Retrato versão para revisão 2

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retrato de uma dĂŠcada perdida


Copyright © 2017 by Cristovam Buarque

B917u Retrato de uma década perdida. / Cristovam Buarque. Brasília/DF : Editorial Abaré, 2017. ISBN: 00p. il.

1. Literatura. 2. Escrita literária. I. Título. II. Autor. CDU 800 808


Cristovam Buarque

retrato de uma dĂŠcada perdida



Para as Tacianas e os Ângelos do Brasil, com minhas desculpas por não termos ainda rompido o círculo vicioso da pobreza que se repete entre vocês, por falta de educação com qualidade para todos



Sumário

Nota introdutória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Carta enviada ao presidente Lula . . . . . . . . . . . . Estas crianças têm nome: como dar-lhes um futuro? A vez de Ângelo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A construção de um Sistema Federal de Educação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Carta enviada à presidente Dilma . . . . . . . . . . . Aos meus colegas parlamentares de hoje. . . . . . Depende de Nós!



Nota Introdutória

Este pequeno livro mostra um retrato do futuro do Brasil se perdendo na década entre 2005-2015: a vida de uma menina de seis anos chamada Taciana, em 2005, e de seu filho Ângelo, em 2015. Revela também as tentativas que fiz junto ao presidente Lula e à presidente Dilma, ao apresentarlhes propostas para, por meio da educação, quebrar o círculo vicioso da pobreza que une a mãe adolescente a seu filho criança e os conecta a seus avós e antepassados, e se repetirá no futuro. Ao mesmo tempo, acrescentei uma mensagem aos meus colegas políticos de hoje, para fazermos o que não fizeram nossos antecessores: mudar a cara do futuro, mudando a cara de nossas escolas. Porque o futuro de um país tem a cara de sua escola no presente. o0o

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Introdução

No dia 11 de fevereiro de 2005, um helicóptero transportando o presidente Lula desceu na comunidade de Canaã, na cidade de Toritama, ao lado de Caruaru, no agreste pernambucano. A certa distância, protegidas por uma cerca de arame farpado já existente, algumas crianças assistiam ao espetáculo raro e magnífico da aeronave pousando e um homem saindo. Aquelas crianças não tinham consciência de que o homem era o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. E talvez não tenham ficado surpresas com o fato dele dirigir-se até elas. Outro presidente provavelmente apenas acenaria de longe e entraria no carro que o esperava ao lado, possivelmente já atrasado na sua concorrida agenda. Em vez disso, o presidente caminhou e agachou-se em frente ao grupo, colocando-se na mesma altura das crianças. O fotógrafo Ricardo Stuckert, da Agência Brasil, captou a cena e a foto foi publicada nos jornais do dia seguinte. R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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Ao dirigir-se até aquelas crianças, o presidente Lula demonstrou simplicidade e respeito, como típico dele. Suas feições na foto mostram, até hoje, angústia perante o quadro de pobreza diante de si, nos rostos surpresos, nas roupas gastas, sujas ou faltando. Ao observador da foto fica a dúvida se ele se perguntou o porquê de aquelas crianças estarem ali e não na escola e a impressão de que ele recordava sua infância, 50 anos antes, a poucos quilômetros dali, em Garanhuns. Muito provavelmente o presidente não pensava, naquele instante, que, se uma delas tivesse emigrado nos anos 1950 para São Paulo, teria seria possível encontrar emprego sem qualificação, fazer cursos técnicos simples, envolver-se na atividade sindical e, se fosse um gênio político e a sorte ajudasse, poderia ter sucesso na vida. Mas, se pensasse nisso, saberia que esta possibilidade não existe mais. Hoje qualquer atividade profissional exige formação educacional, pelo menos um ensino médio com qualidade: conhecimento de matemática e ciências, fluência em idiomas estrangeiros, gosto e prática de literatura. Isso requer boas escolas com horário integral. Atualmente, o veículo que leva “retirantes” é a escola, não mais o antigo “pau-de-arara”, e em direção ao futuro, não mais para São Paulo. Não basta a migração geográfica, é preciso atravessar o “Mediterrâneo invisível” que, dentro do Brasil, separa quem tem futuro e quem naufraga no caminho por falta do 14

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barco: a escola com qualidade. Não mais caminhão, levando o corpo para o Sul do país, agora é preciso escola levando conhecimento para dentro do cérebro. Ao ver aquela foto no jornal Folha de S. Paulo, edição do dia 12 de fevereiro de 2005, decidi ir à Toritama encontrar aquelas crianças, saber o nome de cada uma, conhecer suas famílias, ver onde estudavam, imaginar o futuro que teriam. Três meses depois fui à Toritama em busca delas. Com base no que observei naquela visita, escrevi uma carta ao presidente, sob o título: “Companheiro Presidente: estas crianças têm nome – como dar-lhes um futuro?”, que lhe enviei em maio de 2005. Na abertura da carta coloquei a foto com os nomes, descrevi a realidade onde elas viviam, especialmente a escola onde estudavam, reconheci que o presidente não era o culpado daquele triste cenário de penúria educacional e pobreza social que ele herdou, mas alertei-o que ele seria o responsável se aquele quadro ainda se mantivesse dez anos depois. Na carta sugeri “Dez Medidas que Mudariam Aquela Realidade”, seguindo as linhas do projeto que tentei executar ao longo de 2003, quando fui ministro da Educação de Lula. Dez anos depois, em setembro de 2015, voltei ao local. Queria saber como estavam aquelas crianças na adolescência, o que havia acontecido a cada uma delas. Reencontrei-as recém-saídas ou ainda na R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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adolescência. Desta vez, não fiz uma carta ao ex-presidente, mas escrevi um artigo, publicado no jornal O Globo, no dia 03 de outubro de 2015, com o título “A vez de Ângelo”. Antes disto, no dia 26 de junho de 2011, a presidente Dilma Rousseff convidou um grupo de senadores para um almoço no Palácio da Alvorada. Eu estava entre eles. Nos momentos anteriores à mesa, sentados em sofás, ouvimos o entusiasmo da presidente diante do sucesso de Colégios Federais (militares, Colégio Pedro II, escolas técnicas) em sucessivas olimpíadas de matemática. No momento, eu lhe disse que a saída para nossa educação seria substituir o atual sistema de nossas pobres escolas municipais e estaduais por um novo sistema com escolas federais, como aquelas que ela estava admirando. Alertei que esta substituição levaria mais do que o período de seu mandato, mas ela poderia dar início a esta revolução, que seria seguida pelos governos que lhe sucedessem, obrigados a dar continuidade à sua iniciativa. Não lembro, hoje, se ela ou qualquer dos outros senadores presentes manifestaram interesse, se ela pediu uma proposta. Mas ao sair do Palácio do Planalto, voltei ao meu gabinete no Senado e escrevilhe uma carta em que dizia como fazer a transição do velho sistema municipal a um novo sistema nacional de educação de base. Entreguei pessoalmente a carta a diversos de seus ministros, mas nunca soube se ela a recebeu. 16

