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17 de Abril de 2009 Ano XVIII N.º 196 Quinzenal gratuito
Director: João Miranda Editor-executivo: Pedro Crisóstomo
a cabra Jornal Universitário de Coimbra
Quando os estudantes pediram a palavra D.R.
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MEMÓRIA
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á vai longa a madrugada e no edifício da Rua Padre António Vieira a discussão está acesa. À volta da mesa, Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) e Juntas de Delegados entremeiam a vontade de intervir e de marcar uma posição com o receio da detenção de sócios e pior, da destituição da direcção da associação académica. É necessário tomar uma decisão e é então que Osvaldo Castro arremessa a ideia para o debate, “eles dizem que nós não aceitamos e que não vamos falar. Não, nós aceitamos. Vamos e falamos segundo o protocolo”. A confusão instala-se, há os que defendem a ideia e os que a negam à partida. Os representantes da Junta de Delegados de Ciências, Carlos Baptista e José Manuel Roupiço, asseveram a sua posição, a decisão do plenário da faculdade é de que se fale, a junta de Ciências
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Também fora do edifício a contestação se fez sentir vai tomar a palavra. Está decidido! O presidente da direcção-geral se achar que tem condições para isso, também pede a palavra. Alberto Martins deixa transparecer: “não tenho grande lábia para isso”. Há que pôr o plano em marcha, nos corredores da AAC os estudantes que vão aparecendo desdobram-se entre a pintura de cartazes e a distribuição de cartas pelas repúblicas a mobilizar todos os estudantes para estarem presentes na cerimónia de inauguração. Quando Osvaldo Castro e Celso Cruzeiro terminam a sua missão de convocar os estudantes que se encontram nos jardins da AAC, à porta do edifício das Matemáticas já vários alunos empunham os cartazes pintados na noite anterior. Por pouco, José Hermano Saraiva e Américo Thomaz falham a chegada do grupo de alunos liderados por Carlos Baptista e Osvaldo Castro. Pouco falta para as 11 horas. Dentro da sala, Alberto Martins já se encontra sentado, enquanto as figuras do regime vão ocupando os lugares da frente. Cá fora, está um daqueles dias de Abril, com sol mas com vento frio. Celso Cruzeiro negoceia com um polícia a entrada dos estudantes, mas depressa os alunos enveredam pela porta do edifício. Com a sala já repleta, começam os discursos oficiais, entretanto, Celso Cruzeiro, que não conseguiu entrar no edifício, agarra no microfone que o vice-presidente da comissão administrativa do novo departamento, Louza Viana, lhe cede, na esperança de acalmar a massa estudantil que se reúne no exterior. Porém, Celso só consegue
APÓS A CERIMÓNIA, os estudantes desceram para os jardins da associação
17 DE ABRIL DE1969 A “VERDADEIRA INAUGURAÇÃO” Nesta madrugada de Abril, Coimbra ainda está longe de imaginar as proporções que um pedido de palavra vão desencadear no movimento estudantil e no plano político português. Reportagem por João Miranda instigar ainda mais os alunos. Terminado o discurso do segundo orador, Alberto Martins levanta-se e dirige-se a Américo Thomaz: “Senhor Presidente da República, em nome de todos os estudantes da Universidade de
Coimbra, peço para usar da palavra”. Na sua perplexidade, Thomaz não responde, ao que Alberto Martins volta a repetir o pedido. A euforia das palmas inunda a sala e só é substituída por vários murmúrios quando surge a resposta do Presi-
dente da República, “bem, mas agora fala o ministro das Obras Públicas”. A cerimónia continua, fala o ministro das Obras Públicas, fala o ministro da Educação e por fim todas as personalidades do regime seguem Américo Thomaz que se le-
vanta e abandona a sala. Perante todo o cenário, Alberto Martins sobe para uma cadeira e declara: “esta é a verdadeira inauguração!”. Osvaldo Castro vai abrindo alas à saída de Américo Thomaz que é rodeado por estu-
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dantes que gritam com o Chefe de Estado. Na sala, Alberto Martins acaba o seu discurso e dá a palavra a Carlos Baptista que lê a Carta Aberta da Junta de Delegados de Ciências, e a Barros Moura que fala pela Confederação Nacional dos Estudantes Portugueses. Reina a “verdadeira inauguração”. Terminada a “cerimónia”, cá fora os dirigentes, que recusaram o almoço oficial com os responsáveis de Estado, abraçam-se e congratulam-se, e são discutidas e pronunciadas as directivas para o futuro da AAC. A discussão continua tarde fora nos jardins da associação. Não é de uma Assembleia Magna que se trata, mas a discussão é agora permanente. Com o cair da noite, urge tomar medidas de precaução, “nenhum dirigente deve dormir na sua casa” e conclui-se a última decisão da noite: saem todos pela porta da frente da AAC, Alberto Martins deverá ser o último a sair. O plano corre como previsto e o presidente é o último a abandonar o edifício, acompanhado por Osvaldo Castro. Surgem então sete agentes da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) que identificam Alberto Martins e que o conduzem à sede da polícia política. Sem qualquer resposta sobre o incidente, por parte da reitoria e do ministério, a dirigente estudantil Fernanda Bernarda, inicia uma ronda de telefonemas às repúblicas convocando todos os estudantes para a porta das instalações da PIDE. Depressa, a Rua Antero de Quental fica repleta de estudantes que exigem a libertação de Alberto Martins. A resposta do regime não se faz esperar e a polícia carrega sobre a massa estudantil. Estão assim abertas as portas para uma crise que se vai prolongar por todo o ano de 69. *este relato baseia-se em entrevistas feitas a testemunhas, como Osvaldo Castro, Matos Pereira, Carlos Baptista; no relato dos livros “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura”, de Gabriela Lourenço, Jorge Costa e Paulo Pena, e “Coimbra, 1969”, de Celso Cruzeiro e na Acusação inserida nos processo disciplinar académico levantado.
NOTA EDITORIAL Era intenção do Jornal ACABRA publicar uma entrevista com o Ministro da Educação Nacional em 1969, José Hermano Saraiva. Quando contactado telefonicamente, este recusou a entrevista e remeteu qualquer esclarecimento para a as suas memórias, publicadas em livro. Já em 1999 e 2001, José Hermano Saraiva havia recusado prestar declarações ao jornal sobre o 17 de Abril e a Crise Académica de 1969. A Direcção
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ENTREVISTA ALBERTO MARTINS • PRESIDENTE DA DG/AAC EM 1969
“Em 1969, os estudantes de Coimbra estavam do lado certo da história” Na comemoração dos quarenta anos da crise académica, Alberto Martins conta como despoletaram os acontecimentos que marcaram a Academia naquele ano. Texto por Andreia Silva e Cláudia Teixeira e fotografia por Pedro Crisóstomo oi no gabinete de Alberto Martins, na Assembleia da República, em Lisboa, que revisitámos as memórias de quem construiu parte da história da Universidade de Coimbra e da própria resistência ao fascismo. Com um sorriso no rosto e sempre descontraído, o actual líder parlamentar do Partido Socialista fala do momento em que pediu a palavra na sessão de inauguração do Departamento de Matemática, em 1969, o qual se seguiu a sua prisão e uma intensa luta estudantil, pautada por uma greve aos exames e o encerramento da própria universidade. Alberto Martins acredita que “a democratização do ensino é uma necessidade de desenvolvimento para Portugal” e que “os jovens não estão alheados das questões políticas”.
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Até 1969, o movimento estudantil assentava na luta pelo direito de associação. A partir de 1969, passou a concentrarse sobre a universidade. Para si, qual foi o momento que despoletou a crise académica? O momento mágico da luta dos es-
res do 25 Abril foram os oficiais jovens da universidade. Pela primeira vez na vida universitária, a mulher tem um papel importantíssimo. A luta de Coimbra, pela primeira vez na história da universidade, tem esse protagonista fantástico que são homens e mulheres em luta. Como dizem alguns, o 1969 foi não só uma festa da liberdade mas foi também uma festa do amor (risos). De que forma foi feita a articulação entre a DG/AAC e os estudantes das faculdades? Havia uma articulação muito forte. Não éramos dirigentes distanciados da vida estudantil. Qualquer fluxo informativo se verificava de forma muito veloz e regular. Como diz Mao Tsé-Tung, um líder sem massas é como um peixe fora de água. E nós éramos líderes de massas porque estávamos ligados aos estudantes. Quando tomaram posse, em Fevereiro, pensaram que daí a dois meses estariam a quatro metros de distância do poder? Não. Nunca pensámos que as coisas se proporcionassem de forma tão rápida.
Em algum momento, ponderou não falar? Não. Tinha de ter condições para o fazer. O que esperava era que me prendessem e espancassem, mas eu tinha de pedir a palavra. Era o meu compromisso. Mas quando entrei para a sala pensei para mim próprio: “isto não vai ter grande efeito, estou sozinho, eles vão fazer aquilo que eu estou a pensar que vão fazer, vão-me prender”. Mas entretanto entram os meus colegas que ocupam toda a sala. Recordo-me de uma fotografia do Celso em cima de um colega nosso a mandar entrar os nossos colegas. Quando vi os meus colegas na sala pensei: “a batalha está ganha”. Perante o meu pedido de palavra, o Américo Thomáz disse “bom, e agora fala o ministro das Obras Públicas”. Depois prenderam-me nessa noite, à saída da AAC. Vinham com uma pistola e disseram “o senhor é o Alberto Martins? Então considere-se preso”. Levaram-me e lá fiquei até ao meio-dia do dia seguinte. Passada uma hora oiço um barulho brutal. Eram os colegas que tinham ido para a porta da PIDE a pedir a minha libertação. Foram banidos violentamente com
após a greve aos exames, a AAC é encerrada e 49 de nós são incorporados compulsivamente no exército, como traidores à pátria. Coimbra, na altura, foi uma ilha de liberdade. A partir do momento em que o reitor, Andrade Gouveia, em comunicado, nega a palavra à DG/AAC, como foi traçada a estratégia para poderem intervir? Dissemos em comunicados públicos que íamos usar todos os meios legítimos para poder usar da palavra. Claro que era uma situação de risco, mas foi um risco racional e criteriosamente assumido. As repúblicas e os Organismos Autónomos da AAC tiveram um papel preponderante na crise académica. Sim. Tiveram um papel muito importante porque eram uma forma de organização livre e autónoma de autogestão dos estudantes. O movimento juntou pessoas de esquerda, de direita, católicos, mulheres. Como foi possível juntar pessoas de vertentes
SEGUNDO ALGUNS, FOI A MAIOR GREVE DE RESISTÊNCIA À DITADURA tudantes foi o pedido de palavra do presidente da DG/AAC, que era eu, na inauguração do edifício das Matemáticas ao chefe de estado da ditadura, o Almirante Américo Thomáz. A partir daí, desencadeiase um grande processo na vida da academia, muito intenso. Segundo alguns, a maior greve de resistência à ditadura que houve em Portugal. Quais eram as principais bandeiras da Crise Académica de 1969? Defendíamos uma universidade nova. Uma universidade com um novo ensino, novas qualificações, modernidade, abertura à sociedade. Queríamos também uma sociedade nova. A ideia de que a classe operária, as vanguardas populares eram os detonadores da história começa a mudar. Em Portugal, os detonado-
Foram a Coimbra as grandes figuras da canção, da literatura, da oposição democrática. Os convívios eram uma forma de atrairmos os estudantes para uma mobilização colectiva e para os focalizar naquilo que era o grande objectivo da luta, que era a greve aos exames. Fizemos luto, acabamos com a praxe dos caloiros e fizemos a greve aos exames. Não fizemos a Queima das Fitas e fomos prestar esclarecimentos à cidade porque tinha uma importância económica muito grande para a cidade de Coimbra, e nós tivemos que pôr os comerciantes e os habitantes ao lado dos estudantes. Eu posso dizer a esta distância que a universidade, os professores, os funcionários e a cidade de Coimbra esteve ao lado dos estudantes em 1969. E isso foi conseguido pela capacidade dos estudantes de fazer sentir que a sua luta era justa. Era uma luta pela liberdade, por uma universidade melhor, por um país melhor. A crise foi um passo importante para a queda do regime? Sim. Nós fomos, a determinada altura, a esperança na mudança de uma ditadura que já tardava em
COIMBRA, NA ALTURA, FOI UMA ILHA DE LIBERDADE
No dia 17 de Abril, não temeu confrontos com a polícia? Temi. A decisão de pedir a palavra foi tomada no dia anterior, numa reunião da direcção. Chegou-se à conclusão que quem estava em melhores condições para o fazer era o presidente da direcção-geral, porque podia sempre reivindicar a condição de ser representante de todos os estudantes. O nosso temor era que o pedido de palavra fosse visto como uma provocação gratuita. Tínhamos de pedir a palavra para que interpretassem isso como uma pretensão legítima, formulada de forma equilibrada e com rigor. Essa era a minha preocupação. E eu tinha de pedir a palavra, por uma questão de honra. Não ficaria bem comigo próprio se não o fizesse.
graves agressões. No dia seguinte libertaram-me e suspenderam-me das aulas e de qualquer actividade universitária. Depois, a academia faz greve às aulas com uma grande adesão, inclusive dos professores, e o José Hermano Saraiva afirma que “a ordem será inexoravelmente mantida na Universidade de Coimbra”, com rosto e voz ameaçadora, algo que teve uma resposta esmagadora com a greve. Depois, o governo encerra a universidade e nós decidimos fazer então a greve aos exames. Fizemos piquetes de greve, fomos espancados, presos pela Polícia Judiciária, levados a tribunal e absolvidos, acusados do crime de tumulto público que era um crime que não era exercitado em termos de acusação desde a monarquia. Em Agosto,
tão diferentes? Sobretudo pela grande capacidade de luta de todos nós. Pela grande capacidade de fazermos o movimento de massas, de termos consciência de que o que era importante era os estudantes estarem unidos. Esperava que a mobilização depois dos acontecimentos do 17 de Abril fosse assim tão grande? Não. Tínhamos sempre uma grande dúvida: se não tivéssemos em Assembleia Magna um mínimo de três, quatro mil estudantes, não tínhamos condições para avançar para a greve aos exames. Aquele período que medeia a greve às aulas, o encerramento da universidade e a greve a exames foi um período de grandes movimentações culturais.
cair. Na memória das lutas estudantis em Portugal, o melhor delas é a luta da resistência à ditadura. A visão que tem da crise académica a esta distância é a mesma que tinha por exemplo em 1980, quando escreveu o texto “Há Onze Anos em Coimbra – A Crise Académica de 69”? Não sei… O tempo faz-nos ver a história de forma cada vez mais distanciada e é curioso que quarenta anos depois nós estejamos a comemorar a crise académica. Significa que não foi um episódio, significa que foi uma marca. Eu hoje tenho a noção clara, que já tinha na altura, que em 1969 os estudantes de Coimbra estavam do lado certo da história. O lado certo da história é sempre o lugar da liberdade.
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ENTREVISTA
“A responsabilidade dos estudantes nos órgãos de gestão deve ser diminuta” Há cada vez mais alunos a abandonar o ensino superior devido a dificuldades económicas. Pensa que a democratização do ensino, pela qual lutou em 1969, está ameaçada pela actual crise económica? Acredito que a democratização do ensino é uma necessidade de desenvolvimento para Portugal. Essas dificuldades são conjunturais, mas não nos podem distanciar do que é fundamental. Não há limites para a qualificação da nossa formação. Eu quero uma melhor democracia, uma melhor universidade, e um maior progresso para Portugal. Demos um salto mas não chega, e a insatisfação faz parte do espírito
lúcido de quem olha o futuro com vontade que ele mude e que seja melhor. A insatisfação é uma exigência de uma pessoa inteligente e que quer um futuro melhor. Actualmente verificam-se casos de estudantes que passam por sérios problemas económicos Considera ser um retrocesso face aos tempos da crise académica em que lutava pelo fim de uma universidade elitista? Nós, enquanto sociedade democrática, devemos ter condições de solidariedade. Eu não penso que os estudantes devam ser privilegiados, mas devem ser criadas condições
essenciais para que tenham uma boa formação. Que comentário faz às declarações que acusam os jovens de estar alheados das questões políticas? Acha que é um problema de causas ou de meios? Eu não considero que os estudantes e os jovens estejam alheados das questões políticas. A política é tudo, é a vida. Na Crise Académica de 69 os estudantes lutaram pela representatividade nos órgãos de gestão da universidade. Em 2007, com a aprovação do Regime Jurídico para as Instituições de Ensino Superior (RJIES), houve uma diminuição nessa mesma representação. O PS, do qual é líder parlamentar, aprovou a lei. Na altura qual foi a sua posição? Votou a favor? Sim, votei a favor. Fui a favor da
participação dos estudantes nos órgãos da universidade, e continuo a ser. Mas acho que a partilha da responsabilidade dos estudantes deve ser diminuta nos órgãos de gestão, isto é, os estudantes devem apresentar a suas alternativas políticas fora desses órgãos. Eu defendo a participação de estudantes, mas com a responsabilidade a recair nos professores, nos elementos exteriores e nos funcionários, porque acho que os estudantes devem ter um espaço livre de alternativa e não um espaço de responsabilidade da gestão. Isso não cria um fosso entre a instituição e a comunidade estudantil? Uma opinião não é deliberativa. Aquilo que interessa aos estudantes é o plano pedagógico, o plano científico. Os estudantes podem dar uma opinião analítica e eu acho isso positivo. Agora, a partilha responsabilizada da organização não me parece a melhor solução.
