente deleite por terem aparecido. Não há antecedentes ou consequentes. Não são reconhecidas como causas ou condições ou, ainda, como sinais de outra imagem a seguir. Não são produtos ou efeitos de uma imagem que surgiu antes. Não são instâncias de um tipo, nem meios para um fim. Não são nem úteis nem inúteis (OAKESHOTT, 1991).

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Uma vez contemplada, esta imagem pode ser objeto de outra forma de investigação. Mas, vista por outro ângulo que não o mero deleite, a experiência deixa de ser estética. As imagens podem apresentar relação com outras imagens, mas não possuem uma história, pois do contrário seriam imagens históricas. Se são reconhecidas por suas conexões lógicas, inferências generalizáveis, são imagens científicas. Por outro lado, se a imagem for dita útil em termos de que se possa dela fazer algo, melhorá-la ou transformá-la em termos de um projeto ou objetivo, a imagem resultante somente pode ser uma imagem prática. Oakeshott descontrói sua visão inicial de que a estética corresponde a uma parte do mundo prático. “Além disso, a imagem na contemplação não é nem agradável nem dolorosa, e isso não atrai a si próprio nem aprovação nem desaprovação moral. Prazer e dor, aprovação e reprovação são características de imagens de desejo e aversão, mas o cúmplice do desejo e aversão é incapaz de compactuar com a contemplação” (OAKESHOTT, 1991, p. 510). Outra diferença fundamental entre ambas as formas de experiência é de que as imagens em contemplação poética são tanto permanentes quanto únicas. Isto contraria definitivamente os postulados da prática. 100

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O mundo do desejo é um mundo transitório, que propõe a alteração da realidade em um processo interminável, pois ele é sempre passível de mudança. A estética não usa suas imagens ou as induz à mudança: ela repousa em suas próprias imagens. Como lembra Oakeshott, “a característica de ser permanente em nada se relaciona a ser durável ao invés de transitório. Como qualquer outra imagem, a imagem resultado da contemplação pode ser destruída por falta de atenção, pode ser perdida ou pode se decompor. Na verdade, a imagem é permanente porque a mudança e a destruição não são perigos em potencial; ela é única em virtude de que não há outra imagem que possa preencher o seu lugar” (OAKESHOTT, 1991, p. 510). Além disso, não se deve interpretar a expressão estética como um simples entretenimento. A beleza, enquanto terminologia expressiva da arte, não é um conceito associado a uma finalidade específica, como causar sensação de alegria, riso, diversão ou qualquer coisa semelhante. A beleza é uma palavra cujo uso é descrever uma imagem poética, da qual o indivíduo é obrigado a admirar (compelled to admire).

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O argumento, aqui, é semelhante a Experience and its modes. Quando as ideias pensadas estão relacionadas de forma tão coerente e satisfatória, e não há mais necessidade de perquirir sobre os resultados, pode-se afirmar que a conclusão é um dado relevante por si. O indivíduo obriga-se a pensar sobre ela, ou seja, não consegue desconsiderá-la.

Para Oakeshott, é certo que a experiência estética não possui critério de veracidade/falsidade3, e o termo obrigado a pensar não se aplica, como no livro anterior, no sentido de uma ideia verdadeira em termos de satisfação de coerência. O obrigado a admirar, em The voice of poetry, refere-se à imagem poética resultado da experiência estética: o sujeito é abrigado a admirar porque a imagem resultou de uma apreensão da experiência na forma contemplativa. Em outras palavras, o sujeito pensou, pensou de modo contemplativo, e o resultado de sua experiência é uma imagem contemplada. E é esta imagem que ele está obrigado a admirar: uma imagem que resulta de uma experiência própria, mediada pelos postulados da estética, 3

“Eu realmente não entendo como que o conceito de ‘verdade’ possa se aplicar às imagens poéticas”. (OAKESHOTT, 1991, p. 522).

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pela forma contemplativa de apreender a experiência, e por nenhuma outra modalidade. O sujeito não admira um objeto como alguém que admira uma noção nobre em termos de aprovação, ou porque admira algo porque ele está bem feito (a exemplo da demonstração matemática bem sucedida). A admiração é resultado de uma forma de pensamento, como uma condição de realização de uma experiência sem qualquer cunho pragmático.

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Deste modo, a Poesia, nos termos oakeshotteanos, começa e se inicia como uma linguagem, um modo autônomo de produzir conhecimento. Segundo Oakeshott: Na linguagem da poesia, palavras, formas, sons, movimentos não são sinais com significados predestinados; não são como peças de xadrez que se comportam de acordo com regras conhecidas, ou como moedas que possuem uma cotação atual; não são ferramentas com aptidões e usos específicos; eles não são ‘meios de transporte’, quando o que está para ser transportado já existe no pensamento ou emoção. Não é uma linguagem repleta de sinônimos, onde um sinal pode ser substituído por outro caso esteja apto a transmitir o mesmo significado, ou onde algum outro tipo de sinal (um gesto, em vez de uma palavra), muitas vezes, pode igualmente servir (OAKESHOTT, 1991, p. 527).

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O que Oakeshott quer afirmar é que a poesia não é uma linguagem simbólica. Nela, as palavras são elas mesmas imagens e não signos para outras imagens. O ato de imaginar é ele mesmo uma expressão. É uma linguagem sem vocabulário e que, consequentemente, não pode ser apreendida por imitação. A voz da poesia no universo filosófico de Oakeshott Após analisar os principais pontos de The voice of poetry in the conversation of mankind, é hora de contextualizar este ensaio dentro de uma perspectiva geral da filosofia de Michael Oakeshott. O objetivo desta terceira parte é investigar se a transição entre Experience and its modes e o referido ensaio implicou uma efetiva ruptura com o idealismo. 102

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Dentre os críticos que sustentam esta ruptura, destaca-se o professor Steven Anthony Gerencser, através de sua tese doutoral The skeptic’s Oakeshott. Em linhas gerais, Gerencser argumenta que o caráter da filosofia de Oakeshott enseja uma transformação radical do idealismo absoluto para o ceticismo.

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Seu argumento inicia-se com uma definição do termo idealismo absoluto, que, segundo o autor, envolve pelo menos duas noções. A primeira delas é a de monismo, a afirmação de que toda a realidade conjunta forma um único sistema, uma única substância. Em outras palavras, nada do que é real pode ser excluído ou segmentado de tal maneira que seja menos parte da realidade. Portanto, tudo o que é real é relacionável aos demais elementos, que formam um único e complexo sistema da realidade (GERENCSER, 2000). A segunda é a teoria da coerência da verdade, segundo a qual uma proposição não pode ser considerada verdadeira por si mesma, abstraída do seu envolvimento com outras proposições (GERENCSER, 2000). A partir dessas definições, Gerencser compara o livro Experience and its modes e chega a uma conclusão ambígua. De um lado, o entendimento da filosofia em Oakeshott é um exemplo de idealismo absoluto:

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No Prefácio ao livro Experience and its modes, Oakeshott assume a tarefa de fornecer uma “reafirmação dos primeiros princípios [do idealismo]”. Seu livro parece atingir este objetivo e é esta conquista que tenho qualificado, seguindo Quinton, como sendo o idealismo absoluto de Oakeshott. As conjecturas de Oakeshott de que não apenas há um singelo todo de realidade, completamente coerente e internamente relacionado, mas também que a experiência filosófica é a experiência deste mundo. A filosofia sozinha assume este mundo de ideias como o singelo todo da experiência. Assim afirma Oakeshott, “a experiência filosófica, pois, tomo como a experiência sem pressuposição, reserva, ponto de vista ou modificação”. A filosofia aqui é algo claramente especial: é a experiência pura, sem restrições. Oakeshott leva as críticas comuns da filosofia de ser abstrata ou distraída do mundo real e, em movimento digno de Platão, sugere que a filosofia somente viaja no mundo da experiência concreta e real. Ou, inversamente, o que é a experiência concreta da totalidade coerente da experiência é aquilo que Oakeshott denomina filosófica.

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Oakeshott reúne os enunciados sobre a experiência e realidade da tradição idealista e os direciona diretamente para a filosofia (GERENCSER, 2000, p. 22-23).

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Por outro lado, a maneira como Oakeshott elabora as modalidades da experiência é cética. Para Gerencser, Oakeshott revela uma atitude cética em relação a seu idealismo ao reconhecer que existem diversas formas de experiência. Cada modalidade é uma forma de limitar a experiência de uma maneira particular, e, embora cada uma possa reivindicar para si a faculdade de expressar a totalidade da experiência, nenhuma pode realmente realizar isto. “Uma versão deste ceticismo é vista na preocupação com o ignoratio elenchi e sua insistência de que o que surge como uma certeza dentro de uma modalidade não deve ser tomada como verdade universal, transportável para outras” (GERENCSER, 2000, p. 27).

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Para Gerencser, a maturidade intelectual de Oakeshott o conduz a uma revisão substancial de Experience and its modes, em que o ceticismo acaba tornando-se a tônica do pensamento filosófico de Oakeshott. A superação do idealismo se dá justamente com a publicação de The voice of poetry in the conversation of mankind, no qual Oakeshott utiliza a metáfora da conversação para descrever a relação entre as diversas modalidades da experiência, agora denominada vozes. Gerencser afirma que Oakeshott muda o papel da Filosofia que, de experiência concreta e verdade universal, passa a ser meramente uma voz entre muitas vozes, uma modalidade entre modalidades: a imagem das vozes em conversação revela a mudança no pensamento de Oakeshott que eu sugeri como importante de assinalar. De forma mais significativa, mostra como Oakeshott abandonou o idealismo absoluto, com sua particular concepção da experiência filosófica e sua rígida prescrição contra a interação da filosofia e de outras formas de experiência e suas expressões. O ceticismo, que existia anteriormente em termos de idealismo, agora obtém uma expressão completa. As modalidades anteriormente tinham uma certeza provisional ou contextual, enquanto a filosófica alcançava um nível universal e absoluto; a experiência filosófica, enfaticamente, não era uma modalidade (i.e. experiência modificada), mas sim uma experiência completa, concreta. Agora, com a imagem da conversação, a filosofia é reavaliada como uma voz entre muitas vozes. A filosofia tem

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

se tornado sujeito dos mesmos cuidados e limitações que antes pertenciam somente às modalidades. Tanto um sinal de mudança e de uma alteração substancial, o reconhecimento da filosofia em uma conversa com outras vozes é de fundamental importância (GERENCSER, 2000, p. 35).

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No raciocínio de Gerencser, o ceticismo de The voice of poetry é visto como parte de um desenvolvimento iniciado, ainda de forma tímida, em Experience and its modes. Uma visão semelhante é a de Podoksik (2005), que igualmente não considera a obra inaugural como uma aderência plena ao idealismo britânico. Modood (1980), por outro lado, concorda que The voice of poetry é uma mudança completa: ao afirmar que a Filosofia é uma atividade parasitária à conversa, Oakeshott desconstitui a unidade idealista das modalidades da experiência. Dentro desta linha interpretativa, o ceticismo transforma-se numa disposição contra toda e qualquer certeza final e absoluta de qualquer modalidade, inclusive a própria Filosofia. The voice of poetry traria consigo uma novidade: o reconhecimento de que a Filosofia é igualmente sujeita ao ceticismo e que ela participa da conversa com seus próprios limites.

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Todavia, muito embora as críticas acima pareçam bastante verossímeis, a assertiva de que Oakeshott rompe definitivamente com o idealismo enfrenta algumas dificuldades. A primeira delas, especialmente quanto ao argumento de Steven Gerencser, pode ser resumida como uma espécie de confusão entre a atividade do filósofo e o conhecimento produzido pelo filósofo. Para Oakeshott, a atividade filosófica reflete uma disposição de pensar de certa maneira, no caso, a disposição de pensar acerca dos postulados de cada modalidade e da relação entre estas modalidades. Esta disposição pode resultar na produção de um trabalho, mas a Filosofia em si não consiste em nenhuma série de conhecimento ou de conclusões concretas. Quando, em Experience and its modes, Oakeshott fala que a Filosofia é uma experiência concreta, o termo concreto (conhecimento sem pressuposição, reserva ou ponto de vista) é o critério do alcance da experiência filosófica, e não o alcance em si.

Gerencser equivoca-se ao pressupor que a experiência filosófica produza um conhecimento concreto. O raciocínio Oakeshott é idealista: não se pode separar a atividade de pensar daquilo sobre o qual se pensa. direito & LIBERDADE

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Não há verdade filosófica anterior à experiência, do mesmo modo como não é possível julgar os livros de Filosofia como um conhecimento concreto em si. O conhecimento concreto é a atividade de filosofar e não a conclusão filosófica em si.

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Isto fica claro em Experience and its modes quando Oakeshott afirma que não há nenhum livro indispensável para o estudo da Filosofia. O filósofo jamais pode ser um ignorante, pois a filosofia não prescinde de nenhum tipo de informação, conhecimento ou pressuposição (OAKESHOTT, 1995, p. 8). Este enunciado é mantido em The voice of poetry, quando Oakeshott diz que “não há nenhum corpo de conhecimento filosófico que possa ser destacado da atividade de filosofar” (OAKESHOTT, 1991, p. 492). Sem dúvida que The voice of poetry introduz uma mudança significativa na apreensão filosófica de Oakeshott: o abandono do termo concreto desloca a filosofia de sua posição superior para igualar-se ao mesmo nível das demais modalidades. Isto, por outro lado, não implica uma necessária ruptura com o idealismo (BOUCHER, 2001). Vale lembrar que, desde Experience and its modes, Oakeshott caracteriza a experiência como cognição: experimentar é o ato de descoberta, experimentar é conhecer.

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Agora, o como se conhece algo é o ponto que diferencia o idealismo dentro do contexto filosófico. É possível argumentar que existam muitas formas de experiência, como intuição, vontade, sensação, dentre outras, e o pensamento é apenas uma delas. Todavia, para Oakeshott, toda forma de experiência é pensamento: só é real, só é possível conhecer algo que possa ser pensado. Aquilo que não é passível de ser pensado, não pode ser conhecido. Esta premissa elementar do pensamento oakeshotteano é mantida em The voice of poetry, de tal modo que uma ruptura completa com o idealismo torna-se difícil de ser sustentada. Neste sentido, Franco (2004) afirma que a ideia de conversação não alterou radicalmente o entendimento de Experience and its modes. A ênfase permaneceu na impossibilidade de eliminar a diversidade das modalidades da experiência (agora chamadas vozes) e sua autonomia com respeito uma a outra. O que mudou em The voice of poetry é a concepção de Oakeshott de Filosofia. Ele não mais se refere à Filosofia como experiência sem pressuposição, reserva, ponto de vista ou modificação. Oakeshott insiste que não sabe como pensar a experiência senão a partir 106

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

de uma modalidade. “A filosofia não mais é entendida como atividade concreta, superior às modalidades abstratas, mas como uma voz entre outras vozes em uma conversação sem hierarquia. Apesar desta mudança, porém, a tarefa da filosofia permaneceu basicamente a mesma que em Experience and its modes: ‘estudar a qualidade e o estilo de cada voz, e refletir sobre a relação de uma voz com outra’” (FRANCO, 2004, p. 17).

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Pois bem, outra dificuldade do argumento de Steven Gerencser reside na vagueza com que ele caracteriza o ceticismo na obra de Oakeshott, termo que ele emprega sem qualquer forma de definição ou contextualização. Há muitas formas de ceticismo, mas esta palavra é geralmente empregada no contexto filosófico para descrever que o conhecimento, de forma total ou em algum aspecto, não pode ser efetivamente conhecido (AUDI, 1999)4. Existe, pois, uma larga diferença entre ser meramente cético ou descrente com respeito a alguma doutrina ou modo de comportamento, ou ser cético a partir de um ceticismo filosófico (a crença de que o conhecimento, em si, não pode ser verificado). Gerencser não avalia, suficientemente, esta distinção, e seu argumento, neste ponto, é bastante superficial.

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Em The voice of poetry, tal qual em Experience and its modes, Oakeshott reafirma seu compromisso com a concepção idealista da verdade como função de coerência e completude. Assim, cada modalidade da experiência possui seu próprio discurso e, partindo de seus próprios postulados, produzem um conhecimento passível de ser avaliado a partir de um critério de veracidade. Oakeshott não nega que haja uma verdade científica, uma verdade histórica ou uma verdade prática. Cada voz possui a sua verdade, mas nenhuma delas é incondicional ou pode ser usada como critério para as demais. Consequentemente, por acreditar na possibilidade do conhecimento, e na sua respectiva veracidade, Oakeshott, em princípio, jamais poderia ser tido como um cético.

As mudanças promovidas por The voice of poetry tampouco modificam este quadro. Primeiro, a introdução da atividade poética como uma modalidade contemplativa, embora não atenda aos de veracidade, não deixa de ser uma modalidade de conhecimento. As imagens 4 Aqui, Audi (1999) afirma que o ceticismo pode apresentar-se de diversas maneiras. De forma mais genérica, é dito que o ceticismo pode ser total (ou absoluto) ou parcial, caso diga respeito apenas a algum campo restrito do conhecimento.

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poéticas são construções da experiência, são imagens passíveis de serem conhecidas. Segundo, a atividade filosófica deixa de ter caráter concreto, e a Filosofia é tida como uma modalidade do pensamento. Contudo, Oakeshott reconhece a existência do discurso filosófico e este é uma forma de discurso cognoscível.

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O que se verifica, pois, é que a influência idealista em Oakeshott é determinante. O autor não duvida da existência do conhecimento, mas o condiciona à mediação pelo pensamento. Para ele, não há conhecimento inato, puro, anterior a qualquer forma de experiência. O conhecimento surge do pensamento e é por ele apreendido de diversas maneiras possíveis.

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Por outro lado, Gerencser não está de todo equivocado ao afirmar que a teoria de Oakeshott contempla alguma forma de ceticismo. A questão é saber qual é o tipo de ceticismo e qual o seu papel na teoria oakeshotteana. Neste sentido, a primeira observação a ser feita é que Oakeshott rejeita a postura cética total, que questiona a possibilidade do conhecimento. Em um de seus manuscritos, escreveu que “o ceticismo, na prática, nunca é absoluto; a dúvida total é meramente autocontraditória” (OAKESHOTT, 1996, p. 31). Para ele, o cético somente pode ser o sujeito que duvida de alguma forma de conhecimento, algo parcial. Neste aspecto, associando a sua inspiração idealista, Oakeshott pode ser considerado cético no que tange à possibilidade de haver um conhecimento anterior ou independente da experiência. Não é à toa que, em muitas ocasiões, a teoria de Oakeshott é cunhada como uma forma de idealismo cético. Para Tseng (2003), Oakeshott é um idealista, mas que mantém um ceticismo compatível com esta tradição filosófica. Tseng sustenta que há uma persistência ou unidade no pensamento de Oakeshott, referente ao esforço em manter a coerência e completude da experiência, mas que nega a possibilidade de um conhecimento inato. Para Wulf (2001), pouco importa o rótulo que se aplica à fenomenologia de Oakeshott. Tanto idealismo absoluto como ceticismo fornecem meramente símbolos para certos grupos de ideias. Todavia, identificar o idealismo absoluto como a fonte do ceticismo de Oakeshott permite evitar a armadilha de assumir que seus primeiros escritos idealistas estavam livres de questionamentos céticos. Ou ainda que Oakeshott 108

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

“abandonou os fundamentos idealistas dos seus textos iniciais simplesmente porque deixaram de empregar a terminologia neo-hegeliana de absolutos e todos concretos. Quanto ao seu raciocínio fenomenológico, apesar das mudanças por que passou, Oakeshott permaneceu um idealista-cético em toda sua vida adulta” (WULF, 2001, p. 118).

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A segunda observação, porém, considera que o ceticismo de Oakeshott apresenta-se de uma forma mais sofisticada que esta. E ele é dirigido à atividade filosófica. Em Experience and its modes, Oakeshott sustenta que a Filosofia é uma atividade concreta porque é uma forma de conhecimento sem reserva, pressuposição ou ponto de vista. É o conhecimento crítico por si mesmo, cujo condão destina-se a estudar os postulados das demais modalidades e da sua mútua relação (a crítica), porém sem nada contribuir com as modalidades em si. Neste ponto, a postura de Oakeshott é compatível com um ceticismo prático5: a negação de que a Filosofia produza um conhecimento útil para as modalidades da experiência. Em outras palavras, a impossibilidade de o conhecimento filosófico interferir ou justificar qualquer assertiva das demais modalidades. A atitude cética de Oakeshott quanto à Filosofia está no cerne de sua máxima de que o filósofo é a vítima do pensamento: a atitude do filósofo refletir acerca dos postulados da experiência, mas de cujo conhecimento não implicar nenhum compromisso pragmático.

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De um lado, Gerencser está correto quando afirma que há um ceticismo latente em Experience and its modes, que é ampliado em The voice of poetry. No entanto, equivoca-se quando afirma que a transição entre os textos implica uma ruptura com o idealismo. Enquanto o idealismo é mantido em The voice of poetry, o ceticismo é sensivelmente alterado. No texto inaugural, Oakeshott acredita que a atividade filosófica é concreta, e por isso superior às demais modalidades. No novo ensaio, a atividade do filósofo está no mesmo nível das modalidades. A 5 A distinção entre ceticismo prático e ceticismo teórico é bastante diversa na literatura filosófica. Contudo, o sentido que este trabalho emprega estes conceitos pode ser assim descrito: o ceticismo teórico é aquele que sustenta ser o conhecimento impossível, de forma total ou parcial; o ceticismo prático afirma que o conhecimento (de forma total ou parcial) não pode ser suficientemente justificado. Neste sentido, conferir Lipkin (1990). Robert Audi (1999) tem uma definição bastante semelhante. Para ele, o ceticismo teórico é a crença de que não há nenhum conhecimento (de forma radical ou moderada) de certo tipo ou de certos tipos. O ceticismo prático é uma atitude de deliberadamente reter a crença a certos tipos de conhecimento.

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Filosofia deixa de ser um conhecimento concreto em comparação com o conhecimento abstrato: ela é apenas uma voz dentre as muitas vozes.

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Embora em ambos o conceito de Filosofia seja idêntico, o lugar da Filosofia é modificado. The voice of poetry marca uma radicalização do ceticismo quanto ao papel da Filosofia na teoria do conhecimento de Michael Oakeshott. Wood (1959) assinala com bastante clareza este ponto ao afirmar que: A concepção de filosofia de Oakeshott é fundamentalmente cética. A busca da experiência em sua totalidade coerente é uma interminável luta por uma perfeição inatingível. A filosofia é uma “disposição”, uma “negação da vida”, que deve ser posta de lado frequentemente se estamos a viver [...] Se a filosofia não se degenera em uma ideologia, ela nunca pode ser um empenho com apelo popular, ou, em qualquer sentido, uma crença com caráter persuasivo. A filosofia existe para seu próprio bem. Consequentemente, o filósofo somente deveria ser ouvido quando ele filosofa. A filosofia não tem nada a oferecer ao homem de experiência (WOOD, 1959, p. 650).

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O ceticismo com respeito à Filosofia é uma dos traços mais marcantes da postura intelectual de Oakeshott. Esta postura cética tem como principal objetivo criticar o uso prático da razão abstrata enquanto guia ou princípio para a ação política. Isso, por outro lado, não é nenhuma novidade. É bastante corrente na literatura dita conservadora a identificação com alguma modalidade de ceticismo (MCINNES, 2000). O que torna Oakeshott original com relação a maior parte dos intelectuais associados ao conservadorismo é que ele consegue mesclar ceticismo com uma postura idealista. Como afirma Gray (2004), “tenho de confessar que jamais entendi como Oakeshott conseguiu combinar um autoentendimento como um cético com uma posição idealista que em seus últimos escritos assume uma orientação quase wittgensteiniana”. A posição fundamental de Oakeshott é idealista, segundo a qual os seres humanos são o que acham que são: não há realidade independente do pensamento.

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CONCLUSÃO

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A análise de The voice of poetry in the conversation of mankind indica que Oakeshott sofre uma influência tanto do idealismo quanto do ceticismo. A presença destas duas tradições filosóficas não aparece, em princípio, de forma conflituosa. Ademais, nunca foi a pretensão de Oakeshott apresentar-se como um acadêmico ativista, que busca filiar-se de forma gregária a alguma escola de pensamento. The voice of poetry é fruto de um esclarecimento de Experience and its modes. Porém, a intensidade das mudanças ocasionou uma revisão substancial em muitos aspectos. O idealismo mantém-se como o grande pilar teórico de Oakeshott, tendo em vista que: (a) experiência é cognição, e todo ato de conhecer é um ato de pensamento; (b) a experiência é passível de ser apreendida a partir de uma pluralidade de discursos, autônomos, independentes e autossuficientes; (c) a verdade é uma função de coerência e completude destes discursos.

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Por outro lado, se de algum modo Oakeshott apresentava qualquer vínculo com o idealismo absoluto britânico, este praticamente desapareceu. Ao abandonar o todo concreto da experiência, Oakeshott desfigurou as noções de conhecimento concreto e abstrato, elegendo a conversa da humanidade como a representação metafórica da experiência. Nela, a Filosofia mantem-se como uma voz, dentre muitas vozes, numa conversa sem hierarquia e sem qualquer finalidade exterior. É neste ponto que o ceticismo é reafirmado de forma mais explícita. Ao longo de sua obra, Oakeshott caminha rumo a uma radicalização cética do papel da Filosofia: primeiro, a Filosofia é entendida como experiência concreta em detrimento das modalidades, que são abstratas. Em The voice of poetry, é rejeitado qualquer tratamento especial ao conhecimento filosófico, sendo este apenas como uma voz dentre as demais vozes. Este caminho tem seu ápice em On human conduct. Ao substituir o termo Filosofia por teorização, Oakeshott indaga ser o conhecimento filosófico apenas um convite a investigar os pressupostos da experiência. A Filosofia é uma aventura sem qualquer destino ou limite. Todavia, este é um ponto para outro trabalho.

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REFERÊNCIAS AUDI, Robert. The Cambridge dictionary of philosophy. 2 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. BOUCHER, David. The idealism of Michael Oakeshott. Collingwood and British Idealism Studies, vol. 8, 73–98, 2001.

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FRANCO, Paul. Michael Oakeshott: an introduction. New Haven: Yale University Press, 2004. GERENCSER, Steven Anthony. The skeptic’s Oakeshott. Nova Iorque: St. Martin’s Press, 2000. GRAY, John. Endgames: questions in late modern political thought. Malden: Blackwell, 2004. GREENLEAF, W. H. Oakeshott’s philosophical politics. Nova Iorque: Barnes & Noble Inc, 1966. JOHNSON, Matthew. Michael Oakeshott’s critique of modernity: science, ideology, and reason. 1999. 171f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculty of the Graduate College, University of Nebraska, Lincoln, 1999. LIPKIN, Robert Justin. Beyond skepticism, foundationalism and the new fuzziness: the role of wide reflective equilibrium in legal theory. Cornell Law Review, vol. 75, p. 811-877, jan. 1990.

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MARCHIORI NETO, Daniel Lena. Os fundamentos da civilidade no pensamento conservador de Michael Oakeshott. Florianópolis: UFSC, 2012. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, 2012. MCINNES, Neil. A skeptical conservative. National Interest, vol. 61, p. 82-88, 2000. MODOOD, Tariq. Oakeshott’s conceptions of philosophy. History of Political Thought, vol. 1, n. 2, p. 315-322, jun. 1980. OAKESHOTT, Michael. Experience and its modes. 7 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. ______. Rationalism in politics and other essays. 2 ed. Indianápolis: Liberty Fund, 1991. ______. The politics of faith and the politics of scepticism. New Haven: Yale University Press, 1996. Parekh, Bhikhu. Algunas reflexiones sobre la filosofía política occidental. La Política: Revista de estudios sobre el Estado y la sociedad, n. 1, 1996. 112

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Idealismo e ceticismo em Michael Oakeshott

Podoksik, Efraim. How Oakeshott became an oakeshottean. European Journal of Political Theory, vol. 4, n. 1, p. 67-88, 2005. ______. The voice of poetry in the thought of Michael Oakeshott. Journal of the History of Ideas, vol. 63, n. 4, p. 717-733, out. 2002. TSENG, Roy. The sceptical idealist: Michael Oakeshott as a critic of the enlightenment. Exeter: Imprint Academic, 2003.

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Wells, Harwell. The philosophical Michael Oakeshott. Journal of the History of Ideas, vol. 55, n. 1, p. 129-145, jan. 1994, p. 134. Wood, Neal. A guide to the classics: the skepticism of professor Oakeshott. The Journal of Politics, vol. 21, n. 4, p. 647-662, nov. 1959.

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WULF, Steven J. Political skepticism: philosophical skepticism in Hume, Burke, and Oakeshott’s political thought. 2001. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculty of the Graduate School, Yale University, New Haven, 2001.

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Imunidade parlamentar e liberdade de expressão Hélio S. C. Carneiro 1

A liberdade de expressão é tida como uma condição indispensável para o funcionamento saudável de um Estado democrático de direito. Por conta disso, a nossa Constituição assegura a livre expressão sob a forma de cláusula pétrea (i.e., uma norma constitucional que jamais pode ser revogada). Essa liberdade está expressamente assegurada pelo artigo 5º, incisos IV e IX, que dizem, respectivamente, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

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Naturalmente, a liberdade de expressão é tão importante para a população em geral quanto para a classe política em particular – afinal, é através dos políticos que elegemos, que são por isso mesmo responsáveis por representar os nossos interesses nas instituições políticas, que as posições dos eleitores podem ser discutidas, o que eventualmente se concretizará em certas decisões políticas. É precisamente neste contexto que se insere a imunidade parlamentar. Antes de prosseguir, no entanto, é necessário fazer uma distinção relevante. A doutrina jurídica entende que a imunidade parlamentar é constituída por dois tipos distintos de imunidade, nomeadamente: a imunidade formal e a imunidade material. 2

Explicando brevemente, a imunidade formal (artigo 53, §1-8, da CF) trata da prisão e do processo criminal de parlamentares a partir da expedição de seu diploma. Já a imunidade material (artigo 53, caput, CF) trata da inviolabilidade civil e penal de parlamentares por quaisquer

1 Graduando em Direito pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão. 2 Para maiores esclarecimentos sobre essa distinção, ver: CUNHA JR, 2012, p. 1.070-1.074.

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opiniões, palavras e votos dados no exercício de sua função, independentemente do local de suas manifestações (uma exceção são os vereadores, que só são protegidos por essa imunidade se estiverem dentro de sua casa legislativa). Este artigo discutirá apenas a imunidade material; portanto, de agora em diante, quando se falar em imunidade parlamentar estará se referindo especificamente à imunidade material.

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Em suma, a imunidade parlamentar permite que um senador, um deputado ou um vereador diga o que quer que seja, desde que no exercício de seu mandato – e independentemente de tal coisa ser estritamente relacionada ao seu mandato –, sem correr nenhum risco maior de ser responsabilizado civil ou penalmente pelo que foi dito. Há ainda quem vá tão longe a ponto de dizer que a imunidade parlamentar confere inviolabilidade absoluta aos parlamentares, de modo que eles não estariam passíveis de responder pelo que disserem em nenhuma hipótese, bastando para isso apenas que estejam nas suas respectivas casas legislativas no momento em que emitam alguma opinião. 3

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Compare agora a situação dos parlamentares com a situação de civis em geral. À primeira vista, civis parecem estar mais passíveis de sofrerem sanções jurídicas por alguma coisa que dizem do que parlamentares. Não é raro que alguém enfrente um processo por dizer algo tido como ofensivo à reputação de outrem (artigo 139, Código Penal), por exemplo. Assim, pode-se dizer que há, à primeira vista, uma assimetria entre a proteção da livre expressão de civis e de parlamentares. Os últimos têm a sua expressão mais protegida que os primeiros. Essa situação naturalmente suscita a seguinte pergunta: por que há essa diferença de proteção? Há algo que a justifique adequadamente? Este artigo buscará, em primeiro lugar, responder negativamente a esse questionamento: tentarei mostrar que os argumentos mais promissores a favor da assimetria em questão não são bem-sucedidos, sendo a imunidade parlamentar injustificada. Em seguida, será feita a defesa de uma proteção de uma robusta liberdade de expressão para todos, sejam 3 Ao menos até recentemente, a jurisprudência do STF se inclinava no sentido de endossar o caráter absoluto da imunidade parlamentar. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 1958/AC – Brasília. Relator: Ministro Carlos Velloso. Pesquisa de Jurisprudência, Acórdãos, 29 out 2003. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/770026/ inquerito-inq-1958-ac#!>. Acesso em: 23 set. 2016.

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Imunidade parlamentar e liberdade de expressão

civis ou parlamentares. Por fim, algumas considerações gerais serão feitas após o final de toda essa discussão. CONTRA A IMUNIDADE PARLAMENTAR

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Tanto na doutrina jurídica quanto no entendimento jurisprudencial, é ponto pacífico a ideia de que todos os direitos fundamentais estão passíveis a certas limitações a depender do caso concreto que se tem em mãos onde há um conflito entre direitos fundamentais. 4 Presumivelmente, com a liberdade de expressão, que é um direito fundamental, as coisas não são diferentes. Assim, a livre expressão pode ser limitada para se favorecer o direito à honra em um caso concreto, por exemplo. Ou seja, não parece haver, na nossa jurisprudência, a precedência do direito à livre expressão sobre outros direitos fundamentais como posição padrão – ao menos não quando estamos falando de civis. Contudo, quando o assunto é a imunidade parlamentar, parece haver uma espécie de favorecimento padrão da livre expressão em detrimento de pelo menos alguns direitos fundamentais. O que quero dizer aqui, mais especificamente, é que, na prática, é notavelmente mais difícil que um parlamentar seja efetivamente censurado por algo que é dito. Dessa maneira, se um parlamentar disser algo tido como ofensivo, será mais difícil haver uma punição do que seria caso um civil dissesse algo de ofensividade equiparável. Nesse ponto, alguém poderia interromper e indagar se não estaria havendo algum exagero. Será mesmo que punir parlamentares por algo ofensivo é mais difícil do que punir civis por um ato similar? Mencionarei aqui dois casos recentes que reforçam a alegação de que a imunidade parlamentar torna a censura mais difícil. O primeiro caso ocorreu em abril de 2016, oportunidade em que o deputado João Rodrigues apresentou uma queixa contra o deputado Jean Wyllys por calúnia, injúria e difamação. Wyllys teria feito uma série de acusações contra Rodrigues, além de tê-lo chamado de ladrão, bandido, desonesto, entre outras, segundo o próprio Rodrigues. O Supremo Tribunal Federal, que teve

4 Isso, no entanto, não significa que um direito fundamental seja, a priori, superior a outro. Em vez disso, a doutrina entende que isso significa apenas que em certos casos um direito fundamental se sobrepõe a outro em virtude do contexto específico de tais casos, de modo que não se pode extrapolar desses casos para uma generalização.

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como relator do caso o ministro Edson Fachin, rejeitou a queixa alegando que Wyllys estaria protegido pela imunidade parlamentar, ainda que Wyllys tenha repercutido o caso nas redes sociais. 5

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O segundo caso também ocorreu em abril de 2016 e também envolveu Wyllys, que teria recebido contra si uma queixa apresentada pelo então deputado Eduardo Cunha, que o teria acusado de calúnia, injúria e difamação. Essa queixa surgiu quando, na ocasião de votação da admissibilidade do processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff, Wyllys teria chamado Cunha de ladrão. Mais uma vez, o STF rejeitou a queixa alegando que Wyllys estaria protegido pela imunidade parlamentar. 6

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Esses casos servem para indicar que o STF mantém firme sua jurisprudência de proteger as opiniões de parlamentares, mesmo quando são flagrantemente ofensivas e quando os emissores da opinião têm como objetivo primário a ofensa pessoal, recorrendo à imunidade parlamentar. Como se tratam de casos muito recentes, é seguro concluir que nenhuma mudança significativa ocorreu no entendimento do STF desde então. Sendo assim, é perfeitamente razoável considerar que há efetivamente uma assimetria na proteção do direito à livre expressão de parlamentares e de civis. Contudo, isso, por si só, não significa automaticamente que há um problema. Afinal, há diversas coisas que parlamentares podem fazer e que civis não podem, e em vários casos pensamos não haver nada de errado com essas assimetrias. Por exemplo, não parece controverso o fato de civis não poderem votar uma Proposta de Emenda Parlamentar (PEC). Na votação de uma PEC, os únicos votos que contam são os de parlamentares. A justifica básica é que a prática faz parte da própria lógica de uma democracia representativa: as pessoas votam nos políticos para que eles representem os interesses de seus eleitores exercendo certas funções exclusivas – funções estas que envolvem certo poder decisório que políticos estariam supostamente melhor qualificados para possuir. 5

CONSULTOR JURÍDICO (CONJUR). Justiça Federal autoriza transfusão de sangue em testemunha de Jeová. nov. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-nov-30/ justica-federal– autorizatransfusao-sangue-testemunha-jeova>. Acesso em: 23 set. 2016. 6 AGÊNCIA BRASIL. Turma do STF rejeita queixa-crime de Eduardo Cunha contra Jean Wyllys. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-08/ turma-do-stf-rejeita-queixa-crime-de-eduardo-cunha-contra-jean-wyllys>. Acesso em: 23 set. 2016.

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Assim, como este exemplo ilustra, não basta apontar uma assimetria entre parlamentares e civis para que haja algo objetável em causa; a assimetria deve, ainda, ser injustificada. A pergunta que devemos responder, então, é a seguinte: há alguma boa justificativa para a assimetria gerada pela imunidade parlamentar? Nas subseções seguintes, serão examinadas três tentativas naturais e aparentemente promissoras de se defender a assimetria em questão. Apelo à Constituição

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Provavelmente, a tentativa mais natural que ocorra a alguém seja dizer que a assimetria resultante da imunidade parlamentar é justificada pela própria Constituição. Afinal, como a Constituição é a lei fundamental do país (i.e., a lei que determina as diretrizes e a validade de todas as demais leis do ordenamento jurídico), cuja legitimidade seria baseada no caráter democrático e plural da Assembleia Constituinte que a originou, o que quer que ela determine será legítimo. Portanto, o argumento segue, se a Constituição realmente endossa uma assimetria relativa à proteção da livre expressão de parlamentares em exercício e civis em geral, então tal diferença estará justificada e será legítima. Há ao menos três sérios problemas com esse argumento. Em primeiro lugar, o argumento pressupõe que o Estado possui autoridade política. Dito da maneira mais simples possível, uma entidade possui autoridade política se 1) é moralmente permissível à entidade em questão impor forçosamente regras a terceiros (esta característica é chamada de legitimidade política) e 2) as pessoas têm o dever de obedecer a essas regras porque se tratam de regras originadas de tal entidade (esta característica é chamada de obrigação política). Desse modo, a autoridade política é uma propriedade que confere um status moral diferenciado a uma entidade, de modo que ela teria o direito de governar e os seus súditos o dever de obedecer. Uma vez que se considere que o nosso Estado atual possui autoridade política, é muito natural que consideremos também que a Constituição, responsável por determinar as diretrizes e o poder de atuação desse Estado, constitui um conjunto de regras legítimas.

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A grande dificuldade enfrentada aqui é que não está de maneira alguma claro que exista algum ente no mundo real que possua autoridade política. Na verdade, parece muito mais provável que a autoridade política não exista. Filósofos há séculos tentam avançar argumentos que procuram justificar um status moral diferenciado conferido aos governos do mundo real e nenhum destes argumentos parece ter sido claramente bem-sucedido. Tendo isso em mente, como diz o filósofo Jason Brennan (Cf. 2016, p. 48), em certo ponto, quando se falha sucessivamente na tentativa de estabelecer X, passa a ser razoável pensar que essa própria falha contínua constitua evidência de não-X. Por questões de espaço, não posso examinar aqui os principais argumentos a favor da autoridade política. Por conta disso, me limitarei a deixar aqui a recomendação de leitura de duas das críticas mais devastadoras à ideia de autoridade política: The problem of political authority, de Michael Huemer (2013), e Moral principles and political obligations, de A. John Simmons (1981). Por ora, basta enfatizar que há uma intuição básica comum de presunção moral contra a coerção – ou seja, tipicamente, consideramos que atividades coercivas requerem uma justificativa –, de modo que são os defensores da autoridade política que nos devem argumentos, uma vez que o Estado é, essencialmente, uma entidade que, em última instância, aplica suas normas coercivamente; na ausência de argumentos bem-sucedidos, a posição padrão deve ser a de ceticismo diante da noção de autoridade política. Suponhamos, contudo, que o Estado brasileiro possui autoridade política e que, em decorrência disso, a Constituição é em geral legítima, de modo que suas normas, apenas por serem constitucionais, estariam legitimamente justificadas. Mesmo com essa concessão caridosa é possível encontrar dificuldades, e é aqui que o segundo problema surge. Ainda que se conceda que a Constituição é em geral legítima, disso não se segue que todas as normais constitucionais são legítimas. Além disso, é possível haver diferentes interpretações plausíveis acerca de uma dada norma, sendo todas as possibilidades igualmente legítimas diante dos limites impostos pela Constituição tomada em sua totalidade; em casos assim, a legitimidade do texto posto na Constituição não bastaria para decidir qual interpretação selecionar, sendo necessário recorrer a outros fatores para além da alegação de legitimidade da inter120

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pretação (já que que há mais de uma interpretação plausível legítima). Portanto, não basta anunciar que a Constituição é geralmente legítima para que a imunidade parlamentar esteja automaticamente justificada. É necessário mostrar ainda que essa imunidade faz parte do conjunto de normas legítimas e não de uma eventual exceção carente de legitimidade.

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Finalmente, o último problema de apelar à Constituição consiste em observar que é possível aceitar que a Constituição justifique a imunidade parlamentar sem com isso aceitar que ela justifica também a assimetria entre parlamentares e civis. Mas como isso é possível? Justificar a imunidade parlamentar não seria justificar, consequentemente, a própria assimetria? Não necessariamente. A depender das razões apresentadas para defender a imunidade parlamentar, é possível seguir adiante para defender que essas são boas razões para que civis também tenham o mesmo grau de proteção da sua liberdade de expressão (tratarei deste ponto mais adiante). Proteção contra a censura

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Uma segunda tentativa natural de justificar a diferença entre parlamentares e civis é a seguinte: os parlamentares precisariam de liberdade para tratar de temas diversos sem correr um risco maior de censura, pois é necessário haver ampla liberdade para confrontar as mais diversas opiniões na discussão de um determinado tema para ao final se chegar a uma decisão política; a imunidade parlamentar serviria precisamente para garantir que o espaço para a discussão desinibida de ideias nunca seja obstruído. Seria por isso também que até mesmo opiniões que não possuem obviamente relação direta com o exercício do cargo parlamentar estariam protegidas: o objetivo seria não abrir precedentes perigosos que acabem tendendo a limitar mais do que se desejaria a livre expressão dos parlamentares. O problema desse argumento é que não está claro por que motivo o mesmo raciocínio não poderia se aplicar a civis. Afinal de contas, votar em um parlamentar é, entre outras coisas, escolher um político que compartilha de nossas próprias ideias e opiniões sobre diversos assuntos. Sendo assim, civis também precisam de amplo espaço para

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discutirem ideias entre si como forma de amadurecê-las e posteriormente identificarmos candidatos que pensam da mesma maneira e que podem nos representar nas discussões das suas respectivas casas legislativas.

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A especialidade e a necessidade emanadas da imunidade parlamentar

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A última defesa a ser avaliada aqui é uma leve modificação do argumento anterior. Ela consiste em argumentar que a assimetria se justifica na medida em que os parlamentares necessitam de uma garantia que os civis não necessitam para debater assuntos estritamente relacionados ao exercício de suas funções. Fazendo uma analogia, seria como dizer que as pessoas em geral não necessitam da mesma garantia de liberdade para discutir biologia que biólogos necessitam. Esse argumento depende, portanto, das noções de especialidade e de necessidade (tendo, consequentemente, um escopo mais restrito do que o argumento anterior). A noção de especialidade, no caso dos parlamentares, se manifesta através da ideia de que parlamentares tratam de assuntos específicos cruciais para o prosseguimento normal de seu trabalho cotidiano. A noção de necessidade, por sua vez, procura mostrar que esse avanço só pode ocorrer (ou tem melhores condições de ocorrer) quando há garantida ampla liberdade de discussão. O maior problema desse raciocínio é que do fato de um certo grupo necessitar mais de ampla liberdade para discutir certos temas não se conclui que pessoas de fora desse grupo devam ter sua liberdade de expressão limitada. Assim como pareceria absurdo dizer que devemos limitar a priori as possibilidades do debate público sobre genética ou evolução, por exemplo, porque as pessoas em geral presumivelmente não necessitam da mesma liberdade de discussão que biólogos necessitam para conduzir normalmente a sua vida cotidiana, também pareceria absurdo dizer que deveríamos limitar a priori as possibilidades do debate público sobre temas variados que têm relação com o exercício parlamentar apenas porque pessoas em geral necessitam menos da liberdade para discutir tais assuntos para conduzir normalmente a sua vida cotidiana. 122

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Conclusão

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Como podemos perceber a esta altura, as defesas que pareciam ser ao mesmo tempo mais naturais e promissoras da assimetria resultante da imunidade parlamentar sofrem de graves falhas. A conclusão a que chegamos aqui, ao menos provisoriamente, é que essa assimetria é simplesmente injustificada. É importante notar ainda que, a rigor, não é necessário demonstrar que é impossível haver uma defesa sólida de tal diferença. Em vez disso, dado 1) que os direitos fundamentais têm precedência sobre as demais normas (estejam elas na Constituição ou algures), 2) que a regra geral é a isonomia diante dos direitos fundamentais protegidos pela Constituição e 3) que a assimetria resultante da imunidade parlamentar é nada mais do que dispensar um tratamento diferenciado ao direito de livre expressão dos parlamentares, caracterizando-se assim uma quebra de isonomia relativa ao direito fundamental à livre expressão, basta que se levantem dúvidas razoáveis a respeito da legitimidade da assimetria em questão para que a rejeitemos, estando o ônus argumentativo com quem pensa que essa diferença é justificada. Em outras palavras, a própria ausência de boas razões para a assimetria já é suficiente para a considerarmos injustificada até prova em contrário. POR UMA LIBERDADE DE EXPRESSÃO ROBUSTA

Considero a seção anterior uma refutação da ideia de que deve haver uma maior proteção da livre expressão de parlamentares em comparação com a proteção de que civis gozam. Admitindo, então, que a imunidade parlamentar é realmente injustificada, surge a seguinte questão: o que devemos concluir disso no tocante à livre expressão? Esta não é uma pergunta irrelevante, pois aceitar a ilegitimidade da assimetria gerada pela imunidade parlamentar é compatível tanto com uma menor proteção da livre expressão de parlamentares quanto com uma maior proteção da livre expressão de civis. Que caminho devemos seguir? A resposta a ser defendida aqui é que devemos aumentar o grau de proteção de civis em geral até algo próximo da proteção conferida pela imunidade parlamentar. Antes, contudo, é importante fazer alguns

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esclarecimentos conceituais. O primeiro conceito a ser esclarecido é o de liberdade de expressão. Quando se fala em liberdade aqui, está se referindo especificamente ao que o filósofo Isaiah Berlin chamou de “liberdade negativa” (1969), que é definida como a liberdade para fazer algo sem sofrer a interferência de terceiros.

