Revista TCE

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julho | agosto | setembro 2010 | v. 76 — n. 3 — ano XXVIII

Entrevista

revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais

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revista do tribunal de contas DO ESTADO de minas gerais julho | agosto | setembro 2010 | v. 76 — n. 3 — ano XXVIII

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Mário Palmério – Chapadão do Bugre

(...) “Gostoso, aquele sossego: abençoado banho de chuva! Desentulhado das nuvens feias, limpo e alto, agora o céu virava picadeiro das maritacas: fazia gosto vê-las empinar, parando as asas no cai-não-cai sustentado apenas pelo vento, e, em seguida, mergulhar na curva fechada da meiavolta. Até as araras — gritalhonas, mas donas de muita ordem em vôo — vinham festejar o bom tempo, disparadas rasantes. Isso, no céu. Na terra, cheirosa a molhado, a música da vacada de cria e da bezerrada. A filharada num curral, as vacas em outro, não tinha fim a chorosa ladainha das vozes sempre iguais. Iguais, não: havia sutileza qualquer em cada chamado e em cada resposta, porque os interessados se entendiam perfeitamente bem. Se todas as vacas eram chamadas por um mesmo “mãããe” e todas respondiam aos filhos o mesmo “heeem”, que de sutil impedia fosse a mãe de um bezerro responder erradamente ao filho de outra? E Deus nos livre de acontecer tal confusão! Carinhosa com o seu bezerro, a vaca de cria trata mal o filho alheio. E o ciúme é tal, na coletividade das vacas paridas, que um mal-entendido, por mais inocente, pode provocar sério conflito.” (...)


FICHA CATALOGRÁFICA ISSN 0102-1052 Publicação do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais Av. Raja Gabaglia, 1.315 — Luxemburgo Belo Horizonte — MG — CEP: 30380-435 Revista: Edifício anexo — (0xx31) 3348-2142 Endereço eletrônico: <revista@tce.mg.gov.br> Site: <www.tce.mg.gov.br> As matérias assinadas são de inteira responsabilidade de seus autores. Solicita-se permuta. Exchange is invited. Pidese canje. On demande l’échange. Man bittet um Austausch. Si richiede lo scambio.

FICHA CATALOGRÁFICA Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Ano 1, n. 1 (dez. 1983- ). Belo Horizonte: Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, 1983

Periodicidade irregular Publicação interrompida Periodicidade trimestral

(1983-87) (1988-92) (1993- )

ISSN 0102-1052 1. Tribunal de Contas — Minas Gerais — Periódicos 2. Minas Gerais — Tribunal de Contas — Periódicos.

CDU 336.126.55(815.1)(05)

Projeto gráfico: Alysson Lisboa Neves — MTB/0177-MG — emaildoalysson@gmail.com Capa, contracapa e diagramação: Unika.com Editora Foto da capa: Mário Palmério — Memorial Mário Palmério — Uniube Texto da primeira folha: Excerto de: PALMÉRIO, Mário. Chapadão do Bugre. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994. Impressão e acabamento: Rona Editora Gráfica


TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CONSELHEIROS Wanderley Geraldo de Ávila Presidente Antônio Carlos Doorgal de Andrada Vice-Presidente Adriene Barbosa de Faria Andrade Corregedora Eduardo Carone Costa Conselheiro Elmo Braz Soares Conselheiro Sebastião Helvecio Ramos de Castro Conselheiro Gilberto Diniz Conselheiro em Exercício

AUDITORES Edson Antônio Arger Gilberto Diniz Licurgo Joseph Mourão de Oliveira Hamilton Antônio Coelho

pROCURADORES DO Ministério Público de Contas Glaydson Santo Soprani Massaria Procurador-Geral Maria Cecília Mendes Borges Procuradora Cláudio Couto Terrão Procurador


COMPOSIÇÃO DO PLENO* Conselheiro Wanderley Geraldo de Ávila — Presidente Conselheiro Antônio Carlos Doorgal de Andrada — Vice-Presidente Conselheira Adriene Barbosa de Faria Andrade — Corregedora Conselheiro Eduardo Carone Costa Conselheiro Elmo Braz Soares Conselheiro Sebastião Helvecio Ramos de Castro Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz *As reuniões do Tribunal Pleno ocorrem às quartas-feiras, 14h. Diretor da Secretaria-Geral: Marconi Augusto Fernandes de Castro Braga Fones: (31) 3348-2204 [Diretoria] (31) 3348-2128 [Apoio]

COMPOSIÇÃO DA PRIMEIRA CÂMARA* Conselheiro Antônio Carlos Doorgal de Andrada — Presidente Conselheira Adriene Barbosa de Faria Andrade Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz Auditor Relator Edson Antônio Arger Auditor Relator Licurgo Joseph Mourão de Oliveira *As reuniões da Primeira Câmara ocorrem às terças-feiras, 14h30. Diretora da Secretaria: Joeny Oliveira Souza Furtado Fones: (31) 3348-2585 [Diretoria] (31) 3348-2281 [Apoio]

COMPOSIÇÃO DA SEGUNDA CÂMARA* Conselheiro Eduardo Carone Costa — Presidente Conselheiro Elmo Braz Soares Conselheiro Sebastião Helvecio Ramos de Castro Auditor Relator Gilberto Diniz Auditor Relator Hamilton Antônio Coelho *As reuniões da Segunda Câmara ocorrem às quintas-feiras, 10h. Diretora da Secretaria: Mônica da Cunha Rodrigues Fones: (31) 3348-2415 [Diretoria] (31) 3348-2189 [Apoio]


TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE MINAS GERAIS

CORPO INSTRUTIVO diretoria-geral de Controle externo Cristina Márcia de Oliveira Mendonça Fone: (31) 3348-2370 diretoria dE CONTROLE EXTERNO DO ESTADO Valquíria de Sousa Pinheiro Fone: (31) 3348-2223 diretoria de aSSUNTOS ESPECIAIS E DE ENGENHARIA E PERÍCIA Cristiana de Lemos Souza Prates Fone: (31) 3348-2516 diretoria de CONTROLE EXTERNO DOS MUNICÍPIOS Conceição Aparecida Ramalho França Fone: (31) 3348-2255 diretoria-GERAL DE administraÇÃO Rodrigo Gatti Silva Fone: (31) 3348-2101 diretoria de GESTÃO DE PESSOAS Flávia Maria Gontijo da Rocha Fone: (31) 3348-2120 diretoria de PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E finanças Isabel Rainha Guimarães Junqueira Fone: (31) 3348-2220 diretoria ADMINISTRATIVA E DE SERVIÇOS Langlebert Alvim da Silva Fone: (31) 3348-2402 diretoriA da TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO Armando de Jesus Grandioso Fone: (31) 3348-2308 diretoria da secretaria-geral Marconi Augusto F. Castro Braga Fone: (31) 3348-2204 diretoriA da escola de contas Renata Machado da Silveira Van Damme Fone: (31) 3348-2698 gabinete da presidência Fátima Corrêa de Távora Chefe de Gabinete Fone: (31) 3348-2481 Antônio Rodrigues Alves Júnior Assessor Fone: (31) 3348-2312


Revista do

Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais

DIRETOR conselheiro Antônio carlos doorgal de andrada

VICE-DIRETOR auditor Licurgo Joseph mourão de Oliveira

SECRETÁRIA maria tereza valadares costa

EQUIPE TÉCNICA Aline Toledo Silva eliana sanches engler LÍVIA MARIA BARBOSA SALGADO regina cássia nunes da silva

- rEVISÃO Leonor Duarte Fadini MARIA JOSÉ DE ARAÚJO RIOS Maria Lúcia Teixeira de Melo

- PESQUISA Mariana Sousa Canuto CHRISTINA VILAÇA BRINA COLABORAÇÃO DA COMISSÃO DE JURISPRUDÊNCIA E SÚMULA


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Entrevista

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Mário Palmério — Minas até os confins Luís Giffoni*

Mário Palmério, muitas vidas em oitenta anos de existência (1916-1986), dois romances — Vila dos Confins (1956) e Chapadão do Bugre (1965) —, um mundo: o sertão. O sertão dos rios de redemoinhos, canaletes, golfos, paredões de pedra preta e margens de barro escorregadio, rios onde peixes dão um chupão das profundas e levam quase metade da vara para dentro do rebojo, rios de surubins de ferrada misteriosa, fora deste mundo, aparentados com caboclo-d’água, o sertão das enchentes que apanham caixa e sobem, sobem, embocando por tudo o que é ribeirão confluente e vizinha lagoa — misturando águas, tomando conta da praça, menos — devagar com o andor! —, menos de um rebelde riacho de águas límpidas que se mantém impávido, o sertão da chuva rude que fica estralejando nas vidraças das janelas descargas de pedradas de estilingue, o sertão do céu lavado e esfregado de novo, infinito de azul, sem nem uma paininha, nem uma penugenzinha de nuvem, nada, nada para perturbar a paz, o sertão das aves, do joão-corta-pau que vara as noites, sem sono, do urutau-tau-tau, da narceja água só, água só, só, só, só, do enjoamento dos queroqueros com sua voação assanhadinha e sua gritalhadinha, o sertão onde se caçavam as miúdas perdizes, codornas e nhambus, o sertão da caça graúda das emas, queixadas, capivaras e veados das três moradas: campeiros, catingueiros e mateiros, o sertão das jaguaranas com miado de trovão, furioso e agoniado, dois ovos de fogo nos olhos, onça que ri e abraça a zagaia contra o peito, onça-preta hipnótica que não se enfrenta enquanto tem cara de onça, enquanto não alisa a cara, sertão do esborrachar maduro dos mamões pinchados no chão, sertão da tristura de cerrado feio, espinhento e seco, de terra que não presta, frequentada pelos lagartões tiú, povinho sonso, surdo e rabudo, sertão das manadas de vaga-lumes e suas brasinhas desinquietas a lusluzir, rasteiras, apaga-acende, acende-apaga, sertão de noites tão frias que bicho nenhum de menor porte sai em vadiação, sertão do pernilongo berimbau, curtozinho, rajadinho, músico, morador de sombra e podridão, sertão sem vento, onde, se

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Luís Giffoni, um dos mais premiados escritores mineiros, lançou recentemente o livro de crônicas/ensaios O Fascínio do Nada, no qual inspira sua palestra O Senso Crítico e os Desafios do Século 21 (contatos: giffonis@terra.com.br).

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alguma grimpa balança, o motivo é briga por causa de lugar — ranhetices de tucano e arara, sertão de invernada de puro capim, mar alto de verdura chã, fartura triste, monocórdia, sertão da gostosa rede de buriti, ar de curral com cheiro adocicado de boi, cana picada, esterco fresco de gado e fumação de cigarrão de fumo capoeira, sertão do veranico que, no dia seguinte à chuva, transforma o massapé da estrada boiadeira num coscorão duro e vidrado, sonoro à marcha bem ferrada das montarias, sertão onde a tabatinga branca e recozida do chapadão, sob o céu carregadinho de estrelas e uma unhazinha à toa de lua, espelha o frio meio-claror da madrugada. Sertão de gente também. Gente matreira, avessa a conversalhada e abelhudismo, partidária da reserva e da ponderação. Gente que ama em silêncio, quase com medo de externar o desejo. Gente querente da paz que, por uma isca de ofensa, pela honra perdida, pela traição da mulher, pela ânsia de vingança, pela política, comete as maiores atrocidades. Sertão de sangue que gorgola aos tufos, depois que um machado racha ao meio a cabeça do amante flagrado com as calças que o peavam pelas pernas e o prendiam meio caído no chão. Sertão de política e politicagem que prepara marmitas para os eleitores, que paga seu transporte, faz comícios, churrascos e shows gratuitos para os correligionários. Sertão dos coronéis ainda capazes de controlar currais de votos. Sertão de chacinas executadas por militares, em que um patacão de ouro, pateque, redondão e grosso na algibeira salva um condenado. Sertão onde um deputado, alter ego do escritor, observa, anota e recria Minas Gerais enquanto sai à caça de votos para a Câmara Federal. Sertão que também lhe permitiu a eleição para a Academia Brasileira de Letras. Mário Palmério perpetuou nosso sertão com lirismo e realismo. Ele tem certidão, coração, cheiro e voz de Minas Gerais. Nasceu e morreu aqui: Monte Carmelo (1916) — Uberaba (1996). Buscou no estado a matéria-prima de seus dois grandes romances. Descreveu nossos cafundós, sobretudo pelas bandas do Urucuia, do Triângulo e de Paracatu, de onde trouxe um mundo à parte, cosmo particular, enorme, em extinção. Costurou enredo e natureza em episódios que assustam e fascinam pela minúcia, pela beleza, pela leveza, pela originalidade e criatividade. Inventou um regionalismo próprio. Mário Palmério — ao lado do amigo Guimarães Rosa, com quem planejou sobrevoar o sertão num teco-teco, sonho nunca realizado —, voou até os confins com seu talento literário para que continuemos sonhando com as Minas, muitas, que não mais existem.

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SUMÁRIO Entrevista Presidente do TRE-MG — Desembargador Kildare Gonçalves Carvalho

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Notícias TCEMG em defesa das prerrogativas constitucionais das Cortes de Contas TCE presta assessoria técnica aos jurisdicionados Tribunal apresenta o Sicom Lançado o Diário Oficial de Contas

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Doutrina Breve ensaio sobre a convalidação legislativa de pagamentos irregulares efetuados pela Administração Pública Leonardo de Araújo Ferraz Fernando Vilela Mascarenhas Da reserva do possível e da proibição de retrocesso social Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira A norma tributária e sua relação com a Teoria Egológica e a norma jurídica de Kelsen Eduardo Morais da Rocha O controle dos atos administrativos pelos tribunais diante da nova dimensão dos conceitos de discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa Edgard Marcelo Rocha Torres Obrigatoriedade de se observar o princípio da anterioridade na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais: análise do enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG Caroline Lima Paz Luisa Pinho Ribeiro Kaukal Paula Cristina Romano de Oliveira

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Direito Comparado El control judicial de la discrecionalidad en la asignación de pautas publicitarias del Estado en la Argentina Agustín A. M. García Sanz

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Pareceres e decisões Tribunal reforma decisão denegatória de registro de ato de aposentadoria Recurso de Revisão n. 734.672 Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa Tribunal reforma parcialmente decisão que imputou multa por irregularidades em procedimento licitatório Recurso Ordinário n. 812.449 Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa

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Poder Legislativo municipal: observância aos novos limites de despesas estatuídos pela Emenda Constitucional n. 58/2009 Consulta n. 811.970 Relator: Conselheiro Elmo Braz 136 Impossibilidade de prorrogação contratual fundamentada em interpretação extensiva do inciso II do artigo 57 da Lei de Licitações Consulta n. 833.225 Relator: Conselheiro Elmo Braz 139 Possibilidade de concessão de 13° salário a Vereadores Consulta n. 803.574 Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada 142 Adoção do instituto jurídico do credenciamento para prestação de consultas médicas Consulta n. 811.980 Relator: Conselheiro Antônio Carlos Andrada 174 Possibilidade de utilização do procedimento de dispensa de licitação quando esta for inexigível e seu valor se enquadrar nas hipóteses do artigo 24, I e II, da Lei n. 8.666/93 Consulta n. 812.005 Relatora: Conselheira Adriene Andrade 180 Limitações ao exercício concomitante do mandato de Prefeito com atividade profissional privada Consulta n. 812.227 Relatora: Conselheira Adriene Andrade 184 Sistema de Registro de Preços: necessidade de demonstração da conformidade dos preços que orientam o certame com os praticados no mercado Consulta n. 812.445 Relator: Conselheiro Sebastião Helvecio 188 Impossibilidade de autorização, pelo Poder Legislativo, de abertura de créditos especiais ao Poder Executivo sem indicação das fontes financiadoras desses créditos no projeto de lei Consulta n. 833.284 Relator: Conselheiro Sebastião Helvecio 198 Cômputo dos recursos repassados à iniciativa privada, para execução de serviços de atendimento à saúde, no percentual mínimo de 15% exigido constitucionalmente Consulta n. 809.069 Relator: Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz 204 Custeio pela administração pública municipal de despesa decorrente de prorrogação de licença-maternidade Consulta n. 812.556 Relator: Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz 208 Irregularidades praticadas com grave violação às normas licitatórias Processo Administrativo n. 697.917 Relator: Auditor Licurgo Mourão 215 Irregularidades em contratações e em procedimentos licitatórios Processo Administrativo n. 701.613 Relator: Auditor Hamilton Coelho 226 Licitação para locação de veículos leves, utilitários e motocicletas: necessidade de parcelamento do objeto em lotes Procurador Glaydson Santo Soprani Massaria 254 Estudo Técnico

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Entrevista Presidente do Tre-Mg

Desembargador Kildare Gonçalves Carvalho

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Cláudia Ramos. Assessoria de Comunicação do TRE.

ildare Gonçalves Carvalho, atual Presidente do Tribunal Regional Eleitoral e Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, é o entrevistado desta edição da Revista do TCE. Mineiro de Bom Sucesso, graduado em Direito, em 1973, pela Universidade Federal de Minas Gerais, foi Secretário de Estado nos anos de 1986, 1987 e 1994, Procurador Geral em 1991 e, durante o biênio 1995-1996, Consultor-Chefe da Assessoria Técnico-Consultiva do Estado de Minas Gerais. Atuou, de fevereiro a julho de 2010, como VicePresidente e Corregedor do TRE-MG. Renomado constitucionalista, desempenhou importante atividade acadêmica, lecionando a disciplina Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e na Faculdade de Direito Milton Campos, instituição onde ainda leciona. Em 1995, ministrou suas lições no 1º Curso de Especialização em Controle Externo, nesta Corte, em convênio com a PUC Minas. Autor de livros e diversos artigos de Direito Público, Kildare Gonçalves, pessoa cordial e acessível, de notável conhecimento jurídico, atendeu prontamente ao nosso convite para essa entrevista, na qual discorre sobre temas relativos à crise de representação, lei da ficha limpa, voto obrigatório, entre outros, de grande relevância.

REVISTA DO TCE — O Tribunal de Contas e a Justiça Eleitoral, apesar das competências distintas, possuem pontos de interseção, a exemplo do que prevê o art. 1°, I, g, da Lei Complementar n. 64/90, segundo o qual são inelegíveis “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente [...]”. Nesse aspecto, a jurisprudência está bem consolidada quanto à inelegibilidade decorrente da rejeição das contas dos chefes do Executivo, pelo Poder Legislativo. Contudo, no que tange à condenação desses agentes políticos por atos específicos de gestão pelos Tribunais de Contas, por meio de julgamento, ainda há muita polêmica, conforme se pode observar da análise 13


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da decisão não unânime proferida no Recurso Especial Eleitoral n. 29.535/PB.1 Como V. Exa. analisa essa questão? PRESIDENTE DO TRE-MG — Inicialmente, deve-se considerar que os Tribunais de Contas são funcionalmente independentes. O seu perfil constitucional não é de mero auxiliar do Legislativo, mas de instituição competente para o exercício das funções de fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da Administração Pública. No que se refere à questão colocada, penso que se deve distinguir a atribuição conferida aos Tribunais de Contas mencionada no art. 71, inciso I, da Constituição Federal, qual seja, a de apreciar as contas prestadas anualmente pelo chefe do Poder Executivo, mediante parecer prévio, que deverá ser enviado ao Poder Legislativo, e aquela outra atribuição prevista no inciso II do mesmo art. 71, que é a de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário. Esta hipótese é diversa daquela prevista no inciso I, que se refere apenas a parecer prévio, enquanto a do inciso II envolve a verificação, pelas Cortes de Contas, da responsabilidade do ordenador e administrador de despesas, não se cuidando, pois, de apurar responsabilidade política, mas técnica pela gestão de recursos públicos, cujas contas deverão ser prestadas diretamente ao Tribunal de Contas, cabendo-lhe o seu julgamento. O Tribunal de Contas, nesse caso, não emite parecer prévio, mas julga as contas, não funcionando como órgão técnico-auxiliar do Poder Legislativo, o que afasta a necessidade de julgamento político pelo Poder Legislativo. A despeito de reconhecer a existência de posicionamentos em contrário, como mencionado na indagação, o julgamento desfavorável aos agentes políticos por atos específicos de gestão pelos Tribunais de Contas, de que trata o inciso II do art. 71 da Constituição Federal, configuraria inelegibilidade à luz do disposto no art. 1°, I, g, da Lei Complementar n. 64/90, independentemente do pronunciamento do Legislativo.

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Recurso Especial Eleitoral n. 29.535/PB. Relator Ministro Marcelo Ribeiro. Ementa: “ELEIÇÕES 2008. REGISTRO DE CANDIDATO. REJEIÇÃO DE CONTAS. TRIBUNAL DE CONTAS. CÂMARA MUNICIPAL. COMPETÊNCIA. RECURSO PROVIDO. REGISTRO DEFERIDO. 1. A Câmara de Vereadores é o órgão competente para apreciar as contas de prefeito municipal. 2. A desaprovação das contas pelo Tribunal de Contas não é suficiente para que se conclua pela inelegibilidade do candidato. 3. Recurso especial provido. Decisão: O Tribunal, por maioria, proveu o Recurso, nos termos do voto do Relator. Vencidos os Ministros Carlos Ayres Britto (Presidente), Joaquim Barbosa e Felix Fischer.”

4 “[...] o julgamento desfavorável aos agentes políticos por atos específicos de gestão pelos Tribunais de Contas [...] configuraria inelegibilidade [...] independentemente do pronunciamento do Legislativo.”


Entrevista

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REVISTA DO TCE — Ainda considerando os pontos de interseção entre os órgãos, no caso de nosso Estado, como V. Exa. analisa, hoje, a comunicação entre o Tribunal de Contas e a Justiça Eleitoral? A relação institucional objetivando fins comuns, notadamente no que tange ao uso indevido da máquina e dos recursos públicos, é suficiente ou demanda aprimoramento? De que forma a atuação conjunta do Tribunal de Contas e da Justiça Eleitoral poderia reforçar a credibilidade do processo democrático? PRESIDENTE DO TRE-MG — Os Tribunais de Contas cumprem relevante papel no controle externo da atividade financeira e no uso de recursos públicos pelos agentes do Estado. A busca da efetividade desse controle contribui para o exercício da jurisdição eleitoral, que necessita das decisões dos Tribunais de Contas para o julgamento de questões envolvendo arguições de inelegibilidade fundadas no uso indevido da máquina administrativa e dos recursos públicos. Portanto, a análise das contas públicas e a responsabilização dos seus gestores, pelos Tribunais de Contas, torna-se relevante e imprescindível para a Justiça Eleitoral. As relações institucionais entre a Corte de Contas e o Tribunal Regional Eleitoral poderia ser ampliada mediante um diálogo cada vez mais estreito, como, por exemplo, treinamento e cursos de aperfeiçoamento de servidores dos quadros técnicos dessas instituições democráticas. REVISTA DO TCE — Em matéria de controle externo, a participação da sociedade é fundamental. O estímulo ao controle social é um dos objetivos estratégicos do TCEMG (Plano Estratégico 20102014), que visa fortalecer os mecanismos capazes de viabilizar a integração dos cidadãos no processo de acompanhamento da gestão e de fiscalização da aplicação dos recursos públicos. Em seu discurso de posse V. Exa. destacou a importância do controle social no combate a desvios, excessos e abusos na política. No que se refere às questões eleitorais, de que modo a sociedade pode contribuir para o combate desses abusos?

4 “A sociedade tem à sua disposição vários instrumentos ou ferramentas de controle em questões eleitorais, como o acesso a sites da Justiça Eleitoral, em que os cidadãos podem levar ao conhecimento dos órgãos próprios a existência de abusos no âmbito eleitoral.”

PRESIDENTE DO TRE-MG — A sociedade tem à sua disposição vários instrumentos ou ferramentas de controle em questões eleitorais, como o acesso a sites da Justiça Eleitoral, em que os cidadãos podem levar ao conhecimento dos órgãos próprios a existência de abusos no âmbito eleitoral. Exemplo disso é a Ouvidoria do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, que promove a interlocução entre o eleitor e o Tribunal, e também o sistema de “Denúncia online”, disponível no 15


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site do TRE de Minas Gerais. Após receber reclamações ou denúncias em matéria eleitoral, a Ouvidoria ou o “Denúncia online” encaminha aos setores competentes do Tribunal o teor dessas reclamações para que as providências sejam tomadas. Menciono ainda como mecanismos capazes de viabilizar a integração dos cidadãos no controle e no combate a desvios e excessos na política a iniciativa popular das leis, de que é exemplo o recente projeto de lei complementar, que resultou na denominada Lei da Ficha Limpa; o acesso da sociedade a registros administrativos e a informações sobre atos de governo; a realização de audiências públicas das Comissões do Legislativo com entidades da sociedade civil. REVISTA DO TCE — Há dez anos, a Justiça Eleitoral comemorou os 100% de informatização do voto, com o uso de urnas eletrônicas em todo o País. Desde 2008, a Justiça Eleitoral vem implantando a Biometria, dispositivo que identifica o eleitor por meio de sua impressão digital. O Brasil é um dos países pioneiros na implementação da tecnologia no sistema eleitoral. Para V. Exa., o que a utilização da tecnologia nas eleições representa para a democracia? PRESIDENTE DO TRE-MG — Em primeiro lugar, todos reconhecemos que a democracia do século XXI, que se inicia, é a democracia da participação popular e não apenas a democracia representativa. A participação popular no processo do poder, que se dá por meio de vários instrumentos, depende, para se desenvolver e atingir um nível adequado, da tecnologia, e, sobretudo, da informática. Não se pode desconhecer nem desprezar, nesta quadra da História, as ferramentas que a tecnologia nos oferece, sob pena de caminharmos para um retrocesso. Avanço democrático só é possível com a tecnologia. No caso específico da biometria, nas eleições de outubro deste ano, serão 60 os municípios brasileiros em que os eleitores serão identificados por meio das digitais, sendo que em Minas já passaram pelo recadastramento biométrico os Municípios de Curvelo, Pará de Minas, São João Del Rei e Ponte Nova. A nova tecnologia, que envolve os chamados Kit Bio, permite a obtenção das digitais e da fotografia de maneira rápida e fácil, sem maiores dificuldades de manuseio pelo servidor da Justiça Eleitoral. REVISTA DO TCE — É bastante visível e tem também recebido amplo reconhecimento o avanço da democracia no Brasil, com reflexos positivos no nosso processo eleitoral. A Justiça Eleitoral tem sido um dos grandes pilares destes avanços. Neste ano, 16

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“[...] todos reconhecemos que a democracia do século XXI, que se inicia, é a democracia da participação popular e não apenas a democracia representativa.”


Entrevista

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o voto do preso provisório e a campanha via internet indicam a ampliação da cidadania e da liberdade de expressão. Não estaríamos no momento de reestruturar a Justiça Eleitoral, hoje uma justiça de interseção? Uma justiça autônoma e permanente, com magistrados especializados em carreiras específicas não seria interessante? Ou o atual modelo é adequado? PRESIDENTE DO TRE-MG — Não vejo ainda a necessidade de se alterar o desenho institucional da Justiça Eleitoral, criada pelo Código Eleitoral de 1932, e reinstalada há 65 anos. E isso porque, como justiça de interseção, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é ligado ao Supremo Tribunal Federal (STF), o que considero positivo. É que possuindo a instância eleitoral máxima interseção com o STF — já que três de seus Ministros têm origem no Supremo Tribunal, cabendo a Presidência e a Vice-Presidência a dois deles —, quando o STF decide tema sobre o qual já houve interpretação do TSE, há menor possibilidade de divergência de posicionamentos, o que contribui para uma maior segurança jurídica em questões eleitorais. Além disso, a Justiça Eleitoral é o único ramo do Poder Judiciário em que os membros são eleitos. REVISTA DO TCE — Segundo informações obtidas no site do TSE, em abril de 2008, o Estado de Minas Gerais contava com um eleitorado de 292.081 jovens na faixa etária de 16 a 17 anos, o que representava 2,1% do eleitorado mineiro. Em abril do presente ano, conta-se com um eleitorado de 234.441 jovens nesta faixa etária, o que representa 1,63% do eleitorado. Na opinião de V. Exa., esses dados indicam um retrocesso no processo democrático? Há alguma explicação para a queda do voto voluntário dos jovens mineiros? PRESIDENTE DO TRE-MG — De fato, tem havido uma apatia política dos jovens em relação às questões políticas e eleitorais em nosso país. Penso

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“Não vejo ainda a necessidade de se alterar o desenho institucional da Justiça Eleitoral [...]. E isso porque, como justiça de interseção, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é ligado ao Supremo Tribunal Federal (STF), o que considero positivo.”

que este quadro pode ser alterado com a utilização da internet e de redes sociais de relacionamento, a partir das eleições gerais deste ano de 2010. Não considero que haja um único fator que possa explicar o fenômeno, mas um conjunto deles. Deve-se associar às mazelas na política, que certamente vem contribuindo para o desinteresse da juventude brasileira quanto às questões políticas, a falta de instrumentos de comunicação eleitoral mais ligados aos jovens eleitores, como, por exemplo, a internet, por onde irá circular, a partir de agora, mais informações capazes de sensibilizar os eleitores maiores de 16 e menores de 18 anos, transformando-os em info17


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politizados. Também a mudança de modelo, no domínio da legislação eleitoral, em que a ética passa a ser considerada como critério para a promoção de justiça, poderá contribuir para a inclusão política desse grupo de eleitores jovens. REVISTA DO TCE — Recente pesquisa realizada pelo Datafolha2 revela que 48% dos entrevistados são favoráveis e 48%, contrários ao voto obrigatório, que foi instituído pela Constituição de 1934. Qual a opinião de V. Exa. sobre o assunto. Existe hoje uma tendência à eliminação da compulsoriedade dessa espécie de voto? PRESIDENTE DO TRE-MG — Na realidade, o que é obrigatório é o comparecimento. De qualquer modo, o voto obrigatório, que é adotado em países com regime democrático consolidado, como Bélgica e Austrália, tem como virtude impedir o predomínio das oligarquias e a abstenção na política. Ademais, a adoção do voto facultativo poderia prejudicar os setores populares do eleitorado, que em maior medida, são os que deixariam de comparecer às eleições. Entendo que o voto facultativo não contribui para o aprimoramento e a vitalidade da representação política. REVISTA DO TCE — Apesar de quase existir um consenso nacional acerca da necessidade de uma ampla reforma política, abrangendo pontos como o financiamento público de campanhas, a fidelidade partidária, voto em lista, voto distrital (misto ou puro), parlamentarismo (ou presidencialismo mitigado), entre outros, ela não sai do papel ou do campo das discussões acadêmicas. A que V. Exa. atribui esse imobilismo? PRESIDENTE DO TRE-MG — A dificuldade em se realizar uma ampla reforma política decorre de vários fatores. Pode-se mencionar, dentre eles, a resistência da classe política em aprovar mudanças estruturais do sistema político brasileiro, mesmo porque não há consenso acerca de quais são as causas das diversas crises por que passa o sistema político. De qualquer modo, a reforma política só pode ser entendida e viabilizada se contribuir para o aperfeiçoamento do sistema democrático. O leque de propostas é muito extenso, o que parece ter contribuído para dificultar a implementação da reforma. Basta dizer que de 1989 a 2005 cerca de 180 propostas de reforma política tramitaram no Congresso Nacional. 2

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Pesquisa realizada, em 31/05/2010, pelo Instituto de Pesquisa Datafolha. Disponível no endereço eletrônico: <http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=981>.

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“[...] a adoção do voto facultativo poderia prejudicar os setores populares do eleitorado, que em maior medida, são os que deixariam de comparecer às eleições. Entendo que o voto facultativo não contribui para o aprimoramento e a vitalidade da representação política.”


Entrevista

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REVISTA DO TCE — V. Exa. acredita que a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva para tratar da reforma política seria uma alternativa viável, como alguns vêm defendendo na imprensa? PRESIDENTE DO TRE-MG — Se a Constituição, que é rígida, estabelece um processo mais dificultoso para sua alteração, traduzido na necessidade de observância de um quorum de 60% dos votos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o que significa o quorum de 3/5 desses mesmos votos, não é razoável que esse quorum seja facilitado para a apreciação de uma eventual reforma política. Qualquer alteração do texto constitucional deve observar o procedimento previsto no art. 60 da Constituição. Ressalto que a facilitação do quorum para mudanças na Constituição já se exauriu com a revisão do texto constitucional, prevista no art. 3° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. REVISTA DO TCE — Um problema sempre aventado nos Estados democráticos, em que os cidadãos elegem para seus representantes aqueles que irão decidir por eles os rumos do Estado, é a crise de representação. No Brasil, muito se tem discutido sobre as maneiras de mitigar tal crise e aproximar o cidadão dos seus representantes. Como V. Exa. enxerga essa questão? O voto distrital poderia ser uma solução? PRESIDENTE DO TRE-MG — O voto distrital, com efeito, aproxima o eleito dos eleitores que compõem o distrito eleitoral, mas deve ser adotado sem eliminar o sistema eleitoral proporcional. O voto distrital misto poderia ser um indicativo de superação da crise por que passa a representação política. REVISTA DO TCE — A Lei Ficha Limpa foi um marco no processo político eleitoral brasileiro. Segundo V. Exa., em seu discurso de posse, “uma conquista que consolida o processo de amadurecimento da sociedade brasileira”. V. Exa. considera a legislação suficiente ou ainda demandaremos um longo caminho para afastar candidaturas indesejáveis?

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“A Lei da Ficha Limpa é um precioso indicador de que está havendo mudança de paradigmas no âmbito da Justiça Eleitoral brasileira, com reflexos nos próprios partidos políticos que, certamente, terão maior cuidado na escolha de seus candidatos quando das convenções partidárias.”

PRESIDENTE DO TRE-MG — O aperfeiçoamento e a depuração de candidaturas indesejáveis não se faz num único momento, mas são conquistados ao longo do tempo. A Lei da Ficha Limpa é um precioso indicador de que está havendo mudança de paradigmas no âmbito da Justiça Eleitoral brasileira, com reflexos nos próprios partidos 19


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políticos que, certamente, terão maior cuidado na escolha de seus candidatos quando das convenções partidárias. REVISTA DO TCE — Ainda com relação à Lei Ficha Limpa, alguns juristas têm se posicionado pela sua inconstitucionalidade: primeiro, em decorrência da sua aplicabilidade imediata (já nas eleições que se aproximam), o que, segundo eles, desrespeitaria o princípio da anterioridade; depois, por afrontar o princípio da presunção de inocência. Ressalta-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal já concedeu liminares, suspendendo os efeitos das condenações de alguns políticos, que, a princípio, teriam suas candidaturas inviabilizadas pela Lei Complementar n. 135/2010. Neste sentido, como concretizar os anseios dos cidadãos por moralidade, em face de outros princípios constitucionais? PRESIDENTE DO TRE-MG — Não se deve esquecer de que inelegibilidade não é sanção. De qualquer modo, a colisão de direitos fundamentais deverá ser resolvida com a aplicação, sobretudo, dos princípios constitucionais, em que se destaca o princípio da moralidade, o qual serve de critério para o estabelecimento de novos casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa, a própria moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. REVISTA DO TCE — No mês de outubro, V. Exa. será o responsável por comandar a sucessão política em Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do País. Quais os maiores desafios da função? PRESIDENTE DO TRE-MG — Garantir eleições limpas e honestas, atuando com rigor, mas respeitando o direito que tem todo candidato de divulgar suas ideias e propostas com vistas a obter o voto do eleitor.

4

“Espera-se que cada eleitor tenha a consciência e a convicção de que, pela força do voto, que é a afirmação da cidadania, pode contribuir para realizar as suas expectativas no ambiente político em que vive, escolhendo as melhores propostas apresentadas pelos candidatos, sem negociar ou permitir que se negocie o seu voto.”

