Reflexões

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Terapia Comunitária Reflexões

Rolando Lazarte

João Pessoa, outubro de 2010


Introdução Estes escritos pretendem servir de subsídio para a formação de terapeutas comunitários. Aliás, os textos nada pretendem, uma vez que não lhes cabe pretender coisa alguma, e sim ao seu autor, neste caso eu, que, depois de ter tomado o tempo dos leitores e leitoras para dizer pouco menos do que nada, quero somente terminar esta breve introdução, dizendo que este texto está em elaboração, daí alguns descuidos que a benevolência dos leitores/as deverá relevar, ou não, dependendo dos casos. Isto para dizer que estou elaborando exercícios de aplicação para os tópicos do livro que agora tens em mãos, querido leitor ou leitora, de modo que a qualquer momento poderás vir a saber que chegaram às bancas ou às livrarias os tais exercícios de aplicação, o que não impede de forma alguma, que vás elaborando os teus por tua própria conta, como talvez já tenhas feito, e se não fizeste, deverás fazer. A prática da Terapia Comunitária supõe uma geração constante de reflexões sobre os seus pilares básicos (que me nego a chamar de teóricos, porque são práticos, ainda os teóricos) ou sobre os efeitos sobre as pessoas, comunidades, sociedades e, por que não dizer, sobre a humanidade, que em algum momento é necessário socializar, como forma de renovação constante. Apenas queria dizer estas coisas e as disse, de forma que é hora de me despedir por aqui, desejando a todas e a todos uma boa leitura, e até. O Autor


Sumário/Índice

A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária

4

A teoria da comunicação humana como pilar da Terapia Comunitária

6

A Terapia Comunitária como estratégia de mobilização social

8

A Terapia Comunitária como estratégia de participação social

9

A terapia comunitária e a recuperação da pessoa humana

11

A terapia comunitária na inclusão social

13

Espiritualidade e Terapia Comunitária

14

O autoconhecimento nas rodas da terapia comunitária

16

O que é ser um terapeuta comunitário

17

Os valores na formação do terapeuta comunitário

18

Pedagogia de Paulo Freire e Terapia Comunitária

20

Resiliência, quando a carência gera competência

21

Terapia Comunitária, epistemologia e método

23

Terapia comunitária, esperança

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Sobre o autor


A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária

A pedagogia de Paulo Freire e a Terapia Comunitária partilham alguns princípios comuns que estão interconectados: A autonomia do sujeito, a horizontalidade do saber, a educação como prática libertadora, e a incompletude do ser humano. O princípio da autonomia concebe o ser humano como autor do seu próprio destino, livre e responsável, construtor da sua própria circunstância e, portanto, autor das práticas capazes de reconduzi-lo ou reconduzi-la à liberdade em caso de dominação ou opressão. A horizontalidade do saber supõe que todos sabemos, todos somos doutores na nossa própria vivência e a experiência de cada um é a fonte primeira do saber que nos permite eleger e viver. A terapia comunitária parte deste princípio, unindo saber popular e científico, numa amálgama que reconstrói pessoas e comunidades no seu protagonsimo, rompendo com a cultura da vitimização e da miséria psíquica. Na terapia comunitária, por outro lado, também se incorporam saberes de distintas vertentes de sabedoria da humanidade, como o conhecimento dos chakras como centros energéticos que nos conectam com o todo. O caráter libertador da prática educativa supõe eu saber nos faz livres, e que podemos saber não acumulando conhecimento ou informação, mas nos apropriando da nossa própria experiência, nos tornando donos do que somos, donos de nós mesmos. Saber por que somos e como somos nos faz senhores da nossa vida e não vítimas das circunstâncias ou de algo ou alguém em quem projetamos um dominador ou um inimigo. Na terapia comunitária, você descobre seu inimigo como um colaborador, alguém sem o qual você não seria quem é, já que ele lhe mostra o que você não quer ver, a parte sua que você rejeita. Você busca dentro de si mesmo a razão de ser do que lhe acontece, ao invés de culpar os outros ou o destino ou Deus ou quem for, pelo que ocorre na sua vida. Isto faz você forte, porque embora você esteja como todos estamos, em relação com outras pessoas, esta relação não o oprime mas o liberta. Você compreende que um mundo melhor se faz a partir do momento em que você se perdoa, se quer, se percebe como alguém bom vencedor, capaz de amar se ser amado, de errar e corrigir o rumo, alguém que está a caminho, sempre, nunca concluído. Desta forma, você já não mais se julga vítima daquele trauma ocorrido na sua infância ou depois, na sua vida adulta. A vida nos golpeia, todos sabemos, mas a capacidade de nos fortalecermos com esses golpes que teriam nos derrubado, a resiliência, é um saber a flor de pele no povo, nas classe populares, embora nem sempre a pessoa tenha noção disto, mas essa força reside nela e é ativada no encontro com outros vencedores, nas rodas da terapia, nas formações, onde ela descobre que sua vida é uma teia, a vida de todos é uma teia tecida em todas as direções, unindo o que foi e o que é, o que será, tudo


está conectado. E a mudança que processo em mim, melhora a vida de todo o que me rodeia e de que faço parte, incessantemente, continuamente, sem fim. Essa noção de unidade plenifica e reconforta, repõe uma sensação de eternidade sem a qual o efêmero perde sua significação e seu sentido.