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Quando se fala em expressão, por sua vez, está se falando de qualquer forma de comunicar ideias e/ou fatos, seja tal comunicação escrita, visual, auditiva ou uma mistura de duas ou mais desses três tipos. Acrescentese ainda que a expressão não tem a ver apenas com o que é expressado, mas também com como se expressa algo. Assim, a liberdade de expressão é definida aqui como a liberdade de comunicar ideias e/ou fatos – seja sob a forma de música, de notícia, de filmes, de pintura ou de qualquer outra coisa – sem com isso sofrer a interferência coerciva de terceiros. O segundo conceito a ser esclarecido é o de censura. Quando se fala em censura nessa discussão, está se falando primariamente na interferência estatal que vai no sentido de proibir que alguém expresse algo ou de punir alguém judicialmente por algo que foi dito. Liberdade de expressão: uma defesa básica

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Estamos agora em posição de defender o motivo pelo qual devemos proteger uma ampla liberdade de expressão. A defesa básica segue os passos de John Stuart Mill, que no seu celebrado On Liberty (2009) argumentou que a livre expressão é o melhor meio disponível a seres falíveis de justificar as próprias crenças e de eventualmente chegar à verdade sobre diversos assuntos. Sendo seres falíveis, podemos com frequência estar enganados sobre as nossas próprias crenças (muitas vezes podendo não perceber o engano por nós mesmos), e a ampla liberdade de expressão é precisamente um mecanismo através do qual colocamos nossas ideias publicamente à prova para que elas sejam sistematicamente revisadas por terceiros. Caso uma ideia resista a uma avaliação rigorosa, estaremos justificados a aumentar o nosso nível de confiança acerca da sua verdade; se, ao contrário, uma ideia se mostra repleta de problemas que parecem insuperáveis ou muito difíceis de superar, devemos reduzir o nosso nível de confiança em tal ideia e pode ser até mesmo o caso de termos que abandoná-la. 124

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Obviamente, uma ampla abertura para a troca de ideias – algo que é chamado de livre mercado de ideias – não garante que a verdade sempre prevalecerá nas discussões públicas. Seria ingênuo acreditar nisso. Um argumento melhor, no entanto, está disponível: apesar de a livre troca de ideias não garantir que a verdade prevalecerá ao final, o melhor meio disponível para se chegar com maior segurança à verdade é precisamente esse livre mercado de ideias. Além disso, é possível dizer também que a liberdade de expressão possui outros benefícios palpáveis, como o florescimento das pessoas e de uma sociedade de opiniões diversas que entram em contato entre si ou o próprio funcionamento apropriado de uma democracia que busca preservar uma sociedade aberta e plural, por exemplo. Tendo esse raciocínio em mente, podemos perceber mais facilmente o mal que a censura é. Mill o resume da seguinte maneira: O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que se está roubando a humanidade; tanto a posteridade quanto a geração existente; aqueles que dissidem da opinião mais do que aqueles que a mantém. Se a opinião está correta, eles são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se está errada, eles perdem a percepção mais clara e a impressão mais vívida da verdade, coisa que é quase sempre um grande benefício (MILL, 2009, p. 29-30).

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Silenciar uma expressão, então, é privar as pessoas de aprimorar o conhecimento através da avaliação da verdade ou falsidade da expressão em questão. Assim, caso uma opinião de que discordamos seja verdadeira, seu silenciamento resulta na obstrução da possibilidade de abandonarmos uma crença falsa para dar lugar a uma verdadeira. Caso a nossa opinião seja verdadeira, por outro lado, silenciar a opinião contrária nos privaria de ter uma melhor percepção da verdade da nossa própria opinião, coisa que nos colocaria em uma posição de ver melhor o quão forte é a justificativa para a nossa crença. Tanto em um caso quanto em outro a censura é um mal, pois somos seres falíveis e apenas com uma ampla possibilidade de contato com opiniões diferentes estaremos em melhor posição de rejeitar ou justificar adequadamente uma dada crença. Dessa maneira, a censura não é razoável para seres falíveis como nós – como arremata Mill mais adiante, o silenciamento de uma discussão teria que pressupor uma infalibilidade que simplesmente não possuímos direito & LIBERDADE

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(Cf. MILL, 2009, p. 30). Ainda que tenhamos uma grande certeza, justificada pelo fato de a nossa opinião ter resistido com sucesso às tentativas passadas de refutação, continua sendo verdadeiro que podemos estar enganados. E a melhor maneira de manter a nossa certeza é precisamente deixar sempre uma abertura para novas tentativas de refutação.

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Há ainda um terceiro caso considerado por Mill, que é quando as opiniões não são nem totalmente verdadeiras e nem totalmente falsas, mas antes apenas parcialmente verdadeiras (Cf. MILL, 2009, p. 77). Este se trata de um caso que ocorre com frequência. E aqui também não temos nenhuma maneira melhor de distinguir as partes verdadeiras das falsas de uma opinião do que permitir que ela seja expressada e subsequentemente avaliada. Como se pode ver, a defesa básica apresentada acima é essencialmente instrumentalista, pois mantém que a livre expressão é valiosa primariamente como um meio para se alcançar certos benefícios, como a busca pela verdade ou o bom funcionamento de uma democracia liberal. No entanto, algumas pessoas podem oferecer ainda argumentos deontológicos a favor da livre expressão.7 Argumentos deste tipo consideram que a liberdade de expressão possui uma espécie de valor intrínseco, de modo que preservá-la seria cumprir o dever de respeitar o próprio autogoverno das pessoas enquanto seres autônomos capazes de pensar e decidir por si mesmos diante da diversidade de ideias apresentadas a de si.

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Qualquer que seja o valor desses argumentos deontológicos, é razoável considerar que as suas versões mais plausíveis devem levar em conta a importância das consequências. Por exemplo, imagine que dizer “os marcianos vão destruir completamente a nossa cidade ao fim desta frase” publicamente no dia 10/10/2030 em um palanque no meio da avenida principal realmente resulte na destruição de uma cidade, onde muitas pessoas vão sofrer intensamente antes de ter uma morte dolorosa; suponha ainda que temos boas razões para pensar que é muitíssimo provável que dizer essa frase gere esse resultado. Nesse caso, seria absurdo dizer que não devemos censurar ninguém que tente 7

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WAR BURTON (2009, p. 14-15) faz uma distinção sucinta entre argumentos instrumentalistas (ou consequencialistas) e argumentos morais (o sentido deste último tipo é basicamente o mesmo atribuído ao conceito de argumentos deontológicos utilizado aqui).

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proferir essa frase publicamente no meio da avenida principal porque a liberdade de expressão possui valor intrínseco. Apesar de este ser um caso surreal, ele é importante por deixar transparente e confirmar a intuição – que faz parte da moralidade de senso comum – de que as consequências importam.

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Sendo assim, ainda que a livre expressão tenha valor intrínseco, é possível que considerações consequencialistas se sobreponham a esse valor. Por conta disso, é interessante que nos atenhamos primariamente a considerações consequencialistas, muito embora possa haver considerações moderadamente deontológicas subjacentes (como será visto mais adiante).

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Observando mais atentamente, já agora é possível levantar algumas dificuldades aparentes ao argumento oferecido a favor da ampla livre expressão. Primeiro, há expressões que não transmitem nenhuma proposição. Uma proposição é basicamente qualquer sentença cujo conteúdo possui um valor de verdade. Dito de outra maneira: qualquer sentença que possa ser verdadeira ou falsa é uma proposição. Frases como “o Universo se originou com o que os físicos chamam de big bang”, “Pedro mentiu sobre a sua relação com Joana” ou “está chovendo neste momento” são proposições, pois o conteúdo de todas elas pode ser verdadeiro ou falso. Já a pintura Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, não expressa proposição alguma. Ela é simplesmente algo a ser contemplado, não havendo nenhum conteúdo passível de ser verdadeiro ou falso subjacente à pintura. Dessa maneira, à primeira vista, a pergunta que se faz é como a defesa esboçada acima serve para aplicar o princípio da liberdade de expressão a formas de expressão não-proposicionais. Segundo, a argumentação oferecida acima pode dar conta de proteger o conteúdo das expressões, mas não está claro que consiga defender que qualquer forma como se expressa tal conteúdo deve ser permitida. Haverá alguma maneira de superar essas dificuldades? Uma maneira promissora de responder a esses problemas é se valer da presunção moral contra a coerção já mencionada anteriormente: as pessoas deveriam ser livres para expressar também aquilo que não transmite nenhuma proposição e da forma como quiserem, recaindo o ônus argumentativo sobre aqueles que quiserem limitar a expressão. Tal ônus poderia ser satisfeito mostrando que em algum caso as consequências de permitir direito & LIBERDADE

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uma dada expressão seriam suficientemente sérias e significativas, por exemplo. O caso contra a livre expressão, portanto, dependeria de evidências empíricas que mostrassem que uma dada expressão apresenta uma alta probabilidade de resultar em consequências suficientemente sérias (ou que a permissão legislativa de certo tipo de expressão apresenta alta probabilidade de gerar más consequências).

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Nesse ponto, um questionamento natural é indagar se não seria possível estabelecer, a priori, um limite à liberdade de expressão, ainda que se aceite a defesa básica oferecida aqui. A resposta é afirmativa: de fato, é possível estabelecer, em princípio, um limite razoável à liberdade de expressão. Um limite plausível é delineado pelo princípio do dano de Mill (Cf. 2009, p. 18, 93-94), de acordo com o qual a liberdade de expressão encontra o seu limite quando expressar alguma coisa resultante em um dano efetivo (ou na iminência de um dano efetivo) a terceiros. Assim, se sou uma autoridade militar e sei que uma ordem minha provavelmente levará um soldado sob minha tutela a tomar uma ação que resultará na morte de um inocente, por exemplo, não estarei dentro da esfera de proteção legítima da liberdade de expressão e deverei ser responsabilizado se acabar expressando tal ordem.

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Mas será que o dano se resume ao dano físico? Não seriam os danos psicológicos importantes para estabelecer limites à livre expressão também? Não seriam as ofensas capturadas pelos chamados crimes contra a honra na legislação brasileira 8 limites legítimos à livre expressão? Em algumas situações, a ofensa realmente pode constituir um dano psicológico relevante, como casos extremos de bullying 9, por exemplo. Já em outras situações, a ofensa não parece constituir nenhum dano relevante a ponto de justificar uma sanção estatal, como quando alguém critica algum dogma religioso que causa profundo desconforto psicológico nos seguidores mais fieis da religião em questão, por exemplo.

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Esses crimes seriam a calúnia, a difamação e a injúria, previstos respectivamente pelos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal. Caracterizado pela legislação brasileira como intimidação sistemática, que ocorre de modo “intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente [...] contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas” (artigo 1, §1 da Lei 13.185/2015).

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Decidir onde traçar o limite entre esses dois casos não é uma tarefa fácil. Em todo caso, o princípio do dano continua parecendo ser satisfatório ainda que o dano não seja apenas físico: de acordo com o princípio, qualquer tentativa de censura através da alegação de dano deverá mostrar empiricamente uma relação causal entre uma dada expressão e um dano sério o suficiente sofrido por alguém.

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Alguns podem considerar que essa proposta é insatisfatória – afinal de contas, várias pessoas consideram que coisas como ofensas pessoais, ainda que não causem um dano psicológico debilitante, não devem ser aceitas sob o manto da liberdade de expressão. O problema é que o critério subjacente a esse raciocínio é o de que basta que o receptor de uma mensagem se sinta ofendido para que a censura esteja justificada, e isso abre espaço para que até mesmo mensagens que não são emitidas com a intenção primária de ofender, e que não são formuladas de um modo particularmente ofensivo, sejam passíveis de censura. Uma pessoa que questione as evidências históricas da existência de Jesus por estar genuinamente interessada em saber se ele realmente existiu ou se foi um personagem criado, por exemplo, certamente ofenderia profundamente vários cristãos devotos.

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Até mesmo anunciar publicamente certas preferências pessoais, como quando alguém diz que não gosta de se relacionar com pessoas gordas porque as considera feias, por exemplo, pode ser passível de censura. No limite, considerar que a ofensa é suficiente para justificar a censura pode abrir espaço até mesmo para o poder de veto dos hipersensíveis. Mas ainda que não se chegue neste caso extremo, pode-se perceber que a mera ofensa abre um espaço preocupante para que seja permissível censurar até mesmo expressões que à primeira vista não apresentam nenhum problema maior para grande parte das pessoas. Ofensa objetiva

Uma maneira de superar as dificuldades levantadas em relação à tentativa de estabelecer a ofensa como limite legítimo à livre expressão é qualificar o raciocínio e defender um conceito objetivo de ofensa. Um argumento que siga essa linha diria que há certas ofensas que não direito & LIBERDADE

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dependem das reações subjetivas do receptor da mensagem para serem qualificadas como ofensas. Seria possível dizer que é ofensa objetiva toda expressão que é direcionada a um indivíduo ou a um grupo de pessoas com a clara intenção de causar desconforto emocional nesse indivíduo ou nesse grupo.

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O elemento subjetivo do receptor da mensagem serviria apenas para que uma ação judicial fosse iniciada contra o emissor da mensagem – ou seja, uma pessoa que seja vítima de ofensa objetiva, caso se sentisse muito incomodada, poderia entrar com uma ação contra o emissor da mensagem; o fato de o receptor da mensagem poder preferir não acionar a justiça contra o emissor não elimina a existência da ofensa, mas antes significa apenas que a pessoa titular do direito de ser ressarcido por ofensa resolveu não fazer valer esse direito judicialmente. Note-se ainda que esse argumento consegue se livrar da objeção de que basta que alguém se sinta ofendido para que a censura seja justificada, pois uma condição necessária para que a censura se justifique é haver ofensa objetiva.

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Esse argumento é sólido? Apesar de parecer mais plausível do que a sua versão desprovida de qualificações, penso que ao fim e ao cabo o argumento não seja bem-sucedido. O problema principal é que da existência de dano objetivo não se segue automaticamente que a punição estatal é justificada. Dito de outra forma, aceitar o conceito objetivo de ofensa não basta para que concluamos pela censura de uma dada expressão. Isso porque pode ser muito bem o caso de que a punição estatal por uma ofensa objetiva seja desproporcional ao suposto dano causado por tal ofensa. Para ver isso, considere o seguinte caso: Maria se desentendeu com João, seu namorado, e resolveu traí-lo para se vingar; ela teria ainda filmado toda a traição. No dia seguinte, ela conta a João que o traiu e que tem imagens para provar caso ele duvide, já que seu objetivo era fazer com que ele soubesse da traição. Considerando que João e Maria estão em um relacionamento monogâmico previamente acordado entre ambos, é plausível considerar que a própria traição constitui uma ofensa objetiva a João, que se comprometeu juntamente com Maria a não se relacionar com mais ninguém. Este comprometimento envolve, inevitavelmente, um alto nível de confiança. 130

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Relacionamentos afetivos monogâmicos são, entre outras coisas, uma forma de prometer fidelidade sexual à pessoa com quem se está relacionando; e promessas, por sua vez, significam que a pessoa está se comprometendo com a vulnerabilidade em relação à outra parte: se confio na promessa de que meu amigo irá me buscar no aeroporto, estou voluntariamente me tornando vulnerável à vontade dele. Cumprir promessas, dessa maneira, é um dever que emerge do próprio dever de respeito que se tem pelas pessoas que se colocaram em posição de vulnerabilidade diante da palavra de quem prometeu alguma coisa. Sendo assim, é razoável considerar que a traição de Maria é uma boa candidata para satisfazer a noção de ofensa objetiva. Ao mesmo tempo, contudo, consideraríamos que punir Maria judicialmente por sua traição seria algo claramente desproporcional. E isso sugere que haver uma ofensa objetiva não basta para que uma punição judicial esteja automaticamente justificada.

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Uma vez que parece plausível considerar que o mal da ofensa objetiva reside no fato de se descumprir o dever de respeito que temos à pessoa ofendida, parece igualmente plausível concluir que o exemplo hipotético de Maria e João constitui um contraexemplo efetivo à ideia de que a ofensa objetiva é suficiente para justificar uma punição estatal. Nem tudo que consideramos objetivamente imoral é passível de punição estatal, afinal. Portanto, não é necessário negar que possa haver tal coisa como uma ofensa objetiva de todo em todo. Em vez disso, basta levantar dúvidas sobre a razoabilidade de uma punição estatal em caso de ofensa objetiva; uma maneira de fazer isso é justamente se valer de casos em que parece haver ofensa objetiva e onde ao mesmo tempo uma punição estatal é descabida. Cabe, então, ao defensor da ideia de que a ofensa objetiva implica automaticamente a punição estatal apontar diferenças relevantes entre casos aparentemente similares em que o dever de respeito às pessoas foi violado por uma ofensa objetiva. A outra opção disponível é simplesmente conceder que tanto em um caso de uma expressão que constitui ofensa objetiva quanto no caso da traição de Maria uma punição estatal seria justificada. Este caminho, no entanto, parece muito pouco promissor. direito & LIBERDADE

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Uma estratégia mais facilmente disponível para um defensor do conceito objetivo de ofensa e que vale à pena examinar rapidamente é se valer da presunção contra a coerção para dizer que quem deve explicar o motivo pelo qual um ofensor não deve ser punido é o defensor da ampla liberdade de expressão. Isso porque, o argumento segue, a ofensa objetiva poderia ser considerada como uma forma de coerção (mais estritamente psicológica, presumivelmente). O problema é que o que é chamado de coerção no caso da ofensa parece possuir diferenças relevantes com o que é tipicamente considerado como coerção. O filósofo Robert Nozick (Cf. 1997, p. 16-17) reuniu o seguinte conjunto de condições a serem satisfeitas para que algo seja apropriadamente caracterizado como coerção: para que A coaja B, é necessário que 1) A almeje evitar que B pratique uma ação X, 2) A comunique alguma mensagem a B, 3) tal mensagem deve indicar que se B praticar X, A irá fazer algo que resulte em consequências que farão praticar X menos desejável do que se abster da prática, 4) a ameaça em questão deve ser crível para B, 5) B termina por não fazer X e 6) parte da razão para que B desista de fazer X se deve à tentativa de reduzir as chances de A tomar a medida que resultará nas consequências contidas em (3). Este conjunto de condições parece capturar bem a noção corrente de coerção. Se isso estiver correto, então é possível ver que a mera expressão de uma ofensa não satisfaz praticamente nenhuma condição, com exceção da segunda, visto que uma ofensa direta constitui uma espécie de comunicação entre o emissor da mensagem e o seu receptor. Por conta disso, este também não é um caminho promissor para o defensor da censura em casos de ofensas objetivas. 10 Em suma, apesar de o conceito de ofensa objetiva se livrar de boa parte das dificuldades presentes em um conceito mais subjetivista de ofensa, vimos que ele enfrenta uma série de dificuldades próprias. Portanto, até agora não temos ainda uma boa razão para pensar que a 10

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Em vez de alegar que a ofensa é uma espécie de coerção, o defensor da censura poderia dizer que ela se trata, em vez disso, de uma agressão. Como também parece intuitivo considerarmos haver uma presunção contra a agressão, o raciocínio segue, é o defensor da liberdade de dizer coisas ofensivas que deve uma justificativa. Este também não parece ser um argumento promissor, pois, ainda que se aceite que a ofensa seja uma espécie de agressão verbal, disso não segue que toda agressão verbal deve ser punida. O defensor da censura, portanto, deverá mostrar ainda que a agressão verbal é aproximadamente tão séria quanto uma agressão onde parece claramente proporcional uma punição judicial, como é o caso de uma agressão física típica, por exemplo.

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ofensa, seja em sua versão subjetiva ou em sua versão objetiva, constitua por si só um limite a priori legítimo para a liberdade de expressão. Discurso de ódio

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Muitos dos que aceitaram a defesa da ampla liberdade de expressão feita até aqui podem acabar receosos em permanecer do lado da livre expressão quando o assunto é discurso de ódio. O discurso de ódio é tipicamente entendido como qualquer discurso que busque denegrir um dado grupo através de mensagens que incitem ódio ou desprezo por este grupo com base em suas características comuns. Geralmente, o objeto de preocupação da discussão sobre o discurso de ódio são grupos encarados como minorias políticas que historicamente foram (ou ainda são, em alguns países) oprimidos no passado (geralmente recente) de uma dada sociedade. Assim, discursos racistas especialmente direcionados a negros no Brasil poderiam ser caracterizados como discurso de ódio, por exemplo.

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Logo de saída, é possível questionar qual exatamente seria o mal do discurso de ódio. Há mais de uma resposta possível para essa indagação. Uma possibilidade é dizer que o discurso de ódio tende a fazer com que terceiros se inclinem a enxergar pessoas de um grupo minoritário com maus olhos, podendo até mesmo despertar um ódio contra elas. Além de ser necessário oferecer evidências para sustentar essa alegação, é ainda misterioso saber o motivo pelo qual simplesmente sentir ódio é algo ruim o suficiente para se proibir discursos que busquem estimular esse tipo de sentimento. Aqui é possível responder que o ódio intenso por um grupo, quando compartilhado por um número suficientemente grande de pessoas, pode resultar em atos violentos contra as pessoas do grupo odiado. Contudo, não está claro por que motivo seria necessário passar leis específicas contra discurso de ódio quando temos à nossa disposição o próprio princípio do dano. Uma réplica que pode ser dada é que o discurso de ódio, via de regra, apresenta uma probabilidade excepcionalmente alta de gerar danos efetivos às pessoas de um dado grupo de tal modo que leis específicas para coibir e punir discursos de ódio estariam

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justificadas. Novamente, o problema crucial aqui é a falta de evidência empírica para sustentar a alegação.

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Recentemente, o filósofo do direito Jeremy Waldron, eu seu livro The harm in hate speech, fez uma defesa peculiar e bastante sofisticada do mal supostamente causado pelo discurso de ódio e de como leis o proibindo poderiam ser justificadas. Waldron começa por afirmar que a inclusão social é um tipo de bem público com o qual a sociedade está comprometida (Cf. WALDRON, 2012, p. 4). Tal inclusão implica que devemos assegurar que cada um possa viver sua vida sem enfrentar hostilidade, discriminação ou exclusão social. Waldron logo em seguida diz que o discurso de ódio enfraquece esse bem público da inclusão social, o que, segundo ele, representaria uma ameaça à paz social. Mais adiante, Waldron lança mão de um conceito central que permeia toda a sua tese: o conceito de “dignidade” (Cf. WALDRON, 2012, p. 5). Waldron recusa definições altamente abstratas de “dignidade”; em vez disso, ele procura uma definição tomada como mais concreta: a dignidade humana aqui seria um “firmamento social básico” que todos os indivíduos têm – cada indivíduo gozaria de uma igualdade de status moral e legal que deve ser respeitada e reforçada. Ele rejeita também a ideia de que o discurso de ódio é um mal pelo sentimento de ofensa gerado a um indivíduo. Em vez disso, o discurso de ódio, que ele define em seu livro como uma espécie de difamação de grupo, é um mal porque atenta contra o próprio firmamento social de certos grupos, passando a mensagem de que os membros desse grupo não são merecedores de igual pertencimento na sociedade (Cf. WALDRON, 2012, p. 39). Isso, por sua vez, poderia resultar não só em danos efetivos contra esses indivíduos como também em uma dificuldade de viver a vida normalmente em virtude de uma possível sensação de exclusão social (Cf. WALDRON, 2012, p. 33). Um outro elemento importante para a tese de Waldron é a noção rawlsiana de “sociedade bem ordenada”, que, segundo ele, é uma sociedade publicamente comprometida com os fundamentos mínimos da justiça. Waldron diz que a “aparência” de uma sociedade bem ordenada é importante (Cf. WALDRON, 2012, p. 39), seguindo adiante para afirmar que uma sociedade não poderia ser considerada bem ordenada se há pessoas advogando ódio racial ou religioso, por exemplo (Cf. WALDRON, 2012, p. 77-78), uma vez que essas coisas negam expressamente os 134

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próprios fundamentos da justiça em relação a um determinado grupo (Cf. WALDRON, 2012, p. 83). Nesse ponto, Waldron defende leis contra discurso de ódio como um componente importante para a aparência de uma sociedade bem ordenada, pois elas serviriam como maneira de “assegurar” publicamente que todos os cidadãos podem esperar serem tratados de maneira justa, cumprindo não apenas uma função meramente estética (Cf. WALDRON, 2012, p. 85).

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Há inúmeros problemas sérios com a argumentação de Waldron. Não tenho espaço aqui para tratar detalhadamente de todos os problemas, mas me aterei a três dos mais importantes. 11 Em primeiro lugar, Waldron parece pressupor que eventuais ataques à dignidade de indivíduos de um dado grupo socialmente mais vulnerável apresentam uma certa tendência de gerar um maior endosso social que não ocorreria caso esses ataques fossem proibidos por lei. Isso, no entanto, não está de maneira alguma claro, ao menos não nas democracias ocidentais contemporâneas, onde a tolerância à diversidade aumentou consistentemente do século passado para o presente. É necessário oferecer evidências empíricas para sustentar uma relação causal entre frequência de discurso de ódio e nível de intolerância social em relação a um dado grupo socialmente vulnerável – bem como é necessário fornecer evidências de uma relação causal entre a permissão legal de expressar discursos de ódio e aumento na frequência de danos efetivos a indivíduos de grupos vulneráveis –, coisa que Waldron não faz. 12 11 12

Para críticas mais extensas ao livro de Waldron, ver: ALLAN, 2013. Waldron menciona apenas en passant o problema da relação causal em diferentes partes do livro. Em uma primeira oportunidade, ele procura fazer uma analogia entre o discurso de ódio e a poluição ambiental de carros (2012, p. 96-97): “assim como não se pode concluir que é irrazoável exigir que todos os carros usem filtros em suas descargas apenas porque não se pode apontar para nenhum carro individual como causa de um ar tóxico, também não se pode concluir que é irrazoável exigir que o discurso de ódio seja barrado por lei apenas porque não se pode apontar para nenhum discurso de um indivíduo particular como causa de um ambiente tóxico para certos indivíduos de um dado grupo socialmente vulnerável”. Para Waldron, então, proibir preventivamente ações individuais de discurso de ódio serve para que tais ações não se acumulem a ponto de formar um ambiente que comprometa a dignidade dos indivíduos de grupos alvos de discurso de ódio. O problema central dessa analogia é que parece haver diferenças relevantes entre os dois casos: se por um lado estamos justificados a acreditar – por termos evidências independentes – que a conjunção de emissões individuais de poluentes tende a resultar em efeitos tóxicos no ar, de modo que permitir tais emissões provavelmente gerará tais efeitos, por outro lado não parece que estamos igualmente justificados a pensar que permitir eventuais discursos de ódio individuais provavelmente gerará um conjunto de discursos que torna o ambiente social tóxico a ponto de elevar a probabilidade de haver dano efetivo a indivíduos de

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Em segundo lugar, o argumento expressivista de Waldron não deixa claro como exatamente as leis contra o discurso de ódio solucionam ou reduzem significativamente as atitudes de pessoas que consideram que o status social de um dado grupo socialmente vulnerável deve ser reduzido, fazendo com que houvesse assim uma asseguração efetiva do status social de pessoas de grupos socialmente vulneráveis – de fato, as leis, supondo que fossem bem-sucedidas em seu objetivo de inibir a expressão pública de ódio contra determinados grupos vulneráveis, poderiam na verdade transmitir uma falsa sensação de seguridade. 13 Além disso, é importante salientar que o que foi dito até aqui sobre a posição de Waldron não deixa claro o motivo pelo qual é necessário haver especificamente leis contra o discurso de ódio como forma de expressar um comprometimento com os valores básicos de uma sociedade bem ordenada. Mesmo aceitando que o Estado deva ter algum papel na reafirmação do status social dos mais vulneráveis, há uma diversidade de maneiras pelas quais tal reafirmação pode ocorrer. É possível transmitir propagandas televisivas e mensagens oficiais em outdoors que expressam um comprometimento com a ideia de que todos possuem o mesmo status moral básico na sociedade, por exemplo. Por que preferir leis contra o discurso de ódio em vez de meios menos restritivos e menos coercivos?

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A resposta para a qual Waldron está inclinado é dizer que leis contra o discurso de ódio têm a vantagem de cumprir uma função dupla, que é a de expressar um comprometimento com os fundamentos de uma sociedade bem ordenada e ao mesmo tempo inibir atitudes negativas perante membros de grupos socialmente vulneráveis – afinal de contas, não importa apenas que o Estado demonstre comprometimento com os fundamentos de uma sociedade bem ordenada, mas também que os demais indivíduos da sociedade o façam. 14 E é nesse ponto que entra

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grupos socialmente mais vulneráveis; até onde sei, não há evidências independentes sólidas para sustentar uma alegação desse tipo. Já em uma segunda oportunidade, ao responder às objeções de Dworkin, Waldron expressamente se nega a tentar responder ao desafio consequencialista posto por Dworkin, se limitando a dizer que a impressão que ele tem é que os oponentes de leis contra o discurso de ódio parecem inverter o argumento, considerando que as alegações causais devem estar erradas porque a posição mais liberal a favor da livre expressão deve ser correta (2012, p. 176-177). Esse problema é explorado por ALLAN, 2013, p. 66-71. Com efeito, Waldron considera que as leis contra o discurso de ódio têm o objetivo de forçar os indivíduos a cumprirem a obrigação se abster de fazer algo que venha a enfraquecer ou

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Imunidade parlamentar e liberdade de expressão

o terceiro problema: não parece haver evidências empíricas sólidas que demonstrem que a existência de leis contra o discurso de ódio surte um efeito causalmente relevante para a redução de atitudes sociais negativas em relação a membros mais vulneráveis.

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Para ficar com alguns exemplos recentes, segundo dados da AntiDefamation League, uma ONG internacional que tem o objetivo de combater o antissemitismo ao redor do mundo, há países europeus que possuem leis duras contra o discurso de ódio e que, no entanto, apresentaram um aumento no nível de atitudes antissemitas de 2014 para 2015. As atitudes antissemitas na Holanda, por exemplo, saltaram de 5% para 11% em um ano. 15 Um aumento também foi observado no Reino Unido, onde houve um salto de 8% para 12%. 16 Já em outros países europeus, onde também há leis similares, houve uma queda nessas atitudes. A França, por exemplo, apresentou uma queda de 11%, indo de 27% para 16% entre 2014 e 2015. 17 A Bélgica, ao contrário da vizinha Holanda, apresentou uma queda de 27% para 21% no mesmo período. 18 Já a Espanha não apresentou nenhuma mudança significativa de um ano para o outro. 19 Tanto quanto se pode ver, não há, então, nenhuma correlação consistente observável entre a existência de leis contra o discurso de ódio e uma redução sistemática de atitudes antissemitas. É interessante notar ainda que os EUA, que são um país onde inexiste leis contra o discurso de ódio, possui um nível muito menor de antissemitismo do que a grande maioria dos países europeus. 20 Alternativamente, não parece haver nenhuma correlação positiva entre a ausência de leis contra o discurso de ódio e um aumento de atitudes negativas em relação a grupos socialmente vulneráveis. Os

dificultar a asseguração do igual status social de todos os indivíduos (WALDRON, 2012, p. 93-94). 15 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2014. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#country/netherlands/2014>. Acesso em: 30 set. 2016). 16 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2014. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#country/united-kingdom/2014>. Acessado em: 30 set. 2016. 17 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2014. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#country/france/2014>. Acesso em: 30 set. 2016). 18 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2014. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#country/belgium/2014>. Acesso em: 04 out. 2016). 19 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2014. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#country/spain/2014>. Acesso em: 04 out. 2016. 20 ANTI-DEFAMATION LEAGUE (ADL), 2016. The ADL GLOBAL 100. Disponível em: <http://global100.adl.org/#compare>. Acesso em: 04 out. 2016.

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EUA são notórios por serem um país que é historicamente radicalmente permissivo em relação à liberdade de expressão. No entanto, apesar de todo seu histórico de tensão racial, as atitudes racistas no país vêm caindo consistentemente com o passar dos anos. 21

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As evidências disponíveis, portanto, não permitem concluir com segurança que os efeitos benéficos anunciados por muitos (estando Waldron incluído) realmente ocorrem. Por outro lado, parece haver um problema preocupante sobre os efeitos negativos de leis de discurso de ódio. No Canadá, por exemplo, há tribunais administrativos (que são os encarregados primários de julgar casos de discurso de ódio), onde há uma taxa de 100% de condenação de réus acusados de discurso de ódio. Nesses tribunais, a verdade sequer serve como possível defesa (Cf. ALLAN, 2013, p. 72-74). A Austrália apresenta um problema parecido (Cf. ALLAN, 2013, p. 74-75). Casos como os do Canadá ou da Austrália, inclusive, servem para apontarmos um erro grave com as defesas de leis contra o discurso de ódio em geral e com a defesa de Waldron em particular: ao se propor uma lei restritiva, é necessário avaliar se os benefícios esperados da lei claramente superam os seus custos esperados. Dentro deste balanço deve se considerar a possibilidade de má utilização da lei e de excessos que podem abrir precedentes perigosos para outras censuras que consideraríamos inaceitáveis.

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O grande problema das defesas de leis contra o discurso de ódio é que elas carecem deste trabalho empírico fundamental. Em vez disso, os defensores de leis desse tipo tendem a se valer de argumentos com alto grau de abstração em condições altamente idealizadas e seguem adiante para aplicar as conclusões retiradas desse cenário ao mundo real, como se não fosse necessário realizar nenhuma análise empírica cuidadosa sobre coisas como efeitos colaterais negativos prováveis da aplicação de uma dada lei, por exemplo. Ainda que se aceite que o discurso de ódio seja uma ofensa grave à dignidade das pessoas, disso não se pode concluir tão prontamente que devemos instituir leis contra o discurso de ódio, pois pode muito bem ser o caso de que os 21 FIVETHIRTHYEIGHT. Attitudes Toward Racism And Inequality Are Shifting. Disponível em: <http://fivethirtyeight.com/datalab/attitudes-toward-racism-and-inequality-areshifting/>. Acesso em: 30 set. 2016. GALLUP. In U.S., 87% Approve of Black-White Marriage, vs. 4% in 1958. Disponível em: <http://www.gallup.com/poll/163697/approvemarriage-blacks-whites.aspx>. Acesso em: 30 set. 2016.

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custos esperados do funcionamento da lei no mundo real superem os benefícios esperados. Simplesmente anunciar uma série de benefícios esperados não é o suficiente; se queremos fazer uma defesa séria de uma lei, não podemos nos furtar de realizar trabalhos empíricos rigorosos quando for necessário.

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Sumário

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É importante notar que nada do que foi dito aqui significa que não há expressões caracterizadas como discurso de ódio que podem gerar danos efetivos a membros de grupos socialmente mais vulneráveis. É possível que certas expressões de ódio realmente apresentem um perigo real de dano iminente. Isso, no entanto, é algo que deve ser resolvido empiricamente caso a caso, sendo necessário mostrar uma conexão causal entre um discurso de ódio e um dano efetivo subsequente sofrido por um membro do grupo que foi vítima de tal discurso. O princípio milliano do dano já dá conta de cobrir essa possibilidade, não sendo necessário instituir leis que limitem a priori o que quer que se entenda por discurso de ódio – de fato, as evidências disponíveis sobre os saldos líquidos da aplicação dessas leis na prática não só não nos autorizam a concluir que elas promovem os benefícios anunciados como sugerem que elas no final das contas podem estar causando mais mal do que bem, levando a um aumento gradual no nível de censura indesejável.

O caso a favor da livre expressão consiste em dois passos: afirmar que há uma presunção moral contra a coerção e defender que a ampla liberdade de expressão tende a gerar consequências desejáveis, estando a busca pela verdade e o bom funcionamento da democracia entre elas. Isso não significa que a livre expressão deva ser absolutamente irrestrita. Um limite plausível é o conhecido princípio do dano esboçado por Mill: as pessoas não deveriam ser permitidas a expressar impunemente coisas que causem dano efetivo a terceiros. Alguns tentam estender o limite à livre expressão para que ele inclua ofensas diretas e objetivas e/ou o discurso de ódio. Sob uma análise cuidadosa, contudo, podemos perceber que os argumentos tipicamente oferecidos a favor dessa expansão de limites sofrem de diversas dificuldades sérias. A conclusão a que se chega aqui é que devemos caminhar na direção de direito & LIBERDADE

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assegurar uma ampla liberdade de expressão para civis, assim como asseguramos para parlamentares atualmente. CONCLUSÃO

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Desde os seus primórdios, o liberalismo tem como característica distintiva um elevado grau de ceticismo diante da autoridade estatal. Este ceticismo é primariamente motivado por uma noção comum a todas as correntes liberais, que é a ideia de liberdade individual: todos os indivíduos devem possuir uma ampla esfera de liberdade para perseguir seus projetos de vida, e, dentro dessa esfera legítima de ação, nem a sociedade e nem o Estado estariam moralmente autorizados a interferir forçosamente. A liberdade de expressão, presumivelmente, é uma das liberdades individuais que deveriam ser preservadas: as pessoas deveriam ser livres para dizer o que pensam e se manifestar como bem entenderem sem ter que sofrer sanções estatais por opiniões e manifestações que agentes políticos, por um motivo ou por outro, consideram meramente desagradáveis. O leitor mais atento deve ter percebido que, se o propósito deste artigo fosse apenas defender uma maior liberdade de expressão para a população em geral, boa parte do que foi dito aqui seria completamente dispensável: a discussão sobre a legitimidade da imunidade parlamentar não teria muita relevância, de modo que apenas a discussão apresentada na seção 3 seria suficiente. Contudo, o objetivo deste artigo não é apenas defender uma ampla liberdade de expressão, mas, sobretudo, mostrar que não é porque as democracias liberais contemporâneas conferem muito mais liberdade às pessoas que uma postura cética diante do Estado é descabida. É precisamente o espírito cético do liberalismo a motivação central deste artigo. Espero que tenha conseguido convencer os leitores não apenas da necessidade de ampliarmos a liberdade de expressão no Brasil, que ainda possui níveis notavelmente insatisfatórios, mas principalmente a manter vivo um olhar cético diante dos limites e privilégios que o Estado nos impõe. Se esse ceticismo for exercitado de modo rigoroso e retido, que é como deve ser feito, penso que as pessoas têm muito a ganhar, ainda que no final acabem concordando com certos limites à nossa liberdade. 140

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Imunidade parlamentar e liberdade de expressão

REFERÊNCIAS ALLAN, James. Hate speech law and disagreement. University of Queensland, 2013. BERLIN, Isaiah. Four essays on liberty. Oxford University Press, 1969. BRENNAN, Jason. When may we kill government agents? In defense of moral parity. Social Philosophy and Policy, Volume 32, Issue 2, 2016.

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CUNHA JR., Dirley. Curso de direito constitucional. Editora Juspodium, 2012. HUEMER, Michael. The problem of political authority: an examination of the right to coerce and the duty to obey. Palgrave Macmillan, 2013. MILL, John Stuart. On liberty. The Floating Press, 2009.

NOZICK, Robert. Socratic puzzles. Harvard University Press, 1997. SIMMONS, John A. Moral principles and political obligations. Princeton University Press, 1981. WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Harvard University Press, 2012.

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WARBURTON, Nigel. Free speech: a very short introduction (versão para Kindle). Oxford University Press, 2009.

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RASMUSSEN E UYL E OS PRINCÍPIOS ÉTICOS METANORMATIVOS: UMA TEORIA LIBERAL E NEOARISTOTÉLICA DOS DIREITOS OU UMA BASE PERFECCIONISTA PARA UMA POLÍTICA NÃO PERFECCIONISTA Mateus Bernardino1

O liberalismo não é uma doutrina ética ou uma bússola para orientar e medir o bem-estar individual ou comunitário. Na verdade, o liberalismo é uma doutrina política que surge a partir de necessidades sociais e filosóficas específicas e que possui um objetivo limitado e determinado – qual seja, o de assegurar uma ordem social pacífica e segura. No entanto, a estrutura profunda que o liberalismo escolheu para embasar essa percepção não tem conseguido sustentá-lo. E na verdade, ela o tem minado. Portanto, o que o liberalismo político precisa é de uma nova estrutura profunda (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 173).

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Quais são os princípios com base nos quais se logra estabelecer uma ordem político-jurídica cuja estrutura possibilite que diferentes indivíduos floresçam e cultivem a virtude de formas diferentes? Eis a questão central da filosofia política e do liberalismo, segundo Douglas Rasmussen e Douglas Uyl. Para os autores, a chave para solucionar o problema do liberalismo é a proteção da possibilidade de autodireção, uma vez que esse é o elemento mais crucial e comum a todas as formas concretas de florescimento humano. Em acordo com esse raciocínio, é possível conceber que o Direito Natural básico e negativo à liberdade – e seus corolários direitos à vida e à propriedade – é um princípio metanormativo, visto que ele protege a possibilidade de autodireção em um contexto tanto individual quanto social. É por esse motivo que a proteção da liberdade, enquanto princípio 1

Empresário e economist formado pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne.

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Mateus Bernardino

básico da filosofia política e do liberalismo, deveria ser o objetivo supremo da ordem político-jurídica e do ordenamento institucional.

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Reivindicando pertencimento à tradição aristotélica, esses autores sugerem então que a melhor maneira de solucionar o problema fundamental da filosofia política – similar ao problema teórico levantado pelo liberalismo – é conceder um lugar central às metanormas e dar primordialidade à ética pautada na viabilidade do perfeccionismo individualista. A base ética para o ordenamento político-jurídico é perfeccionista e neoaristotélica, pois, ao mesmo tempo em que aceita a pluralidade de florescimentos individuais e a riqueza de diferentes valores morais, respeita a autodireção e sugere apenas o necessário para que cada um possa buscar pessoalmente o aprimoramento individual e a autoperfeição. A Política, por sua vez, não é concebida como um objetivo perfeccionista, porque ela não instrumentaliza princípios e diretivas que visem à busca por um fim político superior. Ela não é concebida como ambiente em que as disputas deveriam pautar-se por uma ética normativa ou pela busca da institucionalização de padrões ideais de conduta com intuito de atingir uma sociedade ideal. A Política, em si, não tem por fim ou por tarefa normatizar uma concepção da virtude ou uma concepção do bem, algo que estaria assimilado em determinado padrão de conduta e que seria considerado o melhor caminho para o aprimoramento humano.

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Enquanto teoria política, o liberalismo clássico fundado nos direitos naturais, em vez de sugerir uma ética normativa – como frequentemente propõe a corrente liberal mais radical – ou de sugerir uma equivalência ou isenção da Ética diante das questões que regem o ordenamento institucional – como propõem frequentemente os liberais mais moderados e relativistas –, poderia privilegiar um caminho por meio do qual pautasse sua defesa por uma teoria política capaz de reinstaurar a liberdade como valor primordial e princípio ético metanormativo e fomentar um ordenamento jurídico-político respeitoso de toda a pluralidade e diversidade de florescimentos individuais. Neste pequeno capítulo, buscaremos apresentar mais detalhadamente essas questões e promover o estudo e a divulgação do livro Normas da liberdade: uma base perfeccionista para uma política não perfeccionista – um dos mais importantes ensaios sobre liberalismo e uma das mais notáveis contribuições liberais à filosofia política e à filosofia do direito 144

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Rasmussen e Uyl e os princípios éticos metanormativos

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dos últimos tempos. Inscritas na fronteira entre esses dois campos, as reflexões, os questionamentos e as sugestões dos autores são de importância expressiva para o pensamento liberal contemporâneo. Trata-se da exposição de uma teoria genuinamente original sobre o liberalismo político e de uma exploração da ética aplicada ao pensamento liberal. O LIBERALISMO, A ORDEM E O PROBLEMA DO LIBERALISMO Existe um sério problema com a doutrina liberal. Como justificar a organização política da sociedade com base em valores liberais se o fundamento do liberalismo como doutrina política está, precisamente, em negar legitimidade para a imposição de valores à sociedade pelo poder político? (RASMUSSEN; UYL, 2011, orelha do livro).