REVISTA DO TCE — Considerando que a Revista do TCE circulará no mês das eleições, V. Exa. gostaria de deixar uma mensagem aos cidadãos brasileiros? PRESIDENTE DO TRE-MG — Espera-se que cada eleitor tenha a consciência e a convicção de que, pela força do voto, que é a afirmação da cidadania, pode contribuir para realizar as suas expectativas no ambiente político em que vive, escolhendo as melhores propostas apresentadas pelos candidatos, sem negociar ou permitir que se negocie o seu voto. 20

Por: Carolina Pagani Passos, Cláudia Costa de Araújo e Maria Tereza Valadares Costa


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notÍCIAS TCEMG em defesa das prerrogativas constitucionais das Cortes de Contas para emitir parecer opinativo, restando competência para julgamento apenas das contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II da Constituição da República. Com o ingresso do TCEMG como amicus curiae na Reclamação n. 10.439 pretende-se defender as prerrogativas institucionais das Cortes de Contas, estatuídas na Constituição, e oferecer ao Supremo Tribunal Federal todos os elementos informativos possíveis e necessários à correta resolução da controvérsia. ASSCOM TCEMG

Os Conselheiros do TCEMG aprovaram, na sessão plenária do dia 25/08, proposta do Conselheiro Antônio Carlos Andrada para que a Corte de Contas de Minas apresente, junto ao Supremo Tribunal Federal, pedido de ingresso como amicus curiae na Reclamação n. 10.439, que tramita naquele tribunal. A Reclamação proposta pelo ex-Prefeito do Município de Maranguape/CE baseiase na interpretação dada pelo STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) n. 3.715, segundo a qual o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará não possui competência para julgar contas de chefes do Poder Executivo, mas apenas

TRIBUNAL PLENO

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TCE presta assessoria técnica aos jurisdicionados Há algum tempo, o Tribunal constatou a necessidade de criação de um setor que atendesse a crescente demanda por informações e orientações decorrente da complexidade da gestão e fiscalização dos recursos públicos. Esse diagnóstico fez com que o Planejamento Estratégico do TCEMG (2004-2008) previsse a criação de uma unidade técnica com pessoal especializado, voltada ao atendimento dos públicos interno e externo. Em dezembro de 2009, o TCEMG instituiu por meio da Resolução n. 12 a Assessoria de Orientação Técnica (AOT) com a missão de reduzir irregularidades e desconformidades nas prestações de contas. Ainda pouco divulgada e conhecida, essa unidade técnica, já em funcionamento, registra grande procura por seus serviços. No período de março a agosto, foram recebidas 38 visitas de jurisdicionados, cerca de 430 pedidos de orientação por email e mais de 200 ligações telefônicas. Além de prestar informações de caráter técnico aos jurisdicionados e aos servidores da casa, a OAT assessora a Direção superior. Os dados captados pelo setor são tabulados, analisados, transformados em estatísticas e em dados analíticos, que servirão de subsídio às ações de capacitação, promovidas pelo TCEMG. A OAT tem como objeto de trabalho o esclarecimento das dúvidas suscitadas na aplicação de dispositivos legais concernentes a matérias de competência do Tribunal, considerando os posicionamentos por ele firmados. Segundo Isaura Oliveira, Diretora da AOT, os questionamentos e solicitações mais frequentes são os relativos a matéria licitatória, a remuneração de agente político, à LRF e a aplicação de recursos em educação e saúde. Os contatos com a AOT podem ser feitos pelo telefone: 3348-2632/3348-2672, por e-mail: aot@tce.mg.gov.br, e ainda pessoalmente, mediante agendamento prévio. Os questionamentos são recebidos, cadastrados e respondidos de acordo com a ordem cronológica dos recebimentos.

Pedidos de orientação técnica recebidos no e-mail aot@tce.mg.gov.br

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Notas

TCE inaugura sala da OAB/MG O TCEMG conta, agora, com uma sala da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção Minas Gerais, situada no andar térreo do edifício sede. Decorrente de um termo de cessão de uso, assinado entre o Presidente Wanderley Ávila e o Presidente da OAB/MG, Luis Cláudio da Silva Chaves, a nova unidade ganhou o nome do Conselheiro José Ferraz, em homenagem ao ex-presidente do Tribunal nos anos de 2001 e 2002.

Auditor Licurgo Mourão lança livro em comemoração aos dez anos da LRF No VII Fórum Brasileiro de Contratação e Gestão Pública, realizado em maio, na cidade de Brasília, o Auditor Licurgo Mourão lançou o livro “Lei de Responsabilidade Fiscal — ensaios em comemoração aos 10 anos da Lei Complementar n. 101/00”. Publicada pela Editora Fórum, a obra reúne estudos e engloba assuntos de relevância e de interesse de todo o sistema de controle brasileiro e tem como coautores os mais ilustres estudiosos do assunto.


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Tribunal apresenta o

Sicom

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, com amparo no Planejamento 2010/2014 e tendo como estratégia o aprimoramento do exercício do controle externo, deu início ao projeto de desenvolvimento e implantação de um novo sistema informatizado para remessa de dados municipais: o Sistema de Controle de Contas Municipais (Sicom). Após visitas técnicas a Tribunais de Contas de outros Estados, optou-se pelo Sicom — sistema utilizado pelo Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás — considerado o mais adequado ao ambiente do TCEMG. O Sicom disponibilizará várias ferramentas de análise e consulta sobre a receita arrecadada e os gastos públicos realizados pelos jurisdicionados. Os dados consolidados pelo sistema permitirão aos municípios detalhamento de informações e, até mesmo, avaliação da eficiência de programas de trabalho, ações e metas da gestão municipal. Da mesma forma que facilitará o controle das contas municipais, pelo Tribunal, o uso dessa tecnologia beneficiará o jurisdicionado, que poderá visualizar todas as informações que remete ao TCEMG, bem como requerer a emissão de certidões eletrônicas sobre os limites da LRF e sobre operações de crédito, a partir do próprio sistema. Com o objetivo de apoiar o município na implantação do Sicom, o Tribunal de Contas estabeleceu parceria com a Associação Mineira de Municípios (AMM), certo de que o sistema será um instrumento de aperfeiçoamento da gestão municipal, na medida em que permitirá que o jurisdicionado tome conhecimento dos dados apurados pelo controle externo, a partir de acompanhamento mensal, ainda no curso da gestão, a tempo, portanto, de promover medidas necessárias ao saneamento de possíveis falhas, contribuindo para uma gestão eficiente e eficaz. Por fim, o Sicom será, também, um instrumento de transparência, ao disponibilizar para a sociedade os dados relativos à gestão municipal.

Notas

Notícias

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TCEMG em evento do SEBRAE-MG O TCEMG foi representado pelo Auditor Licurgo Mourão no “Fomenta Minas”, realizado na cidade de Uberlândia. No evento, o Auditor ministrou a palestra intitulada “A Visão do TCE-MG em face da Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas [MPEs] nas Licitações Públicas”. O “Fomenta Minas”, iniciativa conjunta do governo de Minas e do SEBRAE, tem como objetivo incentivar a participação das MPEs nas contratações públicas, de acordo com as normas e exigências da LC. N. 123/2006.

Conselheiro Sebastião Helvecio apresenta estudo em conferência nos EUA O Conselheiro Sebastião Helvecio participou no dia 1° de julho da 3ª Multiconferência internacional sobre engenharia e tecnologia da informação, que ocorreu em Orlando, na Flórida. O Conselheiro apresentou o trabalho “Tecnologia da informação e sua utilização no TCEMG”, desenvolvido com a colaboração do Diretor de TI, Armando Grandioso, cuja temática é o uso da tecnologia de informação a serviço do cidadão.

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Lançado o

Diário Oficial de Contas O TCEMG lançou o Diário Oficial de Contas (DOC), órgão oficial eletrônico para publicação, divulgação dos atos administrativos e processuais e comunicação em geral. De acordo com o Presidente Wanderley Ávila, o DOC “trará maior rapidez na tramitação dos processos, sustentabilidade ambiental com a redução do uso de recursos naturais, além de economia aos cofres públicos”. No período compreendido entre 02 de agosto a 03 de novembro de 2010, as publicações e divulgações do Tribunal ocorrerão no “Minas Gerais” e no DOC, prevalecendo os dados da versão impressa e a contagem dos prazos processuais fixados na Resolução n. 12/2008. A partir do dia 04 de novembro de 2010, as publicações e divulgações do Tribunal serão efetuadas, exclusivamente, por meio do DOC, para todos os efeitos legais, excetuadas aquelas exigidas por norma específica. O Diário Oficial de Contas pode ser acessado por meio do endereço eletrônico <doc.tce.mg.gov.br>.

Notas

TCE-MG presente em Seminário nacional realizado no Pará A convite do TCM-PA, o Auditor Licurgo Mourão representou o TCEMG no “II Seminário de Controle Externo da Administração Pública Municipal”, com a palestra “Dez anos da Lei de Responsabilidade Fiscal: Repercussões nas Licitações e Contratos Públicos”. O Seminário aconteceu em Belém, no dia 27/05/10, promovido pelo Ministério Público de Contas (MP/TCMPA) e o pelo TCM/PA, realizado pela Editora Fórum.

Fiscalização das obras do Mineirão para a Copa Representantes do Governo estadual apresentaram ao TCEMG, em 13/07, os projetos das obras no Mineirão e entorno, para a Copa do Mundo de 2014. De acordo com o planejamento, o estádio deve ficar pronto em dezembro de 2012, já que Belo Horizonte quer sediar também jogos da Copa das Confederações, em junho de 2013.

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Doutrina

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Breve ensaio sobre a convalidação legislativa* de pagamentos irregulares efetuados pela Administração Pública

Leonardo de Araújo Ferraz Técnico do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Mestre e doutorando em Direito Público pela PUC Minas. Professor do Centro Universitário Newton Paiva. Presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB/MG. Fernando Vilela Mascarenhas Acadêmico de Direito da UFMG.

C’est une expérience éternelle que tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser; il va jusquá ce quíl trouve des limites. Montesquieu

Resumo: O presente estudo trata da possibilidade de convalidação de pagamentos, em tese irregulares, pela Administração Pública, através da edição de leis, em data posterior, com efeitos retroativos, abarcando assim o instituto da convalidação, sua aplicação e extensão aos atos administrativos. A questão traz à tona princípios do Direito Administrativo e Constitucional, uma vez que o tema abordado relaciona-se com a possibilidade ou não de convalidação de atos administrativos por lei — ordinárias e complementares —, em seu sentido formal e material. Serão tratadas ao longo deste ensaio questões relativas à nulidade e anulabilidade de atos administrativos, além de explanações correlacionadas ao tema. Em sequência, será focalizada a discussão acerca da competência originária dos agentes políticos para a propositura de leis relativas ao aumento de remuneração dos servidores estatais. Posteriormente, após uma compilação de jurisprudência pátria sobre o tema, concluir-se-á pela impossibilidade, em regra, de convalidação dos pagamentos irregulares, por lei, sem desprezar as nuances do caso concreto. * Importante, de plano, deixar claro que outros tipos de convalidação de atos viciados, como, por exemplo, aqueles decorrente dos efeitos do tempo, envolvendo os institutos da prescrição e a decadência não serão objeto de abordagem neste texto.

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Palavras-chave: administrativo.

Direito

administrativo.

Convalidação.

Pagamento

irregular.

Ato

Abstract: The present study deals with the possibility of validating payments that are, in thesis, considered irregular by public administration, through the edition of laws, in ulterior date with retroactive effects, therefore covering the convalidation institute, its application and extension to administrative acts. The question brings up principles of Administrative and Constitutional Law, since the discussed subject relates to the possibility or not of convalidating administrative acts by Law — ordinary and complementary — in its formal and material sense. There will be dealt along this work issues related to nulity and (anulabilidade) of administrative acts, in addition to correlated explanations to the subject. Then, the discussion about originary competency of political agents for proposing laws related to the increasing of the payments for State employees will be focused. After a compilation of the Brazilian jurisprudence about the subject, it will be impossible to conclude that, as standard, the convalidation for the irregular payment is not possible, although the details of the case must be taken into account. Keywords: Administrative law. Convalidation. Irregular payment. Administrative act.

1 Introdução O advento da modernidade,1 catapultado por fatores como a reforma protestante, as revoluções científicas, a expansão e consolidação do capitalismo e o racionalismo científico demarcou a gênese de um novo mundo, cuja novidade materializa-se pela dessacralização dos fundamentos de validade do Estado e do Direito e da crença no indivíduo e nas potencialidades da razão humana: laicidade e individualismo2 como pedra de toque daquilo que se afigura moderno. Nesse contexto, em um primeiro momento, no plano jurídico caminhar-se-á para uma moralização do direito — direito deduzido de regras morais — como fruto da apropriação do estoicismo pela doutrina de Hugo Grócio3 — dentro daquilo que se convencionou chamar jusracionalismo. Já no plano do Estado, compreendido a partir de sua feição moderna, explicitada com ineditismo por Maquiavel em sua magna obra O Príncipe, a unificação de antigos reinos ou feudos representantes

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1

O termo modernidade, em sentido lato aqui mencionado, contrapõe-se à idéia de antiguidade, entendida, nos moldes de uma leitura ocidentalizada, como um período histórico que abrange da Grécia antiga ao fim da idade média, englobando, por óbvio o período da filosofia cristã, assentado em premissas fundacionais que se afastam do aspecto temporal moderno, seja a partir de uma perspectiva escatológica ou divinatória.

2

Tendo como embriões, segundo os ensinamentos de Michel Villey, a doutrina de Santo Tomás de Aquino, por mais paradoxal que possa parecer e em especial o nominalismo da escola franciscana, tendo como expoentes John Duns Scotus e Guilherme de Ockam.

3

Nos dizeres de Michel Villey, A formação do pensamento jurídico moderno, p. 658, a noção de direito trabalhada pelo jurista holandês passa, segundo suas próprias palavras, pelo fato de que: ‘é preciso abster-se religiosamente do bem alheio, e restituir o que porventura tenhamos nas mãos, ou o proveito que disso se tenha tirado; que se é obrigado a manter a palavra; que se deve reparar o dano causado por culpa própria.’ Villey prossegue aduzindo que são essas Três máximas, tomadas de Cícero, nas quais se resumirá o direito.


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do esfacelamento do Poder político medieval, faz com que os Estados nacionais emergentes nasçam com tendências centralizadoras e absolutistas em especial na Europa continental.4 Como diria Louis XIV tempos mais tarde: L´État c´est moi.

Doutrina

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Ora, esse modelo de Estado, que, se em um primeiro momento afigurou-se interessante para a emergente classe burguesa, detentora do poder econômico, mas não político, com o passar do tempo passou a não mais atender aos interesses burgueses, em especial pela excessiva ingerência Estatal em questões privadas. A ruptura com essa sistemática do ancién regime era apenas questão de tempo. E como Estado e direito caminham pari passu na modernidade, gradativamente, com o devido destaque dado à robusta doutrina de Thomas Hobbes, o direito derivado de princípios morais racionais e inatos do homem, passa a ser estruturado sob um prisma voluntarista — primeiro vontade do Estado subsumida na pessoa do soberano até assumir, tempos mais tarde, a noção da vontade geral rousseauniana: “assim, o direito deve agora limitar-se ao que é positivado, legislado, e o mundo maravilha-se com a era do positivismo jurídico”.5 Dessa forma, as revoluções constitucionalistas burguesas do final do século XIX trazem como consequência a formação de um paradigma de Estado,6 de um lado assentado na irrestrita obediência à lei — e não mais a pessoas — sintetizado no ideal do Estado de Direito, de outro, conforma a sua feição liberal a partir de um pressuposto não intervencionista, afinado com os ideais burgueses e sua trajetória não cambiante da acumulação contínua de capital. Esse construto, que representa um giro em face do paradigma absolutista anterior, não pôde prescindir da figura do Barão de Montesquieu e seus brilhantes estudos na sistematização7 8 da chamada teoria da Separação de Poderes, melhor, das funções estatais.9 Seu cerne preconiza, em face da não mais acumulação nas mãos do soberano da “palavra final” em matéria legislativa, judicial e administrativa — o que o eximia de qualquer responsabilização —, a divisão dessas atribuições ou funções estatais em distintos órgãos integrantes da estrutura do Estado, permitindo um controle mútuo entre os Poderes constituídos, no mecanismo denominado checks and balances, ou em bom português, freios e contrapesos. 4

A referência à Europa continental aqui não é sem sentido. Isso por que o modelo inglês, em verdade, sempre adotou a figura da contenção dos poderes reais pelo parlamento, o que mais tarde poderá ser resumido na máxima the king in parliament.

5

Cuja sofisticação teórica é empreendida nas primeiras décadas do século XX por autores como Hans Kelsen e Hebert Hart.

6

Para uma melhor compreensão da real extensão da abrangência do termo paradigma, consultar Álvaro Ricardo Souza Cruz: O discurso científico na modernidade.

7

Sistematização, pois, em verdade, o embrião da separação de poderes data dos ensinamentos de Aristóteles, ainda na pólis grega, relida em outros tempos por autores como Santo Tomás de Aquino e John Locke.

8

A terminologia usual, ainda hoje é falar-se em separação de poderes e não funções estatais. Entretanto, como nos modernos Estados contemporâneos não há identidade entre um Poder constituído, como organismo (órgão) do Estado e a função por ele realizada (existem funções típicas e atípicas), melhor então falarmos em funções a serem desempenhadas pelo aparato estatal. Ademais, aqui só uma visão clássica, o Poder estatal soberano é indivisível, razão pela qual melhor seria falar em divisão de funções. De toda sorte, questões terminológicas não têm toda essa relevância que se lhe querem atribuir. Exemplificadamente, sobre a não distinção ontológica e operativa entre regras e princípios, consultar Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Hermenêutica jurídica e(m) debate e Leonardo de Araújo Ferraz, Da teoria à crítica: princípio da proporcionalidade.

9

“Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não há liberdade, pois que se pode esperar que este monarca ou esse senado façam leis tirânicas para executá-las tiranicamente”. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

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É nesse contexto que a teoria da separação de poderes ganha corpo e relevo em praticamente todas as Constituições democráticas que se desenvolveram após as experiências americanas e francesas, funcionando como um verdadeiro limitador dos abusos de qualquer dos Poderes estatais constituídos — ideia de independência e harmonia — e garantidor da necessária estabilidade democrática10 e princípio fundamental da própria República Federativa do Brasil. Nesse particular, no exercício da chamada função administrativa, que se processa tipicamente no âmbito do Poder Executivo — organismo estatal em sentido lato — e atipicamente nos demais Poderes, não se pode olvidar que as balizas desse múnus devem ter seu arcabouço conformado pelo ordenamento jurídico, cujo formato e operação não podem prescindir dos avanços qualitativos introduzidos pelo chamado neoconstitucionalismo. 11 Este, em especial, adota no plano da aplicação do direito, aquilo que se denomina póspositivismo, como ruptura de uma abordagem que reduz o direito à lei e não abdica dos avanços de uma hermenêutica concretista, 12 que trabalha o direito para além de um prisma subsuntivo e que com a contribuição das teorias argumentativas, não despreza as nuances e especificidades do caso concreto na busca da resposta correta, ainda que contingente, falível e provisória. 13 14 15 Esse novo modus operandi exige do operador do direito um grau de refinamento e sofisticação que lhe permita fazer frente às demandas de um Estado Democrático de Direito, e quando se adentra no melindroso tema que envolve a instituição de aumentos salariais, gratificações, dentre outras vantagens pela Administração Pública sem a observância dos requisitos estabelecidos nas normas que disciplinam a questão, fundamental é que investigue o estado da arte sob os aspectos doutrinário e jurisprudencial que tratam da questão para que se possa, ao final, deixar uma porta aberta à ampliação do debate institucionalizado, como aliás preconiza Habermas em Direito e democracia: entre a facticidade e validade.

2 Colocação do problema Sabe-se que, no exercício do abrangente plexo de funções vinculadas à figura do Estado, que em um regime democrático deve fundamentalmente preservar a harmonia e independência entre os poderes constituídos, muitas vezes uma tênue linha separa aquilo que é conforme ao ordenamento jurídico e aquilo que desborda esses contornos.

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10

Boa parte da doutrina e da jurisprudência se debruça hoje sobre o tema denominado ativismo judicial com o objetivo exatamente de traçar os contornos e limites de atuação do Poder Judiciário, haja vista que, não raro se observa o judiciário fazendo as vezes do legislador e do administrador, o que caracteriza, indubitavelmente, uma ingerência anômala e indevida. Razão para isso, estaria, inclusive na própria ausência de legitimidade democrática para esse mister.

11

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, 2005.

12

PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.

13

GOMES JUNIOR, Luiz Moreira. Fundamentação do direito em Habermas. 3. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

14

REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a desobediência civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.

15

MEYER, Emílio Peluso Neder. A decisão no controle de constitucionalidade. v. 9. São Paulo: Método, 2008.


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Descortinado esse cenário, não se pode ignorar que o exercício da função administrativa, em especial, por dizer respeito à gestão dos interesses coletivos nas suas mais variadas dimensões, compreendendo nesse particular atividades-meio e atividades-fim,16 exige que a Administração Pública revista-se de um necessário dinamismo materializado pelo poder-dever, de editar diversos diplomas normativos como decretos, resoluções, portarias, dentre outros.

Doutrina

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Nada demais nesse formato, quando se parte da premissa da necessidade de não se engessar o aparato estatal com formalismos excessivos. Com essas considerações, este trabalho visa delinear questão que se reveste de relevo no plano constitucional-administrativo e que diz respeito à instituição de vantagens pecuniárias, em sentido amplo, que se desdobram em pagamentos por parte da Administração, sem a devida observância dos comandos normativos que disciplinam a matéria, e, particularmente, se lei em sentido formal editada posteriormente à prática desses pagamentos afigurar-se-ia meio idôneo para convalidá-los, ou seja, retroagir seus efeitos a fim de regularizar e ratificar esse dispêndio de recursos públicos.

3 Da competência para a propositura de dispositivos normativos que constituam pagamento Isso posto e de início procedendo-se a um exame dos dispositivos que regem a matéria à luz da Constituição — que sob o prisma de sua supremacia deve ser entendida como a lente que informa e conforma a exegese do direito como um todo17 —, depreende-se a preocupação do constituinte em explicitar, no caso de criação de atos normativos que gerem despesas para os cofres públicos, a necessária observância ao sistema de freios e contrapesos. Essa exigência é materializada, in casu, pela obediência a um processo legislativo formal, que embora previsto como atribuição originária do Congresso Nacional, perfaz-se por meio da realização de diversos atos, sendo expressa a interferência dos Poderes Executivo18 e Judiciário.19 20 16

As atividades-fim da Administração Pública no exercício da função administrativa, não obstante a ausência de uniformidade, podem ser resumidas em quatro grandes grupos: serviços públicos, fomento, poder de polícia e intervenção (nas atividades privadas).

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Utiliza-se também a expressão: Constituição como “lócus hermenêutico”.

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Os artigos 61, § 1° e 84, XV e XXIII disciplinam a possibilidade de o chefe da Administração Pública Federal iniciar proposições legislativas, inclusive em matéria de competência exclusiva. Outro mecanismo caracterizador desta intervenção é o veto, ferramenta utilizada no modelo parlamentarista inglês desde o século XVI. Através dele confere-se ao Presidente da República a prerrogativa de rejeitar os projetos de lei inconstitucionais ou contrários ao interesse público, desde que o faça de forma motivada. Conforme dicção do art. 66, § 1, CF: “Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.”

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Entende-se que o papel fundamental do Poder Judiciário, no processo legislativo em sentido bem amplo, e que guarda estrita consonância com a noção de supremacia da Constituição, diz respeito ao controle de constitucionalidade, seja por intermédio do controle concentrado, seja pelo controle difuso. Para uma visão da jurisdição constitucional afinada com o Estado Democrático de Direito, nos moldes habermasianos, consultar Álvaro Ricardo de Souza Cruz: Jurisdição constitucional democrática.

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É do Supremo Tribunal Federal a palavra final a respeito da constitucionalidade pela via concentrada das leis e atos normativos na esfera federal e estadual, verbis: Art. 102, I, a, CF/88: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: [...] processar e julgar, originalmente: [...] a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato

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Nesse particular, trazendo especificamente a questão para o bojo da Constituição do Estado de Minas Gerais, verifica-se, pela dicção do art. 66, III, b, que é de iniciativa privativa do Governador do Estado a propositura de lei que vise “a criação de cargo e função públicos da administração direta, autárquica e fundacional e a fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros da Lei de Diretrizes Orçamentárias”.21 A prerrogativa dada ao Poder Executivo, nesse caso, é justificada dentro da própria lógica da separação das funções estatais na medida em que compete precipuamente ao Poder Executivo gerir os recursos estatais e desenvolver políticas públicas que busquem alcançar os objetivos fundamentais dispostos no art. 3° da Constituição Federal.22 Portanto, cabe a ele, diante da escassez orçamentária, estabelecer prioridades e sopesar o momento oportuno para a propositura de lei que altere o quadro de pessoal e sua remuneração, em obediência ao princípio da reserva do possível.23 No entanto, como ressalvas a essa regra de iniciativa privativa, temos na Constituição Estadual a do Tribunal de Justiça (art. 66, IV, a e b), a do Ministério Público (art. 66, § 2°), a do Tribunal de Contas (art. 66, II) e da Assembleia Legislativa (art. 66, I, b e c), que possui a exclusividade para a propositura de leis relativas aos planos de carreira e remunerações24 de seus servidores. Em decorrência disso, em regra, não é permitido às autoridades da Administração Direta ou Indireta realizar pagamentos pautados em atos administrativos próprios, como decretos, resoluções ou portarias, sem a devida cobertura legal. Tal entendimento é amplamente consolidado pelos Tribunais pátrios, e especificamente na esfera dos Tribunais de Contas, vale menção a excerto da Consulta n. 771.253 (Tribunal Pleno, sessão do dia 12/08/2009), relator Conselheiro Elmo Braz, respondida nos seguintes termos: Trata-se de consulta formulada [...] com as seguintes indagações: [...] 3 — É possível uma gratificação ser paga em função do exercício de cargo comissionado? 4 — Em caso positivo, o critério de concessão tem que estar disposto em lei? [...] Terceira Indagação: [...] Considerando que os cargos em comissão devem integrar o plano de cargos e salários da Administração Pública, somente a lei normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal;” 21

Importante frisar que a correta exegese do dispositivo passa pela consideração de remuneração como gênero, referindo-se à totalidade das espécies possíveis de estipêndio público, nos termos dos art. 37, XIII e 39, § 8° da Constituição da República. Portanto, cabe somente ao chefe do Poder Executivo, devendo ser validamente aprovado pelo Legislativo, criar ou reajustar benefícios, salários, abonos ou gratificações, conforme ensina MODESTO, Paulo. Parecer técnico formulado pela Coordenação Técnica da SA/MP. Revista Diálogo Jurídico, n. 10, Janeiro de 2002.

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Art. 3°: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de descriminação.”

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Sobre o assunto, imprescindível a leitura da obra Direitos fundamentais: orçamento e reserva do possível, que tem como organizadores Ingo Wolfgang Sarlet e Luciano Benetti Timm.

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MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio; BRANCO, Paulo. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.


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poderá instituir gratificação pelo exercício de cargo ou função de chefia, direção e assessoramento. Cumpre salientar que se o Município considerar o cargo de Secretário Municipal como cargo em comissão, como alguns têm feito, a remuneração do mesmo deverá obedecer aos ditames do § 4° do art. 39 da Constituição da República, devendo a remuneração ser em forma de subsídio, fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória obedecido em qualquer caso o disposto no art. 37, inciso X e XX da Carta Magna (sem grifos no original).

Doutrina

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Quarta Indagação: [...] A questão foi respondida no item anterior. É o nosso parecer (grifos no original).

Como se observa, por envolver questões afetas ao orçamento estatal, cuja gestão e execução competem ao Poder Executivo, a regra é que a concessão de quaisquer vantagens que representem aumento de despesa pública passe por um processo legislativo formal, o qual exige a manifestação e aquiescência do Executivo, por meio de sanção.25 A questão parece, dessa forma, isenta de maiores indagações na medida em que restou comprovado do corolário da teoria de separação de poderes, que é fundamental a participação do Poder Executivo, como gestor do orçamento, em etapa do devido processo legislativo, ainda que por disposição constitucional a iniciativa do projeto de lei não lhe seja atribuída. O real problema se apresenta, ganhando outros contornos, quando o pagamento (seja instituindo remuneração, adicional, abono ou qualquer vantagem) já tenha sido efetuado com base em instrumentos diversos da lei em sentido formal (vg, Resolução). Nesse caso, poderia ser essa falha sanada? Seriam esses pagamentos convalidáveis por lei posterior que neste caso faça a previsão de convalidação dos efeitos do ato normativo viciado? É nesse ponto que a doutrina e a jurisprudência irão se debruçar.

4 Sobre a convalidação legislativa 4.1 Abordagem doutrinária: A nulidade ante a convalidação dos atos administrativos na doutrina brasileira Em um primeiro momento, não obstante a convalidação aqui tratada não guardar correlação direta com o instituto da convalidação administrativa, considerando que aquela não prescinde da edição de lei formal editada com o objetivo de legalizar pagamentos irregulares, fundamental é traçar os contornos do instituto no âmbito administrativo, haja vista seus pressupostos teóricos aproveitarem a convalidação processada por meio de lei. 25

Uma exceção que se pode colocar a essa regra da exigência de lei formal para fixação de remuneração e subsídios de agentes públicos entendidos em sentido lato, é quando da fixação do subsídio do vereadores, mas por expressa autorização constitucional para o caso. Em face da dicção do dispositivo listado no art. 29, VI, da CR/88, com a redação dada pela EC n. 25/2000, obviamente respeitado o princípio da anterioridade, o TCEMG tem admitido a fixação tanto por lei em sentido formal como por Resolução ou Decreto Legislativo nos termos da Consulta n. 803.574, decidida na sessão do dia 30/06/2010, relatoria do Conselheiro Antônio Carlos Andrada, dentro da construção de uma teoria eclética ou mista.

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Maria Sylvia Zanella Di Pietro, em seu Curso de direito administrativo, define convalidação como “[...] o ato administrativo pelo qual é suprido o vício existente em um ato ilegal, com efeitos retroativos à data em que este foi praticado.” Esse ato, também denominado de saneador, pode ser provocado tanto pela Administração quanto pelos administrados, desde que respeitados os requisitos intrínsecos. No entanto, não se admite a convalidação de certos gêneros de atos administrativos. É explícita a posição dos mais renomados doutrinadores publicistas em acolher os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende ser apenas possível a convalidação se o vício sanável for atribuído a certos elementos do ato, como o sujeito e a forma. Quanto ao motivo e finalidade, Di Pietro assegura que: [...] nunca é possível a convalidação. No que se refere ao motivo, isto ocorre porque ele corresponde a situação de fato que ou ocorreu ou não ocorreu; não há como alterar, com efeito retroativo, uma situação de fato. Em relação à finalidade, se o ato foi praticado contra o interesse público ou com finalidade diversa da que decorre da lei, também não é possível a sua correção; não se pode corrigir um resultado que estava na intenção do agente do ato26 (grifos no original).

Tal restrição também é dada aos atos administrativos que apresentam vícios quanto ao objeto. Nesses casos é permitida apenas a conversão, que gera efeitos retroativos pela mudança de categoria do ato, a fim de serem respeitados os princípios da segurança jurídica e da legalidade. Da mesma maneira, não é possível convalidar atos administrativos praticados por pessoa diferente da delimitada com exclusividade por texto legal. Como exemplo, citamos o dispositivo presente na Constituição do Estado de Minas Gerais, que, no art. 66, inciso III, alínea b, define ser de competência única do Governador a fixação da remuneração dos funcionários da Administração Direta, além de fundações e autarquias mantidas pelo Poder Público. Sendo assim, havendo vício de competência no ato realizado, torna-se irrealizável a convalidação.27 Analogicamente são tratados os atos inválidos que tenham causado prejuízos à coletividade e a terceiros. A impossibilidade de convalidação pode ser depreendida de uma interpretação contrario sensu do artigo 55 da Lei do Processo Administrativo Federal (n. 9.784/99), que dispõe o seguinte: “Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração”. No mesmo sentido, estabelece o art. 6628 da Lei Mineira n. 14.184/02 que regula o processo administrativo na seara estadual.

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

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Nesse sentido, a recente decisão do excelso Pretório no Agravo de Instrumento AI 348.800/SP, julgado em 05/10/2009, é taxativa no sentido de apontar que havendo vício de iniciativa, in casu, do Poder Executivo, a sanção é irrelevante, citando ainda precedentes daquela Corte.

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“Art. 66. Na hipótese de a decisão não acarretar lesão do interesse público nem prejuízo para terceiros, os atos que apresentarem defeito sanável serão convalidados pela Administração.”


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Nesses casos, resta configurada a nulidade absoluta do ato administrativo realizado, o qual não gera efeitos no ordenamento jurídico. Tal interpretação é pautada na melhor doutrina nacional, encabeçada por Weida Zancaner,29 Celso Antônio Bandeira de Mello e José Cretella Júnior. Como desdobramento desse raciocínio adotado pela doutrina administrativista, podese, analogamente, entender que a criação de despesas por ato normativo diferente de lei ou por autoridade ilegítima não obriga a Administração, sendo o vício insanável, mesmo que o rito legislativo previsto pela Constituição seja fielmente seguido.

Doutrina

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Assim, embora caiba aos Tribunais Superiores o poder concentrado de declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos normativos, vale mencionar o necessário e democrático mecanismo do controle difuso de constitucionalidade, exercido em qualquer nível de jurisdição, e à prerrogativa dos Tribunais de Contas em usar este artifício no exercício de suas atribuições, conforme dispõe a Súmula n. 347 do STF.30

4.2 Abordagem jurisprudencial Na esfera dos Tribunais pátrios, nota-se a tendência cada vez mais presente de vedar, de forma geral, a convalidação de atos normativos cujo vício diga respeito à própria essência do ato. Em sede de Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.048-1/Distrito Federal, relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em 14/05/2008, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade de lei posterior em sentido estrito — portanto, ratificada pelo Legislativo — tornar válida Medida Provisória ilegal, editada pelo Chefe do Executivo, nos termos abaixo descritos: Ministro Celso de Mello: [...] Torna-se claro, pois, que o Congresso Nacional, mesmo no exercício do poder de reforma — cuja prática está juridicamente subordinada às limitações impostas pela Lei Fundamental — não dispõe de competência para constitucionalizar, mediante superveniente promulgação de emenda à Constituição, diploma legislativo até então incompatível, formal ou materialmente, com o texto da Carta Política, pois, se assim lhe fosse permitido, comprometer-se-ia, de modo grave, o postulado da supremacia da Constituição. Com maior razão, uma simples lei de conversão, hierarquicamente inferior a uma emenda à Constituição, não convalida medida provisória inconstitucional, tanto quanto uma emenda constitucional superveniente — insista-se — não legitima leis originariamente inconstitucionais. [...] Cumpre não perder de perspectiva que situações inconstitucionais jamais convalescem, eis que é nenhum, em nosso sistema normativo, ressalvado a possibilidade — sempre excepcional — de modulação, no tempo, dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, o valor jurídico dos atos eivados de ilegitimidade constitucional. 29

ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

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Súmula n. 347: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público.”

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[...] O ato inconstitucional, precisamente porque afetado por um radical vício de nulidade jurídica, revela-se insusceptível de convalidação, qualquer que tenha sido o lapso de tempo já decorrido ou ainda que convertido, em lei, a medida provisória que lhe deu origem. [...] Ministro Gilmar Mendes: O Tribunal tem entendido que a lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória, como se pode observar nos precedentes [...].

Caminhando nessa mesma direção, destacamos, no âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, recente mudança de paradigma acerca da possibilidade de abertura de créditos suplementares que excederem o limite percentual previsto na lei orçamentária, a partir da revisão da Súmula n. 77. Anteriormente, a jurisprudência consolidada era no sentido de autorizar a convalidação dos créditos não previstos em lei, desde que regularizados a posteriori pelo Legislativo no mesmo exercício financeiro. Após decisões reiteradas, em sede de pareceres prévios sobre prestação de contas,31 sumulou-se tal entendimento.32 Portanto, de certa forma, restava caracterizada a convalidação, não de pagamentos, mas dos valores adicionais destinados a suprir despesas não contempladas na lei orçamentária. No entanto, em consonância com a jurisprudência recente dos Tribunais Superiores,33 formou-se nesta Corte de Contas um novo consenso, o qual resultou na revisão do enunciado de Súmula n. 77 no final do ano de 2008. Desde então, tem-se decidido pela indispensabilidade da promulgação de lei em sentido estrito para que seja autorizada a abertura de crédito suplementar e especial, nos termos do art. 167, V,34 da Lei Maior, sob pena de responsabilização do gestor. Especificamente acerca da possibilidade de convalidação de pagamentos irregulares por meio de lei posterior, indispensável trazer a colação Procedimento de Controle Administrativo, decidido no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, em 2007, verbis: (CNJ — Consulta — Procedimento de Controle Administrativo n. 200710000014838 — Relator: Antônio Umberto de Souza Júnior) [...] destaco a pretensão da

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31

Pareceres sobre Prestação de Contas n. 357/89, 263/89, 648/86, 157/87, 316/89, 151/89.

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Redação anterior da Súmula n. 77 do TCEMG, ratificada em 14/10/97: “Os créditos suplementares que excederem o limite percentual previsto na lei orçamentária são irregulares e de responsabilidade do ordenador, salvo se regularizados mediante lei específica e posterior demonstração em balanço orçamentário”.