PERFIL Alberto de Sousa Martins nasceu a 25 Abril de 1945, em Guimarães. Em 1963 entrou no curso de Direito da Universidade de Coimbra. Ainda pensou seguir Medicina, mas como “tinha um grande problema com o sangue”, optou por Direito, por ser uma área que também lhe despertava interesse. Em 1969, é eleito presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra, tendo tido um papel fundamental nos acontecimentos que ocorreram a 17 Abril. Esse dia tornou-o “num actor com consciência cívica e com preparação política”, sem o qual “seria certamente um honrado advogado do Porto ou de Guimarães”. Exerceu advocacia e foi docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tendo enveredado pela carreira política em 1987. Actualmente é presidente do grupo parlamentar do PS.
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ANTECEDENTES
O CAMINHO
PARA O 17 DE ABRIL Da luta pela autonomia universitária às greves de 62, um longo historial de luta e contestação marca as raízes da Crise Académica de 1969. Por João Miranda 1956 – o mundo assiste a permanentes convulsões, catalisadoras de novos rumos de mudança. Pelas universidades da Europa, o existencialismo de Sartre e de Beauvoir começa a proliferar e com eles as ideias da liberdade individual e da subjectividade do ser humano, ao mesmo tempo que as concepções expedidas do recém-formado Pacto de Varsóvia insurgem na comunidade académica uma vontade de abertura das instituições às classes trabalhadoras. “Orgulhosamente só”, o Portugal de Salazar vive à margem do contexto internacional. Assim o vivem também as universidades portuguesas. Num sistema universitário que abrange cerca de 18 mil estudantes, provindos essencialmente das famílias abastadas, as universidades concentram-se exclusivamente em Lisboa e Coimbra. Vencidos que estão os estudantes que ainda reclamavam a legalização do Movimento de Unidade Democrática – Juvenil, o regime aponta agora as baterias aos pequenos grupos que começam a penetrar a barreira da dificuldade da organização do movimento estudantil nas universidades. O alargamento da prestação de serviços das associações de estudantes a residências, cantinas e apoios sociais como a saúde e o seguro escolar não vem ajudar a batalha do governo e a antiga lei de regulação das actividades estudantis 1932 mostra-se assim obsoleta. Sob o signo de 40900, Salazar pretende finalmente extinguir qualquer possibilidade de sublevação ou objecção por parte dos estudantes. 40900 é também o número do decreto-lei que vai estar na origem de uma das maiores contendas da história do fascismo português entre o governo e os estudantes. Com o pretexto de implementar no meio académico o mesmo espírito corporativista que se vive nas fábricas e escritórios, a medida governamental vela uma nova metodologia para as associações de estudantes. Assim, as assembleias-gerais passam a restringir-se a delegados de cada ano, as actividades começam a ter que passar pelo carimbo de aprovação do ministério, assim como a composição das direcções eleitas e as relações com associa-
ções estrangeiras. Com o decreto, surge também a possibilidade da imposição de comissões administrativas que substituam a direcção eleita em caso desta se orientar por uma “má conduta”. No mesmo dia da aprovação do decreto, os estudantes de Lisboa discutem em Reunião Inter-Associações (RIA) o teor do novo édito, no encontro marcam presença dois delegados da Associação Académica de Coimbra (AAC). Inicia-se então um processo de luta que, segundo
Na crise de 62 vários estudantes foram suspensos Gabriela Lourenço, Jorge Costa e Paulo Pena, autores da obra “Grandes Planos – Oposição Estudantil À Ditadura”, conhece dois caminhos muito diferentes, em Lisboa e em Coimbra. Enquanto na capital a luta se pretende nacional e análoga, a linha da Associação Académica de Coimbra (AAC) envereda pelo reconhecimento da singularidade de Coimbra. Então, pela mão do Conselho de Repúblicas (CR) é apresentada em Assembleia Magna uma manifestação para o dia seguinte, em que quase toda a totalidade dos estudantes de Coimbra marcha trajada entre os Gerais, o actual Pátio da Universidade, e o Governo Civil. Passa quase um ano sobre o início dos protestos e o decreto vai a debate parlamentar. À porta de S. Bento, um grupo de estudantes espera para entregar vários abaixoassinados reivindicando a extinção da medida. O presidente da Assembleia Nacional, Albino dos Reis, recebe-os argumentando: “vocês é que sabem. De qualquer modo, o decreto já está suspenso. E sabemos as chatices em que estas coisas se podem tornar…”. Os dirigentes decidem então, como explicam os autores de “Grandes Planos”, revogar a entrega dos documentos. As manifestações e focos de contestação que surgem depois entre Lisboa e Coimbra não conseguem evitar a aprovação e implementação
do Decreto-lei nº 40900. Contudo, fica provada a capacidade organizativa dos estudantes.
A importância da crise de 62 Quando os cerca de dois mil estudantes da Universidade de Lisboa se agrupam na cidade universitária na manhã do dia 24 de Março de 1962, estão longes de imaginar as repercussões históricas e o significado da acção que estão prestes a levar a cabo. Com o intuito de estabelecer ali o Dia do Estudante, os alunos pretendem desfilar pelas ruas de Lisboa. Mas o que encontram é uma cidade universitária cercada pela polícia de choque. Quando no percurso entre o pólo universitário e o restaurante onde é suposto realizar-se o convívio, vários estudantes empunham cartazes com mensagens de protesto. A polícia desmobiliza a frente e carrega sobre os manifestantes. No dia seguinte, é decidido em RIA o decretar de luto académico e ao mesmo tempo iniciar uma greve às aulas. Sob a AAC paira ainda o processo de suspensão, pela tentativa da associação em organizar o I Encontro Nacional de Estudantes. Porém, também aqui o luto ganha expressão. Com a possibilidade da revogação do processo sobre a Academia, Coimbra interrompe o processo de luta. No dia seguinte o processo é entregue à Policia Judiciária. Também o órgão dos estudantes – a pu-
“A CPE era uma espécie de direcção-geral” blicação Via Latina – vê várias edições censuradas e a direcção editorial substituída. Rapidamente a Academia de Lisboa volta ao luto académico e, em solidariedade, seguem-se-lhe as associações de Coimbra e do Porto. A AAC exige a demissão do reitor, Guilherme Braga da Cruz e, como retaliação, o Ministério da Educação Nacional demite a direcção da associação. A resposta não se faz es-
perar e vários estudantes ocupam o Palácio dos Grilos e a Torre Cabra, conduzindo a um novo processo disciplinar contra os dirigentes. Em Lisboa, num plenário com seis mil estudantes, no dia 9 de Maio, decidem-se inúmeras acções de luta, entre elas, uma greve de fome que leva 86 alunos a barricarse nas cantinas da universidade para pôr em marcha o plano. Nesse mesmo dia, a Assembleia Magna da AAC delibera nova ocupação da sede da associação, que se vê frustrada pela intervenção da polícia de choque. A Queima das Fitas é cancelada e para colmatar a falta de receitas que a decisão origina, enquanto os estudantes vendem poemas nas ruas de Coimbra. Cerca de um mês depois, um plenário de estudantes em Lisboa decide a cessação do luto académico, vários estudantes são suspensos e expulsos das universidades e a AAC continua encerrada.
Nova era na AAC Os órgãos gerentes da AAC são novamente demitidos em 1965 e é instaurada pelo ministério uma Comissão Administrativa (CA) nomeada pelo reitor. Porém, só uma minoria dos estudantes tem conhecimento da medida ministerial. A resolução não afecta, ainda assim, os organismos autónomos, que juntamente com o Conselho de Repúblicas (CR) desenvolvem iniciativas contra a imposição. A luta desenrola-se até o princípio de 68, quando a conjuntura oposicionista dos estudantes decide criar a Comissão Pró-Eleições (CPE) e recolher assinaturas num documento que reivindica eleições livres na AAC. “A CPE era uma espécie de direcção-geral” lembra o antigo membro, Osvaldo Castro. “Organizou esse abaixo-assinado, mas também um conjunto de outras iniciativas, nas repúblicas, nos organismos autónomos”. Recolhidas cerca de duas mil assinaturas está concretizado o objectivo essencial da acção, o alargamento do movimento. Em Setembro de 1968, toma posse a quarta comissão administrativa, liderada por Jorge Ponce Leão e com José Miguel Júdice na vice-presidência. “A CA foi no-
meada em Setembro de 1968 para realizar as eleições depois de anos em que elas não tiveram lugar”, recorda José Miguel Júdice. Por seu lado, Osvaldo Castro defende que as eleições se tornam realidade devido ao movimento entretanto desenvolvido pela CPE: “nós forçamos as eleições”. No dia 12 de Fevereiro de 1969, duas listas apresentam-se ao ple-
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biscito, uma dinamizada pela CPE, encabeçada por Alberto Martins e Osvaldo Castro e outra denominada Movimento Renovação e Reforma (MRR), dinamizada por sectores mais identificados com o regime. No antigo ginásio da AAC, actual Cantina dos Grelhados, são eleitos seis membros da lista do CPE e um do MRR para a direcção-geral. Também a lista do conselho fiscal
do CPE liderada por Carlos Baptista vence as eleições. O período que se segue à tomada de posse é de desenvolvimento das linhas programáticas do movimento e de reivindicação da melhoria das condições para os estudantes. Osvaldo Castro lembra o episódio em que a direcção-geral requer uma reunião com o ministro da Educação, José Hermano Sa-
raiva. O ministro tenta esquivar-se ao encontro marcando um almoço com os dirigentes. Os membros da direcção-geral encetam então uma estratégia para o almoço: cada um coloca as questões que lhes são atribuídas e durante esse período não come. “O Alberto Martins apresentou inicialmente os nossos pontos de vista gerais, o Celso Cruzeiro falou de matérias culturais, eu falei
de matérias sociais, a Fernanda Baptista também”, conta Osvaldo Castro. “E ele ficou um bocado espantado porque o que estava a falar naquele momento não comia, só despejava, despejava, despejava”, acrescenta. O momento após a tomada de posse é também de reorganização do trabalho da direcção-geral e de preparação para um novo período
na AAC. Até que surge a notícia da inauguração do novo edifício do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra. Decide-se assim a participação e o pedido de palavra, por parte dos dirigentes estudantis, na cerimónia de inauguração e dá-se início a um dos períodos mais marcantes da história da Universidade de Coimbra, a Crise Académica de 1969.
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AS MOVIMENTAÇÕES ESTUDANTIS ocorridas em anos anteriores proporcionaram uma “almofada” internacional para a crise conimbricense
O Maio de 68 trouxe um amigo também A crise académica não foi uma acção isolada. Em pleno auge da Guerra Fria e por toda a Europa estudantes e população juntam-se para fazer face às dificuldades Filipa Magalhães Rui Miguel Pereira Muito antes de os estudantes de Coimbra confrontarem o governo português em 1969, já vários países tinham visto os seus estudantes rebelarem-se. Nos Estados Unidos da América (EUA), o movimento contra a guerra do Vietname e pela defesa dos direitos humanos, mobilizou jovens de todas as classes e mostrou uma sociedade inconformada. Anos depois, em 1968, e a partir de manifestações ocorridas nas universidades francesas de Nanterre e Sorbonne, viria a ocorrer a mais importante revolta estudantil da história. Correm repercussões por toda a Europa. Alemanha, Checoslováquia, Itália e Polónia sentem o efeito do Maio de 68 nesse mesmo ano. Ainda longe do que viria a ser a Crise Académica de 1969, a contestação estudantil em Portugal era já uma realidade que preocupava o go-
verno salazarista. Prova disso foi a tentativa do governo, em 1957, para, através do Decreto 4900, acabar com as associações académicas. Estavam lançadas as pedras para a construção do muro de oposição estudantil ao regime.
Movimentos catalisadores O primeiro movimento estudantil a abalar o mundo surgiu nos EUA onde a Guerra do Vietname e a luta pelos direitos humanos provocou a indignação dos jovens, sobretudo nos campos universitários. Mas apesar de, tal como Portugal, os EUA estarem em guerra, não é possível, segundo o historiador e docente da Universidade de Coimbra, Amadeu Carvalho Homem, estabelecer um paralelo entre a oposição dos estudantes dos dois países. Enquanto decorriam manifestações nos EUA contra a guerra, em Portugal, refere o professor, “não havia direito de manifestação”, “os protestos que existiam contra a guerra
colonial, eram protestos surdos”, bem diferentes do que se passava nos EUA. Anos após os primeiros confrontos entre estudantes e forças da lei nos EUA, acontece em França aquele que ficou conhecido como o Maio de 68. Segundo o historiador e deputado, Fernando Rosas, “todas as lutas estudantis eclodiram em estreita correlação com o Maio de 68”. Não deixando ninguém indiferente, ocorre ao mesmo tempo, por toda a França, uma onda de greves operárias por maiores salários e melhores condições de trabalho. Esta cadeia de contestação é simultaneamente marcada e responsável por uma viragem de mentalidades assinalável. Para Amadeu Carvalho Homem “houve a percepção, da parte da nossa população mais esclarecida, de que as coisas estavam a mudar no plano internacional”, por isso, a “almofada” internacional da década de 60 foi tão preponderante para a Crise Académica de 1969. Já Fernando Rosas acredita que esta crise
de 1969 se enquadra nos movimentos estudantis que vinham a acontecer desde 1957 em Portugal. Na sua perspectiva, o Maio de 68 foi apenas uma ligeira influência para a crise académica, mais importante do que esse acontecimento, foi a invasão da Checoslováquia pela União Soviética. A Checoslováquia encontrava-se em 1968 à beira do afastamento do bloco soviético. Contudo, e com a invasão da URSS, em Agosto de 1968, cai o governo reformador, ficando este período conhecido como a Primavera de Praga.
Informação que vinha de fora A tendência filosófica existencialista, personificada por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, (que subjugavam o individuo à própria liberdade) e a influência do pensamento marxista começa a ganhar nova força dentro das universidades. A esfera académica portuguesa não era indiferente a estas novas
correntes, que passaram a ser temas de debate e discussão entre os estudantes, agora despertos e ávidos de informação. Tal como afirma Carvalho Homem, “os estudantes daquela época eram estudantes que conviviam e que discutiam ombro a ombro as questões, o que conduziu a que dentro da academia de Coimbra se pudessem fazer movimentos de acção colectiva”. O “excesso” de informação preocupava o governo português que temia uma sublevação dos estudantes. Como forma de retrair a crescente onda de contestação estudantil, o governo mobilizou, à força, estudantes para a guerra do Ultramar. O que se veio a revelar um erro, pois os estudantes universitários arregimentados puderam transmitir a mensagem de denúncia ao resto do contingente militar. Como destaca Carvalho Homem, “ pô-los nas fileiras das forças armadas foi a mesma coisa que meter o cavalo de Tróia dentro das muralhas”.