O liberalismo

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O adjetivo liberal, do latim liberalis, surge para dar significado àquilo que é relativo ao homem livre e a tudo que é digno dele. Da sua essência etimológica, tiramos a liberalidade (do latim liberalitas), ou seja, a disposição e tendência a ser amigável, a agir de maneira correta – aquele sentimento característico e maneira de pensar do homem livre. Tiramos também, do plural, as liberalidades (do latim liberalitates), expressão que dá significado aos donativos e doações feitas por um indivíduo liberal (generoso), atos pelos quais se confere, voluntariamente – e por motivos diversos como a afeição, gratidão, dedicação ou caridade –, vantagens, bens ou direitos a outrem. Percebemos que a conotação do termo liberal é fundamentalmente positiva desde sua essência etimológica, uma vez que ela se encaminha naturalmente à ideia de um homem disposto a perseguir alguns de seus objetivos mais nobres, inclusive o de ser generoso – aquele homem que tem prazer em ser prestativo, tolerante, honesto, bom. A própria liberdade, ensinou-nos Lord Acton (1907), não é apenas um meio para um fim político mais elevado – ela é o fim político mais elevado.

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Mateus Bernardino

A exigência da sua existência não se dá apenas em nome de uma boa administração da coisa pública, mas em nome da segurança da condição necessária para buscarmos as coisas mais elevadas da vida e da sociedade civil. Não por acaso, o liberalismo é definido como a doutrina inerente ao homem livre, aquela filosofia que busca uma sociedade de homens livres.

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Desde sua essência etimológica mais fundamental, o liberalismo está associado a algumas das coisas mais humanas e a características mais extraordinárias do homem – a liberdade e a possibilidade de empregar em excelência suas melhores faculdades físicas, éticas e cognitivas e o aprimoramento das virtudes morais (do grego arete – ἀρετή) em sua busca pessoal pela felicidade (do grego eudaimonia – εὐδαιμονία). A emergência do liberalismo político e filosófico é indissociável dessa percepção criteriosa do indivíduo. Inscrita nos tempos modernos, essa percepção é o reflexo de uma longa história e tradição de respeito pelo ser humano e de sua integridade física e moral contra todo e qualquer atentado trazido pela violência, pela guerra ou pela espoliação. A emergência do liberalismo moderno se confunde também com a história da promoção dos Direitos Humanos, regras que instauraram a liberdade e a propriedade entre as maiores prioridades – e condição – para uma ordem pacífica e uma sociedade virtuosa.

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Temos, de um lado, uma essência moral, filosófica e política focada na percepção e valorização do homem enquanto indivíduo naturalmente livre e, de outro, uma essência normativa, legal ou institucional focada no estudo das regras, viabilizando a conduta de um homem livre e uma sociedade viável de homens livres. Percebemos, então, que o liberalismo é um campo propício para a confusão entre o que diz respeito à Ética, à Política e ao Direito. De fato, alguns dos maiores erros que cometem tanto os defensores quanto os detratores do liberalismo têm origem na confusão em apreender o que ele releva efetivamente de cada matéria ou campo de estudo e na dificuldade em descrever, na teoria e na prática, o que é o liberalismo e o que ele busca verdadeira e objetivamente. Da mesma maneira que nossos autores fizeram, façamos, então, uma breve incursão recapitulativa com intuito de esclarecer, introdutoriamente, o que entendemos por cada uma dessas coisas. Nosso intuito é assentar as bases para o entendimento do problema central da filosofia política – e do 146

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Rasmussen e Uyl e os princípios éticos metanormativos

liberalismo – e a maneira que Rasmussen e Uyl buscaram fundamentar conceitualmente sua solução. Liberalismo, Ética e Ordem Política

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Em primeiro lugar, o liberalismo não se confunde perfeitamente com a Ética. Ele não busca entender qual o conjunto de comportamentos, hábitos ou ações um homem virtuoso empreende. O liberalismo não é, muito menos, uma ética normativa. Ele não tem por interesse estatuar como deve alguém agir caso queira empreender uma vida boa. O liberalismo não é uma filosofia ética e a promoção de valores liberais dificilmente se qualificaria como a finalização de um processo de instrução moral. Enquanto doutrina político-filosófica, o liberalismo conserva invariavelmente uma essência moral associada aos seus valores fundamentais. Essa essência está diretamente interligada a uma essência legal associada às normas, fomentando um ordenamento jurídico-político e garantindo a possibilidade de uma sociedade de homens livres. Isso é o conceito ético que entendemos hoje em dia por direitos individuais.

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No entanto, o liberalismo não pretende dar luz forçosamente a um sistema equinormativo, a saber, um lugar onde todas as normas justificadas formal e informalmente e que regem a conduta em sociedade têm status de regras morais. Quando tratamos o liberalismo como uma teoria ética equinormativa – como acontece em boa parte dos pleitos de defensores e detratores do liberalismo –, perdemos um elemento essencialmente importante do liberalismo – sua alegação de que a atuação do Estado para regulamentar, direcionar ou promover a (determinada) conduta moral é inepta ou inadequada. Quando não concebemos o liberalismo como um sistema equinormativo, nenhum conjunto específico de valores morais é preciso ser imposto, embora alguns valores possam ser excluídos e várias classes e conjuntos de valores possam ser mais funcionais que outros, dependendo das circunstâncias. Em outras palavras, o liberalismo não foi projetado para promover, preservar ou implicar uma forma de florescimento em detrimento de outra. Ele busca a ordem social, potencializando a possibilidade da conduta ética em toda sua diversidade.

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Em segundo lugar e diretamente associado ao que acabamos de dizer, o liberalismo não se confunde perfeitamente com o Direito, assim como o Direito não se confunde perfeitamente com a Ética. O liberalismo não pretende saber resolver adequadamente as diversas e mais variadas questões de jurisprudência e envolvendo desacordos entre inúmeros agentes. O liberalismo não busca aportar um extensivo código de regras, instaurando desde a natureza das penas até as sentenças em função dos crimes cometidos para todos os conflitos de sociedade. No entanto, naturalmente, o conceito ético dos direitos subentende, com certeza, a instauração de um determinado código de normas regendo parte da conduta em sociedade. De um lado o liberalismo procura, então, algum objetivo institucional e de jurisprudência, sem se confundir com tudo o que rege as questões de justiça. Tudo não é considerado justo, legal ou proibido em função de ser liberal (distinção entre o Direito e o liberalismo). De outro lado, e mais importante que isso, os direitos individuais não são também um conceito ético com natureza normativa ou valores e normas buscando guiar na direção da conquista de uma excelência moral.

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Diferentemente das virtudes morais, os direitos individuais não levam aos indivíduos nenhuma informação moral precisa. Também não lhes fornecem indicação alguma quanto às escolhas supostamente convenientes em sua busca pessoal pela perfeição moral. O Direito, de seu lado, organiza mais extensivamente os planos de normas e sanções, não tendo forçosamente apelo a determinadas indicações ou sugestões de natureza moral (distinção entre o Direito e a Ética). Obviamente, toda ordem jurídica é necessariamente assentada sobre princípios (éticos) que, eles mesmos, devem estar ancorados em outros princípios normativos, indispensáveis para que um mínimo de autonomia seja conferida aos indivíduos. Por isso mesmo, é um erro acreditar que poderíamos tornar o Direito inteiramente independente da Moral. Contudo, é igualmente inaceitável trazer ao mesmo nível os conceitos morais que sustentam o sistema jurídico de uma cidade (polis) e aqueles que têm por função ajudar os indivíduos a se guiar na conduta de sua vida quotidiana. Nem o liberalismo é o Direito e nem todo o Direito se confunde com uma ética normativa. Os direitos expressam um tipo de princípio moral, que deve prevalecer se quisermos conciliar nossa sociabilidade 148

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Rasmussen e Uyl e os princípios éticos metanormativos

natural com diversas formas diferentes de florescimento. Os direitos são um tipo de guia que serve para definir, interpretar ou avaliar os sistemas político-jurídicos de acordo e conforme os indivíduos estejam protegidos contra o risco de serem utilizados por outros para fins aos quais eles não consentiram.

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A noção de direitos serve para determinar, fundamentalmente, o que poderia ser a lei e não o que ela é em sua ampla totalidade. Ela fornece apenas uma base normativa fundamental de uma ordem legal. O termo direitos descreve o que entendemos geralmente pelo conceito dos direitos humanos. Ele faz certamente referência a um conceito ético, mas envolve direitos cuja função primordial impede que sejam assimilados aos outros conceitos éticos habituais. Eles são diferentes. Eles ocupam um lugar verdadeiramente particular. Esses direitos são princípios metanormativos. Seu papel é garantir que seja colocado em prática um contexto político que proteja o princípio de autonomia, autodireção ou autodeterminação dos indivíduos de tal forma que lhes seja garantida a fruição de uma liberdade sem a qual ninguém seria sequer capaz de pretender atingir a felicidade moral. O liberalismo, então, é essencialmente uma filosofia política de metanormas.

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Em terceiro lugar, o liberalismo é uma teoria política. Devemos compreender que o objetivo da Política não é forçosamente o mesmo objetivo da Ética ou do Direito. O liberalismo, enquanto teoria política, almeja elaborar um pano de fundo legal sobre o qual seja permitido que os indivíduos possam perseguir sua própria concepção pessoal da felicidade. Possam também agir em acordo com a necessidade que eles têm de permanecer abertos às interações com quaisquer outros indivíduos que desejem e em função de sua própria maneira de encarar o universo e seus objetivos de aprimoramento pessoal. Logo, o liberalismo não presume que a sociabilidade natural do indivíduo o impeça de criar laços com aqueles que não pertencem a sua comunidade. O liberalismo vê na pluralidade de valores e de comportamentos uma possibilidade para o enriquecimento material e moral do homem. A verdadeira singularidade do liberalismo como doutrina social reside no esforço em distinguir, o quanto possível, a Política da Moralidade, da mesma forma que separou a Moralidade da Teologia ou a Teologia da Política.

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Quando se usa a Política para promover normas éticas ou modos particulares de florescimento, comete-se um erro similar ao se tentar fazer da Política a chave para compreender Deus ou a Religião. O liberalismo está projetado para transcender a competição entre quadros metanormativos ou ideais políticos de mundo perfeito. A solução metanormativa interrompe, portanto, a discussão a respeito de se o liberalismo é ou não uma filosofia ética adequada, ao sugerir não só que não é uma filosofia ética per se como também que, quando a Política é usada como veículo para regular a conduta ética, é natureza da Política implicar uma forma de florescimento em detrimento de outras. O que o liberalismo apresenta, ao contrário, é uma doutrina que separa a Política da Ética o tanto quanto possível e sem cair no relativismo, niilismo ou historicismo. Segundo Douglas Rasmussen e Douglas Uyl (2011, p.72-80), o erro em compreender todas essas questões e distinções conduz frequentemente às críticas equivocadas e veiculações associando o liberalismo ao relativismo, minimalismo, emotivismo, ceticismo, atomismo, universalismo e materialismo. O liberalismo é uma doutrina política que se desenvolve a partir de necessidades sociais e filosóficas específicas e que tem, por consequência, um objetivo limitado e específico.

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Apesar de ligarmos o liberalismo a um quadro filosófico mais amplo, ele não é uma filosofia de vida. Supor que é, como muitos defensores do liberalismo fizeram e têm feito, não é apenas uma compreensão equivocada do liberalismo, mas contribui ativamente para miná-lo. Sob muitos aspectos, de acordo com nossos autores, estabelecer uma conexão estreita entre o Direito, a Política e a Moral é um dos erros mais comuns e prejudiciais no modo de conceber o liberalismo. Esse erro é cometido tanto por seus críticos quanto por seus defensores. O procedimento liberal típico, geralmente, não era distinguir Política de Moral – o que seria correto –, mas definir o moralmente bom de forma consistente com a política liberal. Frequentemente, isso tinha por consequência a redução da Moral a versões idealizadas de cooperação. Ou seja, uma vez que se busca envolver o mínimo do Estado na vida das pessoas, a esfera da Moral no liberalismo deve ser ou minimizada, para que haja uma congruência substancial entre a moralidade e a Política, ou ignorada, para que tudo que diga respeito à Moral seja objeto de outras prioridades ou ciências. 150

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Rasmussen e Uyl e os princípios éticos metanormativos

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Vemos isso frequentemente ainda hoje nos pretenciosos pleitos por um radicalismo liberal jusnaturalista. A ênfase na liberdade em um arcabouço tradicional, que junta Política e Moral, gera fortes tendências no liberalismo a reduzir a moralidade aos direitos e a confundir o Direito, a Política e a Ética. Os direitos relacionados à conduta, à tolerância, à abertura mental e a outras virtudes liberais estão implicados e envolvidos em uma ética de voluntarismo e cooperação, mas acabaram, infelizmente, identificados com a Moral como um todo. O resultado de distinguir mal o trabalho da Moral daquele da Política resultou no que Rasmussen e Uyl denominaram dilema do liberalismo – uma tendência ao empobrecimento da moralidade e à trivialização dos direitos. Perspectiva conceitual e o problema do liberalismo

Diferentemente de muitos liberais, que, talvez por dificuldade em buscar um maior enriquecimento em outras tradições intelectuais, defendem sua visão da Política recorrendo à equinormatividade, ao ceticismo moral ou minimalismo ético, Rasmussen e Uyl empregam uma distinção entre princípios metanormativos e normativos como elemento fundamental para apreender o problema central do liberalismo e da filosofia política.

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Algumas normas podem regular as condições em que a conduta moral pode ocorrer, enquanto que outras são mais diretamente prescritivas da conduta moral em si. À luz dessa possibilidade, acreditamos não ser apropriado afirmar que o liberalismo é uma filosofia política normativa no sentido comum. É antes uma filosofia política de metanormas. Não procura guiar a conduta individual na atividade moral, mas regular de forma a que as condições possam ser obtidas onde a ação moral pode ocorrer. Contrastar o liberalismo diretamente com sistemas éticos ou valores alternativos é, portanto um erro-de-categoria (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 67).

Para situar melhor as diferenças de perspectivas conceituais de nossos autores e de outras tradições de abordagem da Política e da Ética, cabe uma representação esquemática e comparativa, apresentada no Quadro 1, que nos ajudará a classificar seus principais elementos.

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Quadro 1 – Abordagens à Ética e à Política Ética Antiga Política Moderna (Spinoza)

Ética Moderna Política Antiga (Rousseau)

Ética Moderna Política Moderna (Locke, Kant, Mill)

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Ética Antiga Política Antiga (Platão e Aristóteles)

Fonte: Elaboração dos autores com base em Rasmussen e Uyl (1991).

A teoria ética antiga se caracteriza pela centralidade da virtude e pela ideia de que o problema crucial da vida moral é o da compreensão do bem e de como alcançá-lo. Ela frequentemente emprega a linguagem do florescimento ou da autoperfeição e tende a conceber a humanidade e os dilemas éticos, que se apresentam aos homens de maneira idealizada e estilizada, como um problema universalizável e comum, deixando as virtudes morais alheias a determinadas esferas de individualidade. O homem genérico dotado de determinada essência ontológica confronta dilemas morais e seus dilemas são transponíveis a praticamente todos os homens. Essa teoria ética antiga é perfeccionista. Poderíamos relacioná-la à concepção aristotélica da moral.

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A teoria política antiga apresenta a promoção da virtude ou do bem como um dos objetivos políticos centrais. A polis composta por homens virtuosos seria aquela que soubesse se utilizar da ferramenta política para alinhar os códigos de conduta política e a própria conduta social às virtudes humanas mais notórias. A visão política é, também, consequentemente, perfeccionista, pois busca uma excelência moral humana através da politização e institucionalização das questões éticas. A teoria ética moderna, em contraste, é definida em termos das relações e obrigações que uma pessoa contrai com a outra. Ela se esquiva em qualquer escala das questões de aperfeiçoamento individual e de autoperfeição. Ela não é, portanto, perfeccionista. A moralidade se associa ao que diz respeito à natureza das relações entre os indivíduos, às suas esferas de liberdade, às regras oriundas da razão e que conseguem estabelecer um ambiente social respeitoso dessas esferas individuais de liberdade. 152

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Em outra esfera, a teoria política moderna se preocupa com o alcance da liberdade individual, uma vez que nossas obrigações têm alguma coisa a ver com a natureza e com o alcance das liberdades que desfrutamos, em função da maneira que exercemos nossa sociabilidade e que qualificamos a natureza de nossas relações. Em outras palavras, a moderna teoria política também se esquiva em alguma escala de questões ligadas à autoperfeição dos homens. Ela não é perfeccionista e se interessa apenas na promoção daquele quadro de normas que potencializa as relações humanas moralmente aceitáveis. Os liberais geralmente se situam naquele quadrante inferior direito de nossa representação esquemática. A abordagem proposta por Rasmussen e Uyl (2011, p. 40-45), em contraste, se situa naquela identificada logo acima daquela dos liberais, no quadrante direito superior e sugerindo Spinoza como autor de referência. Nossos autores consideram que Spinoza foi um dos pensadores que melhor entendeu o problema essencial da filosofia política – problema em que se deve separar o quanto possível a Política das questões da ética normativa. Eles buscam uma assimilação da visão política liberal a uma base ética antiga, porque o liberalismo encontraria melhor morada nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que se mostraria mais defensável ou menos vulnerável do que naquela perspectiva apontada em seu quadrante tradicional.

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O arcabouço sugerido propõe um ponto de vista que proporciona uma moral robusta e associada à ética neoaristotélica. O prefixo neo distingue os trabalhos contemporâneos de diversos filósofos e, no caso de nossos autores, busca identificar e enfatizar uma distinção associada a maior tomada em consideração do aspecto individualizado do florescimento individual e da importância da autodireção do indivíduo, suas particularidades, sua intuição, sua razão prática (do grego phronesis – φρόνησις), suas experiências, as circunstâncias pessoais específicas e do ambiente onde toma suas decisões, os dilemas e problemas concretos que encontra em sua busca pelo aperfeiçoamento moral e felicidade. Nossa investigação sugere, então, uma base ética (antiga) perfeccionista para uma política (moderna) não perfeccionista. Em resumo, se admitirmos uma base ética perfeccionista em uma política não perfeccionista, chegamos ao problema central da filosofia política e do liberalismo – quais os princípios com base nos quais se logra estabelecer uma

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ordem político-jurídica cuja estrutura permita a possibilidade de diferentes indivíduos florescerem e cultivarem a virtude de formas diferentes? Qual a base ética para essa estrutura político-jurídica? De que maneira a estrutura proporcionada pela ordem político-jurídica regerá uma ordem social valorando a pluralidade e a individualidade? Como pode o universalismo de princípios estruturais político-jurídicos se harmonizar com o pluralismo e a autodireção requeridas pelo florescimento humano?

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Segundo Rasmussen e Uyl (2011, p. 403), o problema do liberalismo surge então de considerações em torno da natureza, do caráter e das exigências do florescimento humano. Ele se assenta sobre como a filosofia política conceberia uma teoria na qual a ordem social pluralista em termos éticos não fosse subjugada por uma política fundada em uma ética normativa. A resposta a essas perguntas, para nossos autores, sugere uma investigação da ética aristotélica do florescimento individual. A ÉTICA DO FLORESCIMENTO HUMANO

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A autoperfeição, para nossos autores e de acordo com a tradição da filosofia perfeccionista, é o bem e o objetivo de todo e qualquer ser humano. A felicidade moral do homem ou o florescimento humano, como dizem os filósofos, é o produto de escolhas individuais que implicam necessariamente uma dimensão dupla, ao mesmo tempo contingente e particular. Contingente, porque o florescimento humano subentende os desafios e as escolhas que se apresentam aos homens em períodos precisos e em circunstâncias e ambientes particulares, em um universo onde o tempo é mensurado em continuidade ininterrupta. Particular, porque a própria noção de florescimento não faz sentido fora da esfera de individualidade e da aceitação da heterogeneidade de florescimentos individuais. Como nossa humanidade não é um universal disforme e indiferenciado, o florescimento humano não possui caráter abstrato e universal. Todo conhecimento sobre as virtudes humanas – e o que seria a verdadeira felicidade humana – fornece-nos talvez indicações abstratas e gerais sobre o que nós deveríamos fazer, em princípio, sobre os valores superiores e vícios. A Filosofia é, dessa sorte, uma ferramenta considerável para 154

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a compreensão das questões éticas. No entanto, no mundo concreto, que é o nosso, e nos eventos que ocorrem em nossas vidas quotidianas, não é a Filosofia que, do alto de sua cátedra, poderia determinar e afirmar de maneira específica e categórica o que nós devemos fazer a cada instante, no plano material e moral, enquanto indivíduos, para atingir a felicidade.

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Existe uma distância entre o bem considerado de maneira universalizável e o bem dentro da conduta humana específica e circunstancial quotidiana. Qual tipo de profissão deveríamos exercer? Qual forma de educação valeria mais adquirirmos? Qual casa deveríamos comprar? Quais tipos de cuidados medicinais escolher? Quem são as pessoas que verdadeiramente poderíamos considerar como amigos? O que deveríamos considerar como bens no sentido das coisas e objetos que nos conduzem efetivamente em direção de nossa autoperfeição? Em qual ordem, em quais proporções e com qual intensidade esses bens necessários ao nosso florescimento deveriam ser organizados, hierarquizados e buscados? Em qual proporção dispor de um desses bens e como isso nos impediria de adquirir e realizar outros? Qual seria a combinação ideal de bens? Qual seria o cesto ideal (daqueles bens) a ser buscado mais do que qualquer outro? Como esses bens poderiam ser aplicados em nossas vidas quotidianas e de forma a que atinjamos a autoperfeição?

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Eis aí o tipo de questões que não podemos responder independentemente do conhecimento das circunstâncias particulares e únicas vivenciadas por cada indivíduo. São questões cuja natureza requer o tratamento por espíritos individuais, autônomos e relativamente independentes. As ponderações e medidas acertadas em virtudes que as decisões que buscam a autoperfeição exigem não são dissociáveis da razão aplicada. Os bens genéricos que constituem o florescimento humano só se tornam reais, determinados e valiosos, quando recebem formas particulares dadas pelas escolhas feitas por essas pessoas de carne e osso.

O florescimento humano não somente é alcançado e usufruído por indivíduos, mas ele próprio é individualmente realizado. Existe uma condição de individualidade no florescimento. Apenas o que os filósofos denominam razão prática (phronesis) poderia permitir identificar, avaliar, integrar e quantificar o conjunto desses bens humanos de base necessários à realização de uma boa vida. A concepção de nossos autores do florescimento além de tomar a autoperfeição como objetivo dos homens admite direito & LIBERDADE

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como verdade o que sugere o primeiro princípio da razão prática, que encontramos desde a tradição tomista, ou seja, de que o bem deve ser feito e o mal deve ser evitado. O bem aqui deveria ser entendido como tudo aquilo que contribui para o autoaperfeiçoamento dos homens.

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Embora existam virtudes e bens genéricos que definam o florescimento humano através do prisma das virtudes e para todo e qualquer homem, o florescimento é, como dissemos, na realidade concreta, individualizado. Isso significa que a procura pela felicidade humana, em termos de ações concretas e adaptadas às circunstâncias específicas, varia necessariamente de uma pessoa para outra, em função do momento, das necessidades, do entendimento do bem, dos objetivos e das experiências de cada um. É normal que a busca de certos valores conte mais para algumas pessoas e menos para outras. Não se pretende por isso dizer que todos os bens têm o mesmo valor. No entanto, determinar a estratégia de resposta adaptada para cada situação confrontada por cada um é, por definição, tudo o que encarna e expressa a própria essência moral do homem. A ética do florescimento, assim concebida, é uma versão do pluralismo moral.

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Apesar do caráter individualizado do florescimento, ele não é estritamente atomista, mas altamente social. A autoperfeição não é uma busca solitária. Nosso amadurecimento e nossa maturidade exigem que vivamos com outras pessoas. Não conseguimos florescer sem as sociedades e as comunidades nas quais há possibilidade de partilharmos valores, experiências e conhecimentos. Seres humanos são animais sociais. A amizade (do grego, philia – φιλíα) é qualquer coisa de fundamental para a felicidade. Para Rasmussen e Uyl (2011, p. 136-137), ao contrário do que poderia sugerir uma visão aristotélica tradicional, a sociabilidade humana não precisa se confinar em um grupo ou conjunto seleto de seres humanos – o caráter aberto da sociabilidade humana é bastante importante. Ele revela a necessidade de uma perspectiva ampla o suficiente para explicar e assegurar a relação entre pessoas que mantêm valores morais por vezes bastante diferentes. O caráter aberto da sociabilidade humana demanda, portanto, uma ética que veja o florescimento humano como algo sempre vivido em 156

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alguma comunidade e cultura, algo que examine as questões relativas ao caráter apropriado das ordens político-jurídicas. Isso solicita uma ética do florescimento que atente para a questão de se encontrar um arcabouço jurídico-político que, ao mesmo tempo, seja compatível com a adequação moral do individualismo e ainda assim se baseie em algo que possa ser mutuamente valioso para todos os envolvidos. A visão do florescimento humano de nossos autores nos conduz, então, logicamente, a uma concepção pluralista dos valores. Concebemos o florescimento humano como algo objetivo, inclusivo, individualizado, relativo ao agente, autodirigido e social. O bem é percebido como qualquer coisa real (objetivo). Mesmo se ao nível concreto, para os indivíduos, existe uma infinidade de maneiras de florescer sua humanidade, por trás dessa pluralidade de formas existe um elemento comum essencial. Esse elemento comum é o próprio conceito de razão prática que apontamos e que se expressaria, de outra forma, por meio da ideia de autonomia e de autodireção.

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Utilizar a razão e aplicar a inteligência moral não depende unicamente de funções automáticas ou unicamente instintivas. É uma faculdade que só pode ser iniciada e mantida pela própria vontade individual, através da liberdade para exercer sua autonomia. Disso resulta que a autonomia individual ou o autogoverno do indivíduo é uma qualidade e uma faculdade que toca a própria essência do conceito de florescimento e que não pode dele ser, logicamente, dissociada. Ela é parte de seu caráter essencialmente plural, e por consequência, necessariamente presente em toda forma de afloramento individual. Entretanto, não é possível falar em aperfeiçoamento pessoal se o homem não pode se autogovernar. O autogoverno da pessoa é uma característica necessariamente presente em todo ato da vida humana visando a busca pela perfeição. Contudo, a faculdade de autogoverno não é suficiente para que o indivíduo atinja o ideal moral de autoperfeição. Evidentemente, isso não significa que toda escolha individual vale tanto quanto qualquer outra, mas simplesmente que toda escolha só pode, por definição, ser o produto de uma decisão pessoal, implicando a tomada em consideração das informações e dos fatos específicos e únicos à pessoa que está em questão, quem toma determinada decisão. direito & LIBERDADE

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O bem de um não pode ser trocado pelo bem de outro. O que é bom para mim não é, ou pode não ser, o que é bom para você. O bem-estar do homem é um conceito moral que corresponde a um objeto real e a um valor objetivo. Trata-se de algo produzido pela vontade autônoma e por algo altamente pessoal, que é sua razão prática. Não é qualquer coisa que possamos definir de maneira abstrata, ao nível impessoal e coletivo. Não existe artifício ético algum de natureza normativa – ou receita de conduta boa – que possa resolver o problema central da filosofia política e do liberalismo que acabamos de ver mais acima. Esse último ponto é essencial, pois nos fornece, de fato, a chave para decifrar o que é a verdadeira e única função moral dos direitos para Rasmussen e Uyl. Segundo nossos autores, a própria natureza dos direitos, ou sua essência, é assegurar a proteção das condições para que se possa haver o aperfeiçoamento e a autoperfeição pessoais. De toda evidência, poder se beneficiar da presença de tais condições é um pré-requisito para todo ato individual que visa a busca pela perfeição. Esse pré-requisito está ancorado naturalmente nos direitos e acreditamos que ele só pode ter um caráter puramente negativo.

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Se não fosse o caso, isso significaria dizer que poderíamos diretamente garantir a cada um alguma espécie de direito positivo à perfeição pessoal, o que não teria sentido algum dentro de nossa percepção do problema da filosofia política. A única coisa que seria logicamente possível, que seria compatível com todas as outras proposições formuladas pela teoria de nossos autores, é fazer vigilância para impedir tudo que possa comprometer a presença da condição de autonomia – tão necessária para que seja possível atingir aquele objetivo de aperfeiçoamento pessoal. O problema central em nossa busca pelos princípios políticojurídicos de uma sociedade de homens livres é proteger a possibilidade de autoperfeição, mas unicamente assegurando a proteção da faculdade pessoal de autogestão. A necessidade de um princípio metanormativo A ameaça mais comum à autonomia individual e à autogestão é aquela que vem do uso da força por indivíduos isolados ou em grupo, 158

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colocando assim os homens uns contra os outros. Disso decorre a necessidade de um princípio que garanta a cada pessoa a disposição do que os liberais geralmente descrevem como um espaço moral, uma esfera protegida de liberdade onde cada um pode perseguir em autonomia suas atividades – reciprocamente não violadoras das disposições dos espaços alheios – e sem temer a interferência violenta dos outros, mutuamente. Tal é o papel e a função prática dos direitos – servir para responder a essa necessidade.

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Além do aspecto natural e ontológico da ética dos direitos, nossa abordagem teórica nos conduz à centralidade dos fundamentos da noção de direitos enquanto necessidade de oferecer às pessoas um quadro político e jurídico que proteja sua faculdade de autogestão individual ou sua esfera moral de individualidade e autonomia. Nesse ponto, cabem alguns questionamentos. Por que a autogestão individual deveria ser a única condição que deveríamos garantir? Não existiriam muitos outros fatores igualmente necessários para que houvesse possibilidade de autoperfeição e de aperfeiçoamento humanos e que deveriam, consequentemente, ser defendidos? Por que a proteção desses fatores ressairia puramente de disciplinas da ordem política ou jurídica e não apenas de restrições éticas e morais? Por que deveríamos nos limitar a considerar os direitos – ou conceito de direitos individuais – como princípios que devam remeter a uma ordem e estrutura política ou jurídica? Não deveria o papel dos direitos individuais ser mais extenso do que encaminhar simplesmente à defesa do princípio de autonomia individual? Por que limitar sua função a um papel de princípio metanormativo? O que é objetivamente isso que denominamos princípio metanormativo? Que características e propriedades encontramos nesses princípios metanormativos? Por que valores como a igualdade, a virtude, o sucesso ou os bens tangíveis, como o dinheiro, não se enquadram nessa categoria? Por que apenas o direito natural à liberdade deveria ser considerado legitimamente do ponto de vista de uma base ética metanormativa? Para responder essas questões, devemos nos remeter ao caráter individualizado do florescimento humano que acabamos de apresentar. É ele quem cria a necessidade de conceber uma distinção entre determinados princípios éticos (metanormativos) e os outros (bens conduzindo a uma vida boa), ou seja, algo adaptado ao fato de que o bem-estar

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moral dos seres humanos é algo que só pode ser atingido em relação com outros homens (em cooperação com outros homens) e, ao mesmo tempo, pessoalmente, em função de sua individualidade e das circunstâncias e desafios que se apresentam diante de si.

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Uma análise mais rigorosa nos conduz à conclusão de que, para poder sustentar aquela visão de florescimento que acabamos de apresentar, a base ética para o problema do liberalismo deve preencher as seguintes condições interrelacionadas (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 404): (a) não deve predispor, estruturalmente, o contexto global a favorecer determinadas formas de florescimento – deve respeitar a adequação moral do individualismo; (b) deve ser universal ou – para evitar o termo – uniformemente aplicável a todas as formas de florescimento – deve ser social e compatível com a sociedade aberta (hayekiana) e com o ambiente cosmopolita de nossas cidades; (c) deve estar presente concretamente em todas as formas de autoperfeição – ou deve estar embasada em algum elemento crítico comum que perpassa toda forma de (busca pela) autoperfeição; (d) deve apelar a algum aspecto da autoperfeição no qual todas as pessoas possuam interesse necessário; (e) deve reconhecer a obrigação ética que os indivíduos têm de buscar alcançar sua própria forma de florescimento; (f) suas exigências (metanormativas) à conduta humana devem ser de tal tipo que, em princípio, todos os seres humanos possam cumprir. Fica então evidente que nenhuma dessas condições nos sugere uma base ética normativa ou uma norma ética que ofereça orientação para indivíduos que buscam a autoperfeição. Pelo contrário, “elas constituem (apenas) a base para um princípio ético que regule a conduta de forma a estabelecer condições que assegurem e mantenham a possibilidade de indivíduos buscarem suas próprias formas de autoperfeição” (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 405). Esse princípio ético não é utilizado para guiar a conduta na busca da autoperfeição, uma vez que ele não consegue incorporar situações e desafios particulares, questões de ordem cultural ou associadas aos costumes locais ou comunitários. Esse princípio ético é transcultural, transpessoal e universal. Essas condições (a)-(f) constituem a base para uma metanorma ética. Princípios éticos que preenchem essas condições 160

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são princípios metanormativos. A solução para o problema do liberalismo requer, objetivamente, um princípio metanormativo.

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Nos resta agora entender melhor qual a verdadeira base ética que sustentará nosso princípio metanormativo e quais os princípios que deveríamos descartar, tendo em vista nosso propósito teórico, e por que o único que nos servirá, finalmente, será a salvaguarda da autodireção associada ao direito natural à liberdade.

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Analisemos brevemente os princípios que apontamos incompatíveis. Em primeiro lugar, a autoperfeição – ela mesma –, as virtudes, os bens constituintes e o dinheiro não poderiam atender nossa necessidade, porque não respeitam as condições (a)-(f). A autoperfeição, a fortiori, deveria ser concebida ou como um bem genérico – de forma abstrata e universal – ou específico, em acordo com alguma forma determinada de autoaperfeiçoamento. No primeiro caso, violaríamos as condições (c)-(d), no segundo, violaríamos as condições (a)-(b). Em seguida, nenhuma virtude moral (coragem, disciplina, prudência, temperança, caridade e etc.) ou bem constituinte da autoperfeição – seja concebida como de maneira universal ou específica – poderia servir ao nosso propósito de princípio ético metanormativo visto que também violaria as condições (c)-(d). Em terceiro lugar, uma interpretação utilitarista e fundamentada no bem-estar não teria serventia para nós, visto que ela se desvincularia do caráter individualizado do aperfeiçoamento, previsto nas condições (a)-(d). O mesmo poderíamos dizer da sobrevivência da espécie humana ou do emprego de um bem fungível como o dinheiro ou a riqueza material.

Em suma, para encontrar a base ética para um princípio metanormativo, devemos buscar algo que seja constituinte e inerente à autoperfeição (b)-(d) e que ao mesmo tempo preencha as condições (a), (e) e (f). Veremos que a autodireção – assimilada à sabedoria e à razão prática – é o único princípio que satisfaz coerentemente nossos requerimentos e que deve então ser protegido enquanto princípio metanormativo. Para compreendermos a prioridade da autodireção, devemos nos remeter novamente à nossa ética do florescimento e ao papel da razão prática. Como veremos melhor logo abaixo, é o exercício da razão prática a virtude que conquista, integra e unifica os outros fins que constituem o florescimento humano. Rasmussen e Uyl alegam que, sem o exercício

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da razão prática e seu uso adequado (sabedoria prática), nenhum fim constituinte poderia ser efetivo. Através de seu exercício, a ponderação e o balanceamento apropriado das virtudes e bens fundamentais para o indivíduo são realizados, em função dos desafios que ele enfrenta. “A sabedoria prática é a única excelência de um ser humano – a arête – e o princípio primeiro de operação” (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 408).

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O uso da razão prática equivale ao emprego e à execução da autodireção. Inversamente, a autodireção é nada mais do que um exercício da razão e sabedoria práticas – são aspectos distintos de um mesmo ato consciente. Na concepção de nossos autores, a capacidade de autodireção é inerente a qualquer ser humano e é altamente individual. Por mais que ela não signifique sucesso na busca pela autoperfeição, trata-se da agência humana por natureza, a mais primária.

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A autodireção é apropriada aos indivíduos não por causa de suas consequências, mas por que é condição para que qualquer indivíduo, em qualquer circunstância, possa exercer sua razão e sabedoria práticas e sua busca pelo autoaperfeiçoamento. Todo ser humano deveria ser autodirigido. Não se trata, portanto, de algo que pode ser proporcionado por outras pessoas. Nos termos de nossos autores, “a autodireção é a essência formal de qualquer versão de autoperfeição” (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 410). Autodireção como base para a metanormatividade

Partindo de tudo o que foi dito sobre nossa concepção do aperfeiçoamento humano e sobre o papel essencial que apontamos para a noção de autodireção, aparece-nos naturalmente que aquela autonomia é uma característica central e única do florescimento humano. Ela demanda, concretamente, proteção, em cada experiência individual, para que cada um possa se beneficiar da capacidade de poder florescer. Se buscarmos apenas proteger a possibilidade de autodireção em um contexto social – estabelecendo as condições estruturais políticojurídicas que protegem a possibilidade de autodireção em um contexto social – , então aqueles passos de (a) até (f) que apontamos despontam 162

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como verdadeiros. A proteção se justifica no fato de que o princípio de autodireção satisfaz nossos requisitos.

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Ao sugerir a autodireção, não favorecemos ou prejudicamos uma versão de aperfeiçoamento individual em detrimento de outra, pois o ato da razão prática, que está sendo protegido, não se confunde com a consecução de seu objeto. Não há conflito daquele princípio ético com a adequação moral requerida pelo individualismo e pela natureza individualizável do pluralismo de bens humanos (a). Em seguida, a autodireção não apenas é algo comum a todas as formas de florescimento, mas é igualmente algo cuja proteção é exigível. Ao proteger a possibilidade de autodireção, protegemos algo que é uniformemente aplicável a todas as formas de autoperfeição e que é, portanto, social. Há um dever de salvaguardar tal princípio dentro de um ordenamento político-jurídico (b).

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Protegemos igualmente algo que está concretamente presente em todas as formas de autodireção, pois é através daquela razão prática e da sabedoria prática – requerida para consecução e alcance de todas as virtudes morais e bens genéricos que estão ao alcance dos indivíduos – que as pessoas podem encontrar, objetivamente, sua felicidade moral. Isso quer dizer que a autodireção é o elemento crítico que perpassa todas as formas de florescimento individual (c). Por conseguinte, todo indivíduo possui interesse em ver protegida sua esfera de autonomia e possibilidade de autodireção. A autodireção é boa para todos (d). Decorre também disso que proteger a possibilidade de autodireção em uma escala social não requer que qualquer forma de autoperfeição seja preferida a outras ou privilegiada. Nisso reconhecemos igualmente o dever que todos têm de buscar alcançar sua própria forma de florescimento (e). Finalmente, a autodireção não diz respeito a eventos psíquicos, mas à conduta no espaço e no tempo de seres humanos. Ela não existe para um indivíduo quando outra pessoa o dirige sem seu consentimento, pois tal pessoa não está em medida de seguir suas próprias escolhas. Visto que proteger a possibilidade de autodireção em um contexto social resolve o problema do liberalismo – satisfazendo as condições (a)-(e) – e que usar uma pessoa sem seu consentimento é incompatível com a possibilidade de autodireção, então um princípio que impeça o uso

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da força física por algumas pessoas contra outras e autorize apenas para a proteção e preservação da possibilidade de autodireção é um princípio metanormativo que corresponde a nossas expectativas.

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O direito individual básico e negativo à liberdade proíbe todas as pessoas de uso não consensual de outras pessoas. Esse direito proporciona a base ética para proscrever legalmente todas as formas de introdução da força física e para autorizar o emprego da força física apenas para proteger e preservar a possibilidade de autodireção em sociedade. O direito natural individual à liberdade é um princípio metanormativo (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 414). Ele protege a possibilidade de autodireção em um contexto social (f). Direito básico e negativo à liberdade

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A asserção tradicional do liberalismo é que os indivíduos possuem um direito moral básico, negativo à liberdade. Direito, nessa expressão, explicam nossos autores (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 128), significa uma reivindicação ou autorização que os indivíduos experimentam em relação a como os outros os devem tratar. Moral significa que esse tratamento deve existir, mas não que ele existe necessariamente. Negativo refere-se ao tipo de tratamento que os outros devem aos indivíduos, no sentido de que não usarão os indivíduos sem seu consentimento e, mais especificamente, que as pessoas estão proibidas de empregar, ou ameaçar empregar, a força física em todas as suas formas contra outras pessoas. O conceito de liberdade responde à dicotomia de Isaiah Berlin (1958, p. 121-134) – entre seu entendimento enquanto prerrogativa negativa (em termos de limites) ou positiva (em termos de liberdades de). O direito negativo à liberdade corresponde a essa dicotomia e diz respeito à interpretação dos direitos enquanto obrigações negativas, envolvendo igualmente o sentido que F. A. Hayek (1973) sugeriu para o termo. Tal direito é considerado básico, por não ter de se fundamentar em qualquer outro e por ser também a fonte de outros direitos. Esse direito à liberdade equivale e acarreta seus corolários direitos à vida e à propriedade. O primeiro dizendo respeito ao direito de viver sua vida 164

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de acordo com suas próprias escolhas, sem sofrer ameaça ou pressão sob coação de violência e o segundo, para nossos autores, associado mais ao direito a uma ação do que ao direito sobre um objeto.

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Os direitos individuais pressupõem que as vidas e os recursos e as condutas individuais não devem ser usados ou direcionados para objetivos não consentidos de seus possuidores. Eles se aplicam a todos os seres humanos e exigem um sistema jurídico para sua efetiva implementação. Se os indivíduos têm direito à liberdade, eles não podem ser compelidos fisicamente ou coagidos a empreender ações e comportamentos que poderiam ser ou moralmente valiosos ou degradantes do ponto de vista de uma ética perfeccionista. Isso quer dizer que os indivíduos não podem ser compelidos a agir virtuosamente ou cumprir determinadas ações morais com intuito de, por exemplo, alcançar um bem político comum ou promover o bem-estar geral. Sendo assim, e por mais paradoxal ou confuso que possa parecer para diversos estudiosos liberais, o problema central que se apresenta diante do defensor dos direitos individuais é o de justificá-los ao mesmo tempo em que se concede importância fundamental ao direito à liberdade.

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Diversos autores não se dão conta dos limites e implicações que esse problema coloca para a teoria liberal. Uma abordagem de direitos negativos ancorada em toda a riqueza da tradição liberal e jusnaturalista (equinormativa) ainda deixa lacunas ou pode parecer insuficiente aos olhos de muitos estudiosos. Um obstáculo poderia ser sintetizado na pergunta buscando entender por que o direito à liberdade seria mais importante que ser virtuoso, que cumprir obrigações morais que temos uns com os outros, que alcançar uma sociedade mais próspera, que atingir um bem político comum, que melhorar as condições dos desafortunados, que promover o bem comum. A resposta privilegiada por nossos autores a esse questionamento é que o direito natural à liberdade é crucial para a resolução do problema central do liberalismo e da filosofia política de forma geral. Direitos individuais não existem enquanto conceito ético, para conhecermos, através deles, a natureza do florescimento humano ou da virtude ou nossas obrigações para com nossos semelhantes. Nem para entendermos as exigências que emanam dos princípios de justiça. O problema

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central do liberalismo, que já expusemos mais acima, é a busca para entender como admitiríamos a possibilidade que as pessoas floresçam individualmente sem criar um conflito moral inerente na estrutura global do contexto sociopolítico – na estrutura provida pelo ordenamento político-jurídico.

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Ao proteger a liberdade, preservamos tanto individualmente quanto socialmente a possibilidade de ação e da autodireção tão fundamental a qualquer forma de florescimento individual. Deve estar claro que o direito que possuímos e que é consistente com o problema do liberalismo é o direito básico e negativo à liberdade. Mesmo que não se faça apelo a qualquer estado de natureza ou retórica baseada no ideal abstrato de sociedade desprovida de problemas éticos concretos precisos – ou genéricos –, o direito básico negativo à liberdade é um direito natural. Ele é natural a partir do momento que corresponde à ética perfeccionista e que busca centralidade na natureza humana mais fundamental ou em sua essência ontológica sem se desvincular da natureza individualizável do florescimento.

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O direito individual básico, negativo à liberdade define e sanciona as condições político-jurídicas que constituem e fomentam a liberdade e a sociedade de homens livres. A liberdade política protege a possibilidade de autodireção na sociedade, como vimos. Portanto, o direito à liberdade é, formalmente, um princípio metanormativo e é a verdadeira solução para o problema do liberalismo. AUTOPROPRIEDADE, PROPRIEDADE PRIVADA, DIREITO NATURAL E DIREITOS INDIVIDUAIS

Somos lockeanos em nossa concepção de direitos e empregamos uma base neoaristotélica para sustentar tal posição [...] concordamos abertamente com os direitos naturais negativos que ele (Locke) defende e que reforçam uma ordem política liberal. De certa forma buscamos conciliar a tradição dos direitos naturais com a do direito natural (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 125).