A teoria da comunicação humana como pilar da Terapia Comunitária A teoria da comunicação humana é um dos pilares básicos da terapia comunitária. Formulada por Watzlawick, Helmick-Beavin e Jackson, permite compreender a ação humana como um comportamento em que são transmitidas mensagens. Toda a conduta humana é transmissora de mensagens, inclusive quando nos propomos a não comunicar, estamos dizendo algo: você não existe, você não me importa, você não é de nada. Bem dizem que o contrário do amor não é o ódio, mas a denegação. Na terapia comunitária, aprendemos que uma pessoa deixa de ter sentido ou passa a ser ignorada deliberadamente, e isto acarreta conseqüências para a sua auto-estima, para a noção de si, para o seu modo de ser e de se comportar no mundo. Uma criança que não foi desejada, desde o ventre materno soube disso, e veio ao mundo preparada para ter que agradar, para dizer que sim o tempo todo, para aceitar qualquer coisa em troca de um pouco de afeto. Uma que foi querida desde a conceição, ao contrário, é capaz de dizer sim quando quer, e não quando não quer. Estas constatações aparentemente muito simples, permitem com que a pessoa comece a ver a si própria desde outro lugar, desde uma possibilidade de auto-conhecimento autêntico, sem enganos, verdadeiro. Muitas vezes, nas terapias ou nas formações de terapeutas comunitários, os participantes são levados a descobrirem as falsas imagens que fizeram de si mesmos, e que os tem aprisionado durante a vida toda, ou por longos períodos de tempo. Quando a pessoa começa a se perceber como alguém que venceu muitas batalhas, alguém que soube dar a volta por cima em circunstâncias que poderiam tê-la quebrado ou desviado do seu caminho, o conceito de si começa a emergir de uma maneira positiva. O sujeito se descobre capaz de direcionar sua própria vida, de dar um significado ao seu existir, de decidir o que quer que seja o seu próprio ser. ―O que você quer para eu querer‖ (a criança ou a pessoa boazinha). ―O que você quer para eu não querer‖ (o rebelde ou contestatário) são prisões em que a pessoa deixa de ser ela mesma, perde a sua liberdade, age por automatismos. Quando aprendemos a decodificar as primeiras mensagens e a lê-las ao nosso sabor, quebram-se os determinismos da nossa vida. Se alguém se sentiu abandonado, não querido, porque foi esperado menina e era menino, ou o contrário, isto determinou reações que estiveram fora do seu controle, da sua capacidade de decidir. Agiu durante anos contra o mundo, contra as pessoas, por vingança: não me quiseram, não os quero. Muitos comportamentos agressivos estão animados por uma reação de quem se sentiu não querido, não amado. Muitas vezes a agressividade vai direcionada contra a própria pessoa, que passa a conviver com um tirano interno, um sabotador da sua felicidade e do seu direito a viver com alegria e segundo sua maneira única e irrepetível, no meio aos outros. Nas formações de terapeutas comunitários, um dos exercícios é a descoberta do animal com que cada um se identifica. Formam-se grupos e os coleguinhas que escolheram o mesmo animal, trocam figurinhas a respeito de si mesmos, dos seus modos de ser característicos. Isto faz com que cada um descubra sua natureza mais comum ou freqüente, suas formas habituais de ser e de se comportar. Então, a pessoa deixa de se condenar e de se


comparar com os outros, descobre sua forma única de ser, e a aceita. As mensagens recebidas (fui abandonado, não me quiseram) são re-codificadas em função do contexto interpretativo que a interpretação sistêmica e integrativa propõe, com base nos valores dos pais e da cultura em volta, e das escolhas próprias a pessoa. O que se aprende na terapia comunitária, em termos da comunicação, é a sair ou tentar quebrar as armadilhas da comunicação paradoxal, do duplo vínculo e das distorsões das mensagens equívocas que emitimos ou recebemos. ―Carta certa para pessoa errada‖, é quando emitimos uma mensagem que é correta no seu conteúdo, mas está sendo direcionada a quem não tem nada a ver. Quando a reação é desproporcionada ao fato, estamos reagindo não ao fato, mas ao que ele nos remete. Estas chaves nos dão elementos para irmos re-programando a nossa conduta desde uma visão mais atual, mais presente, menos condicionada pelo passado. O passado é visto como o estrume necessário para o crescimento da planta. O presente desponta como um tempo novo, livre de amarras. O empoderamento das pessoas e das comunidades depende em boa medida da decodificação e re-codificação de mensagens recebidas e emitidas.


A Terapia Comunitária como estratégia de mobilização social

Se entendermos a mobilização social como um processo de dissolução de barreiras que impedem a livre circulação e inserção de pessoas na sociedade como um todo, ou em alguma das suas sub-sociedades (famílias, bairros, comunidades, movimentos), podemos entender, como aqui esta dito, que a terapia comunitária seja uma estratégia de mobilização social. Nela colaboram, lado a lado, pessoas humildes e doutores, estudantes e donas de casa, pessoas viciadas em drogas e crentes das igrejas mais variadas, com o objetivo comum de superarem juntos, os problemas mentais, emocionais e relacionais de todo ser humano. Nas rodas de terapia, como diz o Prof. Adalberto Barreto, seu fundador, e a experiência comprova, os estudantes saram do autismo universitário, da miragem de um saber sem gente, de um conhecimento sem experiência. E as pessoas do meio popular colaboram com o que tem de mais próprio, seus valores originais, a sua generosidade, simplicidade, solidariedade, entre outros. Não partimos de uma visão idealizada dos pobres. Um dos pilares da Terapia Comunitária, a pedagogia de Paulo Freire, afirma a autonomia dos sujeitos e a horizontalidade do saber. Isto é praticado a partir do momento em que você entra numa roda de terapia. Ninguém lhe pergunta sua profissão, embora você possa dizê-la. Mas quando alguém fala, os outros escutam. Todos e todas tem algo a dizer. Todas as histórias, os problemas, os sonhos, os anseios e ansiedades, são importantes. Ninguém dá conselhos nem interrompe quando os outros falam. Não há ninguém mais importante que os demais. Todos se tocam, se abraçam, se trocam olhares e palavras de carinho, de afeto, de apoio, de compreensão. Costumo dizer, e tenho ouvido outros e outras dizerem, que na terapia comunitária, você se torna terapeuta de si mesmo. Não há a pretensão de que o terapeuta cure ninguém. É a comunidade que cura. A sua comunidade interna e a externa. A que você é em si mesmo ou em si mesma, e a que você forma, faz parte, fora de você, na sua relação com os demais. Quebra-se a dependência, você pode, os outros podem, todos juntos podemos mais. E se isto possa soar como algo ilusório ou pueril, você pode testar, de várias formas, a sua veracidade. Uma, participando de uma ou mais rodas de terapia. Outra, ouvindo alguém que já participou ou participa. E, ainda, tomando conhecimento do impacto que esta atividade vem mostrando em diversos municípios do Brasil, na criação ou reforço de redes solidárias, estimulando o aumento da auto-estima de pessoas e comunidades, promovendo a reintegração de ex-dependentes de álcool ou outras drogas ilícitas, mobilizando coletivos das periferias urbanas e de nichos de classe média das cidades, que, aos poucos, mas evidentemente, começam a sair do imobilismo e da apatia, da resignação e da manipulação externa, para serem, cada vez mais, pessoas e comunidades, agentes ativos da sua vida e do seu destino.