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Relembrando agora minhas duas visitas à Toritama, achei que valeria a pena divulgar a carta, mesmo sem atualizar os dados. É uma proposta para quebrar o círculo. Já que no passado não adotamos as Tacianas, adotemos agora os Ângelos, para que eles adotem o Brasil. Ao rever estes documentos, senti vontade de escrever uma pequena nota aos meus colegas políticos de hoje e colocá-la no final desta publicação. Não sei se receberei um comportamento diferente do que o dos presidentes Lula e Dilma, que jamais confirmaram o recebimento, nem me chamaram para conversar ou para contestar. De qualquer forma, estarei cumprindo mais uma etapa, manifestando minhas frustrações, ainda esperança e desafio.

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Carta enviada ao presidente Lula



Estas crianças têm nome: como dar-lhes um futuro? Brasília, maio de 2005 Presidente e companheiro Lula,

Dois meses atrás, vi nos jornais uma foto sua diante de crianças no bairro Canaã, em Caruaru. As crianças mostram surpresa diante do presidente, e o senhor mostra tristeza e preocupação diante da pobreza que elas representam. Ao ver essa foto, decidi ir à Canaã. Conhecer as crianças e suas famílias, ver a escola onde estudam, provar a merenda que elas comem, sentir o futuro que representam. O futuro de cada uma e o futuro que elas construirão. No olhar das crianças, vi a tragédia que herdamos. E vi a possibilidade dessa tragédia continuar, 21


com os filhos dessas crianças. Uma herança que nós deixaríamos. Por isso gostaria de sugerir medidas para mudar essa realidade. Trata-se de Federalizar a Educação Básica; definir padrões nacionais para a educação de nossas crianças, envolvendo o Governo Federal na função hoje desenvolvida de maneira tão desigual pelos municípios e estados. Espero, presidente, que este relato e estas propostas sejam vistos como a manifestação de uma angústia e de uma esperança. Atenciosamente, Cristovam Buarque

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Josimar, 10 anos

Taciana, 6 anos – a única menina que aparece na foto; Josivan, 8 anos – menino de blusa listrada, mais à direita na foto; Jacques, 9 anos – menino que está com a cabeça entre Taciana e Josivan; Rubinho, 7 anos – menino sem blusa com a mão no peito; Jailson, 9 anos – menino com blusa vermelha e cinza, ao lado de Rubinho; Rosimar, 10 anos – menino com blusa azul e amarela, com a cabeça perto de Jailson; Janailson, 12 anos – menino que aparece com blusa azul e olhos fechados.

Janailson, 12 anos

Jacques, 9 anos

Jailson, 9 anos Rubinho, 7 anos Taciana, 6 anos

Josivan, 8 anos



J

osivan, o pequeno que aparece à direita na foto com o senhor, tem oito anos. Está na 1ª série da Escola Municipal Capitão Rufino. Ainda não sabe ler nem contar. A família vive em um mocambo de um cômodo, dividido por uma velha cortina. O esgoto passa na frente da casa, a céu aberto. Estive na escola e na casa. Seu pai e sua mãe estão desempregados, há anos. Têm outros 15 filhos. Onze moram com eles. Todos risonhos na foto. Na casa onde vivem todas estas pessoas, há somente uma cama, onde dormem o pai, a mãe e os três filhos menores. As outras crianças dormem em colchões velhos, rasgados, espalhados pelo chão ao anoitecer. Vivem com R$ 85,00 por mês, que recebem do programa Bolsa Família, pago em Canaã. Aproximadamente o mesmo valor do tempo da Bolsa-Escola, Bolsa Alimentação e Vale Gás somados. A mãe me disse que se tivesse de ir ao centro de Caruaru para R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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receber a Bolsa Família, o valor não compensaria o custo do transporte. O que motiva Josivan a ir à escola é a merenda. No dia da minha visita, era feijão com arroz, mas, às vezes, é arroz com charque ou macarrão com sardinha. O menino que aparece sorrindo, de camiseta vermelha e cinza, chama-se Jailson. Tem nove anos e é irmão de Josivan. Está na 1a série, junto com o irmão e outros 40 alunos que lotam uma das O que motiva três salas de aula. Jailson também Josivan a ir à não sabe ler nem escrever. Muitos dos escola é a alunos vão para a escola sem sapato merenda. No dia ou sandália.

da minha visita, era feijão com arroz, mas, às vezes, é arroz com charque ou macarrão com sardinha

A única menina que aparece na foto, sem blusa, é Taciana. Tem 6 anos. Não consegui informações sobre ela. Provavelmente ainda não vai à escola.

O outro menino, que aparece de olhos fechados, é Janailson, filho de dona Maria Ivonete. Tem 12 anos, frequenta a 2a série, mas não sabe ler nem escrever. Sabe contar e conhece as letras; no entanto, como as demais crianças do grupo, sem exceção, é incapaz de fazer uma carta. Quando foi pedido aos alunos da 2ª série que escrevessem uma carta para o Presidente da República, que tinha estado com eles, nenhum deles foi capaz de articular as ideias, de colocar palavras inteiras no papel.