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OPINIÃO
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A crise de 69
Crise! Qual crise? JOÃO BOTELHO
“Adoro o passado. É muito mais repousante que o presente e sobretudo muito mais seguro que o futuro!” Esta frase dita por um narrador aristocrata no início de “LA MONDE” de Max Ophuls apesar de maravilhosa está em oposição absoluta a qualquer das sentenças que me conduziram a caminhada. Por exemplo, para mim “amanhã, é sempre melhor do que hoje!”. E assim eu me movo, penso, crio, tomo decisões, enfim acelero e vivo. Esforço de memória. 40 anos é muito muito tempo e eu detesto efemérides, celebrações e passados. E no entanto há qualquer coisa de grandioso e de enternecedor que de repente me atinge agora que me pedem um pequeno texto sobre a “crise Coimbrã” de 1969. Crise? Qual crise?! Para minha euforia, aprendizagem contínua, celebração total da vida. E ao contrário da ideia aristocrática citada no início, repouso é que nunca houve. A Portugal as coisas chegam sempre atrasadas, como nós portugueses chegamos sempre atrasados, mais do que nós só os brasileiros, que são uma espécie de portugueses divertidos, que falam com vogais e têm o dom do canto, enquanto nós utilizamos consoantes e temos o dom do queixume. No entanto, as nossas queixas em 1969 foram extraordinariamente alegres, embora pobres imitações dos grandes movimentos dos jovens americanos e dos jovens franceses, que no ano anterior tinham decidido a revolta total e com ela a mudança da vida de todos nós e do mundo inteiro. Uns tinham o Vietnam, outros o De Gaulle e nós o Salazar prestes a cair da cadeira, a primavera idiota de Marcello Caetano e a nossa absurda guerra colonial, muito podre. E à memória chegame a imagem da carne com vermes do Couraçado de Potemkine numa sessão clandestina do cineclube de Coimbra, o que confirma que as revoltas começam sempre
na barriga. Fiz parte da comissão da cantina da AAC (Associação Académica de Coimbra), onde todos nós comíamos muito e mal, e onde tudo começou. A partir daí a vertigem dos movimentos colectivos durou meses para uns, anos para outros. Sofrer com a praxe mas o prazer de acabar com ela, participar em assembleias contínuas em vez de ir a aulas idiotas, desenhar Hermano, o Firme, a cair de um pedestal, vaiar o Américo Thomaz na sessão mais quente da crise, escrever frases poéticas nas vetustas paredes, erguer balões e flores ingénuas mas, menos infantil, colocar sebo no chão para as patas dos cavalos, ou nós de pregos para os pneus dos jeep da GNR (Guarda Nacional Republicana) que nos tentavam combater. Viva a “Alfatah”! Todos os ismos em poucos meses, até ao glorioso e afrancesado “jus q’au boutismo” que me fez chumbar por faltas dois anos seguidos logo no primeiro mês de aulas, já a “revolução” tinha terminado há muito. Porque um tipo com missão de artista, ou lá o que é, nunca se rende. A aprendizagem fez-se de outro modo. Colectiva, colectiva, sempre colectiva. O único disco de Miles Davis era de todos, o Quarteto de Alexandria de Durrel era de todos, o círculo de artes plásticas era um mundo, o cineclube a vida, e acima de tudo o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), o meu teatro radical e louco, em que os encenadores, invariavelmente eram postos na fronteira. Foi esta a minha verdadeira universidade. E a amizade e o amor nunca foram tão gigantescos e tão intensos. Mas já não me lembro de nada quando de novo as capas e batinas e as praxes imbecis ocupam tanto país jovem quanto as suas cabeças são preenchidas por revistas rosas ou facebooks de idioteira desmedida. Tenho pena, a “crise” de hoje não é só financeira nem é só económica. Realizador. Estudante da UC em 1969
10 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969 ABRIL
REPÚBLICAS As “ilhotas democráticas” desse Abril As Repúblicas foram casas de causas que não abandonaram o barco durante a crise, apesar das dificuldades. Ficaram, lutaram e conseguiram levar a bom porto aquilo a que se propuseram PEDRO CRISÓSTOMO
Sara Coimbra Maria João Fernandes Sara Oliveira
Histórias que moldaram a crise
“As repúblicas serviram de plataforma durante aqueles meses”, defende a mestre em Culturas Regionais Portuguesas, Teresa Carreiro. Eram células independentes, onde se preparava a revolução entre as paredes que tantas histórias têm para contar; sítios onde a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) tinha medo de entrar, mesmo quando a suspeita era mais que muita. Pedidos como “senhor doutor, pode vir para ser interrogado?”, ouviam-se muitas vezes à porta destas casas de resistência. E se de revolta e resistência se fez a crise de 69, os que passaram por ela dizem que “Coimbra de 69 foi Paris de 68”. Júlio Oliveira, antigo residente da Real República Rápo-Táxo, hoje com 62 anos, considera que “eram tempos difíceis”, mas tinha-se “a consciência de que algo tinha de mudar em Portugal”, pois o regime não perdoava os irreverentes. Para
João Gonçalves, antigo residente da Real Ay-ó-Linda, agora com 62 anos, confessa que ainda hoje muitos dos seus antigos colegas de república, nunca chegaram a conhecer uma história apenas sua. Tudo se passou a propósito da greve aos exames, em Junho de 69. O ex-repúblico conta que ele e mais dois colegas correram todo o bairro do Calhabé com uma sovela, um instrumento com que os sapateiros coziam os sapatos, furando todos os pneus dos “traidores”, que não fizeram greve. Até hoje permanece o anonimato de quem fez o quê a quem, sendo que “agora já se pode contar”, graceja o ex-repúblico. Mas as histórias são mais que muitas em pleno 69. João Martins lembra que “às quatro da manhã [do dia 17 de Abril] apareceu a polícia de choque e começou a ferir muita gente”. O embate entre os cerca de 100 estudantes que lá se encontravam àquela hora foi muito violento e o ex-repúblico lembra
O Conselho de Repúblicas tinha um representante de cada casa
Por precaução, nas repúblicas também se vigiavam os agentes da PIDE
Teresa Carreiro, as Repúblicas eram mesmo “ilhotas democráticas”, onde havia eleições, e onde a justiça deveria estar sempre à mesa. As muitas conversas que aconteciam dentro de cada uma das repúblicas eram intermináveis, e ultrapassavam em muito a habitual hora do jantar. A discussão e a democracia andavam de mãos dadas, e as ideologias que já tinham noites e noites de discussão, eram transportadas para o Conselho de Repúblicas (CR), que como explica o antigo residente da Real República Ay-ó-Linda, João Martins, “era aceso e onde estava presente um representante de cada república”. As reuniões do CR acabavam sempre tarde, pois no debate, a troca de ideias era uma constante. Falavase do regime, da universidade, da cidade, do reitor e seus seguidores, e tudo, tudo o que os repúblicos entendiam ser importante para o futuro da academia coimbrã. “Pelo meio havia uns copos”, graceja João Martins, “mas isso não impedia que houvesse um nível de formalidade”. Para Teresa Carreiro “o CR foi muito importante sobretudo a partir do fenómeno Humberto Delgado”, pois o regime começava a deixar marcas que o tempo não conseguia apagar. Foi então que, por
também a presença de Marinho e Pinto, “ele apanhava sempre”. Se para uns estar entre os confrontos era uma opção, para outros não estar era uma obrigação. “Os paizinhos que não concordavam com a greve [aos exames] e que temiam pela segurança dos filhos levavamnos para casa”, remata João Martins. E porque a violência foi uma das armas utilizadas no confronto entre polícia e estudantes, os episódios sucediam-se. Contudo, Rui Namorado explica que nas Repúblicas também se vigiavam os agentes da PIDE: “havia uma central de escuta dentro de uma das repúblicas que tinha a frequência da polícia, e sabíamos o que eles estavam a dizer e onde o estavam a fazer”. Se, por um lado, a violência era a arma do regime, por outro existiam “as operações de charme”, que, segundo Teresa Carreiro, “eram pouco comentadas na altura, mas eram habilmente utilizadas nos cafés por muitos estudantes para trazer as meninas para a causa revolucionária”. Quando faltavam apenas cinco anos para o golpe que faria cair o Estado Novo, a estudiosa sublinha que “a década de 60 veio a dar as flores em Abril de 74”.
O CONSELHO DE REPÚBLICAS reunia-se sempre numa república, que variava de reunião para reunião
entre vontade de mudança e espírito de equipa, no dia 7 de Março de 1969, pela primeira vez, uma lista do CR vence a corrida à DirecçãoGeral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC).
“O Badalo” revolucionário O CR foi o motor que ressuscitou a imprensa estudantil. O Badalo, jornal do organismo das repúblicas, era a forma privilegiada de difusão de ideias das várias repúblicas, pois foi o verdadeiro eco da revolta dos estudantes contra a conjuntura vivida. Contudo, foi uma aventura perigosa construir um jornal que não estava propriamente enquadrado
nas linhas do regime. A impressão d´“O Badalo” tinha de ser feita a quilómetros de Coimbra, pois tudo tinha de passar despercebido através da clandestinidade. Quem hoje folheia o jornal, percebe facilmente que tem artigos desordenados que se fragmentam por diferentes páginas, dificultando a leitura. Isto porque os artigos tinham de ser subdivididos para que a PIDE, ao revê-los, não se apercebesse da sua natureza, que estava longe de ir ao encontro das ideologias do regime fascista. Depois de uma viagem turbulenta, os jornais chegavam, finalmente, às faculdades, e em menos de 15 minutos esgotavam-se, devido à natureza democrática e combativa que imprimia nas suas palavras. E
essa mesma palavra passava tanto e tão depressa que a PIDE não demorava muito a aparecer e a apreender todos os exemplares que encontrasse, como recordam os episódios de Celzo Cruzeiro na obra “1969 Coimbra – A Crise Académica, o Debate das Ideias e a Prática, Ontem e Hoje”. O antigo membro da Real República Os Pyn-Guyns, e actual professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Rui Namorado, hoje com 67 anos, nota que “o facto de o CR publicar um jornal era por si só uma afronta”. Apesar do activismo d´“O Badalo” se afirmar com todas as letras, este jornal só conheceu três edições, uma em cada ano de 66, 67 e 68.
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17 1969 ABRIL
ACADEMIA ANDRÉ FERREIRA
CER
TEUC
GEFAC
AS ACÇÕES DE RUA, as peças de teatro, os espectáculos musicais e os cartazes eram utilizados para que a mensagem revolucionária se espalhasse pelos estudantes
A contestação dentro de portas... Os organismos da AAC foram os pilares que fizeram vingar os propósitos de uma luta e que viam nas actividades um meio de resistência Sara Oliveira Por entre as portas dos organismos autónomos conspirava-se contra o governo de Américo Thomaz e a revolta protegia-se e alimentavase dentro da pequena muralha que tinha o nome de Associação Académica de Coimbra (AAC). “Todo aquele espaço era uma zona acastelada, quase castrense da Academia”, defende um dos antigos membros do Centro Experimental de Rádio (CER), que hoje deu lugar à actual Rádio Universidade de Coimbra, João Sansão Coelho, um jornalista de 59 anos. O CER emitia experimentalmente, explica o jornalista, e num circuito interno dentro da AAC, através de pequenas colunas. Apesar disso, Sansão Coelho sublinha que “ se faziam muitos programas gravados com conteúdos vanguardistas que emitiam em várias emissoras, e que reflectiam a própria revolta contra o regime”. Contudo esses programas só podiam ser enviados para as antigas colónias, pois “não havia propriamente uma censura e o analfabetismo imperava nesses sítios”, defende. A necessidade de liberdade de expressão reinava e era também por isso que os estudantes de Coimbra lutavam. “Tínhamos uma
programação que de um modo geral nos deixava sair um pouco daquilo que estava no papel e mandar umas ‘bocas’ através dos microfones”, refere. Quando em 1968 a lista do Conselho de Repúblicas (CR) se preparava para vencer a corrida aos corpos gerentes da AAC, foram os organismos autónomos que mais directamente estavam ligados ao CR que foram consultados em primeira instância, nomeadamente o Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), o Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), o Coro Misto, a Tuna Académica da Universidade de Coimbra (TAUC) e o Coral. Para Luís Pais Borges, antigo membro do Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra (GEFAC), hoje com 59 anos, “a luta do GEFAC era igual à do TEUC ou à do CITAC, e nessa altura havia um maior empenhamento por valores como a autonomia da UC”. Pais Borges considera que “era mais fácil desenvolver-se esquemas e minar as actividades do regime porque os organismos tinham alguns meios para dominar a propaganda, a começar desde logo pelos espectáculos que davam, pois aproveitava-se sempre para passar alguns recados”, enfatiza. A luta era transversal aos diversos organismos. “Fazíamos acções de rua, intervenções nos jardins da AAC, com manifestações e peças que de algum modo transmitiam algo”, refere Maria João Delgado, antigo membro do CITAC, agora com 63 anos. “Houve nitidamente muita coisa que saiu das nossas cabeças e dos nossos corpos durante essa altura”, lembra.
Os dias que precederam o 17 de Abril foram turbulentos. O TEUC preparava-se para a estreia da peça “A ilha dos escravos”, que iria a palco poucas vezes. O antigo membro do grupo de teatro mais antigo da academia, José Oliveira Barata, hoje com 60 anos, era o protagonista da história e conta que “na peça estavam retratadas uma série de desigualdades sociais entre patrões e escravos. Essa ‘ilha’ era Portugal”. A censura não tardou e, o antigo membro do TEUC explica que depois de uma longa conversa que teve com o ministro José Hermano Saraiva, “ele acabou por banir o espectáculo”.
A crise de 69 na primeira pessoa Marcelo Ribeiro, ex-membro do CITAC, fez parte do grupo que marcou presença na sala da inauguração do edifício das Matemáticas e foi membro do grupo que dirigiu os piquetes da greve académica posta em prática a 2 e 4 de Junho de 1969. Confessa que “é um orgulho ter participado sempre em todas as lutas académicas contra o regime vigente quer político quer universitário”. O ex-membro do CITAC foi preso várias vezes, e numa dessas vezes a Polícia Internacional de Defesa do Estado disse-lhe com todas as letras: “você é mesmo um revolucionário por conta própria”. Não foi interdição ter de estar presente no edifício das matemáticas no dia 17 de Abril de 69 para mudar a história do movimento estudantil em Portugal, até porque a revolta não se resumiu apenas àquele. Maria João Delgado pode comprová-lo. “No dia da grande re-
volução não estava naquela sala porque tinha ido com uma colega resolver um problema de censura devido a uma peça que estava já na fase terminal e que pelos vistos não podia sair”. Mas ressalva que “estavam muitos elementos do CITAC na sala onde houve o primeiro embate com o Alberto Martins quando pediu a palavra”. Para além disso, Maria Delgado explica que “havia elementos do CITAC muito bons ao nível da ilustração e foram eles os autores de muitos dos cartazes fantásticos que apareceram na AAC, de pura sátira e contestação”. Já Sansão Coelho conta que os momentos que fizeram da sala 17 de Abril o que é hoje ficaram registados. “O Maia, um amigo meu, foi gravar o que aconteceu na sala 17 de Abril. A determinada altura ele chegou, e pouco tempo depois, já estava a ouvir a gravação. Infelizmente, teve tanto medo, que ficou com a fita e escondeu-a”, explica o jornalista. A fita, essa, foi escon-
Viver intensamente e inventar diferentes formas de luta era o caminho para a vitória dida no telhado de uma das casas do Terreiro da Erva, na Baixa de Coimbra, mas nunca mais foi encontrada. Mas não foram poucos os episódios que marcaram o dia 17, que percorreram a cidade do Mondego de lés a lés e que até hoje não foram esquecidos. “Recordo-me de andar a tentar captar os passos
CORO O MIST
numa manifestação, com um gravador desde a [avenida] Sá da Bandeira até quase à Praça da República, andando ali pelo chão, na busca de algum som para o CER”, conta João Sansão Coelho com entusiasmo. “O esforço que os organismos desenvolviam era feito através dos espectáculos”, sublinha Luís Pais Borges, que travou algumas batalhas ao utilizar os espectáculos do GEFAC para transmitir as mensagens em que os estudantes acreditavam, e que o governo desaprovava redondamente. “Num dos espectáculos a sala foi mesmo esvaziada e fomos todos para a esquadra, enquanto houve um ‘saque’ ao autocarro a fim de a PIDE tentar descobrir mais alguma coisa de que não gostasse”, lembra o antigo membro do GEFAC, sendo que “as dificuldades eram mais que muitas e aquilo [GEFAC] não era folclore nenhum, porque o regime apertou muito as malhas”. Uma maior consciência da responsabilidade que os estudantes tinham dentro da sociedade portuguesa e a valorização da contestação contra o governo e as suas políticas são as consequências que Maria João Delgado afirma terem vindo de uma luta “árdua” que não se ficou apenas pelo papel, mas que teve nos actos e dentro da academia a sua bandeira.
TAUC
CITAC
12 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969 ABRIL
PERFIL CELSO CRUZEIRO • ELEMENTO DA DG/AAC EM 1969
CELSO
ESTÁ MAIS VOLTADO
PEDRO CRISÓSTOMO
PARA O FUTURO
ESCRITÓRIO da casa em Cajadães, Oliveira de Frades, onde Celso Cruzeiro vive
Cedo veio estudar para Coimbra e cedo se deixou envolver pelo movimento estudantil. A sua visão apartada do aparelho partidário repele-o da máquina. Uma visão despegada que o leva a ser tido como o cronista da crise académica. Por Pedro Crisóstomo steve envolvido na crise até ao osso. A imagem que têm dele é do rapaz de 21 anos, de barba comprida e de casaco de cabedal preto, na soleira da porta das Matemáticas, de microfone em punho, a puxar alto pelos colegas. A voz rouca e sincopada, inconfundível à distância, é a mesma de há 40 anos na força e na convicção, tão firme quanto a utopia que o faz correr há 63 anos. Celso Cruzeiro é um histórico da crise – para muitos o eterno utópico do movimento – hoje conhecido advogado em Aveiro e a viver a um minuto da casa que o viu nascer, na Aldeia de Cajadães, Oliveira de Frades. Tem perfeita consciência do que representou no 17 de Abril e já esperava que 40 anos depois não o largassem para falar da crise. Não nega o passado, de que se orgulha sem egocentrismos, mas prefere falar da outra crise. Ou melhor, das crises que por aqui andam… E aí sobe o tom da voz, quase gritando e gesticulando muito. É tudo menos memorialista, porque viver com a saudade de um acontecimento de quatro décadas é como virar as costas ao futuro, assume. E Celso está mais voltado para o futuro. Já em 69 estava, mas o que o lhe importa agora é abrir novos caminhos e novos horizontes políticos. O livro que escreveu – “Coimbra,
E
1969” – foi “um ajuste de contas com a crise”, que ficou saldado por aí, revela a irmã, Manuela Cruzeiro. Quando há 20 anos lançou a obra – onde faz a leitura cronológica e política dos acontecimentos – ficou surpreendido com a recepção pública, que pensava interessar a pouco mais do que os que viveram a data. “E 40 anos depois, ainda querem saber o que se passou”, ironiza Celso, com um sorriso no rosto. Aos 16 anos, vem estudar Direito para Coimbra, onde habita o Palácio da Loucura. Pio Abreu, que com ele partilhou casa, recorda que é ali que o amigo desperta para a ideia de fazer um movimento que envolvesse todos os estudantes da universidade. “Ele queria pensar nas questões filosóficas, a economia, o mundo”. Quando, em Março de 69, a lista do Conselho de Repúblicas vence as eleições para a associação académica, torna-se responsável pelo pelouro cultural com a motivação de desenvolver um conjunto de centros de estudos. Mas com o despoletar da crise a meio de Abril, “a luta passou a ocupar tudo, tudo, tudo”. A direcção estava permanentemente em reuniões, quase 24 horas por dia. Foi aí que Celso deu mais de si, ajudando a transportar para dentro da universidade a discussão sobre o saber, o ensino e as formas como eram ministrados.