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(Ap. Cível n. 1.0000.00.355209-8/000, relator Desembargador Orlando Carvalho, acórdão publicado em 17/10/2003) “EMENTA: DIREITO FINANCEIRO — CRÉDITOS SUPLEMENTARES — CÂMARA MUNICIPAL — NECESSIDADE DE LEI AUTORIZATIVA — ART. 42 DA LEI N. 4.320/64. Afigura-se ilegal, por manifesta ofensa ao art. 42 da Lei Federal n. 4.320/64, Resolução editada pela Câmara Municipal, aprovando a abertura de créditos suplementares ao orçamento da referida Casa Legislativa, quando ausente Lei autorizativa nesse sentido. Recurso a que se dá provimento.”

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“São vedados: A abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes.”


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lei local de retroagir seus efeitos a 1991, para convalidar os pagamentos irregulares efetuados. Não se mostra lícito nem moral criar, pela via legislativa, retroativamente, gratificação após expressa declaração plenária de ilicitude de seu pagamento em procedimento no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Admitir tal mecanismo seria admitir um exótico e insólito instrumento de correção legislativa no exercício do controle de legalidade dos atos administrativos dos tribunais, em invasão da competência censória exclusiva do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, r).

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No mesmo sentido, ao propor Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os art. 2°, 3°, 6°, 10, 12 e 13 da Lei Complementar n. 421/2008, de Santa Catarina, a manifestação do Ministério Público Estadual se deu nos seguintes moldes: [...] Conforme se depreende de sua redação, o art. 3° da Lei Complementar em comento determina a aplicação de dispositivos legais, que versam sobre gratificação, de forma retroativa. [...] Ora, a própria natureza de gratificação pressupõe a sua instituição prévia por lei, de modo que o servidor e, principalmente, os cidadãos tenham ciência dos valores a serem despendidos pelo Poder Público, além dos motivos que embasam a concessão do benefício. Não restam dúvidas de que é contrário ao interesse público conceder aos servidores, de qualquer das esferas, gratificações retroativas, configurando ofensa ao princípio da legalidade e da moralidade a prática prescrita no art. 3° da Lei Complementar Estadual n. 421/2008. Além disso, não se pode ignorar o fato de que, para a concessão de quaisquer vantagens pecuniárias aos servidores, há a necessidade de previsão orçamentária, sendo incompatível com o sistema jurídico brasileiro a concessão retroativa de tais benefícios. [...] Ora, se a inconstitucionalidade dos decretos está no fato de que são eles que estabelecem percentuais e valores a serem pagos aos servidores, não poderia jamais a lei simplesmente mandar aplicar o disposto em ato normativo eivado de inconstitucionalidade. [...] Por fim, no que pertine à norma do art. 13 da Lei Complementar Estadual n. 421/2008, que convalida os pagamentos realizados com base nos já referidos Decretos, cumpre observar que, além do ordenamento jurídico brasileiro não admitir a convalidação de atos que ofendem a Constituição, aludida norma parece afrontar a decisão judicial que os considerou inconstitucionais. [...] Destarte, o fato de o Tribunal de Justiça de Santa Catarina ter declarado a inconstitucionalidade de vários dos Decretos a que faz referência a Lei Complementar questionada é suficiente para impedir a convalidação dos pagamentos em questão.35 35

Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina, contra os art. 2°, 3°, 6°, 10, 12 e 13 da Lei Complementar Estadual n. 421/2008. Disponível em: <www.mp.sc.gov.br/portal/site/conteudo/cao/ceccon/

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Sobre a incorporação de gratificações ao vencimento de servidores, o Tribunal Regional Federal decidiu: GRATIFICAÇÃO JUDICIÁRIA (80%). DECRETO-LEI N. 2.173/84. INCORPORAÇÃO AOS VENCIMENTOS LEVADOS A EFEITO PELA LEI N. 7.961/89. TRT DA 23ª REGIÃO. ATO ADMINISTRATIVO. CONVALIDAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A gratificação judiciária prevista no Decreto-Lei n. 2.173/84 foi absorvida pela remuneração dos servidores do Poder Judiciário por força das Leis n. 7.923/89 e n. 7.961/89, não havendo direito à continuidade de seu pagamento como parcela remuneratória autônoma. [...] 2. O fato de os servidores do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região terem percebido a gratificação judiciária duas vezes — incorporada à remuneração e como parcela remuneratória autônoma — até maio de 1993, com base em decisão administrativa sem amparo legal, não gera direito adquirido ao pagamento irregular, posto que a Administração, sujeita ao princípio da legalidade, tem o dever de excluir dos contracheques dos servidores a verba pecuniária recebida em duplicidade, não se tratando por isso de revogação de ato válido, mas de reconhecimento de nulidade de ato praticado ilegalmente, com respaldo em entendimento sumulado pela Suprema Corte (Súmula n. 473 do STF). 3. Apelação dos autores não provida.36

Não obstante esses posicionamentos, vale mencionar, em sentido parcialmente oposto, o parecer produzido pelo Ministério Público de Contas do Distrito Federal, em que a questão ganha outros contornos, na medida em que tempera a rigidez da exigência da instituição de vantagens, benefícios e adicionais, por meio de lei formal. 1. Versam os autos do processo em epígrafe sobre estudo especial determinado pelo item III da Decisão n. 4.398/2006 (Processo n. 2.626/04), acerca da constitucionalidade do artigo 7° da Lei n. 3.436/2004 que, de forma genérica, convalidou o pagamento indevido de adicional noturno aos servidores da Carreira de Auditoria Tributária, tornando ineficazes os termos das Decisões n. 1.210/99, n. 77/01 e n. 341/04, no que tange à devolução dos valores recebidos indevidamente. 2. A unidade técnica, inicialmente, teceu breve histórico inerente à TCE tratada no Processo n. 2.626/04. Noticiou que, naqueles autos, o signatário da Instrução sugeriu à Corte considerar inconstitucional o artigo 7° da Lei Distrital n. 3.436/04, que convalidou pagamentos indevidos de adicional noturno a servidores da Carreira de Auditoria Tributária, contrariamente ao que havia decidido o Tribunal. Porém, em manifestação contrária, o digno Diretor propôs o encerramento da TCE com fulcro no artigo 13, inciso III, da Resolução n. 102/98, tendo em conta a convalidação dos pagamentos irregulares pelo artigo 7° da citada Lei Distrital. 3. Informou que o parquet, ao analisar a matéria, entendeu que o pagamento do adicional noturno a maior, por se tratar de ato ilegal, não se sujeitava ao instituto da convalidação, nos termos do artigo 55 da Lei n. 9.784/99. Assim, concluiu pelo sobrestamento do julgamento da TCE, aguardando a realização adins/peticoes/2009/2009.015713-1.pdf>. Acesso em: 10/08/2010. 36

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Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Acórdão n. 2000.01.00.054378-0, de 03/10/2005.


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de estudos, em autos específicos, da constitucionalidade do aludido dispositivo legal, o que foi acolhido pelo Tribunal, consoante a Decisão n. 4.398/2006, e que são analisados no presente feito. 4. Depreendeu que a controvérsia travada nos autos da TCE se resume à questão da constitucionalidade da convalidação promovida pelo artigo 7° da Lei Distrital n. 3.436/04. Ou seja, se poderiam, ou não, os pagamentos irregulares de adicional noturno, terem sido convalidados pelo aludido dispositivo legal.

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[...] 7. Reconheceu que o dispositivo legal em debate, ao convalidar genericamente todos os pagamentos de quaisquer parcelas remuneratórias, exorbitou o alcance de suas reais pretensões, ferindo o princípio constitucional da razoabilidade, contido no caput do artigo 19 da LODF e o princípio constitucional da proporcionalidade, porquanto não seria ‘lícito imaginar que o legislador tenha pretendido legitimar, por exemplo, até mesmo os pagamentos indevidos decorrentes de dolo ou fraude ou os pagamentos ilegais de quaisquer naturezas.’ [...] 9. Acrescentou que o reconhecimento da inconstitucionalidade deve reservar-se àquelas situações incontornáveis, em que qualquer modalidade de interpretação conduz à relação de incompatibilidade com o texto constitucional, portanto, havendo possibilidade de harmonização, esta deverá sempre ser buscada pelo intérprete. Ponderou que se combate e se questiona é a excessiva abrangência dada ao ato de convalidação de que trata o artigo 7° da Lei Distrital n. 3.436/04, o que, no entender da ICE, pode ser resolvido via interpretação restritiva do referido artigo, não havendo a necessidade de considerá-lo inconstitucional. [...] 13. Entendeu que não há de se falar em ausência de motivo para o pagamento do multicitado adicional, mas sim em erro administrativo ensejador de momentâneo dano ao erário, suprido pela edição da Lei n. 3.436/2004, que convalidou o pagamento das diferenças indevidas, pois a convalidação se presta justamente a isso, isto é, tornar válido e legítimo aquilo que antes era inválido e ilegítimo, mormente porque tal convalidação operou-se por meio de lei. [...] 16. Obtemperou-se que a Lei n. 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, recepcionada no Distrito Federal pela Lei n. 2.834/2001 [...] dirige-se, obviamente, à decisão administrativa de convalidação, por conseguinte inaplicável ao caso vertente, visto que a convalidação, neste caso, operou-se por meio de lei, e não via decisão administrativa. 18. Expostas as considerações expendidas pelo zeloso corpo técnico, passo à análise dos autos, verificando, de antemão que, de fato, as questões versadas nos autos dizem respeito especificamente à inconstitucionalidade ou não do artigo 7° da Lei n. 3.436/2004, especificamente no que tange à possibilidade ou não de convalidação de pagamentos anteriores, eivados de ilegalidade. [...] 26. Em função da citada decisão, foi editada a Lei n. 3.947, de 17/01/2007 (cópia a fls. 23, regularizando a situação, ao tempo em que também trouxe em seu bojo (artigo 4°), disposições idênticas ao dispositivo em debate).

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[...] 27. Assim, no entender deste representante ministerial, o caminho a ser descortinado, delineado pela Inspetoria, comporta temperamentos. É certo que o dispositivo ora questionado (artigo 7° da Lei n. 3.436/04) não deve ser interpretado em sua literalidade, como bem frisou a unidade técnica. 28. Contrário senso, interpretando-se que aquele dispositivo de abarcar ‘todos e quaisquer pagamentos’ (conforme disposto em sua literalidade) procedidos ao arrepio da Lei, estaria o legislador conferindo ao administrador um ‘cheque em branco’ para agir inclusive com desídia, má-fé, contrariamente a todo e qualquer ‘interesse da coletividade’, ou, no mínimo, ‘proibido’ de proceder a quaisquer ressarcimentos, inclusive em situações individuais, calcado, tão somente, na boa-fé. [...] 29. A expressão ‘todos os pagamentos de quaisquer parcelas remuneratórias’, não tem o condão de garantir a não repetição do indébito de ‘quaisquer parcelas’ percebidas ao arrepio da Lei, mas, tão somente, daquelas que, malgrado prima facie contrariem o ‘interesse público’ insculpido no artigo 55 da Lei n. 9.784/99, ou causem ‘prejuízo’ ao erário (maiores despesas que as legalmente amparadas), por outro lado, à luz dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da segurança jurídica e da boa-fé, podem ser resguardados. [...] 34. Diante de tais considerações, tem-se salutar a conclusão da Inspetoria no sentido de bastar, tão somente, nos casos concretos, que se analise o dispositivo atacado, de forma restritiva e harmônica, não havendo a necessidade de considerá-lo inconstitucional. Nesse ponto não diverge o parquet. Contudo, vislumbra-se de bom alvitre que o Tribunal, ao declarar a constitucionalidade do aludido dispositivo, deve deixar claro que a sua aplicação aos casos concretos, a exemplo do tratado no Processo n. 2.626/2004, deve se conformar com os preceitos constitucionais que norteiam a matéria. Assim, em relação à TCE, a questão deve ser analisada isoladamente, naqueles autos, levando-se em conta a diretriz a ser aqui traçada. Por conseguinte, naqueles outros autos específicos deve ser observado se houve ou não ofensa aos preceitos em voga. [...] É o parecer.37

Importante frisar que a posição do Parquet de Contas, em linhas gerais, não é de todo dissonante dos demais posicionamentos colacionados na medida em que pode e deve ser lido à luz da melhor hermenêutica para o caso concreto. Saliente-se que deve ser com os temperamentos que o caso requeira, como será à frente abordado.

5 Síntese conclusiva Por toda a argumentação expendida, tanto sob o ponto de vista doutrinário como sob o jurisprudencial, pode-se concluir como standard prévio, que obviamente merece ser densificado no caso concreto, que a ausência do cumprimento do disposto no ordenamento 37

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Parecer do Ministério Público de Contas do Distrito Federal, estudo especial determinado pela Decisão n. 4.398/2006, adotada no Processo n. 2.626/04. Procurador Demóstenes Tres Albuquerque. Brasília, 4 de Julho de 2008.


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jurídico na instituição de pagamentos, que gerem despesas para o Poder Público, não pode se dar ao arrepio do desejado modelo de freios e contrapesos previsto de forma explícita na Constituição da República, sob pena de, dentre outros aspectos, desfigurar o necessário respeito ao disciplinado na Lei Orçamentária, mecanismo da escorreita gestão e aplicação dos recursos públicos. Esse cenário requer, portanto, uma postura necessariamente mais cautelosa em face de tão melindrosa questão. Isso porque é fundamental que o administrador público tenha ciência da repercussão para os cofres públicos de medidas que gerem novas despesas, em especial em tempos de contingenciamento e escassez de recursos para fazer frente às demandas da sociedade, o que reflete quase sempre uma inescusável falta de planejamento.

Doutrina

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A lei posterior, nesse contexto, ao buscar retroagir seus efeitos para convalidar o vício pretérito, encontra óbice de um lado, nos contornos da teoria do direito, na medida em que o vício não diz respeito à formalização do ato (se decreto ou lei), mas à sua essência, pois, como sobredito, a questão posta ultrapassa a mera retificação da materialização do ato, que assim se afigura nulo desde a origem, o que afeta o plano da sua validade; e de outro, nas entranhas da política, haja vista que essa medida de regularização tomada a posteriori é mais suscetível de ser barganhada, de ficar ao talante de ajustes, acordos e negociatas políticas que não se coadunam com a escorreita condução dos assuntos de Estado, além de tornar débil o basilar princípio fundamental da República Federativa do Brasil, que é o da Separação dos Poderes e seus controles recíprocos.38 Entretanto, que se deixe claro que dependendo do caso tratado é possível a convalidação legislativa, em especial em face da natureza do ato praticado, como, por exemplo, para casos que não gerem despesas efetuadas sem observância dos contornos definidos pelo ordenamento jurídico ou não tenham repercussão na esfera de terceiros. Dessa forma, uma análise que leva em consideração as particularidades do caso concreto deve ser levada a termo e, nessa esteira, passa a fazer sentido a argumentação trazida à colação pelo Ministério Público de Contas do Distrito Federal, para que, mesmo no caso de pagamentos irregulares, os princípios da segurança jurídica, proteção da confiança, moralidade, impessoalidade e eficiência, entre outros, sejam sopesados para preservar, não a validade, mas sim modular dos efeitos pretéritos do ato, inclusive para efeito de se não imputar a devolução de valores recebidos por terceiros de boa-fé para eventual responsabilização do gestor 38

Não se podia deixar de mencionar, nesse particular, excerto do texto da lavra do jornalista Elio Gaspari, publicado na “Folha de São Paulo” do dia 22/08/2010, que assim vocifera: “O Presidente do Supremo Tribunal Federal, Cezar Peluso, e o ProcuradorGeral da República, Roberto Gurgel, encaminharam ao Congresso projetos de lei que lhes transferem a tarefa de fixar os vencimentos dos servidores sob suas jurisdições. Atualmente, os reajustes salariais do Supremo e do Ministério Público dependem de aprovação pelo Congresso, como ocorre com o Orçamento da União. A reivindicação desafia as instituições republicanas, os fundamentos da política econômica do Executivo, a lógica da contabilidade pública e os padrões internacionais. Desafia as instituições republicanas porque coloca o Supremo Tribunal e o Ministério Público ao largo do consentimento do Congresso Nacional em matéria salarial. Atribui-lhes mecanismos típicos das empresas privadas. Criam uma República salarial soberana e automatizada. Desafia a boa norma da economia porque chama de volta o tigre da indexação, que arruinou a economia do país por quase 30 anos. Se a partir de 2012 fica assegurada a revisão anual soberana e, a partir de 2015, o Supremo e o Ministério Público Federal puderem corrigir seus vencimentos com base nos critérios que os projetos mencionam, a festa deveria ser geral: “recuperação” de “poder aquisitivo” e “comparação” com vencimentos alheios, direto na folha. Nesse mundo de alegrias, Peluso deveria ser premiado, acumulando sua cadeira no Supremo com a presidência do Banco Central e Roberto Gurgel ficaria com a Secretaria da Receita Federal. A proposta ofende a lógica da contabilidade pública porque os salários dos Ministros do Supremo servem de referência para os vencimentos dos servidores do Judiciário. Quando eles sobem, os demais vão junto.”

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ou sua gradação, se for o caso. Repita-se que essa postura compatibiliza-se com o necessário não engessamento da máquina pública, mas que acima de tudo respeita, para além de tudo o que já foi dito, a força normativa da Constituição, como há muito já preconizava Konrad Hesse.

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Da reserva do possível e da proibição de retrocesso social

Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira Graduado em Direito pela FDV. Colaborador Externo do Programa de Mestrado da FDV. Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos. Advogado.

Resumo: Trata-se de artigo que analisa, brevemente, o discurso da reserva do possível para os direitos sociais, a partir da teoria do mínimo existencial, confrontando-o com o postulado da proibição de retrocesso social, a fim de demonstrar a importância desses direitos para o exercício, por todas as pessoas, de suas liberdades. Palavras-chave: Reserva do possível. Direitos sociais. Proibição de retrocesso social. Abstract: This article makes a brief analysis of the speech of the reserve of the possible for the fundamental social rights, considering the minimum existential theory, comparing it with the rule of the social setback prohibition principle, in order to show the importance of those rights for the exercise of liberties by all people. Keywords: Reserve of the possible. Fundamental social rights. Social setback prohibition principle.

1 Introdução Pode-se dizer, em geral, que os direitos sociais, econômicos e culturais inauguraram as bases do Estado social do bem-estar, a fim de aumentar a presença do Estado na sociedade, fazendo desaparecer o Estado mínimo. Diz-se em geral porque não se pode dizer que ganharam reconhecimento de uma só vez e nem se pode arguir que tiveram tal reconhecimento de uma forma generalizada, já que, por exemplo, o marco do Estado social do bem-estar é a Grande Depressão de 1929, embora se pudesse notar, já em fins do século XIX, na Alemanha de Bismarck, indícios desse novo modelo de Estado, e, ainda neste sentido, a Carta Constitucional mexicana de 1917 já trouxesse, ainda que timidamente, o reconhecimento de determinados direitos sociais como fundamentais. 45


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O fato é que os direitos chamados sociais complementam as liberdades, ligando-se a elas de forma intrínseca, já que têm grande importância para sua viabilização e consequente exercício. Outro não é o entendimento da doutrina especializada. Carlos Weis (2006, p. 100), por exemplo, comentando sobre a quarentenária Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), afirmou que, apesar de a teoria tradicional dos direitos humanos preconizar que as liberdades demandam uma abstenção estatal, “o que se vê é o texto americano filiar-se à corrente moderna, segundo a qual o importante é garantir a observância de todos os direitos humanos, pouco importando a natureza das medidas necessárias para garantir sua efetividade máxima”. No mesmo sentido, José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 473): os direitos sociais “andam estreitamente associados a um conjunto de condições — econômicas, sociais e culturais — que a moderna doutrina dos direitos fundamentais designa por pressupostos de direitos fundamentais”. Diante desse vínculo de dependência existente entre os direitos às liberdades e os direitos sociais, são estudados dois postulados que vêm sendo constantemente tratados na doutrina nacional e estrangeira: o da reserva do possível e o da proibição de retrocesso. Estudo este que não pretende esgotar a matéria, e sim despertar a reflexão e fornecer uma resposta à seguinte questão: vincular os direitos sociais à reserva do possível viola o postulado da proibição de retrocesso?

2 Direitos sociais e sua aplicabilidade Todos os direitos têm aplicação imediata, tanto no plano internacional (direitos humanos) quanto no plano nacional (direitos fundamentais). Entretanto, nem todos os direitos, isto é, nem todas as normas definidoras de direitos têm a mesma aplicabilidade. De acordo com José Afonso da Silva (2000, p. 13) em conhecida monografia, “aplicabilidade significa qualidade do que é aplicável”, de maneira que, juridicamente, diz-se que a “norma que tem possibilidade de ser aplicada” é “norma que tem capacidade para produzir efeitos jurídicos”, não se cogitando “saber se ela produz efetivamente esses efeitos”, posto que isso diria respeito a uma análise sociológica. Restringe-se, aqui, pois, a análise da aplicabilidade dos direitos sociais ao campo jurídico. Quando se afirma que nem todas as normas definidoras de direitos têm a mesma eficácia, quer-se dizer que algumas são, em parte, autoaplicáveis, enquanto outras possuem uma aplicabilidade diferida. Note-se que não se está adotando, aqui, a antiga classificação do direito norte-americano que divide as normas em self-executing e not self-executing, isto é, normas autoaplicáveis ou bastantes em si e normas não autoaplicáveis ou que não são bastantes em si. Isso porque afirmar que determinadas normas são autoaplicáveis passa a falsa ideia de que elas produziriam por si sós todos os efeitos que lhes fossem possíveis, e, em relação às normas não autoaplicáveis, a falsa ideia de que não possuem ou têm eficácia reduzida (SILVA, 2000, p. 75-76). Opta-se, aqui, pelo entendimento de que as normas que se chamam autoexecutáveis têm aplicabilidade maior que aquelas às quais se chamam de aplicabilidade diferida. As normas 46


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do primeiro grupo são as liberdades, o que inclui, também, as liberdades sociais, que, para seu tão só e restrito exercício prescindem de qualquer intervenção estatal, desde que, é claro, os indivíduos possuam meios para exercê-las; ao passo que as normas do segundo grupo são os chamados direitos sociais programáticos, que necessitam de uma atividade estatal prestacional, ou seja, voltada para que se possibilite seu exercício.

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Assim, os direitos sociais podem ser divididos em dois grupos: as liberdades sociais e os direitos sociais programáticos. Estes últimos são tidos por aquele tipo de aplicabilidade diferida, o que não significa, entretanto, que a atuação estatal prestacional possa ser diferida, pelo contrário, ela deverá ser imediata, já que cabe aos órgãos estatais maximizar a eficácia de todo e qualquer direito da pessoa humana (SARLET, 2006, p. 280). Ademais, como são os direitos sociais de aplicabilidade diferida os que suscitam a questão da reserva do possível, desde já, por questões metodológicas, afasta-se a análise das liberdades sociais. Os direitos sociais de aplicabilidade diferida estabelecidos por enunciados prescritivos de direitos humanos, ao serem interpretados, se apresentam como normas programáticas, que “contêm disposições indicadoras de valores a serem preservados e de fins sociais a serem alcançados”, são normas que “não especificam qualquer conduta a ser seguida pelo Poder Público, apenas apontando linhas diretivas”, gerando a “exigibilidade de determinada prestação”, ou, até mesmo, a possibilidade de se exigir “dos órgãos estatais que se abstenham de quaisquer atos que contravenham as diretrizes traçadas” (BARROSO, 2008, p. 109, 255256; FERRARI, 2001, p. 172-181). Pelo que a doutrina vem entendendo sobre o conceito de normas programáticas, a melhor expressão a ser utilizada não é norma programática, e sim norma-diretriz, porque não se refere propriamente a programas, mas a normas-diretrizes que possuem eficácia limitada à atuação do Poder Público, que deve ser imediata, por imperativo constitucional, a fim de serem concretizados direitos (BARROSO, 2008, p. 170-171). Assim, as normas constitucionais instituidoras de direitos sociais de aplicabilidade diferida indicam a possibilidade de a sociedade efetuar uma cobrança em relação ao Poder Público, em suas três esferas, para que este, por meio de políticas públicas adequadas e sujeitas ao devido controle faça com que sejam concretizados esses direitos (FACCHINI NETO, 2006, p. 45); entendendo por adequação de políticas públicas um comportamento estatal tanto positivo (concretização) quanto negativo (não violação de direitos). Os direitos sociais têm a ver com as oportunidades do indivíduo. Como a todos são asseguradas as mesmas liberdades, a todos devem ser dadas, também, as mesmas liberdades. Contudo, o que se verifica é que, mesmo os indivíduos tendo o direito de exercer essas liberdades, o real exercício de algumas não ocorre ou ocorre com deficiência, em virtude dos mais variados fatores, dos quais se pode citar o status social, a capacidade econômica, o nível cultural. Diante dessa deficiência ou ausência, deve haver um meio de dar oportunidades aos indivíduos para que possam chegar ao exercício das liberdades que lhes são asseguradas. Tal é o papel dos direitos sociais, procurando, pois, reduzir desigualdades socioeconômicas. 47


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3 A questão da reserva do possível É interessante que, mesmo assim, esse grupo de direitos sociais tem sido por boa parte da doutrina associado à ideia de reserva do possível, ou, como afirma Canotilho (2003, p. 481), “os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos”. Tal associação decorre, como lembra Prieto Sanchís (1995, p. 15), do fato de que quando falamos nesses direitos “nos referimos a bens ou serviços economicamente avaliáveis”. De fato, isso é o que ocorre, mas é preciso que se tenha atenção para o correto uso da ideia, ou seja, de que os direitos sociais de aplicabilidade diferida “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade” (KRELL, 2002, p. 52), ou melhor, o mínimo que ao indivíduo deve ser disponibilizado desfrutar não entra na conta da reserva do possível, mas apenas o que lhe sobejar. A expressão reserva do possível foi criada pelo Tribunal Constitucional alemão e adotada pelos autores alemães, como se pode extrair da obra de Leonardo Martins (2005, p. 663-664), com o sentido de que a sociedade deveria delimitar a razoabilidade da exigência de determinadas prestações sociais, a fim de impedir o uso dos recursos públicos disponíveis em favor de quem deles não necessita, ou seja, foi criada com o objetivo da promoção razoável dos direitos sociais, a fim de que se realizasse a justiça social através da concretização da igualdade. No Brasil, no entanto, a ideia ganhou conteúdo de contornos novos (TORRES, 2009, p. 106). A reserva do possível à brasileira, como lembra Fernando Facury Scaff (2004, p. 148), utilizase do argumento de que “as necessidades humanas são infinitas e os recursos financeiros para atendê-las são escassos”. Não se pode adotar, contudo, esse entendimento, porque “ninguém tem necessidades, porém ideias sobre as necessidades”, isto é, as pessoas têm “prioridades, graus de necessidade” (WALZER, 2003, p. 88). Assim, não se pode confundir prioridade com necessidade, pois as necessidades são, de fato, infinitas, mas nem por isso todas devem ser atendidas, mesmo porque há aquelas supérfluas e aquelas prioritárias. Deste modo, os recursos financeiros devem ser empregados para atender o que é prioritário, podendo, caso haja sobra, atender o que é supérfluo. Esta é, pois, a verdadeira razão de ser da reserva do possível. Ademais, as necessidades prioritárias, melhor referidas como exigências mínimas, possuem um conteúdo baseado em escolhas genéricas e objetivas, desconsiderando-se quaisquer desejos, interesses ou condições particulares, ou seja, é tudo aquilo que é imprescindível para qualquer pessoa, seja qual for seu status social (ZIMMERLING, 1990, p. 41; RAWLS, 2002, p. 97-98), mesmo que seja certo o fato de que alguns indivíduos têm maior acesso aos meios necessários para atingir essas exigências básicas, ao passo que outros não têm essa sorte (RAWLS, 2002, p. 221-222; AÑÓN ROIG, 1994, p. 28-29). Este mesmo entendimento tem Amartya Sen (2000, p. 10) quando escreve que “o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que eliminam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente”. Utilizar um discurso baseado na reserva do possível para justificar a deficiente ou a ausente concretização de direitos sociais de aplicabilidade diferida tem sido comum. Ora, esse tipo 48


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de vinculação só pode gerar dois tipos de conclusão: ou o Estado não possui dinheiro em seus cofres ou esse dinheiro existe, sendo, porém, mal-empregado, de modo que aquilo que é básico e deveria ser concretizado não o está sendo (KRELL, 1999, p. 241-242).

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A doutrina, em geral, quando trata genericamente sobre a reserva do possível, afirma que “o ideal seria que houvesse disponibilidade financeira para cumprir todos os objetivos da Constituição” (MARMELSTEIN, 2008, p. 318). A verdade é que “um direito não existe se não houver um maquinário institucional para protegê-lo”, isto é, “se todos os cidadãos devem gozar de um determinado mínimo de direito, então esses custos não podem ser individualmente suportados” (IMMORDINO e PAGANO, 2004, p. 85). Desta feita, todos aqueles direitos que dependam de uma concretização, como é o caso dos direitos sociais, e que se destinem a toda a sociedade, e não apenas a alguns indivíduos, devem ser financiados por todos, conforme as regras pertinentes ao sistema jurídico de determinado país. O maquinário institucional a que se referem Immordino e Pagano é o governo, que arrecada da sociedade as verbas destinadas ao financiamento desse tipo de direitos e que, na boa expressão de Ronald Coase (1960, p. 17) “é, em certo sentido, uma superfirma, de um tipo bastante especial, já que capaz de influenciar o uso de fatores de produção por meio de decisões administrativas”, de maneira que fica “claro que o governo tem poderes que podem facilitar a obtenção de certas coisas por um menor custo do que as empresas privadas”. Portanto, o papel do governo é gerir e aplicar corretamente todo o dinheiro arrecadado a título de financiamento do aparato estatal e, principalmente, dos direitos. Assim, se a reserva do possível for utilizada apenas com o propósito de justificar os erros de gestão social do Poder Público, então é um postulado flagrantemente contrário aos direitos da pessoa humana. Adotar-se, portanto, a versão de que a reserva do possível justifica a não efetivação dos direitos sociais de aplicabilidade diferida é dar a oportunidade de não se dar necessária eficácia a esses direitos, e, por tabela, porque dependentes destes, as liberdades não possam ser (corretamente) exercidas por todos os indivíduos. Esse tipo de atitude é irresponsável, porque liga os direitos sociais “à ditadura dos cofres vazios, entendendo-se por isso que a realização dos direitos sociais se dá conforme o equilíbrio econômico-financeiro do Estado” (CANOTILHO, 1998, p. 46), o que não tem cunho verídico, compartilhando-se da mesma irresignação de Américo Bedê (2005, p. 74): “é possível falar em falta de recursos para a saúde quando existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda do governo?”. Ao que o próprio autor continua: “se os recursos não são suficientes para cumprir integralmente a política pública, não significa de per si que são insuficientes para iniciar a política pública”.

4 As exigências mínimas e a proibição de retrocesso social Utilizar os recursos disponíveis para promover as exigências mínimas da coletividade não significa dizer que essa promoção tenha de ser toda ela feita de uma só vez, o ideal é que 49


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fosse, mas seria ideal, e não real. É aí que entra a discussão sobre a vedação do retrocesso social: começa-se com pouco e faz-se com que haja um “aumento contínuo das prestações sociais” (CANOTILHO, 1998, p. 47). Ora, se os direitos sociais também têm de ter aplicabilidade imediata, mesmo que diferida, então não se pode admitir que eles sejam vinculados à existência de dinheiro nos cofres públicos, porque daí limitar-se-ia ainda mais sua aplicabilidade e não se daria continuidade às prestações sociais estatais de sua concretização. Como “um direito não existe se não houver uma máquina institucional para protegê-lo” (IMMORDINO e PAGANO, 2004, p. 85), então é preciso que essa máquina trabalhe ininterruptamente, para que todos os direitos fundamentais sejam basicamente garantidos e concretizados. A concretização de direitos, fundados em necessidades básicas, dá aos indivíduos, além de certa estabilidade, “a confiança nas instituições, restando por influir positivamente na sociedade e, por fim, por auxiliar na consecução dos objetivos do Estado” (CONTO, 2008, p. 56). Noutras palavras, embora partam de iniciativa do Estado, as políticas públicas são financiadas pela sociedade, e esta, na medida em que percebe que a máquina estatal está trabalhando corretamente, ou seja, empregando bem os recursos financeiros captados, auxilia na concretização de direitos e manutenção de políticas públicas. Portanto, como toda pessoa possui “um direito fundamental não escrito à garantia das condições materiais mínimas para uma existência digna” (SARLET, 2007, p. 15), o dinheiro do erário deve ser empregado primariamente na concretização das exigências mínimas, e, com uma nova entrada de recursos financeiros, deve haver a maximização dessas prioridades básicas. Trabalha-se, pois, com a ideia de mínimo existencial, que, resumidamente, é a essência dos direitos fundamentais, funcionando simultaneamente como sua proteção (HÄBERLE, 2003, p. 58), independente das condições políticas, sociais e econômicas da comunidade a que se pertença. Assim, ao Estado impõe-se que se abstenha de violar esse núcleo, seja mediante atos, seja mediante omissões, a fim de não macular a dignidade humana. E é exatamente esta ideia que parece permitir a “constatação da existência de um princípio da proibição do retrocesso social” (CONTO, 2008, p. 85). Pela teoria geral do mínimo existencial (BERNAL PULIDO, 2007, p. 408-409), aos indivíduos são reconhecidos direitos minimamente essenciais representados pelas exigências mínimas, que devem ser satisfeitas pelo Estado, mediante prestações sociais que efetivem os direitos sociais. É exatamente aí que se verifica o limite da justificativa a partir da reserva do possível, na medida em que esta só possa ser arguída para justificar o atendimento de preferências, isto é, de necessidades supérfluas, e nunca para justificar a inobservância do mínimo existencial. Ora, se é objetivo fundamental do Estado social liberal manter uma sociedade justa e igualitária, então é preciso que às pessoas seja materialmente garantida uma igualdade de oportunidades por meio de prestações sociais eficientes. Essas prestações sociais implantadas e oferecidas pelo Estado devem atender às exigências mínimas de todos os indivíduos, tenham ou não eles como as satisfazer por si sós. 50


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A proibição do retrocesso social, como todo postulado (ÁVILA, 2007, p. 71), relaciona-se com outras proposições deste tipo, principalmente com o postulado da proporcionalidade, que se apresenta de duas formas: “o garantismo negativo (em face dos excessos do Estado) e o

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garantismo positivo, no sentido de que o Estado não pode deixar de proteger determinado direito fundamental” (CONTO, 2008, p. 100). A proporcionalidade é, pois, um postulado de otimização, que se perfaz mediante observância de seus três níveis (ALEXY, 1994, p. 46): adequação, necessidade e ausência de excesso. O garantismo negativo apresenta-se como a proibição de excesso, e o garantismo positivo, como a adequação e a necessidade de proteção do mínimo existencial, isto é, como a proibição de proteção deficiente. Essa relação pode-se extrair das palavras de Bernal Pulido (2007, p. 807): “na dogmática alemã já é bem conhecida a distinção entre duas versões distintas do princípio da proporcionalidade: a proibição de excesso (Übermaßverbot) e a proibição de proteção deficiente (Üntermaßverbot)”. Portanto, é possível explicar a proibição de retrocesso social através dos postulados da proibição de proteção deficiente e da proibição de excesso. Pela proibição de proteção deficiente tem-se que o Estado, mediante suas prestações sociais (políticas públicas) tem o dever de procurar maximizar o mínimo existencial, ou, por outra, tornar máxima a efetividade dos direitos minimamente exigíveis, de maneira que aquilo que já foi garantido ou concretizado não pode vir a ser suprimido ou limitado por qualquer ato estatal, isto é, não se podem utilizar medidas retroativas. E, pela proibição de excesso, é vedado ao Estado utilizar meios de caráter retrocessivo, que, embora não atinjam aqueles direitos que já foram concretizados, possam promover uma involução social, porque houve uma intervenção na sociedade além do que era necessário (BARNES, 1994, p. 510). Portanto, a proibição do retrocesso social consiste em que o Estado não pode se furtar dos deveres de concretizar o mínimo existencial, de maximizá-lo e de empregar os meios ou instrumentos cabíveis para sua promoção, sob pena de a sociedade vir a experimentar uma imensa limitação no exercício de todos os seus direitos.