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As crianças nem sequer entendem o que significa estudar. Não há lição de casa, não há leitura, mesmo porque não aprenderam a ler. Nem elas, nem seus pais. Segundo os professores, muitas crianças vão à escola somente para comer. No Brasil, Presidente, dezenas de milhares de escolas são centros de distribuição de alimentos disfarçados de escola. Como se, em nosso país, a escola fosse um restaurante popular mirim. O prédio da escola foi reformado em 2003 e 2004, com recursos enviados pelo Governo Federal. Porém, tem apenas três salas: uma para a 1ª série; a outra serve ao mesmo tempo à 2ª série e à preparação da merenda; e, na outra, funcionam simultaneamente a secretaria da escola e a 3ª série. Aí se acomodam 276 crianças, em dois turnos. O muro não foi terminado. A escola não tem vigia, nem portão, nem quadra esportiva, nem parque, nem uma única árvore. Seu único equipamento pedagógico é o quadro. Se o futuro

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de um país tem a cara de sua escola pública, ali não se vê um bom futuro para o Brasil. As poucas crianças que tentarem continuar os estudos deverão ir à Toritama, município próximo de Caruaru. Com enorme dificuldade. Dificilmente os pais poderão gastar R$ 10 por semana com a passagem. Não é de estranhar que todos os jovens com os quais conversei tivessem abandonado a escola antes da 4ª série. Ouvi o senhor lembrar que 52% das crianças brasileiras chegam à 4a série sem saber ler. As crianças da foto farão parte desse grupo. E a partir daí ampliarão o exército de milhões de brasileiros adultos analfabetos. Programas de apoio feitos pelo setor privado não serão suficientes. Porque, como me disse o gestor educacional da Escola Capitão 28

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Rufino, Alessandro da Silva, “a torneira continua aberta”. Apesar do esforço dos professores, que dão 8 horas de aulas por dia. Os professores são cinco e cada um recebe R$ 460 por mês do governo municipal de Caruaru. Todos têm formação de nível médio, com exceção de uma professora, formada em Letras, que recebe o mesmo salário. O gestor Alessandro, que também coordena outras cinco escolas, afirmou que a situação é pior fora de Caruaru. A realidade é que as cidades, sozinhas, não têm como cuidar da educação de suas crianças. O futuro das crianças que vivem em Canaã é muito parecido com o das demais filhas de brasileiros pobres e entregues à penúria de seus municípios. No Brasil, Josivans, Jailsons e Tacianas são dezenas de milhões. Apesar disso, senti em todos, pais e professores, confiança no senhor. Dona Maria Ivonete, mãe de alguns dos meninos que aparecem na foto, disse que nada melhorou nestes últimos dois anos, mas que “tem certeza de que vai melhorar antes do final do governo do presidente Lula”. Seu sentimento é o da maioria dos pobres brasileiros. Ela não sabe o que o senhor vai fazer, sabe apenas que fará. Alguns disseram esperar emprego, R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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outros aposentadoria, outros receber a Bolsa Família. Nenhum deles disse que espera uma boa escola para os filhos. Esta é, certamente, a maior prova da tragédia educacional brasileira: a escola não é um objetivo, nem sequer um desejo, ou uma boa bandeira eleitoral. Todos colocam o emprego, a saúde, a renda, o asfalto, a segurança na frente da educação. Estão presos ao presente: a merenda é mais importante que o livro, a fome mais grave que o analfabetismo. Mas sabemos que sem educação a fome continuará. Nem aqueles meninos de Canaã nem o Brasil terão futuro fora da escola. O futuro de um país tem a cara da sua escola pública. Ainda mais triste do que ver a tragédia no rosto daquelas crianças é prever que seus filhos terão o mesmo futuro. Nenhum país se constrói com alunos que vão à escola apenas por causa da merenda ou da Bolsa-Escola. Estes dois instrumentos são necessários, mudam o dia a dia, mas não mudam o destino das pessoas. Se a escola não tiver a qualidade necessária, a realidade não muda, não se constrói o futuro. Mas o senhor pode mudar este futuro, mudando a escola. Já se foi o tempo em que o futuro estava no caminhão “pau de arara” que levava para um emprego na 30

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indústria de São Paulo. Hoje, o “pau de arara” é um ônibus com ar condicionado, mas de nada serve esse conforto, pois não há emprego para alguém sem um mínimo de instrução. A porta de entrada na modernidade é a escola. O Brasil e o mundo esperam do senhor o que os sul-africanos esperavam de Nelson Mandela: ser o primeiro presidente de um novo tempo, mudar o rumo da história, inaugurar um novo ciclo. Mandela conseguiu: brancos e negros, hoje em dia, O futuro de andam na mesma calçada. O senhor um país tem a conseguirá, se garantir que, no cara da sua futuro, pobres e ricos tenham a escola pública. mesma escola: de boa qualidade. Ainda mais triste do que ver a Esta pode ser sua marca, e sinceratragédia no rosto mente, não vejo outra. O mundo daquelas global deixou somente esta brecha crianças é para um governo que queira trans- prever que seus formar a realidade social. filhos terão o

mesmo futuro

O Brasil vai esperar muitas décadas até que outro presidente vá a Canaã, se aproxime das crianças, converse com elas, e tenha o sentimento de preocupação, tristeza e responsabilidade que o senhor transmite na foto. Por isso, não podemos perder esta chance. Se não começarmos a fazer agora, sob sua liderança, aquilo que estas crianças precisam, seus filhos e netos terão o mesmo destino.