Foi acusado, como muitos, de participação directa na contestação do dia 17 de Abril, de convocar assembleias magnas, de actividade panfletária e injúria a professores. Nada que o fizesse mover. Era tempo de perder ou tempo de ganhar. E, nisso, Celso Cruzeiro “era muito sanguíneo, sobretudo quando era preciso convencer”, elogia Pio Abreu. Manuela Cruzeiro lembra com precisão a Assembleia Magna de 28 de Maio – aquela onde decidida a greve aos exa-
“Tinha um entusiasmo arrasador e as pessoas ficavam convencidas quando ele falava” mes – em que “a coisa esteve muito balançada”… até ao momento em que o irmão “segurou a assembleia”. “Tinha um entusiasmo arrasador e as pessoas ficavam convencidas quando ele falava”, reforça Pio. A ajudar, havia os comunicados “muito bemfeitos” a chamar para a luta, que eram da responsabilidade de Celso. “Não tinham aquela fria linguagem dos comunicados comuns”, diz Manuela. “Às vezes, eram duas e três páginas, que líamos sofregamente. Líamos e quase chorávamos”. E cita,
de cor, uma passagem de um comunicado escrito pelo irmão, a partir de um poema de José Gome Ferreira: “Foram demasiados os companheiros de bibe e pião que ficaram pelo caminho”.
O ensaio à sociedade Sobre os movimentos estudantis de hoje, Celso diz-se desiludido com o caminho dos estudantes. “As direcções muitas vezes estão sintonizadas com o poder e eu gostava mais de ver a juventude a discutir muito mais do que as medalhas”. Acha que as lutas perderam algum sentido e que os líderes se tornam “adultos de mais e muito conservadores”. Sinais de novos vícios: “a malta jovem já não tem esperança de ter um emprego. Existe uma cultura de desesperança que começa a ter lógicas ligadas aos tráficos vários, à hierarquia administrativa, aos chefes, aos ‘gangs’”. E depois vem a censura, uma certa asfixia sobre os movimentos que contestam o poder. Na democracia, já em 1995, escreveu um romance, “Não pode ser”, também ele político – como não podia deixar de ser. Celso é um político – na teoria e na prática. Já o era, consistente, em 69. Mas um político daqueles que na prática nunca se fechou sobre si próprio. Embora reconheça a importância da actividade partidária, a estrutura nunca o sedu-
ziu. Da única vez que se filiou num partido foi em 1974 – na Comissão Política Nacional do Movimento de Esquerda Socialista, extinto sete anos mais tarde. Chegou a subscrever o manifesto de fundação do Bloco de Esquerda, mas a independência que exige a si mesmo traz consigo a obrigação de “não ficar prisioneiro de favores que o impeçam de dizer de caras aquilo que pensa”, esclarece a irmã. Celso sabe que está longe de encontrar um mecanismo de sociedade definida – “ultrapassando os obstáculos de uma teoria repetitiva do passado” –, mas nem por isso deixa de abrir caminho a um projecto diferente de vida. O livro que lançou em Novembro passado, “A nova esquerda”, é o resultado de 13 anos de investigação extensa, também ao lado da família e dos amigos, que não tem vergonha em esconder – os filhos, os netos… e a mãe. Com 91 anos, Orsina Rocha vai a meio de “Os Fidalgos da Casa Mourisca” enquanto os dois filhos mais velhos conversam. Quase não é preciso fazer perguntas. Discutem. Atiram farpas. Celso repete que é preciso discutir o futuro. Manuela acena com a cabeça e acrescenta que o caminho é aproximar os jovens. Ele não podia estar mais de acordo. Irmãos. Que viveram a crise. Como não podia deixar de ser.
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ENTREVISTA CARLOS BAPTISTA • PRESIDENTE DA JUNTA DE DELEGADOS DE CIÊNCIAS E DO CF/AAC EM 1969
“Falávamos sempre, oficialmente ou não” As Juntas de Delegados dos estudantes e os organismos da AAC assumiram um papel preponderante na introdução da contestação dentro das faculdades. Por João Miranda Como descreve todo o processo que conduziu a que em 1969 se realizassem as primeiras eleições livres na Associação Académica de Coimbra? Há um movimento que antecede essas eleições, que é o movimento do abaixo-assinado. Abaixo-assinado que consegue milhares de assinaturas a exigir eleições para a Associação Académica de Coimbra. Esse movimento é encabeçado por uma comissão chamada a Comissão Pró-Eleições (CPE). Praticamente, a crise nasce aí. É o movimento da CPE que vem dar origem à organização nas faculdades e na própria associação. São eleitos… Há duas listas. Uma de direita e uma lista patrocinada pelo Conselho de Repúblicas, mas com a colaboração dos organismos autónomos, que também propunham pessoas para as listas. Eu sou um caso, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, embora também pertencesse à CPE. Qual era a posição da CPE sobre as comissões administrativas (CA)? A CA era uma imposição ministerial para sancionar a direcção de 1964. Não fecharam a associação, propriamente dito, mas puseram uma comissão a geri-la. Os estudantes estavam alheios à sua própria associação. Os organismos autónomos não eram afectados, continuamos a ter eleições livres nos organismos. Por isso, o movimento foi feito, de certa forma, no exterior com o Conselho de Repúblicas e no interior da associação com os organismos autónomos.
inauguração. Nas vésperas, o reitor informa, numa resposta um pouco dúbia, “não podem participar, porque o protocolo já está feito e não podemos inscrever os estudantes no protocolo”. A direcção decidiu falar na mesma. E mobilizámos os estudantes em torno da participação na inauguração. E foi o que aconteceu. O [Alberto] Martins pediu a palavra, eles não lha concederam. Também deixaram na expectativa, não disseram que sim nem que não. E depois abandonaram a sala e nós fizemos a inauguração, que foi considerado na altura a verdadeira inauguração do edifício. Falou o Martins pela associação, eu li a carta aberta da junta de Ciências, o Barros Moura falou em nome da Comissão Nacional de Estudantes Portugueses, o Celso Cruzeiro também falou… A partir daí, eles tomam a decisão de sancionar oito alunos, os seis da DG/AAC, eu pela junta de Ciências e o Barros Moura. Sem esse trabalho mais descentralizado, com o apoio das juntas e dos organismos autónomos, teria sido possível desenvolver o movimento à volta do 17 de Abril? Não. Politicamente na Academia só havia um partido a funcionar com militantes, que era o partido comunista, onde estava eu e estavam muitos estudantes. Entretanto, com o movimento do abaixo-assinado, criou-se uma estrutura que era o CONGE, que, de certa forma, dirigiu politicamente. Portanto, havia uma organização que tem um papel muito importante, porque havia estudantes de todas as faculdades no CONGE, havia estudantes que dirigiam organismos autónomos, havia estudantes das repúblicas nesse CONGE. E portanto, as informações circulavam muito rapidamente e era possível inclusivamente testar as iniciativas, nas tácticas que eram utilizadas. Por outro lado, na associação só podiam participar os estudantes que eram sócios e só uma minoria de estudantes é que o eram. Para participarem oito mil estudantes na greve, como participaram, era necessário ir mais longe e esse ir mais longe era a junta , que conseguiu levar o movimento estudantil para dentro das faculdades, quando ele, nas crises an-
teriores, se manifestou sempre em torno da associação. No dia 17 de Abril estava dentro do edifício. Em algum momento pensaram que Alberto Martins não viesse a falar? Não. Falávamos sempre, oficialmente ou não. Acabou por se suceder a segunda opção, mas falaria sempre, isso não estava excluído. Inclusivamente, nós já tínhamos uma carta da junta para usar durante a cerimónia e nessa mesma manhã a junta reuniu com os estudantes para decidir essa participação e quem devia falar. Tinham previsto que aquele momento viesse a desencadear um movimento, como aconteceu? Penso que sim. Era cedo para desencadear o movimento, mas mais
CONTINUA A HAVER TODAS AS RAZÕES [PARA UM 17 DE ABRIL] tarde ou mais cedo iria haver repressão. Porque a repressão estava sempre no ar. O Queiró ou o Miranda Barbosa tinha dito que “se houver agitação em Coimbra, nós expulsamos três ou quatro estudantes e o problema está resolvido”. Não expulsaram três ou quatro, expulsaram oito e não parou, tiveram que castigar cerca de duzentos. E tiveram uma greve aos exames com oito mil, mais de 86 por cento da universidade.
respeito aos estudantes e a politização ia-se fazendo sempre, em crescendo, em torno destas questões. E estávamos a viver também o problema da Guerra Colonial. Havia um meio favorável ao desenvolvimento deste movimento. E Coimbra, a partir de 69, foi um paiol em termos políticos, onde houve de facto muita pulverização em grupos partidários e é natural que isto crie uma base de apoio a qualquer movimento para o derrube de qualquer regime, a qualquer momento. Esta luta extravasou a comunidade estudantil… Nós forçámos para que extravasasse. Com a existência da censura havia a preocupação em abafar o que se passou em Coimbra. Curiosamente, a primeira pessoa que veio divulgar a existência de tumultos em Coimbra foi o próprio José Hermano Saraiva, quando apareceu a fazer o discurso dele. Aparentemente, nos jornais, durante todo aquele mês, havia um país perfeitamente calmo e aparece um ministro a dizer que em Coimbra estava a acontecer qualquer coisa. Mas utilizámos outros meios, fizemos a carta à nação, que foi divulgada na final da Taça e no S. João.
da direita? Não tinham hipótese, não havia espaço de manobra para eles. Tinham os seus próprios jornais, os seus próprios grupos mas durante aqueles meses de greve não se manifestaram. Mesmo os professores de direita. O 17 de Abril ainda é uma data presente tanto na comunidade estudantil, como na sociedade? Em Coimbra é uma data importante. Não sei se no resto do país… Os jornais todos os anos recordam. Foi um movimento sui generis. Existe alguma deturpação histórica há volta da crise? Até hoje não. Acredito que haja uma ou outra pessoa que se sinta no direito de assenhorear o movimento, mas foi um movimento de oito mil estudantes. Ainda faz sentido, hoje, um 17 de Abril? Há coisas que o 25 de Abril trouxe, que não tínhamos. Mas as coisas mudaram. Continua a haver todas as razões.
Neste momento, qual foi o papel dos estudantes
Que importância atribui a toda a onda de contestação no processo histórico do derrube do fascismo? Foi um momento político especial. Havia uma expectativa em torno de uma possível liberalização do regime. Também optamos por outro caminho. No movimento estudantil nunca havia uma politização directa, começávamos os movimentos com questões que diziam directamente
Como recorda o espaço temporal entre o início do mandato e o dia de 17 de Abril? Foi um tempo de mobilização? Foi um tempo muito curto. A Junta de Delegados de Ciências já estava a trabalhar em vários sectores dentro da faculdade, quando surge a notícia de que vai ser inaugurado o edifício das Matemáticas. Nessa altura, pensamos “nós devemos também participar”. Porque uma das exigências era que os estudantes também participassem em tudo o que dizia respeito à sua faculdade. A própria direcção [da AAC] assumiu que devia ter um papel na inauguração do edifício. Falámos com a reitoria. Não nos deram uma resposta definitiva de que sim pode“A PRIMEIRA PESSOA que veio divulgar a existência de tumultos foi o próprio Saraiva.” ríamos participar na
ANDRÉ FERREIRA
14 | a cabra | 17 de Abril de 2009 | Sexta-feira
17 1969 ABRIL
MEMÓRIA D.R.
D.R.
AS REUNIÕES de alunos foram uma constante em 69
ra bastante raro ir dormir numa cama, o que aliás não era muito seguro; a maior parte das vezes dormia uma ou duas horas no chão ou num sofá”. Não, não é um extracto de um diário de guerra. Trata-se, sim do testemunho de Joaquim Matos Pereira, membro da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) em 1969. Era este o ambiente vivido em Coimbra no pós17 de Abril. O luto académico, decretado a 22 de Abril, em Assembleia Magna, foi a forma mais forte de protesto que os estudantes encontraram contra as prisões de outros colegas. O antigo estudante de Medicina, Lauro Ramos, recorda que magnas eram “muito participadas” e que “toda a Academia se interessava”, provocando, por vezes, “um ambiente escaldante”. De resto, as Assembleias Magnas tornaram-se símbolos da participação e do activismo estudantil durante a crise académica, onde invariavelmente reuniam milhares de estudantes. O vice-presidente da Assembleia “
E
Geral da AAC em 1969, Joaquim Gil, fala com entusiasmo da assembleia de 28 de Maio, onde cerca de seis mil estudantes concordaram com a greve aos exames: “Era empolgante, porque era a primeira vez que eu via os Jardins da AAC completamente cheios. Aquilo era gente que ia decidir se ia ou não fazer greve. A imagem que me ficou foi a daquela gente imensa a dizer quase unanimemente que a iria fazer”. A greve aos exames foi também uma forma de a comunidade universitária se fazer ouvir, com resultados massivos: em 1969, pouco mais de dez por cento dos estudantes foi fazer exames. Contudo, na altura, corriam histórias de que quem fosse tinha a vida facilitada, bastando marcar presença para ter a passagem à disciplina assegurada. O antigo presidente da secção social da AAC, Carlos Santarém, não confirma, mas também não desmente a veracidade destas histórias: “não pode ser provado, mas há depoimentos. A verdade é que ao governo interessava ter uma média de ida aos exames e de passagens”.
ACÇÃO DE LUTA a favor da greve aos exames
O que é certo é que os estudantes que foram aos exames, contra o que foi decidido em Assembleia Magna, ficaram com uma péssima imagem junto dos seus colegas. “Havia, na associação, listas com os nomes deles”, recorda Carlos Santarém. Hoje, com 68 anos, lembra que “durante anos e anos, um traidor era um traidor”.
ciais, vários estudantes foram perseguidos pela GNR (Guarda Nacional Republicana), tendo entrado no Mercado Municipal.
A cidade ocupada Perante o aumento de contestação e de manifestações anti-regime, foram enviados para Coimbra contingentes de polícias e militares. Os acessos à universidade foram guardados e qualquer exteriorização de acções contrárias à ditadura eram contidas pela polícia de choque. A história de Carlos Santarém é elucidativa do que se vivia: “uma vez, na Praça da República, houve uma carga policial em que a polícia de choque entrou à cacetada a sério! Eu estava na AAC, do lado das cantinas, e um polícia de Coimbra disse-me: ‘fujam que estes gajos são umas bestas!’. O próprio polícia dizia isso e de facto era assim”. Durante uma das cargas poli-
A greve aos exames foi decidida pelos seis mil estudantes presentes na magna Lá, os agentes da polícia provocaram vários danos materiais aos vendedores. Como pedido de desculpas, os estudantes, no dia seguinte, compraram todas as flores do mercado e foram distribuí-las pela Baixa – da rua Ferreira Borges à Portagem. Segundo Carlos Santarém, “esta era uma maneira de haver uma comunhão entre os estudantes e a cidade”. Dias de-
pois, teve lugar a chamada “Operação Balão”. Cada estudante levou um ou mais balões desde a sede da AAC até à Portagem, onde os largou, criando “um grande impacto visual”, recorda o antigo estudante de Direito. Ao mesmo tempo, havia espaço para o humor. Lauro Ramos conta a história de um colega a quem foi pedida a identificação por um polícia a cavalo. O colega não resistiu e mostrou o cartão, não ao polícia, mas ao cavalo. Resultado: detenção. Também Carlos Santarém sorri ao lembrar-se de como gozavam com a polícia: “como os agentes eram de fora não conheciam as ruas e ruelas da Alta, a malta metia-se com eles e gritava. Eles vinham atrás de nós e depois já não sabiam bem onde estavam!”. Joaquim Gil resume a vivência dessa época dentro “de um espírito poético, talvez por influência do Maio de 68”, em que “a contestação não entrava directamente nas motivações políticas”. O antigo estudante lembra que “o regime ficou mesmo abalado [com a adesão à greve aos exames]” e fala,
LUTO ACADÉMICO A Crise Académica de 1969 foi marcada pela contestaçã operações Balão e Flor e, sobretudo, a greve aos exam ao 17 de Abril. P
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MEMÓRIA D.R.
