UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
Conflitos e Desafios Urbanos: Remoções Perspectivas Contemporâneas em Arquitetura e Urbanismo Ana Beatriz Tavares Costa 10/12/2018
Introdução No processo de transformação da cidade do Rio de Janeiro, é possível notar obras que, em sua grande maioria, são feitas para atrair os olhares estrangeiros, porém que mexem muito com a vida dos cariocas. Pudemos ver isso recentemente com as obras destinadas à Copa do Brasil de 2014 e às Olímpiadas de 2016 que transformaram a vida de muitas pessoas que estavam na área de influência da intervenção pública de uma região previamente ocupada por aqueles que ajudaram a construir sua história. Com isto, o poder público atua na retirada dessas pessoas sob o discurso da Prefeitura que diz optar sempre pela negociação, porém ao fim deste trabalho poderá notar-se que estas remoções são sempre marcadas por muita humilhação, arbitrariedade e abuso de poder. O presente artigo irá tratar da problemática das remoções, porém faz-se necessário descrever os diferentes processos de deslocamento de pessoas realizados pelo governo, sendo eles:
Desapropriação: “A lei estabelecerá para desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro”. (Constituição Federal de 1988, artigo 5º, inciso XXIV)
Reassentamento: Nesta opção, a família é transferida para uma
nova moradia (Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV) ou são indenizadas e são assistidas pela Secretaria Municipal de Habitação (SMH). “Os projetos de urbanização, elaborados com a orientação de atingir o menor número possível de unidades, indicam soluções diversas, de acordo com as especificidades de cada área e privilegiam a utilização de espaços livres no próprio local e, na inexistência dessas áreas, a escolha de terrenos o mais próximo possível.” (Decreto nº 38.197/2013).
Remoção: Quando as famílias são retiradas à revelia do imóvel
e não são dadas condições de transição para elas. A Prefeitura diz não se utilizar deste movimento.
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Fundamentação O contexto histórico das remoções começa ainda na década de 1940, no mandato de Henrique Dodsworth, prefeito do estado da Guanabara, que denominou as favelas cariocas como um problema de saúde pública, porém existia a preocupação
com
seus
moradores,
então
foi
elaborado
um
projeto
de
desapropriação dessas famílias para parques proletários – sendo eles nos bairros da Gávea, Leblon e Caju. Em 1960, Carlos Frederico Werneck de Lacerda assumiu o poder como primeiro governador do estado da Guanabara. Nesta época, as favelas continuavam em expansão na cidade e abrigavam cerca de 330 mil pessoas. Em seu mandato, assumiu um conceito de renovação urbana promovendo um programa de remoção das favelas e contratou o arquiteto e urbanista Constantino Doxiadis para colocar em prática a sua intenção. A proposta do urbanista sugeria a reurbanização apenas das comunidades que não interferissem nos objetivos do projeto e, as outras, seus moradores deveriam ser removidos para áreas próximas de seus empregos ou que fossem servidas por linhas de transporte econômicas. Essa política de remoção gerou muito descontentamento entre algumas pessoas que já tinham sua vida e rotina estabilizadas anteriormente e, com isso, acabaram surgindo novos conjuntos habitacionais, tais como: Cidade de Deus – Jacarepaguá, Vila Kennedy – Senador Camará, Vila Aliança – Bangu e Vila Esperança – Vigário Geral. Para outras pessoas, a mudança teve impactos positivos, uma vez que proporcionou a conquista de títulos de propriedade e de sistemas mínimos de infraestrutura, como água encanada e esgoto. Segundo a socióloga Maria Laís Pereira, da Escola de Arquitetura e Urbanismo da UFF: “A imprensa tocava no tema favela o tempo todo. Na Zona Sul, havia pressões
da
especulação
imobiliária.
Lacerda,
ferrenho
anticomunista, obteve verbas dos Estados Unidos por meio da Aliança pelo Progresso (entidade criada pelo presidente John Kennedy para financiar projetos sociais na América Latina e conter o 2
avanço do socialismo). Com esses recursos, ele produziu conjuntos habitacionais distintos dos anteriores: longe dos centros de trabalho e sem articular as necessidades dos moradores”.