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O senhor pode mudar isto. Basta trazer a preocupação com a educação básica para o plano federal. Hoje, uma criança só se torna preocupação federal quando entra na universidade ou em uma escola técnica. Até lá, é preocupação do prefeito, e os poucos que chegam ao ensino médio são preocupação do governador. As leis não atribuem ao presidente e ao ministro da Educação responsabilidade com as crianças e com a educação básica. É como se aquelas crianças da foto fossem caruaruenses, e não brasileiras. Porque a educação de cada criança é responsabilidade da cidade na qual ela nasce e vive. Em um país com a desigualdade do Brasil, escolas municipais perpetuam a desigualdade. Porque o berço da desigualdade está na desigualdade do berço. E a desigualdade na educação aprofunda a desigualdade social. Nosso papel é mudar isto. O Brasil precisa trazer suas crianças e a educação básica para a responsabilidade do Governo Federal. Isto não significa assumir o custo e a administração das 180 mil escolas e dos quase dois milhões de professores da educação básica, como acontece com as universidades e com a escola técnica. Nem colocar as escolas brasileiras em uma camisa de força pedagógica. É preciso federalizar a 32

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responsabilidade, com descentralização gerencial e liberdade pedagógica. O caminho passa por dez passos, que garantiriam condições mínimas a todas as escolas do Brasil, não importa em que cidade estejam. A federalização da educação básica é o caminho para cumprir seu programa de governo, intitulado Uma Escola do Tamanho do Brasil. E deixar sua herança, sua marca na história. Os resultados não vão aparecer de imediato, como conseguiu Mandela na África do Sul, com o fim do apartheid. A revolução O Brasil educacional demorará de 10 a 15 anos para dar seus frutos. Mas precisa trazer suas crianças e a se agirmos desde já, em 2022, educação básica ano do segundo centenário da para a Independência, o Brasil será um responsabilidade país diferente: mais eficiente, do Governo Federal mais justo, sem a desigualdade que nos faz um símbolo de vergonha, como éramos no século XIX, por causa da escravidão. Presidente Lula, foi o senhor quem divulgou no Brasil a ideia do “custo da omissão”, o custo do não fazer. O custo de não “federalizar” a educação básica no seu governo será um povo sem educação e um país sem futuro.

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O Brasil está maduro, dispõe dos recursos necessários e teve a sorte de elegê-lo. O senhor é a pessoa certa para fazer o que deve ser feito. Não deixe o Brasil perder esta chance, companheiro e presidente Lula. Espero, presidente, que este relato e estas propostas sejam vistos como a manifestação de uma angústia e de uma esperança. Atenciosamente, Cristovam Buarque

Estado

Renda Per Capita1 (R$/hab)

Brasília

DF

16.361

Caxias

RS

14.621

São Paulo

SP

13.139

Uberlândia

MG

11.537

Campinas

SP

10.774

Bacuri

MA

581

Tutoia

MA

617

Axixá

MA

526

Primeira Cruz

MA

674

Governador Nunes Freire

MA

380

Cidade

1 – Dados IBGE 2002

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2.1. piso salarial e de formação do professor: definir um piso salarial federal e normas mínimas federais para os concursos de professores;

2. Definição de Três Pisos Nacionais para a Educação:

1. Criar o Ministério da Educação Básica e a Agência Nacional para a Proteção da Criança.

Sem um piso salarial para o professor, é impossível atrair profissionais competentes; sem um concurso nacional para selecionarmos o professor, não será possível garantir um nível mínimo de qualidade na formação dos professores.

Sem isso, o Governo Federal será refém do Ensino Superior e Técnico, e as crianças brasileiras não terão um responsável por elas no plano federal.

Justificativa

Retomar os projetos criados em 2003 e aprovar o Fundeb.

Aprovar a criação dos dois órgãos.

Ação

Passos dados anteriormente

O programa de Certificação Federal dos Professores, de 2003, unia o piso salarial e a formação do professor. A primeira proposta do FUNDEB foi entregue na Casa Civil em 2003.

A proposta da Agência Nacional para a Proteção das Crianças está em andamento no Senado.

A ideia de criar o Ministério da Educação Básica já foi discutida durante o período de transição.

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Sem isso, o saber de cada aluno depende do prefeito de sua cidade, e o Brasil não construirá uma geração unificada pela educação.

2.3. piso de conteúdo: estipular o saber mínimo que cada criança brasileira, de qualquer escola, em cada cidade, deverá possuir sobre cada matéria em cada série, independentemente de onde estude.

3. Garantir a universalização da educação fundamental.

Retomar os projetos iniciados em 2003.

Sem uma unificação federal do mínimo de equipamentos e instalações, a escola brasileira continuará radicalmente desigual.

2.2. piso de equipamentos e instalações: definir padrões mínimos para as edificações escolares e o equipamento pedagógico mínimo de que elas necessitam. Definir esses conteúdos no Plano Nacional de Educação.

Ação

Justificativa

Passos dados anteriormente Em 2003, foram iniciados dois programas que atendiam essa meta: Escola Interativa e Escola Ideal.

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Sem isso, as crianças pobres não terão o desenvolvimento necessário.

Sem isso, as crianças pobres perderão os anos fundamentais de formação.

Sem isso, não haverá universalização.

Sem isso, o programa Bolsa Família não terá impacto transformador.

3.1. Garantir o atendimento alimentar e pedagógico na primeira infância;

3.2. Garantir vaga a todas as crianças no dia em que completarem 4 anos;

3.3. Identificar e trazer à escola as crianças não matriculadas;

3.4. Retomar com vigor o papel educacional da Bolsa-Escola;

Justificativa

Separar na Bolsa Família a parte assistencial da parte educacional. Levar a parte educacional para o Ministério da Educação Básica.

Retomar o projeto Escola de Todos.

Enviar Projeto de Lei ao Congresso.

Sancionar a PEC 40/2005. Implantar o Programa de Assistência Educacional à Primeira Infância.

Ação

Passos dados anteriormente

O assunto já foi debatido.

O projeto começou a ser executado em 2003.

Uma proposta está na Casa Civil desde abril de 2003.

Já aprovada no Senado. Projeto existente no MEC desde 2003.

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Sem isso, uma parte de nossos jovens ficará para trás.

Sem isso, uma parte dos jovens não será atendida pela Federalização, por já terem passado da idade.

4.2. Incentivar os jovens que o Ensino Médio não conseguirá absorver.

Sem isso, a Bolsa-Escola ou Bolsa Família incentivam a frequência, mas não incentivam o estudo.

4.1. Determinar a obrigatoriedade da escola até o final do Ensino Médio.

4. Garantir a universalização do Ensino Médio.

3.5. Criar o Programa Poupança-Escola.

Justificativa

Transformar o projeto Primeiro Emprego em continuação de estudos por meio de incentivos financeiros.

Enviar projeto ao Congresso.

O Governo Federal adotar o projeto, para que tenha tramitação mais rápida.