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ESTUDANTES largam centenas de balões como forma de protesto
saudoso, numa “beleza guerreira, que atingiu o seu máximo com as escadas monumentais cheias de capacetes de ferro e arame farpado por todo o lado”.
primeira página do livrinho de Santarém, todo ele uma crítica à presença policial em Coimbra. Esta “queima” tem uma Serenata
A crise em desenhos A luta estudantil de 1969 também era feita com papel e caneta e Carlos Santarém é a prova disso. Os seus desenhos fizeram grande sucesso durante a crise, como refere Joaquim Gil: “O Santarém fazia uns bonecos que foram um êxito e eram distribuídos por todo o movimento”. Um dos trabalhos é um pequeno livro que “saúda” a Queima das Fitas de 1969, organizada pelo governo. Na realidade, a maior festa dos estudantes não foi realizada nesse ano, por ordem dos grelados. Contudo, Carlos Santarém celebrou-a à sua maneira. “Como é do conhecimento geral, não se realizou a tradicional festa da Queima das Fitas. O governo, sempre atento aos interesses dos seus súbditos, resolveu tomar a seu cargo, embora tardiamente, a sua realização”. É assim que se pode ler na
A caricatura foi muito utilizada para os estudantes se unirem na luta em que os polícias, rodeando a Sé Velha, são os verdadeiros artistas; um baile que mais não é do que uma carga policial; na Garraiada, os carneiros são os “traidores” que fizeram exames; a tarde desportiva integra o atletismo (estudantes que fogem da polícia), o automobilismo (a polícia de “jeep”) e o hipismo (cavalos montados nos agentes); e, finalmente, o cortejo
A UNIVERSIDADE cercada pela GNR
conta com carros “muito pouco variados”… pois eram todos da polícia. Nota-se, sempre, a grande ironia nos trabalhos de Carlos Santarém. Os estudantes que fizeram os exames, os chamados “traidores”, constituem outro dos grupos visados pelo artista. Um polícia que leva por uma trela um estudante para o exame e um “traidor” com orelhas de burro a um canto sob as palavras “Orgulhosamente só” (conhecida frase de Salazar), são alguns exemplos. Para além da mensagem que transmitiam, estes desenhos tinham outro objectivo. Carlos Santarém era presidente da Secção Social da AAC e a sua grande missão era fazer chegar tabaco, refrigerantes, bolachas e outras guloseimas aos estudantes presos, “mas para isso era preciso dinheiro”, diz. Então, os desenhos que fazia foram vendidos para angariar fundos e enviados para todo o país. “Eram uma maneira das pessoas saberem o que se passava cá”, lembra. Ser autor de desenhos tão famo-
LUTA ACADÉMICA ão. Assembleias Magnas com milhares de estudantes, as mes foram os pontos altos dos meses que se seguiram Por João Ribeiro
sos tornou Carlos Santarém num dos estudantes referenciados pelas autoridades, como o próprio faz questão de mostrar num documento da Polícia Judiciária (PJ), sem esconder algum orgulho. No entanto, nunca foi preso, embora estivesse ciente desse risco. “Acreditava que podia ser preso, mas quando se tem 20 anos não se pensa muito nisso”, afirma. Apesar da sua segurança, o antigo estudante conta um episódio em que esteve perto de ser detido: “Uma vez estava uma colega com os meus desenhos no Palácio da Justiça [antiga sede da PJ] e estava o inspector a perguntar quem os tinha feito. Eu também estava lá, mas a entregar tabaco e doces. Não fui preso por acaso”, desabafa. Sorte diferente teve Joaquim Matos Pereira. “Uma noite das raras em que fui dormir a casa, a polícia foi-me buscar cedo à cama, às seis da manhã e fui transportado para a AAC, que tinha sido ocupada pela polícia”, conta o antigo estudante de Direito. Não, não é o extracto de um diário de guerra.
A SÃ DEMOCRACIA PARTICIPATIVA As magnas de 69 ficaram na história tanto pela participação como pelo ambiente intenso que se vivia. O antigo estudante José Dias lembra que, “na altura, havia uma mão cheia de bons oradores”. Tão bons que “a malta estava em silêncio e só depois é que batia palmas”. A par das assembleias – realizadas no Pátio das Escolas, no Ginásio (Cantina dos Grelhados) ou nos Jardins da AAC – havia uma componente de animação. Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira eram alguns dos artistas que participavam. E não havia magnas curtas. Muitas começavam à tarde, mas “sabíamos que se prolongavam pela noite”. Depois, jantava-se e José Dias lembra-se em especial da tasca do Raul e das sandes de dois andares com queijo e presunto. Música, sandes e discussão à parte, o actual presidente do Conselho da Cidade define as magnas de 69 como exemplos da “sã democracia participativa”.
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TAÇA DE PORTUGAL
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NO TOPO SUL DO ESTÁDIO, as faixas de protesto eram erguidas e rapidamente enroladas para evitar reacção da PIDE
A final mais politizada de sempre Desde o início da crise, a AAC mostrou-se solidária com os estudantes. A Taça de Portugal de 1969 foi conquistada pelo Benfica, mas quem esteve na final apercebeu-se que em Coimbra se estava a travar uma luta política Catarina Domingos
conversas de esclarecimento.
A caminhada até à final A final da Taça de Portugal de 1969 pôs frente a frente o Benfica e a Académica. Os encarnados repetiam a presença no Jamor pela 15ª vez e os estudantes chegavam à final depois de deixar pelo caminho o Vitória de Guimarães e o Sporting. No prolongamento, Eusébio desfez o empate a uma bola e deu a vitória ao Benfica, que assim conquistou a 13ª Taça de Portugal do seu palmarés. Mas não foram os números deste encontro, nem o golo do Pantera Negra os aspectos que mais se destacaram naquela final de 22 de Junho. Houve um aproveitamento político do percurso da Associação Académica de Coimbra (AAC) para dar visibilidade aos movimentos que estalaram no dia 17 de Abril. “Não era só um jogo de futebol que estava a decorrer e quem foi ao estádio ficou com a certeza de que algo se passava que estava silenciado”, sublinha o técnico da Académica da altura, Francisco Andrade. Dentro de campo, a equipa da Académica, composta por estudantes, solidarizou-se com os outros universitários, adoptando o luto académico. Nas bancadas, circulavam faixas de protesto, comunicados e faziam-se
A partir do momento em que começou a crise académica, a equipa de futebol também se manifestou e respeitou as regras do protesto. “Éramos estudantes universitários, fomos nós próprios que votámos em Assembleia Magna o luto académico que realizámos”, conta Mário Campos, antigo jogador da Académica. No encontro dos quartos-de-final, com o Vitória de Guimarães, a AAC entrou em campo com uma camisola preta e um adesivo branco sobre o emblema em sinal de luto académico. Francisco Andrade relata que os polícias “se apanharam desprevenidos”, mas que no jogo seguinte, contra o Sporting, “já tiveram reacção”. Depois de vencer os vimaranenses por 6-2, no conjunto das duas mãos, a Académica tinha pela frente a equipa leonina. Nas meias-finais, a turma de Francisco Andrade deslocou-se a Alvalade e manifestou-se mais uma vez, vestindo equipamento branco, com uma braçadeira preta. A secção de futebol justificou-se junto da federação, alegando que a cor negra atraía mais radiação solar. Mesmo assim, o uso de equipamentos alternativos foi proibido. Na se-
gunda mão, no Calhabé, em Coimbra, a Académica utilizou “o equipamento preto com uma faixa branca, que foi proibida”, como conta o antigo jogador Vítor Campos. Em opção, os jogadores voltaram a pôr um adesivo branco por cima do emblema. A Académica venceu os dois encontros e dava seguimento a “uma grande caminhada em termos desportivos”, como classifica Mário Campos.
O Estádio do Jamor recebeu mais 15 mil pessoas do que a sua lotação À medida que os resultados apareciam e a final do Jamor se aproximava, o entusiasmo era maior. “O ambiente do balneário reflectia uma grande euforia por estarmos a colaborar, através do desporto, numa grande manifestação que tinha toda a lógica”, explica Vítor Campos. Já Francisco Andrade considera a caminhada dos estudantes “um momento de grande dificuldade”. “Sentia-se um peso tremendo, que deixou de estar sobre a Academia, para estar
sobre o futebol”.
Jamor: o palco político A Académica chegava à final da Taça de Portugal pela quarta vez na sua história e tentava conseguir, contra o Benfica, o troféu que lhe havia fugido dois anos antes, frente ao Vitória de Setúbal. Contudo, mais importante era a oportunidade de mostrar ao país as razões dos protestos do movimento estudantil. Para isso, estabeleceramse contactos com outras associações académicas do país. “Os estudantes de Lisboa e de Coimbra uniram-se e, pela primeira vez, a Académica tinha mais gente a assistir ao jogo do que o Benfica”, descreve Mário Campos. Dias antes, para garantir que os estudantes não eram barrados à entrada de Lisboa e que chegariam ao estádio, os dirigentes associativos de Coimbra foram para a capital preparar toda a campanha logística. O Jamor tinha mais 15 mil pessoas do que a sua lotação. À hora do jogo, foram distribuídos 35 mil comunicados, com os objectivos da luta estudantil. Antevendo a grande dimensão dos protestos, o Presidente da República, Américo Tomás, e o ministro da Educação Nacional, José Hermano Saraiva, não compareceram no Estádio Nacional. Para não ampliar a dimensão da manifestação,
a transmissão televisiva também foi impedida. A cumprir a parte final do serviço militar em Mafra, o antigo jogador da Briosa, Manuel António, foi directamente do acampamento para a final, levado “por um coronel que era adepto da Académica”. Manuel António, que foi o melhor marcador da época 68/69, descreve um “estádio completamente cheio”. “Os nossos colegas estavam nas bancadas com cartazes de protesto que levantavam e, quando a polícia lá ia, escondiam e apareciam noutro local”, recorda. As faixas, nas quais se podia ler “Estão 36 estudantes presos”, “Melhor ensino, menos polícias”, “Universidade livre” ou “Estudantes unidos por Coimbra”, eram erguidas rapidamente e depois enroladas, antes que a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) as alcançasse. Ainda antes do jogo, enquanto a equipa aquecia num espaço junto aos balneários do Estádio Nacional, Manuel António lembra que alguns polícias tentavam prender estudantes. “[Os polícias] passavam no trajecto para o balneário quando saíam, e como tínhamos de entrar em campo – porque sem nós não havia jogo – mandávamos uns piropos”, relata. Depois de a equipa ter sido proibida de usar braçadeiras e adesivos em sinal de luto, a Académica entrou no Jamor de capa aberta e caída sobre os ombros. Em vez de chegar ao centro do campo em corrida, como era habitual na década de 60, entrou a passo. “Ninguém nos podia mandar correr e a polícia não teve hipótese de nos proibir”, conta Manuel António. Dos seus pés surgiu o golo que pôs a AAC em vantagem a sete minutos do fim. Mas o sonho de dar a conhecer o protesto académico desvaneceu-se, com Simões a levar o encontro para o prolongamento e Eusébio a dar a vitória final à equipa de Otto Glória. “Seria uma grande festa, mas, se calhar, uma grande desgraça, porque aquilo estava cheio de polícia, ia haver confusões de certeza absoluta”, supõe Manuel António. Se a Académica tivesse ganho, já havia combinações preparadas para dar finalmente a voz aos estudantes. Vítor Campos, através de um telefonema do jogador Artur Jorge, que também cumpria serviço militar, teve de transmitir à equipa que, em caso de vitória, os estudantes iriam ao topo sul buscar Alberto Martins para acompanhar o grupo na volta de honra ao estádio. No regresso a Coimbra de autocarro, a equipa foi recebida na Praça da República pelos líderes da contestação académica. “Dois anos antes, quando perdemos para o Vitória de Setúbal, fomos heroicamente recebidos. Esta recepção foi mais silenciosa”, descreve Vítor Campos. Apesar da derrota dentro de campo e da luta desportiva, Mário Campos realça a luta política, que fez deste encontro “a derrota mais comemorada de sempre”. Com Sónia Fernandes
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TAÇA DE PORTUGAL D.R.
O futebol foi a janela para a luta estudantil O regime não deixava passar a mensagem dos estudantes de Coimbra, que teve como principal aliada a equipa da Académica Catarina Domingos A luta coimbrã nascida do 17 de Abril de 1969 teve vários episódios de protesto estudantil, como foram a greve às aulas, o cancelamento da Queima das Fitas e a abstenção aos exames. Mas este dizer “não” a um regime de censura e perseguição teve um poderoso aliado: o futebol. Talvez nunca na história do desportorei em Portugal um jogo assumiu tantos contornos políticos como a final da taça de 22 de Junho daquele ano. “A nossa forma de sermos solidários era a fazer o que sabíamos, que era jogar. A imprensa vinha e apercebia-se que qualquer coisa estava mal”, pensa o antigo jogador Manuel António. O futebol já era, tal como hoje, “um fenómeno desportivo de índole social altamente massificante”, como considera Ricardo Martins, realizador do documentá-
rio “Futebol de Causas”, que também explora a final de 69. Na sua opinião, “a televisão, ainda pouco enraizada na cultura nacional, não conseguia evitar os estádios completamente cheios”, o que também pesou para que o movimento pudesse ganhar cobertura nacional. O desempenho desportivo da Académica na década de 60 contribuía, da mesma forma, para a focalização das atenções. “A equipa tinha sete ou oito internacionais A, o que quer dizer que era das melhores nacionais e com uma força muito grande”, relembra o antigo jogador Mário Campos. A disputa pelos lugares cimeiros do campeonato nacional, a presença na primeira eliminatória da Taça das Cidades com Feira e a ida à final da Taça de Portugal faziam da Académica “a bandeira da Academia e dos estudantes, que nela se reviam e dela se serviam para transmitir as suas lutas”, como defende Ricardo Martins.
Se a AAC tivesse ganho Tal como em 1967, a Académica falhou no prolongamento a conquista da segunda Taça de Portugal da sua história. Os contornos desta final foram políticos, o Estado Novo estava atento e a PIDE mobilizada. “Não é difícil adivinhar que se a Académica tivesse ganho, o sentimento de vitória por parte dos elementos contestatários levaria a uma revolta quase geral contra qualquer símbolo de autoridade presente”, entende Ricardo Martins. Assim, em caso de triunfo, a entrega do troféu a Alberto Martins seria o simbolismo da vitória estudantil. No livro “Académica – História do Futebol”, da autoria de João Mesquita e de João Santana, José Belo, antigo central da Académica na década de 60/70, escreve que “foi melhor assim”. Também João Santana acredita que “se a Académica tivesse ganho poderia ter havido mais pancadaria”. Opinião diferente tem o antigo jogador Vítor Campos: “foi pena não termos ganho porque ia haver uma grande manifestação anti-regime e não tinha de haver medo das consequências”. Em 1974 veio o 25 de Abril e, com ele, o derrube da velha ordem. Mas cinco anos antes, o final da taça representava já uma “grande abertura de janelas para a democracia”, sintetiza o antigo técnico Francisco Andrade. D.R.
O que os jornais não disseram Com a censura, os jornais falaram de uma grande festa e omitiram as faixas de protesto e os comunicados distribuídos no Jamor Catarina Domingos
NO DIA DO JOGO, foram distribuídos 35 mil comunicados
Pelos meios de comunicação da época, controlados pela censura, pouco se soube da movimentação estudantil no Estádio Nacional, a 22 de Junho de 1969. No dia seguinte, os jornais destacavam a 13ª Taça de Portugal “dificilmente conquistada” pelo Benfica, após duas horas de jogo. “A Bola” falava, na primeira página, de “uma grande jornada de futebol, vivida no tal ambiente ‘popularmente solene’ ou ‘solenemente popular’”. No “Diário de Notícias” lia-se “A Taça para o Benfica”, com uma imagem dos dois capitães de equipa a segurarem o troféu. Sobre a ausência do Presidente da República, Américo Tomás, nem uma referência. O chefe de Estado não esteve no Jamor pela primeira vez na história das finais da competição. No dia anterior à final, “A Bola” fa-
lava de uma Coimbra adormecida e “desinteressada da final”. No entanto, podia ler-se que “apesar do desinteresse que se notava em Coimbra, era de prever que a Briosa tivesse uma grande falange de apoio em Lisboa”. O Estádio Nacional recebeu cerca de 70 mil pessoas, enquanto que a lotação máxima era de 54 mil. Para difundir os motivos da luta académica foram distribuídos à hora do jogo 35 mil comunicados. No mesmo dia, 21 de Junho, o jornal desportivo continha a razão da Académica ter jogado de branco na primeira mão das meias-finais da taça frente ao Sporting. A decisão tinha levado a federação a proibir que os jogadores envergassem outros equipamentos que não os tradicionais. A secção de futebol justificava o uso desta cor com um motivo: o calor, “mais absorvido pela cor negra”. Na véspera, também todos os jornais anunciavam que o encontro não ia ser transmitido na televisão.