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Direito natural e direitos

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A teoria perfeccionista do individualismo é, para Rasmussen e Uyl, uma teoria do direito natural, desde que compreendamos por direito natural uma teoria ética, na qual a natureza dos seres humanos é crucial para o entendimento do bem humano e da obrigação moral. Nossos autores buscam uma ponte de transição entre a tradição do direito natural clássico (e medieval) e as teorias (modernas) dos direitos individuais. Eles entendem que essa transição encontra no aristotelismo e no liberalismo embasado em direitos naturais negativos (lockeanos) de sua teoria um mecanismo importante de compreensão. Existiria, de fato, a possibilidade de encontrarmos formas de ligação ou extensão da tradição do direito natural à tradição moderna dos direitos. A pista privilegiada pelos autores está diretamente ligada a sua concepção particular do florescimento individual e do problema central da filosofia política e do liberalismo. A concepção que adotam do florescimento individual – que pudemos conhecer melhor mais acima – gera a necessidade de um conceito de direitos com uma função irredutível e assimilável ao papel do que denominamos como metanormas.

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Como dissemos, o conceito ético dos direitos na teoria política de nossos autores não se preocupa diretamente com o florescimento humano em si, com a virtude ou com quaisquer obrigações morais. Ele se preocupa com a formação de contextos, com o fornecimento de orientação para o estudo, a criação, a interpretação, a avaliação e a justificação de sistemas político-jurídicos. “O objetivo dos direitos é resolver um problema que resulta da tentativa de estabelecer uma ordem político-jurídica que, estruturalmente, não exigirá que uma forma de florescimento será exigida em detrimento de outra” (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 108). Os únicos tipos de direitos que acreditam ser capazes de fazê-lo são os direitos naturais lockeanos, ou seja, aqueles que os indivíduos possuem e que requerem pelo menos uma segurança de não interferência mútua. Eles são também concebidos como negativos, já que, de certa forma, demandam das pessoas apenas contenção – ou restrição de ações – e não uma ação positiva. A dificuldade que surge em nossa ponte de transição entre o direito natural e os direitos individuais é que se, por um lado, a tradição clássica direito & LIBERDADE

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do direito natural é simpática ao aristotelismo e ao perfeccionismo individualista, por outro, a tradição moderna dos direitos individuais não é tanto, tendo em vista sua tendência a minimizar a ética ou a traduzir o liberalismo por toda a ética, ou simplesmente ausentar ou ignorar questões éticas dos problemas que envolvem o liberalismo.

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Persiste ainda, igualmente, que a tradição do Direito Natural não é tão simpática à concepção (Ética) pluralista dos bens ou à ideia da natureza individualizada do bem moral, que associamos à própria perspectiva que expusemos do florescimento humano. Sabendo disso, qual poderia, então, concretamente, ser a ligação entre essas duas tradições aparentemente inconciliáveis do Direito? Buscando aproveitar o aproveitável e tentando evitar os erros e limites encontrados no “assimilacionismo”2 de outros autores, Rasmussen e Uyl entendem que essa questão da busca da ponte entre o Direito Natural e os direitos naturais teria natureza similar a uma outra questão ou poderia também ser colocada de outra forma. Pode uma teoria dos direitos naturais apoiar-se em uma perspectiva metafísica tendo mais afinidade com o eudemonismo clássico teleológico? (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 107).

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A grande crítica que poderíamos aportar à tradição clássica do Direito Natural do ponto de vista de nossa concepção neoaristotélica dos direitos é sua incapacidade de compreender o caráter individual do bem, ao passo que o problema principal com a maior parte das teorias modernas do direito natural é sua rejeição ao eudemonismo teleológico da ética. Desejamos basicamente adotar uma abordagem eudemonista teleológica clássica da ética e uma abordagem mais ou menos aristotélica da metafísica e da epistemologia. E usar tudo isso como fundação para uma teoria política com feição moderna, ou

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Para Rasmussen e Uyl uma forma de enxergar os direitos naturais como não conflitantes com o Direito Natural é fazer a assimilação dos primeiros ao segundo, ou vice-versa, e isso equivale a uma forma de assimilacionismo. Ou seja, pode-se fazer essa ponte pensando em direitos naturais como simples princípios do Direito Natural expressos através de um indivíduo. As diversas formas e diferentes maneiras assimilacionistas de interligar o Direito Natural clássico e moderno pecariam frequentemente ou por privilegiar uma das concepções do direito sobre outra, fazendo então que ou os direitos naturais ou o Direito Natural prevalecesse; ou por acabar recaindo em alguns dos obstáculos que se apresentaram igualmente diante da teoria neoaristotélica e liberal dos direitos de nossos autores. Para mais detalhes e referências ver Rasmussen e Uyl (2011, p. 109-125).

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seja, que enfatize a liberdade do indivíduo. Defendemos que a abordagem do direito natural como a que encontramos hoje não atenta suficientemente para o indivíduo e que por isso preferimos a abordagem dos direitos naturais. Contudo, a tradição do direito natural, ao enfatizar no arcabouço teleológico eudemonista, encontra-se mais próxima que outros arcabouços éticos de alcançar a fundamentação correta para os direitos naturais. Portanto, embora não cheguemos tão longe a ponto de afirmar que as duas tradições se opõem, percebemos e diferenças reais que vão muito além de uma mera questão de ênfase (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 125).

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O eudemonismo teleológico sugere, simplesmente, que o florescimento humano é um fim natural ou a telos da vida humana. Ele é o padrão moral através do qual a conduta humana é avaliada. Os homens podem optar por não considerar o florescimento como seu padrão moral, mas não podem escolher não serem humanos ou não terem o potencial (e obrigação) para o florescimento humano. Em consequência, a escolha humana ou a autodireção não são coisas radicalmente livres. Elas estão a serviço do bem humano e do florescimento individual. A autodireção é o elemento central e necessário na realização dessa potencialidade – na descoberta, implementação, integração e fruição dos bens que constituem e decorrem do florescimento humano. A ponte entre o Direito Natural e os direitos naturais reside na aceitação do papel crucial da autodireção dentro de uma ética dos direitos que concebe maior liberdade para a pluralidade de expressões de florescimentos e valores morais. Autopropriedade

Tradicionalmente, no liberalismo e nas teorias liberais dos direitos, o coração da ideia de proteção da esfera de soberania individual está associado ao (polêmico) ideal de autopropriedade. A ideia de uma esfera de soberania individual é característica dos direitos naturais modernos. Ela está no cerne do significado de um conceito de autopropriedade que alega que existe algo de importância moral, que possuímos por natureza. A centralidade da autopropriedade nasce com a própria emergência dos direitos naturais modernos e com o desenvolvimento do direito & LIBERDADE

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liberalismo enquanto teoria política e doutrina embasada em determinados conceitos e valores morais ou com o que poderíamos descrever como ética liberal da propriedade privada – ideia de que existiria uma ordem moral independente tanto da convenção social quanto do poder político3. Essa ideia é comum tanto à teoria clássica do Direito Natural quanto à teoria moderna dos direitos naturais. Desse encontro é que surge a ideia de que a autopropriedade, que poderia inclusive enriquecer a ponte entre os direitos e a tradição do Direito Natural, como veremos melhor mais abaixo. Porém, é preciso nos perguntar: qual é a ideia básica da autopropriedade? Qual seu embasamento ético mais tradicional? A autopropriedade é suficiente para embasar eticamente os direitos naturais? A tese da autopropriedade é a base que permite afirmar que os seres humanos têm direitos ou é apenas a reafirmação da alegação de que eles possuem direitos individuais? Nossos autores tentam demonstrar que a essência da ética da autopropriedade pode ser complementada pelo embasamento neoaristotélico que sua teoria dos direitos sugere. Mais além, eles explicam que, sem esse embasamento, a ética natural e tradicional da autopropriedade não responde convenientemente aos problemas centrais da filosofia política e às críticas que se impõem ao liberalismo e podem colaborar para enfraquecê-lo.

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Na visão de Rasmussen e Uyl, por mais legítimas que sejam as disposições dos indivíduos sobre eles próprios – sobre seu corpo, suas energias, talentos ou “propriedades ontológicas constitutivas” – , isso não serve para endossar – ou é bem diferente de dizer – que se deve ter controle exclusivo sobre o que se faz com essas propriedades ou dizer que se tem direito a um tipo de controle que se sobrepõe a todos os outros 3

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“Todo homem tem uma propriedade sobre sua própria pessoa. A esta ninguém tem qualquer direito senão ele-mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele” (LOCKE, 1960, p. 115-126. Tradução livre). A que reitera Murray Rothbard (1970, p. 1-2. Tradução livre): “Se uma sociedade livre significa um mundo no qual ninguém comete agressão contra outrem ou contra a propriedade dos outros, então isto implica uma sociedade na qual cada homem tem o direito absoluto de propriedade sobre si mesmo e sobre os recursos sem dono que ele encontra, transformados por seu próprio trabalho, e depois cedidos ou cambiados contra outros recursos de outras pessoas [...]. Cada indivíduo, como um fato natural, é proprietário de si, o governante de sua própria pessoa. Os direitos humanos da pessoa defendidos em uma sociedade puramente de livre mercado são, com efeito, o direito de propriedade de cada homem sobre seu próprio ser. É deste direito de propriedade que deriva seu direito aos bens materiais que ele produziu”.

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princípios morais que definem o uso e emprego dessas propriedades (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 314). Dito de outra forma, cabe demonstrar que o indivíduo exercita esse controle exclusivo de forma legítima e apropriada sobre essas propriedades ontológicas constitutivas e que tal controle supera e sobrepuja todas as outras alegações morais.

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Um dos principais argumentos que os liberais mobilizam para buscar demonstrar que o indivíduo que exerce esse controle exclusivo sobre suas propriedades ontológicas constitutivas o faz, por um lado, de forma legítima e apropriada e, por outro lado, o faz consciente que tal controle supera e sobrepuja todas as outras alegações morais encontra respaldo na ideia de inviolabilidade do indivíduo. No entanto, a inviolabilidade do indivíduo não pode se basear simplesmente na diferença ontológica entre os indivíduos ou no fato de terem (e serem) vidas distintas e separadas – o que é também autoevidente. Em primeiro lugar, por exemplo, pode-se desconsiderar que seja legítimo – e mesmo desejável – moralmente que a esfera de liberdade dos indivíduos não seja violada e que sua livre disposição não seja complementada, submissa ou enriquecida por prerrogativas eticamente superiores – esse é ilustrativamente o posicionamento de teóricos marxistas.

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Em segundo lugar, sublinhar a natureza ética apelando para a inviolabilidade do indivíduo e do ser humano de maneira geral pode menosprezar o valor da própria individualidade em nome de uma concepção geral. Em outras palavras, sugere que individualidade, nesse sentido, é algo inferior moralmente a um estado plenamente humano. Em terceiro lugar, podem considerar que muitos dos talentos ou capacidades das pessoas são os produtos da educação ou da criação social ou, no mínimo, das comunidades mais restritas onde interagem os seres humanos – como a família -, sendo, portanto, comunitários por natureza e sujeitos a algum tipo de controle – essa é a visão dos filósofos comunitaristas4. 4

De fato, se compreendermos que os indivíduos não são átomos impenetráveis e perfeitamente autônomos flutuando em um ambiente que não exerce qualquer espécie de influência sobre cada um, fica difícil aceitar que a natureza distinguível dos homens é suficiente para estatuar eticamente o controle exclusivo sobre as propriedades ontológicas constitutivas, e muito menos, que o direito de controle dessas propriedades sobrepõe dessarte todas as diversas obrigações morais que poderiam ser mais prioritárias do que a

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Em quarto lugar, mesmo filósofos como John Rawls sugerem que, em nome da justiça social, as propriedades ontológicas constitutivas deveriam ser encaradas como um “ativo social” ou coletivo e não como uma coisa que o indivíduo possui, pois ninguém pode alegar facilmente que as pessoas possuem ou merecem possuir tais propriedades e nem plenamente as recompensas desiguais que advém do exercício delas (RAWLS, 1971, p. 101).

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Para nossos autores, um verdadeiro argumento forte em favor dos direitos individuais deve fazer mais do que apontar os fatos observados da individualidade – posse e controle. Ele deve estabelecer um fundamento moral – ou razões para acreditar que é eticamente desejável para as pessoas que elas utilizem sua separabilidade e singularidades de seres individuais e para que possam moldar sua própria vida. De fato, a separabilidade ontológica que existe entre os indivíduos não consegue, por si só, dar sustentação ética plena aos direitos individuais. Ela também não consegue justificar uma distinção de natureza relevante entre as normas morais.

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Por isso, pensamos que a tradição do Direito Natural apelou antes para colocações de ordem metafísica – lei divina – como mecanismo que busca priorizar ou diferenciar normas éticas aparentemente não tão solidamente distinguíveis em teoria. Na opinião de Rasmussen e Uyl, dizer que “esta é minha vida”, “este é meu corpo” ou que “estas são minhas faculdades, meus talentos e minhas energias” não é suficiente para justificar a alegação de Robert Nozick (1974), de que os indivíduos são invioláveis. Nozick defendeu que a obrigação moral imposta pelos direitos individuais à conduta humana reflete o princípio kantiano subjacente de que os indivíduos são fins, e não apenas meios. Dessa forma, eles não podem ser sacrificados para que alcancem fins sem seu consentimento. Contudo, essa alegação não demonstra que (a) ser um fim em si mesmo para você também requer (b) que você seja um fim em si mesmo para mim (ou vice-versa). salvaguarda de uma autonomia que não pode ser conferida por um ordenamento jurídico. Ver mais em Rasmussen e Uyl (2011, p. 300-330)

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Esses tipos de problemas colocam em questão a ideia fundamental e implícita da ética da autopropriedade afirmando que, se outras pessoas usam ou empregam as propriedades ontológicas constitutivas dos indivíduos sem seu consentimento, então, independentemente dos objetos alcançados por esse uso ou emprego, esses indivíduos estão sendo mal usados e seu fim natural está sendo contrariado. Consequentemente, eles não estão sendo tratados como fins em si mesmos. Nada demonstra que o indivíduo tem um direito ao controle exclusivo sobre suas propriedades ontológicas constitutivas ou que esse controle seja o estado moral/legal da autopropriedade. Como vimos, existe uma espécie de interdependência entre os fins recíprocos individuais. Cabe observar que apenas certas ações específicas dos indivíduos constituem um uso ruim deles mesmos e um fracasso em se tratarem como fins em si mesmos. Se levarmos em conta coerentemente a ética sugerida pela ideia de inviolabilidade do indivíduo, qualquer uso por parte de outras pessoas das propriedades constitutivas dos indivíduos sem seu consentimento é um mau uso deles e representa um fracasso em os tratar como fins em si mesmos.

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A teoria da autopropriedade dificilmente consegue superar problemas como esse, sem ter de rever suas bases constitutivas ou sem buscar – como fazem nossos autores – uma base nova e mais profunda de embasamento ético-teórico. Tais problemas enfraquecem igualmente qualquer tentativa de justificar a sobreposição do direito de posse das faculdades ontológicas sobre quaisquer outros princípios morais que definem o uso e emprego dessas propriedades ou de simplesmente estabelecer uma análise criteriosa da natureza das normas morais que regem a conduta social e o ordenamento político-jurídico. Dito de outra forma, a teoria ética tradicional da autopropriedade é incapaz de fornecer uma resposta plenamente convincente ao problema central do liberalismo, por se associar impessoalmente a um homem genérico e por ser neutra em relação ao agente. Além disso, mesmo que interpretemos com riqueza conceitual sua problematização – ou se trouxermos seus argumentos à linguagem conceitual de nossa teoria neoaristotélica –, ela acabaria podendo servir para minar os fundamentos do liberalismo e para e torná-lo mais vulnerável, em vez de efetivamente

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responder convenientemente às críticas que são apresentadas às teorias liberais por seus concorrentes.

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Como dissemos, a autopropriedade poderia ser um complemento daquela busca pela transição da tradição medieval e clássica do Direito Natural para os direitos naturais da era moderna. Para entendermos isso, basta assimilarmos que a perfeição moral do indivíduo deve ser algo que pertence somente a ele e a ninguém mais – ela consagra em si mesma uma individualidade também conferindo natureza moral. Ser um fim em si mesmo é dizer que são seres morais. Os direitos naturais fornecem, igualmente, uma ligação legítima entre a Ética e a Política. Essa parece ser uma verdade básica que se encontra por trás da tese de autopropriedade. Ontologicamente falando, “alcançar a perfeição e ser um fim em si mesmo” poderiam ser coisas equivalentes. Todavia, segundo Rasmussen e Uyl (2011, p. 320), a ética tradicional do Direito Natural raramente, ou nunca, chegou a essa compreensão.

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Os defensores do Direito Natural tendem a definir o conceito de fim natural (ligado à ontologia) de forma tal que acaba competindo com o bem (ético) dos seres humanos. A ética do Direito Natural geralmente não tem conseguido consistentemente ver que o florescimento humano não existe de uma forma neutra em relação ao agente. Ele é alcançado e concretizado apenas através da autodireção individual. Acrescentemos, então, agora, essa é a base ética à autopropriedade e à estrutura dos direitos (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 317). Em primeiro lugar, dizer que as pessoas são fins em si mesmas pode significar que as pessoas são inerentemente valiosas e que seu valor não resulta de alguma fonte extrínseca, mas de sua própria natureza, seu valor associável à ética perfeccionista. Em seguida, significa promover e valorizar moralmente o que é inerentemente valioso em si mesmo, de tal forma que o florescimento humano não precise servir a nenhum outro objetivo. Em terceiro lugar, significa que cada ser humano individual é um fim em si mesmo e outros fins em si mesmos como a humanidade ou Deus não podem ser destacados a ponto de diminuir o valor do indivíduo. Em quarto lugar, significa que nenhuma busca e realização individual da autoperfeição possui maior importância ou valor do que a busca pelo aperfeiçoamento de qualquer outro indivíduo. Em quinto lugar significa 174

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que os indivíduos não podem ser substituídos ou cambiados uns pelos outros nas tentativas de determinar o caminho apropriado para conduta e em termos de princípios morais.

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Percebemos, então, que o caminho que toma essa reinterpretação da estrutura profunda dos direitos individuais, na verdade, é apenas uma aplicação da teoria liberal e neoaristotélica dos direitos. Em termos de nossa perspectiva neoaristotélica, o valor inerente (à teoria dos direitos) deve ser concebido como parte de uma concepção teleológica da natureza humana. Nós, como seres humanos individuais, não somos fatias estáticas de substância ontológica, mas seres em processo e em busca de fins. Agimos e buscamos; e realizamos e fracassamos. Tudo considerado, dizer que nós como seres humanos individuais somos fins em nós mesmos é dizer que somos tanto agentes quanto objetos de autoperfeição (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 318).

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Sem essa base perfeccionista e esse complemento à concepção dos direitos – e mesmo se quisermos assimilar valor ético à autopropriedade –, a teoria liberal dos direitos não conseguiria responder tão claramente o problema central da filosofia política e do direito. Propriedade privada

O relacionamento que as pessoas têm com as coisas e objetos, em termos de posse (possession) ou propriedade (ownership), é função da ação humana (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 158). A questão central sobre os direitos de propriedade, portanto, diz respeito a como a teoria da apropriação se encaixa naquilo que nossos autores dizem a respeito dos direitos. Também está relacionado com a forma que entendemos geralmente o conceito da ação humana. A posição de Rasmussen e Uyl é a de que, enquanto seres materiais (e não como “fantasmas sem corpo”), os homens não precisam, em teoria, ter direitos sobre os objetos per se. Eles precisam ter direitos de propriedade sobre as coisas que são o resultado de seus próprios juízos e esforços produtivos ou de suas ações. As propriedades e riquezas são direito & LIBERDADE

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essencialmente o resultado e função dos esforços transformadores dos seres humanos, das iniciativas produtivas. O direito de transformar o mundo material é nada mais que o direito de agir, já que as ações ocorrem no mundo material.

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Como uma sequência lógica da ideia de que os direitos naturais constituem princípios metanormativos e que definem territórios morais compossíveis, fica subentendido que os indivíduos possuem áreas de liberdade de ação, corredores e espaços onde sua ação produtiva é moralmente e materialmente protegida. Sabendo que os indivíduos são criadores de valor, suas criações eudemônicas são únicas e têm valor próprio dentro de sua busca pessoal pelo aperfeiçoamento. Elas compõem, consequentemente, os bens necessários ao seu florescimento e felicidade. Ter liberdade para agir dentro de certos limites é nada mais que ter oportunidade de ação dentro desses mesmos limites ou espaços de liberdade. A primeira coisa a apreender sobre o Direito Natural é que ele não é nada mais que um nome diferente para o que descrevemos como liberdade para agir. Em outras palavras, trata-se da possibilidade de se viver de acordo com as próprias escolhas.

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Uma teoria correta do Direito Natural à propriedade reconhecerá que ninguém tem o direito ou pode reivindicar legitimamente – do ponto de vista moral – os atos de transformação dos outros, já que, de todo jeito e por princípio, não pode haver legitimidade em reivindicações prévias ou preexistentes sobre aquilo que ainda não existe. Tal conclusão enfraquece a ideia da proviso lockeana. Uma vez que a propriedade é criada por um ato de transformação, torna-se discutível a cláusula de que deve haver “o suficiente e tão bom” para todos, visto que esse “suficiente e tão bom” deixado para os outros pode não existir se cada ação desemboca em uma transformação singular. A riqueza não pode ser separada dos atos de produção individuais. Nossos autores explicam que “se uma ação transforma a ordem material, não pode haver outras formas idênticas de propriedade até que uma ação similar alcance o mesmo resultado” (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 163). O critério para compreensão da natureza, dos limites e da extensão dos contornos das regras aplicáveis – e isso envolve a propriedade – mantém a mesma lógica de universalidade e negatividade que encontra176

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mos em autores como F. A. Hayek (1973). A questão da universalidade vai de par com a natureza da teoria metanormativa de nossos autores, que defendem a ideia da norma compor o ordenamento político-jurídico fomentando a ordem social de homens livres.

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Os espaços legitimáveis de ações envolvendo a propriedade correspondem aos direitos recíprocos, salvaguardando as respectivas apropriações e contratos. A negatividade significa que a norma – da propriedade – encontra (a) limites na própria natureza – material – e que ela é (b) “excludente”, de tal forma que (a) torna possível (b), pois ambos os critérios encontram respaldo na teoria do Direito Natural à liberdade enquanto exigência de territórios ou espaços morais de ação. Por consequência, e também desde um aspecto moral, faz parte da essência de nossa teoria dos direitos a legitimidade das transferências voluntárias, regra amparada igualmente pelos critérios de universalidade e negatividade. O consentimento valida eticamente, em um contexto social, a integridade dos territórios morais interpessoais.

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A propriedade nada mais é do que a expressão material do território moral de cada um, e para que possamos levar nosso território moral conosco através do tempo e de forma compossível com os outros, os outros devem se abster de invadir o nosso território, a não ser que a permissão para isso seja concedida (RASMUSSEN; UYL, 2011, p. 169).

Se as pessoas possuem legitimamente o Direito Natural à liberdade, admitindo que os objetos e posses são simplesmente extensões do que essas pessoas são – além de elementos que compõem os bens necessários ao seu florescimento individual –, então temos também o Direito Natural à propriedade, pois tal pressuposto é essencialmente uma reafirmação daquela metanorma que é o Direito Natural básico à liberdade. O Direito Natural à propriedade é a expressão do fato metafísico de que os seres humanos são coisas materiais que vivem e florescem através da exploração de oportunidades no mundo material. Na teoria de Rasmussen e Uyl, o direito à propriedade é função do direito à ação – e autodireção – e, portanto, é certamente consistente com o tipo de aristotelismo que eles pretendem defender, embora seja diferente do tom mais utilitarista do filósofo grego. direito & LIBERDADE

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CONCLUSÃO

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Infelizmente, na prática política quotidiana, o liberalismo se tornou apenas um acessório descartável para socialistas e conservadores em busca de soluções políticas viáveis para problemas socioeconômicos pontuais, que, eventualmente, possam colocar em questão sua soberania eleitoral – o mandato de seus principais líderes de governo, as instituições mais importantes de um país ou a própria paz social. Quando o estatismo engendra crises econômicas e penosas aflições sociais, os homens políticos se apegam a um discurso liberalizante, pois reconhecem nas sugestões políticas do liberalismo um mecanismo para a produção e distribuição de riquezas. Mesmo o liberalismo, fica subentendido, poderia aportar contribuições para a manutenção de uma ordem social sensivelmente coletivista em sua essência, notadamente por sua capacidade de atenuar as consequências econômicas indesejáveis do estatismo.

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Portanto, mostrar e demonstrar que o livre mercado nos torna mais ricos não é, em si, um argumento suficientemente capaz de nos levar, política e socialmente, a essa direção. Prova disso é que vivemos em um mundo onde a riqueza proporcionada pelo capitalismo e por políticas liberais não impede uma grande rejeição à base ética e moral que sustenta essa abundância material, algo que se reflete na ausência de popularidade e representação política de agendas intransigentemente liberais. Talvez o liberalismo não tenha sabido resistir, persuadir convincentemente, seduzir para se manter popular. Quiçá, não tenha conseguido também aportar respostas convincentes para alguns dos principais problemas de ordem teórica e prática levantados a respeito de suas propostas pelos cientistas políticos, intelectuais e, sobretudo, pelas massas de eleitores. No campo político, talvez o liberalismo não consiga convencer que é capaz de aportar soluções imediatas para problemas sociais concretos. A ascensão do estatismo passa, certamente, mais pela força persuasiva de seus argumentos no campo político do que pela competência de suas soluções em resolver desafios teóricos. O estatismo talvez convença mais facilmente de que é capaz de resolver os problemas concretos que encontramos na vida quotidiana de nossas sociedades. 178

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Por mais imperfeitos e inaceitáveis que sejam aos olhos dos liberais seus preceitos políticos, resultados econômicos e fundamentos éticos, não se pode simplesmente atribuir a vitória do estatismo a um desvio de caráter que contaminaria milhões e milhões de pessoas. Isso passa certamente pelo reconhecimento, pela autocrítica e pela aceitação do fato evidente de que existe uma crise do liberalismo. Seja aos olhos dos cientistas políticos, dos intelectuais ou da massa de eleitores, o liberalismo é visto como uma filosofia política obsoleta, ingênua ou baseada em princípios perniciosos e, até mesmo, equivocados. É preciso aceitar que, ao nível do debate de ideias, o liberalismo continua tendo que fazer frente a diversos e importantes desafios levantados por seus detratores, como sempre ocorreu ao longo de sua história. O desafio do liberalismo extrapola o campo econômico, atingindo a política e, sobretudo, a ética. É possível que tanto as tradicionais quanto as novas e mais recentes soluções liberais para questões teóricas e práticas apelem demasiadamente para um radicalismo utopista ou para uma moderação desinteressada, quando não cedem em excesso às solicitações éticas e políticas de neoconservadores e socialdemocratas.

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Muitas vezes, os próprios liberais pecam por rejeitar ou não saber efetivamente o que é o liberalismo. Eles erram em utilizar de estratégias baseadas em argumentos teóricos ultrapassados – no sentido de já terem sido rebatidos pelos opositores do liberalismo. Também fracassam por não conseguir complementar os argumentos originais do liberalismo e não reelaborar novos embasamentos teóricos consistentes no campo da Ética e da Filosofia.

A crise do liberalismo reflete, então, ao mesmo tempo, o êxito dos sucessivos ataques de filósofos e pensadores inspirados em valores vindos da esquerda e da direita política (ou do centro), a dificuldade em sugerir novas interpretações e soluções robustas para problemas teóricos e práticos que encontramos, tanto no universo das ideias quanto na vida quotidiana de nossas sociedades democráticas, e a popularização dos valores e políticas socialdemocratas e neoconservadoras junto à mentalidade dos eleitores.

O desafio do liberalismo é considerável. Isso significa convencer intelectuais e filósofos que já conhecem os principais limites da doutrina liberal e persuadir uma massa de indivíduos efetivamente consciendireito & LIBERDADE

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tes das disputas políticas e dos interesses de grupo que estão em jogo no campo de uma democracia quase irrestrita – cada um guardando consigo objetivos político-econômicos específicos, valores éticos ou princípios morais entre os mais variados norteando sua conduta privada ou associativa.

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Se o liberalismo não está definitivamente fadado ao fracasso, como ele conseguirá superar todos esses obstáculos? Em nossa opinião, o ressurgimento do liberalismo passa pela revisão, reapresentação de seus principais valores e exposição de novas contribuições que consigam complementar, melhorar e responder convenientemente e coerentemente às questões éticas, políticas e econômicas levantadas por cientistas sociais, por políticos ou pelos eleitores.

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A crise do liberalismo vai além de questões econômicas. Ela passa pela Ética, pela Filosofia Política e pelo Direito. Um dos maiores campos de batalha pela defesa do liberalismo é a Ética. A principal pergunta que os liberais buscam responder é: como justificar e defender uma organização política da sociedade com base em valores liberais se o fundamento do liberalismo como doutrina política está, precisamente, em negar legitimidade para a imposição de valores morais à sociedade e pelo poder político? Ou seja, que argumento o liberalismo deveria privilegiar para tentar justificar seus ideais políticos e de organização da sociedade? Esse é um desafio que os professores Douglas Rasmussen e Douglas Uyl buscaram equacionar e solucionar em seu livro Normas da liberdade (RASMUSSEN; UYL, 2011), um dos mais importantes desenvolvimentos e contribuições à Filosofia Política, à Teoria do Direito e ao pensamento liberal. Como dissemos em nossa introdução, o objetivo deste trabalho foi promover o estudo de sua obra. Esperamos que esta breve apresentação sob a forma de capítulo possa instigar nos leitores um interesse pelo livro e pelas ideias veiculadas em seu conteúdo. REFERÊNCIAS

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O império da lei como fundamento da civilização livre na perspectiva de F. A. Hayek Renata Rodrigues Ramos1

F. A. Hayek certa vez afirmou que “as antigas verdades devem ser constantemente reafirmadas na linguagem e nos conceitos de sucessivas gerações” (1983, p. XXX), oportunidade em que contemplou consternado os ataques às instituições do Ocidente como um todo, empreendidos por indivíduos que desconhecem os próprios pilares que sustentam sua existência nesse planeta.

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E recuperar o sentido do termo Rule of Law, na perspectiva histórica e filosófica, com a pretensão de reafirmá-lo, consistiu a essência do empreendimento do Autor no âmbito da análise institucional. Para Hayek, o declínio do Rule of Law, no ambiente contemporâneo, foi a causa precípua da ascensão dos regimes totalitários do Século XX, e do posterior agigantamento dos Estados Previdenciários, paradigma em que a liberdade individual foi quase que plenamente substituída pelo ideal da segurança econômica2. Consoante o Autor, a razão para o declínio do

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Doutora em Direito pela UFSC. Secretária Jurídica no TJSC. Sobre o assunto, colhe-se da obra O caminho da servidão: “[...]A segurança econômica, assim como a espúria “liberdade econômica”, e com mais justiça, é muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade. Em certo sentido isso é ao mesmo tempo verdadeiro e importante. É raro encontrar independência de espírito ou força de caráter entre aqueles que não confiam na sua capacidade de abrir caminho pelo próprio esforço. Todavia, a ideia de segurança econômica não é menos vaga e ambígua do que a maioria dos outros conceitos nesse campo; e por isso, a aprovação geral à reivindicação de segurança pode tornar-se um perigo para a liberdade. Com efeito, quando a segurança é entendida num sentido absoluto, o empenho geral em conquistá-la, ao invés de possibilitar maior liberdade, torna-se a mais grave ameaça a esta. Convém contrapor, de início, as duas espécies de segurança: a segurança limitada, que pode ser conquistada para todos e por conseguinte não constitui privilégio mas objeto de legítimas aspirações; e a segurança absoluta, que numa sociedade livre não pode ser conquistada para todos e que não deveria ser concedida como um privilégio – a não ser em certos casos especiais, como o dos juízes,

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Rule of Law foi a perversão de instituições ancestrais desde a ideologia coletivista do socialismo, e de suas promessas de igualdade econômica a partir do século XVIII3.

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A pretensão deste ensaio, portanto, é apresentar o Rule of Law, ou o Império da Lei, a partir da importante contribuição de Hayek ao debate institucional do Século XX, e de suas percepções muito particulares sobre o conceito, moldado desde a vertente liberal anglo-saxã, ou programa evolucionário. Referida vertente desenvolveu um panorama bem definido e sistemático de princípios que englobam as muitas nuances da salvaguarda à liberdade individual em relação ao arbítrio do homem contra o homem, e em relação ao poder político. Nas palavras de Hayek: “o princípio fundamental segundo o qual devemos utilizar ao máximo as forças espontâneas da sociedade e recorrer o menos possível à coerção pode ter uma infinita variedade de aplicações” (HAYEK, 2010, p. 42). A essência desse princípio, em Hayek, é o Rule of Law, e oferecer as principais nuances do conceito, em sua grande obra, constitui a finalidade do presente estudo. O sistema explanatório multidisciplinar hayekiano

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A impactante obra de Hayek constitui uma das heranças mais notáveis à obra do conhecimento humano. O Sistema Explanatório Multidisciplinar4 reúne contribuições originais nos campos das “Teorias do Capital, Monetária, Flutuações Econômicas, Funcionamento dos

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em que a independência completa é de suprema importância. Essas duas espécies de segurança são: em primeiro lugar, a salvaguarda contra graves privações físicas, a certeza de que um mínimo, em termos de meios de sustento, será garantido a todos; e, em segundo lugar, a garantia de um certo padrão de vida, ou da situação relativa de uma pessoa ou um grupo de pessoas em relação a outras – ou, em poucas palavras, a segurança de uma renda mínima e a segurança da renda específica que se julga que cada um merece [...]” (HAYEK, 2010, p. 127). “Poucos estão prontos a admitir que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado necessário dessas mesmas tendências. Esta é uma verdade que a maioria das pessoas reluta em aceitar, mesmo quando as semelhanças entre muitos aspectos detestáveis dos regimes internos da Rússia comunista e da Alemanha nacional-socialista são amplamente reconhecidas. Em consequência, muitos dos que se julgam infinitamente superiores às aberrações do nazismo e detestam com sinceridade todas as suas manifestações trabalham ao mesmo tempo em prol de ideais cuja realização levaria diretamente à tirania que odeiam (HAYEK, 2010, p. 31). Conceito formulado pelo economista Fábio Barbieri (2013).

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Mercados, Sistemas Econômicos Comparados, Evolução Institucional, Direito, História Econômica, História das Ideias, Política, Filosofia e mesmo Psicologia Teórica” (BARBIERI, 2013, p. 47).

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O versado Sistema Multidisciplinar encontra convergência na percepção quanto à Ordem Espontânea5 das instituições6 na enganosa expressão Sociedade, melhor articulada pelo Autor como Grande Sociedade7, bem como na análise de seus aspectos econômicos, legais, políticos e morais (Cf. BARRY, 2011, p. 142). Assente no entendimento quanto à complexidade da coordenação desses fenômenos, Hayek percebeu a possibilidade em se estabelecer regularidades, ou recomendações para a elaboração de arranjos institucionais, a fim de adquirirem melhor assimilação pelas inteligências humanas.

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A ambiciosa pretensão em escrever A Riqueza das nações do Século XX desde o texto Os fundamentos da liberdade sinalizou a maturidade após a transformação Hayek revelada por Bruce Caldwell. Ao visualizar o sistema de preços como um sistema de informações, no ensaio que lhe rendeu o Prêmio Nobel, Economics and knowledge, de 1937, Hayek se afastou do âmbito mais técnico da Teoria Econômica convencional rumo a contribuições inusitadas no contexto das Ciências Sociais. O fato de Mises ter perdido o embate com Oskar Lange, a respeito da impossibilidade do cálculo econômico socialista (a vitória de Lange se refere ao corpo de ideias que prevaleceu no Século XX, e não ao argumento em si), fomentou em Hayek a urgência em reformular sua perspectiva desde uma abordagem interdisciplinar em acréscimo à interpretação econômica muito marcante em seus escritos preliminares.

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Sobre a opção pelo termo Ordem Espontânea, Hayek explicou: “Embora ainda aprecie e empregue ocasionalmente a expressão ‘ordem espontânea’, concordo que ‘ordem autogeradora’ ou ‘estruturas auto-organizadoras’ constituem por vezes expressões mais precisas e unívocas, e por isso as utilizo com mais frequência que a primeira. Do mesmo modo, em conformidade com o uso hoje predominante, emprego agora, às vezes, a palavra ‘sistema’ em vez de ‘ordem’” (HAYEK, 1985c, p. XIV). Douglass North caracteriza uma instituição como “regras do jogo em uma sociedade ou, de modo mais formal, [...] as restrições arquitetadas pelos homens que dão forma a sua interação” (NORTH, 1991, p. 3). Aludidas regras do jogo operam como um mecanismo social que restringe ou incentiva condutas humanas. Hayek conceitua Grande Sociedade como o conjunto complexo das instituições humanas compostas por organismos e organizações.

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A transformação Hayek motivou descobertas inovadoras quanto aos problemas da coordenação e do conhecimento8, bem como a conclusão pela superioridade dos princípios de mercado sobre o planejamento estatal para organização da sociedade. Bruce Caldwell evidenciou o abandono do instrumental usual de um economista, em especial o conceito de equilíbrio (que o próprio Autor anteriormente defendia), rumo a uma abordagem que adotou a hipótese de conhecimento imperfeito por parte dos indivíduos, e que visualizou o Mercado como um processo competitivo de descoberta por meio de ensaios e erros (Cf. CALDWELL, 1988). A partir dessa inovadora linha de raciocínio, Hayek chegou a duas conclusões que iriam conferir coerência e unidade a toda a sua obra posterior: 1) a importância do sistema de preços como sistema de sinais a refletir a sabedoria comum do que acontece em um mercado, e 2) os perigos de forças externas, a exemplo do governo, sobre esse sensível mecanismo natural9.

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Hayek é tributário da tradição conhecida por liberalismo evolucionário que contempla a indispensabilidade das instituições para o bom funcionamento dos sistemas baseados na liberdade individual, ao contrário da narrativa que o laissez faire assumiu em países como a França. Inclusive, o Autor defendeu que o Mercado, como instituição criada pelo homem, deve operar em coordenação com a demais instituições, a exemplo do Governo, desde que este não sufoque as liberdades individuais em razão de monopólios coercitivos contra a concor8 Advertiu o Autor: “Muitas vezes, a palavra ‘informação’ é também evidentemente preferível nos casos em que eu em geral falava de ‘conhecimento’, uma vez que a primeira se refere claramente ao conhecimento de fatos particulares, e não ao conhecimento teórico que o simples termo ‘conhecimento’ poderia sugerir” (HAYEK, 1985c, p. XIV). 9 Hayek esclareceu a confusão entre os conceitos de positivo e natural, que decorre de um mal-entendido dos antigos gregos em separar os fenômenos em naturais e artificiais. “Os termos gregos originais, que parecem ter sido introduzidos pelos sofistas do século V a.C., eram physei, que significa por natureza, e, em contraposição, nomó, melhor traduzido como por convenção, ou thesei, que significa aproximadamente por decisão deliberada” (Cf. HAYEK, 1985, p. 16). O exemplo da linguagem pode auxiliar na melhor compreensão deste esquema, em Hayek. Segundo o Autor a linguagem é natural ao homem. Não no sentido grego physei por natureza, como se os seres humanos tivessem nascido com a aptidão de elaborar os mesmos signos de sua comunidade (não se desconhece as recentes descobertas da neurociência em sentido contrário). Mas somente na percepção de que a linguagem acompanha os indivíduos desde os primórdios dos tempos, e é uma tradição assimilada sobretudo por observação e repetição. Nesse âmbito, a linguagem seria fruto da ação humana, mas não da intenção humana. E, assim, também o sistema de preços.

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rência. A articulação dessas instituições é das tarefas mais difíceis na Grande Sociedade, uma vez que incentivos institucionais mal colocados podem perverter todo o tecido social. Portanto, a interação institucional demanda rigoroso escrutínio, a fim de que as forças espontâneas da sociedade não sejam prejudicadas por planejamentos que não priorizem a liberdade individual.

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Para Hayek, o mecanismo de compreensão quanto aos processos sociais repousa no comportamento dos indivíduos10. O Autor demarcou exaustivamente a distinção entre individualismo e egoísmo moral. A despeito da tentativa em equiparar conceitos tão distintos, Hayek buscou recuperar a ideia de individualismo responsável pelos fundamentos da civilização ocidental desde as tradições grega e romana da antiguidade clássica, acrescidas às do cristianismo. A individualismo foi responsável pela concepção de indivíduo como ser humano, ou seja: “a supremacia de suas preferências e opiniões na esfera individual, por mais limitada que esta possa ser, e a convicção de que é desejável que os indivíduos desenvolvam dotes e inclinações pessoais (HAYEK, 2010, p. 39-40).

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O individualismo metodológico em acréscimo à epistemologia falibilista, compartilhada com o colega Karl Popper, enfatiza a assimetria do conhecimento, e se baseia na formulação de conjecturas que possam derruir as intuições preliminares em uma moldagem ao que se poderia nomear “empirismo negativo”. “Podemos chegar mais perto da verdade através de instâncias negativas. É enganoso construir uma regra geral a partir de fatos observados. Contrário à sabedoria convencional, nosso corpo de conhecimento não aumenta a partir de uma série de observações confirmatórias” (Cf. TALEB, 2008, p. 92).

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Carlos Sell adverte que Weber não fez uso da expressão individualismo metodológico. Não obstante, “descreveu sua Sociologia como individualista quanto ao método e explicou que o indivíduo deveria ser considerado como o ponto de partida – o átomo – da investigação [...]. A partir desse marco analítico vem se consolidando a leitura de que, no plano ontológico, a sociologia weberiana possui um fundamento individualista que rejeita peremptoriamente a substancialização de entes coletivos, quer seja a sociedade concebida como totalidade sui generis, quer sejam as estruturas ou esferas sociais simplesmente desconectadas dos indivíduos. Por outro lado, há relativo consenso de que tal postura não deve ser lida como se ela implicasse premissas atomistas que negam qualquer tipo de efetividade ao nível trans-individual: se a sociedade não existe, nem por isso a dimensão social é constituída apenas por entidades singulares” (SELL, 2016, p. 344).

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Nesse rumo, Barbieri defende que instituições como a Ciência e o Mercado progridem por meio da competição entre ideias rivais submetidas a um processo de correção de erros. Como na Ciência ou na Política, também nos Mercados a liberdade não faria sentido se “a teoria correta/o melhor governo/os verdadeiros custos e benefícios da ação econômica fossem conhecidos por uma elite iluminada que pudesse impor a verdade sem os ‘custos da duplicação e desperdício’ inerentes à competição” (BARBIERI, 2013, p. 49). Barbieri (2013) ensina que “o falibilismo que fundamenta as ideias hayekianas sobre competição nos mercados se estende à sua teoria sobre evolução institucional”. A teoria de Hayek sobre a evolução institucional informa que agentes não maximizam funções em razão de parâmetros dados, mas desde regras abstratas que, ao longo do tempo, informaram e ensinaram aos agentes como atingir seus objetivos. Aludidas regras, por sua vez, decorrem de processos seletivos e, “uma teoria evolucionária é desenvolvida para explicar a coordenação em situações na qual a complexidade do problema impede o conhecimento pleno da melhor solução”.

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Portanto, Hayek defendeu que “as instituições que historicamente permitiram o florescimento da humanidade não foram planejadas, mas, como outros fenômenos sociais, seriam ordens espontâneas, fruto da ação humana, mas não da intenção humana”. O principal adversário intelectual do economista, o socialismo, contribuiu para que teorizasse “como o socialismo e o impulso totalitário em geral estão relacionados a um ingênuo racionalismo construtivista, que desdenha as ordens espontâneas como algo irracional”. Para o Autor, o fracasso do planejamento central decorre “da desconsideração das limitações do conhecimento humano” (BARBIERI, 2013, p. 49). A alternativa institucional eremítica em meio à barbárie TOTALITÁRIA do século XX Quando os nazistas tomaram o poder na Alemanha, em 1930, Hayek voltou suas preocupações à situação política da Europa. O Autor percebeu que o nacionalismo e o socialismo eram duas forças perigosas à civilização. Para Hayek não era apenas a vitória de um partido em parti188

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cular que aparentava perigo, mas sim a assimilação, pela sociedade, de um emaranhado de ideias que poderiam minar a civilização europeia.

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Após a eclosão da guerra, em 1939, Hayek tinha uma visão muito clara a respeito do problema insurgente e como a questão deveria ser enfrentada e, nos 20 anos subsequentes ao término do conflito, dedicou todas as energias à publicação da obra Os fundamentos da liberdade (Cf. KUKATHAS, 2007, p. 187). O problema, como o Autor constatou, era investigar de que modo se poderia combater o pensamento que serviu de base às instituições totalitárias. A resposta, conforme o Hayek, importava na submissão das convicções totalitárias a críticas, bem como na promoção de uma alternativa liberal. É muito importante notar aqui duas coisas: em primeiro lugar, Hayek não percebia essa tarefa como um trabalho filosófico, mas principalmente um trabalho intelectual que pressupunha o engajamento não só de filósofos, mas de economistas, cientistas sociais, e principalmente de historiadores. Em segundo lugar, Hayek possuía a convicção de que o sucesso do empreendimento dependia de um amplo debate público para além de círculos intelectuais específicos (Cf. KUKATHAS, 2007, p. 187-188).