Ação

Passos dados anteriormente

A proposta foi apresentada durante debates sobre o Primeiro Emprego.

Proposta foi entregue na Casa Civil em 2003.

Uma proposta foi entregue à Casa Civil em 2003. Projeto com origem no Senado está em tramitação desde 2004.

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Sem isso, o Brasil não terá condições de competir no mundo global.

Com ele, o presidente, o ministro, o Brasil podem saber como está o atendimento e a evolução educacional de cada criança brasileira.

6. Implantar jornada ampliada de 6 horas em todas as escolas brasileiras.

7. Criar o Cartão Escolar de Acompanhamento Federal.

8. Criar um Ambiente Educacional.

Para viabilizar a construção de uma escola brasileira, é preciso uma Lei Federal de Responsabilidade Educacional para cada dirigente público no Brasil, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal.

5. Aprovar uma Lei de Responsabilidade Educacional.

Justificativa

Esse programa foi iniciado em 32 cidades pelo MEC em 2003. O Orçamento para 2004 previa recursos para 155 novas cidades. A ideia está sendo estudada no Senado.

Enviar projeto do Executivo ao Congresso.

Minuta do projeto foi elaborada no MEC em 2003.

Enviar Projeto de Lei ao Congresso.

Retomar o programa Escola Ideal.

Passos dados anteriormente

Ação

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A educação hoje depende de um tripé “escola, família e mídia”. Sem esses dois últimos, não há boa educação.

Mães e pais analfabetos dificilmente conseguem educar os filhos.

8.1. Envolvimento das Famílias e da Mídia no Sistema Educacional Brasileiro.

8.2. Erradicação do Analfabetismo de Adultos.

Justificativa

Recriar a Secretaria para a Erradicação do Analfabetismo e retomar o Programa Brasil Alfabetizado com as metas estipuladas para o fim do analfabetismo de jovens e adultos.

O presidente assumir o papel de mobilizador nacional pela educação.

Ação

Passos dados anteriormente

Em 2003 foi criada a secretaria, foram alocados os recursos necessários e foi superada a meta de três milhões de adultos em alfabetização.

Em 2003, o MEC apresentou à Secretaria de Comunicação e Gestão Estratégica a proposta do Programa Educa, Brasil e a sugestão de que o presidente fosse à televisão a cada ano na abertura do ano escolar.

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Sem a valorização salarial, de formação e motivação funcional, não haverá boa educação.

Sem isso, a Lei de Responsabilidade Educacional ficará no papel.

Sem isso, as prefeituras e os governos estaduais investirão recursos de forma muito desigual.

8.3. Valorizar o professor.

9. Montagem do Sistema Nacional de Avaliação, Acompanhamento e Fiscalização da Educação Básica.

10. Ampliar os Recursos da União para a Educação Básica.

Justificativa

Apresentar proposta no Orçamento de 2006 para ampliar em R$ 7 bilhões, o equivalente a 1% das receitas, os gastos da União com Educação Básica.

Elaborar os procedimentos por Portaria do MEC.

Definir programas de apoio financeiro e social que transformem o magistério na profissão mais respeitada do país.

Ação

Passos dados anteriormente

Essa emenda foi apresentada no Senado para o Orçamento de 2005, mas foi rejeitada pelo relator.

O Inep tem os estudos necessários.

Ao longo de 2003, foram iniciados diversos programas nesse sentido, tais como o Fundeb entregue à Casa Civil em 2003. Além de outros apoios ao professor lançados em 2003.

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A vez de Ângelo

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D

ez anos após minha primeira ida à Toritama, em setembro de 2015, ao visitar aquelas mesmas crianças, vi o resultado do abandono na educação delas. Vi a tragédia construída pela omissão, vi o custo de não fazer o que é necessário. Este é o pecado da década de 2005-2015, não ter conseguido frear a monótona repetição secular da história da educação brasileira e, em consequência, a manutenção do círculo vicioso da pobreza e da educação, da educação e da pobreza, se sucedendo, por décadas. Ao longo de minhas observações e conversas, pude ver, com profunda tristeza, o que havia acontecido às crianças da foto com o presidente, entre 2005 e 2010; e sentir uma imensa angústia ao pensar no que vai acontecer no futuro de nosso país se o mesmo destino for reservado aos filhos delas.

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A escola já reformada

Ao chegar à escola, a imagem é a mesma de 2005: mesmo prédio, embora com uma ala de construção recente, mesma paisagem física, ainda sobre terra batida, poeira, paredes mal cuidadas, sem climatização no calor do agreste, bancas novas mas igualmente desconfortáveis, mesmo sistema pedagógico baseado no velho quadro negro; não vi computadores, vídeos, lousas inteligentes; os professores tinham ligeira melhor formação, mas apesar da Lei do Piso Salarial sancionada em 2008, pelo presidente Lula, seus salários não eram muito diferentes daqueles com os quais conversei antes. Ao olhar ao redor, foi como se o tempo não houvesse passado, salvo nos rostos de novas crianças.

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Cristovam Buarque


O autor com Ângelo, filho de Taciana

Passado o “choque do mesmo”, senti o “choque do fracasso”. A menina, de nome Taciana, que na foto está bem em frente ao presidente, então com 6 anos, deixou a escola aos 14, engravidou aos 15 e, aos 16, tem um filho com 1 ano e dois meses. Recebeu-me na casa de seus pais, com quem vive. Não falou do pai da criança. Olhamos juntos sua foto em frente ao Lula, mas Taciana não lembrava do fato, nem do helicóptero, o jornal não tinha chegado até ela; do Lula já havia escutado e sabia que a mãe recebia Bolsa Família, que ela vinculava ao presidente. Nada mais.