A Terapia Comunitária como estratégia de participação social

O tema da participação social há muito tempo tem transbordado os âmbitos acadêmicos e/ou tecnocráticos dos governos e entidades de pesquisa, para se tornar, cada vez mais, assunto do dia a dia, do cotidiano das pessoas e instituições. No caso concreto do Brasil, há já várias iniciativas que vem, como a Terapia Comunitária Integrativa e Sistêmica do Prof. Adalberto Barreto, ganhando espaços na construção e reforço de laços sociais, agregando pessoas e comunidades, em sentido contrário ao produzido pelas tendências dissociadoras e anomizantes do mercado. Na ética cotidiana de pessoas e comunidades, de gestores em saúde e ambientes acadêmicos e de mobilização social, as relações cada vez mais são permeadas por valores solidários, pela recuperação e fortalecimento das identidades pessoas e sociais, reforçando instituições e indivíduos numa marcha silenciosa mas eficiente. Se isto pode parecer idílico ou sonhador, não sabemos, mas o certo é que, pela base da sociedade brasileira, este e outros movimentos, como o da Teologia da Libertação e a Educação Popular de molde freireano, vêm ganhando espaço de forma animadora. Os valores cotidianos, que pareciam entregues ao imediatismo e ao pragmatismo utilitário bem ao gosto do capitalismo diário, cedem espaço para o interesse pelo outro, pela ajuda mútua em várias modalidades. Isto permite conjecturar que, em não muitos anos, várias das lacunas de participação no Brasil possam estar fechadas ou em vias de fechamento. A educação em expansão em moldes integrativos, com programas como o da Universidade Aberta; o crescente interesse e participação de pessoas de todas as idades em atividades voluntárias de várias tonalidades e formatos, vão construindo, com outras iniciativas nos terrenos da arte e da cultura, da dança e da música, do artesanato, e da reciclagem de resíduos, uma perspectiva de coesão e de participação social impensável pouco tempo atrás. O analfabetismo, a expulsão dos pequenos agricultores das terras nos interiores, o desemprego e o subemprego, a subremuneração e a exclusão social que em grande medida ainda prevalecem no País, cedem terreno, como dissemos, em escalas não pequenas, a estas ações concretas que pontuamos, visando a construção de um tecido social mais firme e unido. Verdadeiramente os desafios são enormes, pois que, embora estes sinais apontados são alvissareiros, os obstáculos internos e externos não são de pequena monta. O que vale, neste contexto, é que a esperança que nos é possível vislumbrar neste momento, está longe de ser um devaneio ou um desideratum abstrato. Ao contrário, se alimenta de inúmeras experiências vivenciadas tanto no Brasil, especialmente mas não exclusivamente na Paraíba e no Ceará, em ações pela base, em que nos foi possível construir este retrato esperançoso que, temos certeza, será ainda aprimorado pela colaboração de muitas e muitos pelo Brasil afora, nessa construção calada que marca as mudanças internas e externas que consolidam, dia a dia, a efetiva construção de um mundo melhor, feito de amor e de paz, de justiça e de respeito à diversidade, no marco de uma humanidade uma e única, sem distinções de qualquer espécie, reintegrada à matriz cósmica de que vem e à qual pertence desde sempre pois que é o seu lugar.


Sabemos que muitas e muitos, em distintos lugares, somam suas ações e intenções, seu trabalho silencioso, melhorando a si e a outras pessoas com que convivem, de maneiras tão diversas que seria impossível enumerar, mas às quais nos referimos no começo destas linhas. Terapia Comunitária, Educação Popular, Teologia da Libertação, são outras tantas veredas alinhadas com o projeto de humanização do ser humano, de reintegração da humanidade ao cosmos, como já foi dito, às matrizes primordiais que dormem no interior de cada pessoa e de tudo que existe, uma vez que tudo é oriundo do mesmo lugar e a ele retorna após os ciclos individuais das pessoas, das espécies, dos povos, das civilizações, das nações. A Terapia Comunitária, entre outras coisas, talvez a mais importante, restitui a identidade da pessoa, melhor dizendo, você se reencontra na Terapia. Volta a si mesmo ou a si mesma. Retorna ao que você sempre foi. O que é muito. Na Teologia da Libertação, você redescobre um ser divino que lhe acompanha e que acompanha a todas e a todos que se voltam para o cuidado dos excluídos e das excluídas. Paulo Freire e a sua pedagogía libertária, desfazem as estruturas alienantes do saber privatizado, empossando pessoas de todas as idades e condições sociais, quebrando o síndrome da miséria psíquica, e tantas mazelas como o consumismo, a passividade, a resignação, a omissão. Você se descobre poderoso, vencedor de tantas batalhas que venceu ao longo da sua vida. E ao seu redor, outras tantas pessoas que, como você, fizeram o caminho de volta. Gente que deixou a bebida, as drogas, a depressão, a solidão, para se juntar a outros e a outras, numa caminhada infinita de ajuda mútua e de construção coletiva de melhores condições de vida para todas e todos. Cada um, leitor ou leitora, poderá acrescentar da sua própria experiência, ações de que participa ou das que tem conhecimento, em que a esperança viva se faz verdade, de modos simples mas efetivos. Por isto, podemos dizer, como o poeta, alguma palavra que nos anime a seguir nesta trajetória, confiando que a herança de que somos depositários e depositárias, nos torna capazes de seguir vencendo, em direção a um horizonte que cada vez está mais perto.


A terapia comunitária e a recuperação da pessoa humana Tratar de definir o que seja a espiritualidade, parece-me o começo necessário deste diálogo. Entendo por espiritualidade, a vivência de Deus ou do sagrado, por contraposição com a religiosidade, que é essa mesma vivência no âmbito de uma religião. A primeira, se processa no cotidiano, e, nesse sentido e contexto, tudo é sagrado. A segunda, se bem que possa estar incluída ou incluir a primeira, se processa sobre tudo, embora não exclusivamente, no âmbito definido como sagrado por uma religião. Entendo por religião, um conjunto de práticas e crenças orientadas à vivência do sobrenatural e divino. Supõe, embora nem sempre, uma hierarquia sacerdotal ou de mediadores entre o humano e o divino, o que é suprimido tanto pela terapia comunitária –em que cada pessoa é o seu próprio mediador, se assim podemos nos expressar– quanto na espiritualidade, âmbito por excelência da vivência mística ou da participação com Deus. Pode ser contraditório, ou parecê-lo, colocar em âmbitos separados e até opostos, o que parece estar unido e ser uma única e a mesma coisa, isto é: a vivência e a crença. A experiência e a conceituação dessa mesma experiência. São como a forma e o conteúdo: indissociáveis. Mas, para fins da análise, devemos separá-los. Uma coisa é crer em Deus, e outra, viver em Deus, ou com Deus, ser um com ele. Um é o âmbito da crença, como dissemos, outro o da experiência. Um o da religião, outro, o da mística. Na terapia comunitária, abole-se a mediação entre o ser humano e o sagrado. Repõe-se no âmbito da sociabilidade que abole as barreiras de classe, social, de status socioeconômico, de nível intelectual, de aparência, raça, cor, religião, etc, a unidade e igualdade essencial da pessoa, seu pertencimento a uma realidade que a inclui, com seus atributos que lá fora, na vida anterior e exterior ao espaço da terapia comunitária como recriação da pessoa para si, opõe o igual ao seu igual, faz do irmão um inimigo, do vizinho um estranho, do diferente alguém perigoso, do pobre um desprezado que nada vale, do intelectual e do técnico, do doutor e do profissional, um que é tudo, que vale mais, e deve ser respeitado embora nem sempre mereça esse respeito. Neste sentido, a terapia comunitária funciona como um embrião de religiosidade primitiva, sem o tom eclesiástico ou institucional que a palavra possa ter ou despertar. Religiosidade, no sentido de pertencimento, de união com o real, sem fissuras nem cisões. Aqui, a espiritualidade, nos parece, já se separa como uma prática ou um estado de consciência, em que a pessoa e a comunidade abolem as barreiras que a sociabilidade capitalista, a sociedade do pensamento único que classifica, que coisifica, que aliena o indivíduo de si mesmo e da vida, do tempo, da história e da memória, dos seus semelhantes. Na terapia comunitária, a pessoa se reencontra consigo mesma, mas não com essa mesmidade que pode parecer coisa intimista ou excludente do coletivo, do social, e sim com a sua totalidade, com tudo que ela é. Ela recupera, vai recuperando gradativamente ou de uma só vez, a imagem do ser inteiro que ela é, da sua trajetória de vida, seus valores, os esforços pessoas e familiares de que é resultado, o seu projeto de futuro,