5 Os três poderes estatais e a realização dos direitos fundamentais Fala-se, então, de que devem ser efetivadas políticas públicas a fim de se evitar que haja retrocesso social e consequente violação do mínimo existencial. Essas ações de promoção de direitos voltados para a satisfação das exigências mínimas devem ser observadas concomitantemente pelas três funções (ou poderes) estatais, cada uma com suas peculiaridades, a fim de se evitar o retrocesso, ou a involução social. Essa observação leva a uma pergunta crucial para o entendimento do problema aqui tratado e que também é posta por Bruce Ackerman (2000, p. 715): “em que sentido a separação de poderes protege os direitos fundamentais?”. A resposta a esta questão é encontrada na prática e manutenção de políticas públicas, desde que elas sejam cogeridas pelos três poderes de forma harmônica. 51


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Ora, como é comum dizer, os três Poderes são autônomos, daí a separação, e, também, interdependentes, daí a harmonia, de maneira que se possa dizer haver uma separação harmônica de Poderes estatais que “é elemento lógico essencial do Estado de Direito”, exatamente para haver o “controle do exercício do poder político”, atuando cada Poder como “um limite ao exercício das atividades do outro” (SUNDFELD, 2005, p. 42-43). Os três Poderes devem ser sempre atuantes, promovendo as finalidades do Estado, isto é, em linhas gerais, a formação de uma sociedade livre, justa, solidária e igualitária, e que assegure o mínimo existencial de seus membros. Assim que a realização de políticas públicas tem de estar vinculada aos Poderes estatais, no sentido de que estes devam promover a concretização e manutenção dos direitos das pessoas humanas que são, em seu favor, minimamente exigíveis. Nesta esteira, cabe ao Legislativo estabelecer normas jurídicas que reconheçam direitos e regulamentem, com fulcro na Constituição nacional, seu exercício, a fim de que sejam garantidas as exigências mínimas inerentes à vida de quaisquer pessoas, de modo que elas fruam “a melhor vida social” (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 31). Ao Executivo cabe “a realização, em concreto, de todas essas normas jurídicas” (BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 34), o que ocorre por meio do planejamento e da execução de políticas públicas, “que visem ao cumprimento das promessas constitucionais” (CONTO, 2008, p. 101). Essas promessas decorrem exatamente da existência de direitos sociais que tenham aplicabilidade diferida, o que, muito antes de funcionar como algo que vá atrapalhar o exercício dos direitos fundamentais, “torna mais transparente a vinculação dos órgãos de direção política ao fornecer linhas de atuação e direção”, já que “o sentido normativo de uma constituição concebe-se como prospectivamente orientado, sem fechar o sistema, pois não é apenas o garantidor do existente, mas deve ser o esboço do porvir” (BERCOVICI, 1999, p. 38-39). E ao Judiciário cabe o controle dos atos desses dois Poderes mediante a justa e legal aplicação das normas jurídicas ao caso concreto, a fim de “garantir um cumprimento racional dos respectivos preceitos constitucionais” (KRELL, 2002, p. 22) e que não haja atuação abusiva ou excessiva, evitando-se a retroação e o retrocesso sociais, tomando-se o cuidado, como aponta Virgílio Afonso da Silva (2009, p. 78, nota 33), de não incidir no erro de “uma defesa da intervenção do Judiciário sempre que não houver a realização de um direito social”, já que a omissão legislativa ou mesmo executiva pode estar fundamentada jurídicoconstitucionalmente.

6 Conclusão Não se pode, deste modo, deixar-se levar pelo discurso de que o postulado da reserva do possível permite que se justifique a ausência de investimentos estatais em prestações sociais que concretizem ou que potencializem os direitos sociais à falta de dinheiro nos cofres públicos. A reserva do possível trabalha, pelo contrário, com a ideia de que a falta de recursos só pode ser arguída em relação às necessidades supérfluas dos indivíduos, isolada ou coletivamente 52


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consideradas. No entanto, o que se vê é o caminho inverso, e a realização dos direitos fundamentais em seu mínimo essencial vai ficando cada vez distante. Aplicar o postulado da reserva do possível às necessidades prioritárias é possibilitar que o indivíduo não atinja o mínimo existencial, e isso é inadmissível em se tratando da promoção da dignidade da pessoa humana e da justiça e equidade sociais.

Doutrina

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Neste encalço, cabe afirmar que os direitos sociais, como condições a serem satisfeitas para o exercício de algumas liberdades, devem pelo menos ter uma garantia mínima, ou seja, serem materializados num grau básico, que é prioritário a todo e qualquer ser humano. Todavia, não basta que sejam concretizadas apenas as prestações suficientes para se alcançar o mínimo, é preciso que essas prestações sofram aos poucos um aumento contínuo, maximizando-se o mínimo, ou, por outra, que este mínimo seja realizado da maneira mais ampla possível. Por isso a reserva do possível não pode, sob hipótese alguma, ser alegada para justificar o comportamento omissivo do Estado em relação ao seu dever de prestatividade social em relação ao mínimo existencial. Os desejos, como se sabe, são ilimitados, porém as necessidades básicas, não o são, e, desta forma, faz-se preciso considerar que, sim, os direitos têm custos, mas o Estado deve despender, razoável e adequadamente, o dinheiro arrecadado para sua promoção dentro daqueles parâmetros mínimos. Aliás, como bem aponta Ana Paula de Barcellos (2008, p. 266 e 268), “a limitação de recursos existe”, de modo que, sendo assim, “os recursos disponíveis deverão ser aplicados prioritariamente no atendimento dos fins considerados essenciais pela Constituição, até que eles sejam realizados”; e, se houver algum recurso remanescente, este poderá ser empregado “de acordo com as opções políticas que a deliberação democrática apurar em cada momento”, ou seja, poderá ser aplicado para atender a necessidades supérfluas ou para maximizar as necessidades básicas, promovendo o aumento contínuo das prestações sociais previsto pelo postulado da irredutibilidade social. A reserva do possível tem sido utilizada com fins de justificar a limitação de recursos para fornecer à coletividade, por exemplo, um sistema público de saúde e de educação, enquanto se vê, claramente, a interessante sobra de recursos para propagandas de governo. Portanto, deve-se ter muita atenção para o fato de que as exigências mínimas de todos os indivíduos devem ser atendidas pelo Estado mediante políticas públicas, sem que se possa justificar a inércia estatal através da reserva do possível, o que, se continuar a ser admitido, fará com que continuem a existir apenas previsões de direitos e promessas não cumpridas.

Referências ACKERMAN, Bruce. The new separation of powers. Harvard Law Review, Cambridge, n. 3, p. 633-729, 2000. 53


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A norma tributária e sua relação com a Teoria Egológica e a norma jurídica de Kelsen

Eduardo Morais da Rocha Juiz Federal Titular da 27a Vara da SJMG. Mestre em Direito Tributário pela UFMG.

Resumo: O presente artigo estuda a norma jurídica na concepção kelseniana e sua interrelação com a Teoria Egológica, realçando a correlação entre as normas primárias e secundárias de Kelsen e a perinorma e a endonorma de Carlos Cossio. Seguindo o desenvolvimento do estudo dos diversos aspectos da hipótese e do mandamento da norma jurídica, procurar-se-á demonstrar a sua importância para a construção da atual concepção jurídico-dogmática da norma tributária. Palavras-chave: Endonorma. Perinorma. Normas. Primárias. Secundárias. Abstract: This article explores the legal standard in Kelsen’s conception and its interrelationship with the Egological Theory, highlightening the correlation among primary and secondary Kelsen’s standards and Carlos Cossio’s perinorm and endonorm. Following the development of the study of various aspects of the hypothesis and the rule law commandment, it will seek to demonstrate its importance for the construction of the current legal-dogmatic conception of the norm tax. Keywords: Endonorm. Perinorm. Norms. Primaries. Secondaries.

1 A norma jurídica na concepção kelseniana Na concepção de norma jurídica, Kelsen procurou separar o ato produtor da norma de seu significado, ou melhor, distinguiu o plano do ser do dever-ser. A norma seria posta no ordenamento jurídico por meio de um ato de vontade, sendo, portanto, o significado desse ato. No campo jurídico, o significado de determinado ato de vontade não é perceptível por meio dos sentidos, como ocorre no campo da natureza, pois, no Direito, o sentido de determinado ato de vontade é obtido por meio da hermenêutica, funcionando a norma para o mestre de Viena, como um esquema de interpretação.1 A norma jurídica kelseniana, assim, é o significado de certo ato. A 1

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 3-4.

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norma, embora nasça de um ato de vontade, com este não se confunde, pois o ato é somente um ponto de partida do qual a norma é o seu resultado final. As normas podem ser postas por atos de vontade, como o costume e a lei, dentre outros, que são externalizados por palavras, cores, desenhos e gestos, sendo que tais atos se distinguem das normas por eles postas, já que as normas poderão valer quando não se cogita mais da existência do ato. O ato de vontade, por meio do qual a norma é posta, estaria no plano do ser (natureza), enquanto que o seu significado estaria no plano do dever-ser (direito). Cabe ressaltar, contudo, que nem todo dever-ser poderá ser considerado uma norma jurídica, porque não lhe basta mero significado subjetivo, sendo imperativo, ainda, um sentido objetivo,2 que decorre de outra norma do ordenamento jurídico, que lhe confere validade. Por meio disso, é possível distinguir, segundo Kelsen, o ato de um carrasco que executa um indivíduo, em virtude de uma condenação à pena de morte, do ato de salteadores que exigem que alguém lhes entregue determinado bem, pois, nesta última hipótese, o dever-ser não decorre de outra norma jurídica que lhe dá validade. Diferentemente, para Kelsen, é o dever-ser oriundo do ato do carrasco que executa a norma individual posta por uma sentença judicial, sentença esta que extrai sua validade de uma outra norma geral, a qual, por sua vez, retira a sua validade da Constituição3 posta, que, por seu turno, tem sua validade conferida por uma norma fundamental pressuposta. Desta pirâmide normativa, o mestre austríaco retira o sentido objetivo que confere a um dever-ser o significado de uma norma jurídica. Por isso, o ato do carrasco será válido e lícito, ao passo que aquele praticado pelo bando de salteadores será ilícito e, consequentemente, criminoso. Assim, para Kelsen, a norma é o sentido objetivo que possuem certos atos que se dirigem à vontade de outrem, de forma que a norma jurídica não descreve condutas, mas, pelo contrário, prescreve condutas, seja proibindo, permitindo ou atribuindo competência, por meio de juízos hipotéticos decorrentes de uma relação de dever-ser. Em virtude disso, para Hans Kelsen, o direito não pode preocupar-se com os motivos (eficácia causal) da conduta, mas, sim, verificar se os destinatários da norma a estão cumprindo ou se as autoridades a estão aplicando, no caso de seus destinatários não observarem a conduta prescrita pelo Direito. O ordenamento jurídico quer provocar uma conduta desejada e evitar uma conduta indesejada, e, para isso, utiliza técnicas às quais denomina sanções, que nada mais são do que respostas da norma para a conduta realizada.

58

2

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 2-3.

3

Para Niklas Luhmann, a positividade de uma norma de decisão não decorreria da validade que uma norma inferior extrai de uma norma superior, mas, sim, dos fatores sociais, conforme se infere da seguinte passagem de sua obra: “Essa mudança estrutural (e não uma decisão) torna a decisão o princípio do direito. Sua positividade não resulta da constituição (mas vige quando a constituição a nega, assumindo-se como direito natural ou inalterável); ela não resulta da referência lógica a uma norma básica que confere vigência normativa a determinadas decisões (mas quando muito é simbolizada e construída juridicamente pela ideia de uma tal norma básica); ela resulta, isso sim do desenvolvimento social e está correlacionada com uma estrutura social que gera uma superabundância de possibilidades através da diferenciação funcional apresentando por isso a tendência de fazer com que todo o direito pareça contingente.” (LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 238).


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Se a conduta realizada for juridicamente desejada, a resposta poderá ser um prêmio, mas se, pelo contrário, a conduta for indesejada, a resposta será uma pena, à qual também, comumente, se denomina sanção.

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A sanção pretende ser uma garantia de observância do ordenamento jurídico, e aí reside a diferença substancial entre a Moral e o Direito, pois a sanção jurídica, diversamente da sanção moral, admite o uso de atos de coação em detrimento de condutas omissivas e comissivas indesejadas. Kelsen conferiu uma importância tão grande às normas sancionatórias que caracterizou o Direito como uma ordem de coação,4 conforme se depreende da seguinte passagem de sua obra: É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que o não determine como ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social, e porque, com o elemento coação, se toma por critério um fator sumamente significativo para o conhecimento das relações sociais e altamente característico das ordens sociais a que chamamos Direito [...].5

Para melhor compreensão da importância de tais normas na construção teórica kelseniana, urge que, como premissa, se investiguem as denominadas normas autônomas e as não autônomas.

1.1 Normas autônomas e normas não autônomas Embora nem todas as normas do ordenamento jurídico estatuam atos de coerção, Hans Kelsen afirmou, como observado no item precedente, ser o direito uma ordem de coação. Tal afirmação baseou-se na constatação de que todas as normas que não estabeleçam um ato coercitivo somente terão validade à medida que se ligarem a outra norma estatuidora de um ato de coerção. Às normas que contenham um preceito coercitivo, Kelsen denominou de autônomas, em contraposição às não autônomas, que são aquelas que não estatuem um ato coercitivo e que somente terão validade se ligadas às primeiras. Assim, as normas que estatuem atos de coerção têm como desiderato obter certa conduta de um indivíduo, se bem que nem todos os atos de coerção sejam tidos por ele como sanção, pois que na hipótese de internamento compulsório por doença contagiosa não há conduta que seja pressuposto de tal ato coativo. 4

Luhmann prefere definir o direito por meio de sua função, e não como instrumento de força física. Confira-se: “É amplamente difundida a concepção que define o direito através do instrumento da força física, ou mais precisamente através da aplicabilidade legítima (reconhecida socialmente) da força física no caso de transgressões à norma. Pensa-se aqui não só no emprego da força autorizado ou executado pelos órgãos estatais; o conceito também inclui formas mais primitivas da legítima defesa. Essa definição facilita a distinção do direito de outras normas. Mas não fornece indicações suficientes para a resposta às diversas indagações que deixa em aberto. Por isso preferimos definir o direito através de sua função — ou seja, a da generalização congruente — fundamentando a partir dessa função a explicação de por que e em que limites a força física assume aquela posição proeminente.” (LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I, p. 123-124).

5

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 58.

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Um caso de normas não autônomas para o mestre de Viena seria o daquelas que conferem justamente sentido a outras, seja interpretando-a, seja, mesmo, especificando os seus conceitos. Cita, como exemplo, um artigo do Código Penal que estatui o que seja homicídio — tal norma extrairia seu sentido de outra norma que efetivamente estabelece uma sanção no caso de o homicídio ser consumado ou tentado. Dentre as diversas modalidades de normas não autônomas, Kelsen cita, ainda, aquelas que, reduzindo o âmbito de validade de outras, permitem a realização de determinada conduta. Como exemplo, faz referência à norma permissiva da legítima defesa, que limita o âmbito de validade de outra norma que veda o uso da força física. Nessa hipótese, a norma que impõe a sanção para aquele que empregar o uso da força tem seu âmbito de validade limitado por outra norma não autônoma, que possibilita, em certas circunstâncias, o uso da força. Para Kelsen, a norma que admite a autodefesa é dispensável, tendo em vista que poderia existir uma única norma que proibisse o uso da força que não fosse caracterizada como legítima defesa. Outro exemplo colacionado pelo mestre austríaco seria o de uma norma que proibisse o consumo de bebidas alcoólicas, ligando à conduta oposta uma sanção. Esta norma poderia ter seu âmbito de validade restringido por outra norma não autônoma que permitisse o consumo de tal bebida, desde que houvesse permissão da autoridade. Esta segunda norma somente faz sentido se conjugada com a primeira norma, que impõe a sanção no caso de consumo da bebida. Por tal motivo, para Kelsen, poder-se-ia prescrever uma única norma estatuindo que quem traficar bebidas alcoólicas sem permissão da competente autoridade será punido.6 Podendo uma norma limitar o âmbito de validade de outra, esta também poderia retirar totalmente a sua validade, como as chamadas normas derrogatórias, que, para Kelsen, também seriam exemplos de normas não autônomas, porque somente teriam sentido se postas em conexão com as normas derrogadas. Outra hipótese de normas não autônomas na construção kelseniana são aquelas que somente atribuem competência para uma autoridade produzir outra norma jurídica. Tal norma que confere competência a alguém para realizar uma conduta criadora de normas outorga-lhe poder jurídico e, ao mesmo tempo, estatui as premissas nas quais serão aplicados os atos de coerção. Exemplificando as normas não autônomas que outorgam competência, Kelsen cita o dispositivo da Constituição que disciplina o procedimento legislativo ou, mesmo, que autoriza o costume como fato produtor do direito. Do mesmo modo, as normas que estatuem os procedimentos administrativo e judicial conferem os meios para que as autoridades possam criar as normas individuais, dando aplicação ao direito. Bastante elucidativo dessa hipótese é o exemplo a seguir, colacionado da obra de Hans Kelsen: 6

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KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 60.


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Consideremos a situação que se nos apresenta quando, numa determinada ordem jurídica, o furto é proibido por lei sob pena de prisão. Pressuposto da pena estabelecida não é de forma alguma o simples fato de que um indivíduo cometeu um furto. O furto tem de ser averiguado, num processo ou segundo um processo fixado pelas normas da ordem jurídica, por um tribunal que essas normas para tal considerem competente; ao que se seguirá a aplicação, por este tribunal, de uma pena fixada pela lei ou pelo direito consuetudinário, pena essa a ser executada por um outro órgão. O tribunal é competente para, num determinado processo, aplicar ao furto uma pena, somente quando foi produzida, segundo um processo constitucional, uma norma geral que liga ao furto uma determinada pena. A norma da Constituição que confere competência para a produção desta norma geral fixa um pressuposto ao qual é ligada a sanção. A proposição jurídica que descreve esta situação diz: Se os indivíduos competentes para legislar estabeleceram uma norma geral por força da qual quem comete o furto deve ser punido de certa maneira, e se o tribunal competente segundo o ordenamento processual penal verificou, de conformidade com um procedimento fixado pelo mesmo ordenamento processual, que determinado indivíduo cometeu um furto, e se este mesmo tribunal aplicou a pena legalmente fixada, então deve um certo órgão executar essa pena. Esta formulação da proposição jurídica descritiva do Direito mostra que as normas da Constituição que conferem competência para a produção das normas gerais ao regularem a organização e o processo do órgão legislativo, e as normas de processo penal que conferem competência para a produção das normas individuais das decisões penais, são normas não autônomas, pois elas apenas determinam as condições ou pressupostos da execução das sanções penais.7

Doutrina

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Em momento algum, Kelsen olvidou a existência de normas que não estatuam qualquer ato de coerção, mas, pelo contrário, reconheceu-as expressamente e afirmou que as normas meramente interpretativas, as normas que atribuem competência, as normas que limitam ou retiram o âmbito de validade de outras, todas elas são normas não autônomas por estarem essencialmente ligadas a normas autônomas que estatuam atos de coerção. Isso porque as normas não autônomas irão somente estabelecer os pressupostos e requisitos para a aplicação da sanção jurídica. Cabe ressaltar, todavia, que Kelsen ainda classifica, como autônomas, as normas ditas primárias e, como não autônomas, as chamadas secundárias. Tendo em vista a importância dessa classificação para a construção da teoria da norma tributária, este tópico será tratado com vagar no item que se segue.

1.2 Normas primárias e normas secundárias Kelsen distinguiu, ainda, as normas que prescreviam determinada conduta daquelas que estabeleciam uma sanção para o caso de realização de comportamento oposto ao desejado pelo ordenamento jurídico. Na visão kelseniana, a norma que prescreve a conduta 7

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 60-61.

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juridicamente desejada está essencialmente ligada à norma que impõe sanção para o caso de seu descumprimento, pois esta já contém negativamente aquela na sua hipótese. Portanto, a norma estatuidora da sanção, por já conter negativamente no seu pressuposto a norma que prescreve a conduta desejada, seria uma norma autônoma, já que prescindiria da norma que impõe o comportamento desejado pelo Direito. Por estar essencialmente ligada à norma que estabelece a sanção, a norma que prescreve a conduta desejada pelo Direito seria, para Hans Kelsen, supérflua do ponto de vista da técnica legislativa,8 já que seria possível a edição de uma única norma que englobasse em seus preceitos as duas normas, tendo a conduta vedada pela ordem jurídica como pressuposto da sanção. Enquanto a norma que estabelece a sanção é autônoma, aquela que prescreve a conduta desejada é não autônoma, uma vez que esta segunda somente será considerada juridicamente prescrita se a conduta oposta for pressuposto de uma sanção. Assim, para Kelsen, tanto a norma que prescreve uma conduta quanto aquela que estabelece uma sanção à conduta oposta formam uma norma dupla e complexa interligada. Sobre o caráter duplo da norma, bastante esclarecedoras são as observações de Américo Lacombe atinentes às formulações kelsenianas: A norma jurídica encontra-se dividida em duas normas separadas, em duas expressões de dever-ser. Uma visa à obtenção de determinada conduta e a outra determina a sanção em caso de descumprimento. Como a primeira norma só é válida se a segunda atribuir uma sanção, temos que a primeira é supérflua em relação à segunda.9

À norma que prescreve a conduta juridicamente desejada, Kelsen denominou de norma secundária; à norma que estabelece a sanção à conduta oposta, de primária.10 Buscando exemplificar a distinção das normas em primárias e secundárias, Kelsen cita uma norma do Código Civil que estabelece ao credor a obrigação de restituir a quantia objeto de empréstimo. Para ele, a disposição dessa norma, por ser secundária, já estaria contida negativamente no pressuposto da norma primária, que impõe ao devedor inadimplente da obrigação a execução civil sobre o seu patrimônio. Lembra, ainda, Kelsen que os modernos Códigos Penais não estatuem mais normas cujo conteúdo sejam as condutas desejadas pelo ordenamento jurídico, mas, pelo contrário, limitam-se a prescrever a conduta vedada pelo Direito, ligando a essa conduta uma sanção.

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8

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 59.

9

LACOMBE, Américo. Obrigação tributária. 2. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996, p. 24.

10

O jurista inglês Herbert L. A. Hart também identifica o Direito como um sistema de normas primárias e secundárias, sendo que ele atribui outra conotação a essas normas. Para Hart, as normas primárias seriam aquelas que impõem comportamentos, seja criando direitos ou impondo obrigações, enquanto que as normas secundárias seriam normas de reconhecimento, à medida que são elas que estabelecem como e por quem as regras primárias podem ser reconhecidas, formadas, extintas ou modificadas. (Cf. HART. H. L. A. The concept of law. 2. ed. New York: Oxford University Press, 1994, p. 79-99).


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Vejamos os exemplos colacionados pelo jurista austríaco: O moderno legislador do Direito não diz: 1. ‘Não se deve furtar’ e 2. ‘Se alguém furta deve ser punido com cadeia’, ou: 1. ‘Deve-se pagar um empréstimo recebido’ e 2. ‘Se alguém não paga um empréstimo recebido, deve ser dirigida uma execução em seu patrimônio’, mas ele se limita, comumente, a estabelecer a norma que liga ao furto a sanção da pena de prisão, ou o não pagamento de um empréstimo recebido a sanção da execução forçada.11

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Assim, para Kelsen, o Direito já veda determinado comportamento, uma vez que o liga a uma sanção, sendo por isso desnecessária a edição de normas que prescrevam as condutas desejadas, como ocorria antigamente em relação, por exemplo, às contidas nos Dez Mandamentos, que estatuíam preceitos, como, não matarás, não furtarás. Por já estar a conduta prescrita contida negativamente no pressuposto da norma que impõe a sanção, a norma que prescreve o comportamento desejado pela ordem jurídica é supérflua. Com isso, Hans Kelsen demonstrou o relevante papel da sanção existente no ato de coação, caracterizando o direito como uma ordem de coerção,12 tendo em vista que uma conduta, para ele, somente seria considerada o conteúdo de um dever jurídico quando o comportamento oposto estivesse ligado a uma sanção.

2 A norma jurídica e a Teoria Egológica de Carlos Cossio Assim como Hans Kelsen, Carlos Cossio13 também desdobra a norma jurídica, tornando-a complexa ou dupla, e ainda, em consonância com a teoria kelseniana, confere ao dever jurídico papel de destaque. O professor argentino, porém, dá outra estrutura à norma jurídica, conforme adverte Felipe Peixoto Braga Netto: Sabe-se que a teoria egológica, do jurista argentino Carlos Cossio, opõe-se à teoria pura de Kelsen no que se refere à estrutura da norma jurídica. Enquanto para Kelsen ela é um juízo hipotético, para Cossio ela assume a forma de um juízo disjuntivo. Na teoria egológica, a norma jurídica completa é composta de duas estruturas proposicionais, a endonorma e a perinorma. A licitude estaria 11

KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 181-182.

12

Para Hart, o direito tem um caráter mais aberto, à medida que, para ele, a validade da norma jurídica não decorre unicamente da sua coercitividade, mas também de uma justificação atribuída pela legitimidade da sua aceitação pela população através de uma regra de reconhecimento (norma secundária). Com clareza, Hart expõe a questão: “The assertion that a legal system exists is therefore a Janusfaced statement looking both towards obedience by ordinary citizens and to the acceptance by officials of secondary rules as critical common standards of official behaviour. [...] But where there is a union of primary and secondary rules, which is, as we have argued, the most fruitful way of regarding a legal system, the acceptance of the rules as common standards for the group may be split off from the relatively passive matter of the ordinary individual acquiescing in the rules by obeying them for his part alone.” (HART, H. L. A. The concept of law, p. 117). (Tradução nossa: A afirmação da existência de uma ordem jurídica é, desta forma, uma asserção bifronte, que tem por escopo tanto a observância pelos cidadãos como a aceitação pelos funcionários das normas secundárias como padrões gerais do comportamento oficial. [...] Porém, onde existe uma conjunção de normas primárias e secundárias, hipótese que é o modo mais proveitoso de analisar uma ordem jurídica, a observância das normas como modelo comum para a coletividade pode ser dissociada do ponto de vista relativamente passivo da aquiescência do indivíduo em relação às normas, obedecendo-lhes por sua vontade própria).

13

COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho. Buenos Aires: Losada, 1944, p. 300-328.

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na endonorma, sob a forma da possibilidade de cumprir o devido, e a ilicitude estaria na perinorma, sob a ameaça de sanção tendo em vista o não cumprimento da prestação (dado A, deve-ser B, ou dado não — B, deve ser S).14

Em vez de chamar a norma complexa de norma primária e norma secundária, prefere o mestre portenho denominá-las, respectivamente, de perinorma e endonorma.15 A endonorma seria, grosso modo, equiparada à norma secundária kelseniana; a perinorma guardaria certa correspondência com a norma primária. Isso porque, na visão de Cossio,16 a endonorma teria como hipótese o comportamento desejado pelo direito, e a isto atrelaria determinada consequência normativa, ao passo que a perinorma teria como hipótese normativa a não observância do comportamento almejado pela ordem jurídica, tendo como consequência a aplicação de uma sanção. Assim, a norma complexa de Cossio resultaria da conjugação de dois juízos hipotéticos, tendo cada um deles uma hipótese e uma consequência própria, cujo produto seria uma endonorma e uma perinorma ligadas disjuntivamente, formando uma norma jurídica una e completa de caráter verdadeiramente dicotômico, conforme se depreende da seguinte passagem da obra do catedrático: La norma jurídica completa, que en cuanto concepto adecuado al objeto que menciona no puede menos ser disyuntiva por la razón ontológica de la interferencia intersubjetiva, tiene dos miembros, a los que proponemos llamarlos endonorma (conceptuación de la prestación) y perinorma (conceptuación de la sanción), no solo para terminar con el caos de las designaciones de normas primaria y secundaria que los diferentes autores usan con sentido opuesto, sino para subrayar que se trata de una norma única y no de dos normas, punto indispensable para entender el concepto de la norma jurídica com un juicio disyuntivo.17

O enfoque dicotômico e disjuntivo da norma tem o condão de, justamente, possibilitar o estudo sistêmico do fenômeno normativo sem agregar à hipótese e à consequência da norma outro elemento, qual seja, a sanção, pois uma formulação normativa que conjugasse todos estes requisitos se tornaria extensa demais, impedindo a compreensão holística de estágios normativos diversos. São bastante esclarecedoras as lições de Paulo de Barros Carvalho a respeito do caráter dicotômico da norma e da necessidade de seu desdobramento funcional por meio de juízos disjuntivos, verbis: Por outro lado, afastamos desde já a possibilidade de juntar a estes dois elementos — hipótese ou suposto e consequência — um terceiro, que seria a sanção, posto que adotamos a aludida dicotomia das regras jurídicas e, com

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14

BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 51-52.

15

COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 300-328.

16

COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 302.

17

COSSIO, Carlos. La teoría egológica del derecho, p. 302.


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isso, a norma sancionadora seria precisamente outra regra, com hipótese e consequência próprias.18

E continua o professor paulista:

Doutrina

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Por fim, caso a sanção passasse a integrar a estrutura lógica da norma jurídica, haveríamos de conceber regra que tivesse uma hipótese, uma consequência, outra hipótese para o descumprimento dessa consequência e, finalmente, outra consequência a que chamaríamos de sanção. Verdadeiramente, seria algo de estrutura tão complexa que, seu estudo pormenorizado demandaria esforços incalculáveis.19

É nesse ponto que se revela um dos aspectos mais notáveis da obra de Carlos Cossio, qual seja, o desdobramento funcional da norma, atribuindo a cada uma dessas formulações normativas uma hipótese e uma consequência própria, de forma que a disjunção normativa de dois juízos hipotéticos dê ensejo, respectivamente, à endonorma e à perinorma. Para finalizar essas breves considerações sobre a norma jurídica, noções imprescindíveis para o prosseguimento do estudo, colacionamos um trecho da lição do próprio Professor Carlos Cossio sobre relação lógica entre endonorma e perinorma mediante um juízo disjuntivo: Mas, em estes autores, ficou pouco claro qual dos princípios estabelece a relação entre o juízo hipotético e o juízo que, com prestação, o antecede: será o princípio da contradição ou o do terceiro excluído? A teoria egológica tomou sobre si o encargo de dar essa precisão e indicou que era o segundo destes princípios. Esta indicação resulta da sua concepção da norma jurídica como juízo disjuntivo. Eis porque a teoria egológica reclama que à conjugação ou se reconheça o carácter de conceito fundamental, uma vez que a relação existente entre prestação e transgressão é uma relação de opostos que se contradizem; o referido caráter permite ver a relação lógica existente entre endonorma e perinorma.20

3 A norma tributária A doutrina nacional, no estudo da norma tributária, superdimensionou a hipótese da norma em detrimento de sua consequência ou mandamento.21 Isso porque a maioria dos aspectos ou critérios estruturais que compõem a norma jurídica, em especial a norma tributária, foi alocada na sua hipótese de incidência, fato que esvaziou substancialmente a consequência ou o mandamento da norma. 18

CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 50.

19

CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 51.

20

COSSIO, Carlos. Norma, direito e filosofia. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, v. 23, p. 255, 1947.

21

Cf. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. FALCÃO, Amílcar de Araújo. O fato gerador da obrigação tributária. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

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Em que pese a não se olvidar a importância da hipótese de incidência da norma, não se deve descurar de que, na sua consequência, estão os principais elementos para a identificação da relação jurídico-tributária. O doutrinador pátrio que talvez mais bem tenha percebido isso foi Paulo de Barros Carvalho,22 que, utilizando os ensinamentos de Kelsen e da nomenclatura e do enfoque dicotômico e disjuntivo atribuído por Carlos Cossio à norma jurídica, dividiu a norma tributária em endonorma e perinorma tributária. Interessa-nos, especificamente, o enfoque dado por Paulo de Barros à endonorma tributária, pois que, como visto no item precedente, a perinorma cuida das infrações e das sanções jurídicas que não são objeto da norma tributária impositiva da obrigação tributária. Quanto às endonormas tributárias, estas, como todas as normas jurídicas, possuem uma hipótese (a conjugação dos aspectos imperativos para a caracterização do fato jurídico), à qual, uma vez ocorrida, o direito imputará uma consequência (conjugação dos aspectos para a caracterização da relação jurídica). O Professor Paulo de Barros Carvalho23 isola, na hipótese da endonorma tributária, três critérios que, segundo ele, seriam necessários para identificar o fato jurídico suficiente para o surgimento da relação jurídico-tributária. O primeiro critério teria caráter nuclear, uma vez que seria o próprio fato descrito pelo legislador como suficiente para o surgimento da obrigação tributária, fato este que condicionaria os demais critérios da hipótese normativa. O segundo critério da hipótese da endonorma seria o espacial, que determinaria o local da ocorrência do fato jurídico. E o terceiro critério seria o temporal, critério que delimitaria e situaria o fato jurídico no tempo. Já na consequência da norma tributária, o Professor Paulo de Barros24 aponta a existência de dois outros critérios que, no seu entender, seriam suficientes para individuar a relação jurídica de índole tributária surgida com a incidência do comando da norma, quais sejam, um pessoal — sujeito passivo e ativo da relação jurídico-obrigacional —, e outro, quantitativo — base de cálculo e alíquota —, que permitiria definir o conteúdo da prestação devida pelo sujeito passivo. Cabe ressaltar, todavia, que os critérios apontados por Paulo de Barros Carvalho não são suficientes para revelar todos os requisitos do fato jurídico e da relação jurídica dele decorrente. Tanto é assim que o Professor Sacha Calmon Navarro Coelho acrescentou outros critérios tanto à hipótese quanto à consequência ou comando da endonorma tributária. À hipótese normativa, além dos critérios material, espacial e temporal, Sacha Calmon25 acrescentou outro aspecto, terminologia usada pelo professor, que seria o aspecto pessoal.

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22

CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 98-99.

23

CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 124-135.

24

CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária, p. 160-178.

25

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 384-385.


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Este, incluído na hipótese normativa, teria o condão, por exemplo, de explicar fenômenos como a substituição tributária, em casos em que a pessoa que realiza concretamente o fato jurídico previsto abstratamente na norma difere daquela que integra o pólo passivo da relação jurídico-tributária. Ainda segundo o mencionado jurista, a existência de um aspecto pessoal na hipótese normativa revela-se importante para a percepção da capacidade contributiva, para a graduação da progressividade, para a consideração do ilícito fiscal e da responsabilização, para o reconhecimento de isenções e imunidades subjetivas.26 No que diz respeito às consequências endonormativas, Sacha Calmon acresce, ainda, àquelas citadas por Paulo de Barros — aspecto pessoal e quantitativo — outros aspectos denominados operacionais, que, na sua visão, seriam imperativos para a correta compreensão da relação jurídico-tributária: como, onde, de que modo, quando, em que montante se vai satisfazer o débito em favor do sujeito ativo,27 todos eles alusivos à obrigação tributária surgida com a ocorrência no mundo dos fatos da hipótese abstrata prevista na endonorma.

Doutrina

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Além de tais aspectos acrescidos à consequência endonormativa, Sacha Calmon, ainda, criticando os critérios de Paulo de Barros, ressalta não ser possível reduzir o aspecto quantitativo da norma tributária a dois únicos requisitos: base de cálculo e alíquota. Isso em virtude de existirem tributos que não possuem alíquotas e base de cálculo, como ocorre na maioria das taxas, além de, em determinados impostos e contribuições, ser imperativa a utilização de outras operações como adições ou subtrações para a verificação do montante devido.28 Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Professor da Universidade Federal de Minas Gerais Werther Botelho Spagnol acresceu ainda outro aspecto à consequência da norma de tributos finalísticos, como os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais. Seria um aspecto finalístico, consistente na indicação do destino a ser dado ao produto da arrecadação.29 Na visão de Werther Spagnol, nos empréstimos compulsórios e nas contribuições especiais, o exercício da competência constitucional de instituição e de arrecadação estaria estritamente vinculado às finalidades postas pelo Constituinte à destinação do produto da arrecadação do tributo.30

4 Conclusão 1. Tanto a norma que prescreve uma conduta quanto a que estabelece uma sanção à conduta oposta formam uma norma dupla e complexa interligada, sendo que pela teoria egológica a perinorma guarda certa relação com a norma primária kelseniana, enquanto a endonorma tem certa correspondência com a norma secundária. 26

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 384.

27

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 385.

28

COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro, p. 385-386.

29

SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 51.

30

SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário, p. 49-53.

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2. No caso da norma tributária, essa se situa na endonorma, ou na norma secundária, tendo em vista que a norma que estabelece a sanção está contida na perinorma ou na norma primária. 3. A norma tributária contém na sua hipótese aspectos pessoais, materiais, espaciais e temporais, sendo certo que no seu mandamento estão todos os elementos para identificação da obrigação tributária, quais sejam, os aspectos subjetivos, operacionais, quantitativos e, ainda, nas contribuições sociais e no empréstimo compulsório um outro aspecto, que é o finalístico.

Referências BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 3. ed. São Paulo: Lejus, 2002. BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 4. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. COSSIO, Carlos. Norma, direito e filosofia. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, v. 23, 1947. _______. La teoría egológica del derecho. Buenos Aires: Losada, 1944. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987. LACOMBE, Américo. Obrigação tributária. 2. ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 1996. SPAGNOL, Werther Botelho. Curso de direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

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O controle dos atos administrativos pelos tribunais diante da nova dimensão dos conceitos de discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa Edgard Marcelo Rocha Torres Especialista em Direito Público pelo CAD/UGF. Especialista em Direito Internacional pelo CEDIN. Procurador da Fazenda Nacional. Bacharel em Direito pela UFMG.