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Taciana, em 2005, na foto com o presidente Lula

Taciana, em 2015, com o autor

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Jailson

Josivan

Jaques

Seu irmão, conhecido como Cambiteiro, estava naquele grupo, mas não quis aparecer na foto de 2005. Antes dos 15 anos já estava fora da escola, tornou-se vigilante informal nas pobres ruas de Canaã, até ser assassinado aos 19 anos de idade. Sua morte foi comentada como um mistério, alguns me dizendo que foi herói, resistindo a bandidos, outros que havia sido ajuste de contas do tráfico. Seu outro irmão Diego, que não aparece na foto por ser na época muito pequeno, hoje com 15 anos, abandonou a escola muito cedo; já esteve preso; na cadeia foi jurado de morte por outros presos; esfaqueado, fugiu do hospital e desapareceu. Jailson, o que ri para o presidente, e Josivan, na ponta direita da foto, deixaram a escola antes de terminar a quarta série. Jaques, então com 9 anos, deixou a escola com R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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Rubinho em 2005 na foto com o presidente Lula

Rubinho em 2015 com o autor

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Cristovam Buarque


13; o menino conhecido como Nego, então com 8 anos, não estudou e tem hoje dois filhos. O menino chamado Rubinho, então com 7 anos, para quem o presidente Lula parecia olhar, deixou a escola antes da quinta série e, aos 17, teve um filho de nome Natan Rafael. Da escola, só lembrava da merenda que lhe permitia superar a falta de comida em casa. Mal aprendeu a ler, nunca havia lido um livro, de aritmética sabe apenas somar. Entre períodos de desemprego, Rubinho teve empregos temporários em algumas das muitas “fábricas” de montagem de calças jeans que existem em Toritama. São máquinas de costurar, espalhadas em casas e pequenos espaços, onde homens e mulheres passam o dia unindo peças que lhes chegam cortadas, em um trabalho manual, mecânico, maçante que os condena a serem parte das máquinas em troca de salários irrelevantes. Em breve, as máquinas ficarão automáticas e vão condená-los a um desemprego estrutural permanente, por causa da falta de educação.

D

epois de dez anos, pude perceber que a vida de cada uma daquelas crianças tornou-se uma monótona repetição das mesmas histórias e do mesmo fracasso: todas deixaram a escola antes de concluir o ensino fundamental, fazem parte do exército de analfabetos funcionais que R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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ocupa o país; todas foram trabalhar ao redor dos 15 anos, em trabalhos informais sem qualificação; tiveram filhos ainda na adolescência; nenhuma teve o futuro a que tinha direito ao nascer. Toritama é um Mediterrâneo onde aquelas crianças naufragaram na viagem para o futuro, diante dos olhos do presidente Lula e de todos nós. Ao carregar Ângelo, o filho da Taciana, veio-me o triste sentimento de perceber nele a repetição do mesmo histórico círculo vicioso que gira passando de pais para filhos, sem mudar o rumo do destino de cada um deles. E seria tão fácil quebrar este círculo: bastaria garantir escola com qualidade para todos por uma geração. Mas não o fizemos. Vi que para aquelas crianças o futuro chegou com cara do passado: feio. Confirmei a ideia de que o futuro do país tem a cara de sua escola pública no presente. Nas palavras que um dia ouvi da ex-senadora Heloísa Helena – “se o Brasil adotasse uma geração de seus filhos, esta geração adotaria o Brasil”: dando produtividade, eficiência, inovação, coesão, solidariedade, cultura, justiça, igualdade, paz, eliminando a pobreza, reduzindo a desigualdade, assegurando eleições mais éticas e democráticas, e sobretudo um rumo para o futuro da nação. Nossa realidade nos mostra que agora é a vez de 50 milhões de Ângelos que povoam o Brasil, depois dos muitos milhões que se sucederam no passado. Filhos de escravos e ex-escravos, de pobres e excluí52

Cristovam Buarque


dos, de trabalhadores com baixos salários e até de uma classe média baixa que alcançou o título de ‘pequeno consumidor’, sem conseguir se emancipar da pobreza, porque não recebeu a ferramenta fundamental da libertação: a escola com qualidade. Lembrei com tristeza do fracasso do programa Bolsa Escola ao se transformar em Bolsa Família, optando pela mínima renda para atender assistencialmente, no lugar de financiar para que os filhos dos pobres estudem e sejam emancipados estruturalmente, definitivamente. Como disse Frei Beto, demos-lhes Lembrei com uma pequena renda para fazê tristeza do fracasso do programa Bolsa -los consumidores, mas não Escola ao se fizemos deles cidadãos livres. transformar em Sofrem um tipo contemporâBolsa Família, neo de escravidão transmitido optando pela mínima renda para atender de geração para geração não assistencialmente pela cor da pele, mas pelo vazio da educação. Todos barrados no lado da pobreza pelo “Mediterrâneo invisível” que lhes nega a balsa para o futuro: a escola com qualidade. E ao barrar cada um deles, amarra o Brasil prisioneiro de seu presente resultante do seu passado: pobre, violento, ineficiente, dividido em corporações, dirigido por uma política corrupta, no comportamento e nas prioridades. E mudar isto seria possível!

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Cristovam Buarque


A construção de um Sistema Federal de Educação

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Carta enviada à presidente Dilma Ofício GSCB Nº 07-127/2011 Brasília-DF, 8 de julho de 2011. À Sua Excelência a Senhora Dilma Rousseff Presidente da República Federativa do Brasil Palácio do Planalto 70.064-900 – Brasília/DF Senhora Presidenta, Apesar dos esforços e resultados de todos os ministros e governos dos últimos 20 anos, as exigências educacionais do mundo moderno crescem mais rapidamente do que nossa educação evolui: a brecha cresce. Todos reconhecem que esse é o maior impedimento para o Brasil seguir em frente. R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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A simples evolução não será suficiente para atender às necessidades educacionais do Brasil no século XXI, quando a educação é o berço tanto da igualdade social quanto do progresso econômico. Mais do que evolução, será necessário um salto que não ocorre em pouco tempo em um país, mas só ocorre se for imediatista de cada cidade. A ideia de que lhe falei, durante almoço no dia 28/06/2011, consiste em dois movimentos: (a) fazer uma revolução em cidades pré-escolhidas – Cidades com Escola Básica Ideal (CEBI); e (b) avançar na qualidade de todo o Sistema Educacional Vigente (SEV). Todas as escolas do Brasil seriam melhoradas, ao mesmo tempo que todas as escolas de determinadas cidades sofreriam radical revolução: teriam seus professores selecionados pelo Governo Federal, com carreira nacional; com salários atraentes, com regime especial de formação e exigências específicas de dedicação; os prédios seriam reconstruídos e receberiam os mais modernos equipamentos pedagógicos; todas as crianças teriam pelo menos seis horas de atividade escolar por dia. O resultado seria que, de imediato, o ensino nessas cidades teria a qualidade dos países mais avançados. Uma espécie de CIEP mais moderno, por cidade, não por unidade escolar. Em um período de cerca de 20 anos, as CEBIs poderiam chegar a todo o território nacional.