Mas as verdadeiras razões foram ocultadas. A RTP considerava “inaceitáveis as condições transmitidas pela federação”, referindo-se ao pagamento de direitos. O jornalista de “A Bola” Carlos Pinhão apelava aos golos em mais uma final, porque “golo era emoção”. Foi o mesmo jornalista que mais tarde apelidou a final de 1969 de “um dos maiores comícios de sempre contra o regime de Salazar e Caetano”. A Académica saiu derrotada do Estádio Nacional por 2-1. “Se tivessem ganho por certo que os ‘efe-erre-ás’ ainda estariam a ecoar no Vale do Jamor”, escrevia “A Bola”. No final do encontro, o jogador da Académica Mário Campos não desarmava: “nós agora ganhámos o gosto. Para o ano voltamos”. No entanto, no ano seguinte, a Académica não voltou e apenas alcançou os oitavos-de-final. Mas mesmo que chegasse à final a luta política já tinha adormecido. Com Daniel Almeida
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NACIONAL
25 DE ABR
IL
PEDRO CRISÓSTOMO
ENTAÇÃO
COMUNICADOS de apoio à luta estudantil foram surgindo ao longo da crise
A Crise Académica de 69 veio trazer profundas alterações à actividade e metodologia do movimento estudantil português, que tentou convergir numa luta nacional Nuno Agostinho “São inúmeras as expressões de apoio à luta dos estudantes de Coimbra oriundas dos mais diversos sectores da Nação Portuguesa”, declarava a Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) num dos muitos comunicados da crise. A dimensão que o movimento tomou a partir dos acontecimentos do 17 de Abril fez de Coimbra o bastião pela construção de uma “Universidade Nova”. “A crise foi um fenómeno tão forte naquele contexto que qualquer estudante, mesmo que não estivesse envolvido no movimento associativo, o sentia”. Quem o diz é Eduardo Graça, que em 1969 estudava no antigo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, em Lisboa. Mas mesmo antes de tudo aconte-
cer, crescia nos pólos académicos de Lisboa e do Porto uma vontade em conhecer Coimbra e perceber o movimento que estava em marcha. “Falavam-nos de Coimbra como sendo uma associação académica – ‘lá aquilo é uma coisa bestial’”. A expressão pertence a José Dias, presidente do Conselho da Cidade de Coimbra, que entre 1965 e 1968 estudava no Porto. Entre 1965 e 1968, José Dias foi estudante na Universidade do Porto. Da altura em que frequentou a Universidade do Porto, conta que "teve uma acção que extravasava a vida e a luta estudantil por uma luta política mais globalizante" e que foi devido a essa luta que passou a vir frequentemente a Coimbra. Aqui começou a ouvir falar de movimentos estudantis organizados e de alguns momentos históricos na luta académica, tal como a Tomada da Bastilha. E como em Coimbra existia uma verdadeira associação com um espaço físico em que todas as faculdades estavam representadas e era possível constituir um movimento organizado. A realidade portuense, por seu lado, era completamente diferente. “Eu vinha de uma salinha do Porto onde vendia réguas de cálculo e onde recebia os estudantes um a um, um pouco a medo”, lembra. No Porto, a maior parte das associações e pró-associações não tinha instalações próprias, pelo que “ti-
nham que viver numa semi-clandestinidade". Em Setembro de 1968, José Dias vem para Coimbra. Através do Conselho de Repúblicas, envolve-se logo com estudantes que reivindicavam eleições livres para a DG/AAC. O movimento podia ter sido muito maior caso houvesse uma boa ligação entre as três academias. "O movimento estudantil das três universidades não tinha uma autoestrada de comunicação", explica José Dias, que ainda acrescenta a re-
“A crise foi um fenómeno tão forte que qualquer estudante o sentia” lutância existente entre os principais dirigentes de Lisboa em deslocaremse a Coimbra: "lembro-me de pessoas, como eram os dirigentes de Económicas de Lisboa, que tiveram uma relutância enorme em vir a Coimbra. Eu desafiei-os, mas só aí à terceira vez é que consegui que viessem". Actualmente presidente do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo, Eduardo Graça relata que chegou a vir a Coimbra, não por motivos institucionais, mas mais por cu-
CENTRO D
E DOCUM
Para lá de Coimbra cresce o movimento riosidade. "O movimento de Lisboa era disperso porque a universidade tinha características diferentes em termos de implantação na cidade. O de Coimbra tinha uma grande centralidade, era mais coeso", reconhece Eduardo Graça. Na continuação da onda de contestação, dá-se a final da Taça de Portugal em que a Académica defronta o Benfica e esta era uma oportunidade que não se podia perder para mostrar o desagrado. Dois dias depois, foi preciso ir ao Porto distribuir comunicados sobre a greve aos exames. O presidente do Conselho da Cidade de Coimbra explica que os contactos que tinha no Porto foram úteis para “organizar pequenas brigadas com amigos católicos e de diversas faculdades para pôr nas caixas dos correios toda a propaganda". Entretanto, os estudantes tomam consciência de que não têm a ligação que procuravam com as cinturas industriais, onde pretendiam chegar para unir as lutas. Os estudantes passam então a fazer sessões de esclarecimento aos trabalhadores sobre os motivos da luta, como refere José Dias. "Deu-se um movimento biunívoco, em que foi preciso explicar às cinturas e aos trabalhadores porque é que estávamos inquietos", explica. Mais tarde é lançada a "Declaração do Movimento Democrático Eleitoral sobre a Crise Universitária e a
Luta Estudantil", documento que explica a evolução da situação estudantil em Lisboa e no Porto. O documento alerta para o facto de "os filhos da maioria dos portugueses não terem acesso à universidade” e que "os problemas fundamentais de democratização e reforma da Universidade e de todo o Ensino continuam por resolver". Depois de vencidas inúmeras dificuldades, mais de cinco mil estudantes provenientes das três academias reuniram-se em Coimbra e aprovaram a declaração em que exigem ao governo "a demissão do Ministro da Educação Nacional e das autoridades académicas responsáveis, o levantamento de todos os processos instaurados e a libertação de todos os estudantes presos”. Como resposta ao documento, o governo destitui todos os órgãos da AAC com excepção das secções desportivas e da secção Filatélica. Depois da declaração, apareceram no país vozes que se uniam à luta preconizada pelos estudantes de Coimbra, nomeadamente do Grupo de Democratas de Braga e de alguns pais de jovens de Viseu que pediam que se resolvesse a situação. Por outro lado, 48 jornalistas de Lisboa lamentavam "a impossibilidade de darem conhecimento público da exemplar e patriótica acção dos estudantes”. Com Pedro Crisóstomo
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OPINIÃO FOTOMONTAGEM POR TATIANA SIMÕES
A crise de 69 – questão de moral? A crise de 69, como referência histórica do movimento estudantil e da luta geral do país contra o fascismo, corre riscos habituais, como todas as referências históricas ANTÓNIO GOMES MARTINS
enho a minha memória pessoal do 25 de Abril de 1974. Tinha na altura dezanove anos e a experiência vivida dessa época deixoume marcas que não convivem bem com visões dela que considero distorcidas, incompletas, mal intencionadas ou ingénuas. Sei, por isso, o risco que se corre quando se fala de uma época da qual não se teve experiência de contacto íntimo (embora sobre o 25 de Abril os vícios escritos não sejam predominantemente de autores não contemporâneos dessa época). Em 1969 eu tinha catorze anos e, vivendo em Coimbra e convivendo com universitários, tive contacto abundante. Conheci alcunhas e ciciares relativos a personagens mais ou menos saboreadas pela corrosiva opinião dos estudantes que, então talvez um pouco mais do que agora (impressão nostálgica de velho?), eram (alguns) especialmente cáusticos e preocupadamente cultos. Mas quem se lembrou de mim para esta contribuição não espera testemunho de memória presencial, de
T
modo que escrevo tranquilo. É lugar-comum dizer-se que, felizmente, quem não viveu o fascismo no nosso país não tem a noção da sua atmosfera bafienta e atrofiante, provinciana, atrasada, retardada, impancientadora, revoltante e atemorizante. Nesse ambiente era mais fácil ouvir uma anedota a achincalhar o presidentefantoche Tomás do que ver uma atitude de corajoso afrontamento. E, no entanto, quantas movimentações houve, de centenas ou de milhares de pessoas, ao longo de todo o período de letargia! A crise de 69 é um bom exemplo, a par com muitos outros, envolvendo camadas sociais variadas contra o regime. Cinco anos antes do 25 de Abril, a crise de 69 ocorreu numa fase também de crise, mas do regime. A guerra colonial consumia cerca de 40 por cento da riqueza do país e os jovens rapazes de então tinham a certeza de ir parar a essa guerra que não lhes dizia respeito. A fraseologia oficial, oca e patrioteira, era ridicularizada pelos estudantes, com a cínica amargura da antevisão da morte. Havia condições, de facto, para que as pessoas se insurgissem, com a coragem de serem muitas e de o medo ser, por isso, muito partilhado. O meio universitário de Coimbra revelou mais uma vez as suas carac-
terísticas singulares, decorrentes de uma única Associação de Estudantes com uma tradição forte de movimento associativo: intensa partilha de ideias, produção cultural autónoma, debate aceso, hábitos de democracia vivida com genuinidade e vigilância. A par com o facto de o número de estudantes ser bastante menor do que hoje, estas eram condições férteis para manifestação de consciência crítica, de indignado exercício efectivo de direitos democráticos.
O MEIO UNIVERSITÁRIO DE COIMBRA REVELOU MAIS UMA VEZ AS SUAS CARACTERÍSTICAS SINGULARES (...) O ministro da educação dessa época, o inefável (que digo eu? Abundante e jocosamente comentado, hoje como então!) J. Hermano Saraiva, era figura ridícula, alvo fácil do sarcasmo unitário. Justamente. Caiu. Seguiu-se-lhe Veiga Simão. Com a AAC encerrada, a universidade ameaçada com o cutelo, pendente sobre a academia, dos pides e dos informadores, inaugurou-se a era da reforma de curta duração e longas repercussões. Du-
rante este período o movimento associativo, fragilizado e em recessão no início, retomou lentamente expressão visível, recuperou força e capacidade de intervenção pública. Lutou-se pela reabertura da AAC, com a luta de 69 como referência. O 25 de Abril ocorreu nesta fase de retoma que permitiu que a revolução encontrasse os estudantes prevenidos. A AAC foi reaberta, a universidade ganhou de novo alma com o novo Reitor, verdadeira referência, o Doutor Teixeira Ribeiro. A efervescência começou e, tal como anteriormente a resistência, ajudou a formar a consciência cívica e democrática dos estudantes dessa época. A crise de 69, como referência histórica do movimento estudantil e da luta geral do país contra o fascismo, corre riscos habituais, como todas as referências históricas: o esbatimento da memória, ou dos significados dela, que se acentuará quando a geração protagonista gradualmente desaparecer; a reescrita ou, melhor dizendo, as reinterpretações segundo as opções de perspectiva de quem reinterpreta, criando várias versões do período e dos seus conteúdos; e, finalmente, o aproveitamento, político ou pessoal, que a falta de uma certa ética permite aos que têm esse tipo específico de carência. O risco do esbatimento da memó-
ria é talvez o menos acentuado. O episódio da tomada da bastilha, por exemplo, marco da história do movimento estudantil de Coimbra, é ainda hoje recordado, apesar de o ser com grande depuração. Não desaparece da memória colectiva. Já não é possível fazer umas cerimónias ou uns colóquios com este ou aquele participante. Assim acontecerá com a crise de 69. A reescrita exige, pelo menos aos interessados numa perspectiva equilibrada, uma leitura dos vários contributos e uma atitude de filtragem crítica guiada pela desconfiança relativamente aos aspectos que geram unanimismos e aos traços acessórios ou anedóticos que frequentemente dão origem a generalizações abusivas. Finalmente, quanto aos aproveitamentos, eles também tenderão a esbater-se com o decurso do tempo, por razões biológicas, mais que por quaiquer surpreendentes razões de ética subitamente assumida. A crise de 69 foi, entre outras coisas, um movimento colectivo e só por isso assumiu as proporções que assumiu. As personalizações, porque forçadas, são sempre redutoras e dificultam a percepção da importância dos movimentos colectivos na evolução das sociedades. Vice-reitor da UC. Presidente da DG/AAC em 1975/76
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MEMÓRIA Como as mulheres lutaram por uma “Universidade Nova” A participação das mulheres na crise levou a uma maior afirmação das estudantes na cidade de Coimbra. Apesar de tudo, esta participação “não se baseou na luta pelos direitos das mulheres”. Por Diana Craveiro e Andreia Silva papel da mulher na sociedade portuguesa dos anos 60 assentava em duas perspectivas diferentes. Às raparigas com dificuldades económicas estava destinado o trabalho doméstico e o casamento. Para aquelas que tinham hipóteses de seguir estudos superiores, o futuro perspectivava-se diferente. Mas mesmo com a oportunidade de emancipação, o conservadorismo de uma sociedadade em ditadura continuava a prevalecer no quotidiano das estudantes universitárias. A autora do livro “Movimentos de Mulheres em Portugal nas décadas de 70 e 80" e ex-presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), Manuela Tavares, afirma que Coimbra “era uma cidade com algumas dificuldades na afirmação das jovens”, porque “havia muito controlo por parte das famílias” ao nível dos costumes. Às estudantes era negada a entrada em repúblicas e as que se atreviam a quebrar a regra “eram muito mal vistas perante a sociedade”, conta Manuela Tavares. Durante a década de 60, contudo, as relações entre rapazes e raparigas foram mudando. Segundo a ex-presidente da UMAR, “surgiu uma tendência para a mistura” e as mentalidades foram-se alterando, embora tenha sido algo que não se estendeu a toda a comunidade estudantil. A Crise Académica de 1969 veio a ser, assim, o primeiro passo para as mulheres se afirmarem, não só na comunidade estudantil conimbricense, como em toda a sociedade portuguesa. Fernanda Campos foi uma das poucas mulheres da altura a viver numa casa feminina que se assemelhava a uma república, a “Arvéolas”, criada em 1965. Era uma casa gerida por um grupo de colegas, onde “o estilo porta aberta como uma república masculina não existia”, conta. Apesar da ir-
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reverência, “sabíamos que não íamos mudar o mundo só por viver numa república, que era algo que não era bem visto por pessoas conservadoras”. Ao relembrar os tempos de estudante, Fernanda fala de um diaa-dia muito semelhante ao dos colegas rapazes. “Frequentávamos o [café ] Mandarim, íamos ao cinema, passeávamos, namorávamos. Divertíamo-nos como jovens que, de alguma maneira, tiveram a sorte de poder ter acesso a uma civilização mais livre e avançada”. Foi nesse ambiente que as mulheres começaram a participar nos movimentos de contestação ao lado dos colegas. Segundo Fernanda Campos, “a universidade era elitista”, já que “não havia condições para que jovens tão ou mais inteligentes pudessem frequentá-la só pelo facto de pertencerem a um meio sócio-económico mais desfavorecido”. Fernanda e as colegas tinham também “uma intervenção bastante activa no combate por uma Universidade Nova”. E, apesar do conservadorismo, as mulheres não eram tratadas como um ser inferior, “era uma luta de igual para igual”, recorda a antiga estudante.
Luta estudantil novos caminhos
condições de vida das mulheres”, a questão do feminismo “não era uma prioridade”. A acção das mulheres na crise académica foi um ponto de partida para uma maior afirmação do seu papel na sociedade. A coordenadora do doutoramento em Estudos Feministas da Faculdade de Letras da Universidade de C o i m b r a , Adriana Bebiano, defende que esta participação foi muito importante, “porque é então que começam a ganhar visibilidade”. B e biano
afirma que “actos pioneiros” como os que ocorreram durante a luta estudantil “são importantes como exemplo para as gerações seguintes”. Um desses exemplos teve lugar logo em 1970, quando 13 rapazes e 13 raparigas de
Coimbra participaram num livro antológico intitulado “Igualdade Radical para a Mulher”, editado na cidade pela Almedina. No entanto, a obra esteve à venda apenas durante três dias, até ser objecto de apreensão pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).
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A participação das estudantes na Crise Académica de 69 não se baseou na luta pelos direitos das mulheres nem pelo seguimento de um movimento feminista, esclarece Fernanda Campos. “Entendíamos que naquele momento havia problemas mais importantes, como o facto de vivermos numa ditadura, de não termos liberdade e de termos uma universidade retrógada”. Apesar de não ignorarem que “o desenvolvimento da sociedade também pasEM 1970, “Igualdade radical para a mulher” esteve à venda até ser apreendido pela PIDE três dias a seguir ao lançamento sava pela melhoria das PUBLICIDADE
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ENTREVISTA MANUELA CRUZEIRO • INVESTIGADORA DO CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO 25 DE ABRIL
“Coimbra deu um enorme passo para a emancipação da mulher” Manuela Cruzeiro é um dos rostos conhecidos da crise académica. 40 anos depois, fala do “papel decisivo” da mulher no maior movimento de estudantes vivido em Portugal. Por Cláudia Teixeira CLÁUDIA TEIXEIRA
odeada de livros, cartazes antigos, recortes de jornais, apontamentos e fotos de família, Manuela Cruzeiro retoma à crise de 69. Recorda o movimento como algo que lhe pertence. A ela e a muitos que por lá passaram.
R
O movimento estudantil de 69 juntou centenas de estudantes. Como foi possível esta mobilização? Penso que o principal motivo terá sido a estratégia da lista vencedora para a direcção da Associação Académica de Coimbra (AAC) que fez com que a luta passasse da associação para a universidade. Foi um movimento conduzido de uma forma inteligente, de uma forma gradual, ou seja, os objectivos não eram imediatamente radicais. Não se pedia uma coisa como ‘Abaixo o Governo! Abaixo a ditadura!’. Isso estava implicado numa mudança da universidade que, entendida em todas as suas consequências, conduziria a isso. Que papel tiveram as mulheres na crise académica? Foi um papel decisivo. As mulheres vieram para a rua em plano de igualdade com os homens. Coisa que nunca tinha acontecido. Há um elemento que me parece importante, que é o facto de não sermos dadas como muito perigosas. A atenção das autoridades ia para os rapazes e nós conseguíamos coisas furando pelos espaços, com uma naturalidade e uma espontaneidade que desarmava um pouco as autoridades. Coimbra deu, em 69, um enorme passo para a emancipação da mulher. Mas não foi isso que perspectivámos. A condição feminina não se colocou a não ser numa ou outra intervenção que não foi, de todo, a intervenção do comum das mulheres. Nem pensar nisso. Até que ponto as mulheres estavam integradas nos grupos contestatários, como o IBM, os Contestas e o CONGE? Participavam. O CONGE, por exemplo, teve mulheres. Foi uma estrutura de decisão. Foram líderes incontestáveis? Talvez não. Integram, participam, mas nunca chegam ao topo. A crise académica é um momento histórico datado à esquerda e da qual não se conhece o envolvimento de mulheres ligadas à direita. Qual foi o papel delas?
A INVESTIGADORA no Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra
Foi um papel muito reduzido. Até porque a crise foi avassaladoramente de esquerda. Houve professores que ficaram na história por se terem aliado à luta dos estudantes. Também houve professoras a assumir a causa?