Resumo: O presente artigo destaca a antiga, nebulosa, infindável e não menos empolgante discussão do controle dos atos administrativos discricionários pelos Tribunais pátrios, todavia, sob novo ponto de vista. Com a evolução do Direito Administrativo e da Administração Pública propriamente dita, os conceitos de discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa são discutidos sob nova dimensão. Estes novos conceitos transformam mais uma vez a possibilidade de controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, cuja identificação na prática não é tarefa fácil. O presente estudo tenta assim traçar novas considerações sobre a matéria diante desta evolução de conceitos. Palavras-chave: Discricionariedade técnica. Discricionariedade administrativa. Controle dos atos discricionários pelo Poder Judiciário. Abstract: This article highlights the old, fuzzy, endless and no less exciting discussion of the discretionary administrative acts control by the Brazilian Courts, however, under a new point of view. With the development of Administrative Law and Public Administration itself, the concepts of technical and administrative discretionarity are discussed under new focus. These new concepts modify once more the possibility of administrative acts control by the Judiciary, whose identification in practice is no easy task. The present study attempts to draw new considerations on the matter in face of the evolution of these concepts. Keywords: Technical discretionarity. Administrative discretionarity. Discretionary acts control by the Judiciary.

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1 Introdução Muito já se discutiu na doutrina e na jurisprudência sobre a possibilidade de controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Pacífico é o entendimento de que este controle sempre é possível se for para aferir a legalidade deste ato, não se podendo adentrar no seu mérito, ou seja, fazer reapreciação da sua conveniência e oportunidade. Também já se chegou à conclusão de que o Poder Judiciário pode rever e controlar atos administrativos discricionários que não obedeçam às leis, à Constituição Federal e a todos os seus princípios, tais como moralidade, eficiência, razoabilidade e proporcionalidade. Todavia, apesar de amplamente debatido, devido à enorme complexidade do assunto e à evolução tanto do Direito Administrativo como da Administração Pública propriamente dita, será sempre necessário se adequar e traçar novas considerações diante da dimensão de conceitos, tais como o da discricionariedade técnica e da discricionariedade administrativa. A nova concepção de discricionariedade que vem se transformando desde a reforma administrativa de 1998 com a privatização dos serviços públicos e a criação das agências reguladoras, autarquias especiais, independentes, e dotadas do poder de regulamentar, de fiscalizar e de aplicar sanções, traz de volta toda a preocupação com a possibilidade de controle desses atos administrativos pelos Tribunais pátrios. Poderia o Poder Judiciário rever as decisões tomadas pelas agências reguladoras em qualquer caso? Em uma análise de legalidade, certamente. Mas como distinguir se um ato administrativo foi tomado com base na discricionariedade técnica (que na prática não é discricionariedade) ou na discricionariedade administrativa? Diante da infinidade de regulamentos, regras e inovações tecnológicas, e do recente crescimento econômico e da prestação de serviços no país, esta pergunta não será de fácil resposta. Se muitas decisões técnicas comportam uma só solução, ou seja, a única adequada ao caso concreto, poderia o Poder Judiciário controlar esse ato de uma agência reguladora sob o manto da análise da legalidade? Daí a importância de mais uma vez se analisar a possibilidade de controle pelos Tribunais pátrios, incluindo aí os Tribunais de Contas, dos atos discricionários da Administração Pública, levando em conta as novas dimensões do conceito de discricionariedade técnica e administrativa, para tentar esclarecer ainda mais matéria tão nebulosa e empolgante no Direito Administrativo.

2 A atual dimensão dos conceitos de discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa O conceito de discricionariedade administrativa evoluiu na mesma proporção da evolução do próprio Estado Moderno e do Direito, principalmente o conceito de legalidade e a consagração dos princípios como principais norteadores do ordenamento jurídico e das decisões judiciais e administrativas. 70


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Segundo Maria Sylvia Zanella di Pietro,1 entende-se hoje que existe a discricionariedade administrativa quando a lei deixa à administração a possibilidade de, no caso concreto, escolher entre duas ou mais alternativas, todas válidas perante o direito. E esta escolha se faz segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, razoabilidade, interesse público, sintetizados no que se convencionou chamar de mérito do ato administrativo.

Doutrina

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Todavia, para se entender a real dimensão do conceito na forma como foi exposto, principalmente no que concerne ao controle judicial sobre os atos administrativos discricionários, necessário se faz um breve comentário sobre o caminho desta evolução à luz do direito e do Estado. O direito pátrio, assim como o direito francês, iniciou-se com uma fase de imunidade judicial da discricionariedade e culminou com a inserção de várias limitações à mesma. A respeito dessa evolução vale destacar passagem da já aludida autora Maria Sylvia Zanella di Pietro (1991, p. 95),2 in verbis: Há que observar, contudo, que essas limitações (competência, forma, fim, apreciação dos fatos e conceitos jurídicos indeterminados) não surgiram ao mesmo tempo; elas constituem o resultado de toda uma evolução. Inicia-se com uma fase de imunidade judicial da discricionariedade, que era considerada inerente aos atos de império da administração pública. No início do século XIX, o Conselho de Estado francês já admite o recurso por excesso de poder como uma exceção à regra, daí imunidade jurisdicional, primeiro nos casos de vícios de incompetência, depois com relação aos vícios de forma. Posteriormente, elaborou-se a doutrina do desvio de poder, que torna ilegal o ato quando a Administração se afasta da finalidade legal. Chega-se, depois, a uma fase em que o Judiciário passa a examinar os fatos pela construção da Teoria dos motivos determinantes. Finalmente, no momento atual, já tem plena aplicação a possibilidade de controle por meio do recurso aos princípios gerais do direito, como o da boa-fé, o da proporcionalidade dos meios aos fins, o da igualdade, o do direito de defesa.

É com base nesta evolução que a autora destaca que “hoje, a discricionariedade administrativa é vista como uma liberdade de opção entre duas ou mais alternativas válidas perante o direito, e não apenas perante a lei” e por isto “sofre maiores limitações, ficando muito mais complexa a atividade de controle”.3 O cerne da questão, portanto, consiste na possibilidade da apreciação jurisdicional dos atos administrativos ditos discricionários. Ou seja, até onde pode o Poder Judiciário apreciar os atos administrativos sem ultrapassar o campo de atuação próprio da Administração Pública 1

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 5, n. 17, p. 75-96, abr./jun. 2007.

2

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991.

3

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 5, n. 17, p. 75-96, abr./jun. 2007.

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conferidos pela lei, que pode ser de mera aplicação dos conceitos trazidos pela norma (atividade vinculada), ou pode ser mais amplo, onde a norma confere ao administrador certa margem de liberdade para melhor aplicar a lei diante de um caso concreto (atividade discricionária). Quanto à atividade vinculada, o controle judicial pode ser exercido sem maiores problemas, uma vez que basta verificar a conformidade do ato administrativo com a previsão legal e decretar ou não a sua nulidade se entender que não houve essa conformidade. Já no que concerne à atividade discricionária da Administração o problema não tem a mesma simplicidade e o controle judicial só se faz possível se respeitados os limites da discricionariedade definidos em lei e conferidos ao administrador. Mas o que e quais seriam esses limites? É pacífico o entendimento pelos doutrinadores que se dedicam ao tema de que a discricionariedade existe quando a lei deixa à Administração a possibilidade de, no caso concreto, escolher dentre duas ou mais alternativas, todas válidas perante o direito, segundo critérios de conveniência, oportunidade, justiça, equidade etc., segundo razões de mérito. Ainda que nem todos empreguem o vocábulo mérito, esse é aceitável desde que bem delimitado o seu significado. Todavia, já que essa liberdade sofre limitações que podem decorrer da própria norma, ou melhor, dos próprios conceitos de que ela usa para definir a atuação do administrador na sua aplicação, estar-se-á diante do limite fundamental que é o princípio da legalidade. Fora esse limite fundamental outros se verificam, conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro,4 como a competência, a forma, os fins, a apreciação dos fatos e os conceitos jurídicos indeterminados ou, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello,5 os motivos, a finalidade e a causa dos atos. Os limites da discricionariedade seriam, portanto, esse campo, essa margem de atuação que não pode ser ultrapassada pelo administrador sob pena de nulidade de seus atos e que limitam o controle judicial, uma vez que não pode o Poder Judiciário invadir o espaço reservado por lei à administração sob pena de ferir o princípio constitucional de tripartição dos Poderes. A doutrina tradicional, preconizada por Seabra Fagundes, utiliza da expressão mérito do ato administrativo como forma de afastar a possibilidade do controle judicial a qualquer ato dito como discricionário. Essa teoria relaciona mérito à discricionariedade e acaba por suprimir qualquer possibilidade de atuação do Poder Judiciário nesse campo que seria restrito à atuação administrativa. Hely Lopes Meirelles,6 seguindo a lição de Seabra Fagundes, afirma que “o mérito administrativo se consubstancia, portanto, na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar”.

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4

Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, 1991, p. 94-95.

5

Elementos de direito administrativo, 1981.

6

Direito administrativo brasileiro, 1989, p. 131-132.


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Essa teoria levou à consolidação de um entendimento doutrinário e jurisprudencial de que não cabe ao Judiciário analisar questões sobre o mérito do ato administrativo sob pena de estar invadindo a competência exclusiva da Administração. Na realidade o vocábulo mérito serve, muitas das vezes, de palavra mágica para afastar os Tribunais do controle dos atos da Administração e contribui, devido a essa falta de limitação à discricionariedade, para uma atuação arbitrária do administrador capaz de extrapolar em muito os fins pelos quais são praticados os atos, e gerar as maiores injustiças contra os administrados.

Doutrina

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Esse entendimento, embora ainda muito utilizado na atualidade, não tem mais como prevalecer. O ordenamento jurídico pátrio não tolera mais esse tipo de arbitrariedade. Não há mais que se falar em não apreciação do Poder Judiciário dos atos administrativos exarados em nome de alguma discrição se for necessária a investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato, como bem salienta Celso Antônio Bandeira de Mello.7 Contribui para este entendimento, em apertadíssima síntese, a doutrina do brilhante jurista português Afonso Rodrigues Queiró8 acerca da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados e do problema da diferenciação entre discricionariedade e interpretação da norma. Ao seu posicionamento se filiam Celso Antônio Bandeira de Mello, Lúcia Valle de Figueiredo, Régis Fernandes de Oliveira, dentre outros autores brasileiros. Segundo o mestre português, a norma utiliza-se de dois tipos de conceitos derivados do ser e do dever-ser ao mesmo tempo. Quando o conceito legal relativo às condições de fato requeridas para o exercício de uma determinada competência é um conceito prático, suscetível de uma série mais ou menos determinada de sentidos entre si diferentes, estamos no domínio da competência discricionária dos órgãos administrativos. Essas condições de fato podem ser, é claro, apenas implicitamente exigidas, e não expressamente, pela lei. Quando essas condições, pelo contrário, são enunciadas em conceitos teoréticos então incumbe ao órgão administrativo determinar exatamente o conceito e os fatos, e só quando a subsunção dos fatos ao conceito legal for precisa ele deverá agir: a sua competência está vinculada à verificação no domínio da realidade natural de um fato cujos contornos são exatamente os implícita ou explicitamente delineados nesse conceito. Assim, é a interpretação jurídica do órgão da administração que, na execução do ato, distinguirá os campos que irão versar a sua atividade, distinguindo os dois conceitos que poderão estar expressos numa mesma norma. Pode-se dizer que o problema da discricionariedade é um problema de interpretação, ou seja, a discricionariedade começa quando termina a interpretação. Se findo o processo de interpretação jurídica dos conceitos indeterminados e ainda assim não for possível retirar uma única solução para caso concreto, mas sim duas ou mais hipóteses viáveis, a escolha será feita pela administração. Isso é a verdadeira discricionariedade administrativa, segundo a teoria de Queiró. 7

Elementos de direito administrativo, 1981, p. 245.

8

A teoria do ‘desvio de poder’ em direito administrativo. Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, v. VI, p. 41-78, 1942 e v. VII, p. 52-80, 1947.

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Todavia, a discricionariedade em tese prevista na norma através dos aludidos conceitos indeterminados, que a princípio pode parecer muito ampla, diante do caso concreto pode se ver reduzida a apenas uma única solução. É o que ocorre na discricionariedade técnica que na verdade não constitui verdadeira discricionariedade, como afirma Maria Sylvia Zanella di Pietro: Não há decisão política a ser tomada conforme avaliação do interesse público. Existe uma solução única a ser adotada com base em critérios técnicos fornecidos pela ciência. Quando um ente administrativo baixa atos normativos definindo conceitos indeterminados, especialmente técnicos e os conceitos de experiência, ele não está exercendo o poder regulamentar, porque este supõe a existência de discricionariedade administrativa propriamente dita, no caso, não existe. Se a lei fala, por exemplo, em produtos perigosos para a saúde, a agência pode baixar ato normativo definindo esses produtos ou mesmo elaborando uma lista dos mesmos; isto não se insere no poder regulamentar, porque se trata de conceito técnico cujo conteúdo é dado por conhecimentos científicos de que a agência dispõe para fazê-lo.9

Percebe-se, por fim, que a atual dimensão dos conceitos de discricionariedade administrativa e técnica se relacionam diretamente com a possibilidade de controle judicial dos atos determinados a este ou àquele título.

3 Conclusão Portanto, no caso da discricionariedade administrativa, ou propriamente dita, cabe ao administrador a escolha, a decisão política, a ser tomada dentre as possibilidades válidas perante o Direito, limitado pelos seus princípios norteadores, como a proporcionalidade, razoabilidade, e o interesse público, que vão ser observados diante do caso concreto, após o trabalho de interpretação da norma. A atividade de controle jurisdicional se torna mais apurada e condicionada ao princípio da separação de Poderes que o leva, em certos casos, até mesmo à sua impossibilidade. O mesmo não ocorre com a discricionariedade técnica, na qual não existe propriamente discricionariedade, uma vez que o conceito indeterminado da norma é de ordem técnica e vai ser definido com base em critérios técnicos extraídos da ciência. Neste caso não há qualquer dificuldade para o Poder Judiciário rever a decisão da Administração Pública podendo se valer do auxílio de peritos, quando versar sobre conceitos puramente técnicos, que irão aparecer nas questões envolvendo as decisões e as normas regulamentares das agências reguladoras, por exemplo. Por fim, na atual dimensão do Estado Democrático de Direito, dentro do qual se encontra o ordenamento jurídico pátrio, o que a Administração Pública não pode fazer, seja atuando sobre o pálio da discricionariedade administrativa ou da discricionariedade técnica, é inovar na 9

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa, Revista Brasileira de Direito Público (RBDP), Belo Horizonte, ano 5, n. 17, p. 75-96, abr./jun. 2007.


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ordem jurídica, restringindo direitos individuais unilateralmente e suprimindo o legislador, uma vez que se trata de matéria reservada à lei, nos termos do art. 5°, II, da Constituição Federal.

Doutrina

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Obrigatoriedade de se observar o princípio da anterioridade na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais: análise do enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG Caroline Lima Paz Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-graduada no Curso de Especialização em Ciências Penais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Técnica de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Luisa Pinho Ribeiro Kaukal Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Pós-graduanda em Controle Externo da Gestão Pública Contemporânea pela PUC Minas em parceria com a Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo. Técnica de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Paula Cristina Romano de Oliveira Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Pós-graduanda em Controle Externo da Gestão Pública Contemporânea pela PUC Minas em parceria com a Escola de Contas e Capacitação Professor Pedro Aleixo. Oficial de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.

Resumo: O presente estudo tem o propósito de examinar questão afeta à observância do princípio da anterioridade na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais. O objetivo é analisar a posição da doutrina e da jurisprudência acerca do tema proposto diante das alterações ocorridas na Constituição da República, em especial com as Emendas Constitucionais n. 19/98 e n. 25/2000. Verifica-se, neste trabalho, que a observância ao princípio da anterioridade na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais mostra-se pertinente diante de uma interpretação sistemática do texto constitucional, principalmente quando se leva em consideração os princípios basilares da Administração Pública, em especial o da moralidade administrativa. Palavras-chave: Remuneração dos agentes políticos. Subsídios. Princípio da anterioridade. Eleições. Moralidade administrativa. 77


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Abstract: The present study intends to analyze the issue related to the conformity to the principle of anteriority in determining the municipal political agents payment. The aim is to analyze the standing opinion of the jurists and the precedents in relation to the proposed issue after the Brazil Constitution amendments, especially the Constitutional Amendments n. 19/98 and n. 25/2000. It is verified, after the present research, that in conformity to the principle of anteriority the determination of the municipal political agents payment is applicable, by means of a systematic interpretation of the Constitution, especially when the Public Administration founding principles are taken into consideration, especially the administrative morality. Keywords: Compensation of the political agents. Legislators payment. Principle of anteriority. Elections. Administrative morality.

1 Introdução A questão atinente à obrigatoriedade de se observar o princípio da anterioridade para a fixação da remuneração dos agentes políticos municipais merece um estudo detalhado ante as modificações trazidas pelas Emendas n. 19/1998 e 25/2000 aos incisos V e VI do artigo 29 da Constituição da República. Em razão de tais emendas, passou-se a discutir tanto no âmbito doutrinário, quanto no jurisprudencial, qual a forma correta de se interpretar os referidos incisos no texto constitucional, levando-se em conta os princípios basilares da Administração Pública, em especial, os princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade. Assim, o presente artigo se propõe a realizar um estudo comparativo entre os posicionamentos doutrinários existentes sobre a matéria e a analisar as decisões do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, sob a ótica do enunciado de Súmula n. 72, e do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, com o propósito de demonstrar o entendimento majoritário na atualidade e de nortear os trabalhos das Prefeituras e Câmaras Municipais no Estado de Minas Gerais.

2 Considerações iniciais sobre o enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG O enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG foi aprovado, por unanimidade, na Sessão Plenária de 28/11/1989, com a seguinte redação: Em face do disposto no inciso V do art. 29 da Constituição Federal de 1988, o legislador municipal não pode legislar em causa própria, razão pela qual a remuneração dos agentes políticos municipais deve ser fixada em cada legislatura para vigorar na subsequente.

Posteriormente, na Sessão Plenária de 19/11/2008, os Conselheiros unanimemente deliberaram pela alteração do texto do enunciado, nos termos atualmente vigentes: “A remuneração dos agentes políticos municipais deve ser fixada em cada legislatura para vigorar na subsequente.” 78


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Fazendo um paralelo entre as duas redações acima transcritas, observa-se que, em ambas, a remuneração dos agentes políticos municipais está condicionada ao princípio da anterioridade, isto é, deverá ser fixada na legislatura anterior para produzir efeitos na subsequente.

Doutrina

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No entanto, verifica-se que a redação original do enunciado faz referência expressa ao art. 29, V, da CR/88. À época da aprovação do verbete, em 28/11/1989, o referido dispositivo constitucional previa a aplicação do princípio da anterioridade na fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores: Art. 29. caput [...] V — remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Vereadores fixada pela Câmara Municipal em cada legislatura, para a subsequente, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 150, II, 153, III, e 153, § 2°, I; (grifo nosso).

Com o advento da Emenda Constitucional n. 19/1998, a Constituição da República passou a disciplinar a remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais no art. 29, V, e a remuneração de Vereadores no art. 29, VI. O princípio da anterioridade não se encontra previsto em nenhum dos dois incisos: Art. 29. caput [...] V — subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais fixados por lei de iniciativa da Câmara Municipal, observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4°, 150, II, 153, III, e 153, § 2°, I; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998) VI — subsídio dos Vereadores fixado por lei de iniciativa da Câmara Municipal, na razão de, no máximo, setenta e cinco por cento daquele estabelecido, em espécie, para os Deputados Estaduais, observado o que dispõem os arts. 39, § 4°, 57, § 7°, 150, II, 153, III, e 153, § 2°, I; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998).

Posteriormente, com o advento da Emenda Constitucional n. 25/2000, o art. 29, VI, da CR/88 foi objeto de alteração, tendo sido inserida no seu texto a aplicação explícita do princípio da anterioridade na fixação da remuneração de Vereadores: Art. 29. caput [...] VI — o subsídio dos Vereadores será fixado pelas respectivas Câmaras Municipais em cada legislatura para a subsequente, observado o que dispõe esta Constituição, observados os critérios estabelecidos na respectiva Lei Orgânica e os seguintes limites máximos: (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 25, de 2000) (grifo nosso).

No âmbito do Estado de Minas Gerais, o art. 179, caput, da Constituição Estadual de 1989 dispõe sobre a aplicação do princípio da anterioridade na fixação da remuneração de Prefeitos, VicePrefeitos e Vereadores: “Art. 179. A remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e do Vereador será fixada, em cada legislatura, para a subsequente, pela Câmara Municipal.” 79


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Acrescenta-se que a redação do art. 179, caput, da CE/1989 não foi modificada desde a promulgação do texto constitucional, em 21 de setembro de 1989, e guarda sintonia com a redação do art. 29, V, da CR/88, anterior à Emenda Constitucional n. 19/1998. Diante do quadro acima narrado, restará comprovado, neste estudo, que, a despeito da omissão do art. 29, V, da CR/88 (com redação dada pela EC n. 19/1998) quanto à aplicação do princípio da anterioridade na fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais, as decisões do TCEMG continuaram a reconhecer a incidência do mencionado princípio não apenas sobre a fixação da remuneração de vereadores, mas também sobre a dos demais agentes políticos municipais. Nesse sentido, destaca-se que a modificação sofrida pelo texto do enunciado de Súmula n. 72 na Sessão Plenária de 19/11/2008, portanto, em data posterior às Emendas Constitucionais n. 19/1998 e 25/2000, não incidiu sobre a aplicação do princípio da anterioridade na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais, atendo-se a suprimir a alusão ao art. 29, V, da CR/88. Será também demonstrado que as decisões do TCEMG são no sentido de que o princípio da anterioridade encontra-se condicionado a um marco temporal correspondente à data das eleições municipais.

3 Aspectos atinentes ao conteúdo do enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG Antes de se adentrar na questão relativa à incidência do princípio da anterioridade na fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos, Secretários Municipais e Vereadores, serão abordados alguns aspectos contidos no conteúdo do enunciado de Súmula n. 72, pertinentes à conceituação da expressão agentes políticos municipais e ao regime remuneratório ao qual estão submetidos.

3.1 Conceituação de agentes políticos municipais Primeiramente, insta ressaltar que a noção conceitual de agente político não é pacífica na doutrina administrativista. Bandeira de Mello (2008) e Carvalho Filho (2007) seguem uma linha mais restrita na conceituação da expressão, manifestando-se no sentido de que ela abrange apenas os chefes do Poder Executivo (Presidente, Governadores, Prefeitos e os vices respectivos), seus auxiliares imediatos (Ministros de Estado, Secretários Estaduais e Secretários Municipais) e os membros do Poder Legislativo (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores). Para maior clareza, seguem transcritas as lições Bandeira de Mello (2008, p. 245-246) sobre os agentes políticos: [...] são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema

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fundamental do Poder. Daí que se constituem nos formadores da vontade superior do Estado. São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes do Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados federais e estaduais e os Vereadores.

Doutrina

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O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da sociedade. A relação jurídica que os vincula ao Estado é de natureza institucional, estatutária. Seus direitos e deveres não advêm de contrato travado com o Poder Público, mas descendem diretamente da Constituição e das leis. Donde, são por elas modificáveis, sem que caiba procedente oposição às alterações supervenientes, sub color de que vigoravam condições diversas ao tempo das respectivas investiduras (grifo nosso).

Contrariamente ao posicionamento dos autores acima citados, Meirelles (2006) e Oliveira (2004) conferem maior amplitude à categoria dos agentes políticos, ensinando que estão inseridos nessa qualificação os membros do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, do Poder Judiciário e os representantes diplomáticos: Os agentes políticos ocupam cargos eletivos ou vitalícios. São os integrantes dos três Poderes do Estado e, por equiparação, os integrantes do Ministério Público. Os que compõem o Executivo e Legislativo ocupam cargos eletivos. É o Presidente da República (e seus homólogos nos Estados e Municípios), os Ministros de Estado, bem como os que a eles são equiparados, e também os diplomatas e os Secretários estaduais, distritais e municipais. No Legislativo, os Senadores e Deputados Federais, bem como os correspondentes a estes nos Estados e Municípios. São agentes políticos porque detêm e são titulares do Poder do Estado, isto é, possuem a possibilidade jurídica de ingressar na esfera jurídica de outros, impondo-lhes deveres ou criando direitos. São não só os Chefes do Executivo, mas todos aqueles a quem é dada parte do exercício do Poder, isto é, os Ministros, Secretários Executivos e os diplomatas. Esses, representam o Estado federal no exterior. Os demais servidores das embaixadas e dos consulados são servidores públicos estatutários. Os Magistrados, membros do Ministério Público e os integrantes dos Tribunais de Contas, igualmente são agentes políticos, ocupando cargos vitalícios, ou seja, são indemissíveis, salvo mediante sentença judicial (OLIVEIRA, 2004, p. 10-11) (grifo nosso).

Importa salientar que, como o presente estudo restringe-se à análise do enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG, serão adotados os ensinamentos da primeira corrente, a qual defende uma noção conceitual mais restrita de agentes políticos. Nessa linha, a Corte de Contas Mineira, na Consulta n. 811.245 (Conselheira Relatora Adriene Andrade, sessão de 24/02/2010), posicionou-se, unanimemente, pela impossibilidade de se 81


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considerar como agentes políticos municipais Chefe de Gabinete, Procurador de Município e Controlador de Município, aduzindo que se enquadram naquela categoria de agentes públicos apenas Prefeitos, Secretários Municipais e Vereadores. Segue transcrito excerto do voto proferido pela Conselheira Relatora: [...] Filiamo-nos a essa última corrente, considerando como agentes políticos apenas os que desempenham atividade típica de governo, cumprindo as funções de executores das diretrizes traçadas pelo Estado. Os agentes políticos exercem, pois, as atividades fixadoras de metas, diretrizes e planos governamentais essenciais para a consecução dos objetivos públicos, sendo eles os chefes dos Poderes Executivos federal, estadual e municipal, os ministros e secretários de Estado, os senadores, deputados e vereadores. No âmbito municipal, são agentes políticos o prefeito, os vereadores e os secretários municipais. Os chefes de gabinete, procuradores e controladores do município não são agentes políticos, uma vez que não exercem função de Estado e não representam a vontade superior do Estado, não participando, portanto, das decisões políticas do governo, sendo escolhidos por sua aptidão técnica profissional.

Em relação à definição de agentes políticos na órbita municipal, mostra-se relevante a explicação de Braz (2000, p. 32): O Governo do Município é exercido por agentes políticos (Prefeito, Secretários e Vereadores), auxiliados pelos servidores públicos efetivos e comissionados. O Prefeito e os Vereadores ocupam cargos eletivos e os Secretários cargos de confiança, de recrutamento amplo. A eleição do Prefeito importa a do VicePrefeito com ele registrado (art. 29, II, e art. 77, § 1°, da CF). [...] Para o exercício dos cargos eletivos de Prefeito e Vice-Prefeito Municipal, a Constituição, além da nacionalidade brasileira, do gozo dos direitos políticos, do alistamento eleitoral e da filiação partidária, exige a idade mínima de 21 anos. Os mandatos do Prefeito e do Vice-Prefeito correspondem a uma legislatura, que, pela legislação pátria em vigor, corresponde a quatro anos. O Secretário é a pessoa de confiança do Prefeito, que ocupa função de coadjuvante, de auxiliar direto. O Secretário, como agente político, não tem vínculo empregatício com o Município, podendo ser nomeado e exonerado a qualquer tempo pelo Prefeito Municipal. O cargo de Secretário é criado por lei, que deve dispor sobre a denominação, estrutura e atribuições. O número de Secretários varia de Município para Município e estes devem ser escolhidos entre brasileiros maiores de 21 anos, que estejam no gozo dos direitos políticos. O Vereador é o membro do Poder Legislativo Municipal, o agente legislativo municipal. Pessoa que vereia, isto é, vigia, rege e administra. [...] O número de Vereadores de cada Câmara Municipal é precisado pela Lei Orgânica do Município, obedecidos os limites definidos no art. 29, IV da Constituição Federal. A idade mínima para o exercício do cargo de Vereador é de 18 anos. O mandato dos vereadores é correspondente a uma legislatura.

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3.2 Regime remuneratório dos agentes políticos municipais Inicialmente, ressalta-se que na vigência da Constituição da República de 1946, da Constituição da República de 1967 e da Emenda Constitucional n. 1 de 1969, a remuneração dos agentes políticos era denominada de subsídio e se dividia em parte fixa e em parte variável. Com o advento da Constituição da República de 1988, o termo subsídio foi abandonado. Contudo, a remuneração dos agentes políticos continuou a compreender uma parcela principal, fixa — correspondente ao vencimento-base — e uma variável, composta por vantagens pecuniárias.

Doutrina

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A propósito, Bruno e Del Olmo (2006, p. 149-151) contextualizam o instituto do subsídio nas Constituições pátrias: O subsídio estava previsto como paga pecuniária aos Deputados Federais e Senadores, ao Presidente e ao Vice-Presidente da República, no art. 66, IX e art. 47 da Constituição Federal de 1946. Além dos subsídios, os Deputados Federais e Senadores tinham direito a uma ajuda de custo (art. 47). Para os Governadores dos Estados e para os Deputados estaduais, a mesma Constituição mencionava o termo remuneração, no art. 11, com redação dada pelo Ato Institucional n. 2/65. A Constituição de 1967 também mencionava o termo subsídio para os membros do Congresso Nacional (art. 35) e o dividia em duas partes, uma fixa e outra variável, sem prejuízo da ajuda de custo. Para os legisladores estaduais, continuava o subsídio no art. 13 e no art. 1° do Ato Institucional n. 7/69. A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, que trouxe nova redação à Constituição da República de 1967, trouxe ainda o termo subsídio aplicável aos membros do Congresso Nacional (art. 133 e art. 44, VII) e aos membros dos Legislativos Estaduais (art. 13, VII). A Constituição da República de 1988 acabou com a expressão subsídio enquanto sinônimo de paga pecuniária destinada aos agentes políticos pelo exercício de seu mandato, conservando tal expressão apenas com o sentido de incentivo fiscal, como nos arts. 72, 150, § 6°, 165, § 6°, 177, § 4°, II, a e art. 227, VI.

Com o surgimento da EC n. 19, de 4 de junho de 1998, o vocábulo subsídio volta a ser utilizado na qualificação da remuneração dos agentes políticos, entretanto não no sentido empregado pelos textos constitucionais anteriores (CR/1946, CR/1967 e EC n. 1/1969), mas sim para designar uma importância paga em parcela única, sobre a qual não poderá ser acrescida qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, nos termos do § 4° incluído ao art. 39 da CR/88: § 4° O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente, por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

Nesse sentido, Bruno e Del Olmo (2006, p. 149-151) ensinam: 83


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Foi a EC n. 19/98 que ressuscitou o termo subsídio, agora com um sentido novo, sendo paga em parcela única — e não mais dividida em parte fixa e variável — aplicável a algumas categorias de agentes públicos expressamente referidas na emenda. [...] Além da EC n. 19/98, mencionam o termo subsídio as Emendas Constitucionais n. 25, 32, 41, 45 e 47 e, não obstante todas estas citações, é no § 4° do art. 39 que o instituto recebe um delineamento próprio: [...].

A alteração trazida pela EC n. 19/1998 possui nítido propósito moralizador, pois, ao impedir a profusão de parcelas com natureza salarial, tornou mais transparente a remuneração percebida pelos agentes políticos e propiciou maior controle sobre dita remuneração, seja por parte do cidadão, seja por parte dos órgãos de fiscalização. Justen Filho (2005) explica que o regime de subsídio foi adotado com a intenção de assegurar o controle sobre a remuneração dos ocupantes de cargos e funções de mais elevada hierarquia, tendo em vista que, até então, era usual a fixação de vencimento-base com pequeno valor, agregando-se a ele, contudo, vantagens pecuniárias de grande relevo. Portanto, após a edição da EC n. 19/1998, passaram a coexistir dois sistemas remuneratórios para os agentes públicos, quais sejam: o tradicional, em que a remuneração compreende uma parte fixa e uma variável, e o novo, em que a retribuição corresponde ao subsídio, constituído por parcela única, excluindo a possibilidade de percepção de vantagens pecuniárias variáveis (DI PIETRO, 2006). Assim, em contraposição ao regime de vencimentos, o regime de subsídios se apresenta como importante instrumento de simplificação da forma de remuneração de carreiras públicas, não somente dos agentes políticos, em relação aos quais existe imposição da Constituição da República, por meio do art. 39, § 4°, mas também de outros agentes públicos.1 Em que pese ser incontroverso o fato de os agentes políticos municipais serem remunerados exclusivamente por subsídio, há questionamentos a respeito das formalidades que deverão ser observadas na fixação dessa remuneração, destacando-se, aqui: a) a necessidade de se aplicar ou não o princípio da anterioridade na fixação dos subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais, frente às modificações trazidas pelas Emendas Constitucionais n. 19/1998 e 25/2000 aos incisos V e VI do art. 29 e, b) a necessidade de se delimitar ou não a aplicação do princípio da anterioridade antes da data das eleições municipais.

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Os agentes públicos remunerados por subsídios subdividem-se em: a) agentes públicos facultativamente remunerados por subsídios, dentre os quais, encontram-se os servidores públicos organizados em carreira, nos termos do art. 39, § 8°, da CR/88 e b) agentes públicos obrigatoriamente remunerados por subsídios, os quais, encontram-se os b.1) membros de Poder, detentores de mandato eletivo (os quais estão abrangidos pela expressão membros de Poder), Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais (art. 39, § 4°, da CR/88); b.2) membros do Ministério Público (art. 128, § 5°, I, c, da CR/88); b.3) integrantes da Advocacia Geral da União e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, Procuradores dos Estados e do Distrito Federal e Defensores Públicos (art. 135 da CR/88); b.4) Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas (art. 73, § 3°, e art. 75 da CR/88) e b.5) servidores públicos policiais (art. 144, § 9°, da CR/88).


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4 Do princípio da anterioridade Como visto no segundo capítulo deste artigo, com o advento das Emendas Constitucionais n. 19/1998 e 25/2000, a Constituição da República passou a tratar expressamente da aplicação do princípio da anterioridade apenas na fixação da remuneração de vereadores (art. 29, VI, com redação dada pela EC n. 25/2000), tendo sido omissa, neste ponto, em relação à fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais (art. 29, V, com redação dada pela EC n. 19/1998). Já a Constituição do Estado de Minas Gerais de 1989 disciplina, no art. 179, caput, a incidência do mencionado princípio sobre a fixação da remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, à semelhança do que dispunha o art. 29, V, da CR/88 antes de ser modificado pela EC n. 19/1998.

Doutrina

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Desse modo, diante do silêncio do art. 29, V, da CR/88, indaga-se se o princípio da anterioridade encontra-se adstrito à fixação da remuneração de vereadores. A doutrina pátria não é uníssona sobre a matéria. Santana (2004, p. 68-69) entende que, após a EC n. 19/1998, o princípio da anterioridade permaneceu como requisito para a fixação dos subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais, fundamentando seu entendimento nos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade (contidos no art. 37, caput, da CR/88) e nos princípios da razoabilidade e da finalidade pública. O autor aduz, ainda, que o diploma normativo instituidor dos subsídios deverá ser votado antes das eleições municipais: Temos que a Constituição Federal não exige, expressamente, observância à anterioridade. Mas nos parece razoável que se cumpra tal exigência e tal ocorra antes de conhecidos os eleitos. Até mesmo para se efetivar os princípios da moralidade administrativa, impessoalidade e razoabilidade. Devemos reconhecer a normatividade dos princípios e a hegemonia normativa dos princípios em relação às regras. Na verdade, não se trata de teoria muito recente. No Brasil já houve decisões no STF que acolheram esse entendimento já em 1951. Apesar disso, jurisprudência e doutrina tradicional, de modo geral, ainda não admitem que seja aberta a possibilidade de fundamentação com base em princípios. Entendendo o princípio da razoabilidade, como o fez Agustin Gordillo, como uma das formas de expressão da legalidade; ou, como Recaséns Siches, que é o método próprio do direito, chegaremos à conclusão que propugnamos. Não significa que o princípio da anterioridade, após a EC n. 19/98, deixou de ser obrigatório, quando da fixação dos subsídios para Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais. Estamos convencidos de que o critério de fixação da remuneração na legislatura antecedente não foi banido da Lei Maior Federal — ainda que lá não esteja expressamente. Assim, é importante ressaltar que a anterioridade decorre não do comando suprimido pela EC n. 19 de 1998, mas dos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade, contidos no artigo 37, caput, da Carta Política Federal, além de outros, como os da razoabilidade (princípio explícito em algumas constituições estaduais) e da finalidade pública.