ancorado num pertencimento coletivo que antes apenas podia vislumbrar e agora se lhe aparece como um horizonte concreto de existência. Este processo ocorre nas rodas de terapia comunitária pelo Brasil afora, e, já, no Uruguay, onde desde o ano passado, um grupo de terapeutas comunitários vem trabalhando em setores como a recuperação de jovens uduários de drogas, e demais setores da atenção primária em saúde. A pessoa, muitas vezes arremessada de cidades pequenas ou do campo para as grandes cidades, outras vezes, muito frequentemente, perdida na prisão de papéis sociais que lhe negam a identidade e a plena realização das suas potencialidades, redescobre o sentido da sua vida, depara-se novamente com a vida como algo a ser criado, construido epssoal e coletivamente, no seio da sua família, no convívio com vizinhos e coleags de trabalho ou de estudo. Em outras palavars, novamente se descobre autora do seu próprio destino, sujeito e não objeto. Isto pode parecer ambicioso demais ou excessivo, se você não participou ainda destas experiências coletivas de recuperação de pessoas, mas quem já tem alguns passos dados nesta esrtarda, sabe o quanto se partilha de novos nascimentos cada vez que os terapuetas se encontram, cada vez que é posta a rodar novamente esta roda da vida que, não por acaso, se apoia essencialmente e muito fortemente, no pensamento de Paulo Freire, a pedagogia da autonomia, a educação como prática da liberdade. Esta é uma das estradas, desses caminhos palmilhados por centenas de pessoas pelo Brasil afora, e, como dissemos, já em marcha no Uruguay, com entrada para a Argentina, na província de Misiones. São formas concretas de reconstrução da humanidade sobre novas bases, ou melhor, sobre bases olvidadas, que começam a ser redescobertas e postas em prática.


A terapia comunitária na inclusão social

Nos dias de hoje, muito se ouve falar sobre inclusão social. Para quem, como eu, tem estudado a marginalidade social desde pontos de vista sociológicos, o conceito de inclusão social remete a uma integração de setores marginalizados no quadro da estrutura social vigente. No contexto destas breves reflexões que hoje quero partilhar com vocês, a inclusão social tem um aspecto de integração da personalidade e integração na sociedade. Nas rodas da terapia comunitária, que é chamada de integrativa e sistêmica, as pessoas passam a perceber a unidade das suas vidas, o fio condutor que costura, unificando, os fatos primeiros e derradeiros das suas vidas. Isto ocorre de várias formas. A história pessoal de cada um e de cada uma vem a tona, e se emparenta com as histórias de vida dos outros presentes. A saída da roça ou da cidade pequena para a grande cidade, para a periferia urbana, com a conseqüente sensação de perda de identidade, soa sentimentos comuns aos migrantes no Brasil e em qualquer parte do mundo. Mudam os costumes, deixo de ser alguém inserido numa trama de relações habituais, para passar a ser algo estranho, um desenraizado, uma alma penada, como diz Adalberto Barreto em ―As dores da alma dos excluídos no Brasil‖. Quando passo a fazer parte da roda da terapia, começa a se costurar a minha própria história, ela ganha coerência e consistência. Já não sou mais um João ninguém. Outros pronunciam meu nome uma vez à semana, ao menos. São lembrados aos aniversários, canta-se e dança-se juntos. Muitas donas de casa que não saiam de casa, vêem outras pessoas, sorriem, encontram um sentido maior no seu viver, do que meramente atenderem marido e filhos que, muitas vezes tem suas próprias vidas à margem delas. Aposentados que apenas viviam à espera da morte, recuperam a alegria de viver, brincam, contam chistes, dançam nas rodas e entoam orações com crianças, com jovens, com estudantes e doutores da universidade e técnicos em saúde, agentes comunitários, etc. A integração funciona para todos, para os de baixo e os do meio, na verdade, uns e outros geram uma mandala giratória, em que ninguém sabe quem é o outro. Apenas um igual, alguém que como eu se perdeu ou se perde ainda, e se reencontra. Assim, a inclusão funciona para dentro e para fora da pessoa. Eu me incluo na medida em que me sinto incluído numa história comum, numa fala comum em que me reconheço. Neste sentido, inclusão e integração, funcionam quase como sinônimos. Os estudantes e doutores, médicos e professores, por sua vez, quebram a barreira do isolamento que a educação superior produz com freqüência, e se redescobrem gente, apenas gente. Nestas rodas, se processam momentos de encontro das pessoas consigo mesmas, motivo pelo qual pode se dizer, como conclusão destas breves considerações, que a terapia comunitária é uma ferramenta de inclusão social.