Imagem 01 – Cartaz colado na época do processo de remoção da Cracolândia, em São Paulo. Disponível em https://i.pinimg.com/originals/49/c5/ee/49c5eed2f246e2161ce 03426e849ee97.jpg Acesso em 08/12/2018, 11:26
A temática das Remoções só ganha destaque quando é feita em função de violência ou de situações trágicas, como aconteceu na Cracolândia, em São Paulo. E a falta de planejamento das cidades é dada como a principal justificativa para as que elas ocorram, porém essa exclusão é resultado de uma estratégia de planejamento urbanístico na predominância do interesse do capital na construção e ocupação da cidade. As obras públicas quase nunca incluem uma solução habitacional definitiva para as famílias atingidas. Estas, então, acabam recebendo um atendimento provisório e insuficiente para cobrir os custos de moradia em condições adequadas, onde não são consideradas suas situações atuais e destinos e, apesar da moradia ser um direito constituído por lei, o governo não oferece qualquer tipo de proteção. Muitas vezes algumas remoções são inevitáveis, porém algumas obras públicas são previamente projetadas para passar por cima de áreas ocupadas por assentamentos populares, já que isto barateia os custos de desapropriação e ajuda no processo de “embelezamento” do projeto final. 3
Estudos de Caso: Comunidade do Esqueleto: A Comunidade do Esqueleto foi uma favela que existiu até o início da década de 1960, onde hoje encontra-se a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). A favela foi removida pelo governador Carlos Lacerda e seus moradores foram reassentados para Vila Kennedy, em Bangu, cerca de 30 km de distância, com o pretexto da construção do novo campus universitário. E, neste lar imposto, tiveram que readaptar suas vidas com comércio e transporte precários e sem trabalho perto. Antônio Carlos Ferreira, morador removido para a Vila Kennedy, relatou:
“Passei a acordar de madrugada para ir ao Centro. Muita gente perdeu o emprego. Mas não tivemos opção. Era a Vila Kennedy ou a rua. Nem escolhemos nossas casas. Funcionários do governo apontavam onde moraríamos. Para piorar, as chaves eram todas iguais e abriam as portas de qualquer casa”.
O morador Jorge Melo, disse que na época, seus pais haviam recebido a promessa de que os filhos teriam vaga na universidade, o que não foi cumprido. Também relatou que não receberam assistência alguma na nova moradia o que acarretou em um processo de favelização dentro do próprio conjunto habitacional, onde hoje só existe uma casa ainda original no meio de vários puxadinhos. Hoje, a Vila Kennedy é considerada uma comunidade, que recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em 2014, porém é uma localização completamente isolada de Bangu, seu próprio bairro. A maior reinvindicação dos moradores é que seja implementado lá dentro a mesma estrutura do bairro, onde só depois de muita luta, eles conseguiram que uma agência de correios e uma agência bancária fosse levada para dentro da comunidade.
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Vila Autódromo: Com a problemática da especulação imobiliária, o entorno do antigo Autódromo de Jacarepaguá, despertou interesse da população sem terra e, a partir da década de 1960, iniciou-se a ocupação irregular da área chegando a abrigar 760 casas. O antigo governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, concedeu o uso dos imóveis, porém a comunidade sempre foi uma região ameaçada e, tudo mudou no dia 02 de outubro de 2009, quando o Rio de Janeiro venceu a disputa para sediar as Olímpiadas de 2016. Logo a área foi remodelada em uma Área de Especial Interesse Social pela Lei Complementar nº 74/2005 (AEIS) para a implantação do Parque Olímpico da Barra e, foi colocada em pauta a possibilidade da reurbanização da comunidade – incluindo a execução de pavimentação, saneamento, iluminação e construções de equipamentos públicos – ou sua remoção completa, onde os moradores escolheriam entre serem indenizados ou realocados para condomínios da Prefeitura. A ideia do prefeito da época, Eduardo Paes, era levar 500 famílias para um condomínio destinado para realocação da Vila, o Parque Carioca, porém foi alvo de resistência dos moradores que atestavam sua participação na construção histórica daquele local. Então, os moradores realizaram, com o auxílio de profissionais da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) um Plano Popular que comprovava que a reurbanização previamente colocada em pauta, custaria apenas 20% do previsto com a remoção da comunidade e isto sem prejudicar a realização dos Jogos Olímpicos. O prefeito que disse que negociaria com os moradores e discutiria a opinião dos mesmos para que não houvesse violência ou arbitrariedade, nunca respondeu. Por anos houve este embate entre resistência x luta, onde ora o prefeito dizia que a remoção não aconteceria, ora ele continuava a apresentar projetos para a área que não incluía a comunidade. Muitas famílias resistiram e mesmo durante as obras continuaram ocupando seus locais de origem, a Prefeitura chegou a pagar até R$3 milhões de indenização, valor este que poderia ser aplicado na melhoria da comunidade e preservação daqueles que construíram sua história.