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Cristovam Buarque


2. O custo desta proposta é função do número de novas CEBIs implantadas a cada ano. Sugiro, no primeiro ano, atender 3,5 milhões de crianças em 200 cidades pré-selecionadas, com população média de 70 mil habitantes, a um custo de R$9.000 por aluno, e custo total de R$ 40,3 bilhões. Neste custo está incluído o salário da Carreira Nacional de R$9.000/mês – equivalente ao salário pago em países como Coreia do Sul, Finlândia e Chile – para 120 mil novos professores, além do custo da nova infraestrutura de ponta associada ao ensino de qualidade. Todas as Nesse mesmo ano, todo o SEV escolas do Brasil seriam também daria um salto, seria um melhoradas, ao Novo-SEV, graças à elevação do salámesmo tempo rio médio de todos os professores, que todas as dos atuais R$ 1.527, para R$ 4.000, escolas de com um novo regime de formação e determinadas cidades dedicação e gastos com infraestrusofreriam radical tura capazes de disseminar o horário revolução integral em todas as cidades, o custo adicional seria de R$ 118,7 bilhões. Em um ritmo mais lento, este custo poderia ser bastante menor. Nos anos posteriores ocorreria a ampliação das CEBIs, substituindo a cobertura do Novo-SEV até a revolução chegar a todas as cidades, todas as escolas, todas as crianças do Brasil. Na medida em que aumenta o número de alunos e o custo para as CEBIs, o sistema tradicional vai sendo encolhido, até zerar. Teremos feito R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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a Revolução Republicana na Educação, dado o salto que outros países do nosso porte já fizeram.

3. As cidades poderiam ser escolhidas com base em critérios como: (i) tamanho – cidades de porte pequeno; (ii) história – cidades com alguma tradição educacional; (iii) compromisso – cidades cujos prefeitos e governadores apresentem história de compromisso com educação e vontade de participar do financiamento dessa Revolução Educacional.

Como pode ser visto no quadro e nos gráficos em anexo, o custo da Revolução Republicana na Educação, daqui a 20 anos – no seu último ano de implementação, quando todo o novo sistema de Educação Básica tiver substituído o sistema tradicional vigente –, será de 6,4% do PIB (assumindo conservadoramente o crescimento do PIB em 3% ao ano). Descontando os gastos atuais com a Educação de Base (3,04% do PIB), o custo líquido da revolução será de 3,36% do PIB. O custo total dessa revolução (incluindo os gastos com o Ensino Superior) seria de apenas 7,1% do PIB. Esse custo está perfeitamente dentro das possibilidades da economia brasileira, quando se compara não apenas com o PIB, mas também com outros dados da economia brasileira em 2010: a receita total do setor público (União, Estados/DF, Municípios) atingiu R$ 1.350 bilhões; o desembolso do BNDES foi de R$ 168,4 bilhões; os investimentos do Setor Produtivo Estatal (incluindo Petrobras e Eletrobras) chegaram a R$ 81,5 bilhões. 60

Cristovam Buarque


Cabe lembrar, Senhora Presidenta, que o peso dos custos será bastante menor ao longo dos anos, se levarmos em conta o impacto da educação sobre a taxa de crescimento do PIB, como também pela redução quase automática nos custos dos programas sociais. É um dado plenamente reconhecido, inclusive pelo IPEA, que investir em educação apresenta um elevado retorno econômico, social, financeiro e fiscal. A Revolução na Educação traria um retorno muitas vezes superior a esses investimentos supracitados, não apenas do ponto de vista da dignidade, da eficiência, da justiça, mas também das O custo total Finanças Públicas nacionais. Certadessa revolução mente, o financiamento da Revolu(incluindo os ção Educacional se beneficiará do gastos com o aumento no PIB que ela induzirá. Ensino Superior)

4. Nossa evolução é mais lenta do

seria de apenas 7,1% do PIB

que o aumento nas exigências e a consequência é o aumento na brecha educacional que hoje caracteriza um verdadeiro apagão intelectual, em um país que tem a 7ª economia mundial. Daqui para frente, essa brecha vai ameaçar o próprio sistema econômico, que por falta de inovação se verá impedido de ingressar na Economia do Conhecimento como um sistema criador e produtor de bens de alta tecnologia. A falta de educação provocará um atraso econômico, e distribuída desigualmente, termina sendo o berço da desigualdade. R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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A continuidade de um Brasil democrático, justo, eficiente, com presença internacional, vai depender de um salto na educação brasileira. Como fizeram no passado os países hoje desenvolvidos e países como Coreia do Sul, Irlanda, Espanha, Cingapura e outros que, há poucos anos, estavam atrás do Brasil e hoje nos superam, em muito, na renda per capita, na equidade, na produção de bens de alta tecnologia.