Espiritualidade e Terapia Comunitária

Nestes anos em que venho participando da Terapia Comunitária, já como curioso ou então como colaborador em distintos trabalhos, tenho tido a oportunidade de observar que a conexão entre espiritualidade e Terapia Comunitária é intensa e profunda. As rodas de Terapia Comunitária concluem com rituais de integração. São momentos de comunhão com o sagrado, de reforço de laços solidários. São momentos em que revive a religiosidade adormecida. As pessoas se abraçam, formam-se rodas, cantam-se hinos religiosos, abençoam-se uns aos outros, incluindo os ausentes. Mas não quero me referir aqui somente a manifestações explícitas de religiosidade, e sim, pontuar o que me parece ainda mais importante, que é como, a partir da prática da terapia comunitária, da redescoberta de si mesmo e da nossa inserção num todo maior, praticam-se a fraternidade, o amor de uns pelos outros, o amor a si mesmo, o respeito e a reverência à vida nas suas distintas manifestações, na sua misteriosa inextinguibilidade. Quando as pessoas aprendem a se escutar com atenção e respeito, e ao ouvir o outro percebo que ele e eu somos semelhantes, passamos por sofrimentos parecidos ou situações também parecidas, surge uma empatia. Eu e o outro não somos tão diferentes. Ela ou ele, e eu, temos muito em comum. Eu ajudo e sou ajudado. As redes, a teia de aranha, não são símbolos sem significado, mas realidades concretas. Quando, na finalização da roda de Terapia, nos abraçamos uns aos outros, é porque juntos descobrimos uma força maior, uma que estava adormecida ou esquecida, como dissemos, e que foi revivida em poucos minutos. Quando a Terapia Comunitária chegou em João Pessoa em 2004, no bairro dos Ambulantes, na louça da sala da Associação dos Moradores do Bairro em que se iniciaram os trabalhos, estava escrito: Juntos podemos vencer todos os problemas. Não poderia haver nada mais significativo. O reencontro da força coletiva, a recuperação da fé em si e na comunidade como ator social concreto, efetivo, no empoderamento das pessoas e na revitalização dos seus laços de pertencimento ao tempo e à vida, à sociedade e ao mundo atual, é profundamente religioso, no sentido original do termo. Alguns alunos do Programa de Posgraduação em Enfermagem da UFPB tem pesquisado a influência ou presença da fé nas rodas de terapia no Rio Grande do Norte. Outros, tem levantado, em entrevista com profissionais da saúde formados em Pedras de Fogo, Paraíba, a autoconsciência do renascimento que se processa na pessoa no processo de formação em Terapia Comunitária. Ainda, no México, no Uruguay, e na Venezuela, tenho observado a confluência de tradições místicas da humanidade, entre as pessoas na ENEO-UNAM, na Facultad de Enfermería de la Universidad de la República (UDELAR), e na Universidad de Crarabobo. O clima de alegria, a sensação de as pessoas serem vencedoras, o sentirem-se parte de uma força ativa de saração, é profundamente espiritual. Pessoas tem visto cor violeta (Uruguay), após uma sensiblização realizada, na qual, no final, cantou-se o Ave Maria.


No México, um reviver da tradição asteca e tolteca, na visita às pirâmides de Cholula e Teotihuacán. Na Venezuela, um eclodir da alegria espontânea e gratuita que se expressam na dança e na piada, no mútuo se alegrar com a companhia dos promotores da vida, dos parteiros da esperança. Não estamos falando apenas –embora também—das formas de religiosidade explícita, mas, sobre tudo, de vivências do sagrado. Nas Ocas do Índio em Beberibe-CE, nos encontros de formadores ou nas vivências durante a formação como terapeutas comunitários, temos vivenciado em nós e no grupo, estas sensações de pertencimento, de uma calma que ultrapassa a compreensão, uma sensação de paz, um estado de inexprimível unidade. Já não importa o cargo ou a profissão, o papel social da pessoa ou a sua educação (grau de escolaridade), mas entre todos se criam laços de união duradouros que perpassam o tempo e as distâncias.


O autoconhecimento nas rodas da Terapia Comunitária O autoconhecimento tem sido visto, em parte corretamente, como uma atividade essencialmente solitária. Na medida em que somos seres sociais, no entanto, isto é verdade apenas de um lado, desde uma perspectiva, a perspectiva interna, presente em todas as interações sociais. Saber quem sou é uma preocupação e interesse dos mais genuinos da pessoa humana, e acompanha os primeiros passos do despertar da consciência de cada um de nós. Nos percebemos vivos, existindo, respirando, tendo sensações e sentimentos, um corpo que se move, com desejos, passado, ambições ou expectativas, esperanças e decepções. Isto tudo desperta a natural curiosidade por virmos a saber quem é esse ser que cada um é. Aqui quero me referir a este processo de vir a sabermos quem somos, quem de verdade somos, sem máscaras nem dissimulações, sem equívocos nem enganos, no processo da pessoa que se integra nas rodas da terapia comunitária. Este processo começa a rodar a partir da hora em que você entra nas rodas da terapia comunitária, seja como curioso, como usuário, ou bem como membro formador nos encontros, nas vivências, nos congressos, nas reuniões de pesquisa, ou nas trocas que ocorrem em cada lugar em que se encontram pessoas com o objetivo de se tornar mais quem elas são, autênticamente, o que supõe um resgate da criança interior, do menino ou da menina que fui, que você foi, que todos fomos e de alguma forma somos ainda e continuaremos a ser. Uma das premissas básicas deste processo de reencontro interior, de voltar a si mesmo ou a si mesma, é saber o que quero, o que sou, o que vou sendo e o que tenho sido ao longo da vida, e como isto tem ido mudando meu modo de ser, minhas aspirações, frequentemente me distanciando do que de verdade sou, do meu ser verdadeiro e genuíno. “Eu sou quem eu sou, e não quem os outros querem que eu seja”, escutamos uma e outra vez. “Eu não apenas tenho sofrido, mas tenho crescido com as minhas dores”. Ninguém nasceu para sofrer, mas todos podemos crescer, e de fato crescemos, com a dor. Para chegar a ser quem sou hoje, tive que vencer muitos desafios. Nas rodas da terapia comunitária, percebo, todos percebemos, que não somos os únicos, que o vizinho e a vizinha passaram por experiências de triunfo, de luta e de dor como as minhas. Isto tem um potencial libertador acima de qualquer expectativa, uma vez que reinsere, por este expediente tão simples, você na trama da normalidade da existência social.