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Parque Madureira: O Projeto do Parque Madureira foi negociado com a Light, proprietária do terreno e faz parte do Legado Olímpico deixado pelo prefeito Eduardo Paes. O parque possui 450.000m², foi inaugurado em 23/06/2012 e expandido em 2015 para mais três bairros – Rocha Miranda, Honório Gurgel e Guadalupe. O Parque é muito bem equipado com quadras, ciclovias, bosques, riachos, palcos e quiosques e é sempre citado como referência quando falamos em projetos paisagísticos, porém quem estava em sua área de influência pode dizer sobre a violência e arbitrariedade sofridas. O antigo terreno da Light era ocupado por 900 famílias da Favela Vila das Torres, que foram removidas para a realização do projeto e, além disso, toda a extensão do terreno, incluindo a área expandida posteriormente, era ocupada por uma horta urbana linear (Chácara) que era cultivada pelos moradores locais e que foi loteada e distribuída pela Light em regime de comodato desde 1948. A implantação do parque resultou na remoção de 897 domicílios, dos quais 264 foram realocados no PMCMV em Realengo (cerca de 14 km de distância), outros foram indenizados e outros aguardam receber o pagamento até hoje, 3 anos depois da conclusão da expansão. O prefeito havia anunciado a construção de um conjunto habitacional junto ao parque, porém as construções foram canceladas em 2010 de forma que as remoções continuaram de pé. Segundo
Heraldo,
da
Associação
de
Moradores,
na
reunião
dos
representantes das favelas ameaçadas de remoção:
“Eles não querem nem saber se a comunidade quer sair ou não. Já disseram que vão tirar todo mundo e estão pagando pelas nossas casas um terço do que elas valem. A minha casa tem dois quartos e avaliaram ela em 13 mil reais. Com esse valor só me resta ir morar em uma área de risco. Isso porque minha família vive aqui desde 1885. Teve moradia avaliada em 2 mil reais, o que não dá pra pagar nem seis meses de aluguel. Essa avaliação é feita em uma breve conversa do morador com um cara da prefeitura, que além de não ser engenheiro, proíbe o morador de levar um advogado, sob a 6
ameaça de não pagar nada. Se não for indenizado, o morador tem que se contentar em ir lá pra um condomínio da Caixa Econômica Federal em Realengo, que é muito longe daqui. O Prefeito Eduardo Paes afirmou no evento de lançamento do Projeto, que os moradores do
local,
já
cadastrados,
não
seriam
deslocados
e
as
desapropriações seriam negociadas de forma digna, mas agora se percebe que era tudo mentira. Para você ter ideia, as casas que vão ser demolidas estão tendo suas portas pichadas com um triângulo por funcionários da prefeitura, que nem o Hitler fazia, quando pichava a porta das casas dos judeus com uma estrela de Davi.”
Além dos moradores da comunidade, os agricultores também sofreram. Famílias que moravam ali e se utilizavam da horta como fonte de renda em um trabalho que foi passado de geração para geração, perderam seu sustento, onde muitos eram analfabetos vindos do Norte e do Nordeste do Brasil. Egidio, um dos lavradores da horta, comenta:
“O prefeito vai me botar para tirar o sustento de onde? Até então eu tiro da terra, se ele me abrir uma frente de emprego eu vou agarrar de unhas e dentes, mas acredito eu que ele não tenha emprego para mim. Vai haver o progresso, a remoção, mas que ele me dê uma terra para eu trabalhar, porque o que mais tem aí é terra parada, improdutiva. É uma dessas que eu estou precisando, porque eu vou trabalhar ela.”
Houve inúmeras reuniões e tentativas de negociação, houve resistência, porém sem sucesso. Como se já não fosse o suficiente a dor de perder a sua identidade, seu pedaço de terra e sua fonte de renda, os moradores sofreram com a arbitrariedade, aonde policiais armados entravam nas casas, mandando-os sair no mesmo instante onde, em caso de resistência, eles já estavam preparados para combater. Muitas famílias, principalmente as residentes da parte da expansão, até hoje não receberam, tiveram que mudar sua vida por completo, inúmeros animais foram 7
abandonados porque as famílias não puderam levá-los, outras famílias tiveram que começar a pagar aluguel depois de perderem um imóvel que era próprio, pessoas morreram de tristeza e desgosto em detrimento de um estabelecimento voltado para o lazer que não tem manutenção, não tem investimento na segurança, sendo hoje um local propício a assaltos e violência no geral. Uma das entradas do parque, hoje, possui um gigantesco chafariz dos aros olímpicos e este é o legado que as Olimpíadas deixou, um legado de tristeza, dor e desamparo do poder público.