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A defesa do princípio da liberdade individual, em Hayek, deve ser compreendida desde o receio em relação ao futuro em meio aos escombros de duas grandes guerras. O Autor parecia convicto a respeito da importância de salvaguardar os valores humanistas que foram solapados pelos conflitos armados e pelo totalitarismo. Essa é a explicação para grande parte das características de sua obra. Importante pontuar que Hayek se propôs a revitalizar os princípios liberais ao contrário de inaugurar uma teoria liberal contemporânea11.

A preocupação em relação aos regimes totalitários auxilia na compreensão quanto à perspectiva de análise do Autor. No âmago da teoria repousa a rejeição radical a projetos com pretensões de controlar, 11

“Em minha opinião, Hayek ofereceu uma maneira distinta de interpretar o liberalismo clássico. Ele sugeriu que deveríamos colocar considerações da Economia Política e da Teoria Política e Social no centro do palco quando consideramos questões na teoria política normativa. A abordagem de Hayek contrasta significativamente com a abordagem baseada em direitos para o liberalismo clássico que pode ser encontrada em escritores como Nozick. Mas também é diferente do tipo de argumento econômico para o liberalismo clássico que pode ser tirada da Escola de Chicago, ou os proponentes de Direito e Economia. Em vez disso, ele representa algo parecido com a abordagem cética de David Hume e Adam Smith” (KUKATHAS, 2007, p. 188).

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ou moldar o desenvolvimento humano com base em um conceito muito específico de razão. A ideia de fornecer à sociedade uma direção consciente, rumo a qualquer objetivo em particular, é o que une as doutrinas coletivistas tanto do nazismo quanto do comunismo. Para Hayek, as doutrinas totalitárias recusam-se a reconhecer esferas autônomas em que os fins de cada agente sejam soberanos. Desse modo, a teoria é apresentada como uma tradição que se pauta pela falibilidade da razão humana, no sentido de valorizar os processos sociais não planejados. Consoante o Autor, os poderes criativos da civilização dependem do reconhecimento quanto a esta Ordem Autogeradora, que não pode ser submetida, sem as devidas ponderações, aos poderes da razão humana como direção consciente (Cf. KUKATHAS, 2007, p. 193).

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O culto à razão abstrata, muito comum à perspectiva de certa vertente que inspirou a Revolução Francesa, foi duramente combatido por Edmund Burke no importante texto Reflexões sobre a revolução em França. Burke rejeitou a definição direitos do homem – a base teórica para as liberdades positivas, porquanto a enxergava como legitimadora tanto de um arbítrio sem limites quanto da falta de moderação do poder político. Para Burke, os revolucionários franceses eram destemperados e extremistas, uma vez que a pretensão emancipatória quanto às religiões e à monarquia não era apenas uma recusa a tradições e costumes específicos, mas sim um ataque a toda e qualquer autoridade decorrente da tradição. Ao contrário de observarem a educação ao longo da história, a literatura e as ciências voltadas a disciplinar e a elevar a recalcitrante condição humana, os revolucionários desejavam reformulá-la integralmente, a fim de enquadrá-la na razão abstrata dos direitos do homem. Não é a toa que a genialidade de Burke antecipou tanto o terror jacobino quanto os totalitarismos do Século XX, uma vez que a fé dos revolucionários em modificar a condição humana, via poder político, era um convite manifesto a toda espécie de violência desumanizadora (Cf. BERKOWITZ, 2013, p. 38-39). Semelhantes críticas à razão abstrata foram empreendidas por Hayek, e fomentaram sua ostracização após a publicação de O caminho da servidão, texto responsável por marcar o ingresso nas discussões em Economia e Filosofia Política e fortemente marcado pela barbárie revelada em duas grandes guerras mundiais. O Autor foi vítima de uma 190

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injustiça sem precedentes de críticos que pouco compreenderam a real pretensão de sua obra, como se Hayek tivesse profetizado que todas as sociais-democracias se transformariam em regimes totalitários.

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A cada nova edição da obra, Hayek defendia que sua oposição se dirigia, na verdade, à corrupção das mentalidades pela filosofia do estatismo, a ideologia que de modo dissimulado perverte todo o tecido social por meio do desequilíbrio dos gastos públicos, dos monopólios Estatais, do inflacionismo e do dirigismo sobre as esferas privadas: a tirania suave e benevolente profetizada por Tocqueville. Nos textos mais modernos de sua grande obra, o Autor empreendeu um duro ataque ao conceito de democracia, e revitalizou a noção com base na antiguidade clássica, para compreendê-la como governo das leis da maioria, leis estas que deveriam ser descobertas com base na moralidade da liberdade individual. Para Hayek, a barbárie do século passado foi precedida pelo declínio do Império da Lei também na Alemanha, fenômeno indissociável ao entendimento da democracia como corolário lógico de vontade da maioria.

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Consoante Hayek, a moderna concepção de democracia não concebe restrições aos governantes, uma vez que se conduzem pelo retorismo democrático para expandir ilimitadamente suas atividades. A leitura da obra de Giovanni Sartori, A teoria democrática, permitiu que Hayek afirmasse o fato de que no estágio contemporâneo as Constituições democráticas deixaram de exprimir a ideia de Constituições, na acepção aristotélica de limitação de todo o poder por princípios permanentes de governo, para se tornarem instrumentos de uma suposta igualdade. “Democracia como sinônimo de igualdade”, nas palavras de Hayek (Cf. HAYEK, 1985c, p. 3). Em missiva dirigida a Walter Lippmann, em 1937, afirmou: “eu gostaria de que meus amigos progressistas aqui entendessem que a democracia só é possível sob o capitalismo e que as experiências coletivistas levam inevitavelmente ao fascismo” (Cf. WAPSHOTT, p. 233).

Consoante explicou Bruce Caldwell, as opiniões de Hayek sobre Economia e Política estiveram fora de sintonia com as da intelligentsia: “ele atacou o socialismo quando este era o considerado o ‘meio-termo’, quando aparentemente todas as pessoas de boa consciência tinham simpatias socialistas […]. Durante grande parte do século, Hayek foi alvo direito & LIBERDADE

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do ridículo, do desprezo, ou, talvez pior, para um homem de ideias, da indiferença” (Cf. WAPSHOTT, p. 344).

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A defesa de Hayek quanto ao princípio da liberdade de ação merece análise, em primeiro lugar, porque consiste em uma tentativa global em enfrentar uma miríade de problemas complexos, e inter-relacionados na teoria moral, social e política. Kukathas afirma que, desde Weber, Hayek foi o principal pensador a lidar com as dificuldades do liberalismo como doutrina filosófica, em um mundo em que as exigências éticas muitas vezes entram em conflito com a realidade econômica e política. A peculiaridade do pensamento de Hayek, segundo Kukathas, foi direcionar o foco de análise aos problemas éticos da liberdade e da justiça, não apenas como problemas filosóficos isolados, mas em relação a questões de organização social e econômica, e problemas de conflito político nacional e internacional. Esse seria o importante desafio do trabalho de Hayek à teoria liberal “que nos últimos trinta anos ficou presa a discussões abstratas de fundamentos morais do liberalismo e negligenciou essas perguntas a questões institucionais” (Cf. KUKATHAS, 2007, p. 202).

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A percepção de Hayek era muito aguda quanto ao fato de que sistemas morais, econômicos e políticos não poderiam subsistir isoladamente. Referido isolamento de fatores, segundo Hayek, contribui para o nacionalismo e para o totalitarismo. Mesmo com o abandono do comunismo europeu no final do Século XX, muitos problemas permanecem em termos de conflitos étnicos, movimentos separatistas nacionais e blocos comerciais regionais. Coletivismos estes hostis a princípios morais individualistas, universalistas e igualitários. Enquanto pensadores como Hannah Arendt também reconheceram a ameaça do perigo moral representado pelo totalitarismo, é no trabalho de Hayek, para Kukathas, que existe a tentativa mais profunda de compreender a lógica da sua alternativa institucional (Cf. KUKATHAS, 2007, p. 202-203). A compreensão da alternativa liberal hayekiana pressupõe uma investigação quanto ao conceito de Rule of Law, uma vez que o Autor visualizava em seu declínio o principal motivo da ascensão dos regimes totalitários no século passado. Para Hayek, até mesmo as sociais-democracias deveriam manter rigorosa vigilância quanto aos ataques ao Rule 192

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of Law advindos, sobretudo, da percepção de democracia como corolário lógico de vontade da maioria. A PERSPECTIVA DO RULE OF LAW EM HAYEK

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Na introdução à coletânea Law, liberty and the rule of law, Imer Flores e Kenneth Himma defendem a existência de uma grande disputa teórica a respeito do significado do termo Rule of Law (quase sempre traduzido por Estado de Direito no Brasil), situação que torna ainda mais difíceis os esforços para se chegar em uma apropriada e correspondente teoria normativa do Estado de Direito (Cf. FLORES; HIMMA, 2013, p. 1). O Rule of Law é descrito de modos muito diferentes: o governo da lei e não do povo; nenhum indivíduo encontra-se acima da lei – inclusive o órgão que elabora as leis, e o governo da lei em uma ordem legal criada pela lei. Para os Autores, um ou todos estes significados podem ser manejados, mas não é claro como o termo é usado em debates ou escritos (FLORES; HIMMA, 2013, p. 2).

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Já se expôs, nesse texto, a preferência pela expressão Império da Lei ao se explanar sobre o conceito em Hayek. Isso porque, o Autor constatou que numerosas instituições na Grande Sociedade, a exemplo do Mercado, da Ciência, da Família, das Religiões, da Moral, do Direito, etc. são mecanismos sociais que restringem ou incentivam os comportamentos dos agentes, em outras palavras, oferecem sinalizações, regras do jogo, para que os indivíduos se movimentem. Consoante o Autor, o Império da Lei é uma ideia que deve ser apreendida nesse âmbito institucional, razão por que a noção Estado de Direito não reflete a melhor compreensão do Rule of Law na obra do Autor. O termo Estado de Direito oferece ao intérprete a ideia de que o Direito é apenas produto das organizações Estados Nacionais, quando, na verdade, referida organização é relativamente recente na história humana, enquanto que a instituição Direito é ancestral. Flores e Himma afirmam que a falta de consenso sobre o conceito de Rule of Law é problemática por duas razões. A primeira é o fato da importância de uma teoria adequada em relação ao conceito em prol de seu benefício, a fim de que a natureza do Direito, e de seus vários direito & LIBERDADE

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ideais, seja devidamente apreendida. Os Autores advogam a importância, tanto acadêmica quanto prática, da compreensão quanto às instituições normativas existentes. Em segundo lugar, a possibilidade desta teorização constitui pré-requisito para o desenvolvimento de um retrato das condições normativas com o objetivo de satisfazerem o ideal do Rule of Law – e isto é obviamente necessário, na qualidade de questão prática, no sentido de aperfeiçoar nossas instituições, a fim de conformá-las às normas morais a elas aplicáveis, e assegurar que as políticas públicas satisfaçam as normas da legitimidade política (Cf. FLORES; HIMMA, 2013, p. 2). Caso se opere desde um conceito de Rule of Law muito restritivo, é provável que questões normativas de importância crucial sejam perdidas na avaliação das práticas legais, do ponto de vista da moralidade política, no exame de Flores e Himma. Por sua vez, uma concepção de Rule of Law muito abrangente possibilita que imposições normativas ocorram sem estarem conjugadas à moralidade política. Desse modo, a clareza quanto aos conceitos é o requisito para a elaboração de teorias substantivas que auxiliem a avaliar os sistemas legais, no ensinamento de Flores e Himma (2013, p. 2).

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Consoante se observa, somente o exame destas duas dificuldades já suscita inúmeros problemas diferentes, que devem ser resolvidos no sentido de produzir uma Teoria do Direito abrangente e plausível. Flores e Himma apontam para os problemas que surgem na Teoria da Legitimidade. Segundo defendem, existem teorias bastante genéricas no sentido de fornecer um fundamento moral para a instituição Direito. A teoria do contrato social, por exemplo, fundamenta a legitimidade das instituições legais coercitivas no consentimento dos cidadãos, seja o consentimento real ou hipotético, explícito ou implícito. Naturalmente, muitas destas teorias fornecem também algumas restrições substantivas ao funcionamento do Estado; John Locke, por exemplo, assumiu a posição no sentido de que os indivíduos se colocam voluntariamente diante da autoridade coercitiva do Estado ao consentirem em obedecer suas leis desde que exista um respeito a seus direitos morais (Cf. FLORES; HIMMA, 2013, p. 2). Por vezes teorias normativas e empíricas se conjugam no sentido de pressupor o que é realmente o Direito, e o que ele deve ser. Flores e 194

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Himma relembram o célebre argumento de Ronald Dworkin no sentido de que o Direito abrange os princípios morais que apresentam a existência da História do Direito na melhor luz moral. Além disso, nas palavras dos Autores, “Dworkin sustentou em trabalhos anteriores que os juízes decidem casos difíceis deste modo – localizando princípios morais em que se baseiam as normas socialmente mais relevantes, e decidem os casos com base nas regras que representam os mais importantes valores morais” (Cf. FLORES; HIMMA, 2013, p. 3).

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Flores e Himma defendem que a matéria relativa ao Rule of Law, mesmo que um pouco mais delimitada que o tópico legitimidade, apresenta semelhantes problemas: 1) obter clareza sobre o conceito, a fim de lograr uma melhor compreensão a respeito do conteúdo das normas mais relevantes; 2) identificar as normas relevantes que regem o Rule of Law em todas as áreas em que as questões sobre o Rule of Law surgirem [...]; e 3) compreender a história tanto do ideal do Rule of Law e como ele surgiu e foi aplicado nos sistemas legais do passado, e teorizado pelos estudiosos do Direito do passado. Embora possa parecer que essas questões são distintas e independentes, Flores e Himma advertem que as matérias em referência se encontram relacionadas. Na verdade, por exemplo, a história do ideal tal como evoluiu ao longo do tempo no sentido de se expressar nas práticas legais será relevante no que diz respeito ao enfrentamento das questões conceituais e normativas que surgem quando da conexão com a teorização do Rule of Law (Cf. FLORES; HIMMA, 2013, p. 2-3).

Diante das dificuldades inerentes ao conceito em exame, Hayek dedicou sua jusfilosofia, ou sua teoria institucional, à compreensão do Rule of Law. Na obra The constitution of liberty12 a preocupação fundamental do Autor foi definir um estado de liberdade ou a liberdade: “nossa preocupação nesta obra é com um estado em que a coerção de um homem sobre o outro encontre-se reduzida tanto quando possível” (Cf. HAYEK, 1983, p. 3-5). O principal intento de Hayek, no texto em análise, foi esclarecer o sentido e o alcance prático do termo Império da Lei, a fim de responder ao problema de definição quanto a um estado de liberdade.

12 Importante esclarecer o sentido que Hayek atribui ao termo constitution em suas obras. O uso do termo se dá em um sentido amplo, descritivo de um estado de aptidão individual. No Brasil o texto recebeu a tradução de Os fundamentos da liberdade.

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Antes de delinear a estrutura da obra, Hayek havia apresentado a ideia em trabalhos prévios. Todavia, o esforço completo se materializou em quatro palestras realizadas em 1955, no Cairo, a convite do Banco do Egito, intituladas O ideal político do Império da Lei. O Autor explicou, mais tarde, que no caminho rumo ao Egito, viajou com a esposa por sete meses pela Europa, a fim de refazer o percurso que John Stuart Mill teria realizado pela Itália e Grécia. Essa experiência reacendeu em Hayek o interesse pela obra Sobre a liberdade, de Mill (Cf. MILLER, 2010, p. 101). Nos três volumes de Direito, legislação e liberdade, Hayek enunciou uma distinção essencial à compreensão do conjunto de sua obra: thesis e nomos. O primeiro conjunto engloba as normas de organização, ou comandos, que se impõem top-down. Em clara distinção conceitual, nomos representa as normas de conduta justa, ou as leis da liberdade, formuladas em relações bottom-up. Enquanto thesis reflete, sobretudo, os interesses de uma hierarquia organizacional (ou dos grupos dominantes em geral), nomos se desvela da interação entre os indivíduos na coordenação de atividades rumo à maior eficiência e solução pacífica para os desacordos nas mais variadas instituições. Conquanto alguns historiadores defendam que Hayek associou common law e costomary law13, posicionamento que não “Hayek’s characterization of the common law as an institutional bulwark against the depredations of the Stuart monarchs is not dissimilar to that offered by J. G. A. Pocock in his The Ancient Constitution and the Feudal Law, where he argues that the legal rules under which Englishmen operated had their origins in ancient custom, not statute, and took their form through a process of evolution over many centuries. Pocock (1987: 46) maintains that it is this aspect of English political history that provided the parliamentarians the legal principles with which they armed themselves in their struggles with the Crown: [...].Perhaps the best 17th-century summary of the common law—which comports with the way Hayek was later to interpret it— was put forward in 1612 by Sir John Davies. Davies was then attorney general for Ireland and had introduced British common law to Ireland after the Tudor Conquest. He maintained that the Common Law of England is nothing else but the Common Custome of the Realm: ‘and a Custome which hath obtained the force of a Law is always said to be jus non scriptum; for it cannot be made or created either by Charter, or by Parliament, which are Acts reduced to writing, and are alwaies matter of Record; but being onely matter of fact, and consisting in use and practice, it can be recorded and registered nowhere but in the memory of the people. For a Custome taketh beginning and groweth to perfection in this matter: When a reasonable act once done is found to be good and beneficiall to the people, and agreeable to their nature and disposition, then do they use it and practise it again and again, and so by often interation and multiplication of the act it becometh a Custome; and being continued without interruption time out of mind, it obtaineth the force of a Law. And this Customary Law is the most perfect and most excellent, and without comparison the best, to make and preserve a Comonwealth. For

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endossamos, a distinção entre thesis/nomos permanece hígida em sua obra (Cf. SKOBLE, 2006, p. 171).

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O conceito de ordem (posteriormente compreendida como sistema), na obra de Hayek, corresponde a um estado de coisas em que uma multiplicidade de elementos de vários perfis se relacionam de modo que os indivíduos possam se familiarizar e formar expectativas corretas, ou pelo menos com boas chances de se apresentarem corretas. Isso ocorre porque os indivíduos dependem do conhecimento uns dos outros para sobreviverem, na divisão de trabalho percebida pelos economistas do século XVIII, a exemplo de Smith e Ricardo (Cf. SKOBLE, 2006, p. 172-173). Consoante já apontado, o principal intento de Hayek com a obra Os fundamentos da liberdade foi clarificar o conteúdo e o sentido prático do termo Império da Lei. Hayek não o compreendia como uma atividade estritamente governamental, na qualidade de exercício da autoridade sobre uma comunidade política. O Império da Lei, segundo o Autor, descreve o significado que a lei deveria possuir em uma sociedade livre. As leis, incluindo as normas constitucionais, podem se aproximar desse ideal tanto quanto podem se manter afastadas dele (Cf. MILLER, 2010, p. 101).

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De acordo com Hayek, esse conceito foi em grande parte esquecido em nossa época, razão por que se lançou à tarefa de tornar mais precisa a concepção de lei em que se fundamentou o ideal de “liberdade em conformidade à lei”, preceito este que possibilitou a interpretação da lei como ciência da liberdade (Cf. HAYEK, 1983, p. 163). Para o Autor, a liberdade individual deve ser compreendida como princípio supremo em um ordenamento jurídico, no sentido de bússola moral e como um ideal político. O valor em referência é o limite ao poder arbitrário de um homem sobre o outro, e ao poder do governo contra o indivíduo:

the written Laws which are made either by the Edicts of Princes, or by Councils of Estates, are imposed upon the Subject before any Triall or Probation made, whether the same be fit and agreeable to the nature and disposition of the people, or whether they will breed any inconvenience or no. But a Custome doth never become a Law to bind the people, untill it hath been tried and approved time out of mind, during all which time there did thereby arise no inconvenience: for if it had been found inconvenient at any time, it had been used no longer, but had been interrupted, and consequently it had lost the virtue and force of a Law. [...]’” (HAMOWY, 2003, p. 243-245).

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A liberdade não apenas constitui um sistema no qual toda a ação governamental é orientada por princípios, mas também um ideal que só será preservado se for aceito como princípio soberano que governa toda legislação específica. Quando não existe uma persistente adesão à norma tão fundamental, como ideal último a respeito do qual não pode haver concessões com vistas a vantagens materiais – como um ideal que, embora possa ser infringido temporariamente durante uma emergência passageira, deve constituir a base de todas as disposições permanentes – , quase certamente a liberdade será destruída por violações gradativas (HAYEK, 1983, p. 73-74).

O Império da Lei, em Hayek, é uma doutrina metalegal, porquanto prescreve como a lei deveria ser e que atributos gerais as leis específicas deveriam ter. Caso uma lei conferisse ao governo poder ilimitado para agir como bem lhe aprouvesse, mesmo assim suas ações não seriam sinônimas de Império da Lei. A instituição encontra-se, inclusive, além da noção de constitucionalismo, porquanto requer que as leis se encontrem em conformidade a certos princípios (Cf. HAYEK, 1983, p. 249).

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O Rule of Law, portanto, não é uma norma legal, mas uma norma que diz respeito àquilo que a lei deve ser, uma doutrina metalegal ou um ideal político. Será efetivo somente enquanto o legislador se sentir limitado por ele. Numa democracia, significa que ele não prevalecerá, a menos que faça parte da tradição moral da comunidade, de um ideal comum compartilhado e aceito inquestionavelmente pela maioria (Cf. HAYEK, 1983, p. 249). O Império da Lei, compreendido como um ideal político, como um metaprincípio, ao mesmo tempo em que é derivado deste processo, de certo modo se encontra acima do processo. O Império da Lei oferece um padrão de conformação às normas caso se almeje que elas encontrem limites. A eficácia política do ideal dependerá do quanto a comunidade o endossa, além de se encontrar vinculado às tradições morais da comunidade. Não obstante, o ideal não se reduz às opiniões de uma determinada comunidade. Hayek enfrenta aqui o problema da transcendência, e o faz com base em algumas alternativas (Cf. MILLER, 2010, p. 103-104). Na primeira alternativa, Hayek poderia ter apresentado o Império da Lei como uma lei superior, ou uma lei natural, entendida como comandos atemporais que o homem descobriria a partir da investiga198

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ção sobre a natureza dos fenômenos, em uma percepção parecida a de Burke. O Império da Lei, de Hayek, poderia ser interpretado como uma versão atualizada da doutrina da lei suprema. Não obstante, ele rejeita expressamente a lei natural nesses termos.

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A ideia de uma natureza constante, imutável e eterna, provida de conteúdos morais, é descartada pela compreensão que Hayek tinha de razão como um processo evolucionário. O Império da Lei funcionaria apenas se o conceito de natureza fosse compreendido nos termos em que Hayek o delineou, como uma moralidade anterior a qualquer legalidade (que necessariamente evolui com os processos sociais), responsável por frear os impulsos de legalidades não ancoradas num princípio superior. Todavia, ao contrário da visão racionalista de lei natural, essa moralidade seria totalmente neutra em relação aos fins das ações individuais (a liberdade é um limite, é o fundamento para que todos os valores socialmente desejáveis aconteçam) (Cf. MILLER, 2010, p. 104).

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Por sua vez, uma segunda alternativa foi pensada desde o historicismo alemão pós-hegeliano. O historicismo era uma escola que pretendia reconhecer as leis essenciais do desenvolvimento histórico, a fim de derivar dessa intuição o conhecimento de que as instituições eram adequadas às situações existentes. A escola historicista assumia que a mente, ao transcender as limitações referentes ao período histórico, e ao local, poderia reconhecer de modo explícito como as nossas visões atuais são pré-determinadas pelas circunstâncias e assim se valer deste conhecimento para reconstruir as instituições de um modo consentâneo ao tempo em que vivemos. Hayek, numa linha complementar a de Popper14, formula duas objeções ao historicismo: 1) ele conduziria a um relativismo extremo, 14

Por oportuno, Karl Popper conceitua “historicismo” o conjunto de argumentos que respaldam as ciências sociais. Segundo o autor, a ciência social é unicamente história, não no sentido tradicional de crônicas de fatos históricos, mas a história como o estudo das forças atuantes, as “leis” do desenvolvimento social. Popper defende que o historicismo combate fortemente o emprego da metodologia naturalista no campo da sociologia, na medida em que os métodos típicos da Física não poderiam ser estendidos às ciências sociais, devido às diferenças profundas que separam aquela ciência destas últimas. Embora o historicismo admita que existam, marcadas pela tipicidade, muitas condições sociais cuja recorrência regular pode ser observada, acaba por negar que as regularidades identificáveis na vida social tenham o caráter das regularidades imutáveis do mundo físico. Popper afirma que, segundo os historicistas, não se deve falar, sem reservas, em “leis da Economia”, mas tão somente em “leis econômicas do período feudal” ou “do início da era industrial” e assim

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porquanto postula um ideal diverso para cada época, ao contrário de um ideal universalizável e abrangente de civilização; 2) ele se baseia no racionalismo construtivista, a compreensão de que todas as normas não justificáveis racionalmente, ou que não tenham sido arquitetadas para atingir finalidades específicas devem ser abandonadas (Cf. MILLER, 2010, p. 104).

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A terceira alternativa seria aquela elaborada por Max Weber, que rejeitou a afirmação formulada pelo historicismo alemão de que haveriam leis históricas a serem descobertas. Para Weber, o cientista social se deparava com fatos não limitados pela experiência, e a partir disso deveria selecionar certos fatos no enfoque de sua pesquisa. Referida seleção ocorre pela construção de tipos ideais, que não equivalem aos ideais de cunho moral ou ético. Tipos ideais, a exemplo do capitalismo, são indispensáveis às ciências sociais (Cf. MILLER, 2010, p. 104-105).

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Os tipos ideais são projetados com a intenção de se estudar os valores individuais e, desse modo, existe uma rejeição a qualquer juízo de valor, qualquer ideia daquilo que deveria ser. Os ideais morais e estéticos não encontrariam espaço nas ciências sociais, a partir do fato de que não possuiriam bases racionais e empíricas. Um estudioso pode se colocar a defender um ideal, mas ao fazer isso ele abandona a ciência e ingressa num âmbito de conflito ininterrupto que “se enfurece entre deuses diferentes”. A guerra de valores weberiana se traduz como o conflito de por diante, sempre identificando a fase histórica durante a qual se admite que as leis em causa hajam prevalecido. Em razão disso, Popper esquematiza os argumentos utilizados pelos historicistas para rechaçar a aplicabilidade dos métodos da física, em sua maior parte à sociologia, uma vez que para o pensamento historicista há a necessidade de se considerar a relatividade histórica das leis sociais. Primeiramente, Popper indica que os historicistas atacam o conceito de “generalização”, próprio das ciências naturais. Aduzem que circunstâncias semelhantes só se manifestam em determinado período histórico e nunca se estendem de um a outro período. Consequentemente, a sociedade não apresenta uma uniformidade a longo prazo, de maneira a autoriza generalizações a longo termo. Popper utiliza o exemplo das “inexoráveis leis” da Economia, que têm sido criticadas pelos historicistas, porquanto a crença nessas “leis” indicaria a futilidade da intervenção legislativa na esfera das discussões em torno da fixação de salários, por exemplo. Conforme Popper, essas tendências do historicismo satisfazem aqueles que se inclinam a agir, a interferir, especialmente em negócios humanos, recusando-se a aceitar como inevitável o existente estado das coisas (a aceitação quanto à existência da ordem espontânea, por exemplo). A inclinação a favor da atividade, contra todas as espécies de inação, foi conceituada por Popper de “ativismo”, oportunidade em que citou a conhecida atitude ativista: “os filósofos se têm limitado a, desta ou daquela maneira, interpretar o mundo; o que importa, porém, é transformá-lo” (Marx em “Teses com Respeito a Feuerbach”) (Cf. POPPER, 1980, p. 8).

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ideais, e a escolha de ideais, no fim das contas, é uma questão de fé ou de perspectiva subjetiva (Cf. MILLER, 2010, p. 104-105).

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Hayek nutria profunda admiração por Weber, especialmente pela negativa de Weber quanto à existência de leis históricas a serem descobertas, e também pela defesa de Weber quanto ao individualismo metodológico nas investigações sociais. Não obstante, Hayek não poderia aceitar a conclusão de Weber, com tons profundamente nietzschianos, de que ideais não possuem fundamentos, de que não haveria base racional para julgar a superioridade de um ideal em relação a outro, e de que no fim das contas a escolha por um ideal era em última instância arbitrária, baseada unicamente em um ato de fé ou simples vontade – assim como escolher entre deus e o diabo. Para ter convicção, o Filósofo Político não deveria ter medo de assumir uma posição quando confrontado com valores conflitantes. Segundo Hayek, o cientista deveria escolher o que aceitar e o que rejeitar. No entanto, Hayek procura localizar um fundamento para essa escolha, e se recusa a visualizá-la em termos de fé, ou vontade subjetiva (Cf. MILLER, 2010, p. 104-105).

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Essas três alternativas não faziam parte do projeto de Hayek, porquanto apresentou o Império da Lei como um ideal político, um princípio metajurídico. O autor não disse muito sobre o status deste princípio, mas parece intuitivo que a compreensão do princípio ocorra com base na Parte I da obra Os fundamentos da liberdade (O valor da liberdade). Hayek enfatizou que não se pode construir inadvertidamente todo um novo corpo de princípios morais, mas sim compreender que todo o planejamento deve se dar com a aceitação quanto à existência de uma ordem autogeradora não dirigida. A civilização humana “tem vida própria”, e todos os esforços humanos devem se focar em aprimorar as instituições a partir do princípio de que não se pode controlar tudo. O princípio metalegal de Hayek parece se fundar nos seguintes termos: “o propósito não é construir um novo corpo de regras morais, mas identificar aquelas normas que favoreceram o avanço da civilização no sentido de tomá-las como fundamentação” (Cf. MILLER, 2010, p. 105-106). Eugene Miller, ao comentar o ideal hayekiano, afirma que as inovações acontecem em razão da liberdade. Portanto, a inovação não pode ser planejada, desenhada, manipulada, bem como sua direção não pode plenamente prevista. A melhor esperança de que as instituidireito & LIBERDADE

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ções se aprimorem repousa na liberdade individual, consoante Hayek. Além disso, o Império da Lei se refere estritamente à liberdade, e não diz absolutamente nada sobre resultados, fins que os indivíduos devem compartilhar, ou sobre as consequências dos comportamentos humanos em longo prazo (Cf. MILLER, 2010, p. 106).

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Na hipótese, a Grande Sociedade não é uma organização, mas sim o conjunto de organismos e de organizações. Desse modo, constitui um equívoco pensar que o fim de uma sociedade liberal seja o capitalismo, ou a prosperidade (corolário lógico da liberdade de ação, mas não no sentido de direção consciente). Ao contrário, os fins de um sistema pautado na liberdade individual são tão plúrimos quando o número de indivíduos que o compõe, uma vez que não se trata de uma organização hierarquizada, comandada por mentes privilegiadas, e orientadas por um único propósito, a exemplo do Exército, da Igreja, da Família ou da Empresa. Portanto, caso os indivíduos decidam se associar no sentido de empreendimentos coletivistas, a exemplo de uma comunidade baseada em trocas e auto-sustentabilidade, desde a negativa em participarem de economias de mercado ou de propósitos estritamente monetários, e sem se pautarem por agressões àqueles não interessados em se associar, deve a política da liberdade acolher tal perspectiva.

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Hayek deixou claro que o Império da Lei é uma conquista da civilização ocidental15. Todavia, ambicionou a universalização do ideal. Com efeito, o autor não apresentou explicações muito precisas de como um ideal particular poderia servir de padrão para todas as nações, mas sugeriu duas possibilidades: 1) o Império da Lei poderia servir de referência àquelas nações que aspirarem alcançar as realizações criativas do Ocidente, moldadas pelas ideias e instituições ocidentais e, 2) a adoção do Ocidente como um guia, um padrão para as civilizações não conduzidas pelo mesmo ideal (Cf. MILLER, 2010, p. 107).

15 A civilização ocidental possui elementos cristãos, visigóticos, bretões, gregos, judaicos, francos, muçulmanos, lombardos, etc. Os principais centros irradiadores foram Atenas, Alexandria, Roma, Constantinopla, Paris, Córdoba, Grã-Bretanha e Estados Unidos desde instituições como a democracia ateniense e o direito romano.

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ELEMENTOS DO RULE OF LAW EM HAYEK

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O enigma para a supremacia da Atenas de Péricles e da América de Jefferson, no esquema Ocidental, encontra-se em um elemento comum: o Império da Lei, ou o governo das leis, e não o dos homens, como limite ao arbítrio, e ao Poder, para a proteção das liberdades. E o Império da Lei, nesses povos, repousava sobre uma melhor compreensão da condição humana, e sobre um ceticismo quanto à arrogância das pretensões demiúrgicas em modificar essa condição pela via institucional, ao contrário de adaptar o quadro institucional a essas mesmas condições. Nas palavras de Madison, um dos Founding Fathers: “caso fossem anjos a governarem os homens, não existiria a necessidade de controles externos e nem internos ao governo” (MADISON). Os gérmens do conceito de poder limitado – o Rule of Law – surgiram na antiguidade clássica, e o ideal brilhou com força soberana nos Estados Unidos da América a partir da arquitetura desenhada pelos Founding Fathers. Estes, por sua vez, foram buscar na Grécia Clássica, na República de Cícero, e em certos valores judaico-cristãos, o desenho institucional mais consentâneo à volúvel condição humana. Não por acaso Hayek dedicou a obra Os fundamentos da liberdade (1983) “à civilização desconhecida que se desenvolve nos Estados Unidos da América”.

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Ao estabelecer como “verdades auto-evidentes” a igualdade de autoridade entre todos os homens, a Declaração de Independência nada mais fez do que materializar o conceito de isonomia muito caro a certo período helenístico, ou isonomy, no sentido de “leis gerais aplicáveis igualmente a todos”. Na lição de John Adams: “a América é uma nação de leis, não de arbítrios”. O termo isonomia vigorou até o século XVII “até ser substituído gradativamente pelas expressões ‘igualdade perante a lei’, ‘governo da lei, ou ‘Estado de Direito’”, consoante explica Hayek. Em uma comunidade política regida por arbítrios, e não por leis isonômicas, os caprichos dos mais fortes não sofrem qualquer limite dos mais fracos. Na hipótese de João ter que devolver um empréstimo a Maria, e ao se encontrar sob a égide de uma “nação de homens”, o acordo entre as partes seria irrelevante; o peso residiria no fato de o grupo de João possuir mais força que o de Maria. Ao contrário, em uma “nação de leis”, Maria poderia confiar nos princípios contratuais que a resguar-

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dariam de um eventual inadimplemento de João, a despeito do poder de influência dos amigos de João (Cf. MORRISS, 2005, p. 32).

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Dois elementos-chave caracterizam as sociedades em que o Império da Lei opera no âmbito das tradições da comunidade. Por primeiro, os princípios responsáveis pela solução das disputas deverão ser previamente conhecidos antes que elas ocorram. João sabe de antemão que a promessa de pagar a dívida a Maria será executada. Em segundo lugar, o resultado da aplicação desses princípios independe da qualidade das partes, de maneira que indivíduos poderosos seriam governados pelas mesmas regras impessoais que constrangem as partes mais vulneráveis (Cf. MORRISS, 2005, p. 32). Para Hayek, essas são condições necessárias mas não suficientes para o Rule of Law. Por exemplo, o Imperador romano Calígula expedia decretos em letras minúsculas e os afixava em locais impossíveis de serem acessados, a fim de assegurar que os cidadãos não soubessem se seus comportamentos violavam ou não as leis. As duas condições acima elencadas são suficientes na tentativa de se evitar uma tirania como a de Calígula, mas não aptas à promoção de uma sociedade livre. Em razão disso, limites substanciais às legislações se fazem necessários (Cf. MORRISS, 2005, p. 33).

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Hayek defendeu que “as normas morais de ação coletiva são aperfeiçoadas com dificuldade e muito lentamente, o que deve bastar para indicar o quanto são valiosas”. O Autor enfatizou que “dos poucos princípios desta categoria que a humanidade conseguiu aperfeiçoar, o mais importante é a liberdade individual”. Em razão disso, a liberdade individual deve ser considerada um princípio moral a nortear a ação política. Hayek acentuou a necessidade de que a liberdade individual seja aceita como “um valor intrínseco, como um princípio que deve ser respeitado sem nos determos sobre as consequências em determinado caso”. Os homens somente conquistarão êxito civilizacional caso compreendam e aceitem a liberdade como um princípio, ou um pressuposto tão fundamental que nenhuma razão de conveniência poderá limitá-la (Cf. HAYEK, 1983, p. 73). A acepção de Lei que responde a um quadro de liberdade negativas é aquela que prioriza um sentido moral para o Direito na perspectiva de nomos (as normas das organizações não podem ir contra nomos), 204

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que é o conteúdo evolucionário do princípio da liberdade individual. Ao se insurgir contra o decreto de Creonte que a impedia de realizar as cerimônias fúnebres do irmão, Antígona imortalizou o ideal moral do Império da Lei, na qualidade de preservação das tradições consentâneas à liberdade individual, em oposição ao poder arbitrário. Para Antígona, o decreto de Creonte não era Lei, mas sim Legislação produzida em descompasso à tradição que embasava sua liberdade. Ao distinguir Lei de Legislação, Hayek afirmou que a segunda é muito pródiga em sufocar a primeira. Para o Autor, o simples fato de legislações serem promulgadas com lastro na vontade da maioria, não significa que se encontrem em consonância àquilo que entende por Lei formulada pela maioria. A simples validade não é suficiente para conferir justiça às normas. Normas válidas podem significar apenas Legislação, consoante o Autor. Com efeito, um ordenamento que se vincule à liberdade individual como valor soberano é aquele que mantém o poder político sob a mais estrita vigilância, e o compreende somente como árbitro e arquiteto das instituições necessárias à cooperação. Existe um limite ao poder do governo, e ao poder arbitrário do mais forte, e o limite é sempre o indivíduo visualizado como fim em si mesmo.

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Na hipótese, as leis que fundaram a República de Jefferson eram Leis no sentido moral de salvaguarda às liberdades, e não mera Legislação produzida por vontade política desvinculada de nomos. Anteriormente a Darwin, e aos economistas que ofereceram suporte às suas ideias, era muito comum o uso da expressão Direito Natural em atenção ao ideal do Rule of Law. Todavia, a expressão também oportuniza divergências semânticas labirínticas, e pode ser melhor compreendida quando afirmamos um Direito Evolucionário com raízes pré-históricas e funções adaptativas. Os seres humanos evoluíram em pequenos grupos sociais também em razão de tradições mais favoráveis à adaptação, a exemplo da propriedade e do contrato. E as civilizações grega e romana eram civilizações do contrato e da propriedade. A liberdade individual como bússola de um ordenamento jurídico funciona apenas como limite ao governo, e ao arbítrio do mais forte, sem prescrever qualquer fim específico para a coletividade, diferentemente de uma organização política marxista, feminista, fascista, calcada em leis divinas, ou em qualquer outra ideologia finalística. Para os teóricos que direito & LIBERDADE

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identificam o Império da Lei apenas como comandos de um soberano, não parece existir problema se a Política informar o Direito desde qualquer dessas ideologias finalísticas, uma vez que a ideologia detentora do maior número de armas ditará o comportamento da comunidade, e os indivíduos devem permanecer gratos na hipótese da ideologia do grupo mais forte não redundar no arbítrio do Khmer Vermelho, do Estado Islâmico ou do Talibã.

CONCLUSÃO

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É justamente por isso que Hayek não compreende a instituição Império da Lei unicamente como vontade de um soberano, como se a Grande Sociedade fosse uma organização, e não um sistema plural a agregar organismos e organizações. A Grande Sociedade opera, sobretudo, desde convenções que não desprezam as tradições cooperativas e voluntárias mais essenciais à sobrevivência da nossa espécie, na maioria das vezes até anteriores à organização política – a essência do Império da Lei, a resguardar os mais diferentes propósitos individuais.

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O termo Rule of Law opera desde uma diversidade semântica bastante significativa, e Hayek pretendeu oferecer uma perspectiva muito particular do conceito a partir das trágicas experiências totalitárias do Século XX. O presente ensaio buscou, nesse rumo, clarificar a instituição desde as teorias de Hayek, no sentido de pugnar por um conteúdo substancial para as Leis na Grande Sociedade, sem perder de vista todo empreendimento em compreender a história do Rule of Law, e de como ele surgiu e foi aplicado nos sistemas legais, e teorizado pelos estudiosos do Direito do passado, no sentido de pressupor o que é realmente o Direito, e o que ele deve ser. E o conteúdo substancial ambicionado por Hayek foi a liberdade entendida como ausência de coerção, e da coerção apenas como estratégia a garantir o próprio conceito de liberdade. O princípio elementar a informar o Império da Lei é a condição em que a coerção de um homem sobre o outro encontre-se reduzida tanto quando possível. Importante repisar que Hayek acentua a necessidade de que a liberdade individual seja aceita como “um valor intrínseco, como um princípio que deve 206

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ser respeitado sem nos determos sobre as consequências em determinado caso”. Os homens somente conquistarão êxito civilizacional caso compreendam e aceitem a liberdade como um princípio, ou um pressuposto tão fundamental que nenhuma razão de conveniência poderá limitá-la (Cf. HAYEK, 1983, p. 73).

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A tradição do individualismo de que Hayek é tributário informa sobre a concepção de indivíduo como ser humano, ou seja: “a supremacia de suas preferências e opiniões na esfera individual, por mais limitada que esta possa ser, e a convicção de que é desejável que os indivíduos desenvolvam dotes e inclinações pessoais”, em oposição à ideologia que compreende o homem como meio para a realização de empreendimentos coletivos totais. A preocupação em relação aos regimes totalitários auxilia na compreensão quanto à perspectiva de análise do Autor. No âmago da teoria repousa a rejeição radical a projetos com pretensões de controlar, ou moldar o desenvolvimento humano com base em um conceito muito específico de razão. A ideia de fornecer à sociedade uma direção consciente, rumo a qualquer objetivo em particular, é o que une as doutrinas coletivistas tanto do nazismo quanto do comunismo.

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O Império da Lei, em Hayek, é sobretudo a tentativa de articular uma doutrina metalegal que recupere o significado do termo Constituição desde a tradição aristotélica de limitação de todo o poder por princípios permanentes de governo, não no sentido de construir um novo corpo de regras morais, mas sim no de identificar aquelas normas que favorecerem o avanço da civilização para tomá-las como base normativa. A limitação ao arbítrio do mais forte, e do governo, o Rule of Law, torna possíveis arranjos institucionais que promovam segurança e previsibilidade aos agentes, a fim de que conquistem a liberdade de participar da Ordem Autogeradora responsável pelos poderes criativos da civilização livre. REFERÊNCIAS

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ORIGEM DO DIREITO E DEIFICAÇÃO DO LEGISLADOR: FUNDAMENTOS CLÁSSICOS DA DOUTRINA DO DIREITO NATURAL VEICULADA POR EDMUND BURKE Rodrigo Couto Gondim Rocha1

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A limitação do poder do Estado é o caractere definidor das diversas correntes de pensamento unidas sob a designação de liberalismo clássico. Aludido elemento característico pode ser identificado por qualquer liberal, e mesmo por não liberais. Não tão óbvia, porém, é a relação entre as ideias sobre origem do Direito e o exercício do Poder Político, relação necessária, em função do poder de legislar, um dos poderes do Estado moderno, ente cujo processo de formação teve como ponto decisivo as Revoluções de finais do Século XVIII. Diferentes concepções sobre a origem do Direito, no entanto, foram opostas e debatidas durante as Revoluções, e infelizmente o problema não ocupa tanto espaço no ambiente acadêmico brasileiro. A importância dos fundamentos do Direito se torna mais evidente quando contraposta às alternativas encontradas no pensamento grego, discutidas em breve síntese pelo presente trabalho. Os pensadores helênicos conceberam diferentes teorias sobre a origem do Direito, divina ou humana, e as concepções das leis desde a gênese humana foram criticadas pelo interesse dos seus autores, considerados então legisladores suspeitos. Em contrapartida, leis superiores, independentes de fundamento humano, poderiam ser acatadas sem o problema da suspeição dos seus instituidores. Como aclarado adiante, esse problema ainda possui relevância, em especial quando considerados os debates em torno da fundação da ordem jurídica moderna, como aquele iniciado por Edmund Burke. 1 Mestre em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Doutorando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa – FDUL.

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O comentário de Edmund Burke relativo aos eventos na França revela uma crítica rica em considerações jurídicas, pautadas no problema da relação entre Poder e ordenamento. Especificamente, Burke critica os direitos alegados pelos revolucionários, e realiza a defesa da preservação e reforma cautelosa de instituições e direitos históricos, tal como teria ocorrido através da história inglesa. Em Reflexões sobre a revolução na França uma concepção de Direito Natural nem sempre está aparente, mas ela está presente, e aqui será designada por direito natural em sua acepção clássica ou uma tradição clássica do direito natural2. O objetivo do trabalho é identificar, no comentário de Edmund Burke, elos da corrente de pensamento clássico sobre o Direito Natural, tais como a existência de um legislador superior, e de leis perenes. Para tal, a primeira parte do texto introduz elementos para uma compreensão dessa tradição clássica do Direito Natural, como as ideias de um universo ordenado e da existência de ordenadores, ou de uma ordem objetiva. Essa introdução é necessária em função do relativo esquecimento dos fundamentos metafísicos do Direito. A segunda parte do texto trata da contribuição de Cícero para o desenvolvimento de uma doutrina do Direito Natural por Edmund Burke.