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Significa dizer que o texto impõe às Câmaras a obrigatoriedade de a fixação dos subsídios ocorrer ao final de uma legislatura para vigorar na subsequente, porém, o ato fixador deve ser votado antes das eleições, quando ainda não se conhecem os eleitos, revestindo-se, assim, o ato, de imparcialidade. [...] (grifo nosso).

No mesmo sentido, explica Marques (2010): [...] Do cotejo entre o texto anterior e a nova redação dada aos incisos V e IV do artigo 29 [da CR/88], poder-se-ia afirmar, com relação ao Prefeito e Vice-Prefeito, o abandono do princípio da anterioridade, [...]. Contudo, uma interpretação sistemática do texto constitucional distancia essa mera interpretação literal. Traz-se como fundamento os princípios elencados no caput do artigo 37 da nossa Carta Magna. Ora, os princípios da impessoalidade e da moralidade impõem a fixação da remuneração dos Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários antes do início dos seus mandatos.

Contrariamente aos autores acima citados, Braz (2000, p. 33) leciona que “o subsídio do Prefeito Municipal é fixado, em qualquer época, em moeda corrente, por lei de iniciativa da Câmara Municipal (art. 29, V, da CF), observado o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4°, 150, I, 153, III e 153, § 2°, I, da Constituição Federal” (grifo nosso).2 O Manual Básico de Remuneração dos Agentes Políticos Municipais do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (2007, p. 12-13) orienta que a aplicação do princípio da anterioridade encontra-se restrita à fixação dos subsídios de vereadores, nos termos seguintes: [...] a Constituição estabelece anterioridade (de uma legislatura para outra) apenas para os Vereadores; caso assim quisesse para o Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários Municipais teria o legislador assim expresso no sobredito inciso V. A justificativa recorrente para a anterioridade é a de que, se tal não ocorresse, estar-se-ia legislando em causa própria, com ofensa a pressupostos basilares da Administração, como os da moralidade, impessoalidade e transparência. No entanto, a fixação do subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito decorre de lei de iniciativa da Câmara Municipal; assim, referidos agentes não estabelecem seus próprios subsídios, vez que o processo se inicia no Legislativo, descabendo aqui a crítica de legislar-se em causa própria. Afinal, o respectivo projeto de lei depende da iniciativa e da aprovação do outro Poder estatal do Município.

Informa-se que, dos posicionamentos acima aventados, o entendimento do TCEMG, consolidado no enunciado de Súmula n. 72, é pela obrigatoriedade de se observar o princípio da anterioridade na fixação dos subsídios não apenas de Vereadores, mas também de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais. Conforme será visto adiante, as decisões da Corte de Contas Mineira baseiam-se numa interpretação sistemática do texto constitucional, notadamente, em relação ao caput do art. 37 da CR/88, o qual determina à Administração Pública observar, entre outros, o princípio da moralidade e o da impessoalidade. 2

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Na mesma linha, Costa (2001, p. 70) aduz que a EC n. 19/1998 extinguiu a imposição da anterioridade da legislatura na fixação da remuneração dos agentes políticos municipais, “retornando apenas com referência aos Vereadores pela EC n. 25/00”.


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4.1 A data limite para a aplicação do princípio da anterioridade Partindo-se do pressuposto de que o princípio da anterioridade deverá ser aplicado na fixação dos subsídios dos agentes políticos municipais, surge um segundo questionamento atinente à subordinação ou não do referido princípio ao marco temporal correspondente à data das eleições municipais.

Doutrina

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A doutrina também não é pacífica sobre a questão. Castro (2006, p. 178) leciona que “o subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito deve ser fixado, isto é, estabelecido o seu quantum, como os mecanismos de sua apropriação e de reajuste, no final da legislatura e antes das eleições municipais, a despeito até mesmo de não ser exigida aqui a anterioridade” e elucida que: É inalterável, no curso da legislatura, o subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito. Não há como se lhes poder reduzir o subsídio sob pena de vulnerar, a um só tempo, os princípios do direito adquirido e da independência dos Poderes. Não se permite, não se autoriza se estabeleçam outros parâmetros senão os da legislatura, já fixados, estabelecidos, em que a Câmara Municipal, na matéria, chegou à exaustão, em toda a sua latitude, salvo a hipótese de reajuste que acompanha o princípio da remunerabilidade dos agentes políticos também (p. 180).

Na mesma linha, posiciona-se Santana (2004, p. 85-87): Não tendo a Constituição Federal fixado data certa para a fixação dos subsídios e não constando da Lei Orgânica tal elemento, uma interpretação sistemática surge como necessária. O início da legislatura coincide com início do exercício do cargo de Vereador (que se dá juntamente com a posse). Na ordem lógica das coisas, o Vereador que toma posse já fora eleito e diplomado. Logo, as eleições já ocorreram, em outubro da legislatura anterior ao da vigência dos subsídios que vigorarão na legislatura subsequente. Pensamos que a fixação dos subsídios deve acontecer antes do pleito eleitoral (na legislatura anterior, mas até esse marco limite: antes de conhecidos os pleitos). Parece-nos que um ingrediente principiológico deve temperar o debate. Referimo-nos à impessoalidade e à moralidade. Se, após o conhecimento dos eleitos, a Câmara Municipal estiver cuidando do assunto subsídios e sua fixação, já se saberá quem serão os prováveis agentes políticos que tomarão assento no Governo (Legislativo e Executivo) na legislatura subsequente (para a qual os subsídios estão sendo fixados). Corre-se o risco, em tal circunstância, de se instituírem benefícios ou prejuízos, como o caso. Suponha-se a hipótese de reeleição (parlamentar ou não). O próprio edil estará (no caso dos subsídios parlamentares) fixando os seus próprios subsídios, em causa própria. É circunstância que, por inúmeros motivos, deve ser evitada. Noutro giro tem-se a fixação de subsídios (ainda na hipótese de já conhecidos os eleitos) daquele que foi o desafeto político no pleito que se encerrou. A precaução é óbvia.

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Muito embora os mecanismos de controle estejam bem apurados, em termos formais, e embora o primeiro balizador constitucional (art. 29, VI) tenha face aparentemente aberta, propiciando situações análogas àquelas descritas, há outros limitadores na mesma Constituição Federal que sugerem que o fato (fixação dos subsídios) ecloda antes de conhecidos os eleitos. É a regra que tomamos como resultante da interpretação sistemática do disposto no artigo 29, VI, da CF, em conjugação dos princípios que determinam e fixam a moralidade, a probidade, a impessoalidade no trato da república (res + pública = coisa do povo). Mas apesar de não fixada (e concretizada) a anterioridade relativamente às eleições municipais, nada impede, porém, tal exigência nas constituições estaduais, dado o alcance do princípio federativo.

Com opinião divergente dos autores acima citados, Ferraz (2009, p. 78-81) argumenta que os subsídios de vereadores poderão ser fixados até o final da legislatura anterior, ou seja, até o dia 31 de dezembro, considerando que o art. 29, VI, da CR/88 não restringe a aplicação do princípio da anterioridade a período precedente à data das eleições municipais: Não obstante a clareza do Texto Constitucional, que ao prescrever o princípio da anterioridade, se vale da expressão legislatura — deixando ver que até o final desta (31/12) seria possível fixar o subsídio dos edis —, o TCEMG firmou entendimento, com lastro nos princípios da moralidade e da razoabilidade, de que a fixação do subsídio deve se dar antes da realização das eleições municipais, evitando que o resultado destas influencie na aludida fixação (TCEMG — Consultas n. 624.801, Moura e Castro; n. 657.650, Eduardo Carone). [...] Logo, não se me afigura possível, data venia, que a Consulta do TCEMG, baseando-se em princípios constitucionais que não o da legalidade estrita, venha a estabelecer restrição maior do que a que estabelece o art. 29, VI, da Constituição: a fixação do subsídio dos edis poderá ocorrer até 31/12, termo final da legislatura anterior (grifo nosso).

Sob a mesma ótica, Costa (2001, p. 69) assevera ser descabida a exigência de se fixar os subsídios dos agentes políticos municipais antes do conhecimento do resultado das eleições, pois o texto constitucional não faz previsão alguma nesse sentido: A fixação se impunha de uma legislatura para vigorar na subsequente, ou seja, poderia ser estabelecida do primeiro ao último ano de uma legislatura, estabelecendo a remuneração dos agentes políticos do mandato seguinte. Totalmente infundado afirmar que o estabelecimento da remuneração deve ser feito antes das eleições ou antes de conhecido o resultado das eleições, porque a tanto não obriga a norma constitucional, [...] (grifo nosso).3

Acrescenta-se que em decisão do STF, proferida no Recurso Extraordinário n. 62.594,4 consta, no voto do Ministro Relator Djaci Falcão, interessante transcrição do acórdão impugnado, no qual

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Salienta-se que a opinião emitida pelo autor baseou-se na redação do art. 29, V, da CR/88 anterior à EC n. 19/1998. Como visto no primeiro capítulo deste estudo, antes da EC n. 19/1998, o referido dispositivo constitucional previa expressamente que a remuneração de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores seria fixada na legislatura anterior para vigorar na subsequente.

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Recurso Extraordinário n. 62.594, Primeira Turma, Relator Ministro Djaci Falcão, julgamento em 21/08/1969.


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se entendeu que, havendo previsão em lei de fixação de remuneração de membros do Poder Legislativo “em cada legislatura para a subsequente”, essa fixação deve necessariamente ocorrer antes das eleições para a renovação do Corpo Legislativo. Segue abaixo fragmento do voto:

Doutrina

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O acórdão impugnado, de que foi relator o ilustre Desembargador Rodrigues Alckimin, guarda a seguinte fundamentação: ‘[...] Quando a lei fala em fixação de remuneração, em cada legislatura, para a subsequente, necessariamente prevê que tal fixação se dê antes das eleições que renovem o corpo legislativo. Isso decorre, necessariamente, da ratio essendi do preceito. Vem ele na Constituição Federal (art. 47, § 2°), ao dispor que a ajuda de custo e o subsídio serão fixados no fim de cada legislatura. No fim de cada legislatura para a seguinte, afirmavam, de maneira mais completa, as Constituições de 1891, e de 1934. Pontes de Miranda, com acerto, pondera: “Agora, diz-se no fim de cada legislatura, em vez de no último ano de cada legislatura para a seguinte, o que é o mesmo” (Comentários à Constituição de 1946, v. 2°, pág. 251). E como observa Sampaio Dória, o escopo do dispositivo legal é o de evitar que os legisladores fixem, a si mesmos, remunerações (Comentários à Constituição de 1946, vol. II, p. 228). Ora, se essa fixação se desse depois das eleições para a Casa Legislativa, os legisladores estariam infringindo a finalidade do preceito, pois estariam, eventualmente, fixando os próprios subsídios, cientes, já, da permanência no corpo legislativo [...] (grifo nosso).’

No Recurso Extraordinário n. 213.524,5 o STF reconheceu estar em conformidade com a Constituição da República acórdão que declarou a insubsistência de ato de Câmara Municipal, formalizado após a data das eleições municipais, que reduziu o valor dos subsídios de vereadores. Para maior esclarecimento, seguem transcritos a ementa e excerto do voto do Ministro Relator Marco Aurélio: EMENTA: SUBSÍDIOS — VEREADORES. Longe fica de conflitar com a Carta da República acórdão em que assentada a insubsistência de ato da Câmara Municipal, formalizado após a divulgação dos resultados da eleição, no sentido de redução substancial dos subsídios dos vereadores, afastando o patamar de vinte e cinco por cento do que percebido por deputado estadual e instituindo quantia igual a quinze vezes o valor do salário mínimo. Voto do Ministro Relator: [...] A razão de ser de fixar-se ao término da legislatura em curso a nova remuneração está, justamente, em buscar-se a almejada equidistância, obstaculizando-se, assim, procedimento que implique legislar em causa própria ou em prejuízo daqueles de facção política contrária.

Embora não haja previsão expressa no enunciado de Súmula n. 72 do TCEMG, as decisões da Corte de Contas defendem a necessidade de a fixação dos subsídios de Prefeitos, VicePrefeitos, Secretários Municipais e Vereadores ocorrer antes da data das eleições municipais, em observância aos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, o que será visto no capítulo posterior. 5

Recurso Extraordinário n. 213.524, Segunda Turma, Relator Ministro Marco Aurélio, julgamento em 19/10/1999.

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5 Decisões do TCEMG A questão atinente à aplicação do princípio da anterioridade sobre a fixação dos subsídios de agentes políticos municipais tem sido defendida em julgados do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, o qual consolidou esse entendimento no enunciado de Súmula n. 72. O mencionado verbete não faz qualquer distinção entre vereadores e os demais agentes políticos municipais, sendo relevante reiterar que a sua redação foi objeto de revisão na Sessão Plenária de 19/11/2008, data esta posterior às Emendas Constitucionais n. 19/98 e n. 25/2000. Em pesquisa às decisões do TCEMG, informa-se que, nas Consultas n. 774.643 (Cons. Rel. Adriene Andrade, sessão de 26/05/2010); 708.593 (Cons. Rel. Gilberto Diniz, sessão de 28/11/2007); 707.175 (Cons. Rel. Wanderley Ávila, sessão de 15/03/2006); 694.097 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 01/06/2005) e 693.891 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 09/03/2005), o Tribunal se posicionou favoravelmente à aplicação do princípio da anterioridade na fixação dos subsídios de agentes políticos municipais. Na Consulta n. 774.643 (sessão de 26/05/2010), a Corte manifestou-se, unanimemente, pela aplicação do princípio da anterioridade na fixação dos subsídios de Secretários Municipais, independentemente de previsão em Lei Orgânica Municipal. Segue transcrito fragmento do voto da Conselheira Relatora Adriene Andrade: A observância do princípio da anterioridade na fixação dos subsídios do Prefeito, do Vice-Prefeito e dos Secretários Municipais foi pacificada neste Tribunal com o entendimento de que é vedado o aumento dos subsídios desses agentes políticos para vigorar na mesma legislatura em que ocorreu a alteração, permitida apenas a recomposição da perda do valor aquisitivo da moeda, nos termos da Súmula n. 73 desta Corte. Assim sendo, a fixação dos subsídios de Secretários Municipais está sujeita ao princípio da anterioridade, por força dos princípios da moralidade e da impessoalidade estabelecidos no caput do art. 37 da CR/88, independentemente de sua previsão na Lei Orgânica do Município.

Posteriormente, na mesma consulta, a Conselheira Relatora ressaltou que a aplicação do princípio da anterioridade restringe-se à fixação da remuneração dos agentes políticos municipais, não se estendendo ao sistema remuneratório dos servidores municipais: [...] o princípio da anterioridade é de observância obrigatória apenas para os agentes políticos, que, em decorrência dos princípios da moralidade e da impessoalidade, ficam impedidos de participar da fixação de seus próprios subsídios. O sistema remuneratório dos servidores públicos, por seu turno, é definido no plano de cargos e salários do Órgão Público, não sendo alcançado pelo princípio da anterioridade. Note-se que, segundo entendimento adotado por este Tribunal nos autos da Consulta n. 811.245, de minha relatoria, submetida ao Pleno em 24/02/2010,

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agentes políticos, no âmbito do Município, são apenas o Prefeito, o VicePrefeito, os Secretários e os Vereadores. Pelo exposto, tem-se que a fixação dos vencimentos de Diretor de Departamento Municipal não se sujeita ao princípio da anterioridade, porque os cargos em comissão estão subordinados às regras do plano de cargos e salários do Órgão Público.

Doutrina

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Já na Consulta n. 707.175 (sessão de 15/03/2006), o Conselheiro Relator Wanderley Ávila ressaltou que os subsídios de Secretários Municipais não poderão ser alterados no curso da legislatura, ainda que ocorra modificação na carga horária relativa àquele cargo, nos termos seguintes: No mérito, manifestando-me em tese, respondo também negativamente à questão formulada pelo Presidente da edilidade, quanto à alteração dos subsídios dos Secretários na mesma legislatura. Reitero o entendimento deste egrégio Tribunal e da jurisprudência dominante nos outros tribunais, quanto à impossibilidade de alteração, na mesma legislatura, do subsídio dos Secretários Municipais, em princípio, em qualquer hipótese, ainda que tenha por escopo acompanhar a alteração — aumento ou redução — da carga horária relativa ao cargo. [...] [...] como já dito, a fixação e alteração da jornada de trabalho dos Secretários Municipais constituem matéria de competência do Município, no exercício de sua autonomia administrativa. Porém, é importante destacar que qualquer alteração na jornada de trabalho do Secretário Municipal que ocorra no curso da legislatura não poderá implicar na redução ou aumento do seu subsídio. Reitero que a norma que implicar fixação e alteração do subsídio do Secretário Municipal somente poderá vigorar para a legislatura subsequente àquela em que foi fixada ou modificada.

Na Consulta n. 693.891 (sessão de 09/03/2005), o Conselheiro Relator Moura e Castro deixou claro que o princípio da anterioridade permaneceu como requisito obrigatório para a fixação da remuneração de agentes políticos municipais após o advento da EC n. 19/1998: [...] a anterioridade da fixação dos subsídios desses agentes políticos [Prefeitos, Vice-Prefeitos, Vereadores e Secretários Municipais] decorre não do comando suprimido pela EC n. 19/98, mas dos princípios constitucionais da moralidade e impessoalidade, contidos no art. 37, caput, da Carta Política Federal, além de outros, como os da razoabilidade (art. 13 da Constituição Mineira) e da finalidade pública. Todavia não devemos confundir inalterabilidade com reajustamento, pois o escopo deste é o de preservar o valor aquisitivo dos subsídios, já o daquela é o de impedir a mutabilidade ou alteração da remuneração para vigorar na mesma legislatura. Logo, é legal e constitucional o reajustamento dos subsídios dos agentes políticos municipais, cuja disciplina se encontra normatizada no parágrafo único do art. 179 da Constituição Mineira de 1989.

Salienta-se que, nos julgados acima mencionados, o TCEMG ressalva a possibilidade de recomposição dos subsídios de agentes políticos municipais no curso da legislatura, nos termos 91


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do enunciado de Súmula n. 73.6 Nessa esteira, explica-se que a inalterabilidade dos subsídios de agentes políticos municipais no curso da legislatura, em decorrência da aplicação do princípio da anterioridade, não se confunde com a recomposição, a qual objetiva preservar o valor aquisitivo dos subsídios, repondo as perdas decorrentes da inflação. Acrescenta-se que a recomposição dos subsídios de agentes políticos está assegurada no art. 37, X, da CR/88: Art. 37. caput [...] X — a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4° do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998) (regulamento) (grifo nosso).

Sobre a matéria, Santana (2004, p. 120) ensina que [...] a aplicação do disposto no artigo 37, X, da Constituição Federal aos subsídios dos agentes políticos não é incompatível com outras regras dessa mesma Carta Política, especialmente aquela que escreve o princípio da anterioridade [...].

No mesmo sentido, consta no Manual Básico de Remuneração dos Agentes Políticos Municipais do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (2007, p. 14-15) que o princípio da imutabilidade dos subsídios não quer dizer que esses devam permanecer, durante todo o tempo, nominalmente inalterados; a própria Constituição assegura revisão anual geral sempre na mesma data e sem distinção de índices (art. 37, X).

Como dito anteriormente, a despeito de não haver previsão expressa no enunciado de Súmula n. 72, o TCEMG, em diversos julgados, vem se posicionando no sentido de que a fixação dos subsídios de agentes políticos municipais deve ocorrer antes da data das eleições, isto é, até o dia 30 de setembro do último ano da legislatura anterior. Como exemplos, citam-se as Consultas n. 752.708 (Cons. Rel. Adriene Andrade, sessão de 01/07/2009); 741.567 (Cons. Rel. Antônio Andrada, sessão de 01/07/2009); 713.166 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 27/09/2006); 693.500 (Cons. Rel. Wanderley Ávila, sessão de 22/06/2005); 694.097 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 01/06/2005); 693.891 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 09/03/2005); 625.886 (Cons. Rel. Eduardo Carone Costa, sessão de 20/12/2000); 624.801 (Cons. Rel. Moura e Castro, sessão de 31/05/2000) e a Prestação de Contas Municipal n. 657.899 (Cons. Rel. Wanderley Ávila, 1a Câmara, sessão de 03/08/2006). Na Consulta n. 624.801 (sessão de 31/05/2000), o saudoso Conselheiro Simão Pedro, após pedir vista dos autos, apresentou voto afirmando que, por intermédio do princípio da moralidade, “é 6

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Enunciado de Súmula n. 73 do TCEMG: No curso da legislatura, não está vedada a recomposição dos ganhos, em espécie, devida aos agentes políticos, tendo em vista a perda do valor aquisitivo da moeda, devendo ser observados na fixação do subsídio, a incidência de índice oficial de recomposição do valor da moeda, o período mínimo de um ano para revisão e os critérios e limites impostos na Constituição Federal e legislação infraconstitucional.


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que se embasa a reprovação da prática de se legislar em causa própria, sobrevinda da fixação do subsídio após a proclamação dos resultados das urnas, em tempos de reeleição”. Completa o ilustre Conselheiro seu raciocínio aduzindo que “nesse sentido, têm entendido os Tribunais, na aplicação da legislação eleitoral aos casos concretos, pelo que razoável se apresenta a data acima referida, isto é, até 30 de setembro”.

Doutrina

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Informa-se, ainda, na Consulta n. 624.801 (sessão de 31/05/2000), que o Conselheiro Eduardo Carone Costa, em sintonia com o voto-vista do Conselheiro Simão Pedro, acrescentou: [...] como eu acho que a Constituição deve ser interpretada no seu conjunto, não vejo como não acompanhar o eminente relator e o eminente Conselheiro Simão Pedro Toledo quanto a essa cautela. Mas é uma cautela respaldada em princípio constitucional, uma ideia filosófica de que não se deve legislar em causa própria. Portanto não tenho dúvida em seguir essa orientação de que, no final da legislatura, ao se fixar o subsídio para a subsequente, deve ser essa fixação feita antes da eleição que se vai realizar, para que não se legisle em causa própria.

Na Consulta n. 741.567 (sessão de 01/07/2009), o Conselheiro Relator Antônio Andrada, partindo de uma interpretação sistemática do texto constitucional, destacou que o princípio da anterioridade exige a fixação do subsídio não apenas em data anterior ao término da legislatura, mas também em data anterior à eleição municipal: No que concerne ao limite temporal de fixação do subsídio dos vereadores, destaca-se, conforme entendimento reiteradamente afirmado por esta Corte de Contas, que a melhor hermenêutica do art. 29 da CR/88, numa visão sistemática do texto constitucional, é aquela segundo a qual o princípio da anterioridade refere-se à exigência de fixação do subsídio em data anterior não apenas ao fim da legislatura, mas, também, em data anterior à eleição municipal. Nesse sentido foram decididas as Consultas de n. 694.097, 716.364 e 713.166. A anterioridade da fixação dos subsídios em relação ao pleito eleitoral municipal é, portanto, recomendada por este Tribunal, tendo em vista o princípio da moralidade e o princípio da impessoalidade, expressamente consagrados no art. 37, caput, da CR/88. Note-se que admitir a definição da remuneração dos edis após a realização da eleição pode ensejar a possibilidade de distorções no sentido de vantagens indevidas em benefício próprio, quando for majoritária a reeleição, ou, em situação fática diametralmente oposta, possibilitar a fixação de subsídios em valores desarrazoadamente baixos, como forma de retaliação política. Destaco, a esse respeito, a lição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, ao definir o supracitado princípio da impessoalidade: ‘[...] a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas. Nem favoritismos, nem perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie’.7 7

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 114.

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Na Prestação de Contas Municipal n. 657.899 (Cons. Rel. Wanderley Ávila, sessão de 03/08/2006), a 1a Câmara do TCEMG, por unanimidade, determinou o ressarcimento aos cofres municipais pelo Presidente de Câmara Municipal e demais Vereadores de valores recebidos a maior, a título de subsídios, sob a justificativa de que a resolução fixadora da remuneração dos edis, para a legislatura 2001/2004, foi aprovada em data posterior às eleições municipais. Segue transcrito fragmento do voto do Conselheiro Relator: O entendimento corrente nesta Corte de Contas, em prejulgamento da tese, manifestado nas respostas às Consultas n. 624.801, de 28/06/2000, e 625.886, de 20/12/2000, é no sentido de não serem consideradas, na fixação de subsídios de vereadores, as resoluções fixadoras que forem votadas após a realização das eleições. [...] No exercício em que ocorre o pleito eleitoral, a fixação dos subsídios deve observar, além do princípio da anterioridade, estatuído no inciso V do art. 29 da Constituição Federal/1988, também o princípio da moralidade previsto constitucionalmente no art. 37, caput. Conforme salientado nas consultas citadas, na hipótese de todos ou de a maioria dos vereadores serem reeleitos, a fixação após as eleições implicaria em legislar em causa própria e, caso fosse reeleita apenas a minoria, ou nenhum dos então vereadores, poderia haver fixação de subsídios em valor baixo, por razões políticas. Por essas razões, segundo a interpretação sistemática da Constituição Federal/1988, o prazo máximo para fixação dos subsídios para a legislatura 2001-2004 seria 30 de setembro de 2000, o que não foi observado pela Câmara Municipal, que somente aprovou o aumento no final de novembro daquele exercício.

Diante do exposto, observa-se que as decisões do TCEMG, norteadas pelos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, além de estarem ratificando o entendimento consolidado no enunciado de Súmula n. 72, determinam que a fixação dos subsídios de agentes políticos municipais deve ocorrer antes da data das eleições. Finaliza-se, este capítulo, asseverando que, na hipótese de os subsídios de agentes políticos municipais não serem fixados na legislatura anterior, dever-se-á observar a norma estatuída no parágrafo único do art. 179 da Constituição do Estado de Minas Gerais: Art. 179 — A remuneração do Prefeito, do Vice-Prefeito e do Vereador será fixada, em cada legislatura, para a subsequente, pela Câmara Municipal. Parágrafo único — Na hipótese de a Câmara Municipal deixar de exercer a competência de que trata este artigo, ficarão mantidos, na legislatura subsequente, os critérios de remuneração vigentes em dezembro do último exercício da legislatura anterior, admitida apenas a atualização dos valores.

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6 Decisões do TJMG Primeiramente, informa-se que a jurisprudência do TJMG, tanto no controle difuso, como no controle concentrado de constitucionalidade, é no sentido de que os subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos, Secretários Municipais e Vereadores deverão ser fixados na legislatura anterior para vigorar na subsequente, antes da data das eleições municipais.

Doutrina

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Em sede de controle difuso de constitucionalidade, destacam-se os seguintes julgados: Incidente de Inconstitucionalidade n. 1.0133.05.023906-9/006(1) (Desembargador Relator Roney Oliveira, Corte Superior do TJMG, julgamento em 14/01/2009) e Apelação Cível n. 1.0133.05.023908-5/002 (Desembargador Relator Edgard Penna Amorim, 8a Câmara Cível, julgamento em 25/09/2008). No Incidente de Inconstitucionalidade n. 1.0133.05.023906-9/006(1), a Corte Superior do TJMG, por maioria,8 reconheceu que lei e resolução municipais afrontaram os arts. 13 e 179 da Constituição Estadual,9 por terem sido aprovadas após a realização das eleições. Segue transcrito excerto do voto do Desembargador Relator: A Lei Municipal n. 09/2004 e a Resolução n. 08/2004, em análise no presente incidente de inconstitucionalidade, tratam da fixação de novos subsídios para o quadriênio 2005/2008, a primeira para Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários e a segunda para os Vereadores e do Presidente da Câmara. Ambas as normas foram aprovadas pela Câmara Municipal de Fervedouro após o término das eleições locais, cujos resultados já eram divulgados. [...] A Constituição da República determina, no art. 29, VI, a anterioridade da fixação dos subsídios, que devem ser determinados na legislatura anterior para vigorarem apenas na subsequente, somente quanto aos vereadores, já que o inciso V do mesmo art. 29 que trata do assunto quanto ao Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários Municipais, foi modificado pela EC n. 19/1998. [...] A Constituição do Estado, em seu art. 179, determina que a fixação de remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador deverá ocorrer em uma legislatura para vigorar apenas no quadriênio seguinte. [...] Não consta expressamente no texto constitucional do Estado de Minas Gerais, como se pode notar, a obrigatoriedade de que a fixação dos vencimentos de Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores ocorra antes das eleições. No entanto, a limitação temporal encontra-se implícita naquele dispositivo, cujo escopo é vedar que o agente público determine sua própria remuneração, o que vulnera os princípios basilares do Direito Administrativo, tais como moralidade e impessoalidade, que devem nortear todos os atos da Administração Pública, 8

Discordaram do voto apresentado pelo relator os seguintes desembargadores: Brandão Teixeira, Edivaldo George dos Santos, Ernane Fidélis, Duarte de Paula, Cláudio Costa, Márcia Milanez, Paulo Cézar Dias, Selma Marques, Elpídio Donizetti. A posição divergente apresentada pelos mencionados desembargadores foi no sentido de que o art. 179 da CE/1989, ao prever o princípio da anterioridade para a fixação dos subsídios de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores, não determina que tal fixação ocorra antes das eleições municipais.

9

Art. 13, caput, da CE/1989 — “A atividade de administração pública dos Poderes do Estado e a de entidade descentralizada se sujeitarão aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e razoabilidade.”

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consoante o disposto no art. 37, caput, da Constituição da República (CR/88) e o equivalente art. 13 da Constituição Mineira (CEMG/89), [...]: [...] Conclui-se, sem grande esforço, que a fixação, na legislatura anterior, dos subsídios que irão somente prevalecer após o resultado das eleições locais, permite que os agentes públicos façam juízo de valor pessoal a respeito do assunto, contrariando os princípios da moralidade, da impessoalidade, da supremacia do interesse público, [...]: Frente ao exposto, acolho o incidente e declaro a inconstitucionalidade da Lei n. 09/2004 e da Resolução n. 08/2004 do Município de Fervedouro, por afrontoso aos arts. 13 e 179, da Constituição Mineira (CEMG/89).

Na Apelação Cível n. 1.0133.05.023908-5/002, a 8a Câmara Cível do TJMG decidiu que o art. 179 da Constituição do Estado de Minas Gerais permaneceu vigente após a Emenda à Constituição da República n. 19/1998 e reconheceu a inconstitucionalidade incidental de lei municipal que fixou os subsídios do Prefeito e do Vice-Prefeito após a data das eleições municipais. Segue transcrito trecho do voto do Desembargador Relator: De fato, o art. 29, V, da Constituição da República de 1988 — repetido pelo art. 179 da Constituição do Estado de Minas Gerais — estabelecia, antes da EC n. 19/1998, limitação temporal à edição de lei que alterasse o subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito, a qual obrigava a Câmara de Vereadores a se antecipar às eleições do Chefe do Executivo Municipal em caso de majoração do subsídio do alcaide. Entretanto, a referida Emenda Constitucional suprimiu a limitação ao processo legislativo atinente ao subsídio do Prefeito, conservando o princípio da anterioridade em relação aos subsídios dos próprios vereadores, conforme se verifica do art. 29, incisos V e VI, da CR/1988, [...] Sob a égide das EC n. 19/98 e 25/2000, a Lei Municipal questionada na inicial foi editada em 20/12/04, para viger no período de 1°/01/2005 a 31/12/2008, fixando, assim, o subsídio dos 2° e 3° réus, que haviam vencido as eleições em outubro de 2004 e tomariam posse em janeiro do ano seguinte, o que ensejou o ajuizamento da presente ação, pelo ilustre representante do Ministério Público. A controvérsia, portanto, cinge-se a apurar se o ato legislativo do Município estava sujeito ao imperativo do art. 179 da CEMG ou se, por força da autonomia constitucional conferida aos entes municipais pelo art. 29, V, da CR/1988, o dispositivo da Constituição Mineira não subsistira à EC n. 19/98. E, por fim, se a Lei n. 849/2004 poderia ser declarada inconstitucional com fundamento nos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, já que a edilidade, ao fixar o subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito, no período de 2004 a 2008, conhecia os nomes dos candidatos eleitos para aquele quadriênio. Ora, com a devida vênia, o art. 179 da CEMG harmoniza-se com o princípio da anterioridade por força do caput do art. 29 da CR/1988, na medida em que este dispositivo garante a influência jurídica dos princípios estabelecidos nas Cartas Estaduais sobre o microssistema constitucional traçado para os Municípios, sem lhes exterminar a autonomia política, por óbvio.

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[...] Assim, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade incidental da Lei n. 849/2004 no ponto em que majorara, a partir de 1° de janeiro de 2005 (art. 6°), o subsídio do Prefeito e do Vice-Prefeito em desrespeito ao art. 179 da Constituição Estadual, por não se tratar de mera atualização daqueles subsídios, mas de aumento com a finalidade de que os subsídios dos vereadores fossem alcançados pelos do Chefe do Poder Executivo local.

Doutrina

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Informa-se que na apelação cível acima em destaque, a 8a Câmara Cível do TJMG não submeteu a questão referente à inconstitucionalidade da lei municipal em face do art. 179 da Constituição Estadual de 1989 ao órgão competente para tanto, conforme preceituado pelo art. 97 da CR/88,10 pelo fato de a matéria já estar pacificada no âmbito da Corte Superior daquele Tribunal. Nesse sentido, manifestou-se o Desembargador Relator: De fato, trata-se de questão reiteradamente decidida, a unanimidade, pela Corte Superior deste egrégio Tribunal, a qual, embora não tenha declarado inconstitucional o dispositivo ora questionado, o fizera em casos similares, o que configura hipótese de dispensabilidade da instauração do incidente de inconstitucionalidade, nos termos do art. 248, II, do RITJMG.

Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, citam-se os seguintes julgados: ADI n. 1.0000.05.428460-9/000 (Desembargador Relator Edelberto Santiago, Corte Superior do TJMG, julgamento em 07/04/2008) e ADI n. 1.0000.00.3225034-000 (Desembargador Relator Schalcher Ventura, Corte Superior do TJMG, julgamento em 14/04/2004). Na ADI n. 1.0000.00.3225034-000, o Desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro, ao apresentar voto divergente do Desembargador Relator,11 manifestou-se no seguinte sentido: A inconstitucionalidade está evidenciada porque a Lei Municipal n. 247/02 conflita com o disposto no art. 179 da Constituição do Estado de Minas Gerais, que prevê a fixação da remuneração do Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores em cada legislatura para vigorar na seguinte, dispositivo que tem o propósito moralizador de evitar que se exagere no valor estabelecido se o for no curso da legislatura seguinte ou a retaliação dos perdedores se for depois das eleições, na legislatura que se exaure. A regra de que deva ser antes das eleições a fixação da remuneração dos agentes políticos do Município está implícita e se compõe com o que contém o art. 13 da mesma Constituição do Estado, que sujeita a administração aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e razoabilidade. Destarte, o conteúdo do art. 179 se ajusta a tais princípios da impessoalidade, moralidade e razoabilidade, desde que não se permita que a remuneração seja fixada quando conhecidos os resultados das urnas, porque aí estariam os legisladores dispondo em benefício próprio, seja aumentando o valor, se eleitos, seja retaliando os que os derrotaram, aviltando a remuneração. 10

Art. 97. “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.”

11

O voto do Desembargador Relator, Schalcher Ventura, foi vencido, tendo sido acompanhado apenas pelo Desembargador Luiz Carlos Biasutti.

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Dentro desta ótica, julgo procedente a ação de inconstitucionalidade e declaro inconstitucional a norma questionada.

Já na ADI n. 1.0000.05.428460-9/000, o TJMG, por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade da Lei n. 174/2005 do Município de Sete Lagoas, que fixou os subsídios do Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários Municipais para a legislatura 2005/2008. Seguem transcritos a ementa e trecho do voto do Desembargador Relator: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE — SUBSÍDIO DE PREFEITO, VICE E SECRETÁRIO — FIXAÇÃO — PROMULGAÇÃO DA LEI NA MESMA LEGISLATURA — APROVAÇÃO APÓS ELEIÇÃO MUNICIPAL — OFENSA À REGRA DA ANTERIORIDADE E AO PRINCÍPIO DA MORALIDADE — INCONSTITUCIONALIDADE EM FACE DOS ARTIGOS 13 E 179 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS — REPRESENTAÇÃO ACOLHIDA. Voto do Desembargador Relator: [...] A Lei Municipal n. 174/05, objeto da presente ADIN, estabelece o subsídio do Prefeito Municipal de Sete Lagoas, do Vice-Prefeito e dos Secretários para a legislatura 2005/2008. Embora, ao que conste, tenha sido o projeto de lei votado na vigência da legislatura anterior, a promulgação da lei só ocorreu em 22 de janeiro de 2005, verificando-se, ainda, que o consenso acerca do texto final só foi alcançado após as eleições municipais, o que viola os princípios constitucionais da moralidade administrativa e da impessoalidade. [...] Do exposto, acolho a representação e declaro inconstitucional a Lei questionada.

