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EDUCAÇÃO EDUCAÇÃO ALTERNATIVA

Quando a escola é o lar Como é a vida na pedagogia da alternância, que conjuga períodos na instituição e em casa Bruna Nicolielo e Fernanda Salla - Nova Escola - 02/2015

André Menezes

Segunda-feira. Tudo começou quando eu quis saber se no fim de semana eu iria ou não para casa, mas quando soube a verdade, meu Deus, eu fiquei feliz! Mas o barco do meu pai não chegava, eu já estava preocupado". Em seu diário, Glawber Santos Lima, 9 anos, registra a angústia de viver longe dos pais ainda na infância. O menino mora e estuda na Escola Jatobazinho, às margens do Rio Paraguai, no Pantanal sul-mato-grossense. A unidade de 1º ao 5º ano funciona como internato e atende 62 crianças de famílias ribeirinhas. Elas vivem ali por períodos que variam entre sete e 50 dias, dependendo da idade, das condições de adaptação e da disponibilidade do transporte.


Essa proposta, que combina momentos na instituição de ensino com outros em casa, é chamada de pedagogia da alternância. Foi criada por agricultores franceses em 1935 e chegou ao Brasil em 1969. Segundo o Censo Escolar 2013, há 4.688 unidades desse tipo no país, a maioria em áreas em que o ir e vir diário é um desafio. A viagem pelo Rio Paraguai mostra como é difícil a locomoção na região. Com as freteiras, barcos que acomodam pessoas e gado, ir da cidade mais próxima (Corumbá) a Jatobazinho demora até 12 horas. A família de Glawber, que está no 4º ano, mora a oito horas da escola, de freteira. A rotina do garoto começa com o despertar, às 6 horas. No alojamento, ele salta do beliche, se veste e se enfileira para escovar os dentes. No refeitório, conversando ruidosamente, meninos e meninas se servem de leite, achocolatado, pão, manteiga e uva. Em uma das nove casas onde antes funcionava um hotelfazenda, a equipe docente debate estratégias de gestão de sala no horário de planejamento com a coordenadora. O encontro acaba para o início das aulas, às 8 em ponto. A quase 3 mil quilômetros dali, Julia Mayra Alcântara dos Santos, 16 anos, está se arrumando no alojamento que divide com outras garotas na Casa Familiar Rural (CFR) Padre Sérgio Tonetto, em Moju, a 70 quilômetros de Belém. Enquanto ela e os colegas de 8º ano tomam café, as merendeiras já planejam o almoço. O cardápio é: arroz, feijão, mortadela frita e refresco, a ração tradicional da rede pública, naquele dia sem os peixes e as hortaliças locais que vez por outra dão mais sabor aos pratos. Como no Pantanal, o trajeto até a escola dá indícios do isolamento dessa população. Não há placas de indicação na estrada e uma das pontes de acesso estava caída. Quem não quer fazer o trajeto de barco pelo Rio Jambuaçu precisa contornar o curso d’água por um caminho de chão que serpenteia por entre as casas das famílias remanescentes de uma comunidade quilombola. Na CFR, o ensino conjuga as disciplinas tradicionais com aulas de Técnicas Agrícolas, realizadas na horta e no pomar da instituição. Antes uma região de extrativismo de castanha, o entorno da escola viu sua paisagem transformada com a chegada da mineração. As árvores vieram abaixo e os habitantes hoje sobrevivem do plantio de mandioca, agressivo com o solo e de baixo valor no mercado. Os alunos são incentivados a disseminar conhecimento sobre culturas mais sustentáveis, como o cacau. Foi essa proposta que atraiu Julia para a instituição. "Quero trabalhar com agropecuária, por isso quis estudar aqui. Com o que aprendo, poderei melhorar a produção no campo", diz a garota. A cada mês, duas semanas são dedicadas às aulas, o chamado "tempo escola". As duas seguintes são destinadas ao "tempo comunidade", momento de aplicar em casa os saberes aprendidos. Mesmo quem não tem lavoura - caso de Julia, que mora com a mãe, professora, e o padrasto, marceneiro - se compromete a


passar as informações aos familiares.