O que é ser um terapeuta comunitário

Um terapeuta comunitário é uma pessoa que quer sarar constantemente das suas neuras, das suas dificuldades pessoais, e, como pessoa deste tempo, homem ou mulher do século XXI, abrir caminho para seus sonhos, suas possibilidades e suas capacidades para ser feliz. É alguém que aprendeu, de repente ou num processo, que não poderia sarar sozinho, pois que não fora sozinho que adoecesse. Suas dores foram coletivas, embora aninhadas no seu ser individual. O terapeuta comunitário aprendeu a lembrar de si e lembrar outros de si mesmos. Não como técnica apenas, mas sobre tudo como prazer pessoal, como satisfação de ver o outro crescer no processo mútuo de construção da própria pessoa. Um terapeuta comunitário é alguém que lembrou das suas raízes, do lugar e da família, do bairro ou da terra, da província ou do estado de origem. O terapeuta, ao lembrar de si, reconstitui a sua história, sue memória, seus afetos, suas lutas, e se torna um motivador da libertação pessoal e coletiva. O terapeuta comunitário aprendeu que é dando que se recebe. No convívio com os pobres, rompeu barreiras que as socializações posteriores à primária, estabeleceram no seu ser, retomando o contato com a fonte viva da vida. A gratuidade e a generosidade das pessoas do meio popular, sua fé e solidariedade, sua esperança ativa, renovam no terapeuta comunitário a sua própria resiliência. O terapeuta comunitário rompeu com o autismo universitário, com o egocentrismo intelectualista, com os preconceitos que o isolavam de si mesmo e da vida e das pessoas ao seu redor. Por viver em rede, ele se restitui constantemente à trama da vida. O símbolo da terapia comunitária, a teia da aranha, mostra o trabalho constante do ser humano, terapeuta ou não, por estabelecer conexões vitais em todas as direções. Para dentro e para fora. Consigo, contigo, com o passado, o presente e o futuro. Com Deus, com a terra, com os vizinhos, com as pessoas com que se encontra a qualquer momento e em qualquer lugar. O terapeuta comunitário é um germe do homem e da mulher novos pelos quais trabalharam, sonharam e morreram milhares de pessoas em todos os tempos e em distintos lugares da Terra. Ele é uma semente de esperança viva e ativa. E muitas outras coisas que iras descobrindo na tua própria caminhada.


Os valores na formação do terapeuta comunitário.

Na terapia comunitária, a pessoa, se reencontra com o que ela é, com seu ser mais profundo. Quando você começa a participar das rodas da terapia, você percebe que não está só nem isolado, que a sua história não está solta nem você desgarrado. A sua vinda para a cidade, se você veio do interior ou de outro estado ou, ainda, de outro país, é um caminho que muitas pessoas na roda fizeram. Aos poucos, você vai se sentindo mais coeso, mais integrado, mais parte de um todo. Esse todo é você mesmo, a pessoa que você é. A soma de pequenos e não tão pequenos atos e decisões, fatos da sua família e do seu povo, da sua cultura e das situações que você passou para chegar aonde está, para vir a ser quem você é. Como foi escolhido o seu nome, qual dos filhos ou filhas da sua família você é, como foi o seu nascimento, todos são fatos que compõem essa diversidade conflitante ou não, em movimento, em perpétua reorganização, que cada um de nós é, que todas as pessoas são. Na formação como terapeuta comunitário, cada um de nós da um mergulho profundo na sua história, nas suas raízes, na caminhada que o fez chegar a ser quem é e a estar aonde está. Muitas vezes na primeira roda, a primeira vez que você comparece a uma roda de terapia, a pessoa descobre que ela não é a única que sofre essa dor ou que passa por essa dificuldade que lhe tira o sono, que a faz sentir alguém sem um lugar. Na primeira intervisão dos terapeutas comunitários formados em Salto, Uruguay, em novembro de 2009, tive a oportunidade de ouvir a história de um homem que entrou na roda da terapia comunitária, na sua cadeira de rodas, e saiu aliviado, dizendo: ―Eu achava que eu fosse o único‖. Quando você descobre que a sua dor não é a maior do mundo, que a sua perda, a dor que você acarretou durante anos, o não gostar de si mesmo ou de si mesma, que lhe foi inculcado por circunstâncias que você aprende a decodificar e compreender ou por situações perante as quais você foi forçado a se submeter sem poder reagir para preservar a sua identidade, você começa a fazer o caminho de volta para si mesmo ou para você mesma. Se diz que a terapia comunitária é integrativa e sistêmica. Integrativa, porque a pessoa passa se perceber como uma unidade, não mais fragmentada. Sistêmica, porque a sua vida, a sua história, as coisas em que cada um de nós crê e que nos dão razão e sentido para viver, são comuns a um povo e a uma cultura. Na formação do mesmo grupo de terapeutas comunitários do Uruguay, em julho de 2009, tive a oportunidade de intervir, com a parte sobre os valores na formação do terapeuta comunitário. Lembro como se fosse agora, as expressões nos rostos dos participantes da formação. A alegria, de se saberem partes de uma história, descobridores e descobridoras de si mesmos/as. Na ocasião, entre outras coisas, se falava do lugar e do papel de cada um e de cada uma na vida, o lugar que cada um e cada uma ocupam, lugar insubstituível. Em outras formações, no interior da Paraíba, na cidade de Souza, uma formanda expressava com veemência: ―Eu sou o que eu sou, e não o que os outros querem que eu seja.‖ Essa expressão, seu profundo significado, vão trazendo você de volta.


Quando fui para o Uruguay em 2005 pela primeira vez, participei de uma sensibilizaçaão em terapia comunitária na Universidad de la República, na Faculdade de Enfermagem. Nessa oportunidade, por primeira vez na minha vida me encontrei com um grupo de pessoas que tinham sobrevivido a uma ditadura militar. Ouvia s histórias de cada um e de cada uma, e aos poucos a minha história, a de quem também sobrevivera a outra ditadura militar, foi se montando de outra forma. Isto ocorre nas rodas da terapia. Na história do outro, me reconheço. Essa história evoca a minha própria história. É o que se chama de escuta ativa, uma das ferramentas do terapeuta comunitário. E vou deixando por aqui, na expectativa de ter atiçado a sua curiosidade, querido leitor ou leitora, para vir a fazer parte dessa roda, caso já não o faça.


Pedagogia de Paulo Freire e Terapia Comunitária Há vários aspectos da pedagogia de Paulo Freire que se encontram incorporados na Terapia Comunitária. Dentre eles, cabe aqui mencionar a criticidade (como oposta à visão ingênua, alienada, do mundo), a contextualização, a problematização, o caráter dialógico da construção do conhecimento --e, mais, da construção da realidade--, a noção do opressor introjetado no oprimido –como um obstáculo à liberdade-- , e a noção de que o processo educativo é sempre de duas vias: todos aprendem, o educador e o educando, isto é: todos somos educadores-educandos, por um lado, e, por outro, a noção de que todos somos geradores de saberes e de visões de mundo irredutíveis umas às outras, em um movimento contínuo de mútua contradição e complementariedade. A compreensão de que a vida é um processo incompleto, é outra das características do pensamento de Paulo freire Estas noções são algumas que se apresentam como relevantes. Podem parecer muito simples, mas –talvez como conseqüência dessa mesma simplicidade-- o seu efeito libertador nas rodas de Terapia Comunitária, e na formação de terapeutas comunitários –toda terapia comunitária tende a ser um processo constante de auto-descoberta e libertação—é muito evidente e constante, como o atestam algumas das pesquisas reunidas nesta coletânea.