5. Senhora Presidenta, apresento estas sugestões em resposta à sua manifestação de interesse e ao seu entusiasmo ao falar nos resultados das recentes olimpíadas de matemática e do desempenho especial dos alunos das escolas federais. As 300 escolas federais têm a melhor média do IDEB entre Nossa evolução todos os segmentos da Educação é mais lenta do de Base. Esta proposta consiste em que o aumento nas exigências e universalizar, com qualidade a consequência ampliada, essas 300 escolas a todo é o aumento na o território nacional, em um prazo brecha de 20 anos.

educacional que hoje caracteriza A história lhe deu a chance de um verdadeiro ser a líder da construção desse apagão novo Brasil. Com esta carta, intelectual

respondendo a seu pedido, espero dar um pequeno grão de contribuição na imensa tarefa que lhe cabe. Os “CIEPs do Brizola” falharam ao focar na unidade escolar e na arquitetura, e não na cidade inteira: nos professores, no conteúdo e nos

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equipamentos. Ao trocar o enfoque por escola em enfoque por cidade, a ideia da CEBI deixará uma marca definitiva. Mas também, Senhora Presidenta, faço esta proposta por sentir seu compromisso com uma nação sem miséria, por seu slogan País Rico É País Sem Pobreza e porque desejo colaborar para que Vossa Excelência deixe sua marca na história do Brasil como a Presidenta que fez a inflexão da educação brasileira, da simples evolução para uma revolução. Respeitosamente, Cristovam Buarque Senador da República

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3.5 31.5 8.8 40.3 1.0% 48.0 118.7 2.9% 51.5 159.0 3.8%

Número de Alunos (milhões)

Custo variável (R$ bilhões)

Custo fixo (R$ bilhões)

Custo Total (Fixo + Variável) (R$ bilhões)

% do PIB

Número de Alunos (milhões)

Custo adicional do sal prof (Delta) (R$ bilhões)

% do PIB

Número de alunos (milhões)

Custo (R$ bilhões)

% do PIB

1

6

5.0%

237.6

51.5

1.8%

87.5

35.4

3.1%

150.1

4.9

145.2

16.1

5,7%

318.3

51.5

1.0%

56.2

22.7

4.7%

262.0

3.2

258.9

28.8

5560

11

Republicana

4796

Revolução

4137

da

PIB a preço constante (dez/2011/, em R$ bilhões)

Ano de Implementação

Quadro 1 – Custo de Implementação (Preços Constantes de dez/2011)

CBI

SEV

TOTAL

64

Cristovam Buarque

16

6.2%

398.5

51.5

0.4%

25.0

10.1

5.8%

374.0

1.4

372.6

41.4

6.4%

463.5

51.5

0.0

0.0

0.0

6.4%

463.5

0.00

463.5

51.5

7255

20

Educação

6446

na


R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

65

Ano de Implementação da Proposta

Gráfico 1 – Custos da Revolução Republicana na Educação


Escolas (mil)

Professores (mil) 195

2,000

5,564

0

Escolas (mil)

Cidades

0

Professores (mil)

51.5

0

Cidades

Alunos (milhões)

0.0

0

Alunos (milhões)

Variáveis/Ano

192

1,883

5,364

48.0

3

117

200

3.5

1

190

1,799

5,175

45.5

5

201

389

6.0

2

188

1,720

4,996

43.1

7

280

568

8.4

3

Gráfico 2 – Número de Alunos, Professores, Cidades e Escolas nas CEBIs e SEVs

CEBIs

SEVs

66

Cristovam Buarque

0

0

0

0.0

195

2,000

5,564

51.5

20


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Gráfico 2 – Número de Alunos, Professores, Cidades e Escolas nas CEBIs e SEVs


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Cristovam Buarque


Aos meus colegas parlamentares de hoje Depende de nĂłs!

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N

a minha primeira visita à Toritama, em 2005, eu ainda estava com esperança de que o presidente Lula seria capaz de entender a importância da educação como a ponte para a justiça social, a balsa para o futuro, a alavanca para o progresso, o alicerce da democracia. Na segunda visita, em 2015, comprovei que seu governo não teve este entendimento. Provavelmente ele não acredita nesta proposta, que tantos países já realizaram, ou sabia que este propósito não tinha impacto eleitoral. Ele preferia investir no ensino universitário e no ensino profissionalizante, na busca de impacto eleitoral, mas sem mudar a realidade da educação brasileira. Preferiu oferecer a chance de vaga universitária para os filhos de pobres, no lugar de fazer a necessária reforma para que os filhos dos pobres tivessem escola com a mesma qualidade dos filhos dos ricos e pudessem disputar R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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vaga no ensino superior em condições de igualdade, independente da renda de seus pais. Vendeu ilusões, porque os alunos sem base educacional não conseguem concluir seus cursos superiores; ou conseguem, mas sem a qualidade necessária para fazer do Brasil um polo de Ciência, Tecnologia, Criatividade e Inovação. Temos um número maior de universitários e de alunos em cursos profissionalizantes, mas por falta de educação de base para todos não estamos conseguindo a qualidade que o século XXI exige para o ensino superior, nem fazendo justiça com a educação de qualidade igual para todos. O resultado é que o Brasil não rompeu a tragédia da sua educação; continuamos com uma das piores educações do mundo e provavelmente a mais desigual conforme a renda e o endereço da família. Três brechas de déficits se ampliaram na educação de base no Brasil: •

entre a educação que oferecemos e aquela que o mundo moderno exige;

entre a educação dos ricos e a educação dos pobres;

entre a educação que temos e a que os demais países estão conseguindo.

O fracasso não é só do Lula, mas também de cada um de nós. Não fomos capazes de quebrar o círculo vicioso entre as Tacianas e os Ângelos. Por não cons72

Cristovam Buarque


truirmos um sistema educacional que ofereça escola com a máxima qualidade igual para todos, estamos ficando na história como mais uma geração de líderes incapazes de dar coesão e rumo à Nação. O círculo vicioso que amarra Ângelo à Taciana, por causa da falta de educação, nos amarra aos políticos do passado na falta de preocupação com a construção de um sistema sólido de educação de qualidade para todos. O século XXI será tempo O século XXI de dinâmica econômica pelo conheserá tempo de cimento e de justiça social pela igualdinâmica dade de oportunidade: ambos propóeconômica pelo sitos decorrentes de uma educação conhecimento e de justiça social sólida e igual.

pela igualdade de

Não podemos perder a vontade, oportunidade nem a esperança. Precisamos articular unidade nacional em torno ao propósito de construir uma nação eficiente, justa, equilibrada, sustentável, com liberdade, assegurando educação de qualidade para todos. A maneira como tratamos as Tacianas entre 2005 e 2010 me trouxe a desilusão; a maneira como precisamos e podemos cuidar dos Ângelos nas próximas décadas me traz esperança e desafio. Depende de nós.

R E T R ATO D E U M A D É C A DA P E R D I DA

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Cristovam Buarque


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