Imagem 02 – Compilado de imagens mostrando a área de intervenção do Parque Madureira. Disponível em <https://issuu.com/rafaelalves38/docs/o_espa__o_publico_no_processo_de_va> Acesso em 08/12/2018, 14:12
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Considerações Finais: É impossível dizer que tanto o Parque Olímpico, quanto o Parque Madureira e a UERJ não foram ganhos para a cidade do Rio de Janeiro. Porém, todos esses empreendimentos hoje, já não tem mais a mesma visibilidade que tinham quando foram construídos e muito menos atraem os olhares do poder público quanto a necessidade de manutenção e preservação. A política de remoção, hoje, já não é bem vista e aceita pela mídia e sociedade, pois graças ao Código de Obras, são consideradas parte da cidade onde, seria necessário regularizar e deslocar seus moradores apenas em situações de risco. Favelas são construídas por seus próprios moradores e possui um contexto histórico enraizado, de forma que não se pode ignorar estas histórias em detrimento da tentativa de criar novas histórias para a cidade. É indispensável reconhecer o valor histórico das comunidades, bem como suas qualidades como ponto de partida para qualquer intervenção urbana, lembrando sempre que a Arquitetura e o Urbanismo existem para melhorar a vida de todas as pessoas, sem distinção.
Imagem 03 - Moradores do RJ fazem manifestação a favor das favelas. Disponível em <https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/2013/06/29/29jun2013---manifestantes-fazem-protestocontra-a-remocao-da-comunidades-no-rio-de-janeiro-e-contra-a-rede-globo-1372537410310_ 956x500.jpg> Acesso 08/12/2018, 14:29
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Referências Bibliográficas: CARVALHO, Ramon Silva de. Quem foi um milionário? Embate, remoções e indecisões na Vila Autódromo do Rio de Janeiro. Qualidade do Lugar & Cultura Contemporânea. Rio de Janeiro, 2016.
Referências WEB: GALDO, Rafael; DAFLON, Rogério. Favelas foram removidas para conjuntos sem qualquer infraestrutura. Atualizado em 03/11/2011. Disponível em < https://oglobo.globo.com/rio/favelas-foram-removidas-para-conjuntos-sem-qualquerinfraestrutura-2772762> Acesso em 08/12/2018, 11:46 GRANJA, Patrick. 9.633 moradias serão derrubadas por Paes e Cabral. Disponível em <https://anovademocracia.com.br/no-67/2903-9633-moradias-seraoderrubadas-por-paes-e-cabral> 07/2018. Acesso em 08/12/2018, 12:54 ROLNIK, Raquel. Sessenta candidatos contra violação de direitos nas remoções forçadas. Disponível em <https://raquelrolnik.wordpress.com/ 2018/08/29/sessenta-candidatos-contra-violacao-de-direitos-nas-remocoesforcadas/> 29/08/2018. Acesso em 06/12/2018, 19:06 SÁ, Eduardo. Parque de Madureira deve ser entregue em 2011, mas moradores criticam o projeto. Disponível em <https://fazendomedia.org/parque-de-madureiradeve-ser-entregue-em-2011-mas-moradores-criticam-o-projeto/> 06/08/2010.Acesso em 08/12/2018, 14:17 Do Esqueleto à Vila Kennedy: Cinco décadas de lutas e conquistas. Disponível em <http://www.vozdascomunidades.com.br/destaques/do-esqueleto-vila-kennedycinco-decadas-de-lutas-e-conquistas/> 22/12/2017. Acesso em 08/12/2018, 11:56 Entre remoções e conjuntos habitacionais. Disponível em <http://multirio.rio. rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janeiro/71-um-rio-de-muitosjaneiros/3363-o-rio-de-janeiro-entre-as-remocoes-e-os-conjuntos-habitacionais> Acesso em 06/12/2018, 18:24 Explicando a política de habitação da Prefeitura do Rio. Disponível em <https://medium.com/explicando-a-pol%C3%ADtica-de-habita%C3%A7%C3%A3oda-prefeitura> Acesso em 06/12/2018, 16:59
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