Ver as coisas em processo, se ver no processo de oposições e de contradições que é a vida. Poder se ver no contexto das circunstâncias em que cada um foi sendo moldado, passando a ser um analista de si mesmo e das pessoas em redor, e não mais espectador passivo. Se perceber como co-responsável na criação das circunstâncias em que se vive e se luta, nas quais se descobrem recursos próprios e coletivos para a emancipação do que oprime, e não mais como vítima. Se perceber, portanto, como sujeito construtor de modos de vida e visões de mundo, de relações sociais que oprimem mas também podem e devem libertar, em outras palavras, assumir a pessoa que se é e que se está sendo, o destino que se quer realizar. Ou seja: sujeito ativo, criativo, capaz (o eu posso individual e coletivo), autor das próprias escolhas e dono da própria vida. Tudo isto em movimento, ou seja: não mais a vida como passividade, submissão, aquiescência, mas como atividade, criatividade, compromisso consciente. É possível reconhecer no pensamento de Paulo Freire, a marca de pensadores como Sócrates, Karl Marx, Max Weber, e Martin Buber. Os ensinamentos de Jesus Cristo também tem sido rastreados como uma das fontes de inspiração da pedagogia freireana.


Resiliência, quando a carência gera competência Toda carência gera uma competencia. A resiliência, um dos pilares básicos em que se apóia a Terapia Comunitária, se refere ao saber que a pessoa adquire ao longo da sua vida, pela experiência, a luta, as vitórias sobre dores que poderiam te-la quebrado ou, de fato, a quebraram durante anos. Quando a pessoa emerge vitoriosa do processo de estranhamento de si mesma, quando ela recupera a sua autoestima, aprende que ela é alguém de valor sem igual na sua vida, alguém que por ter vencido todas as batalhas que se apresentaram até o momento atual, é dona de um saber e de um poder que nada deve a ninguém, mas apenas a si mesma. Tendemos a valorizar em demasia algo que lemos, uma ajuda que recebemos, alguma pessoa ou muitas, a quem atribuimos valor enorme na nossa vida. Mas sem a nossa decisão de vencer, teriamos sucumbido. As pessoas do meio popular valorizam muito o saber aprendido na escola da vida. A Terapia Comunitária reforça esta atribuição de valor, enfatizando que cada um é doutor na sua própria experiência. Saber que se aprende nos livros e nas escolas, o saber técnico-científico, na substitui mas se complementa com o saber experiencial, o que foi adquirido no dia a dia, ao longo dos anos, na luta contra circunstâncias adversas, quer seja na família, a primeira escola de cada um, quer na escola ou no trabalho, na vizinhança, nas distintas esferas sociais de atuação. A pessoa resiliente valoriza os gestos de ajuda que recebeu e recebe ao longo da vida. Ela se nutre da generosidade, da infinidade de atos de amor que a acolheram e ampararam ao longo das vicissitudes que teve de atravessar. Ela sabe que cada um, cada ser humano, é a soma de infindáveis atos e gestos de colaboração que deram por resultado o ser que cada um de nós é agora. A vida adquire um valor inestimável desde esta perspectiva, em que tudo que somos reúne os nossos ancestrais, os amigos que fomos tendo nas distintas etapas da vida, as lutas que tivemos que enfrentar, os ambientes e experiências adversos pelos que tivemos que atravesar, as vitórias que nos foi dado obter. Somos uma soma de atos de amor. A pessoa resiliente sabe disto, e age em conseqüência, valorizando cada pequena coisa. É comum em famílias de imigrantes ou pessoas que sofreram necessidades como fome ou escassez, valorizar uma migalha de pão, uma gota de água, um pedaço de comida, um olhar de compreensão, uma escuta calorosa e atenta. Quando a pessoa se vê na trama da vida, na teia da vida, como costumamos dizer na Terapia Comunitária, ela não dispensa nada, e o que a faz sofrer a faz crescer. Ela descobre isto na sua formação como terapeuta comunitário, quando reconhece o processo do qual é resultado. Si se sentiu abandonada, não querida, torna-se amorosa, sensível ä dor alheia, capaz de se doar sem nada esperar, sabendo da alegria de poder se integrar amorosamente na vida dos outros. Se foi problema, tende a ser solução. Se se sentiu um estorvo, sabe acolher. No processo de se tornar terapeuta comunitário, a pessoa aprende a se tornar cada vez mais autônima, mas senhora de si, na medida em que sai do papel de vitima para o de vencedor. A


complementação do saber científico com o experiencial, oriundo da vida e das vivências que cada pessoa passou e passa, cria essa capacidade resiliente que torna o individuo forte naquilo em que foi mais débil. É a transformação da fraqueza em força, e cada ser humano é capaz de descobrir e descobre que isto ocorre na vida de cada pessoa. Neste sentido, pode-se dizer que é a vitória do ser humano sobre a adversidade. Eterna epopéia infindável em que todos estamos involucrados, e que não termina enquanto há vida.


Terapia Comunitária, epistemologia e método

Entendemos a Epistemologia (de episteme, saber) como a reflexão sobre os fundamentos da realidade e do conhecimento, as definições básicas a partir das quais transcorre um afazer, neste caso, a Terapia Comunitária. A Terapia Comunitária é mais do que um mero afazer. É um modo de ser, ou muitos modos de ser, entrelaçados, e cabe a cada um dos seus praticantes, terapeutas ou formadores, discernir, a cada momento, o que seja esse viver em rede, esse ser em rede que acabamos descobrindo nesta vida construida entre muitos. Aqui, talvez, esteja a mais forte das mudanças que a TC introduz nas nossas vidas: Já não sou só, agora vivo em relação, vivo interligado, me descubro, mas não apenas intelectualmente, como um ser comunitário, alguém que não apenas está, mas também é, em relação, em sociedade, em rede. Esta autodescoberta rompe o isolamento, define novas formas de ser e de fazer, se sentir e de pensar, que cada um ira descobrindo na caminhada da vida, na vida na terapia. Na sociedade capitalista em que vivemos, o outro é construído como ameaça, obstáculo, ou meio. Raramente fraternalmente, mais comumente, competitivamente. Alguém que se opõe aos meus fins, ou alguém que devo ou posso usar para atingir minhas metas. Na Terapia Comunitária, aprendemos, e não só teóricamente, que com o outro, e apenas com os outros, no plural, posso crescer, posso ser, posso me tornar quem sou. Desde o começo, quando demos o primeiro passo para este mundo novo, alguma coisa mudou essencialmente em cada um de nós. Talvez uma solidão, um abandono, uma sensação de estranhamento, de não pertencimento, de andar vagando sem rumo pelo mundo e pela vida, de não ser alguém de jeito nenhum, mas apenas uma folha ao vento, estranho e só, alheio a tudo e a todos, tenha se rompido. Ao sermos acolhidos, ao nos descobrirmos parte de uma comunidade, a nossa reinserção no mundo e na vida, na sociedade que existe fora e dentro de nós, ocorreu. Esse fato fundamental mudou radicalmente a minha vida, a vida de todos vocês, a vida de cada um que se encontra ou se reencontra nas rodas da terapia. O problema ou os problemas que me dilaceravam, que faziam de mim um sujeito sem raízes, um pedaço de mim, como diz a canção de Chico Buarque, aquilo de tão horrível e único que me quebrava por dentro, que e fazia ser agressivo ou passivo, obediente ou subserviente, mecânico, técnico, um arremedo de gente e não gente de verdade, se tornou, na verdade, a minha ponte de regresso, uma ponte de volta para mim mesmo, para a vida, para Deus, para a sociedade. Cada um de nós tem histórias a contar a este respeito. Temos estudado os fundamentos da Terapia Comunitária na formação, nos estudos coletivos e individuais. Temos pensado sobre as noções de homem/mulher (ser humano) implícitas na formação do terapeuta comunitário e na sua ação. Como se concebe, no pensamento de Adalberto Barreto, a realidade social, o mundo, a vida, as relações sociais, o tornar-se homemmulher no convívio, na relação consigo mesmo e com os demais, com o tempo, o trabalho, as necessidades básicas, a vida, tudo o que existe, a saúde, a doença, a política, o futuro, o passado, as raízes, a morte, a solidariedade. Cada um de nós registra com clareza, esta caminhada de volta para nós mesmos de retorno da alienação, da fragmentação, da separatividade, do isolamento, do autismo, da