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O trabalho, finalmente, conclui pela vantagem da ideia de uma lei superior, capaz de legitimar as leis humanas, quando estas se encontram em concordância com aquela. A existência de parâmetros impostos por uma ordem superior, imutável, seria capaz de limitar a atuação dos legisladores, ao impossibilitar a edição de determinadas leis3. Desse modo, a doutrina tradicional do Direito Natural seria capaz de conter o poder estatal através da limitação do legislativo. Com um menor número de 2

Essas designações acompanham o pensamento de Leo Strauss (1965, p. 120 et seq). A distinção realizada por Strauss é aquela entre a doutrina do Direto Natural desenvolvida por Platão, Aristóteles, os Estoicos e os pensadores cristãos, e aquela surgida no Século XVII. A tradição clássica é revisada através das páginas posteriores, antes da breve introdução ao pensamento de Edmund Burke. Strauss identifica o Direito Natural moderno, por sua vez, nos escritos de Thomas Hobbes, onde o Direito Natural deriva simplesmente do desejo de autopreservação, e não de uma ordem ultramundana, superior aos homens. Pode-se concluir, portanto, que a lei deixa de ser base para o conhecimento de normas éticas. 3 A concepção poderia ser assimilada ao pensamento constitucional. No entanto, ideias como a de uma constituição viva impossibilitam essa interpretação, semelhante a uma espécie de originalismo, caso adotada a terminologia empregadas nos debates dos EUA. Além disso, sempre é possível admitir a existência de uma razão fundadora e princípios capazes de transcender o texto, mesmo o texto constitucional, ou a jurisprudência. Sobre esse problema, especificamente, consultar Hadley Arkes (2010).

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condutas objeto da incidência de normas, garante-se a liberdade, em uma acepção negativa. A conversão do legislador em fonte da lei superior, contrariamente, impossibilitaria essa forma de contenção. Nesse caso, considerada toda a tradição do Direito e da Ética ocidentais, de base teológica, o legislador seria convertido em uma divindade, fonte última de juízos sobre justiça e moralidade4. O retorno ao Direito Natural em sua tradição clássica possibilitaria um contraponto a essa espécie de doutrina jurídica. O PROBLEMA DA ORIGEM DO DIREITO E O FUNDAMENTO CLÁSSICO DA FORMULAÇÃO JUSNATURALISTA BURKEANA A obra mais conhecida de Edmund Burke, Reflections on the revolution in France, costuma ser evocada e comentada quando do estudo das reações negativas ao momento revolucionário de finais do Século XVIII, na França. Até a publicação do escrito, porém, Burke era lembrado como homem capaz de compreender os abusos motivadores de outra causa revolucionária: a americana5. Como político whig, existia A ideia de conversão do legislador em uma espécie de divindade é encontrada em Linda Raeder (2002). A estudiosa empreendeu uma leitura religiosa da obra de John Stuart Mill, e identificou a adoção, pelo autor, da “religião da humanidade” de Auguste Comte. Dessa forma, Mill, normalmente considerado um humanista secular, pode ser igualmente compreendido como propagador de uma espécie de credo secular, cuja substância teria sido absorvida pela consciência anglo-americana. O humanismo contemporâneo, obviamente, não possui caráter transcendente ou metafísico, e por isso mesmo não é capaz de identificar a fonte da dignidade humana em uma divindade, ou na semelhança entre Criador e criatura. Por isso mesmo, pode-se ainda postular a divulgação de tal “religião da humanidade” para além dos países de língua inglesa, mesmo que por meio de intermediários.

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5 A denúncia da natureza distinta dos acontecimentos no Continente, publicada em 1790, talvez tenha surpreendido parte do público em função da atitude apaziguadora de Burke durante a Revolução Americana. Esse foi o caso de Thomas Paine, que esperava uma defesa dos revolucionários franceses, mas acabou frustrado. Eventualmente, Paine responderia ao texto de Burke com o seu próprio trabalho Rights of Man. A frustração de Paine e o desentendimento entre os dois homens são narrados de forma cuidadosa por F. P. Lock, F. P.(2008, v. 2., p. 349). O debate entre as ideias de Burke e Paine é tratado de forma específica por Yuval Levin (2014).

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também a expectativa de demonstração de apoio aos movimentos recentes, assimilados, por parte do público inglês, como algo não muito distinto da Revolução Gloriosa, um século antes6. Burke contrariou expectativas ao emitir um juízo negativo sobre os eventos ocorrido do outro lado do canal desde uma interpretação ainda influente, embora nem sempre compreendida.

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Mais de dois séculos após a era das revoluções, a espécie de liberdade tradicionalmente associada ao pensamento liberal é ainda colocada em causa, com o fato do crescimento descontrolado do número de leis e regulamentos, e pelos crescentes gastos públicos da maior parte dos Estados, desde o início do Século XX. Em termos políticos, portanto, o objetivo de limitação do poder estatal parece não ter sido alcançado7, ou não de forma plena. Ao considerar ainda o campo político, o marxismo, pelo menos em sua manifestação originária, foi derrotado, mas outras formas de pensamento não liberal ainda são cultivadas e influenciam a elaboração de legislação e posturas públicas. Esses desenvolvimentos obrigam ao questionamento não apenas das causas do apelo de doutrinas não liberais, mas de quaisquer possíveis desenvolvimentos intelectuais do próprio liberalismo, responsáveis pela redução da influência de sua formulação clássica8 9 10.

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6 O melhor exemplo é a reação de Thomas Paine. 7 E nem mesmo o objetivo da igualdade, com a progressiva divisão da sociedade em, de um lado, pagadores de impostos e, de outro, burocratas e recebedores de subvenções estatais. 8 O presente trabalho acolhe a distinção entre um liberalismo velho ou clássico e um novo liberalismo. O primeiro teria passado por um processo de reformulação dos seus princípios, pela geração anterior à Grande Guerra, e então convertido em uma ideologia de reforma social, uma modalidade de progressivismo. Essa é a descrição do processo por Michael Freeden (1986, p. 32 et seq). Ainda segundo o autor, deve-se notar o fato de que, pelo menos na Inglaterra, a relação entre individualismo e laissez-faire nunca foi realizada pelos liberais, mas a eles atribuída pelos seus rivais, os socialistas. Dessa forma, durante os anos 1880, o liberalismo passou a ser associado ao laissez-faire, e julgado incapaz de produzir reforma social. Em 1880, no entanto, o laissez-faire já havia sido abandonado pelo corpo principal dos liberais britânicos (FREEDEN, 1986, p. 32 et seq). 9 A distinção adotada entre um liberalismo velho e um novo não significa que o trabalho ignora a distinção de F. A. Hayek entre duas tradições distintas de defesa da liberdade, uma assistemática e empírica, e outra, racionalista e especulativa. Essa é a distinção, segunda Hayek, entre uma tradição britânica e uma tradição francesa, respectivamente (HAYEK, 2011. p. 108). 10 É necessário considerar a possibilidade de anacronismo quando da utilização da terminologia. No momento das Revoluções de finais do Século XVIII, as doutrinas que dominaram a paisagem política dos Séculos XIX e XX ainda estavam em estágio embrionário, e não eram designadas através das terminologias ulteriores, tais como radicalismo ou liberalismo. O termo ideologia, porém, apareceu na década de 1790, talvez

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O campo jurídico, concomitantemente, testemunhou a substituição das doutrinas do Direito Natural pelo Positivismo. Perdeu espaço a ideia de uma lei eterna, com fundamento metafísico, noção cara ao pensamento ocidental até o Século XVIII, e possíveis causas e efeitos dessa modificação do horizonte mental devem ser considerados relevantes. Apenas o risco do totalitarismo e os crimes cometidos pelos diversos regimes políticos do Século XX seriam capazes justificar o retorno ao Direito Natural, criador de limites à vontade do legislador. Além da limitação ao Poder, o Direito Natural diz respeito ainda ao problema eterno dos bens necessários ao adequado florescimento humano11, e isso é também razão para o estudo de tal tradição jurídica, mesmo em sociedades onde é reconhecida a necessidade de limitação da arbitrariedade e do capricho.

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O processo definido, de forma breve, é o da substituição de uma lei divina, ignorada ou negada pela modernidade, por uma lei humana, produto da atividade de legisladores eleitos ou não eleitos, magistrados e reguladores. Esse processo teria resultado em uma diminuição da liberdade12, aqui definida em termos puramente negativos13. O fator imediatamente determinante de tal erosão da liberdade é a substituição do legislador eterno pela figura do legislador humano, dessa forma como indicador de um processo de definição de enquadramento intelectual e política posterior. Ainda assim, é possível falar em uma tradição de defesa da liberdade, com raízes no pensamento do século XVIII. Sobre o problema da mudança conceitual, consultar a obra editada por Terence Ball, James Farr e Russell L. Hanson (1995). 11 O presente trabalho acolhe a síntese de Robert P. George (2008, p. 172). Segundo o autor, as teorias do Direito Natural compreendem considerações críticas de aspectos necessários para a realização humana individual e social. As proposições de uma teoria do Direito Natural indicam aspectos essenciais para o florescimento humano, e esses atuam como princípios de razão prática que, tomados de forma conjunta, veiculam normas capazes de excluir ou demandar certas condutas, em situações que demandam uma escolha moralmente relevante. Desse modo, as teorias do Direito Natural permitem a identificação de preceitos morais para a ação humana. 12 Caso a liberdade individual seja considerada em termos meramente negativos, qualquer atuação de oficiais do governo, mesmo oficiais de um governo legítimo, resultará em uma diminuição da liberdade individual. Esse postulado, esquecido em tempos recentes, significa que a variedade de condutas e arranjos privados é inversamente proporcional ao número de leis, regulamentos e demais custos impostos aos particulares. A exceção possível é a atuação de agentes estatais com o objetivo de evitar e prevenir violência e fraude, como no caso de proteção da integridade física e garantia dos contratos. A sugestão para aprofundamento é o trabalho de Isaiah Berlin (2002, p. 169 et seq.). 13 Essa é a opção do presente texto, e não uma afirmação de deveres negativos (aqueles capazes de exigir uma inação, no caso de escolhas moralmente relevantes) como os únicos possíveis.

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deificado14. Edmund Burke, um dos últimos defensores da doutrina clássica do Direito Natural, surge exatamente quando, com as agitações na França, emerge a possibilidade de uma lei mera e puramente humana, ou do homem como único autor da lei. Antes de tal conclusão, porém, é necessário revisar a tradição conhecida por Burke.

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Com efeito, a biografia de Edmund Burke não é capaz de sugerir, pelo menos de forma clara, sua postura parlamentar, ou o conteúdo dos seus escritos. Burke, originário de Dublin, filho de Richard Burke, um advogado anglicano, e Mary Nagle, uma católica, não possuía quaisquer conexões políticas imediatas, e nem mesmo o patrimônio tradicionalmente associado ao exercício das funções públicas. A única e (ainda assim) remota conexão com o mundo do Poder, identificável em sua genealogia (através da família da mãe, os Nagle), foi um speaker para os commons da Irlanda, durante o reino de James II (1685-1688) (Cf. BROMWICH, 2014, p. 27-28.). Entre o fim do domínio dos Stuart e a ascensão da linhagem protestante de Hanover, os Nagle, católicos, perderam sua franquia política (Cf. O’DONNEL, 2012, p. 139-150.). Dessa forma, em seu papel de homem público, Burke pode ser considerado um novus homo.

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Novus homo na cena política inglesa, Burke trouxe ao pleito ideias com fundamentos diversos daqueles dos demais whigs, o seu secto político. Ou melhor, Burke era um whig15, mas um membro do grupo com escoras intelectuais variadas, distintas daquelas tradicionalmente associadas aos seus correligionários (Cf. BROWNING, 1984, p. 57-71). 14 A apoteose do legislador, ou a conversão da legislação escrita em único nascedouro do ordenamento, significa a fundação de quadros jurídicos apenas limitados pela vontade dos governantes. Esse é um Direito livre das exigências de quaisquer valores objetivos, e submisso aos desejos ou caprichos dos governantes. A simples vontade, porém, não é capaz de atribuir valor aos bens necessários para uma existência digna. Do mesmo modo, o consentimento dos governados, e a vontade popular, não podem ser considerados suficientes para dignificar um bem qualquer. A vontade, de governantes ou governados, pode corresponder a uma simples “opinião” ou “preferência”, algo distinto da verdade ou conhecimento. Esse problema é pensado por Leo Strauss (1965). 15 Os whigs propagaram a ideia de que foram os responsáveis pela Revolução

Gloriosa, consoante Peter D. G. Thomas (2002, p. 24-27). A filição whig de Burke, portanto, foi fonte das expectativas relacionadas ao seu posicionamento sobre a Revolução Francesa. O mesmo pode ser dito sobre sua conduta, anterior, durante o período de crise na relação entre parlamento e colônias americanas.

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O consenso sobre uma formação intelectual diferente e heterogênea de Burke existe, mas inexiste um consenso sobre as principais fontes, supostos vetores determinantes para suas ideias e práticas políticas. Apenas é necessário questionar, porém, a metodologia empregada pelos diversos estudiosos, para interpretar uma formação intelectual e uma longa carreira política16.

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A homem público Burke teve a coerência da sua atuação colocada em causa ainda durante seus últimos anos, e a literatura especializada, especialmente através do Século XX, encontrou dificuldades em identificar um eixo condutor capaz de conferir coerência aos seus posicionamentos17. A historiografia encontrou, igualmente, alguma dificuldade em identificar as fontes do pensamento burkeano18, e poucos trabalhos apontam Marco Túlio Cícero como a principal influência de elaboração intelectual e da performance política de Edmund Burke19. As implicações da aceitação de Cícero como principal influência, e provável originador do pensar de Burke, parecem ter sido ignoradas, pelo menos pela maior parte da literatura. A primeira educação de Burke ocorreu com os Nagle, entre os seis e os dez anos de idade, e o seu posterior retorno a Dublin seria breve. Burke Questionar a metodologia empregada pelos diversos estudiosos, no entanto, não é o objetivo do presente texto. Deseja-se registrar, apenas, o fato de que os escritos de Edmund Burke são caracteristicamente intricados, e o fato de que, durante uma carreira política, posições podem ser tomadas segundo exigências momentâneas, e não segundo as demandas de um dado fundo de ideias. Predileções simplesmente subjetivas por parte das fontes podem resultar em uma interpretação bastante particular de manifestações escritas em diferentes momentos, ou entre posturas políticas aparentemente (ou de fato) contraditórias. Finalmente, algumas fontes possuirão uma utilidade limitada, e nem sempre poderão ofertar uma resposta definitiva para todos os questionamentos do pesquisador. 17 A maior parte dos estudiosos assume a consistência da obra burkeana, mas inexiste consenso em relação ao critério para a identificação de tal coesão. Peter Stanlis (2003) afirmou a defesa de um Direito Natural como fator de coerência na obra de Burke, e o mesmo parecer foi ofertado por Burleigh Wilkins (1967). Porém Alfred Cobban (1978) negou essa tese, com a defesa de que Burke revoltou-se contra as ideias de Direito Natural. John McCunn (1913) elegeu como critério de coerência uma exigência burkeana de ações baseadas em princípios, tese repetida por Gerald Chapman (1967). Frank O’Gorman (2004) sujeitou a coerência do pensamento de Burke à lealdade ao seu secto whig, e Isaac Kramnick (1977) interpretou Burke como um defensor das elites; posição semelhante ao defendido por C. B. Macpherson (1980). 18 As fontes defendidas são quase tão abundantes quanto os critérios para a defesa de coesão da obra de Edmund Burke. Francis Canavan (1960) defendeu Aristóteles como a principal fonte; J. G. A. Pocock (1960) defendeu a influência de Sir Matthew Hale; Montesquieu foi a fonte defendida por C. P. Courtney (1963); e David Hume, para Paul Lucas (1968). 19 Por exemplo, o trabalho de H. V. Canter (1914); e o de Reed Browning (1984).

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estudou ainda em Ballitore, em uma escola quaker, e então matriculou-se em Trinity College, onde recebeu uma formação clássica. Pode-se verificar, portanto, o trânsito de Burke, durante os seus anos de formação, através de uma variedade de ambientes religiosos. Após a obtenção do grau de bachelor in arts, em Trinity, Burke seguiu para Londres, em 1748, onde deveria receber educação jurídica. Até 1758 pouco é sabido sobre os seus afazeres, mas existe o dado de que o jovem Burke não se contentou com o ensino do Direito (Cf. KIRK, 2009, p. 14-18). O currículo de estudos e a biblioteca de Trinity College atestam a formação essencialmente clássica de Burke desde um bacharelado em letras gregas e latinas (Cf. STANFORD, 1941, p. 3-24). Além de reflexo de uma predileção, essa era a formação tradicional dos jovens durante Século XVIII (Cf. CONE, 1950, p. 166). O mesmo dado é comprovado pela lista de títulos integrantes da biblioteca privada de Burke, composta pelos principais autores da Grécia e de Roma, seguidos por livros religiosos e tratados de história jurídica. Cícero aparece como principal modelo, entre todos os autores encontrados na biblioteca, e Burke não apenas assimilou a influência intelectual ciceroniana, como também tentou emular suas táticas e modos de proceder (Cf. BROMWICH, 2014, p. 24).

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As bases do pensamento burkeano, em Cícero, podem então ser consideradas éticas, embora seja possível afirmar fundamentos ciceronianos para o pensamento social e político de Burke (Cf. BROWNING, 1984, p. 60). O interesse do presente estudo é o fundamento da teoria ética do autor, dependente do Direito Natural. A bibliografia existente endossa a possibilidade de tal análise, ao assinalar Burke como defensor de uma “teoria tradicional” do Direito Natural20, distinta das propostas dos radicais de alguns dos seus contemporâneos, criticados em Reflexões sobre a revolução na França21. O estudo da tradição do Direito Natural é não apenas matéria afeta aos estudos jurídicos, mas um dos objetos de investigação da disciplina da história das ideias. Segundo a perspectiva própria do campo, deve-se contrapor hipóteses de uma maior ou menor continuidade entre as 20 É, por exemplo, a posição de Russell Kirk (2009), e Peter Stanlis (2003). 21 A distinção entre uma teoria clássica do Direito Natural e um jusnaturalismo moderno foi proposta por Heinrich A. Rommen (1998), em 1936. O mesmo contraste entre um jusnaturalismo moderno e antigo é identificado e defendido por Strauss (1965).

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diversas proposições relativas ao Direito Natural, ou mesmo proposições de ruptura entre diferentes noções de Direito Natural22. Um trabalho como o presente, infelizmente, não é o meio adequado para veicular todas as diferentes hipóteses relacionadas ao problema da continuidade ou ruptura entre diferentes tradições jusnaturalistas.

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A ideia de ruptura entre uma tradição clássica de Direito Natural, e o pensamento moderno, foi originalmente proposta por Heinrich A. Rommen, em sua monografia de 1936, originalmente intitulada Die ewige Wiederkehr des Naturrechts. A conjectura apresentada por Rommen é a de que o Direito Natural surgiu como resposta ao problema da diversidade das leis através do tempo, dentro do mesmo enquadramento político (tribo ou Cidade-Estado), e ainda como resposta ao problema da existência de tradições legais distintas, tão variáveis quantos os diferentes grupos humanos (Cf. ROMMEN, 1998, p. 4-5), helênicos ou bárbaros.

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A questão da origem das leis, portanto, teria surgido com a percepção e consciência da diversidade humana, com o olhar para o passado, colocado em perspectiva, ou com o olhar para aqueles além do próprio grupo; em última instância, como problema conexo à apreensão da alteridade, o contato entre o eu e o outro. A diversidade e as especificidades locais ou históricas, portanto, não são apresentadas como argumentos para negar a possibilidade de um Direito Natural. O pensamento do Direito Natural, contrariamente, depende exatamente da existência de uma variedade de tradições. Leo Strauss, igualmente, considerou que a diversidade não nega um Direito Natural, e não pode ser utilizada para a negação da existência deste. Contrariamente, o Direito Natural não seria conhecido universalmente, por exigir o cultivo da razão, ou, nesse caso, de determinada modalidade de razão. O argumento, de outra forma, compreende a afirmação de que uma instância de desconhecimento de determinado princípio de justiça não implica a inexistência de princípios de justiça

22 O problema encontrado pelo estudante é o da terminologia Direito Natural, aplicada a uma variedade de doutrinas. Obviamente, inexiste relação necessária entre todas as teorias jusnaturalistas, e o uso do termo pelos proponentes de uma teoria pode dificultar a identificação das suas raízes intelectuais. Por esse motivo, o uso da mesma terminologia, através do tempo, pode sugerir a existência de uma longa continuidade entre diferentes teóricos, quando, em verdade, eles defenderam doutrinas diversas, sob uma mesma designação.

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universalmente válidos. Dessa forma, entendeu Strauss, a infinidade de direitos e princípios de justiça conhecidos através dos tempos e nações não poderia ser compreendida como razão para a impossibilidade do Direito Natural, mas sim, inversamente, como um ponto de partida para a descoberta desse direito. A variedade de concepções de Direito e Justiça apenas significaria o desconhecimento do Direito Natural, ou o seu conhecimento incompleto ou inadequado (Cf. STRAUSS, 1965, p. 9-10).

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A primeira resposta ao problema da origem do Direito foi teológica (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 23), com uma diferenciação entre direitos divino e humano23, segundo a qual, para além de toda a diversidade encontrada através do tempo, existiria uma lei e um legislador eternos (Cf. ROMMEN, 1998, p. 4). A ideia de origem divina do Direito é explorada por Homero e, o conceito de themis implica a recepção, pelos governantes terrenos, do mando, conferido por Zeus. Themis, usualmente a designação para o conjunto das regras básicas da vida, transmite-se ao basileus com o ato da entrega do bastão (Cf. HAMMER, 2002, p. 115-116)24.

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A lei humana, por sua vez, também reconhecida desde o período do mito, ou período de confusão entre mito e história, nasce com figuras lendárias como Licurgo (c. 900 a.C – 800 a.C) de Esparta, e o ateniense Sólon (c. 638 a.C. – 558 a.C.). Essa lei, invenção humana, foi inicialmente respeitada como herança de ancestrais prestigiados, embora a ideia de invenção humana não tenha resultado na exclusão da noção de influência divina (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 24-25). Segundo Tirteu 23

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Vale ressaltar que a relação entre origem do Direito e a legitimidade das normas existentes não era simples ou não tão simples quando a sua apresentação esquemática pode aparentar, especialmente segundo a perspectiva das formas mentais contemporâneas, ou segundo qualquer tipologia concebida milhares de anos após as concepções objeto de investigação. A tarefa de acessar o pensamento antigo não pode ser menosprezada, especialmente pelo fato de que determinadas compreensões, acessíveis aos antigos, não poderão nunca ser acessadas pela mente dos modernos. Sobre isso, consultar a obra de Leo Strauss (1965, p. 21). Normas humanas, pactuadas, poderiam ser consideradas como legítimas ou ilegítimas; o pensamento grego permitia ainda a concorrência entre causas humanas e divinas para os mesmos fenômenos. Portanto, destaca-se o risco da incorreção das tentativas de sintetizar o pensamento do período. Hammer questiona o conceito tradicional, porém, segundo o qual a constituição do espaço político depende de um rei imbuído do themis. Segundo tal perspectiva, o rei possuidor do themis possibilita a constituição do espaço político. A interpretação contraposta pelo estudioso, porém, é a de que a criação do espaço político seria dependente do reconhecimento, na figura do rei, do themis, de modo a possibilitar o exercício da liderança.

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(Cf. 1995, p. 23-25), Licurgo recebeu a lei espartana de Apolo de Delfos; Górgias (Cf. 1995, p. 190) reitera a ideia de uma origem divina das leis, ao tratar de uma lei “divina” e “universal”; e, em Eurípides (Cf. 1995, p. 60) é evidenciada a punição dos perversos pelos deuses, autores das leis.

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O direito humano, durante século V a.C., porém, tornou-se objeto de suspeitas, exatamente por ter sua origem na inteligência humana, facciosa (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 24-25). Os próprios deuses foram questionados por Eurípides (Cf. 1995, p. 60), em sua condição de autores de lei, por não se sujeitarem aos próprios mandamentos. O mesmo autor, ou, alternativamente, Crítias (Cf. 1995, p. 260-261), fez a sugestão de que algum homem astuto espalhou entre os homens o temor dos deuses, de modo a garantir o acatamento da lei. Obviamente, essa artimanha apenas funcionaria caso a generalidade da população nutrisse a crença de que os deuses eram os responsáveis pela existência da ordem legal (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 24).

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A ideia de um direito humano dependente do consenso também foi conhecida, pelo menos desde o século V a.C. Anteriormente a Platão, a ideia apareceu em texto de Antifonte, o sofista, segundo o qual a lei humana depende do consenso, cujas exigências são contrastadas com as da natureza. Violações das exigências do consenso apenas resultariam em consequências com identificação e captura daqueles por elas culpados; violações da natureza, por sua vez, trariam danos reais ao agente, independentemente de sua punição pelos demais (Cf. ANTIFONTE, 1995, p. 63-92). Sócrates, em Crito, diferentemente de Antifonte, não parece tomar o consenso como originador da lei, embora considere que o consenso é capaz de obrigar os agentes (Cf. PLATÃO, 1997, p. 43). De forma geral, no entanto, as formulações “consensualistas”, parecem ter surgido entre os gregos não para legitimar leis e ordem política, mas para o questionamento da sua legitimidade (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 25). As concepções de Direito Natural, portanto, parecem ter surgido, pelo menos quando apenas o aspecto prático é considerado, segundo a necessidade de estabelecer um consenso, uma conformidade de opiniões. Opinião e verdade, porém, possuem graus distintos de dignidade, e uma lei criada pela inteligência humana autointeressada sempre poderá ser objeto de crítica por parte de todos os demais. Essa crítica torna-se mais difícil quando as leis possuem nascedouro não direito & LIBERDADE

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na razão humana, mas em uma razão comum, universal, uma Palavra (logos), estável e perpétua (Cf. ROMMEN, 1998, p. 5-6). A exposição mais antiga da noção parece ter sido a realizada por Heráclito de Éfeso, embora um fragmento anônimo do século V a.C., preservado em Jâmblico, talvez a veicule com maior clareza.

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Heráclito de Éfeso (535 a.C – 475 a.C.) evidenciou a impermanência de todas as coisas, caractere do devir. A afirmação da inconstância a ele permitiu a identificação de um princípio de permanência, através do qual, a harmonia eterna seria garantida. O logos seria esse princípio, comum aos homens como um todo, mesmo que cada um acredite ser possuidor de uma razão distinta, particular. Contrariamente, segundo Heráclito, a sabedoria não seria realmente privada, mas comum. Ainda assim, alheios ao logos, os agentes costumam conduzir seus afazeres desprovidos de verdadeira consciência, como criaturas inexperientes. Aqueles que atuam com propriedade, porém, consideram essa sabedoria comum (Cf. HERÁCLITO, 1907, p. 28-34).

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A sabedoria, portanto, consistiria na expressão da verdade, e na capacidade de dar ouvidos à voz da natureza. As leis humanas são alimentadas por essa mesma lei, que prevalece na medida em que é ouvida. Desse modo, as leis humanas são tentativas de realização dessa lei e, por esse motivo, as leis de uma cidade devem ser defendidas tanto quanto as suas próprias muralhas (Cf. HERÁCLITO, 1907, p. 34). Do ponto de vista de um aristocrata grego do período, um preceito dessa natureza provavelmente surigiria como garantia de ordem, com a supressão das divergência sobre a lei mais adequada. Não se trata mais de uma lei concebida pela mente interessada de um legislador, mas dependente de uma lei superior. E esta última não mais possuiria natureza humana, mas de lei descoberta, parte da ordem (objetiva) do mundo. O fragmento anônimo preservado por Jâmblico (245 d.C – 325 d.C.), oriundo do século V a.C. veicula a noção de uma lei natural, comum aos homens, com maior clareza. O fragmento veicula, ainda, a existência de um relacionamento entre lei e justiça25. O contraste possível, como 25

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“For if humans were by nature incapable of living alone and therefore joined together, yielding to necessity, and have developed their whole way of life and the skills required for this end [i.e., for living together], and cannot be with each other while living in a state of lawlessness— for the penalty of lawlessness is even greater than the penalty for living alone—because of all these constraints, law and justice (to dikaion) are king among us

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Origem do direito e deificação do legislador

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o decorrente do pensamento de Heráclito, é aquele entre mera opinião e verdade. Esse contraste corresponde ao existente entre, de um lado, os acordos celebrados entre os homens e, de outro, a natureza; entre leis dependentes de pactos, e leis propiciadas pela tentativa de alcançar verdades eternas. Esse contraste é ainda mais evidente em Antifonte, embora o conteúdo do conceito de natureza defendido pelo sofista seja desconhecido (Cf. GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 27). O trabalho de Rommen, porém, estabelece uma distinção significativa entre as formas de pensar o Direito Natural, existentes entre os gregos. A distinção é aquela entre sofistas, como Antifonte, e pensadores aristocratas, como Heráclito; a distinção seria aquela existente entre doutrinas sobre o Direito Natural designadas como revolucionárias e conservadoras, embora o próprio Rommen admita a relativa impropriedade da terminologia empregada. As doutrinas do primeiro tipo seriam individualistas, relacionada à proposição de existência de um estado de natureza anterior ao consenso responsável pela emergência das formas da vida social. Essas formas, dependentes de considerações de utilidade, seriam, portanto, acidentais ou arbitrárias, e não exigidas pela metafísica (Cf. ROMMEN, 1998, p. 5).

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O sofista Hípias de Élis (460 a.C. – 400 a.C), como descrito por Platão, em Protágoras, afirma, por exemplo a unidade da espécie humana, separada artificialmente pelas distinções entre nações, ou melhor, por “convenções” contrárias à natureza, e responsáveis pela tirania (Cf. PLATÃO, 1997, p. 770). Ensinamentos como o de Hípias encontrariam oposição em doutrinas sobre um Direito Natural não dependente de um estado de natureza, mas de uma razão e lei universais, sob as quais todos os homens conduzem suas existências. Essa razão e lei universais, portanto, seriam garantia da conformidade individual e social, e afastariam a anarquia, a irracionalidade e a ruptura (Cf. ROMMEN, 1998, p. 5-6). As duas espécies de doutrina possuem em comum a crítica ao simples consenso, a crítica aos produtos fortuitos do intelecto. A primazia da razão, em Platão, confirma a ambição dos filósofos de alcançar a Verdade, mesmo que o ponto de partida tenha sido a

and will never be displaced, for their strength is ingrained in our nature” (GAGARIN; WOODRUFF, 2015, p. 293).

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simples opinião26. Com relevância para a consecução de tal objetivo, o autor da República afirmou, em Timeu, a existência de um universo onde os processos e ocorrências não são arbitrários, e nem podem ser perturbados de forma caprichosa, mesmo pelos deuses (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.224). A ideia de natureza, portanto, tornou-se normativa, isto é, capaz de veicular uma exigência de regularidade. Como sabido, a incidência de leis implica a existência de um sistema pautado na previsibilidade. Uma lei, por definição, não pode ser extranormal (nesse caso, um mandamento qualquer não podem ser realmente considerado lei). Uma natureza caracterizada com capacidade normativa, portanto, não pode ser compreendida como uma simples sucessão de acidentes. A uso da expressão lei natural, por Platão, apenas ocorre em Górgias, diálogo no qual Sócrates a coloca em contraposição ao Direito instituído pelos homens. Ainda em Górgias, Sócrates qualifica o universo como uma ordem, e nega sua desordem (Cf. PLATÃO, 1997, p. 828 e p. 852). Em outra passagem, a possibilidade de conhecimento racional da natureza também é afirmada, assim como a necessidade do conhecimento para o exercício de diferentes ofícios. No caso específico da Política, o conhecimento de duas matérias, Legislação e Justiça (Cf. PLATÃO, 1997, p. 808). A existência de uma ordem, e o requisito de conhecimento para o exercício das artes, contraria a simples opinião. O conhecimento, por sua vez, torna-se possível, com a existência uma realidade objetiva, cognoscível.

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A exigência de ordem apresentada com a caracterização da natureza é também evidenciada em Minos, com o debate entre Sócrates e um amigo. Este último possui a opinião de que cada cidade possui sua própria lei, através do consenso. Sócrates, porém, argumenta pela existência de uma realidade objetiva e imutável, revelada pelas diversas leis, uma verdade reguladora da vida humana. A lei, descreve Sócrates, constitui uma espécie de julgamento, e um julgamento verdadeiro. Como julgamento verdadeiro, a lei é uma descoberta da realidade. Os diferentes homens e povos, no entanto, nem sempre alcançam um julgamento verdadeiro. Assim, as diversas leis possuem diferentes qualidades, e podem ser consideradas independentemente de um simples consenso (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.310-1.314). 26

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E esse procedimento é talvez a base para a definição de Strauss (1965, p. 11) para o papel da Filosofia.

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O primeiro livro das Leis reproduz a ideia de concordância com a natureza, e da assimilação da ordem natural à razão. A lei de Creta, bem reputada, depende da hierarquização de determinados bens, humanos e divinos, pelo legislador. Essa hierarquização de bens depende de uma “ordem natural”, ou melhor, cada espécie de benefício deve ser alocado segundo uma ordem natural de precedência. O legislador celebrado não seria responsável por um critério de categorização ou escala, apenas capaz de acatar a ordem natural. A razão assinalada na passagem é capaz de dar ao conjunto das regras uma integridade lógica, inspirada por considerações de “Justiça” e “comedimento” (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.326-1.327).

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A razão referida pode possuir a aparência da razão própria de um legislador autointeressado, arbitrário, mas as condições respeitadas pela sua lei seriam aquelas observadas pelas leis de Zeus e Apolo, recepcionadas por Minos e Licurgo, respectivamente (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.326-1.327). A ação dos deuses, com a entrega das leis aos antigos legisladores, pode, superficialmente, possuir a aparência de um retorno à antiga proposição de origem simplesmente divina das leis. A exposição do décimo livro das Leis, porém, elabora uma doutrina segundo a qual a alma possui grau de dignidade superior à matéria, e segundo a qual existem uma ordem de bens da alma humana, capazes de informar a ordem ideal da cidade (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.549). Não se trata, então, de mais uma simples teoria de origem divina das leis, mas uma teoria sobre a disposição apropriada das coisas do mundo. A natureza descrita no décimo livro não é concebida em termos meramente materialistas, mas dependente de uma ordem anterior, espiritual. Nesse caso, o espiritual surge como origem de todos os fenômenos, e assim torna possível a afirmação dos deuses (essencialmente, almas) como responsáveis pelas regularidades naturais, como o ciclo lunar ou as estações (Cf. PLATÃO, 1997, p. 1.553-1.556). Existe uma intenção, portanto, originadora da ordem e do funcionamento do cosmos (Cf. NADDAF, 2005, p. 1). O universo descrito por Platão, embora dotado de uma teologia, não é mais guiado por caprichos divinos, por impulsos, mas possuidor de uma arrumação expectável e cognoscível. Aristóteles não apela, pelo menos não de forma explícita, a uma teologia. Ainda assim, estabelece, em sua Retórica, o contraste entre uma lei comum ou universal, comum aos homens em sua totalidade, e leis direito & LIBERDADE

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peculiares ou especiais, patrimônio de cada uma das diversas comunidades (Cf. ARISTÓTELES, 1984, p. 4.672). Essencialmente, a lei comum é lei segundo a natureza, universal; a lei especial é estabelecida por cada comunidade, e apenas aos seus membros é aplicável (Cf. ARISTÓTELES, 1984, p. 4.689). Finalmente, a lei universal é imutável, contrariamente aos mandamentos estabelecidos por diferentes comunidades, variáveis através do tempo. O apelo aos princípios imutáveis (e comuns) possibilitaria a Justiça quando a lei especial é injusta (Cf. ARISTÓTELES, 1984, p. 4696). Aristóteles também estabelece o liame entre lei e razão. O governo das leis é o governo da razão, livre das paixões. Isso permite a definição da lei como razão não afetada pelo desejo, e o meio através do qual a Justiça pode ser alcançada, assim como o tratamento médico surge como resposta adequada para o retorno ao estado saudável, em caso de doença. Ainda em defesa daquilo que, em termos modernos, seria chamado de rule of law, Aristóteles afirma a desnecessidade do governo de um sobre os demais, quando todos membros da sociedade política são homens da mesma qualidade. Contrariamente, um homem tão bom quanto os seus semelhantes não pode substituir o governo da lei. Esse seria o caso de uma das formas pervertidas de governo, a tirania (Cf. ARISTÓTELES, 1984, p. 4.384-4.386).

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O pensamento de Aristóteles e de Platão, segundo Rommen, expressaria a tendência “conservadora” das doutrinas sobre o Direito Natural. Segundo Rommen, a preocupação de ambos os filósofos seria a garantia de ordem social e política e, por esse motivo, eles não procuraram dar conteúdo ao seu Direito Natural. A assunção do pensamento de Platão e Aristóteles seria a de Direito Positivo como tentativa de realização do Direito Natural, quando necessário suplementado por considerações de Justiça feitas pelo julgador. Outra assunção seria a de que o verdadeiro legislador seria aquele capaz de estabelecer preceitos justos. Tais formulações, portanto, possuiriam o objetivo de justificação das leis existentes, e não o de crítica (Cf. ROMMEN, 1998, p. 15-16). A formulação é talvez redimida, no entanto, com a entendimento de Leo Strauss, de que a ideia de Direito Natural pressupõe o questionamento da autoridade. Caso esta última não seja questionada, a Filosofia não seria possível, e nem mesmo a percepção da natureza pela mente 224

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humana. A autoridade, como descrita por Strauss, corresponderia ao simples atendimento das exigências do modo de vida tradicional da comunidade (Cf. STRAUSS, 1965, p. 83-84), modo de vida que pode não corresponder ao “bem”. O simples acatamento da autoridade existente, dessa forma, impediria o questionamento do status quo, e a busca do bom e do modo apropriado de proceder, dependente do uso da razão. A razão, no entanto, não teria sido utilizada para converter a razão em uma nova autoridade, mas para permitir a distinção entre natureza e simples convenção (Cf. STRAUSS, 1965, p. 84-92). A razão, portanto, permitiria a descoberta da melhor lei, com a crítica ao simples costume. A conexão entre natureza, razão e lei, estabelecida por Platão e Aristóteles, foi aprofundada pelos pensadores estoicos (Cf. STRAUSS, 1965, p. 83-84). Em síntese apertada, necessária em função do caráter eclético do pensamento cultivado pela escola, o estoicismo preconizou a supremacia da razão sobre as paixões, na determinação e discernimento da melhor conduta do agente individual. Essa opção informou o conteúdo da virtude, para a escola, a razão reta, ou razão segundo a natureza. A razão, portanto, confunde-se com uma lei universal, e a observância de tal lei universal implicaria uma vida conduzida segundo a razão. De modo talvez mais preciso, uma vida segundo a natureza racional do indivíduo (Cf. ROMMEN, 1998, p. 19-20).

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Cícero foi o principal intérprete e propagador da doutrina estoica do Direito Natural. Segundo o ensinamento contido em De legibus, os homens foram criados por um poder superior benevolente, autor do universo, interessado pelos afazeres humanos. Esse mesmo poder teria conferido aos homens uma parcela de sua própria divindade, expressa, por exemplo, em faculdades como fala e intelecto. A razão, dessa forma, é comum aos homens e ao poder superior. Quando empregam essa razão, portanto, os homens atuam com a benevolência característica do seu criador. Essa razão é considerada lei, algo capaz de permitir o bem e proibir o mal, disposição apenas perturbada pela falibilidade e apetites humanos (Cf. CÍCERO, 1999, p. 111-112). A lei e essa sabedoria descritas pelos estoicos não existiriam em negação das leis humanas; estas possuem seus próprios méritos, claro, mas podem ser objeto de elogio ou crítica de acordo com sua conformidade à lei eterna. Além disso, não é ignorado o assentimento popular e direito & LIBERDADE

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a garantia da observância das prescrições existentes. Segundo tal perspectiva, uma lei específica, promulgada segundo propósito local ou temporário, ainda será lei, em função da sua aprovação pública. Cícero considera que um preceito possuirá força de lei enquanto observada pela população, e enquanto o Estado garantir o seu cumprimento. As leis ruins, contrárias às leis eternas, no entanto, não merecerão a designação de leis, e Estados que as promulgarem não merecerão a designação de Estados (Cf. CÍCERO, 1999, p. 129). As asserções ofertadas em De legibus poderiam ser criticadas pela sua imprecisão ou vagueza. O questionamento diria respeito ao conteúdo dessa lei ou Direito, ao problema da aparente inexistência de diretrizes claras ou específicas para a conduta individual, autorizações e proibições expressas27. Essa crítica, porém, ignora o reconhecimento, pelos próprios estoicos, de que a lei eterna realmente não seria capaz de estabelecer comandos gerais. Isso, porém, não poderia ser apontado como deficiência da lei, quando considerada a noção de que a ação virtuosa dependeria das circunstâncias, e não de injunções com maior grau de abstração (preceitos gerais) (Cf. IRWIN, 2003, p. 345). De outra forma, a ideia provavelmente é a expressa em passagem do primeiro livro, quando Cícero define a lei como poder natural capaz de permitir ao homem prudente a distinção entre justiça e injustiça (Cf. CÍCERO, 1999, p. 112). Cícero, portanto, propõe uma espécie de frônese, ou sabedoria prática.

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A mesma espécie de sabedoria é defendida por Burke, com sua crítica ao pensamento e direitos abstratos28. Em Reflexões sobre a 27

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Esse é um equívoco comum quando do estudo da tradição do Direito Natural: ignora-se a existência de prescrições aplicáveis aos casos concretos. O Direito Natural não é apenas fundamento de uma ordem jurídica qualquer, mas capaz de opor prescrições. Não ser punido antes de julgamento e sentença, por exemplo, assim como o dever negativo capaz de proibir o julgamento do ilícito pela própria vítima, compreende prescrições tradicionais de Direito Natural. “Circumstances (which with some gentlemen pass for nothing) give in reality to every political principle its distinguishing colour, and discriminating effect. The circumstances are what render every civil and political scheme beneficial or noxious to mankind. Abstractedly speaking, government, as well as liberty, is good; yet could I, in common sense, ten years ago, have felicitated France on her enjoyment of a government (for she then had a government) without enquiry what the nature of that government was, or how it was administered? Can I now congratulate the same nation upon its freedom? Is it because liberty in the abstract may be classed amongst the blessings of mankind, that I am seriously to felicitate a madman, who has escaped from the protecting restraint and wholesome darkness of his cell, on his restoration to the enjoyment of light and liberty? Am

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revolução na França, negou-se a possibilidade de julgar a virtude ou vício de um preceito ou direito, quando tais são considerados apenas em termos abstratos. Desse modo, o julgamento de um governo ou de uma liberdade dependem das circunstâncias de sua concretização, e a sua defesa não é possível, antes da consideração da sua realidade (Cf. BURKE, 1999, p. 93-94). A crítica burkeana aos preceitos abstratos não nega, no entanto, a possibilidade de uma lei eterna. Claro, em seus escritos, Burke admitiu a divergência entre diferentes constituições, segundo o caráter e história de diferentes povos (Cf. BURKE, 1999, p. 190).

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A lei eterna pensada por Burke garantiria a existência de uma ordem moral universal. Por isso mesmo, todas as leis humanas apenas possuiriam caráter meramente declaratório, ou melhor, apenas seriam capazes de alterar a forma de aplicação da Justiça, mas sem qualquer poder sobre a fonte originadora da Justiça (Cf. BURKE, 1887, p. 22). Nesse caso, existe a afirmação de uma ordem eterna, e de variações determinadas pela experiência histórica particular de cada população, um historicismo que não despreza a existência de valores objetivos (Cf. BALDACCHINO, 1943, p. 141). Igualmente, existe o fato da limitação das faculdades humanas, que impediriam o homem de compreender a lei eterna de forma integral, ou de interpretar os seus comandos de forma precisa (Cf. PARKIN, 1956, p. 132). Essa parece ser a mesma espécie de Direito afirmada por Cícero em De legibus.

A mais influente definição desse Direito, no entanto, parece ser a encontrada no terceiro livro da De re publica, obra na qual a verdadeira lei, regedora de todas as nações, através das eras, seria eterna e imutável, e estabelecida por Deus, em seu papel de imperador da humanidade29. A existência dessa lei, talvez no mesmo espírito que anima a ideia de uma sabedoria voltada para casos concretos, aparentemente não negaria a validade das antigas instituições romanas. Essa parece ser a noção presente em passagem de Ênio reproduzida por Cícero, no início do quinto livro, segundo a qual os hábitos ou costumes dos antepassados

I to congratulate an highwayman and murderer, who has broke prison, upon the recovery of his natural rights?” (BURKE, 1999, p. 93-94) 29 “Omnes gentes et omni tempore una lex et sempiterna et immutabilis continebit, unus erit communis quasi magister et imperator omnium Deus, ille legis huius inventor, disceptor, lator” (CÍCERO, 1999, p. 71-72).

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teriam favorecido o desenvolvimento e operação da boa ordem política30. Em uma tentativa arriscada de ajustamento entre escritos distintos, talvez seja possível afirmar a crença na atuação desses ancestrais segundo a ideia de sabedoria prática. Essa atuação caracterizaria esses ancestrais como homens virtuosos, consoante o conceito de virtude dependente da conduta adequada segundo as circunstâncias.