UMA OPÇÃO PARA O MEIO RURAL Uma resolução do Ministério da Educação (MEC), de 2006, aponta a alternância como a melhor opção pedagógica para áreas como as em que vivem Glawber e Julia por valorizar o desenvolvimento do meio rural. O apoio, porém, não é unânime. "Há o risco de acentuar a separação campo-cidade, já que o regime pode perpetuar o vínculo dos alunos à terra", diz a colunista de Nova Escola Neurilene Martins, que investigou escolas rurais em seu doutorado. A especialista tem dúvidas sobre a aplicação da alternância em larga escala, mas aprecia o olhar que contempla as especificidades do campo: "Nossas políticas sempre foram voltadas para os centros urbanos. Precisamos valorizar as regiões agrícolas". É essa a visão defendida pela CFR. "Formamos estudantes que possam cursar o Ensino Superior em qualquer área, mas que também tenham orgulho de permanecer aqui, aperfeiçoando suas técnicas", afirma o diretor Valmir Peres da Natividade. Segundo ele, a opção pela alternância custa 5 mil reais por aluno, anualmente. É bem mais do que o valor mínimo por estudante em tempo integral, 2.971 reais, garantido pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) em 2014. Para a complementação, a CFR estabelece parcerias com a iniciativa privada e com os governos do estado e do município. A Jatobazinho, que também se mantém com parcerias, compartilha dos mesmos princípios. "Apesar do isolamento, as crianças têm o direito de se apropriar do conhecimento", diz a coordenadora Francisca de Oliveira. Diferentemente da CFR, porém, a unidade não mescla o currículo tradicional à aprendizagem de práticas agrícolas. Isso porque a maioria das famílias atendidas pelo estabelecimento de ensino trabalha com pesca e com a coleta da isca, entre outras atividades. Os pais de Glawber, por exemplo, trabalham com zeladoria e limpeza numa reserva ecológica a cerca de 100 quilômetros dali. "Ensinar a agricultura, nesse contexto, não faria tanto sentido", diz Sylvia Helena Bourroul, diretora executiva do Acaia Pantanal, entidade responsável pela escola. A instituição se orgulha da rica lista de atividades culturais e esportivas. Há feiras literárias e palestras com convidados. Durante a visita da reportagem, um arqueólogo da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) conversou com os alunos sobre os primeiros homens da região. "Nosso objetivo é articular o Pantanal ao mundo", continua Francisca. A proposta é dialogar com os muitos saberes dos alunos. Numa região em que a tradição oral ainda é muito forte, a garotada tem na ponta da língua as histórias típicas e os causos da região. Acabam trazendo informações sobre o ecossistema pantaneiro, que, no ambiente escolar, pode ser problematizado à luz do conhecimento científico. O Rio Paraguai, por exemplo, é objeto de estudo frequente. As planícies da região também. A


abundante fauna local está sempre presente. A turma do 1º ano, por exemplo, fazia a lista dos objetos da sala quando surgiu o interesse em saber como se escreve o nome dos animais do cotidiano: onça, jaguatirica... coletivamente, todos começaram a buscar referências nos materiais da classe. À noite, aliás, uma jaguatirica apareceu na porta do alojamento e assustou nosso fotógrafo. Crianças e professores riram. A turma lida com os bichos com um misto de naturalidade e respeito. Banhos de rio não ocorrem por causa do perigo das piranhas. Na CFR, o universo dos alunos também permeia as aulas. A cada semana, um tema gerador serve de base para as atividades. "Decidimos trabalhar a identidade local, pois avaliamos que alguns estudantes não valorizavam suas origens", diz a coordenadora Waldirene Castro. A instituição segue a resolução sobre o ensino quilombola e, em cada área, aborda temas específicos: em História, por exemplo, todos conheceram a criação das comunidades da região. Já em Matemática, há espaço para o estudo das medidas usadas nas atividades rurais. Para dar conta desse modelo, as duas instituições investem em formação. Na CFR, todos os docentes são pós-graduados em Educação do Campo, participam de cursos sobre o tema e de reuniões semanais de planejamento e avaliação. Na Jatobazinho, vale a mesma rotina. As educadoras fazem, ainda, cinco capacitações por ano no Instituto Acaia, em São Paulo. NA DESPEDIDA, SAUDADE E INCERTEZA O isolamento e a convivência permanente entre alunos e educadores influenciam as relações. "Antes, dormíamos no quarto das alunas, mas há um ano ganhamos nosso espaço. Sentíamos falta de privacidade", conta Francilene Augusta Matias Martins, professora de Matemática na CFR. Na Jatobazinho, as seis educadoras dividem uma moradia da propriedade. "Mesmo assim, somos professores em tempo integral. Tentamos mostrar que estamos juntos nessa, pois também vivemos longe dos familiares e sentimos falta deles", conta Suzane Corrêa, docente do 4º ano. Todas elas vêm de centros urbanos, o que gera trocas e aprendizagem. "Lembro quando me perguntaram se sabia ‘carnear’ uma vaca. Hoje, conheço o vocabulário das crianças. Elas dizem: ‘não sabia que ia gostar de ter uma professora fresca, da cidade! ", diverte-se. Apesar da saudade de casa, a despedida é difícil. "Eles perguntam se vamos voltar". Termina o dia nas duas escolas e os estudantes retornam ao alojamento. As turmas se dividem entre a leitura e rodas de conversa. Julia planeja a carona de moto até o Jambuaçu, de onde parte o barco para encontrar a família. Glawber demora para dormir. Observa o sono do mascote da turma, o pequeno Deivid Araújo, 6 anos, e seu inseparável Scooby Doo de pelúcia. O diário revela a razão da insônia: "Fim de semana... Um belo passeio de barco em casa... Ebaaaaaaa!".


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