A MULHER NÃO OCUPA AINDA O LUGAR PARA O QUAL ABRIMOS CAMINHO Houve uma, que eu me lembre. Era a Maria dos Anjos, assistente de Ciências. Só me lembro dessa. Como funcionava o Conselho Feminino da AAC? Era marcadamente feminino no sentido mais tradicional do termo, ou seja, algo que preparava as mulheres para as tarefas tradicionalmente femininas. Era reaccionário, na nossa perspectiva. O que lá se ensinava era
puericultura, bordado, gestão doméstica. Foi sempre visto pela esquerda como uma coisa muito anacrónica. Uma mulher de esquerda não ia para o Conselho Feminino. A mulher de esquerda ria-se daquele conselho, era uma coisa ridícula. Na sua opinião, que papel desempenham hoje as mulheres na vida associativa? A mulher não ocupa ainda o lugar para o qual abrimos caminho em 69. Parece-me que há retrocessos e mais me preocupa porque acho que é com o consentimento e com o apoio dado pela própria mulher. A mulher não se sente afectada com isso, pelo contrário, sente-se muito bem com este papel. Parece-me que a mulher é muito subserviente e muito passiva, aceitando e participando até nas praxes, às vezes em situações confrangedoras. Este é um período de revivalismo acrítico, de reposição de velhas tradições que, actualmente, não fazem sentido. E já em 69 não faziam e por isso acabámos com a praxe. A Fernanda Bernarda (ele-
mento da Direcção-Geral da AAC em 1969) é um ícone, tanto para as mulheres como para quem participou na crise académica. Para as mulheres é. Sem dúvida. O papel dela foi muito preponderante. Num mundo masculino uma mulher tem algumas vantagens e a Fernanda usou-as bem. Era uma pessoa calma, serena, ponderada. Não era exaltada nem arrebatada, e isso era uma maisvalia naquele conjunto. Acha que o movimento dos estudantes na crise académica foi um passo importante para a Revolução de Abril em 1974? Foi um passo muito importante. Não quer dizer que se tenha ganho tudo. Mas todas as revoluções têm momentos assim, é um balão que enche e acaba por esvaziar. Ficámos para toda a vida implicados naquele compromisso e há um mal-estar daqueles que não aderiram. Anos depois ainda definíamos determinado elemento que não tinha feito greve aos exames. ‘Aquele foi traidor em 69’ e isso era um selo com o qual marcávamos a pessoa.
Acha que é possível, nos dias de hoje, um movimento como em 1969? Claro que não. A começar pelos objectivos de luta que não são os mesmos. Embora eu ache que as reivindicações da altura não estão alcançadas. Vocês recuaram, agora muito recentemente. As escolhas ideológicas feitas durante os anos do activismo estudantil influenciaram o seu percurso profissional? Completamente. Ser protagonista destes acontecimentos traz-me um enorme orgulho e também uma enorme responsabilidade. Escrever “Os Anos Inquietos”, com Rui Bebiano, foi uma forma de reviver a Crise Académica? Foi tentar pôr ao serviço do trabalho que faço actualmente um capital pessoal que poderia trazer uma maisvalia a esse trabalho. Foi também uma homenagem a alguns rostos pouco conhecidos da crise de 69. Porque a crise foi um colectivo de rostos imenso.
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Cronologia da 1968
19 FEV
Eleições para a AAC e fim das comissões administrativas reivindicada pela Comissão PróEleições (CPE)
25 NOV
Comemoração da Tomada da Bastilha. Estudantes gritam “Eleições, já” defronte da AAC
27 FEV
Comissão Administrativa da AAC anuncia realização de eleições para Fevereiro
1969
10 FEV
Debate entre as duas listas concorrentes à DG/AAC: Conselho de Repúblicas e MRR
12 FEV
A lista do Conselho de Repúblicas vence as eleições para a AAC com 75% dos votos
7 MAR
Tomada de posse da nova DG/AAC por parte da lista do Conselho de Repúblicas
14 ABR
DG/AAC confirma presença na inauguração das Matemáticas e expressa a intenção de usar da palavra
16 ABR
Reitor nega, em comunicado, o uso da palavra por parte da DG/AAC na sessão solene
17 ABR
Inauguração do edifício das Matemáticas e detenção do presidente da AAC, Alberto Martins
MEMÓRIA O “verdadeiro” 17 de Abril não foi notícia Entre estudantes presos e greves, os jornais só “tiveram conhecimento” da inauguração do edifício da Matemática. Por Vasco Batista
E
m 1969, a Academia de Coimbra viveu um dos episódios mais célebres e marcantes de toda a sua história. A 17 de Abril desse ano, diversas personalidades distintas da plêiade política portuguesa, das quais cabe destacar o chefe de Estado Américo Thomaz, descolaram-se até Coimbra para inaugurar o “grandioso edifício da secção de Matemática da Faculdade de Ciências”, tal como destacou o Diário de Notícias na edição do referido dia. Contudo, os jornais da época nada mencionaram acerca do momento áureo que veio a mergulhar a cidade na profunda crise académica de 1969. Alberto Martins, presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) foi impedido de usar da palavra pelos estudantes da Universidade durante a “sessão solene inaugural”. Seguiu-se o cerco à cidade pelas forças policiais, decretou-se o luto académico e greves a aulas e exames. Mas as notícias foram outras. Hoje, volvidos quarenta anos, e numa análise à “vista desarmada” pelos jornais daquele dia, a ilação que se pode tirar é óbvia. Os artigos eram cuidadosamente inspeccionados pelos organismos encarregues do Lápis Azul, sob o signo da censura, evitando, desse modo, relatar quais-
quer factos tidos como “desagradáveis” e susceptíveis de fomentar mais sublevações. O importante era passar a imagem de que o país vivia numa harmonia inquebrável. Primeiro as aparências, depois as evidências. Este aspecto do indubitável recurso à censura como meio para demonstrar a “estabilidade” social e política constitui, por si só, o sinal de que Portugal era governado por um regime de cariz ditatorial e anti-democrático. Na verdade, esse carácter do regime político então instaurado tornou-se tão mais claro pelas motivações que originaram a rebelião. Em última instância, tanto a censura, como a privação do uso da palavra confluem e confundem-se num mesmo factor. A inexistência da liberdade de expressão e comunicação era, portanto, incontestável. Os periódicos da época, ainda hoje sobejamente conhecidos, como sejam o Diário de Notícias, o Jornal de Notícias e o Diário de Coimbra, sublinhavam a data como sendo um dia de assaz importância, no qual a Universidade de Coimbra concretizara uma “velha aspiração”. “Nunca porventura a Humanidade esperou tanto dos mestres e dos estudantes como nos dias que estamos a viver” destacou o Diário de Notícias, ao referir a importância do novo edifício
da faculdade de ciências, cujo valor dispensava, segundo o Ministro da Educação Nacional, José Hermano Saraiva, “quaisquer considerações”. A obra financiada pelo “Plano Intercalar de Fomento” constituiu, em si mesmo, o objecto noticioso dos diferentes organismos de comunicação social. O curioso (ou não) é que os artigos do Diário de Notícias alusivos ao acontecimento, seja da edição do próprio dia, seja da edição do dia subsequente, apenas relatavam o modo como decorreu a cerimónia de inauguração do edifício, engrandecendo a beleza arquitectónica do mesmo. Uma rápida consulta noutros órgãos da imprensa escrita que tenham noticiado o acontecimento, poderia questionar o leitor se não estaria a ler novamente o mesmo jornal, uma vez que o teor das notícias mantém-se.
Neste sentido, num tom marcadamente descritivo, são apresentados ao leitor, com pormenor, as etapas da sessão de inauguração, os custos exactos das obras e são relatados os discursos dos que presidiram à inauguração e puderam falar. Os artigos são também aproveitados para propaganda política e realçar os trabalhos do Governo, tal como espelha a afirmação “gastar-se-ão 277000 contos em edifícios do ciclo preparatório…”. Por contar ficou que os estudantes, por quererem falar, foram presos. Cerco policial, greves a aulas e exames, demissão dos órgãos da AAC e Assembleias Magnas também não “mereceram atenção” pela imprensa. Ter-se-ia que esperar mais cinco anos pela chegada da liberdade de imprensa com a Revolução dos Cravos.
18 ABR
AAC faz saber que o presidente foi preso e que tudo se iria fazer para que fosse libertado. Milhares de estudantes acorrem ao Pátio da UC
21 ABR
DG/AAC exige representação no Senado Universitário e protecção deste face à repressão policial
22 ABR
Decretado o Luto Académico. Elementos da DG/AAC privados de actividade na UC
30
6
8
28
2
ABR
MAIO
MAIO
MAIO
JUN
Ministro da Educação Nacional, Hermano Saraiva, acusa estudantes de crime, sediação e desrespeito ao Chefe de Estado
Encerramento da Universidade de Coimbra, antes de terminar o ano lectivo normal
Cancelamento da Queima das Fitas por solidariedade aos dirigentes da AAC que tinham sido castigados, em comunicado dos estudantes grelados
Seis mil estudantes votam em Assembleia Magna greve aos exames. Aprovadas Operação Balão e a Operação Flor
Primeiro dia de greve aos exames. A Universidade de Coimbra está cercada pela GNR, PSP e polícia de choque
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MEMÓRIA PEDRO CRISÓSTOMO
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JUN
AGO
Final da Taça de Portugal entre a Académica e o Benfica. o Presidente da República não comparece ao jogo, como era habitual
AAC é encerrada por ordem do governo, que demite os corpos gerentes
OUT
1970
49 estudantes recebem nota de incorporação de emergência nas fileiras do Exército
14
19
JAN
FEV
José Hermano Saraiva é substituído por José Veiga Simão no Ministério da Educação Nacional
José de Gouveia Monteiro substitiu Jorge Andrade de Gouveia como reitor da UC S.O.
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SONDAGEM O QUE OS ESTUDANTES (NÃO) SABEM Depois de percorrer as faculdades para avaliar o conhecimento dos estudantes sobre a crise, aqui ficam as respostas sobre os factos e os acontecimentos em questão
O começo da movimentação estudantil aconteceu quando o presidente da DirecçãoGeral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC), Alberto Martins, foi impedido de falar na inauguração do Edifício das Matemáticas e foi o único dirigente a ser detido. Nem o aumento das propinas, nem o fim da Queima das Fitas foram as razões que estiveram na origem do protesto. Também o conhecimento de quem foram os protagonistas não está bem definido na cabeça dos
SOBRE A CRISE ACADÉMICA
estudantes. Apesar da maioria ter certeza de que o presidente da DG/AAC era Alberto Martins, muitos estudantes pensaram ser Emídio Guerreiro, que apenas foi presidente em 1990/91. José Miguel Júdice foi vice-presidente da Comissão Administrativa da AAC, nomeada pelo governo, em 68/69, e Osvaldo de Castro o vice-presidente da direcçãogeral de Alberto Martins. Do lado do regime, José Hermano Saraiva era o Ministro da Educação Nacional. Em Janeiro de 1970, foi sub-
stituído por José Veiga Simão. José Lello ocupou o cargo de ministro da Juventude e do Desporto entre 1999 e 2002. José Augusto Seabra foi ministro da Educação entre 1983 e 1985.Quanto aos acontecimentos propriamente ditos durante a crise, foi decretado o luto académico em Assembleia Magna. Em Junho, a universidade é ocupada por destacamentos da GNR. As Repúblicas não foram encerradas, nem houve manifestações a nível nacional.
FICHA TÉCNICA: Esta sondagem foi realizada pelo Jornal Universitário de Coimbra – A CABRA – entre os dias 1, 2 e 3 de Abril. O universo é composto por estudantes da Universidade de Coimbra. A amostra foi estratificada em função da proporção de alunos nas oito faculdades da Universidade de Coimbra. Foram obtidos 1373 inquéri-
tos válidos. A margem de erro associada é de 3,5 por cento, com um nível
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SONDAGEM HISTORIADORES ALERTAM
de confiança de 95 por cento. Na realização da sondagem participaram Andreia Silva, André Ferreira, Catarina Domingos, Cláudia Teixeira, Daniel Almeida, Diana Craveiro, Filipa Faria, Filipa Magalhães, João Miranda, João Ribeiro, Maria Eduarda Eloy, Marta Pedro, Nuno Agostinho, Patrícia Gonçalves, Pedro Crisóstomo, Rui Miguel Pereira, Sónia Fernandes e Vasco Batista.
Estudantes têm vaga noção sobre os acontecimentos “Desconhecimento geral” e uma ideia vaga sobre os pormenores da Crise Académica de 69 abrange maioria dos estudantes da UC. A conclusão é de três historiadores – num comentário alargado da sondagem Pedro Crisóstomo “Isto é um atestado à minha ignorância”. “Isto do José Hermano Saraiva deve ser a gozar”. “Quem era o presidente da direcção-geral? Nem sei quem é o deste ano”. Durante três dias choveram comentários não muito diferentes enquanto sondávamos os estudantes da Universidade de Coimbra (UC) sobre a crise de 69. Muitos suplicavam para que lhes disséssemos as respostas certas. Houve quem até tentasse procurar na Internet. Outros argumentavam que nem valia a pena preencher o inquérito, porque não percebiam “nada do assunto”. Apurados os resultados, 48,65 por cento parece afinal ter um conhecimento médio sobre os acontecimentos. Um número que contraria que os estudantes não percebem mesmo “nada do assunto”? Não, diz Rui Bebiano, professor da Faculdade de Letras da UC e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES). A experiência que tem com os alunos é, aliás, “um pouco mais negativa”. “Claro que existe a noção generalizada de que algo de importante aconteceu então em Coimbra e na vida da Academia, mas a larga maioria tem uma noção muito vaga dos pormenores”. Alguns até confundem “temporalmente a ‘crise de 69’ em Coimbra com o Maio de 68 em França”. Insistimos na pergunta a outro historiador. A resposta é idêntica. “Os dados parecem sinalizar um
desconhecimento geral sobre o que se passou em 1969”, responde Miguel Cardina, investigador – no mesmo centro – sobre a resistência estudantil em Coimbra no Marcelismo. Rui Bebiano concretiza haver 16,24 por cento de alunos a considerar que a crise académica foi despoletada pelo aumento de propinas: “é justamente um dos reflexos desse relativo desconhecimento”. Mais, “para muitos alunos é difícil conceber um movimento associativo motivado por razões que
cente luta estudantil contra o aumento das propinas”. Outra das ‘imagens erradas’ da crise que Miguel Cardina considera curiosa é a “funda convicção” de ter existido uma manifestação nacional durante esse período. Os estudantes “reconhecem que a crise foi um momento forte de contestação e isso significa, segundo as suas grelhas de leitura, ‘luta contra as propinas’ e ‘manifestações nacionais’”. Mas nem tudo é mau. Esta apropriação do passado através do pre-
TEM HAVIDO UMA PRESSÃO MUITO MAIOR PARA QUE OS ESTUDANTES CONCLUAM RAPIDAMENTE OS SEUS CURSOS MIGUEL CARDINA transcendam a vida estudantil e a da própria universidade”. O mesmo diz Miguel Cardina: “a representação que os grupos fazem do seu passado é sempre ‘contaminada’ pelo presente”. Menos alarmista é a presidente da Associação de Professores de História (APH), Helena Veríssimo, que considera este ponto “irrelevante”. “Provavelmente muitos destes jovens não seguiram um curso de Humanidades, pelo que não estudaram História no ensino secundário, não tendo tido oportunidade de desenvolver a sua consciência histórica”. Acontece que “as causas são explicadas pelo que de mais próximo conhecem, ou seja, a re-
sente – como lhe chama Cardina – “até que permite que o passado seja mais do que uma mera evocação dos tempos mortos”.
A carência da memória Mostra a sondagem que cerca de 60 por cento desconhece que Alberto Martins era o presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) em Abril de 69. Grave? “Pelo contrário, é de relevar que cerca de 40 por cento o conheçam”, diz Helena Veríssimo. Também a Rui Bebiano parece “menos grave do que o desconhecimento sobre as próprias circunstâncias, motivações e resultados do movimento que então se gerou”.
RUI BEBIANO • PROFESSOR DA FLUC • INVESTIGADOR DO CES
“O ENSINO DA HISTÓRIA TEM VINDO A RECUAR NOS PROGRAMAS E CURRÍCULOS” O que é que faz com que haja ainda estudantes que desconhecem o passado recente, neste caso da universidade que frequentam? Este não é um problema de Coimbra ou sequer apenas português. Tendo trabalhado em termos de investigação sobre a história dos movimentos estudantis universitários, percebi que é quase inevitável esse desconhecimento, pois a maioria dos estudantes, na fase das suas vidas em que frequentam o ensino superior, têm uma preocupação muito maior com o presente e o futuro do que com o passado. Um historiador
destes movimentos, Mark Boren, escreveu mesmo que “o movimento estudantil é um movimento sem memória”. Esta é recolhida mais tarde, sobretudo por antigos estudantes e activistas. Por vezes é usada por estudantes actuais, mas quase sempre mais como justificação para algumas das campanhas do presente, o que me parece natural mas ao mesmo tempo significativo. Considera que a matéria sobre a história recente de Portugal está a ser mal leccionada nas escolas? A história recente é pouco abor-
dada nas escolas, a todos os níveis, de facto. Pior, o próprio ensino da História tem vindo a recuar nos programas e currículos. O pouco que se ensina é também, por vezes, mais tratado num sentido comemorativo – o que não motiva, compreensivelmente, as gerações mais recentes – do que num sentido compreensivo, que é aquele que torna o passado mais vivo e interessante. Mas claro que esta situação não é geral nem irreversível, e existem alguns sinais recentes de que a tendência tem vindo a ser alterada. P.C.