7 Considerações finais Analisando as decisões do TCEMG e do TJMG, verifica-se que, não obstante o silêncio da Constituição da República de 1988 em relação a Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais, ambos os órgãos defendem a aplicação do princípio da anterioridade na fixação dos subsídios de todos os agentes políticos municipais, bem como a subordinação do referido princípio ao marco temporal correspondente à data das eleições municipais. As decisões do TCEMG e do TJMG fundamentaram-se numa interpretação sistemática do texto constitucional, a partir da conjugação da redação atual do art. 29, V, da CR/88 (conferida pela EC n. 19/1998) e do art. 29, VI, da CR/88 (conferida pela EC n. 25/2000) com os princípios da moralidade e da impessoalidade, previstos no art. 37, caput, da CR/88.12 Sobre a importância dos princípios na interpretação do direito, destacam-se os ensinamentos de Grau (2006, p. 207-208): [...] a interpretação do direito é (deve ser) dominada pela força dos princípios. Os princípios cumprem função interpretativa e conferem coerência ao sistema. É que cada direito não é mero agregado de normas, porém um conjunto dotado de unidade e coerência — unidade e coerência que repousam precisamente sobre os seus (dele = de um determinado direito) princípios. Daí a ênfase que 12

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Art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte” [...] (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998).


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imprimi à demonstração de que são normas jurídicas os princípios, elementos internos ao sistema; isto é, estão nele integrados e inseridos. Por isso que, de uma banda, a interpretação do direito é dominada pela força dos princípios.

Doutrina

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[...]. Canotilho afirma que os princípios constitucionais ‘fornecem sempre diretivas materiais de interpretação das normas constitucionais’ (1983, p. 201). Jorge Miranda (2000, p. 230): ‘A ação mediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exacto dos preceitos constitucionais tem de ser encontrado na conjugação com os princípios e a integração há de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou explicitáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente’ [...].13

A alteração14 dos subsídios de agentes políticos municipais no curso da legislatura contraria o interesse público, na medida em que dá margem a práticas antiéticas,15 permitindo aos vereadores a prerrogativa de manipular os valores das remunerações, seja em benefício próprio ou de aliados políticos, seja em represália aos seus desafetos políticos. Nessa esteira, afirma-se que, além da imprescindibilidade de que a fixação dos subsídios de agentes políticos municipais ocorra em cada legislatura para vigorar na subsequente, o ato normativo instituidor dos subsídios deve ser constituído antes da realização das eleições, a fim de que os membros da Câmara Municipal não legislem em causa própria (o que se vislumbraria na hipótese de terem sido reeleitos para a formação do próximo Corpo Legislativo); nem privilegiem ou prejudiquem os eleitos aos cargos de Prefeito, VicePrefeito e até mesmo de Vereadores. Ressalta-se, por todo o exposto, que a interpretação dos dispositivos constitucionais deve ser feita de maneira sistemática e não literal, de modo a não permitir que princípios basilares da Administração Pública, notadamente os da moralidade e da impessoalidade, sejam inobservados, em flagrante desrespeito ao interesse público. Sobre a importância de se visualizar e de se interpretar a Constituição como um todo, mostra-se pertinente a seguinte colocação: A interpretação de todas as normas constitucionais vem portanto regida basicamente pelo critério valorativo extraído da natureza mesma do sistema. Faz-se assim suspeita ou falha toda análise interpretativa de normas constitucionais tomadas insuladamente, à margem do amplo contexto que deriva do sistema constitucional. De modo que nenhuma liberdade ou direito, nenhuma 13

Na mesma linha do defendido por Grau (2006), Bonavides (2008, p. 130) leciona: “[...] a Constituição é basicamente unidade, unidade que repousa sobre princípios: os princípios constitucionais. Esses não só exprimem determinados valores essenciais — valores políticos ou ideológicos — senão que informam e perpassam toda a ordem constitucional, imprimindo assim ao sistema sua feição particular, identificável, inconfundível, sem a qual a Constituição seria um corpo sem vida, de reconhecimento duvidoso, se não impossível.”

14

Reitera-se, como explicado no capítulo 5, que, no curso da legislatura, é permitida a recomposição dos subsídios de agentes políticos municipais, nos termos do enunciado de Súmula n. 73 do TCEMG.

15

“A necessidade de se praticar condutas em conformidade com preceitos éticos faz-se presente não apenas nas relações entre a Administração Pública e os administrados, mas também, internamente, isto é, nas relações entre a Administração Pública e os agentes públicos que a compõem” (CARVALHO FILHO, 2007).

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norma de organização ou construção do Estado, será idônea, fora dos cânones da interpretação sistemática, única apta a iluminar a regra constitucional em todas as suas possíveis dimensões de sentido para exprimir-lhe corretamente o alcance e grau de eficácia (BONAVIDES, 2008, p. 131).

Por essas razões, conclui-se que o subsídio não apenas de Vereadores, mas também de Prefeitos, Vice-Prefeitos e Secretários Municipais, deverá ser fixado na legislatura anterior para vigorar na subsequente, antes da data das eleições municipais.

Referências BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Manual básico de remuneração dos agentes políticos municipais. 2007. BRAZ, Petrônio. Remuneração dos agentes políticos municipais para a próxima legislatura. JAM — Jurídica Administração Municipal, ano V, n. 3, mar. 2000. BRUNO, Reinaldo Moreira; DEL OLMO, Manolo. Servidor público — doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. CASTRO, José Nilo de. Direito municipal positivo. 6. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. COSTA, José Rubens. Manual do prefeito e do vereador. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. FERRAZ, Luciano. Direito municipal aplicado. Belo Horizonte: Fórum, 2009. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/Aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005. MARQUES, Raphael Peixoto de Paula. Evolução constitucional da remuneração dos agentes políticos municipais. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=2390>. Acesso em: 19/fev./2010. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Servidores públicos. São Paulo: Malheiros, 2004. SANTANA, Jair Eduardo. Subsídio de agentes políticos municipais. Belo Horizonte: Fórum, 2004. 100


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Pareceres e decisões

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Direito Comparado

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El control judicial de la discrecionalidad en la asignación de pautas publicitarias del Estado en la Argentina* Agustín A. M. García Sanz1 El autor es abogado de la Universidad de Buenos Aires, casa de estudios en la que ejerce la docencia. También es profesor titular de Regulación Económica I de la Carrera de Especialización en Derecho Administrativo de la Universidad Católica de La Plata, bajo la dirección de Rodolfo C. Barra. Es sub-director de la Revista Res Publica Argentina, dirigida por Agustín Gordillo, en cuya cátedra se formó. Profesionalmente, ha trabajado en distintos cargos en el sector público, ha sido abogado del Estudio M & M Bomchil, en el equipo de Guido S. Tawil y, en la actualidad, es asociado del Estudio Marval, O’Farrell & Mairal, firma en la que trabaja con el Héctor Mairal.

Resumo: En el presente artículo se analiza la situación fáctica y el estado de la normativa federal en la Argentina en materia de asignación de publicidad oficial a los distintos medios de comunicación (TV, radio, diarios, internet). En base a este análisis, se describen ciertos vicios presentes en la asignación de pauta publicitaria oficial, al tiempo que se identifican los principios, derechos y garantías constitucionales que resultan violadas por efecto del reparto discreacional de la publicidad oficial. Asimismo, se realizan propuestas de estándares mínimos que deberían servir de base para el debate de una necesaria ley nacional que regule adecuadamente la distribución de publicidad en la Argentina, rubro que en el presente representa un gasto mensual de más de R$ 20 millones. Palabras llave: Publicidad oficial. Publicidad de los actos de gobierno. Principio republicano. División de poderes. Sistema democrático. Principio de legalidad.

*

El presente trabajo está basado en la ponencia presentada en las Jornadas de Derecho Administrativo de la Universidad Austral, Buenos Aires, Argentina, 2009, publicada en AA. VV., Cuestiones de Control de la Administración Pública. Administrativo, Legislativo y Judicial — Jornadas organizadas por la Universidad Austral Facultad de Derecho, Buenos Aires, Ediciones Rap, 2010.

1

Deseo agradecer la colaboración de los Dres. Nicolás Diana, Santiago Carrillo, Nicolás Eliaschev y Marcos García Domínguez por sus aportes y comentarios durante la elaboración de este trabajo.

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Resumo: No presente artigo se analisa a situação fática e a situação da norma federal na Argentina em matéria de distribuição de publicidade oficial aos diversos meios de comunicação (TV, rádio, jornais, internet). Com base nesta análise, são descritos certos vícios presentes na distribuição da publicidade oficial, ao mesmo tempo em que se identificam os princípios, direitos e garantias constitucionais que resultam violadas por efeito da partilha discricionária da publicidade oficial. Também, são feitas propostas de padrões mínimos que deveriam servir de base para o debate de uma necessária lei nacional que regule adequadamente a distribuição da publicidade na Argentina, item que atualmente representa um gasto mensal de mais de 20 milhões de reais. Palavras-chave: Publicidade oficial. Publicidade dos atos de governo. Princípio republicano. Divisão de poderes. Sistema democrático. Princípio da legalidade.

1 Introducción El sistema republicano de gobierno adoptado por la Constitución nacional argentina (y necesariamente seguido por las provinciales2) no admite que un funcionario del Estado, sea del Poder que fuere, pueda elegir discrecionalmente el destino de la pauta publicitaria oficial de acuerdo a las afinidades estéticas, políticas o ideológicas de los medios de comunicación a los que esa pauta puede ser asignada y mucho menos que esa asignación resulte de la decisión de beneficiar económicamente a un medio determinado en detrimento de otro. Ni siquiera lo admite la justicia penal, llamada a aplicar criterios mucho más restrictivos en su análisis de tipicidad.3 Es que, sencillamente, no se trata de premiar o castigar nada, mucho menos de hacer fomento: se trata de dar a publicidad la acción de gobierno por los medios más eficaces disponibles, de modo que ella pueda ser conocida, escrutada y evaluada por los ciudadanos.4 Recientemente, una decisión de la Sala IV de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo Federal avanzó con determinación hacia la demarcación de un nuevo límite para la discrecionalidad del gasto en materia de publicidad oficial. Todavía debemos esperar una definición de la Corte Suprema de Justicia de la Nación que viene en camino,5 pero algunas señales recientes6 permiten soñar con una confirmación del sano criterio fijado por la Sala IV.

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2

Habida cuenta que para la adopción de sus respectivas constituciones provinciales deben respetar la forma de gobierno adoptada por la Constitución nacional (cfr. artículos 5 y 123 de la Constitución Nacional).

3

La Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional Federal, Sala II, decidió el 17-XI-09, en los autos “Albistur, Enrique y otra”, revocar el sobreseimiento de primera instancia en una causa por presuntas irregularidades en la asignación de la pauta publicitaria oficial. Albistur, el procesado, era Secretario de Medios de Comunicación de la Nación a cargo de la distribución de la pauta oficial. Sostuvo la Cámara que restaba determinar cuál había sido la facturación de las empresas investigadas, si existió equivalencia o desproporción con las pautas oficiales asignadas a otras empresas del mismo rubro, y de qué organismo público provinieron las solicitudes que finalmente se otorgaron a aquéllas.

4

En palabras de la Sala IV, “[s]i bien esa doctrina está referida a la actividad normativa del Estado como una necesidad básica en el fortalecimiento de la seguridad jurídica, fundamento de un racional comportamiento en los negocios y en las relaciones personales, también lo está como una necesidad de la ciudadanía de conocer lo realizado por el gobierno permitiendo un debido juzgamiento al momento de ser sometido la permanencia en el poder del grupo gobernante.” (Cámara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo Federal, Sala IV, in re “Editorial Perfil S.A. y otro v. Estado Nacional — Jefatura de Gabinete de Ministros — Secretaría de Medios de Comunicación”, 10-II-09.)

5

El 24 de febrero de 2009 la decisión de la Cámara fue recurrida por el Estado Nacional. El día 12-V-09 las actuaciones fueron remitidas a la Corte. Un claro pronunciamiento de la Corte Suprema a este respecto dará a la cuestión el final que se merece.

6

Ver Fallos 330:3908 y 331:2893, recaídos en las causas “Editorial Río Negro c. Provincia de Neuquén” y “Radiodifusora Pampeana


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Pero el festejo por este fallo debe dejar lugar para las preguntas y, con ellas, para la definición de los debates todavía por venir en materia de control de la pauta publicitaria del Estado. La llamativa ausencia de un marco normativo que regule y transparente la cuestión en el plano federal, sumada a situaciones similares en el plano provincial y de la Ciudad de Buenos Aires,7 reclaman de nuestros jueces un acabado control judicial. A tratar estas cuestiones dedicaré este trabajo.

2 Las razones para el festejo actual La Cámara ha llegado a la decisión que marca el punto de partida de este trabajo asumiendo que, si bien ningún medio tiene un derecho intrínseco a recibir pauta publicitaria del Estado, cuando esa pauta existe y es distribuida, no puede serlo en modo irrazonable y desatendiendo el principio de igualdad. Es que, si ello ocurriera, se estaría afectando concomitantemente tanto la libertad de prensa y expresión 8 como el acceso a la información pública por parte de la ciudadanía para poder ejercer con conciencia sus derechos políticos.

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En efecto, siguiendo la doctrina de la Corte,9 la Cámara entendió que el art. 16 de la Constitución Nacional10 supone que no pueden establecerse excepciones o privilegios que excluyan a unos de lo que se concede a otros en idénticas circunstancias, mas no impide que la legislación contemple en forma diferente situaciones que considera distintas, cuando la discriminación no sea arbitraria ni responda a un propósito de hostilidad contra determinados individuos o clases de personas, ni encierre indebido favor o privilegio personal o de grupo.

Luego de dar por probada la intencionalidad discriminatoria por parte de la Secretaría de Medios de Comunicación y el hecho de que Perfil “tiene un nivel de emisión que implica una penetración importante en el público lector”, la Cámara descartó el argumento estatal de que la editorial no dependa de esa pauta publicitaria para subsistir como atenuante o eximente del yerro denunciado.11 S.A. c. Provincia de La Pampa”, respectivamente. 7

Entre las que cabe mencionar la judicializada discusión en las provincias de Neuquén y La Pampa o los debates en torno del crecimiento del gasto en publicidad del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires.

8

Reconocida en el art. 32 de la Constitución Nacional y en el art. 19 de la Declaración de los Derechos Humanos de la Organización de las Naciones Unidas.

9

Fallos 182:355.

10

Artículo 16, Constitución nacional: “La Nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni títulos de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas.”

11

En palabras de la Sala IV, si se exigiese que el Estado solvente “a aquellas publicaciones deficitarias, se estaría violando con mayor intensidad la libertad de expresión, en tanto le quitaría a la prensa la credibilidad necesaria respecto de la veracidad de lo que informa.”

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Como puede advertirse, la Sala IV profundizó los criterios que en esta materia ha delineado la Corte en su nueva composición12 y lo ha hecho en el marco de un amparo.13 Razones sobran para el festejo en tiempo presente, por cuanto la forma y la cantidad de publicidad oficial asignada por el Estado ha quedado — así parece — finalmente sujeta a un control judicial suficiente. ¿Pero qué pasará con la sustancia?

3 Las preguntas que buscan respuesta Estamos ante un inmejorable contexto para analizar las preguntas que se presentan de cara al futuro a la luz del estado actual de la jurisprudencia en esta materia, tan sensible para el quehacer político y para la democracia en general. Según trataré de ilustrar en este trabajo, las respuestas preliminares a estas preguntas no hacen sino poner en evidencia la necesidad de un set de reglas claras, conocidas por todos, para la asignación de la pauta publicitaria pero, también, para la determinación de su sustancia y sus formas. Veamos.

3.1 ¿De qué hablamos? El primer paso que me propongo es dar dimensión al problema. Es que al analizar un problema jurídico, la realidad tiene un impacto determinante, máxime cuando de ella depende la correcta apreciación de lo que sucede en tiempo presente, único modo de diseñar adecuadamente las herramientas para el tiempo futuro. Veamos, entonces, de qué hablamos. Durante el año 2009, y sin considerar, por ejemplo, las sumas invertidas por empresas de las que es accionista,14 el Estado nacional argentino vino gastando a razón de más de un millón y medio de pesos diarios en publicidad oficial (R$ 715.000, aproximadamente).15 Si bien con números globales más módicos, otro tanto puede decirse de lo que ocurre en la Ciudad de Buenos Aires, donde el año 2009 mostró un gasto acumulado que superaba los $ 100 millones (R$ 47 millones) y un crecimiento del 88% en comparación con el año anterior.16 No estamos hablando, en definitiva, de unos pocos pesos destinados a poner en conocimiento de la población la fecha de cierre para la presentación del Impuesto a las Ganancias. Hablamos, por lejos, de un presupuesto que convierte al Estado en el mayor anunciante del país, con el

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12

Justo es recordar que la Corte había sostenido criterios diferentes en el pasado, según los cuales el control judicial de la administración no podía alcanzar estos rincones del quehacer administrativo. Ver Fallos 320:1191.

13

Si bien la Cámara señala lo inusual del trámite por la abundancia probatoria, la decisión llegó de todos modos en el marco de este tipo de acción, herramienta idónea cuando lo que se pretende lograr es una rápida definición respecto del fondo del asunto planteado. Era necesario en este caso, para que la respuesta no llegara bajo una nueva administración.

14

Mucho menos las que pudieran estar gastándose a través de recursos no discriminados en el Presupuesto.

15

Ver el interesante informe de Ramón Indart en el Diario Perfil, accesible online en <http://www.perfil.com/contenidos/2009/08/12/ noticia_0011.html>.

16

Ver Sued, Gabriel, “Macri también aumentó el gasto en publicidad oficial”, La Nación, 14-II-10 y “El gobierno de Macri también bate records”, La Nación, 17-V-09. Ver de igual modo los informes de la Asociación por los Derechos Civiles al respecto, disponibles en <www.acd.org.ar>.


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poder que ello supone. Ahora bien: ¿Queremos que la administración tenga ese poder sobre los medios de comunicación de los que depende, en gran medida, la posibilidad de controlar — precisamente — la administración de la cosa pública? Mi respuesta a esta pregunta es ciertamente negativa.

3.2 ¿Qué puede hacer el Estado en términos de publicidad? Cuestiones de finalidad y legalidad presupuestaria Corresponde, luego de asignar una magnitud concreta al problema, y tomando como punto de partida los criterios ya fijados por la jurisprudencia, empezar a formular las preguntas que permitan dirimir qué se puede y qué no se puede hacer en materia de publicidad con los dineros públicos.

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La primera pregunta que surge es si es posible premiar la calidad periodística con la asignación de pauta publicitaria. Ciertamente no parece que sea posible, al menos, bajo ese rótulo. Y ello no sólo porque la frontera entre el premio a la calidad y el premio a la afinidad con quien asigna la pauta es, en un contexto de discrecionalidad, casi invisible, sino porque los fondos que el Congreso o las legislaturas autorizan al recaudador a apropiarse por vía de impuestos deben ser gastados con las finalidades aprobadas en la Ley de Presupuesto y no otras. Y, ciertamente, no encontramos las partidas destinada a la publicidad oficial entre las transferencias que el sector público hace al privado. Tampoco vemos que esos fondos y su asignación, si es que de dar premios se trata, estén sujetos a reglamentos o mecanismos transparentes que permitan discernir qué es exactamente lo que se está premiando en cada caso, para que todos podamos participar de la compulsa. Ni qué hablar de que encontremos actos debidamente motivados, como para — al menos — poder analizarlos y eventualmente cuestionarlos desde ese flanco. Pero si no se puede premiar la calidad con estos fondos, ¿se puede, entonces, subsidiar la publicación de quienes no consiguen el favor suficiente del público como para subsistir por su cuenta? Esta pregunta, a la luz de la recientemente aprobada Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual, es crucial.17 La Sala IV en el fallo comentado ha dicho con acierto que no. Nuevamente, asumiendo por hipótesis que tal apoyo se diera por una decisión de política cultural, si es que tal decisión fuera constitucionalmente admisible,18 no podría hacerse desde el rubro publicidad, sino desde el rubro correspondiente a los subsidios. Y así sabremos todos que la revista tal, o el programa cual, está siendo subsidiado con fondos específicamente alocados con 17

El análisis de esta nueva Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual merecería un trabajo en sí mismo, sin perjuicio de los muchos más ricos comentarios que podrán llegar a hacerse una vez que sea reglamentada y puesta en marcha a partir de actos de aplicación. Sin embargo, basta en este punto señalar que dicha norma no ha previsto (i) el modo en que se distribuirá la pauta publicitaria entre los licenciatarios, permisionarios y autorizados, (ii) ni la sustancia, formas o tiempos en que resulta admisible la publicidad oficial. Esta omisión ocurre en el marco de una norma que habilita al Estado, a través de un órgano dominado por la fuerza política preponderante del momento, a otorgar las nuevas licencias y autorizaciones a operadores (con o sin fines de lucro; estatales o privados) que, por los contenidos que ofrecerán, seguramente no podrían subsistir sin aportes de la publicidad oficial. En este contexto, la necesidad de establecer reglas claras respecto de qué puede publicitar el Estado y cómo debe asignarse la pauta publicitaria resulta imprescindible.

18

Decisión que de todos modos entiendo ilegítima por ser contraria al juego armónico de los arts. 14, 16, 17, 32 y 43 de la Constitución Nacional.

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esa finalidad, previa aprobación global por el Congreso de las partidas necesarias y sujetando la decisión a una adecuada motivación en el caso concreto y no al simple reparto global en una planilla de la Agencia Nacional de Noticias de la República Argentina (Telam),19 encargada de la administración de la pauta oficial. Pero tampoco es esto lo que ocurre. En definitiva, se utiliza la pauta publicitaria oficial para fines no previstos en la ley. Reconozco — no sin cierto pudor — que, en los tiempos que corren, parece un tanto anacrónico hacer un alegato desde las orillas del principio de legalidad en materia presupuestaria20 y del necesario respeto de la finalidad con que el órgano ha sido dotado de competencias. Pero de esto hablamos: el Estado no puede usar los fondos públicos para fines no previstos en la ley, mucho menos para fines ocultos detrás de la necesidad de dar a publicidad las acciones de gobierno. Es que el acto administrativo que así lo disponga estará insanablemente viciado en su causa, en su objeto, en su motivación y en su finalidad; ni qué hablar del procedimiento. Y allí donde ese principio no se respete, habrá espacio para el más acabado control judicial. Pero este estándar debe imperar aun en ausencia de reclamo de algún medio de comunicación por el trato discriminatorio que hayan sufrido en carne propia, por la consecuente afectación de la libertad de prensa, del derecho a igual trato bajo la ley, del de propiedad o de ejercer industria lícita. Porque bien puede ocurrir que todos los medios se sientan bien atendidos por la pauta oficial y que, sin embargo, se sigan usando fondos bajo el rótulo “publicidad” para fines que la exceden por completo. ¿Y qué hacer entonces? ¿Alcanza con responder que se trata de una decisión política exenta del escrutinio judicial o que el casus no queda configurado? Ciertamente no. También deben poder acceder a esta tutela las ONGs21 y los particulares afectados no ya por los derechos de los medios de comunicación ya señalados, sino por las barreras que tal discriminación supone para el acceso de la ciudadanía a la información pública sin interferencias irrazonables o ilegítimas por parte del propio Estado.22

3.3 ¿Cuáles son los límites para la definición del contenido de la publicidad oficial? En el punto anterior asumí, sólo a los fines expositivos, que el contenido de la publicidad de la que estaba hablando era un dato de la realidad ya dado y que lo que cabía preguntar era únicamente con qué fines podía usarse la asignación de la pauta, sin entrar a indagar sobre la sustancia. Pero este punto, la sustancia, es tanto o más importante que el anterior.

108

19

Y debería exigirse, en tal caso, que el apoyo sea comunicado en modo claro en la publicación o programa mismos, para que el público sepa de primera mano que ese programa subsiste gracias a los fondos públicos.

20

A la luz de la llamada Ley de Superpoderes (ley 26.124). Ver en este sentido Gelli, María Angélica, “De la delegación excepcional a la reglamentación delegativa. Acerca de la reforma a la ley de Administración Financiera”, LL 2006-E, 868.

21

Es interesante la tarea de control que se viene realizando, por ejemplo, desde la Asociación por los Derechos Civiles en esta materia, con la publicación de informes cuanti-cualitativos sobre el gasto en publicidad. Ver en <www.adc.org.ar>.

22

Ver en torno de la legitimación en este tipo de casos, GAMBIER, Beltrán. “El poder de los ciudadanos”, disponible online en <http://portal.redargentina.com/foros/el-poder-de-los-ciudadanos>.


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No habrá dudas, volviendo al ejemplo que diera párrafos más arriba, de que la publicidad sobre la fecha de cierre de las presentaciones de declaraciones juradas del impuesto a las ganancias debería estar entre los contenidos admitidos bajo el rubro “publicidad oficial”. Pero ¿qué sucede con publicar por los medios consignas sobre las bondades de un determinado proyecto de ley enviado por el Poder Ejecutivo al Congreso? ¿Es admisible que se utilice la pauta oficial para cuestionar con nombre y apellido las posturas asumidas por los jueces en fallos que no dan la razón al gobierno de turno? ¿Es razonable que se sufrague con impuestos la publicidad que sirva para poner presión sobre una disputa parlamentaria sujeta a la regla de las mayorías políticas? ¿Por qué podría disponer el Poder Ejecutivo de esa herramienta y no la oposición, que debería afrontar semejante presión mediática únicamente con los fondos provenientes de las arcas sus respectivos partidos políticos? ¿Y qué ocurre con anuncios únicamente destinados a resaltar la figura presidencial?

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Es fácil concluir, entonces, que la discusión sobre el contenido que razonablemente puede admitirse en este tipo de publicidad oficial se torna mucho más compleja. A poco que se abandona la idea de un simple llamado a licitación o la reproducción de la síntesis de un nuevo marco normativo, es decir, en cuanto nos alejamos de la publicidad destinada a poner a disposición del público aquella información indispensable para que los derechos puedan ser ejercidos de manera eficaz, eficiente e informada, empezamos a caminar sobre un terreno menos firme. Tanto más patente se torna el problema al dimensionarlo: en la actualidad, sólo el 7% de la pauta oficial del Estado federal tiene que ver con dar a publicidad licitaciones, pago de haberes o información de este tipo. Mientras tanto, sumada la pauta destinada a la difusión de gestión, a los avisos institucionales y al laxo rubro de “políticas públicas”, se llega a un 88% del gasto total.23 Podría alguien sostener que dar a conocer consignas a favor de un determinado proyecto de ley o confrontar con sectores particulares de la sociedad a través de los medios son actividades inescindibles de la administración de la cosa pública. Se podría ir más allá y afirmar que la legitimidad del voto determina, una vez cada cuatro años, quién tomará las riendas del Poder Ejecutivo y se decide también quién puede usar el aparato del Estado para dar la más amplia difusión a las ideas y valores votados por la mayoría o por la primera minoría. Me permito disentir con quien esto afirme. Es que el sistema electoral y el de partidos políticos dan respuesta a esta cuestión, no el estándar de publicidad de los actos de gobierno. La lucha política en busca del apoyo de las mayorías, sea en plena campaña electoral a favor de un candidato o en los períodos entre elecciones para debates sobre temas puntuales, no puede ser dada utilizando los fondos del Estado en exclusivo favor de quien ya ocupa la jefatura de la administración pública o, por caso, la jefatura administrativa de un órgano legislativo. La Constitución reformada en el año 1994 ha sido clara al dar a los partidos políticos una suerte de monopolio para canalizar las propuestas electorales y, desde esa base, ha decidido asignar recursos para el debate de las 23

Ver informe de la Asociación por los Derechos Civiles, con base en el gasto ejecutado en el año 2007, disponible en <www.adc.org.ar>.

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ideas políticas. Dice el art. 38 de la Constitución reformada que ella vino a garantizar, entre otras cosas, “la competencia para la postulación de candidatos a cargos públicos electivos, el acceso a la información pública y la difusión de sus ideas”. También establece este artículo que el “Estado contribuye al sostenimiento económico de sus actividades” y que “los partidos políticos deberán dar publicidad del origen y destino de sus fondos y patrimonio.” Vale decir, entonces, que el partido de gobierno, como todos los demás partidos en las proporciones que establece la ley, ya recibe aquella porción de recursos públicos, en dinero o en especie,24 mediante los cuales hacer conocer sus ideas y propuestas. ¿Qué justificativo habría para violentar la igualdad ante la ley de cara a los demás partidos políticos, dando carta blanca al partido de gobierno para comprometer, desde el Poder Ejecutivo y sus distintos órganos, pauta publicitaria oficial para sostener discusiones de este tipo? El serio problema que enfrentará el sistema republicano será todavía mayor si se siguen emitiendo normas que limiten la duración de las campañas. Y no porque no sea racional que la duración de las campañas políticas sea de algún modo acotada para evitar costosas (en recursos y en paciencia) contiendas electorales, sino principalmente porque si, mientras se estatuye una prohibición de este tipo, se habilita al partido de gobierno, a través de la pauta oficial, a seguir haciendo propaganda, se viola la igualdad de base con la que los partidos deben llegar a la contienda. Mordaza para unos, fondos públicos para otros no parece ser una fórmula admisible bajo la Constitución. Ni qué hablar, como se espera ahora, cuando además se prohíbe el financiamiento de los partidos políticos por parte de los particulares.25 El Estado asumirá un rol que calificará de “irrenunciable”, en virtud del propio art. 38 de la Constitución, y se dirá que ello fortalece la democracia. Pero ocurrirá casi con certeza que se asignarán los fondos desde el Poder Ejecutivo con la misma discrecionalidad en las cantidades, en los tiempos o en la forma en que ocurre en tiempo presente, por citar un ejemplo, con la coparticipación federal.26 Y, mientras tanto, seguirá el partido de gobierno, el actual o el que venga, disfrutando de la posibilidad de hacer propaganda a través de la pauta oficial, sufragada bajo el argumento de que se trata de “información pública”, de cumplir el mandato del propio art. 38 y del art. 1° de la Constitución. Nunca palabras tan nobles habrán de ser usadas para objetivos tan bajos.

110

24

Por ejemplo, en minutos de aire en canales de televisión.

25

Es importante tener en cuenta que en los Estados Unidos se han producido importantes novedades sobre esta cuestión en los últimos meses. En el caso Citizens United v. Federal Election Commission, del 21 de enero de 2010, la Corte norteamericana afirmó que los topes a los gastos corporativos (o de los sindicatos, que evidentemente cuentan con menor capacidad económica que las grandes empresas) durante las campañas son inválidos. Su argumento principal fue que los límites a los gastos de las corporaciones o de los sindicatos promocionando a un candidato violan el derecho de aquéllos a la libertad de expresión. Resolvió la cuestión permitiendo a las corporaciones gastar de manera ilimitada a la hora de promover a un candidato. Al hacerlo, el alto tribunal invalidó buena parte de la ley federal sobre financiamiento político McCain-Feingold.

26

Durante los últimos meses, las provincias de San Luis, Córdoba, Catamarca, La Pampa y Santa Fe han presentado casos ante la Corte Suprema de Justicia de la Nación vinculados con la asignación y giro de fondos correspondientes a la coparticipación federal. Más recientemente, la Corte ha llegado incluso a citar al Ministro de Economía y al Gobernador de la Provincia de Córdoba para tratar de encontrar una salida sin necesidad de llegar a una decisión formal del tribunal. Todo indica que no le será posible evadir tamaña responsabilidad (ver en VENTURA, Adrián, “Boudou y Schiaretti debaten en la Corte por la coparticipación”, La Nación, 14-X-09).


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En el plano federal, existen distintos proyectos de ley en danza27 que abordan esta cuestión con mayor o menor fortuna. En ellos se encuentran distintas tipificaciones de lo que puede publicitarse con fondos del Estado. Por ejemplo, se admite la publicidad cuando se trata de: (i) derechos prestacionales que se reconozcan a los ciudadanos; (ii) obligaciones impuestas a los ciudadanos; Consultas públicas; (iii) programas de gobierno respecto de los cuáles los beneficiarios deban ejercer acciones positivas para el otorgamiento de alguna prestación; (iv) condiciones o requerimientos de licitaciones o concursos públicos; (v) medidas adoptadas o a adoptarse en casos de emergencias públicas; o (vi) publicidad relacionada en forma directa con el objeto social de las sociedades controladas por el Estado. Seguramente surjan de un debate informado y suficiente algunas alternativas adicionales a las antes enumeradas, al mismo que tiempo que matices respecto del contenido de cada una de ellas. Pero es un comienzo. Lo importante aquí es lograr una cada vez más clara diferenciación entre la publicidad de los actos de gobierno (entendida como precondición para la eficacia de ciertos actos28 y para el ejercicio de otros derechos) y la propaganda. Lo primero, es mandato constitucional; lo segundo es acción reservada a los partidos políticos a través de los medios con que cuenten de acuerdo a la normativa específica que los regule. Seguramente esta diferenciación, enunciada de este modo, coseche muchas adhesiones. Sin embargo, es preciso reconocer la dificultad que lleva aparejada.

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Bien podría alguien sostener que dar a conocer la cantidad de escuelas construidas o los kilómetros de rutas pavimentadas bajo una administración determinada es también dar cumplimiento al mandato implícito en el art. 1° de la Constitución Nacional de dar publicidad a los actos de gobierno. Es que de una apreciación informada acerca del uso de los fondos públicos también puede surgir un mejor ejercicio del sufragio en tanto derecho y obligación, y de controlar a los mandatarios en el ejercicio de las funciones que les han sido encomendadas. Desde otra orilla podría alguien responder que a tal fin bastaría el cartel colocado por el contratista en la obra o una publicación periódica que dé cuenta de la obra de gobierno y a la que se pueda acceder a través de alguna de las tantas modalidades de comunicación que hoy ofrece la tecnología, entre ellas internet. En este último caso, a lo sumo haría falta que, por los medios tradicionales de publicidad (TV, radio, diarios y revistas), se anuncie que la memoria periódica de gobierno se encuentra disponible en tales y cuales lugares para su consulta. Desde una posición incluso más 27

(Expte. 0037-D-2009) Proyecto de ley presentado por Silvana Myriam Giudici, con fecha 02/03/2010; (Expte. 4583-D-2009) Proyecto de ley presentado por Federico Pinedo, Paula María Bertol, Esteban José Bullrich, Omar Bruno De Marchi y Enrique Luis Thomas, con fecha 21/09/2009; (Expte. 4328-D-2009) Proyecto de ley presentado por José Ameghino Arbo, José María Roldán, Cesar Alfredo Albrisi y Jorge Luis Albarracín, con fecha 09/09/2009;; (Expte. 3193-D-2009) Proyecto de ley presentado por Laura Gisela Montero, Enrique Luis Thomas, Juan Carlos Scalesi, Daniel Katz y Miguel Angel Giubergia, con fecha 02/07/2009; (Expte. 4048-D-2008) Proyecto de ley presentado por María Virginia Linares, Juan Carlos Morán, Horacio Alberto Alcuaz, Fabian Francisco Peralta, Francisco José Ferro, con fecha 29/07/2008; (Expte. 3247-D-2008) Proyecto de ley presentado por Emilio Raul Martínez Garbino con fecha 18/06/2008; (Expte. 1581-D-2008) Proyecto de ley presentado por Fernando Sánchez, Elsa Siria Quiroz, Fernando Adolfo Iglesias, Adrián Pérez, Juan Carlos Moran, Patricia Bullrich, Elisa Beatriz Carca, María Fernanda Reyes, con fecha 18/04/2008; (Expte. 812-D-2008) Proyecto de ley presentado por Federico Pinedo y Paula María Bertol, con fecha 17/03/2008.

28

Si bien no es el objeto de este trabajo, cierto es que la publicidad de los actos de gobierno alcanza, como estándar constitucional, a la necesaria publicación de ciertos actos como condición de eficacia y exigibilidad. Ver en este sentido GARCÍA SANZ, Agustín A. M., “La publicidad de las normas a través de internet como estándar mínimo para que sean exigibles”, Res Publica Argentina, 2008-3.