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A lei superior, portanto, é capaz de comandar e proibir ações. No Tract on the poppery laws, escrito de Burke sobre as leis de repressão ao catolicismo na Irlanda, a mesma fórmula é invocada31. Burke, como Cícero, afirmou a existência de uma lei eterna e imutável, superior aos ditados dos homens. O trabalho nega a possibilidade de leis humanas extraírem qualquer autoridade de sua própria instituição; simultaneamente, afirma-se o erro da instituição de leis contrárias à vontade do responsável pela instituição da natureza humana. O apelo à natureza humana, em Reflexões sobre a revolução na França32, é provavelmente derivado de uma observação de mesmo teor, contida em De legibus33.

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Burke, tanto quanto Cícero, afirmou ainda a existência de duas naturezas humanas distintas. Em De officiis, o homem é caracterizado como possuidor de uma primeira natureza ou caractere, eterno e imutável, e um outro, conferido aos indivíduos enquanto tais. O problema apresentado por Cícero é o do exercício da individualidade, ou segunda natureza, com fidelidade à primeira (Cf. CÍCERO, 1991, p. 42-43). A mesma distinção é realizada em Reflexões sobre a revolução na França, com a afirmação de um substrato essencial compartilhado por todos os seres humanos, e de uma segunda natureza composta por sentimentos, opiniões, preconceitos e hábitos acumulados através da vida (Cf. BURKE, 1999, p. 477). A relação entre as duas naturezas humanas, essencial e 30 “Moribus antiquis res stat Romana virisque” (CÍCERO, 1999, p. 87-88). 31 “[…] a principle of a superior law, which it is not in the power of any community, or of the whole race of man, to alter, — I mean the will of Him who gave us our nature, and in giving impressed an invariable law upon it. It would be hard to point out any error more truly subversive of all the order and beauty, of all the peace and happiness of human society, than the position, that any body of men have a right to make what laws they please, — or that laws can derive any authority from their institution merely, and independent of the quality of the subject-matter. No arguments of policy, reason of state, or preservation of the constitution can be pleaded in favor of such a practice” (BURKE, 1887, p. 322). 32 “The nature of man is intricate […]” (BURKE, 1999, p. 72). 33 A passagem caracteriza do homem como “[...] providum, sagax, multiplex, acutum, memor, plenum rationis et consilii” (CÍCERO, 1999, p. 113).

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circunstancial, parece espelhar, portanto, a relação existente entre a lei eterna e as leis mundanas, entre a exigência de satisfação da lei imutável e a existência de questões circunstanciais, cuja solução pode destoar das imposições da primeira lei.

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Edmund Burke surge, portanto, como herdeiro de uma tradição clássica do Direito Natural e, essencialmente, herdeiro do pensamento estoico, através de Cícero. A lei natural insinuada através de sua obra, diferentemente daquela defendida pelos revolucionários, não possui relação com um estado de natureza anterior, ou direitos subjetivos, mas com uma ordem do mundo, dependente da existência de um Criador. Esse Direito, no entanto, pode não ser bem compreendido pela limitada capacidade intelectual humana, e isso, além da experiência histórica, informa a variedade de leis existentes, nas diferentes sociedades, e através do tempo.

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Edmund Burke faleceu em 1797, talvez como um dos últimos políticos defensores da teoria clássica do Direito Natural. Cícero influenciou, igualmente, os Founding Fathers americanos, e a eles comunicou sua teoria sobre a origem do Direito. A própria revolução e a Bill of Rights foram produtos da teoria jusnaturalista (Cf. RICHARD, 2015, p. 137), embora tenha existido uma ênfase em direitos subjetivos, inalienáveis, distinta do pensar clássico e daquele cultivado por Burke, horizontes nos quais direitos subjetivos (direitos do homem) não possuíam realmente lugar. Os séculos XIX e XX, porém, testemunhariam a expansão não da ideia de uma ordem jurídica comum, objetiva, mas sim dos direitos subjetivos. Igualmente, os homens desses séculos acompanharam o triunfo do positivismo, que não pode ser dissociado de uma determinada estirpe de liberalismo34. A mudança ocorrida é associada por Linda C. Raeder ao pensamento de John Stuart Mill. Segundo Raeder, mesmo que Mill tenha mantido seu compromisso com um governo limitado, elemento essencial do pensamento liberal, ele trouxe ao ambiente intelectual liberal a noção de que o papel do governo seria o aperfeiçoamento da condição humana, algo muito distinto da compreensão de um governo voltado para a preservação de liberdade individual sob o rule of law. A ambição

34 A tradição de defesa de liberdade com base no racionalismo, a tradição francesa.

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de Mill seria, afirma Raeder, a substituição de uma sociedade teologicamente orientada, dependente da relação entre homem e divindade, para uma relação, para uma sociedade baseada puramente no homem (Cf. RAEDER, 2002, p. 320).

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A liberdade sob a lei, como tradicionalmente compreendia, no entanto, possui relação com a posição do homem, criatura, sob uma lei superior aos mandamentos dependentes da vontade de um legislativo. Além disso, essa liberdade possui relação com a sacralidade da própria condição humana, que por sua vez encontra fundamento no próprio Deus. Dessa forma, a formulação de Mill, com ênfase na elevação do homem e a substituição de Criador por criatura, surgiu como negação da ideia de uma lei superior. Com a elevação dos homens, e com a humanidade como único e último valor, os legisladores humanos tornam-se divindades (Cf. RAEDER, 2002, p. 320-321). É inibida, de tal modo, a possibilidade de criticar a autoridade, intríseca ao conceito de Direito Natural.

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O presente estudo não possui o escopo de julgar a validade da tese de Raeder sobre os efeitos do pensamento de John Stuart Mill. No entanto, existe sim coerência entre a ideia da existência de uma lei superior, eterna, e a ideia de dignidade do homem ser criado pelo mesmo autor da lei eterna; igualmente, existe relação entre as ideias de lei eterna e de dignidade humana, de um lado, e a de um governo limitado. A limitação das atividades de governo estaria na possibilidade de crítica às prescrições emanadas do legislativo (humano e, portanto, falho), segundo o conteúdo atribuído ao Direito Natural. As leis, como afirmou Burke, não possuem dignidade dependente da sua simples instituição (Cf. BURKE, 1887, p. 22). O valor inerente ao homem, sim, seria capaz de limitar as construções legislativas. A tese de Raeder possui mais conexões com o pensamento de Edmund Burke. Mill teria, afirmou, enxertado elementos do radicalismo francês no interior do tecido da tradição anglo-americana, possibilitando, assim, o nascimento do progressismo posteriormente designado através do termo liberalismo, nos EUA (Cf. RAEDER, 2002, p. 321). Burke, conhecido pela sua crítica ao pensamento dos philosophes, denunciou o ateísmo dos revolucionários em suas Letters on a regicide peace. O sentido do termo ateísmo, empregado por Burke, no entanto, é 230

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o “ateísmo estatal”, um não reconhecimento da existência de Deus pelo estado francês. Burke criticou, na mesma passagem, o desejo de aperfeiçoar o ser humano através de leis (Cf. BURKE, 1999, p. 124-127), crítica que poderia ser facilmente abranger o progressismo.

CONCLUSÃO

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O reconhecimento da existência de uma lei divina, portanto, nos moldes da formulação clássica do Direito Natural, esposada por Edmund Burke, contribuiria para um governo garantidor das liberdades, sob o rule of law, e isento dos perigos de uma afirmação de aperfeiçoamento da condição humana, perigos exemplificados pela violência das doutrinas armadas do século XX. O desenvolvimento possível, portanto, seria individual, e facultado aos sujeitos em busca da compreensão de um Direito anterior ao Direito humano. A limitação dos poderes do Estado, especialmente do poder de legislar, seria essencial para essa possibilidade de florescimento.

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O liberalismo, como afirmado anteriormente, possui como caractere essencial a limitação do Poder do Estado. Não por coincidência, as doutrinas que eventualmente seriam designadas através do termo, desenvolveram-se ao lado do Estado moderno, até mais do que como reação ao ancien régime. O Estado moderno, com sua centralização e burocracia, capaz de mobilizar vastos recursos humanos e financeiros, e detentor dos poderes de legislar, julgar e executar, praticamente justifica o desenvolvimento do liberalismo. Ou melhor, o liberalismo não seria necessário sem a possibilidade de abusos de poder.

O liberalismo ainda não existia realmente na década de 179035, quando do debate britânico sobre a Revolução Francesa. O seu gérmen, no entanto, estava presente, embora os seus contornos precisos não 35 Aqui existem divergências. John Locke (1632-1704) anteceu em quase um século a Revolução Francesa, e a Revolução Gloriosa (1688-1689) costuma ser compreendida como uma revolução liberal. O “liberalismo” da Revolução Gloriosa, no entanto, não era moderado e contrário ao Estado, mas revolucionário e intervencionista. Nesse caso, a Revolução Gloriosa pode ser interpretada como a vitória de um grupo de defensores de uma modernização, em contraposição a uma sociedade tradicional. Sobre essa interpretação, consultar Steven Pincus (2009).

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possam ser identificados36. A Constituição Americana (1787) e a Bill of Rights (1789) podem ser considerados documentos fundadores do liberalismo, mesmo que esses textos tenham surgido, claro, como produtos de uma longa genealogia intelectual. Esses não foram direitos criados pelo mero ato de sua escritura, mas sim direitos cuja importância exigiu a sua veiculação através do texto (Cf. ARKES, 2010, p. 7)

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A certeza encontrada na Bill of Rights era a de direitos dependentes da natureza humana, e não simples direitos positivos legitimados por um consenso (Cf. ARKES, 2010, p. 7). O mesmo postulado pode ser encontrado no pensamento burkeano sobre a origem do Direito, como afirmado anteriormente. O fundo imediato do pensamento de Burke, a obra de Cícero, oferta a mesma ideia, a de um Direito independente da simples opinião ou consenso. O fundamento mediato, a tradição clássica divulgada por Cícero, evidencia a mesma origem para o Direito, em uma ordem eterna. Simultaneamente, essa tradição não nega a existência de virtude na capacidade de atuar segundo as exigências circunstanciais.

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Inspirada na tradição clássica do Direito Natural, os escritos de Burke evidenciam o valor da ideia de uma ordem superior aos simples caprichos do homem, capaz tanto de garantir a liberdade, através da limitação ao poder de legislar, quanto capaz de moderar a própria liberdade, segundo preceitos independentes dos desejos momentâneos das maiorias. Contrariamente, um Direito instituído pela simples edição de leis escritas, mesmo leis de natureza constitucional, não possui tais qualidades. O Direito Positivo é dependente da simples opinião, e não um Direito exigido por uma verdade. Obviamente, esse argumento possui uma qualidade extravagante, em tempos de relativismo. No entanto, durante milhares de anos, esse argumento foi parte dos debates em torno da gênese do Direito. A existência de uma verdade eterna, passível de descoberta, e oposta aos mais variados ponto de vista ou consenso possui implicações metafísicas e religiosas. Por isso mesmo o trabalho de Linda Raeder, uma leitura religiosa da obra de Stuart Mill, surge como essencial para a compreensão do novo liberalismo, cujo nascimento dependeu de elementos do radicalismo francês. Como é sabido, as ideias de criação de um novo homem, 36

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Estágios desse desenvolvimento podem ser rastreados até Hobbes e Locke, mas o momento de nascimento de uma escola de pensamento costuma ser obscuro.

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e de um novo mundo, livre da herança e da tradição, foram criticadas por Burke, e esses aparecem como alguns dos corolários da religião da humanidade de Comte e Mill.

REFERÊNCIAS

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A possibilidade de aproximação entre Direito Natural (em uma formulação clássica) e liberalismo se torna então pertinente, com a deificação do ser humano e consequente apoteose do legislador. Essa aproximação se torna especialmente urgente, em tempos de negação de uma ordem eterna e afirmação de verdades tão numerosas quanto os grupos de pressão e indivíduos participantes do processo político. Assim, o pensamento clássico, relevante no século XVIII, emerge mais uma vez como fonte inspiradora de análise e renovação do jurídico e do político. Edmund Burke, em seus comentários e Filosofia, utilizou essa herança, e as inquietações atuais demonstram mais uma vez o seu valor e utilidade.

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls Valdenor Monteiro Brito Júnior1

O objetivo do presente artigo é desenvolver como o princípio da diferença, tal como formulado por John Rawls, leva a resultados paradoxais em decorrência de um conflito entre a aplicação deliberada do princípio por uma ordem jurídica-institucional considerado o presente e suas consequências não pretendidas quando considerado o futuro.

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Primeiro, define-se as principais características do princípio da diferença na obra de Rawls, e apresenta-se o modo como Jason Brennan (2007), no paper Rawls’s paradox, demonstrou a existência de um paradoxo em sua aplicação, conectando este resultado à insistência de Rawls em defender que a estrutura básica da sociedade deve realizar intencionalmente e diretamente o princípio da diferença.

Após isso, investiga-se se este paradoxo emerge de uma interpretação específica do princípio da diferença endossada por Rawls e pela maioria dos rawlsianos, e se o paradoxo poderia ser evitado por uma interpretação alternativa, que não demanda a aplicação deliberada do princípio da diferença pela ordem jurídica-institucional. Para tanto, recorre-se à classificação feita por John Tomasi (2012), na obra Free market fairness.

1 Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), graduado em Direito pelo Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).

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O PRINCÍPIO DA DIFERENÇA A formulação de dois princípios de justiça por Rawls foi realizada, originalmente, em seu livro Uma teoria da justiça, e, posteriormente, foi revisada em seu livro Justiça como equidade.

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Os dois princípios encontram justificação em um consentimento (hipotético) que seria alcançado na posição original sob um véu de ignorância que garante a imparcialidade dos agentes: A ideia da posição original é estabelecer um processo equitativo, de modo que quaisquer princípios aceitos sejam justos. O objetivo é usar a noção de justiça procedimental pura como fundamento da teoria. De algum modo, devemos anular os efeitos das contingências específicas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assumo que as partes se situam através de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais (RAWLS, 2000, p. 146-147).

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Álvaro de Vita (2000), seguindo uma proposta de classificação originalmente proveniente de Derek Parfit e Thomas Nagel, considera que Rawls pretende fundar sua teoria em razões morais “neutras em relação ao agente”, como contrapostas a razões morais “relativas ao agente”. Razões morais “neutras em relação ao agente” caracterizam-se pela impessoalidade, sendo independentes dos interesses e perspectiva individual de qualquer agente para alcançar um ponto de vista que seja desinteressado e imparcial que considera a vida de todas as pessoas como possuindo valor e um valor igual (VITA, 2000, p. 16-17). Seus dois componentes são a imparcialidade e o consequencialismo, que, combinados, significam que as ações corretas cuja consequência são estados de coisas nos quais a consideração imparcial dos interesses de todos é atendida (VITA, 2000, p. 17). Já as razões morais “relativas ao agente” caracterizam-se pela pessoalidade, pois decorrem da perspectiva individual do agente onde respeita-se que cada pessoa tem uma vida para 238

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levar e abarcam razões de autonomia pessoal, obrigações especiais e constrições deontológicas (VITA, 2000, p. 17-20).

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Como se vê, o objetivo de Rawls ao pensar o véu da ignorância é articular uma maneira de atender ao requisito da imparcialidade, onde a escolha de princípios de justiça não seja afetada pela posição individual do agente. Além disso, atende também ao quesito consequencialista, uma vez que nessa posição original os agentes tentam maximizar as consequências mais desejáveis em termos do interesse de todos. Nesse sentido, Vita (2000, p. 22) considera o liberalismo igualitário de Rawls, ao lado do utilitarismo, como uma variante de reflexão normativa que enfatiza a imparcialidade moral. Ao invés de perguntar a cada um o que aceitaria sob seu interesse próprio (como ocorre no contratualismo hobbesiano de Gauthier; veja GARGARELLA, 2008, p. 15-17), pergunta-se pelo que cada um não poderia rejeitar caso considerasse equitativamente os interesses de todos, incluindo a si mesmo, em termos da estrutura institucional em que conduzirão suas vidas (VITA, 2000, p. 186). Assim, evita-se a arbitrariedade moral de aceitar como correto que pessoas sejam beneficiadas ou prejudicadas por circunstâncias alheias às suas próprias escolhas (GARGARELLA, 2008, p. 26), o que as teorias “relativas ao agente” não conseguem fazer.

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Os dois princípios são enunciados no livro Uma teoria da justiça, mas houve modificações no posterior Justiça como equidade. Na sua formulação de Uma teoria da justiça, o primeiro princípio falava no mais extensivo conjunto de liberdades iguais, enquanto a formulação de Justiça como equidade não mais endossa essa maximização2. Neste artigo discutiremos a versão final dos dois princípios, como enunciada abaixo: (a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdade para todos; e (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo

2 Após a crítica de Hart (1973), Rawls revisa o princípio da liberdade de modo a não mais contemplar a defesa de que as liberdades iguais devem ser as mais extensivas possíveis, mas apenas que haja um esquema adequado delas (LOMASKY, 2005, p. 181).

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lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade (o princípio da diferença) (RAWLS, 2003, p. 60).

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Antes de entrar especificamente na análise do princípio da diferença, deve-se recordar que referidos princípios aplicam-se à “estrutura básica da sociedade”, isto é, suas instituições que afetam os resultados distributivos da cooperação social, e existe uma prioridade lexical, onde o princípio da liberdade é priorizado em relação ao princípio da igualdade equitativa de oportunidades, e este é priorizado em relação ao princípio da diferença. Em seu Uma teoria da justiça, Rawls (2000) contrapõe o princípio da eficiência ao princípio da diferença. O princípio da eficiência afirma que uma configuração é eficiente sempre que é impossível mudá-la de modo a fazer com que algumas pessoas melhorem sua situação sem piorar a de nenhuma outra (RAWLS, 2000, p. 71). Portanto, tem como objetivo o alcance do Ótimo de Pareto, que é uma configuração de bem-estar na qual todas as melhoras possíveis de bem-estar por parte de alguns sem piorar a situação de nenhum outro já foram alcançadas.

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Contudo, há inúmeros pontos ao longo da fronteira de Pareto, tendo como resultado diferentes distribuições de renda e de riqueza. Do ponto de vista do princípio da eficiência, todos esses pontos (com suas consequentes distribuições) seriam igualmente válidos (RAWLS, 2000, p. 75). Já o princípio da diferença determina que alguns desses pontos (com suas consequentes distribuições) devem ser preferidos a outros: o ponto na curva de indiferença (onde todas as distribuições são igualmente eficientes) em que as maiores expectativas daqueles que estão em melhor situação resultem também em melhores expectativas para os membros menos favorecidos da sociedade (RAWLS, 1997, p. 79-80). Portanto, um incremento na desigualdade que tenha como resultado melhorar as expectativas dos menos favorecidos é aceito, mas um incremento na desigualdade cujo resultado seja diminuir essas expectativas é rejeitado: O princípio da diferença é uma concepção fortemente igual no sentido de que, se não houver uma distribuição que melhore a 240

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situação de ambas as pessoas (limitando-nos, para simplificar, ao caso de duas pessoas), deve-se preferir uma distribuição igual (RAWLS, 2000, p. 80)

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Em Justiça como equidade, Rawls (2003) prossegue este raciocínio, e define os menos favorecidos a partir do critério do acesso a bens primários, que são coisas necessárias e exigidas pelas pessoas, tanto por sua condição humana, como por sua condição de cidadãos que são membros plenamente cooperativos da sociedade (RAWLS, 2003, p. 81). Assim, a desigualdade distributiva é mensurada pela diferença nas expectativas (razoáveis) de bens básicos ao longo da vida, e os menos favorecidos são aqueles que pertencem à classe de renda com as expectativas mais baixa (RAWLS, 2003, p. 83), portanto, “os mais pobres”. A noção de que o princípio da diferença seleciona um resultado eficiente novamente é observada em sua argumentação:

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Tomemos qualquer ponto da curva OP: se os ganhos dos mais favorecidos estão representados pelo ponto correspondente no eixo x, os ganhos dos menos favorecidos estão representados pelo ponto correspondente no eixo y. Portanto, em geral, existem diferentes curvas OP para diferentes esquemas de cooperação; e alguns esquemas estão desenhados de modo mais efetivo que outros. Um esquema é mais efetivo que outro se sua curva OP sempre dá um retorno maior para os menos favorecidos qualquer que seja o retorno para os mais favorecidos (RAWLS, 2003, p. 89-90).

Contudo, o próprio Rawls (2000, p. 80), em Uma teoria da justiça, quando da análise dos gráficos relativos à aplicação do princípio da diferença, presume que a economia cresce apenas até um ponto no qual os mais favorecidos só ganham se os menos favorecidos perdem, portanto, um estado econômico estacionário sem crescimento. O gráfico ali constante ilustra isso ao mostrar ambas as linhas crescendo a partir de um ponto inicial 0, mas, a partir de certo ponto, uma linha continua crescendo enquanto a outra diminui. Já em Justiça como equidade (RAWLS, 2003), essa consideração sobre a dimensão intertemporal do princípio da diferença é feita mais explícita. Eis o trecho: direito & LIBERDADE

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18.3 Outro aspecto do princípio da diferença é que ele não exige um crescimento contínuo geração após geração para maximizar para cima e indefinidamente as expectativas dos menos favorecidos (avaliadas em termos de renda e riqueza). Esta não seria uma concepção razoável de justiça. Não deveríamos excluir a ideia de Mill de uma sociedade num estado estacionário justo em que cesse a acumulação (real) de capital. Numa sociedade bem-ordenada tal possibilidade é admissível. O que o princípio da diferença exige é que durante um intervalo apropriado de tempo as diferenças em termos de renda e riqueza obtidas pela geração do produto social sejam tais que se as expectativas legítimas dos mais favorecidos fossem menores, as dos menos favorecidos também seriam menores. A sociedade sempre estaria na parte ascendente ou no topo da curva OP (RAWLS, 2003, p. 90).

Enquanto sua obra nunca desenvolva isso de forma mais clara, o motivo para rejeitar o crescimento econômico na interpretação do máximo benefício aos menos favorecidos parece estar no valor do trabalho significativo em uma comunidade de iguais. Isso é afirmado em Uma teoria da justiça no contexto da discussão sobre um nível de poupança justo:

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Finalmente, o último estágio em que se deve fazer poupança não se caracteriza por uma grande abundância. Talvez essa consideração mereça alguma ênfase. Um aumento na riqueza pode não ser supérfluo para algumas finalidades; e, de fato, talvez a renda média não seja, em termos absolutos, muito alta. A justiça não exige que gerações anteriores economizem para que as posteriores sejam meramente mais ricas. A poupança é exigida como uma condição para que se promova a plena realização das instituições justas e das liberdades iguais. Se um acúmulo adicional deve ser feito, isso se dá por outros motivos. É um erro acreditar que uma sociedade boa e justa deve aguardar a vinda de um alto padrão de vida material. O que os homens querem é um trabalho significativo em livre associação com os outros, essas associações regulando suas relações mútuas dentro de uma estrutura de instituições básicas justas. Para que se atinja esse estado de coisas, não se requer grande riqueza. De fato, além de um certo ponto, ela tende mais a ser um verdadeiro obstáculo, na melhor das hipóteses uma distração, senão uma

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tentação a que nos entreguemos ao vício e ao vazio (RAWLS, 2000, p. 322-323).

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Esta restrição no aspecto intertemporal do princípio da diferença torna este princípio uma ferramenta inócua para avaliar o bem-estar dos menos favorecidos, e sua aplicação prática resulta em prejuízo aos interesses dos mais pobres, conforme se demonstrará pela apresentação do paradoxo no tópico a seguir. O PARADOXO INTERTEMPORAL DO PRINCÍPIO DA DIFERENÇA No paper Rawls’ paradox, Jason Brennan (2007) defende que a teoria da justiça de Rawls é paradoxal, ao demandar uma sociedade que busque diretamente maximizar os bens básicos recebidos pelos menos favorecidos, mesmo que isso impeça referida maximização. Brennan (2007) primeiro define uma distinção entre “buscar” (aiming) e “satisfazer” um princípio, ou, mais propriamente, entre “buscar diretamente satisfazê-lo” e “buscar indiretamente satisfazê-lo”.

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Suponha que o propósito do governo seja satisfazer o bem-estar geral. O Estado pode fazê-lo diretamente, instituindo burocracias para se ocupar da promoção do bem-estar, oferecendo subsídios e garantias, provendo uma renda mínima, promovendo emprego, tentando ajustes macroeconômicos, oferecendo atendimento médico gratuito, entre outras ações (BRENNAN, 2007, p. 288-289).

Mas isso também pode ser alcançado indiretamente: o governo pode prover uma estrutura institucional de incentivos (como a regra de Direito, democracia representativa, tribunais e um regime adequado de direitos de propriedade) sob a qual as pessoas agirão espontaneamente de modo a promover o bem-estar geral (BRENNAN, 2007, p. 289).

Por outro lado, Brennan (2007, p. 289) apresenta uma distinção adicional: um objetivo pode ser alcançado publicamente quando todos os cidadãos estão conscientes de que seu sistema político tem isso como alvo, ou não publicamente, quando não existe esta consciência. E a distinção pode ir ainda mais longe. Uma estrutura básica pode satisfazer um princípio não intencionalmente, ou seja, sem ter sido direito & LIBERDADE

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elaborada para perseguir, seja diretamente ou indiretamente, seja publicamente ou não publicamente, aquele objetivo específico. Por exemplo, a estrutura pode ter sido projetada com a intenção de conseguir outro objetivo, como a perfeição moral de seus membros, mas, como resultado de leis da economia e do pano de fundo psicológico, pode continuamente satisfazer o princípio da diferença (BRENNAN, 2007, p. 289).

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E isso suscita a seguinte questão: buscar diretamente satisfazer algo é uma garantia de alcançá-lo? É claro que não. Brennan (2007, p. 289) usa como exemplo o paradoxo do hedonismo, pelo qual o ato de buscar o prazer é o que impede o agente de senti-lo. Se o hedonista quiser ser bem-sucedido em viver uma vida prazerosa ao máximo, ele não pode tratar atividades e amigos como meros instrumentos, uma vez que derivar prazer dessas atividades e amizades está condicionado ao fato da pessoa encará-las como intrinsecamente valiosas (BRENNAN, 2007, p. 289). O foco direto no prazer seria contraditório à obtenção do prazer almejado.

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Brennan (2007, p. 290), então, mostra que Rawls toma uma posição restritiva, mesmo em princípio, quanto aos tipos de regime social permissíveis. Dentre capitalismo laissez-faire, capitalismo de bem-estar social, socialismo de Estado com uma economia centralizada, socialismo liberal democrático e democracia de cidadãos-proprietários, Rawls apenas aceita as duas últimas como compatíveis ao princípio da diferença. Essa restrição quanto aos regimes sociais permissíveis seria resultado da insistência de Rawls em que a estrutura básica seja projetada de modo a diretamente alcançar o princípio da diferença, porque essa é a razão por ele usada para aceitar apenas o socialismo liberal democrático e a democracia de cidadãos-proprietários (BRENNAN, 2007, p. 290-292). Os argumentos rawlsianos pressupõem que a estrutura básica deva buscar diretamente o princípio da diferença (em contraposição a meramente satisfazê-lo). Isso resulta em um paradoxo: o paradoxo de Rawls, que seria análogo ao paradoxo do hedonismo, ao exigir uma estratégia auto-sabotadora (self-defeating strategy) de realização direta do princípio da diferença pela estrutura básica ao custo de sua satisfação (BRENNAN, 2007, p. 289-290). 244

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Esse paradoxo pode ser demonstrado tanto em abstrato (BRENNAN, 2007, p. 292-294), quanto na realidade empírica de nosso mundo (BRENNAN, 2007, p. 294-297).

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Brennan (2007, p. 292) engenhosamente trabalha uma premissa aceita por Rawls para demonstrar a ocorrência do paradoxo em abstrato: Rawls aceita que seu modelo favorecido (a democracia de cidadãos-proprietários) busca satisfazer diretamente o princípio da diferença e que, por isso, será menos eficiente que sociedades capitalistas que não diretamente tentam fazê-lo, de modo que, tudo o mais igual, seu crescimento econômico será mais lento. Suponha duas sociedades, Terra do Superior de Pareto e Terra da Equidade. A primeira é algum tipo de sociedade capitalista, dividida em três classes sociais com uma respectiva distribuição de renda de 10, 20 e 40 “unidades de renda”, da classe menos favorecida à classe mais favorecida. Já a segunda tem condições idênticas à da primeira por ter os mesmos recursos, capital humano e distribuição de riqueza, mas, por ter lido o livro de Rawls, introduziu uma estrutura básica que busca satisfazer o princípio da diferença (BRENNAN, 2007, p. 292-293).

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Em sendo assim, por meio de técnicas contrafactuais idôneas não disponíveis aos economistas do nosso mundo, é constatado que o princípio da diferença é satisfeito quando é obtida a seguinte distribuição para suas três classes: 15, 19 e 24. Assim, quando a Terra da Equidade se converte numa democracia de cidadãos-proprietários, os indivíduos mais pobres nela são 50% mais ricos que os mais pobres na Terra do Superior de Pareto (BRENNAN, 2007, p. 293).

Como a Terra do Superior do Pareto, segundo as premissas do próprio Rawls, estaria focando na eficiência econômica, sua economia cresce mais rapidamente que a da Terra da Equidade, que interfere com a alocação espontânea de recursos por intermédio dos mercados visando manter o padrão e, por isso, cresce mais lentamente (BRENNAN, 2007, p. 293). Suponha, então, que a Terra do Superior de Pareto cresce 4% ao ano, enquanto a Terra da Equidade cresce 2% ao ano. Referidos valores não foram selecionados arbitrariamente: 2% foi a taxa de crescimento anual da Suécia entre 1970 e 1998, 1% menor que a média da OCDE (Organi-

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zação para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), sendo que, em 98, a Suécia tinha uma renda per capita 15% menor que a média dos 23 países mais ricos; por outro lado, Hong Kong, a economia mais livre do mundo há décadas, teve uma taxa média de crescimento de 6% de 1970 até 2000, inclusive mantendo uma taxa de 4,4% mesmo sofrendo com a crise financeira asiática na década de 90 (BRENNAN, 2007, p. 293).

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Para manter a simplicidade, estipula-se que as rendas reais de cada classe crescerão na mesma taxa geral (BRENNAN, 2007, p. 293), mas o argumento não é afetado se a taxa de crescimento das classes média ou rica crescem acima da taxa geral de 4% ou 2%. O resultado é apresentado na tabela abaixo:

Terra do Superior de Pareto Pobres 10

1901

10.4

1902

10.8

1925

26.7

1950

71.1

2000

505.1

Classe média

Ricos

Pobres

Classe média

Ricos

20

40

15

19

24

20.8

41.6

15.3

19.4

24.5

21.6

43.2

15.6

19.8

25.0

53.3

106.6

24.6

31.2

39.4

142.1

284.3

40.4

51.2

64.6

1010.1

2020.2

108.7

137.7

173.9

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1900

Terra da Equidade

(Tabela 1. BRENNAN, 2007, p. 293)

Conforme se vê da tabela, em 1925, a renda dos pobres da Terra do Superior de Pareto fica maior que a dos pobres do outro país. Em 2000, a renda da classe pobre da Terra do Superior de Pareto é aproximadamente 5 vezes maior que a da classe pobre da Terra da Equidade, e 50 vezes maior que a renda de 1990. 246

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls

Manifestamente, após 100 anos, os menos favorecidos na Terra do Superior de Pareto estão muito mais ricos, inclusive do que os menos favorecidos na Terra da Equidade, e isso mesmo sendo um regime que não passa no teste da justiça como equidade de Rawls por não incorporar diretamente o princípio da diferença (BRENNAN, 2007, p. 294).

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Em que ponto os menos favorecidos na Terra da Equidade objetariam que continuar no caminho definido em 1990 era uma má ideia? Talvez seja verdade que, dado um ponto específico no tempo, a condição dos menos favorecidos pode ser temporariamente melhorada ao ser introduzida alguma nova estrutura básica que provenha mais recursos para eles, contudo, essa opção pode significar também que, ao longo do tempo, os menos favorecidos estarão pior do que estariam se nada houvesse sido feito. Eis o paradoxo de Rawls (BRENNAN, 2007, p. 294). De fato, se houvesse livre imigração entre os dois países, o que se esperaria é que haveria grande imigração da Terra da Equidade para a Terra do Superior de Pareto (BRENNAN, 2007, p. 294). Essa dose de realismo no exemplo suscita a questão se esse paradoxo, demonstrado em abstrato, ocorre na prática.

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Brennan (2007, p. 294-297) entende que sim, e mune seu argumento com substanciais aportes empíricos. Citarei alguns deles, e, após, acrescentarei informações mais recentes que fortalecem a plausibilidade de seu experimento de pensamento. São três as linhas de evidência que ele sugere: Quando o PIB real cresce n% ao ano, a renda média dos 20% mais pobres e a renda per capita cresce n%, sendo que muitos países aproximam-se desta média estatística (DOLLAR; KRAAY, 2001 apud BRENNAN, 2007, p. 294); A diferença qualitativa no estilo de vida e nos tipos de bens possuídos e consumidos pelos ricos e pobres é muito menor agora do que era há 100 anos, a despeito da desigualdade na renda. Enquanto a razão entre a renda familiar dos 20% mais ricos e dos 20% mais pobres nos Estados Unidos em 1995 foi de 14: 1, a razão do consumo total (medido por gastos em comida, vestuário, abrigo, etc.) foi de 4: 1. Medida entre indivíduos ao invés de famílias, a lacuna é de somente 2,3: 1. (BRENNAN, 2007, p. 295);

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Se compararmos as famílias oficialmente pobres norte-americanas em 1994 com aquelas em 1971, constata-se que a propriedade de bens duráveis para conforto (máquinas de lavar, ar-condicionado, televisão em cores, etc.) é maior em 1994 que em 1971 (COX; ALM, 2000, p. 15 apud BRENNAN, 2007, p. 295).

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Quanto à evidência mais recente, os dados disponíveis sobre desigualdade global (comparando a renda média de estratos populacionais de cada país ao redor do mundo diretamente, ao invés das rendas médias de países inteiros, portanto, comparando diretamente a renda das pessoas ao invés da dos seus respectivos países; MILANOVIC, 2011) também corroboram o argumento de Jason Brennan, inclusive demonstrando que o cenário de dois países por ele proposto é um retrato acurado do que realmente aconteceu em nosso mundo. Compare-o com o gráfico feito por Branko Milanovic (2011), um dos maiores pesquisadores de desigualdade global na atualidade, que compara a renda média dos 5% mais pobres dos Estados Unidos com as faixas de renda das populações do Brasil, China e Índia.

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Milanovic (2011, p. 116) divide a população desses países em vinte vintis (grupos de 5% da população), ordenados de forma crescente em relação à renda (Ex: O primeiro vintil representa a parcela mais pobre da população, enquanto o vigésimo representa a mais rica). Esses vintis estão representados no eixo horizontal do gráfico. No eixo vertical, a população do mundo inteiro é dividida em grupos de 1% (percentis), também ordenados de forma crescente em relação à renda. Com isso, ele calcula a renda média (corrigida por paridade de poder de compra) de determinado vintil e verifica em qual percentil do mundo esse vintil fica. Eis o gráfico a seguir. Os 5% mais pobres dos Estados Unidos estão situados no 68º percentil da distribuição de renda do mundo; ou seja, os mais pobres dos pobres americanos têm, na média, uma renda maior do que 68% da população mundial. A renda média do vintil mais pobre dos EUA supera a da maioria da população de três economias emergentes. Também supera a renda de aproximadamente metade dos vintis do Brasil, ou seja, a de 50% da população brasileira. Uma observação deve ser destacada aqui: não se está pretendendo argumentar com estas considerações que as instituições dos Estados 248

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls

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Unidos estão ou não próximas da maior realização possível do princípio da diferença em nosso mundo. o caso específico desse país, e como ele se compara a outros, está sendo usado como ilustração de como o crescimento econômico ao longo do tempo leva a resultados significativos em termos de quão bem os menos favorecidos vivem.

(gráfico 1. miLanoViC, 2011, p. 116)

ao final de seu paper, Brennan (2007, p. 297-298) pondera qual seria a razão para Rawls insistir nessa “auto sabotagem” que resulta no paradoxo demonstrado. Seu argumento é que uma das principais razões está no conceito de publicidade em Rawls. Uma sociedade politicamente liberal precisaria de uma concepção pública de justiça, um conjunto compartilhado de princípios e valores (BREnnan, 2007, p. 297). a insistência de Rawls, portanto, visaria a manter os princípios de justiça devidamente publicizados e endossados por todos os cidadãos. mas, se nos preocupamos com o princípio da diferença, talvez não devamos ter uma sociedade que ignore sua busca direta para que o mesmo seja satisfeito, pergunta-se Brennan (2007, p. 298). DIREITO&LIBERDADE

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Contudo, essa não parece ser a principal razão para Rawls adotar essa insistência auto-sabotadora que resulta em paradoxo. O modo como as premissas desviam-se da realidade (não apenas omitindo-a, mas distorcendo-a) pode ser mais relevante quando se trata de criticar a argumentação feita por Rawls (BRITO JÚNIOR, 2013, p. 167-170). Além disso, o foco na publicidade faz perder de vista que o paradoxo intertemporal está relacionado em grande medida com questões de intertemporalidade, o que justifica classificá-lo como um paradoxo relativo à aplicação intertemporal (o que Brennan no paper não discute explicitamente). Uma das críticas mais poderosas a esse aspecto do tratamento intertemporal na obra de Rawls, e outros teóricos da justiça social, foi realizada recentemente por John Tomasi (2012), em Free market fairness, pelo que se justifica buscar ali a principal razão para Rawls resultar em seu paradoxo. Além disso, referida opção justifica-se pelo fato de Tomasi endossar o princípio da diferença rawlsiano, e apresentar uma versão deste princípio que, com sucesso, evita o paradoxo intertemporal que Brennan formulou. O QUE LEVA AO PARADOXO INTERTEMPORAL DO PRINCÍPIO DA DIFERENÇA E COMO EVITÁ-LO?

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John Tomasi tem feito um trabalho pioneiro em desbravar uma fronteira conceitual no campo da justiça social que havia sido pouco explorada: a possibilidade de conexão entre justiça social e liberdade econômica. Essa fronteira já vinha sendo explorada por uma nova geração do liberalismo clássico, que Brennan e Tomasi (2011) alcunharam de liberalismo neoclássico, que consiste em defender o comprometimento liberal clássico com liberdades econômicas robustas e direito de propriedade simultaneamente ao comprometimento do liberalismo igualitário com justiça social. A maioria dos pensadores desta corrente (como David Schmidtz, Gerald Gaus, Matt Zwolinski, Jason Brennan, Kevin Vallier) é ligada à Universidade do Arizona, seja por formação ou por vínculo de magis250

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls

tério, e, portanto, essa posição pode ser definida também como liberalismo do Arizona:

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More dramatically, a group of philosophers, many of them associated with the University of Arizona, have begun crafting new forms of classical liberalism, a distinguishing feature of which is an affirmation of left liberal ideals. Against the moral status quo, recall, market democracy questions the idea that the best moral defenses of private economic liberty need to be naturalistic or ends-directed in the ways long assumed by libertarians and classical liberals. Simultaneously, market democracy questions the assumption that the “public reasons” form of political justification long associated with the political left must turn one inevitably toward the support of left liberal political institutions. Instead, the market democratic paradigm sees the ideal of democratic citizenship as leading to a hybrid account of liberalism, one that combines a commitment to private economic liberty with a commitment to a theory of distributive justice. Leading figures in this Arizona School have begun putting meat on these market democratic bones (TOMASI, 2012, p. 80).

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Mas Tomasi levou essa análise a um nível sistemático de reinterpretação do rawlsianismo, que pode ser particularmente útil para analisar o paradoxo de Rawls. A principal referência é seu livro Free market fairness (TOMASI, 2012).

John Tomasi (2012) defende o que ele denomina como “democracia de mercado” ou “concepção democrática de mercado da justiça social”, um programa de pesquisa cujo alvo é incorporar o valor de liberdades econômicas substantivas dentro da teoria liberal da justiça social. Nisso faria contraste com as concepções mais comuns dentro do liberalismo igualitário, às quais são denominadas como “concepções social-democráticas”, por não atribuírem peso ou não atribuírem grande peso à liberdade econômica. I think of market democracy as a research program. As such, it is compatible with a range of different conceptions of, and approaches to, the democratic ideal of social justice. The exact institutional requirements of market democracy, in turn, will depend on the particular conception of social justice affirmed within the market

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democratic framework. (To continue our metaphor above: market democracy is not a single icebreaker but a fleet of such vessels, each with a distinctive hull design, a different captain and crew, and, perhaps, its own navigational plan.) I have emphasized one feature that all market democratic interpretations of justice share: they affirm a wide conception of private economic liberties as among the weightiest rights of liberal citizens. But as we have noted, high liberals have widely differing conceptions about the nature and requirements of social justice (TOMASI, 2012, p. 51).

Tomasi (2012, p. 51-52) entende que referido programa de pesquisa pode ser desenvolvido em termos de várias concepções “social-democráticas” já existentes de justiça social, como a ralwsiana, a abordagem de capabilities, o luck-egalitarianism e possivelmente o republicanismo liberal de Philip Pettit, mas sua opção é de fazê-lo sob um framework rawlsiano da justiça como equidade, oferecendo a teoria que dá nome ao livro: a (justiça como) equidade de livre mercado. Seu objetivo não é oferecer uma melhor interpretação do que Rawls escreveu, mas defender que sua concepção é superior à concepção ralwsiana social-democrática pelos critérios da própria teoria:

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Indeed, I will offer a market democratic interpretation of the most prominent and sophisticated high liberal approach to social justice of them all: the approach that Rawls calls justice as fairness. But I will not merely provide a market democratic reading of Rawlsianism. I will argue that my market democratic interpretation of justice as fairness—what I call free market fairness—is morally superior to the social democratic interpretation of justice as fairness developed by Rawls himself. (…) I intend to market democratize the Rawlsian schema simply because, once adjusted to accommodate the importance of private economic liberty and the moral values that attend it, the Rawlsian schema leads to a conception of liberal justice that I myself find most attractive (TOMASI, 2012, p. 52).

A “democracia de mercado” entendida como um programa de pesquisa ajusta-se bem ao que se tornou o campo mais fértil do libertarianismo acadêmico: a análise de como um número variado de concepções normativas substantivas não pensadas para endossar 252

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls

conclusões libertárias (ou liberais clássicas) conduzem a essas conclusões (ZWOLINSKI, 2008, s.n.).

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Quando da análise do princípio da diferença, Tomasi (2012, p. 89) discute como a questão da maximização dos bens primários concernentes a este princípio – a saber, renda e riqueza; poderes e posições de responsabilidade; bases sociais do autorrespeito – depende da delimitação de um índice agregado que faça opções sobre qual dessas dimensões priorizar em caso de conflito entre a maximização separada de cada uma delas. Mesmo que Rawls pensasse que isso seria resolvido por meio de “prudência racional” sobre o que pessoas necessitam como cidadãs livres e iguais, isso é realmente vago demais para fornecer um critério decisivo; e é a interpretação das demandas disso que distinguem claramente entre concepções social-democráticas e concepções democráticas de mercado do princípio da diferença. Assim, Tomasi (2012, p. 90) distingue entre duas formas de interpretar o que mais beneficiaria os menos favorecidos, estabelecendo assim um critério mais substantivo para como aplicar o princípio da diferença:

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1. Tese da maior riqueza: maior produção de riqueza ao longo do tempo beneficia mais os mais pobres, tanto diretamente pelos ganhos em renda pessoal advindos do crescimento econômico quanto indiretamente porque permite maiores orçamentos para programas de bem-estar social. Desse modo, instituições sociais e econômicas pró-crescimento são melhores alternativas que àquelas de crescimento nulo ou de baixo crescimento; 2. Tese do maior poder no ambiente de trabalho: maior poder do trabalhador no ambiente de trabalho e melhor distribuição dos direitos sobre os recursos produtivos beneficia mais aos mais pobres, ao capacitá-los a desfrutar da experiência de um trabalho significativo. Desse modo, mesmo que essas instituições levem a crescimento econômico zero ou nulo, isso é compensado pelo aumento dos poderes do trabalhador. Tomasi (2012, p. 90) retira a tese do maior poder no ambiente de trabalho de um dos comentaristas de Rawls, Samuel Freeman, e mostra que é por meio dessa tese que se torna compreensível o endosso de Rawls de regimes como a democracia dos cidadãos-proprietários e do socia-

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lismo liberal, em detrimento de economias de mercado capitalistas. Contudo, deve-se destacar que o diferencial dessa tese não é que apenas ela dá importância ao empoderamento dos trabalhadores, pois também a tese da maior riqueza veria a produção da afluência e a prosperidade como geradoras de um empoderamento desejável. O aspecto distintivo é que o empoderamento precisa estar acompanhado de uma democratização do ambiente de trabalho.

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Portanto, a tese do maior poder no ambiente de trabalho deve ser considerada como sinônima da tese da democratização do ambiente de trabalho, pela qual o que importa não é maximizar a riqueza possuída pelos trabalhadores menos favorecidos (como na tese da maior riqueza), mas sim democratizar o controle sobre os recursos produtivos e sobre o ambiente de trabalho. A pergunta, então, fica entre qual dessas duas teses, uma focada em maior riqueza e outra focada em maior democratização no trabalho, é a melhor interpretação do que mais beneficia os menos favorecidos, já satisfeitos os princípios de iguais liberdades e de justa igualdade de oportunidades. Uma vez escolhida uma dessas teses, as instituições básicas da sociedade devem ser ajustadas de modo a serem empiricamente aquelas que melhor realizam ou a maior riqueza ou a maior democratização no trabalho, ao longo do tempo.