“Ao dar-se maior relevo à pessoa A ou B está-se, em termos de evocação da memória, precisamente a fazer uma coisa para a qual muitos estudantes são pouco sensíveis”, justifica. Por isso, a presidente da APH lamenta que seja frequente ouvir “que os jovens portugueses pouco ou nada sabem acerca da sua História recente”. Estudos feitos por investigadores em Educação Histórica “demonstram que os jovens não só conhecem factos e personagens ligados à História do Estado Novo, como apresentam, a um nível mais elaborado, uma compreensão clara das mudanças profundas provocadas pelo 25 de Abril”. Para Miguel Cardina, “os jovens passam em regra meia dúzia de anos nessa condição – a de estudante, no caso de Coimbra – o que provoca constantes curto-circuitos no processo de transmissão da memória”. Helena Veríssimo vai mais longe e justifica que “isto não significa que tenham que ter na cabeça um conjunto de factos ou de nomes referentes a assuntos tão específicos como o que é abordado neste inquérito”. “O ideal” – sublinha – “seria haver uma cadeira de História do Mundo Actual aberta a todos os estudantes do secundário”. “Teríamos, seguramente, um país mais capaz de se modernizar e de se desenvolver”, propõe. Por outro lado, escreve Cardina, “não termos assistido a grandes movimentações estudantis” nos últimos anos “ajuda a explicar esta ‘carência’ de memória”. Mas pode existir mais uma razão. “Tem havido uma pressão muito maior para que os estudantes concluam rapidamente os seus cursos” e para que desinvistam “naquilo que anteriormente era considerada por muitos como a ‘verdadeira’ universidade: a dimensão cívica e relacional que se adquiria no exterior das faculdades”. Assim, continua o historiador, cabe em primeiro lugar aos estudantes recuperar essa memória, sem tentar inventar “a roda” ou imitar os heróis da crise. Nesse campo, diz, o papel compete “à DG/AAC, certamente, mas também aos núcleos, às secções, aos organismos culturais, às repúblicas, aos grupos mais ou menos informais de estudantes”. Com João Miranda
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ACTUALIDADE O 17 de Abril de 2009
JORGE SERROTE
40 anos depois da crise de 69, a actualidade política não parece cativar os estudantes. As causas apontadas são o estado da política e da sociedade BRUNA GUERREIRO
O mar de pessoas que marcou presença na Assembleia Magna (AM) de 28 de Maio, onde foi decretada a abstenção aos exames, nunca mais se voltou a repetir. Cerca de 6 mil estudantes encheram os jardins da Associação Académica de Coimbra (AAC) naquela que é considerada a maior AM da história da academia coimbrã. Hoje, o número de estudantes que participa numa assembleia não chega aos 1000, numa altura em que a Universidade de Coimbra (UC) tem cerca de 20 mil alunos. O sociólogo e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), Elísio Estanque, não culpa os estudantes do afastamento da vida política. O docente aponta o distanciamento que há entre os partidos políticos e os cidadãos como algo que contribui para este alheamento. "As pessoas olham com desconfiança para aqueles que estão à frente das lideranças partidárias", explica o sociólogo, "e isso, infelizmente, é um risco que está a acontecer à democracia em geral". No entanto, essa desconfiança não se limita à classe política e o professor da FEUC recorre aos resultados de um estudo feito pelo Centro de Estudos
tural, o interesse por determinadas actividades e consumos também mudou muito", explica. No entanto, o docente da FEUC acredita que "revoltas tão intensas e radicais como as que ocorreram nos anos 60 podem voltar a acontecer, embora com outros contornos". José Medeiros Ferreira pensa que as épocas são muito diferentes e incomparáveis, mas diz ser concebível que haja "movimentações estudantis por pessoas relacionadas com a vida das universidades e com as condições de vida dos estudantes". Estanque vai mais longe e avança a possibilidade de "o movimento estudantil, à semelhança do que acontece em países da América Latina, se aproximar do movimento sindical", levando a que surjam "formas de protesto e resistência conjuntas". "É possível que venham a ocorrer movimentos de protesto maiores do que aquilo que aconteceu até aqui", reforça. O sociólogo explica que "se os mecanismos de diálogo e as estruturas democráticas se virem cada vez mais restringidas, teremos que assistir a explosões sociais", mas tem esperança que tal não seja necessário, "porque se as instituições funcionam e se a democracia for eficaz é possível que as autoridades que estão nos órgãos de gestão percebam a importância do diálogo e da repre-
“Há um desfasamento e uma distanciação em relação à vida política”
“Os estudantes têm a obrigação de ser politicamente mais interventivos”
Sociais (CES) para o exemplificar: "a maioria dos estudantes acredita que os líderes que vão para a frente das listas e que têm ambição de chegar à direcção-geral não o fazem por altruísmo" mas sim "por protagonismo pessoal, por uma ambição individual e política". Também o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH), José Medeiros Ferreira, reconhece que há "um desfasamento e uma distanciação em relação à vida política que tem a ver com o facto de se pensar que é muito difícil modificar as coisas como elas estão". No entanto, o docente não perde a esperança e acredita "que nestes momentos de maior dificuldade que estamos a atravessar" os estudantes "venham a ter um papel mais activo". "Não tenho uma visão pessimista sobre a actual geração", conclui. Em 69, os alunos do ensino superior lutavam também pela paridade nos órgãos de gestão. Hoje, com o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), o problema
sentatividade dos diferentes sectores dos estudantes". Embora a conjuntura política actual seja diferente da de há 40 anos, hoje em dia o acesso à informação faz-se sem qualquer problema, ao contrário do que acontecia em 69. Elísio Estanque defende que, "os estudantes, em tese, têm a obrigação de ser política e socialmente mais conscientes e interventivos". "Acho que é necessário que o movimento estudantil, juntamente com aqueles que têm intervenção pública crítica nesta área, estejam activos e presentes na denúncia dos riscos que hoje se abatem sobre as universidades públicas", alerta. A 17 de Abril de 2009 são poucos os alunos do ensino superior que participam activamente na vida política. 40 anos depois da crise académica a acomodação tomou conta dos estudantes, como concluíram Elísio Estanque e José Medeiros Ferreira. No entanto, Estanque não desanima: "este é um alheamento que pode ser temporário... as coisas podem mudar".
Diana Craveiro
HÁ CADA vez menos estudantes a participar na vida política da Academia
que mais se impõe é a falta de representatividade dos estudantes nestes órgãos. Elísio Estanque explica que isto aconteceu porque na última década "perante o discurso da paridade, impôs-se o discurso da eficácia, da necessidade de tomar decisões rápidas". A lógica que "está escondida no novo RJIES" é "uma restrição da liberdade e da democracia na gestão das universidades", acusa. O docente acrescenta que "o discurso da paridade foi completamente posto de lado porque as mentes do 'status quo' julgaram que havia um excesso de igualitarismo e que isso atrapalhava as decisões". "Mas em relação à pari-
dade é importante referir o processo de crescente feminização das universidades e o facto de esta não ter a correspondente tradução na presença do sector feminino na gestão dos órgãos da universidade", nota.
Explosões sociais 40 anos depois da crise académica de 69, surge uma questão: será possível haver um movimento de estudantes igual ou semelhante ao do 17 de Abril? Elísio Estanque defende que não, "porque as condições estruturais, sociais e económicas são muito diferentes". "A forma como o estudante se relaciona com o campo cul-
“Os ideais de ontem são ainda os nossos ideiais”
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á quarenta anos atrás, Coimbra era o centro do movimento estudantil. Foi aqui que se criaram as vozes mais críticas ao regime Salazarista, foi aqui que se deram os momentos mais marcantes e foi aqui que se tomaram aquelas que foram as grandes decisões que revolucionaram o imaginário da época. O dia 17 de Abril de 1969 foi sem dúvida um marco incontornável desse tempo. Foi nesse dia o culminar de várias acções de relevo para a história da Academia, da cidade e do país. Os estudantes assumiram uma posição clara de intervenção e escreveram História. Daqui para a frente, tudo mudou. Nos dias que correm, efectivamente, os motivos que levavam os estudantes a lutar são diferentes dos que motivam hoje os estudantes. Contudo, ao falarmos de gestão democrática ou representação estudantil, se em 69 isto eram bandeiras, com o Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior voltam novamente em estar a causa estas questões – retrocedemos quatro décadas. Actualmente questões como a Acção Social, o Financiamento ou a Empregabilidade estão na ordem do dia, assumindo-se como as causas que os estudantes de hoje têm vindo a defender. A evolução do Movimento Estudantil tem sido marcada por um alargamento de horizontes e de áreas de actuação. Para além da participação activa dentro da sua instituição, o Associativismo tem vindo a tentar resolver as lacunas que os Estudantes sentem, seja a nível pedagógico, como a níveis de cultura e lazer, empregabilidade e informação, acção social e formação. O que as instituições de Ensino Superior e as instituições públicas do local onde vivem e estudam não conseguem hoje responder, as Associações têm assumido esse papel de forte intervenção social. Podemos afirmar que o papel que as Associações têm desempenhado na Sociedade, tem sido fundamental para a formação da consciência de muitos jovens que se sentem úteis e que podem ter sucesso. Efectivamente 17 de Abril de 69 foi de facto uma data histórica. E marca ainda hoje, quarenta anos depois, a história desta Academia e do movimento associativo. Os ideais de ontem são ainda os nossos ideais. As lutas que se travaram são ainda as nossas lutas. Presidente da DG/AAC
17 de Abril de 2009 | Sexta-feira | a
cabra | 27
17 1969 ABRIL
OPINIÃO D.R.
EDITORIAL OS 40 DO 17 uando passam 40 anos sobre o dia que veio a criar um novo fôlego não só no movimento estudantil conimbricense, como também nas estruturas académicas do resto do país. O Jornal A CABRA decide publicar uma edição especial unicamente dedicada ao 17 de Abril e à Crise Académica de 69. O objectivo principal era, claro, não deixar passar a data em branco. Contudo, era mais ambicioso do que isso. Descobrir novos factos, compreender novas perspectivas e assim aprofundar o conhecimento sobre a crise académica A sondagem realizada pelo Jornal A CABRA é demonstrativa do que os estudantes conhecem sobre o 17 de Abril de 1969 e sobre a crise académica que o procedeu. 48,65 por cento dos alunos inquiridos de-
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Os mesmos valores que se denfendiam há 40 anos são hoje postos em causa por medidas como o Regime Jurídico das Intituições do Ensino Superior
monstra ter um conhecimento médio sobre os factos e as pessoas que envolveram o momento histórico da universidade e da Academia. O número poderia ser sossegador, afinal quase metade dos alunos possui um conhecimento médio da história que o atinge directamente. Porém, há dois factores que é necessário analisar. O primeiro refere-se ao facto mais directo de 18,72 por cento possuírem um conhecimento reduzido ou mesmo nulo sobre os factos históricos que envolvem a crise académica. O segundo, bem mais grave, refere-se a uma interpretação que facilmente se encontra de metade dos alunos possuírem um conhecimento médio dos acontecimentos como uma situação positiva, quando na
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verdade esse conhecimento médio de refere a uma compreensão vaga dos factos históricos. E se aqui o dedo pode ser apontado aos estudantes e à sua falta de procura de informação, a verdade é que deve e tem que ser apontado à conjectura em que estão inseridos. A lógica unicamente profissionalizante pela qual o ensino superior perigosamente envereda possui um reflexo nisto mesmo. A falta de preocupação numa educação humanística e individual dos estudantes espelha-se na consecutiva diminuição do espaço temporal das licenciaturas, que com a redução de tempo reduzem também o carácter humanístico que deveriam enquadrar. Também a perspectivação do ensino como um negócio, em pouco vem ajudar a esta formação dos indivíduos. A desresponsabilização governamental para com o ensino
superior e o empurrar para as famílias dos estudantes o encargo do financiamento da frequência na universidade demonstra-o racionalmente. Pois, com as despesas que o estudante tem que suportar anualmente não possui outra saída se não a da conclusão da licenciatura o mais rápido possível, não podendo nunca desviar-se desse seu percurso em busca de outra informação e de outro conhecimento. Esta falta de informação é tanto perigosa, quando os mesmos valores que se defendiam há 40 anos são hoje postos em causa por medidas como o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior, que vem criar na representatividade paritária nos órgãos um retrocesso de décadas. João Miranda
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ESTUDANTES DA UC
48 %
possui conhecimento vago sobre o 17 de Abril Sondagem A CABRA mostra que há um desconhecimento geral sobre os pormenores da Crise Académica de 1969. Historiadores corroboram os resultados e apontam causas P 24 e 25
Palavra de intervenção Nas crises académicas de 1962 e 1969, Baptista Bastos e Urbano Tavares Rodrigues expressaram o apoio à luta estudantil. Em 62, estiveram entre os filiados da Sociedade Portuguesa de Autores que assumiram a causa. Sete anos mais tarde, Tavares Rodrigues ofereceu livros com dedicatórias sobre o movimento. Hoje, escrevem para assinalar os 40 anos da crise de Coimbra
É a tomada de consciência da juventude que sacode e acorda o país URBANO TAVARES RODRIGUES
ano de 1969 foi em Portugal decisivo para as grandes transformações do futuro, em que foram lançadas as sementes da revolução. E, se a campanha eleitoral da CDE (Comissão Democrática Eleitoral), muito escutada por aqueles que viriam a ser os oficiais dos cravos, teve importância assinalável, não menor foram o impacto e o alcance da revolta estudantil que tem o seu apo-
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geu no 17 de Abril. É a tomada de consciência da juventude, é a sua esclarecida militância anti-fascista que sacode e acorda o país, com denúncias e reivindicações que por vezes lembram o bota-abaixo e a imaginação do Maio de 68 francês. Tive papel activo na campanha eleitoral de 1969, apoiei e acompanhei de perto o 17 de Abril dos estudantes, com muitos dos quais convivi. É por tudo isso com alegria que vejo a mocidade coimbrã, através desta iniciativa da CABRA, prestar-lhes homenagem. Os que nele estiveram na primeira linha seguiram depois vida fora diferentes caminhos e alguns até exerceram altas funções políticas após a revolução libertadora do 25 de Abril. Mas, até quando vivem e projectam na história contradições profundas, lembram-se sempre com orgulho desse já longínquo dia do estudante.
uitos da minha geração fizeram o que era preciso fazer. Não há nada de heróico nem de grandioso nesta singela afirmação. Apenas decidíramos, cada um e de per si, envolver-nos no turbilhão da nossa época. Desde 1962 que o país estava numa crispação insuportável: em greve os pescadores de Matosinhos, os camponeses do Alentejo, seguindo-se-lhe a contestação estudantil ao regime. Esta agitação reprimida a golpes de bastonadas, com prisões arbitrárias e exílios desamparados era acompanhada de abaixo-assina-
M A força da razão BAPTISTA-BASTOS
Alberto Martins
Actualidade
Memória
“Coimbra, na altura, foi uma ilha de liberdade”
O movimento dos nossos dias
A mulher na Crise Académica de 69
altura. 40 anos depois, Alberto Martins fala sobre a noite que passou na prisão, a democratização no ensino e o regime jurídico do superior.
Quatro décadas depois da crise académica, ACABRA foi tentar perceber como estão os movimentos associativos de hoje. Numa altura em que as propinas, o Processo de Bolonha e o RJIES estão na ordem do dia, um sociólogo e um historiador analisam a atitude dos estudantes perante a política. A conclusão é que os alunos do ensino superior se mostram distanciados da vida política.
O papel social da mulher começou a sofrer algumas mudanças nos anos 60. Mesmo com as restrições da época, começava a ser possível as estudantes terem um quotidiano semelhante ao dos seus colegas. Uma antiga estudante que viveu estes momentos lembra que, “apesar do conservadorismo, as mulheres não eram tratadas como um ser inferior”.
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O actual líder parlamentar do Partido Socialista foi o protagonista de um dos episódios mais marcantes da Crise Académica de 1969 ao pedir para falar na inauguração do edifício das Matemáticas, a 17 de Abril. “O que esperava era que me prendessem e espancassem, mas eu tinha de pedir a palavra”, conta o presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra da
dos dos maiores nomes da cultura portuguesa. Tanto em 62 como em 1969 fui cúmplice e colaborante dessas inesquecíveis movimentações. Interessava-me, sobretudo, o acto moral do antifascismo, em que participavam comunistas, monárquicos, socialistas, católicos, anarquistas, etc. Transportei papéis dessa Resistência tão ingénua como corajosa. Estava com eles, e, na época, estar era, já em si, um desafio e um risco. Um dia, recolhia assinaturas de apoio aos estudantes, nos meios que me eram próprios, um dos jornalistas signatários telefonou-me. Marcámos encontro na Cervejaria Ribadouro. Esse indivíduo ainda é vivo. Ele queria desonrar-se, solicitando-me que apagasse o seu nome do documento. A indignidade levou-me a dizer-lhe: «O papel já foi entregue» - e ele quase se esbulhou em lágrimas de pânico. Tranquilizeio: «Deixe estar que eu risco o seu nome. Mas nunca mais me estenda a mão.» Esta histórinha vale o que vale. Porém, serve para relembrar aqueles, estudantes e os seus companheiros, que rejeitaram a baixeza em nome de uma força superior a todas as outras: a da razão contra o arbítrio.
Opinião João Botelho lembra os tempos em que viveu a crise P9
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