coisificação, do viver sem rumo nem direção, da falta de sentido, do desenraizamento, do niilismo, do fatalismo em que vivíamos. Esta revolução interior que pôs a nossa vida de pé sobre as nossas próprias pernas, que nos fez seres autônomos e responsáveis, reintegrados à trama da existência, com projeção para o aqui e agora desde um passado que nos fez gente, feito de dores, de sonhos, de amargura, de lutas vencidas e perdidas, de utopias pessoas e muito mais do que pessoais, em direção a um futuro que vislumbramos individual e coletivamente, é incessante, não acaba nunca, é para todo o sempre. A TC apenas nos tornou conscientes, o que não é pouco, da incompletude, do inacabamento, como diz Paulo Freire, de tudo quanto existe. Tudo é um vir a ser, um Heráclito incessante, como diz Borges no seu poema Arte poética. Nossos sonhos juvenis, de um mundo de amor e de paz, fraterno, com oportunidades iguais para todos, justo, sem fome, com emprego e casa, saúde, bem estar e cultura, educação para todos, está em nossas mãos. Somos parte de um exército de formigas, como dizia Dom Fragoso, construtores constantes de um homem e uma mulher novos, como Cristo e Che Guevara ensinaram. Homens e mulheres numa terra nova, de luz, plenitude, prosperidade para todos e todas sem distinção. Uma terra de vida eterna. Tu és essa terra, essa terra é esta terra, essa terra, esse mundo novo, é aqui mesmo, é aqui. O metido estabelece a direção e o sentido. O caminho se faz ao andar, como diz a canção de Joan Manoel Serrat, citando versos de Antônio Machado. Mais do que técnica, a Terapia Comunitária é um gesto de amor. É um método de retorno do ser humano a si mesmo como ser social, como diz Marx em A Ideologia alemã. Redescobrir a socialidade total que me constitui. É o fim da sociedade de classes e o começo da verdadeira história da Humanidade. É o fim do antagonismo entre o eu e o tu, como dizia Martin Buber.


Terapia comunitária, esperança Alguns anos atrás, lia um artigo do Professor Adalberto Barreto, As dores da alma dos excluídos no Brasil, e comecei a chorar. Mas não penses que foi por outro motivo, do que o de ver, ali, o retrato de meu próprio processo como migrante, alguém que, como as pessoas de que o escrito falava, tinha também perdido a alma no processo de ruptura com as raízes. Esta leitura me emocionava ainda por um outro motivo: o fato de ali estar retratado um trabalho coletivo, o da Terapia Comunitária, de resgate da humanidade dos migrantes. Vindo da Argentina nos tempos da ditadura militar de lá, em São Paulo encontrei migrantes nordestinos de diversos estados do Brasil que, como eu, buscavam amparo na Associação Voluntários pela Integração do Migrante, onde o padre Mário Miotto nos ajudava a conseguirmos documentos e, mais, nos dava apoio na busca de emprego. O texto do Prof. Adalberto Barreto ainda me emocionava porque ali eu via o triunfo dos ideais pelos quais a minha geração e muitas anteriores, se empenharam nos anos 1960 e 1970, até a vinda do terrorismo de Estado. Esses ideais estavam vivos. Era a pedagogia de Paulo Freire, era a fraternidade, era o amor, a solidariedade. E isto de maneira concreta e prática, não declamada ou apregoada. Eram pessoas de diversas classes sociais, profissionais de saúde, e gente do povo, amalgamados em mutirões por este vasto país, em busca do resgate da sua própria identidade, tal como eu também me encontrava. Os anos passaram, e me formei terapeuta comunitário, passando a formar parte dessa rede de apoio que se estende por todo o Brasil, e já para a América Latina de fala espanhola, como o Uruguay, a Argentina e Venezuela. Estas linhas apenas tentam retratar, de maneira muito sucinta, uma trajetória de resiliência que se deu no Brasil, e já está deitando raízes firmes para o sul da América do Sul. Por anos, senti, como tantos e tantas, que tínhamos sido derrotados, que o capitalismo selvagem e a violação sistemática dos direitos humanos perpetrada pelas ditaduras que assolaram nossos países, seriam o horizonte com que teríamos que nos conformar. Submissão, impunidade. Não era assim: este trabalho de resgate da autonomia e da auto-estima, de empoderamento de pessoas e comunidades, de desalienação, para dizê-lo numa palavra, se oferece como alternativa eficaz à reconstução humana que segue os pesadelos das ditaduras e as suas continuidades neoliberais.


Rolando Lazarte, sociólogo e terapeuta comunitário. Doutor em Sociologia pela USP , Mestre em Sociologia pelo IUPERJ. Licenciado em Sociologia pela UNCuyo, Argentina. Bacharel em Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Diretor de Comunicação Social da ABRATECOM e do pólo formador em Terapia Comunitária do MISC-PB Autor de Max Weber, ciência e valores (São Paulo, Cortez, 2001, 2ª. ed.), Mosaico (João Pessoa, Editora Universitária da UFPB, 2005) e Resurrección (Juiz de Fora, Estúdio Três, 2009). Coordenador da tradução para espanhol de Terapia Comunitária passo a passo, de Adalberto Barreto


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