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Tomasi (2012, p. 91) articula como a tese da maior riqueza é mais ajustada ao que os trabalhadores realmente desejam, uma vez que maior riqueza significa mais valor para as liberdades formais e o maior poder do trabalhador no seu ambiente de trabalho, considerado cada trabalhador individualmente, é mais satisfatoriamente alcançado por ganhos em sua independência pessoal, não por direitos de voto. Da perspectiva de um trabalhador médio, é melhor ter uma remuneração maior, ou mais direitos de voto no ambiente de trabalho? If offered the chance to have their wages lowered and their opportunities to participate in workplace committee meetings increased, market democracy is skeptical that many ordinary citizens would (or should) accept. After all, a reduction in wages amounts to a reduction in people’s effective power to use their rights in pursuit of projects that are central to their lives. I invite readers, whatever their profession, to ask whether they would forego greater

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O problema da intertemporalidade no Princípio da Diferença de Rawls

wealth for greater political control of their workplaces (TOMASI, 2012, p. 91).

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A conclusão é que uma concepção democrática de mercado da justiça social, ao avaliar a realização da concepção de justiça social, precisa assinalar um peso maior à maximização da renda e da riqueza dos menos favorecidos. Não significa que as outras dimensões de bens primários relativos ao princípio da diferença tenham peso nulo, mas que o crescimento econômico é uma forma superior de capacitar as pessoas a tomarem suas próprias decisões em áreas tão significativas quanto suas vidas profissionais e financeiras do que a democratização do ambiente de trabalho (que foca, portanto, na dimensão de poderes e posições de responsabilidade ao invés na de renda e riqueza). O princípio da diferença assim aplicado pretende atribuir aos menos favorecidos o controle da maior soma de recursos materiais e sociais possível, de tal forma que cada um possa exercer seus direitos e liberdades efetivamente sob o mais amplo domínio possível de atividades e projetos que possam ser concebidos.

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A ênfase da democracia de mercado está na agência, em que o autorrespeito de um agente deriva do fato de ver a si mesmo como a causa central da vida particular que está vivendo, e sua visão de justiça social é prioritarista, preocupando-se menos com a equalização da distribuição e mais com a priorização da melhora dos menos favorecidos em termos absolutos, pela qual estes podem tornar-se participantes dessas cadeias de cooperação econômica que permitem ao sujeito ver-se como causador da vida que vive. Isso contrasta com a ênfase relacional proposta pelo liberalismo igualitário, onde o autorrespeito de um agente deriva de os outros o reconhecerem de uma forma especial, por uma identidade compartilhada enquanto cidadãos iguais, e com a correspondente visão de justiça social pautada no igualitarismo, preocupando-se diretamente em como os cidadãos posicionam-se na escala social uns em relação aos outros, em termos relativos (TOMASI, 2012, p. 93). Portanto, Tomasi concordaria que, da perspectiva dos próprios menos favorecidos, é um interesse fundamental o de progredir por

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conta própria 3. É a consideração desse interesse fundamental que nos permite ver a incompatibilidade do princípio da diferença com uma concepção puramente redistributiva do mesmo. As ponderações feitas por David Schmidtz (2009) são relevantes aqui. Os negociadores na posição original não estão diretamente avaliando esquemas de distribuição, mas escolhendo os meta-princípios que permitem avaliar esses princípios (SCHMIDTZ, 2009, p. 86), ou que serão utilizados como normas de reconhecimento para determinação de quais princípios distributivos podem ser aceitos concretamente (SCHMIDTZ, 2009, p. 250-253). Enquanto a tese da “democratização do ambiente de trabalho” não deva ser confundida com uma concepção puramente redistributiva da justiça como equidade, a tese da maior riqueza é a que dela mais se afasta por criar as condições econômicas nas quais as oportunidades de se prosperar por conta própria são maiores e, em especial, crescentes, sem um teto predeterminado.

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Destaca-se, por fim, que a tese da maior riqueza endossada por uma concepção democrática de mercado consegue esquivar-se do paradoxo intertemporal aqui mencionado. Essa interpretação do princípio da diferença foca sob o crescimento da parcela de renda dos mais pobres, portanto, sua maximização dinâmica, mais do que sobre um tamanho específico dessa parcela que seja compatível com maior igualdade social ou maior democratização do ambiente de trabalho, que seria sua consideração estática. Em considerar a maximização do ponto de vista dinâmico, não é necessário que o princípio da diferença seja aplicado diretamente pela ordem jurídica-institucional, enquanto essa aplicação possa ser feita caso demonstrado que seja eficaz (portanto, apenas a posteriori, não a priori como a outra interpretação sugere). 3 Nesse sentido, conferir David Schmidtz (2009): “Margaret Holmgren afirma que a justiça ‘exige que sejam assegurados a cada indivíduo os benefícios mais fundamentais da vida, compatíveis com os benefícios semelhantes que são conferidos a todos’ e, em seguida, acrescenta: ‘A oportunidade de progredirmos através de nossos próprios esforços constitui um interesse fundamental’. Richard Miller aduz: ‘A maioria das pessoas (incluindo a maioria dos que se acham em piores condições) quer usar os recursos de que já dispõem de maneira ativa, a fim de prosperar por conta própria, e isso reflete uma avaliação adequada das aptidões humanas.’ [...]. O princípio da diferença apoia princípios de merecimento, caso Holmgren esteja correta em dizer que os menos privilegiados querem e precisam de oportunidades para prosperar por seus próprios méritos” (SCHMIDTZ, 2009, p. 85 e 87).

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CONCLUSÃO

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Logo, a tese da maior riqueza leva à opção pelo sistema (qualquer que seja) que conduz ao maior crescimento econômico, na medida em que implica no maior crescimento de renda dos mais pobres, conforme exemplo oferecido por Jason Brennan em seu paper Rawls’ paradox, e evita o paradoxo com sucesso.

O paradoxo de Rawls, tal como enunciado por Brennan, postula que a realização direta do princípio da diferença pela estrutura básica impede sua satisfação. Mas a linha de raciocínio assumida por Brennan para provar isso mostra que a questão não é apenas de realização direta, e sim, principalmente, de aplicação intertemporal.

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John Tomasi torna isso mais claro em sua obra ao mostrar como a interpretação que ele denomina “social-democrática” do princípio da diferença subestima a relevância e importância do crescimento da renda, da riqueza e de oportunidades de prosperar por conta própria da perspectiva dos menos favorecidos, enquanto dá maior destaque para a democratização do ambiente de trabalho e a máxima equalização dos padrões de vida compatível com modelos de nulo ou baixo crescimento econômico com riqueza e renda constantes no estado estacionário. Portanto, o principal motivo que leva ao paradoxo de Rawls está em premissas subjacentes ao raciocínio que ele fez na sua Uma teoria da justiça, relativas ao crescimento econômico: as de que este seria menos valorizado pelos menos favorecidos que a democratização do ambiente de trabalho, que o crescimento econômico pode chegar a um limite onde a única coisa que resta é democratizar o ambiente de trabalho e aumentar a igualdade, que o interesse de prosperar por conta própria e seus correlatos (de inovar, de empreender, e assim por diante) não depende de uma economia em crescimento que possa sustentar tanto o crescimento da população quanto da riqueza, em suma, que modelos econômicos de crescimento nulo ou de baixo crescimento sejam melhores que os de alto crescimento. Se estas premissas forem falsas, os modelos favorecidos por Rawls em relação à aplicação do princípio da diferença serão falsos também. E

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o paradoxo remanescerá insolúvel, não por ser necessário ao princípio da diferença, mas por ser inevitável quando essas premissas são endossadas.

REFERÊNCIAS

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A concepção democrática de mercado de Tomasi, a respeito do princípio da diferença, evita o paradoxo por sustentar-se em premissas opostas e representa um avanço no modo de conceber o princípio que o torna uma forma mais satisfatória de realizar a justiça social pretendida pelo liberalismo igualitário.

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DIREITO E PESSIMISMO: REFLEXÕES SOBRE UM CONSTITUCIONALISMO NECESSÁRIO PARA GOVERNAR “ATÉ MESMO UM POVO DE DEMÔNIOS” Arnaldo Bastos Santos Neto1;

Ricardo Martins Spindola Diniz2

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Geralmente, associamos aos ordenamentos jurídicos uma ideia otimista sobre a sociedade. Neste sentido, especialmente, as constituições programáticas traçam um perfil sempre idealista da sociedade futura a ser alcançada e elencam um catálogo de direitos que devem ser garantidos aos cidadãos. As constituições são sempre celebradas com incontido otimismo e discursos sobre as suas potencialidades emancipatórias e os seus textos estão recheados de promessas, que o poder público e a sociedade deverão, historicamente, fazer um enorme esforço para realizar. Acreditamos que esse é uma das dimensões das constituições, a dimensão transformadora, que inspira otimismo nas sociedades que pretende normatizar. Todavia, podemos mudar o nosso olhar e enfocar um outro lado das constituições, um lado menos luminoso que as promessas que faz aos seus nacionais. Esse outro lado deriva de experiências históricas seculares das sociedades e do próprio constitucionalismo. Trata-se do lado pessimista das constituições, onde o constituinte procura precaverse dos desastres possíveis capazes de sondar uma sociedade. Expressos em alguns institutos, o pessimismo constitucional apresenta-se sempre como um remédio já previsto para males prováveis, já conhecidos na literatura jurídica e política. Um instituto notável, que Robert Kaplan celebra como um caso exemplar, é o “pessimismo insti-

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Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFG e Professor Titular das Faculdades Alfa e Fasam. Doutor em Direito Público pela Unisinos-RS. Bacharel em Direito. Membro do Grupo de Estudos Republicanos da Faculdade de Direito da UFG. Mestrando em Direito na Universidade de Brasília.

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tucional” expresso no dispositivo do impeachment. Kaplan lembra que a previsão constitucional do impeachment antecedeu a posse do primeiro presidente norte-americano. Era preciso pensar no que fazer caso ele se revelasse como um governante desastrado e incapaz. Kaplan escreveu:

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Os norte-americanos podem se dar ao luxo de ser otimistas em parte porque suas instituições, inclusive a Constituição, foram concebidas por homens que pensavam de maneira trágica. Antes de o primeiro presidente ser empossado, as regras do impeachment foram estabelecidas. James Madison escreveu no Federalist n. 51 que os homens estão tão distantes da redenção que a única solução é colocar ambição contra ambição e interesse contra interesse: ´Se os homens fossem anjos, não haveria necessidade de governo’. Nossa separação dos poderes está baseada nessa cruel visão do comportamento humano. (...) Os fundadores dos Estados Unidos da América eram pessimistas construtivos, a ponto de se preocuparem constantemente com o que poderia dar errado nas relações humanas”3.

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Um outro exemplo, mais próximo, pode ser extraído da Constituição Peruana de 1993, fruto de uma sociedade que conheceu enorme instabilidade política em sua história, com registro de golpes e sedições e, por isso, achou por bem consignar em seu texto a possibilidade de tais eventos, antecipando já uma cláusula de nulidade para os atos porventura praticados pelo governo usurpador. Rezam os artigos da Constituição do Perú: Artículo 45°.– El poder del Estado emana del pueblo. Quienes lo ejercen lo hacen con las limitaciones y responsabilidades que la Constitución y las leyes establecen. Ninguna persona, organización, Fuerza Armada, Policía Nacional o sector de la población puede arrogarse el ejercicio de ese poder. Hacerlo constituye rebelión o sedición. Artículo 46°.– Nadie debe obediencia a un gobierno usurpador, ni a quienes asumen funciones públicas en violación de la Constitución y de las leyes.

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KAPLAN, Robert D. Políticos Guerreiros. A arte de liderar ao longo da história da Roma Antiga até hoje. Tradução de Maria Cláudia Ratto. São Paulo: Futura, 2002, p. 21-22.

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La población civil tiene el derecho de insurgencia en defensa del orden constitucional. Son nulos los actos de quienes usurpan funciones públicas4.

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A promulgação da Constituição, data festiva em que um povo reafirma o seu pacto de unidade política, vem sempre acompanhada, em nossas cartas contemporâneas, especialmente na América Latina, dessa recordação sinistra, constante do próprio texto: os inimigos da ordem democrática em nenhum momento descansarão até vê-la derrotada e substituída pelo seu idealizado despotismo. A antevisão sinistra das inevitáveis tentativas de golpe assombra pelo pessimismo evidente: já se espera pelo pior, pela catástrofe do desmoronamento da ordem livre, pelo ressurgimento da tirania. O remédio do constituinte peruano, pensado de modo realista, é um aviso aos liberticidas: nada que for feito terá qualquer valor, todos os atos serão posteriormente declarados nulos, quando da reconquista da paz constitucional.

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No presente artigo, procuraremos analisar o vínculo das constituições com uma visão filosófica do pessimismo, levando em conta, como um recorte, a separação de poderes e o impeachment. Poderemos, assim, contrabalançar a visão muito difundida de que as constituições são textos “róseos”, que tratam sempre de um mundo muito bonito e quase utópico. Pretendemos reequilibrar a equação entre otimismo/ pessimismo, demonstrando a importância do lado negativo e negligenciado da fórmula. PESSIMISMO E PODER

Na maioria das vezes, identificamos o pessimismo com o estado de ânimo de alguém ou como uma atitude negativa perante a capacidade ou não de obter sucesso numa determinada ação. Aquele que se encontra tomado por tal estado de espírito descrê de sua possibilidade de levar a bom termo uma ação bem sucedida para evitar que um mal ocorra. O pessimismo, em tal acepção, pode resultar num convite para a inação e o imobilismo. 4

CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL PERÚ. México: UNAM, 1994, p. 17.

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Em outra visão sobre o problema, o pessimismo é anunciado como compreensão que a humanidade é marcada pela sua falibilidade. Dada tal característica, os indivíduos e os grupos humanos sempre cometem erros e até mesmo repetem-nos de forma inesgotável. Mesmo aquele que se encontra animado por um ambicioso programa de mudanças e transformações deve acautelar-se perante a ocorrência inevitável de falhas e erros que a história demonstrou, como sempre, recorrentes. O pessimismo coloca-se em forte sintonia com uma visão realista que o mal é sempre possível e até mesmo incontornável. O pessimismo aconselha-nos sempre a seguirmos por um caminho prudente, a pesar sempre de forma criteriosa sobre quais serão as consequências das nossas ações. A considerarmos sempre o que Roger Scruton designou como o cenário da pior das hipóteses. O pessimista, também nomeado por Scruton como o “otimista escrupuloso”, deve “levar em conta o preço da falha, a conceber a pior das hipóteses e a assumir riscos com a plena consciência do que acontecerá se os riscos não compensarem”5. O contrário do pessimista ou otimista escrupuloso é o otimista inescrupuloso: “Ele não leva em conta o custo do fracasso ou não imagina a pior das hipóteses. Ao contrário, ele é tipificado por aquilo que chamarei de a ‘falácia da melhor das hipóteses’. (...) A falácia da melhor das hipóteses é a postura mental do jogador”6.

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O pessimismo é um conselheiro sempre a ser ouvido e lavado em conta, especialmente quando o destino de nações está em jogo. Ao desenhar as instituições que servirão como moldura para o exercício do poder do Estado e, levando em conta as graves consequências do poder absoluto ou das ameaças que podem surgir da ação agressiva e arbitraria de indivíduos e grupos, o constituinte deve sempre considerar o cenário da pior das hipóteses e ponderar os riscos que podem surgir da adoção de um modelo ou outro. Esta é a diferença entre o constitucionalista e o aventureiro. O primeiro prefere trilhar caminhos seguros enquanto o outro não se furta em tomar atalhos temerários ou em deixar de lado as lições e os conselhos da experiência histórica. Prefere tomar a Cons-

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SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança. Tradução de Fabio Faria. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 25. SCRUTON, Roger. As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança, p. 25.

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tituição como um jogo de sorte ou azar. Ocorre que a Constituição não pode ser escrita numa mesa de carteado ou de roleta. Tal lição foi muito propriamente assimilada pelos constitucionalistas norte-americanos, conforme argumenta Robert Kaplan:

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Os fundadores dos EUA eram frequentemente descrentes em relação à situação humana. Disse James Madison: ´Mesmo que todo cidadão ateniense fosse um Sócrates, ainda assim cada assembleia ateniense teria sido uma turba’. Thomas Paine argumentou: ‘A sociedade é produzida pelos nossos desejos e o governo, pela nossa maldade’. Era da filosofia ‘tosca’ e ‘reacionária’ de Thomas Hobbes, que punha a segurança acima da liberdade em um sistema de despotismo esclarecido, que os fundadores retiravam substância filosófica7.

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No que é posto como pessimismo antropológico, a própria ideia de que a humanidade irá, um dia, conhecer uma era de ouro, de reconciliação com a natureza e plena civilização, é posta em dúvida. O argumento central recorre a uma constatação de que existe uma grande diferença nos ritmos de evolução de dois aspectos centrais da experiência humana. Se, de um lado, a humanidade evolui de forma acelerada no seu domínio da ciência e da técnica, capaz de planejar prodígios como o envio de naves tripuladas para o espaço, por outro lado, o progresso moral da espécie avança num ritmo lento. Expresso em outros termos, significa afirmar que, enquanto o nosso domínio da tecnologia e da natureza avança de forma geométrica, o nosso progresso moral evolui de forma aritmética.

O pessimismo possui uma forte afinidade com a postura realista. Não por acaso, o grande mestre do realismo, Nicolau Maquiavel, era profundamente convencido da natureza nada angelical dos homens, sempre prontos a esquecer quem os ajudou e dispostos a cometer qualquer ato em favor da própria riqueza e do acúmulo de poder. Maquiavel sabia da necessidade do poder e levava em conta que o seu exercício ocorreria sempre num cenário de conflitos e disputas que não está de todo apartado da noção de guerra. Maquiavel não idealiza o poder. A sua visão pessi7

KAPLAN, Robert D. À beira da anarquia. Destruindo os sonhos da era pós-guerra fria. Tradução de Carlos Henrique Trieshmann. São Paulo: Futura, 2000, p. 81.

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mista sobre a natureza humana previne-lhe contra tal equívoco. Indo um pouco além, John Gray adverte-nos para o fato de que os tiranos, especialmente em nossa época, não são apenas temidos, são muitas vezes amados. A liberdade pode ser contagiosa, mas as tiranias também. E os Estados “não cuidam apenas de proteger os seus próprios interesses; também são veículos de mitos, fantasias e psicoses de massas”8.

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Em Maquiavel, o pessimismo converte-se em método, a ser exercitado na construção das estruturas de poder, capazes de estabilizar o governo e garantir a segurança que os homens desejam: “Como demonstram todos aqueles que discorrem sobre a vida civil e todos os exemplos de que estão cheias todas as histórias, quem estabelece uma república e ordena as suas leis precisa pressupor que todos os homens são maus”9. Os homens encarregados de construir as instituições devem levar em conta o comentário apropriado de Ferrater Mora sobre essa vertente do pensamento: “o pessimismo sustenta que o mal existe no mundo de um modo primário, substancial, predominante, sendo ademais impossível, por princípio, arrancá-lo e suprimi-lo, já que – este talvez seja um dos pressupostos últimos de tal concepção – a eliminação do mal representaria ao mesmo tempo a eliminação da existência”10. Somente o estadista que levar em conta esse aspecto da natureza humana, já demonstrado empiricamente no curso da história, poderá ser bem sucedido em suas ações.

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Também Kant pensou sobre o tema da mesma forma e recomendou que a Constituição deveria ser escrita contendo contornos tais que poderiam governar até mesmo “um povo de demônios”. Conforme escreveu o autor da “Crítica da Razão Pura”: Ora a constituição republicana é a única perfeitamente adequada ao direito dos homens, mas é também a mais difícil de estabelecer, e mais ainda de conservar, e a tal ponto que muitos afirmam que deve ser um Estado de anjos porque os homens, com as suas tendências egoístas, não estão capacitados para uma constituição de tão sublime forma. Mas vem então a natureza em ajuda da

8 GRAY, John. Missa Negra: religião apocalíptica e o fim das utopias. Tradução de Clóvis Marques. Rio de janeiro: Record, 2007, p. 297. 9 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Tradução de Martins Fontes.São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 19. 10 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III. Tradução de Maria Stela Gonçalves et al. São Paulo: Loyola, 2001, p. 2261.

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vontade geral, fundada na razão, respeitada mas impotente na prática, e vem precisamente através das tendências egoístas, de modo que dependa só de uma boa organização do Estado (a qual efectivamente reside no poder do homem) a orientação das suas forças, a fim de que umas detenham as outras nos seus efeitos destruidores ou os eliminem: o resultado para a razão é como se essas tendências não existissem e, assim, o homem está obrigado a ser um bom cidadão, embora não esteja obrigado a ser moralmente um homem bom. O problema do estabelecimento do Estado, por áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demónios (contanto que tenham entendimento), e formula-se assim: "Ordenar uma multidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximirse, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas disposições privadas, se contêm reciprocamente, pelo que o resultado da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más"11.

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Para o filósofo alemão, os fundadores do Estado deveriam tem em mente a possibilidade do povo comportar-se não como anjo, mas como demônio. O realismo de tal consideração é evidente. Devemos sempre nos preparar para o pior cenário possível e as instituições que perdurarão serão aquelas aprovadas, não nos momentos de concórdia e bonança, mas aquelas capazes de suportar a carga mais pesada de iniquidades. O realismo previne-nos contra os mitos e as fantasias. Alerta-nos para a necessidade e o risco do poder e da política. A política, por sua vez, nada tem de idílica e manifesta-se frequentemente com extrema violência. A guerra, por exemplo, não é a negação da política, mas tão somente a sua continuação sob outra forma, como escreveu Clausewitz12. Nos extremos das divisões e dos fervores sectários patrocinados pela política, qualquer sociedade, mesmo aquela que costumeiramente 11

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KANT, Immanuel A Paz Perpétua. Um Projecto Filosófico. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008, p. 28-29. “War is not an independent phenomenon, but the continuation of politics by different means. Consequently, the main lines of every major strategic plan are largely political in nature, and their political character increases the more the plan encompasses the entire war and the entire state. The plan for the war results directly from the political conditions of the two belligerent states, as well as from their relations to other powers”. Correspondência

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autodescreve-se como pacífica e cordial, pode mergulhar no fratricídio da guerra civil. A guerra civil é tão somente uma manifestação corriqueira da política, tendo ocorrido inúmeras vezes no curso da história de várias sociedades.

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Diante de tais realidades, o realismo é, a nosso ver, o instrumental mais adequado para lidar com fenômeno tão perigoso, da antiguidade aos nossos dias. Dada a natureza perene do poder, nas Constituições contemporâneas, ainda deparamo-nos com os mesmos problemas enfrentados na antiguidade e que levaram os pensadores clássicos a refletir sobre a tirania e o arbítrio.

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Robert Kaplan argumenta que o pessimismo, além de ser uma resposta realista aos problemas, é também uma postura moral. Seguindo a senda do pessimismo, devemos estar “à procura de problemas, e não nos entregando a desejos acalentados”13. O contrário de tal postulado é a postura do missionário, tomado por uma fé ardente na sua visão de uma transformação radical do mundo rumo a uma utopia qualquer. O realista vê o mundo com os olhos de um observador desencantado, mas consciente das implicações que as realidades impõem. O seu compromisso com os valores que considera centrais na civilização, especialmente o valor da liberdade, não está sendo relativizado. Mas uma ponderação cuidadosa entre os meios e os fins é colocada em discussão, com a consciência que a sorte sempre tende a favorecer aquele que observa melhor a sociedade em que vive e elege os meios adequados para realizar os seus valores. O realismo e o seu consequente pessimismo metodológico não representam uma capitulação moral. Trata-se de uma razão exigente que não perde de vista a concretização dos seus fins morais, elegendo os melhores caminhos para tanto. A PERSPECTIVA DO MALFEITOR Oliver Wendell Holmes Jr., amigo de John Stuart Mill, professor de direito em Harvard e juiz na Suprema Corte dos Estados Unidos, publicou

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de C. v. Clausewitz para C. v. Roeder, 22 de Dezembro de 1827, In: CLAUSEWITZ, Carl von. Two Letters on estrategy. Kansas: Army War CollegeFundation, 1984, p. 21. KAPLAN, Robert D. À beira da anarquia. p. 149.

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um livro interessante acerca de uma abordagem do direito marcada pela perspectiva do pessimismo entendido como método. Holmes insurgiuse contra o formalismo racionalista da prática jurídica de sua época, ao mesmo tempo formalista e mecanicista, que marcava a trajetória da common law, mesmo que ela tenha transitado de uma postura jusnaturalista para o historicismo que cativou inúmeros juristas no século XIX. Tanto o jusnaturalismo precedente quanto o historicismo apostavam no método dedutivo para buscar as premissas capazes de fundamentar as suas decisões, premissas que se encontravam tanto numa ideia de razão, ou de natureza das coisas, ou na realidade histórica.

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Holmes revê esses postulados defendendo uma atitude relativista e um enfoque funcional. O seu método é o empirismo que serviria como base para o ulterior desenvolvimento do chamado realismo jurídico norte -americano. A influência filosófica vinha do pragmatismo de Charles S. Peirce, William James e John Dewey, que formularam uma nova postura em termos de teoria do conhecimento. O pragmatismo defende que o ato de conhecer é uma tarefa que estabelece uma relação dinâmica entre o sujeito e o objeto do conhecimento. Todo ato de conhecer implica que o sujeito participe da configuração do seu objeto de conhecimento. Pensar não é visto como declarar a realidade, mas criar esquemas operativos capazes de permitir-nos o manejo das situações e dos problemas. Para Dewey, não havia uma separação estrita entre conhecer e fazer14.

Essa nova atitude pragmática frente ao direito levou Holmes a formular um desafio provocativo aos juristas de sua época: olhar o direito sob a perspectiva do malfeitor (badman). Olhar o direito sob tal prisma implicava observá-lo sob uma perspectiva consequencialista, preocupada com os efeitos concretos das decisões judiciais, uma vez que o “homem mau” não está preocupado com questões éticas, mas tão somente com as consequências negativas que a aplicação do direito poderá ter sobre si. Pensando o direito em tal perspectiva, é possível deslocar a relação entre o direito e a moral, possibilitando “lavar” os conceitos jurídicos com um “ácido cínico”, num esforço de desmistificação. Desse esforço resulta uma análise realista do direito: “Desde este punto de vista, nociones básicas 14

Ver a respeito da constituição do pensamento de Holmes: CAYÓN, José Ignacio Solar. Holmes: el início de una nueva senda jurídica, in: HOLMES JR., Oliver Wendell. La senda del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2012, ps. 11 a 47.

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como las de ‘derecho’ o ‘deber’, o incluso la de ‘derechos humanos’ quedan despojadas de toda carga mística, dejando de constituir entidades metafísicas para denotar simplemente agregados de posibles consequencias materiales, favorables o desfavorables, para su titular”15.

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No olhar friamente realista do malfeitor que analisa o sistema jurídico, ele não é mais um sistema de princípios que podem ser deduzidos da razão ou da evolução histórica, mas tão somente uma profecia sobre como os tribunais decidirão sobre um determinado caso. Nas palavras de Holmes: “Si quieres conocer lo que es el Derecho, y nada más que el Derecho, debes mirarlo como lo haría un hombre malo, a quien sólo le importan las consequencias materiales que tal conocimiento le permite predecir, y no como lo hace un hombre bueno, quien encuentra las razones para su conducta – se hallen o no en el Derecho – en las más vagas sanciones de su consciencia”16. A perspicaz observação de Holmes traz um elemento de pessimismo realista para a compreensão do direito. Precisamos do direito justamente porque as sanções subjetivas da consciência humana não são bastantes para conter os impulsos negativos que desembocam em atitudes antissociais, como o crime. Diversos institutos do direito, como veremos nos exemplos seguintes, podem ser pensados justamente na perspectiva do malfeitor.

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SEPARAÇÃO DOS PODERES

Um exemplo de pessimismo institucional realista é a própria doutrina da separação dos poderes. A separação de poderes surgiu de um lento aprendizado histórico sobre a natureza do poder e o seu potencial destrutivo sobre as vidas humanas. Tal aprendizado encontrou expressão lapidar na obra de Montesquieu, para quem a humanidade descobriu “por experiência eterna, de que o homem que tem em mãos o poder é sempre levado a abusar do mesmo; e assim irá seguindo até que encontre algum limite. E, quem diria, até a própria virtude precisa de limites. Para que 15 16

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CAYÓN, José Ignacio Solar. Holmes: el início de una nueva senda jurídica, in: HOLMES JR., Oliver Wendell. La senda del derecho, p. 33. HOLMES JR., Oliver Wendell. La senda del derecho. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 58.

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Direito e pessimismo

não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder”17.

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O fundamento da separação dos poderes é, portanto, uma desconfiança. Já os gregos sabiam que o poder recorrentemente degenera numa forma degradada. Assim, a monarquia se converte facilmente em tirania, a democracia em oclocracia (anarquia) e a aristocracia em oligarquia18. O “horrível despotismo” do Sultão, que concentra todos os poderes em si mesmo, e tende a comportar-se nos negócios públicos como se comporta em seu harém, é o oposto do governo moderado e equilibrado, capaz de respeitar a liberdade de seus cidadãos. No cerne da ideia de dividir o poder, encontra-se uma visão negativa sobre o homem, sempre pronto a ceder às suas paixões e cometer abusos. O pessimismo institucional decorrente fundamenta-se naquilo que é a garantia maior da liberdade, a divisão dos poderes. Não por menos, os franceses, em sua famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirmarem que “Art. 16º A sociedade em que não estejam assegurados os direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”.

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O poder, suficientemente forte para garantir o direito e proteger os indivíduos, revelou-se também igualmente poderoso para oprimir e subjugar. Na luta contra o absolutismo, afirmou-se o princípio caro ao pensamento liberal que consiste em limitar o poder do Estado e, assim, maximizar o poder dos indivíduos. Tal processo encontrou a sua 17 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. Do espírito das leis: vol. 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, pp. 188. Montesquieu prossegue: “Uma constituição poderá ser feita de tal forma que ninguém seja constrangido a praticar coisas a que a lei não o obrigue, e a não praticar aquelas que a lei lhe permite. (…) Quando numa só pessoa, ou num mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo se acha reunido ao poder executivo, não poderá existir liberdade, porque se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senador criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Não existirá também liberdade quando o poder de julgar não se achar separado do poder legislativo e do executivo. Se o poder executivo estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos será arbitrário porque o juiz será o legislador. E, se estiver unido ao poder executivo, o juiz poderá ter a força de um opressor. Tudo então pereceria, se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, o dos nobres, ou o do povo, exercesse esses três poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as questões particulares. Na maior parte dos reinos da Europa, o governo é moderado porque o príncipe, que tem em mãos os dois primeiros poderes, deixa a seus súditos o exercício do terceiro. Entre os turcos, onde esses três poderes se acham reunidos sob o domínio do sultão, reina um horrível despotismo”. 18 POLIBIO. Histórias. Libros I-IV. Tradução de Manuel BalaschRecort. Madri: Gredos, 1981, p. 30.

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primeira expressão histórica na Inglaterra, com a afirmação do Parlamento em face do poder absolutista dos reis. O princípio que o poder do rei tem limites jurídicos surgiu no bojo dessa luta entre o Parlamento e a Coroa. Estamos no alvorecer do Estado Constitucional de Direito. De todo modo, como as conquistas de um século são sabotadas nos séculos seguintes, tal afirmação não foi o bastante e, em seguida, Tocqueville e Stuart Mill observaram que também nas democracias o crescimento de um enorme Estado burocrático pode criar um novo tipo de tirania, aquela animada pelas maiorias19. Da luta contra o absolutismo emerge a formulação do Estado de Direito, animado por uma específica distribuição dos papéis e competências e seguindo regras do jogo da disputa política garantidas constitucionalmente. Instalar um sistema de separação e controle do poder implicava também vincular o Executivo à lei. Para tanto, surgia a afirmação de um Poder Judiciário independente, capaz de velar pelo cumprimento das regras do jogo político e também da relação entre o Estado e a sociedade. Limitar e equilibrar os poderes ganhou efetividade na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), sendo transportada para o outro lado do Atlântico no século seguinte20.

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A ligação entre liberalismo e constitucionalismo remonta ao florescimento de ambos os movimentos, o segundo servindo como veículo para institucionalizar os valores centrais do primeiro. O primeiro combate dá-se contra o absolutismo. Mas, em seguida, os liberais percebem a importância de outras esferas de liberdade, vistas como neutras ou, pelo menos, não diretamente políticas, e, então, passam a defender também a autonomia da opinião pública e do mercado em face da política e do poder. O que aprofunda e completa a separação dos poderes, conforme nos ensina Matteucci: Conceptualmente, con esta defensa de la autonomía de la opinión pública y del mercado respecto de la política se establecían las bases de una nueva y diferente división de poderes, que el pensamiento liberal teorizará sólo en nuestro siglo frente a los

19 MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historiadel constitucionalismo moderno. Madri: Trotta, 1998, p. 279. 20 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª edição. Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: FundaçãoCalousteGulbekian, 1997, p. 387.

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regímenes totalitarios: la distinción – respecto de sus distintas funciones – del poder político, del poder moral y del poder económico, que deben ser confiados a manos distintas, si se quiere salvaguardar la libertad política y civil.21

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A liberdade, ameaçada em várias frentes, precisa da Constituição como documento capaz de mobilizar, em defesa da ordem livre, a cidadania organizada contra o perigo evidente das tiranias. Sendo assim, faz-se necessário ir além do liberalismo que cultiva somente as virtudes da vida privada, avançando rumo ao republicanismo, que aprofunda a visão liberal da política, cultivando as virtudes públicas garantidoras da manutenção da liberdade. O IMPEACHMENT

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Antes mesmo da Constituição dos EUA ter sido promulgada em 1789, o instituto do impeachment já era amplamente conhecido no universo da common law. Os constituintes sequer sentiram necessidade de determinar o significado de trialof impeachment quando da escritura da Constituição, restando à Convenção da Filadélfia decidir acerca da redação do “emolduramento” de quais condutas estavam sujeitas a tal procedimento, sugerindo-se, em parte, redação distinta daquela legada pela tradição que remontava à Idade Média, sugestão que acabou vencida pela maioria, formada inclusive por James Madison, que, ao invés dos intentados “mal practice and neglect of duty” e “mal administration”, optando-se pela continuação do “high crimes and misdemeanors”22.

A primeira vez que se tem registro de uma pessoa objeto de impeachment data de 1376. Em seus contornos ancestrais, o impeachment possuía caráter jurídico-criminal e não estava restrito a autoridades (e, evidentemente, o rei não estava sujeito a tal procedimento), sendo que qualquer pessoa poderia ser indiciada, desde que suspeita de ter cometido crimes contra o reino.

21 MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad, p. 279. 22 Ver a respeito: POCOCK, J. G. A. The Ancient Constitution and The Feudal Law. Londres: Cambridge University Press, 1987, p. 54 e ss; POCOCK, J. G. A The Macquiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition. Nova Jérsei: Princeton University Press, 1975, pp. 16-25;

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Não obstante, de 1621 até 1805, realizaram-se 54 julgamentos de impeachment (um julgamento entre três a quatro anos) – aumento que corre paralelo à consolidação da soberania parlamentar. Apontado tal contexto, pode-se tratar então da transplantação do procedimento britânico às colônias que viriam a unir-se nos Estados Unidos da América. O que se confirma pelo relevante número de casos de impeachment ocorridos em solo americano até às vésperas da Revolução Americana.

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O trialof impeachment pertence àquilo que Montesquieu denominou por “constituição inglesa”, quando pretendeu exemplificar historicamente a realização “mais perfeita” de sua teoria da separação dos poderes. Neste sentido, devemos ressaltar que os revolucionários americanos viam como olhos ingleses a formulação de suas leis fundamentais, isto é, de um modo particularmente “constitucionalista”, enquanto conjunto de salvaguardas institucionais para garantir a durabilidade da República contra a sua cíclica e eventual queda e corrupção. Levavam em conta, de uma maneira particularmente romana, a ausência de virtude por parte dos cidadãos, atualizada modernamente em uma psicologia quase-hobbesiana – ou seja, amparando-se no conhecido pessimismo antropológico do autor de “O Leviatã”. Os cidadãos corruptos visando tão somente aos seus interesses particulares seriam consequência e não a causa de uma decadente República estruturada sem as devidas garantias, balanços e contrapesos, desconsiderando, assim, a própria natureza humana23.

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Straumann aponta que Hamilton, Adams, Madison e Jay concordavam com a explicação sustentada tanto por Montesquieu como por Bodin de que a as razões para a queda de Roma estariam na falta de medidas efetivas para manter o equilíbrio de poderes na República, e não se centravam na ausência de virtude de seus cidadãos, os quais, por serem humanos, tenderiam naturalmente a tal condição, especialmente na falta de leis que exigissem atitudes contrárias24. Em outras palavras, se suficientemente bem pensadas, as instituições de uma República podem reverter a natureza humana a seu favor, garantindo a durabilidade da primeira em face da imutabilidade da segunda.

23

24

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Ver a respeito: STRAUMANN, Benjamin. Crisis and Constitutionalism: Roman Political Thought from the Fall of the Republic to the Age of Revolution. Londres: Oxford University Press, 2016. STRAUMANN, Benjamin. Crisis and Constitutionalism, p. 340.

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A DITADURA CONSTITUCIONAL (ESTADO DE SÍTIO)

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Alexander Hamilton, no O Federalista nº 70, ao discorrer sobre a importância da unidade do Poder Executivo, de início, descreve um bom governo como aquele marcado por um executivo “energético”, para, então, oferecer, na ditadura romana, um exemplo daquilo que aclamou como essencial para a proteção da comunidade e da correta administração da lei, assegurando a ordem da liberdade perante os ataques da ambição, das facções e da anarquia. Assim, o homme de letres afirma que qualquer um minimamente conhecedor da história romana sabe o quão regularmente aquela república precisou salvaguardar-se “no poder absoluto de um único homem, formidavelmente intitulado ditador” contra as intrigas de indivíduos ambiciosos, aspirantes da tirania, pretensões à secessão de classes inteiras da comunidade, as quais com as suas ações ameaçavam a própria existência do governo, e às invasões externas.25 De todo modo, o fascínio pela ditadura romana não é exclusiva dos homens que assumiram o pseudônimo de Publius, consistindo em um tópico constante da tradição republicana que continua até hoje, mesmo não faltando disputas acerca do significado dessa herança no atual complexo institucional centrado no lugar-comum das “ditaduras constitucionais”.

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Maquiavel, por exemplo, louvou em seus Discorsi supra la prima deca di Tito Livio a ditadura romana, atribuindo a tanto parte significativa das glórias e da persistência26 da República Romana. Não obstante, tal atitude é acompanhada de uma ênfase na procedimentalidade necessária à vigência do instituto, integrando-o, nas palavras de Matos, ao direito republicano “na qualidade de magistratura extraordinária, estando perfeitamente prevista e regulamentada na prática constitucional – em larga medida consuetudinária – da República”.27 Assim, o florentino afirmou que o ditador não se fazia por autoridade própria. Pelo contrário, ele era feito segundo a ordem pública, o que estaria de todo em acordo

25

HAMILTON, Alexander. Seventy. In: HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. The Federalist. Nova Iorque: Hackett Pub. Co., 2005, p. 374. 26 MACHIAVELLI, Nicolo. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Modigliana: AssociazioneMazziniana Italiana, 2003, pp. 46-47. [Tradução livre] 27 MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. NΟMOΣ ΠANTΟKΡATΩΡ: Apocalipse, exceção, violência. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 105, pp. 277342, 2012,p. 292.

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com o sentido da forma republicana, na qual, segundo o autor, os magistrados e autoridades que se fazem excepcionalmente são-lhes danosos, enquanto aqueles que são feitos ordinariamente, em razão e apesar de situações excepcionais, fazem-na bem.28

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O argumento maquiavélico pela imposição de limites ao exercício da autoridade emergencial precisa ser frisado. Isso faz-se, talvez, justamente diante dos esforços genealógicos29 de mostrar que entre a ditadura romana e aquilo que posteriormente, graças a Carl Schmitt, passou-se a caracterizar por “estado de exceção”, em razão do caráter integrativo, ou restaurador, da ditadura romana – e de todos os institutos posteriores a ela voltados a garantir a persistência da ordem constitucional (como o Estado de Emergência, o Estado de Sítio, etc.) e que,a partir da experiência romana, deveriam ser avaliados, conforme argumenta Clinton Rossiter.30 Mais ainda, a busca por traçar limites avança a perspectiva pessimista. Neste sentido, ressaltam Jack Balkin e Sanford Levison – após marcarem tanto a ambivalência da ditadura constitucional (em que pese a sua nomenclatura), como o seu valor e a necessidade para, em situações de emergência, defender repúblicas constitucionais – em colocação evocativa da perspectiva ora analisada:

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Poderes emergenciais são necessários à governança efetiva do estado moderno. Mas, justamente em razão do aumento de poderes emergenciais e de outras formas de discricionariedade executiva (...), não se pode ter certeza que a expansão da discricionariedade executiva e de poderes emergenciais não coloca nenhum perigo.31

Assim, continuam os autores32, tais desenvolvimentos não podem ser deixados ao caso, nem é aconselhável assumir que as probabilidades das coisas darem errado são nulas. Assim sendo, se poderes emergenciais são necessários, a sua procedimentalidade, aí incluídas as restrições e os freios impostos a tanto, precisam ser fruto de sistemática reflexão e 28 MACHIAVELLI, Nicolo. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Modigliana: AssociazioneMazziniana Italiana, 2003. 29 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad.de. Iraci D. Poleti. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2014. 30 ROSSITER, Clinton. Constitutional Dictatorship. Princeton: Princeton University Press, 1948, p. 15. 31 BALKIN, Jack M.; LEVINSON, Sanford. Constitutional Dictatorship: Its Dangers and Its Design. Minnesota Law Review, v. 94, n. 6, p. 1789-1866, 2009, p. 1793. 32 Ibid., 1794.

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escolha, o que parte do horizonte de que mesmo a solução para quando as coisas dão errado pode estar também sujeita ao erro. CONCLUSÕES

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A história do constitucionalismo é uma história de lutas pela limitação do poder político. Tais lutas decorrem da experiência das tiranias, sejam antigas, modernas ou contemporâneas. A Constituição é necessária, pois não podemos acreditar no mito do despotismo esclarecido ou numa suposta eficácia histórica das ditaduras, capazes de resolver os problemas que a democracia mostra-se incapaz de enfrentar. A história aponta em outra direção e na sua experiência devemos fiar-nos. Importa sempre muito mais conhecer os testemunhos das vítimas do abuso de poder que confiarmos nos delírios dos ideólogos do poder absoluto.

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O olhar pessimista nas constituições confunde-se com o mais aguçado realismo político. O realismo, ao contrário do que se possa imaginar, não é um convite à inação. Muito pelo contrário. Ao perceber o potencial sempre destrutivo presente nas motivações humanas e ao recusar um cheque em branco a qualquer grupo que se autoproclame virtuoso, o realismo leva em conta que a barbárie nunca é inteiramente derrotada entre nós. Por isso, é necessário pensar e agir sempre preventivamente, já sabendo o que será enfrentado, antevendo os cenários possíveis e os remédios eficazes para manutenção da liberdade. Pensado como um método de trabalho constitucional, o pessimismo deve sempre cogitar o cenário da pior das hipóteses possíveis e mobilizar a imaginação criadora dos juristas para encontrar antídotos e remédios institucionais para prevenir e curar tais males. A separação dos poderes, o duplo grau de jurisdição, a presunção da inocência, o impeachment, o Estado de Sítio, os remédios constitucionais (Habeas Corpus, Habeas Data, Mandado de Injunção etc.) são institutos que nos remetem a essa consideração de um pessimista metódico obstinado sempre em imaginar que as coisas passar-se-ão também da pior maneira, com abusos de poder, omissões e atentados contra a ordem democrática e a própria constituição.

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REFERÊNCIAS

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O “pessimismo da razão não deve abalar o otimismo da vontade”, escreveu Romain Rolland, a propósito da Europa envolvida na Primeira Grande Guerra. Exatamente por sabermos o mal que nos espreita é que devemos estar vigilantes, antecipando os seus passos. Se razão e vontade fazem-se igualmente pessimistas, quedamos omissos face às exigências da história. Se razão e vontade fazem-se igualmente otimistas, corremos o risco da aventura, da precipitação e de darmos passos largos demais para o tamanho de nossas pernas. O equilíbrio entre a razão e a vontade dá-se quando a primeira permanece alerta e leva a sério a advertência histórica que não controlamos todas as variáveis de uma decisão. Consequências imprevistas podem aparecer e o cenário da pior das hipóteses nunca deve ser descartado.

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. de. Iraci D. Poleti. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2014. BALKIN, Jack M.; LEVINSON, Sanford. Constitutional Dictatorship: Its Dangers and Its Design. Minnesota Law Review, v. 94, n. 6, p. 1789-1866, 2009. CLAUSEWITZ, Carl von.Two Letters on strategy. Kansas: Army War College Fundation, 1984. CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL PERÚ. México: UNAM, 1994.

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