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extrema podría sostenerse que basta a los fines de dar publicidad a los actos de gobierno con el mensaje del Ejecutivo en la apertura de sesiones de su período legislativo y con que la prensa independiente refleje la obra de gobierno, rol que le cabe en las democracias modernas. Vemos, entonces, cómo la discusión en torno de qué puede o debe ser objeto de publicidad oficial sin correr riesgos de convertirse en propaganda es compleja en sus matices, pero requiere ser tratada y saldada — con respeto de los procedimientos legislativos — pensando alternativas que tengan que ver no sólo con la sustancia sino también con los modos en que esa publicidad es realizada. Es decir, sin ir en desmedro de la publicidad cierta de información relevante acerca de la obra de gobierno, pueden realizarse acciones que de ningún modo se confundan con la propaganda político partidaria que sólo favorece a quien ocasionalmente está a cargo del órgano que realiza dicha publicidad.

3.4 Los tiempos: ¿cuándo puede publicitar el Estado? Hasta ahora me he preguntado acerca de la sustancia de la publicidad y de sus confines. Pero una vez respondido el qué, debemos dar el siguiente paso y preguntarnos sobre los modos, empezando por el cuándo. Tal vez la situación que haga más evidente la necesidad de esta pregunta es la de los procesos electorales, como de algún modo adelanté al tratar de diferenciar la publicidad oficial de la propaganda política. ¿Es realmente lo mismo publicitar con una elección a dos años vista que hacerlo a un mes de las elecciones?29 ¿Puede mantenerse la publicidad oficial durante la veda electoral? ¿Es admisible que, mientras se impone un sistema unificado y centralizado de reparto de la pauta para las campañas, el Poder Ejecutivo goce de la más amplia libertad para elegir medios, horarios y cantidades? El no se impone en todos los casos. No voy a ser novedoso al decir que la inmensa mayoría de la pauta oficial persigue, directa o indirectamente, que el electorado conozca y, en función de ello, juzgue favorablemente la obra o las ideas del partido de gobierno en el siguiente turno electoral. Precisamente es por esto que la cantidad de publicidad oficial crece en las cercanías de las elecciones. Pero a la cuestión de los tiempos electorales, tal vez la más sensible por sus ribetes políticos, deberá sumarse la necesidad de controlar que la publicidad que realmente hace falta sea hecha en tiempo oportuno. Algunas previsiones existen en materia de selección del contratista (aunque eso no significa que se cumplan) pero ¿qué ocurre con las publicaciones relacionadas con prestaciones ofrecidas por el Estado, o con las obligaciones impuestas por el Estado y que pueden, en caso de no ser debidamente dadas a conocer, hacer incurrir en costos y contingencias legales a los particulares? 29

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Si la Presidenta de la Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, está siendo investigada por presunta violación al artículo 64 del Código Electoral por inaugurar una obra en plena veda electoral. El artículo 64 prohíbe a todo funcionario público inaugurar obras públicas, lanzar o promover planes, “proyectos o programas de alcance colectivo y, en general, la realización de todo acto de gobierno que pueda promover la captación del sufragio.” La veda electoral en el momento de la investigación era de tan sólo 7 días. Cabe imaginar que la restricción debiera ser más extensa en materia de publicidad oficial.


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Indudablemente, la tipificación que se realice de la publicidad oficial será una herramienta fundamental para poder armonizar la necesidad de publicidad con las restricciones y necesidades en materia de tiempos para que dicha publicidad sea efectivamente realizada. Así encontraremos pautas más flexibles para dar a conocer, por ejemplo, fechas de vencimiento de impuestos o de cobro de haberes jubilatorios, que avisos en los que se haga referencia a la obra de gobierno. Hoy, todo forma parte de un colectivo indiferenciado que, como suele ocurrir cuando todo cae en una misma bolsa, termina por favorecer los excesos.

3.5 Los modos: ¿es necesaria la publicidad que actualmente se realiza en todos los casos? Hoy estamos acostumbrados a asociar la publicidad de los actos de gobierno con la pauta

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publicitaria que el Estado compra en medios gráficos, en televisión, en radio, en estática o, últimamente, incluso en páginas de internet de diarios o portales accesibles online. Pero la costumbre no necesariamente debe condicionar las reglas que se definan al momento de dar contorno a la ejecución del gasto en esta sensible materia. Las nuevas tecnologías ponen a disposición de un creciente número de ciudadanos información que antes dependía, para ser dada a conocer, de cuantiosas inversiones en reproducción gráfica o por otros medios. Y no hablo aquí de meras hipótesis o manifestaciones voluntaristas. En un estudio del año 2009 la UNCTAD, dependiente de las Naciones Unidas,30 ha determinado que Argentina es el país con mayor penetración de internet en la población de toda América Latina. Un 50,32% de la población ya cuenta con acceso a esta herramienta y la cifra sigue creciendo año a año. Hoy en día, como es evidente, una página de internet bien concebida o un canal de comunicación de la internet 2.031 pueden reemplazar eficazmente, incluso superar con creces, al mejor de los diarios en versión papel de circulación nacional como herramienta de comunicación. No sólo porque permite acceder a la información sin deber pagar por un ejemplar o por un acceso concreto a determinada programación, sino también porque supera en herramientas a las modalidades actuales de publicación, dando la posibilidad de sumar elementos multimedia (video, fotos, audio), texto, cuadros, infografías, etc. En este contexto, y mucho más a medida que avancen los tiempos, internet puede reemplazar paulatina pero sostenidamente a muchos de los medios tradicionalmente utilizados para dar publicidad a la obra de gobierno en sus diferentes aspectos. De hecho, normativa tan diversa como la de contrataciones públicas, de control comercial agropecuario o de acceso a información impositiva cuenta hoy con previsiones específicas en materia de publicidad 30

Ver en <http://www.unctad.org/Templates/Webflyer.asp?docID=12271&intItemID=1528&lang=3>.

31

Se cuentan por decenas las experiencias de gobiernos de todo orden utilizando Facebook o Twitter para establecer canales de comunicación con la ciudadanía. Por todos, ver <http://twitter.com/gcba/>.

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por internet. Como he sostenido con anterioridad, internet está llamada a convertirse en estándar mínimo exigible para la publicación de las normas, de modo de hacerlas exigibles, superando incluso al Boletín Oficial.32 De este modo y como adelantara párrafos más arriba, podrían destinarse dineros públicos a instalar en la población las direcciones de internet de los portales en los que la publicidad oficial se encuentra debidamente sistematizada y detallada, antes que realizar toda la publicidad en forma directa a través de los medios tradicionales. Bastará con poner a disposición del público terminales de acceso gratuito en oficinas estatales o en instituciones asociadas por vía de convenios, incluso con asistencia de personal del Estado para quienes tengan dificultades de acceso, para atender las necesidades de una transición hacia los medios electrónicos que parece irreversible. La adopción de políticas de largo plazo como la aquí propuesta no sólo redundará en una más adecuada asignación de recursos y en una más eficaz comunicación de los contenidos que el Estado debe hacer públicos, sino también en una paulatina liberación de los medios de comunicación de la dependencia del Estado que necesariamente viene asociada a la incidencia de la pauta estatal en su flujo de ingresos. Lo que hoy puede lucir como un perjuicio para su rentabilidad presente, será garantía de libertad de expresión en tiempo futuro.

3.6 Control de pautas y ejecución del gasto: ¿quién le pone el cascabel al gato? Hoy por hoy la ejecución del gasto en materia de publicidad oficial está hoy confiada a las cabezas de los órganos administradores, sea que se trate del Poder Ejecutivo o de los restantes poderes; sea que se trate de la Nación, o de las Provincias y Municipios. Esta es la regla. Es que, en un marco de discrecionalidad casi absoluta, los incentivos para que las autoridades del poder u órgano administrador lleven adelante la tarea de asignar la pauta son demasiado grandes. Por el contrario, cuanto más claras sean las reglas para la asignación de estos recursos, cuanto más concretos sean los contornos del qué, del cómo y del cuándo que vengo de analizar, más fácil será buscar alternativas orgánicas para el control de cumplimiento de esas pautas y para la ejecución del gasto en esta materia. Ciertamente, no parece razonable que quien ejerza el control sobre estos parámetros sea, en solitario, el mismo que podría beneficiarse con los efectos de esa publicidad. No puede una agencia de noticias oficial dependiente del Poder Ejecutivo, tal lo que ocurre en el caso de la Nación, ser confiada con el rol de controlar los abusos en los que pudiera incurrir el propio poder administrador a la luz de los estándares analizados. No es razonable desde la lógica de frenos y contrapesos de nuestro sistema republicano de gobierno.

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Ver GARCÍA SANZ, Agustín A. M., “La publicidad de las normas”, op. cit.


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Debiera, entonces, analizarse seriamente la posibilidad de crear agencias33 exentas del control omnímodo de uno solo de los poderes del Estado, máxime teniendo en cuenta que los tres poderes deben realizar publicidad oficial. Luce más razonable que exista un órgano con integración plural de los distintos poderes que ejecutan partidas destinadas a la publicidad oficial o, al menos, un órgano creado e integrado en forma representativa (no sólo por cuestiones de diversidad partidaria, sino también territorial)34 por el Congreso Nacional que permita balancear el poder unipersonal del Ejecutivo (el más relevante a los efectos de este análisis) o de los administradores de los otros poderes del Estado. Sólo de este modo se podrá confiar al órgano que debe ejecutar la pauta que realice un control efectivo, ex ante, de los parámetros fijados por la ley que eventualmente se dicte.

3.7 Contratación: ¿cómo debe contratarse la publicidad?

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La contratación de la pauta oficial aparece hoy signada por la discrecionalidad en todos sus aspectos. No sólo en torno de cuáles son los medios destinatarios de esa pauta, sino también en torno del procedimiento que debe seguirse para concretar la contratación. En el plano federal esta anomia es evidente. No es posible que una caja chica de $ 500 (R$ 238) tenga un procedimiento claro para su aprobación y que no lo tenga la ejecución de los más de $ 600 millones (R$ 286 millones) que gastará el Estado nacional en materia de publicidad durante este año. Es demasiado el margen para el error, en el mejor de los casos. Se impone la necesidad de contar, al tiempo de regular esta materia, con un procedimiento claro y transparente para la contratación de los espacios de publicidad, clarificando adecuadamente el rol que pueden jugar los intermediarios o mayoristas de espacios de publicidad.

3.8 ¿Hace falta una norma? Cada uno de los temas reseñados abre un sinfín de alternativas en materia de herramientas de gestión y control. Pero sin perjuicio de los contenidos en concreto, lo que entiendo que no puede cuestionarse seriamente a esta altura es la necesidad de que exista una norma que empiece a definir criterios y estructuras orgánicas que permitan resolver un problema que crece a la velocidad del gasto en pauta publicitaria oficial.35 33

Confieso que no soy afecto a la creación de nuevas dependencias públicas, como criterio general. Bastantes organismos existen ya sin prestar adecuados servicios a los contribuyentes. Sin embargo, entiendo que los organismos o agencias de control existentes, en tanto mantengan potestades de contralor ex post facto sin responsabilidad en la ejecución presupuestaria en tiempo presente, no resuelven la cuestión que aquí planteo.

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Porque no debe perderse de vista que, al asignar en forma discrecional y desproporcionada la pauta, puede terminarse beneficiando no sólo a medios determinados sin que ello reconozca asidero en su penetración en el mercado, sino también a medios de centros urbanos de mayor relevancia política (Capital Federal y GBA, por ejemplo) en detrimento de medios igualmente relevantes del interior del país.

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Por citar un ejemplo, el Estado federal gastó a lo largo de 2008, ejercicio respecto del cual ya están disponibles los datos cerrados, $ 396.307.367, es decir, un 756,54% más que en 2003. Como he señalado supra, también se han detectado crecimientos exponenciales en el gasto en publicidad en otras administraciones, como es el caso del Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires. No estamos, repito, ante una cuestión que admita cargar las tintas sobre un partido político en forma aislada. Es un mal endémico.

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Existen distintos proyectos esperando a ser tratados por el Congreso nacional, como ya he adelantado. Tal vez tengan una primera oportunidad de ser debatidos a partir del reciente cambio de mayorías parlamentarias, aunque ello no signifique que sean convertidos en ley. Mientras la ley no exista, no existirán los órganos con competencia para controlar y ejecutar el gasto en pauta publicitaria del Estado, ni existirán los criterios a los que deba ajustarse el gasto, a los que puedan acudir los jueces en el control judicial en el caso concreto. Pero eso no significa que el gasto quede exento de todo control en tiempo presente. El gasto en publicidad debe ser controlado por los jueces, tanto más ante la ausencia de una norma que otorgue competencia primaria a un órgano suficientemente independiente para dirimir estas cuestiones. A estas cuestiones dedicaré el acápite siguiente.

4 El rol de la Justicia ante la falta de un marco legal adecuado Así como se han fijado estándares respecto de los confines de la discrecionalidad en el citado caso Perfil, en Editorial Río Negro c. Provincia de Neuquén y en Radiodifusora Pampeana S.A. c. Provincia de La Pampa, cobrará importancia la discusión respecto de los confines de la sustancia y los modos de publicitar. Desde ya, será más difícil la tarea judicial ante la ausencia de criterios fijados legislativamente, pero esa barrera puede ser superada como bien lo hizo la Corte en Halabi,36 al sostener que la falta de régimen normativo no es excusa para la inacción judicial. La Constitución Nacional brinda hoy, sin necesidad de mayores precisiones normativas, herramientas suficientes para dar por tierra con la gran mayoría de la propaganda política que hoy se disfraza de publicidad oficial. En este contexto, pasaremos de una discusión limitada al Derecho a la Igualdad — Derecho de Acceso a la Información — Derecho a la libertad de Expresión, por cierto loable, a una discusión más rica, en la que entrarán en escena la División de Poderes y Sistema Republicano, el Principio de Legalidad, el Principio de Razonabilidad, el Sistema Presupuestario y el Sistema de Partidos Políticos. Se avecinan nuevos desafíos para la Justicia en el control de la pauta publicitaria. Se están dando importantes pasos en materia de control de la discrecionalidad en la asignación de fondos. ¿Tendremos la suerte de festejar también decisiones sobre algunos de los otros puntos tratados en esta breve presentación? La cercanía del debate electoral presidencial permite imaginar las condiciones para que este debate se presente. Tal vez una acción de amparo con medida cautelar37 sea el punto de partida de esta segunda discusión, todavía pendiente, mientras llega el tiempo de políticas de Estado en la materia. La publicidad de una determinada agenda política o ideológica, de las bondades de tal o cual proyecto de ley o de los méritos de una administración en particular, por loables que sean los

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Fallos 332:111, especialmente considerando 12 del voto mayoritario.

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Como el presentado por Beltrán Gambier en el año 1999 en ocasión de la resonante campaña “Menem lo hizo”, que mereciera el dictado de una medida cautelar por la Justicia de primera instancia, confirmada por la Sala II de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Contencioso Administrativo Federal (ver Gambier, Beltrán c. Poder Ejecutivo Nacional, La Ley 1999-E, 624).


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objetivos perseguidos, no puede ser sufragada con dineros provenientes de los impuestos, salvo que ello ocurra en la estricta medida de los aportes que reciben los partidos políticos. Y si de lograr ese objetivo se trata, el manejo de fondos para la publicidad que deban hacer todos los poderes del Estado (no sólo el Poder Ejecutivo) debería estar a cargo de un órgano plural e independiente de los vientos políticos de turno, con facultad para revisar que los contenidos de la publicidad propuesta se ajusten a estas pautas. ¿Serán estos los nuevos confines de la discusión? ¿Podrá debatirse a partir de ahora, con las bases que la Justicia está afianzando, sobre la sustancia de la publicidad oficial y no ya sólo de la cantidad o las formas? El tiempo lo dirá. Baste por el momento proponer la discusión.

Referencia

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JORNADAS DE DERECHO ADMINISTRATIVO DE LA UNIVERSIDAD AUSTRAL, 2009, Buenos Aires. Cuestiones de Control de la Administración Publica: Administrativo, Legislativo y Judicial. Buenos Aires: Ediciones Rap, 2010.

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Tribunal reforma decisão denegatória de registro de ato de aposentadoria RECURSO DE REVISÃO N. 734.672

EMENTA: Recurso de revisão — Autarquia estadual — Servidor ocupante de função pública — Registro de aposentadoria por invalidez negado por ausência de documentos comprobatórios do direito ao benefício. I. Falta de informação sobre a natureza da doença ensejadora da incapacidade. Concessão da aposentadoria apoiada no art. 36, I, da CE/89 c/c o art. 108, alínea e e art. 110, II, da Lei n. 869/52. Verificação de incapacidade insuscetível de reabilitação para outra atividade. Improcedência da irregularidade apontada na decisão recorrida. II. Ausência de certidão do INSS referente ao tempo de serviço prestado. Indicação da data de admissão pelo IEF na Certidão de Contagem de Tempo de Serviço. Presunção de veracidade e legitimidade do ato concessório. Aplicabilidade do princípio da proteção da confiança. Ausência de apontamento de má-fé pelo orgão técnico — Recurso provido — Registro do ato de aposentadoria. [...] a meu juízo, aplica-se o princípio da proteção da confiança, que tem o objetivo de proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nascem do cidadão, que confiou na postura e no vínculo criado pelas normas prescritas no ordenamento jurídico. O princípio da proteção da confiança promove a previsibilidade do direito a ser cumprido, assegurando que a fé na palavra dada não é infundada. É notório e devido que o cidadão tenha a convicção de que pode confiar na estabilidade e eficácia dos atos jurídicos. RELATOR: CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA

RELATÓRIO Cuidam os autos de Recurso de Revisão interposto por Regina Célia Nonato, Procuradora do IEF, em face da decisão prolatada em sessão da Quarta Câmara, datada de 19/06/06, nos autos do Processo de aposentadoria n. 350.598 (autos em apenso) que negou o registro do ato de aposentadoria de José Moreira de Aguiar, ocupante da função pública de auxiliar de serviços, por entender-se que a aposentadoria foi concedida sem a observância das normas legais que regem a matéria.

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Foi dado ciência da decisão ao jurisdicionado, intimado por meio do oficial instrutivo, a fls. 13, e ao aposentado por via postal, a fls. 18-19 dos autos n. 350.598. Em suas razões recursais, a fls. 02-06, o jurisdicionado assevera ser cabível e tempestivo o Apelo, alegando em síntese: a) incidência do prazo decadencial ao caso em exame, porquanto a decisão proferida quando já decorriam mais de 15 anos após a remessa do ato de aposentadoria à apreciação desta Corte; b) a boa fé dos agentes públicos na interpretação da legislação que embasou o ato concessório; c) a natureza alimentar dos proventos, já incorporados à vida do servidor; d) que o exercício da autotutela pela Administração, neste caso, deve ser precedido do contraditório, por envolver interesse de terceiros. O órgão técnico em seu relatório a fls. 13-16 informa que a decisão recorrida foi proferida, tendo em vista o fato de que o processo não se encontra devidamente instruído, considerando que não foi esclarecido se a doença que provocou a invalidez assegura o direito à aposentadoria integral ou proporcional (laudo a fls. 4 do Processo n. 350.598); ausência da certidão do INSS referente ao tempo de serviço prestado pelo aposentando no regime celetista. Nos termos do despacho a fls. 18, foi concedida a abertura de vista dos autos ao interessado. Todavia, conforme se infere dos documentos a fls. 29 e 30, o recorrente examinou os autos em 05/09/07, por meio de sua procuradora, mas não se manifestou nos autos. A douta Auditoria, em sua manifestação a fls. 31-32 informou que, em face da novel Lei Complementar n. 102/08, exclui-se dos auditores a atribuição de emitir parecer em processo desta natureza. Entretanto, trouxe à colação recente decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual fora acolhida a tese da decadência, em face da inércia do Tribunal de Contas decorridos sete anos. O douto Ministério Público por sua vez, em seu pronunciamento a fls. 33-35, esclarece que o ato concessivo de aposentadoria a fls. 01 dos autos n. 350.598, datado de 14/10/1991, foi publicado em 22/10/1991, a fls. 06, o que demonstra que, quando ocorreu o exame inicial dos autos em 13/06/2005, a fls. 03-04 do Processo n. 350.598, já havia decorrido mais de 13 anos da data da concessão efetiva do benefício. Informa, ainda, que a decisão que negou o registro do ato de aposentadoria foi proferida em 19/09/06, a fls. 12 dos autos n. 350.598, isto é, decorridos mais de quatorze anos da data do ato concessório. Esclarece, ainda, que a aplicação do instituto da decadência nos atos de registro de aposentadoria já é matéria sumulada no âmbito deste Tribunal onde restou estabelecido que: 122


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nas aposentadorias, reformas e pensões concedidas há mais de cinco anos, bem como nas admissões ocorridas em igual prazo, contado a partir da entrada em exercício, o Tribunal de Contas determinará o registro dos atos que a Administração já não puder anular, salvo comprovada má-fé.

Salientou também que, na Sessão Plenária de 11/06/08, este Tribunal definiu que os marcos iniciais para a contagem do prazo de cinco anos são aqueles previstos no § 1° do art. 1° da Instrução Normativa n. 04/07. O douto Ministério Público observa afinal que o órgão técnico em seu relatório não apontou a existência ou configuração da má-fé no caso sob comento, subsumindo-o integralmente aos termos da Súmula n. 105 desta egrégia Corte de Contas, razão pela qual entende que o Tribunal Pleno deve reconhecer, de plano, a aplicação do instituto da decadência ao caso em exame, determinando o registro do ato de aposentadoria, nos termos em que fora concedida.

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Nesse sentido, conclui sua manifestação pela aplicabilidade do instituto da decadência ao caso ora analisado, com fulcro no § 7° do art. 76 da Constituição Estadual de 1989, com a redação dada pela EC n. 78/07; no art. 65 da Lei Estadual n. 14.184/02 e no art. 118 da Lei Complementar n. 102/08 e, em eventual seguimento da análise recursal, pelo conhecimento do Recurso de Revisão e, no mérito, pelo provimento do apelo para registrar o ato de aposentadoria de José Moreira de Aguiar, nos termos em que foi concedida. É o relatório.

PRELIMINAR Preliminarmente, sou pela admissibilidade do presente Recurso de Revisão oposto por Regina Célia Nonato, Procuradora do Instituto Estadual de Florestas, à negativa do registro de aposentadoria de José Moreira Aguiar, tendo em vista a legitimidade da parte e a tempestividade do recurso, com fundamento no art. 264 da Resolução TC n. 10/96, Regimento Interno, vigente, naquela oportunidade, e aplicável, na espécie, haja vista o disposto no art. 389, da Resolução TC n. 12/2008 (atual Regimento Interno).

MÉRITO Inicialmente cumpre esclarecer que em sessão da Quarta Câmara, datada de 19/06/06, nos autos do Processo de aposentadoria n. 350.598 foi decidido pela negativa do registro do ato de aposentadoria de José Moreira de Aguiar, ocupante da função pública de auxiliar de serviços, por entender-se que a aposentadoria foi concedida sem a observância das normas legais que regem a matéria. 123


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Pelo que se infere das notas taquigráficas, a fls. 10-11 dos autos n. 350.598, os apontamentos da Diretoria Técnica indicavam que não foi esclarecido, no laudo médico, se a doença que provocou a invalidez asseguraria o direito à aposentadoria com proventos proporcionais ou integrais e que não constou da certidão do INSS o tempo de serviço prestado ao IEF, no regime celetista, no período de 14/08/78 a 31/07/90. Entretanto, compulsando os autos e conforme observou o douto Ministério Público, no verso do Laudo para Inspeção Médica, expedido pelo INSS, a fls. 04 da pasta anexa ao Processo n. 350.598, consta, no item 2° do referido formulário, que a incapacidade do servidor José Moreira de Aguiar era definitiva para o trabalho, insuscetível de reabilitação para outra atividade, fazendo constar no item 8° o código do diagnóstico provável. Como bem salientou o douto Ministério Público, a indicação de tratar-se ou não de aposentadoria integral ou proporcional cabe ao Órgão concedente, em face do diagnóstico e informações complementares do laudo médico, e não à junta médica, conforme determinado em diligência ao jurisdicionado. Pelo exposto, verifico que, com base nessas informações a área administrativa do IEF, analisando os dados apresentados pelo setor médico do INSS, concluiu pelo fundamento para a concessão do ato, tendo indicado que a referida aposentadoria estava apoiada no art. 36, I, da Constituição Estadual, combinado com os arts. 108, alínea e e 110, II, da Lei n. 869/52, que prevê a aposentadoria com proventos integrais, legislação vigente à época. Nesse sentido, não procede a irregularidade então apontada. Quanto ao tempo de serviço questionado, em que pese não constar dos autos a certidão do INSS, verifica-se que a data de admissão autenticada pelo IEF, na Certidão de Contagem de Tempo, a fls. 07 da pasta anexa ao Processo n. 350.598, indica a data de admissão em 14/08/78. Observa-se, ainda, que não há pronunciamento do órgão técnico quanto à existência ou quanto à configuração de má-fé no caso sob análise. Nesse sentido, considerando a informação da autarquia estadual e o fato de não ter sido caracterizada má-fé, entendo que se presume a veracidade da informação exarada pelo Órgão público. Cumpre destacar, ainda, que da decisão que negou o registro do ato de aposentadoria até a presente data passaram-se mais de 14 anos. Por todo o exposto, no caso concreto, a meu juízo, aplica-se o princípio da proteção da confiança, que tem o objetivo de proteger prioritariamente as expectativas legítimas que nascem do cidadão, que confiou na postura e no vínculo criado pelas normas prescritas no ordenamento jurídico. O princípio da proteção da confiança 124


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promove a previsibilidade do direito a ser cumprido, assegurando que a fé na palavra dada não é infundada. É notório e devido que o cidadão tenha a convicção de que pode confiar na estabilidade e eficácia dos atos jurídicos. O ato administrativo desfruta de uma propensa imutabilidade traduzida pela autovinculação da administração na qualidade de autora do ato e como consequência da obrigatoriedade de tal ato e pela tendência da irrevogabilidade, a fim de proteger e salvaguardar os interesses dos indivíduos destinatários dos atos, atendendo à proteção da confiança, bem como à segurança jurídica. Nesse diapasão, Rafael Maffini, In: Princípio da proteção substancial da confiança assevera que [...] mesmo que a conduta não seja ela mesma legítima, a confiança que nela foi depositada há de ser qualificada como tal, porquanto não se pode exigir dos administrados destinatários ou terceiros em relação a tais atos que deles desconfiem. Ao contrário, há uma espécie de induzimento a que todos quantos forem alcançados pelas mais variadas formas de atividade pública nelas depositem confiança (MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção substancial da confiança. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006, p. 187).

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No caso em tela, o Sr. José Moreira de Aguiar, de boa-fé, ingressou na inatividade, amparado no ato concessório deferido pela Administração, revestido de atributos de presunção de veracidade e legitimidade, o que a meu juízo, garante ao servidor a estabilidade do ato concessório. Assim, com fulcro nos princípios inerentes à Administração Pública, especificadamente o da proteção da confiança, dou provimento ao recurso para reformar a decisão recorrida e registrar o ato de aposentadoria do servidor José Moreira de Aguiar.

O Recurso de Revisão em epígrafe foi apreciado pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 16/06/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram o voto exarado pelo relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa.

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Tribunal reforma parcialmente decisão que imputou multa por irregularidades em procedimento licitatório RECURSO ORDINÁRIO N. 812.449

EMENTA: Recurso ordinário — Prefeitura Municipal — Licitação — I. Exigências editalícias restritivas à competitividade na fase de habilitação. Técnico de Segurança do Trabalho integrante do quadro permanente da empresa proponente. Manual de boas práticas. Profissional de nível superior na área de nutrição, empregado ou sócio da empresa. Cumulatividade de exigências econômico-financeiras. Apresentação de certidão negativa de protesto. Razões recursais insuficientes para reforma da decisão recorrida nesses pontos. II. Exigência de apresentação, na fase de habilitação, de relação de veículos para distribuição de produtos. Possibilidade. III. Ausência de definição da base de cálculo de multa prevista no edital. Base de cálculo consubstanciada no valor total do contrato. IV. Irregularidade na definição do prazo contratual. Serviços de natureza continuada indispensáveis à administração. Prazo contratual superior a 12 meses. Art. 57, II, da Lei n. 8.666/93 — Recurso provido nos pontos II, III e IV — Reforma parcial da decisão recorrida — Aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade para reduzir a multa aplicada — Decisão que determinou a realização de inspeção in loco no Município tornada sem efeito. Entendo que a exigência de certidão negativa de protesto também não encontra respaldo na Lei n. 8.666/93. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira deve se limitar à apresentação da documentação prevista no art. 31 da Lei n. 8.666/93. Não pode a Administração fazer exigências não previstas em lei, sob o argumento de confirmar a saúde financeira das licitantes para proteger o interesse público, pois regras editalícias dessa natureza afrontam o caráter competitivo da licitação. RELATOR: CONSELHEIRO EDUARDO CARONE COSTA

RELATÓRIO Trata-se de Recurso Ordinário interposto pelo Sr. Anderson Adauto Pereira, Prefeito do Município de Uberaba, no período de 2005 a 2008, por intermédio de seu procurador, em face da decisão proferida pela egrégia Segunda Câmara deste Tribunal, em sessão 126


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realizada no dia 15/06/2009, nos autos de n. 707.707 — Processo Administrativo, cujo Acórdão foi publicado no Minas Gerais de 1°/07/2009. No referido processo, os Exmos. Srs. Conselheiros da 2a Câmara deste Tribunal julgaram irregular o procedimento licitatório — Concorrência n. 012/2005 e aplicaram ao recorrente multa no valor de R$ 8.000,00 por violação ao art. 37, XXI, da CR/88 e arts. 27 a 31 da Lei de Licitações, bem como determinaram a realização de inspeção in loco para verificar a execução do contrato. De acordo com a decisão proferida no processo principal, foram constatadas as seguintes irregularidades: a) exigência de comprovação pelas licitantes, na data de apresentação da proposta, de possuírem no seu quadro permanente técnico de segurança do trabalho, detentor de certificado de formação técnica e registro no Ministério do Trabalho (subitem 9.3.4 do edital), em desacordo com o art. 30, § 6°, da Lei n. 8.666/93;

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b) exigência de apresentação, na fase de habilitação, de relação de veículos adequados e necessários para atender à logística de distribuição, entre as unidades educacionais, dos produtos perecíveis e não perecíveis e alimentos processados, com a apresentação das cópias dos Certificados de Registro dos Veículos e de seus Cadastros Estaduais de Vigilância Sanitária (CEVS) (subitem 9.3.5 do edital), contrariando o art. 30, § 6°, da Lei n. 8.666/93; c) exigência, na fase de habilitação, de manual de boas práticas individualizado, de conformidade com a Portaria n. 1.428/93 do Ministério da Saúde (subitem 9.3.6 do edital), em desacordo com o art. 30 da Lei n. 8.666/93; d) o objeto do certame relativamente ao local da prestação estaria cercado de subjetividade consoante o disposto no subitem 1.3 do edital; e) exigência de comprovação pelas licitantes de possuírem no seu quadro permanente, profissional de nível superior na área de nutrição, empregado ou sócio da empresa, para habilitação (subitem 9.3.3 do edital), configuraria restrição à participação no certame; f) ausência de definição da base de cálculo de multa prevista no subitem 17.1 c do edital e 15.1 c da minuta do contrato; g) cumulatividade de exigências econômico-financeiras previstas nos subitens 9.4.3, 9.4.4 e 9.4.8 do edital, em discordância com o art. 31, § 2° da Lei n. 8.666/93; h) exigência de Certidão Negativa de Protesto como documento para habilitação (subitem 9.4.7 do edital); 127


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i) possível irregularidade no contrato, relativamente ao prazo contratual. Ao interpor o presente recurso, o interessado requereu seu provimento para que seja declarada a regularidade do Processo licitatório n. 012/2005 e a reforma da decisão que aplicou multa de R$ 8.000,00 ao recorrente. Em face da certidão passada pela Secretaria Geral (a fls. 23), recebi a Petição de Recurso Ordinário e determinei o envio dos autos ao órgão técnico e ao Ministério Público de Contas, que se manifestaram, respectivamente, a fls. 27-58 e 60-75. O órgão técnico manifestou-se pelo provimento parcial do recurso, tendo o douto representante do Ministério Público opinado pelo não provimento do recurso, salvo em relação à determinação de inspeção in loco no Município de Uberaba por entender desnecessária a diligência. É o relatório.

PRELIMINAR Inicialmente, cumpre registrar que o Recurso Ordinário aviado atende aos requisitos previstos nos arts. 102 e 103 da Lei Complementar n. 102, de 17 de janeiro de 2008, por ser próprio, tempestivo e pela legitimidade da parte recorrente.

MÉRITO No mérito, em que pesem as alegações apresentadas pelo recorrente, entendo que conforme apurado nos autos do Processo Administrativo n. 707.707, que originou o presente Recurso Ordinário, o Edital de Concorrência n. 012/2005 apresenta irregularidades insanáveis. O Tribunal de Contas ao aplicar a multa ao recorrente o fez amparado no art. 318, II, da Resolução n. 12/2008, pelas irregularidades do procedimento licitatório — Concorrência n. 012/2005 — em que houve a violação ao art. 37, XXI, da CR/88 e arts. 27 a 31 da Lei de Licitações. Com efeito, o que se apurou no referido Processo Administrativo foi a violação de diversos artigos da Lei n. 8.666/93 no procedimento licitatório em tela, e restou comprovada a inserção no instrumento convocatório, de regras em desconformidade com a Lei de Licitações e restritivas à ampla participação. Ademais, nos termos do parágrafo único do art. 4° da Lei n. 8.666/93, o procedimento licitatório se caracteriza por uma série de atos administrativos formais, seja ele praticado em qualquer esfera da Administração Pública, 128


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devendo o administrador se submeter aos preceitos legais que regem sua atuação, alicerçado no princípio da legalidade. Nas razões recursais, alega o recorrente que a exigência de comprovação pelas licitantes de possuírem no seu quadro permanente, técnico de segurança do trabalho, estaria de acordo com o § 6° do art. 30 da Lei n. 8.666/93 e com a jurisprudência, uma vez que a licitação seria de grande vulto e para a execução de serviço complexo durante extenso período, exigiria elevada qualificação técnica. Alegou, ainda, que tal regra além de tratar-se de exigência legal, também estaria prevista nas normas de direito do trabalho (NR n. 4 aprovada pela Portaria n. 3.214/78 do Ministério do Trabalho). A regra editalícia contida no subitem 9.3.4 do edital, que prevê a comprovação pelas licitantes de possuírem no seu quadro permanente, técnico de segurança do trabalho, no momento da habilitação, configura cláusula restritiva à participação, pois a teor do disposto no § 6° do art. 30 da Lei n. 8.666/93, o edital deveria ter restringido a exigência apenas à apresentação pelas licitantes de declaração formal de disponibilidade do profissional, equipamentos e materiais, quando da execução do contrato.

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Nesse sentido, o Tribunal de Contas da União já se pronunciou: As exigências mínimas relativas a pessoal técnico especializado, considerado essencial para o cumprimento do objeto da licitação, devem ser atendidas mediante a apresentação de relação explícita e da declaração formal da sua disponibilidade, sob as penas cabíveis, em obediência ao § 6° do art. 30 da Lei n. 8.666/93 (Acórdão n. 1.351/2003 — Primeira Câmara).

Tal exigência onera desnecessariamente as licitantes, pois para a simples participação na Concorrência n. 012/2005 teriam que contratar o referido profissional. Destaca-se que o Tribunal de Contas da União também já firmou entendimento no sentido de que os editais devem abster-se de conter exigências de comprovação de capacidade técnico-operacional no momento da habilitação mediante a comprovação de vínculo empregatício: Abstenha-se de exigir que os profissionais listados pelas participantes, para comprovação da capacidade técnico-operacional, tenham, no momento da habilitação, vínculo profissional de qualquer natureza jurídica com a respectiva licitante, uma vez que, de acordo com o inciso I do § 1° do art. 30 da Lei n. 8.666/93, tal exigência somente é cabível para a comprovação da capacidade técnico-profissional, em relação aos profissionais de nível superior, ou outro devidamente reconhecido pela entidade competente, detentores de responsabilidade técnica (Acórdão n. 456/2000 — Plenário).

No presente caso, não se trata de licitação de grande vulto que exigiria elevada qualificação técnica, como alegou o recorrente, pois segundo o art. 6°, V, da Lei n. 129


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8.666/93 consideram-se serviços de grande vulto as contratações cujo valor estimado seja superior a 25 vezes o limite estabelecido na alínea c do inc. I do art. 23 desta Lei. O recorrente alega também que não haveria qualquer irregularidade na exigência contida no subitem 9.3.5 do edital, uma vez que não teria sido exigido das licitantes, no momento da habilitação, que comprovassem a propriedade dos veículos. Realmente o subitem 9.3.5 do edital não exigiu das licitantes, no momento da habilitação, que comprovassem a propriedade dos veículos, apenas a relação de veículos adequados e necessários para atender à logística de distribuição entre as unidades educacionais dos produtos perecíveis e não perecíveis. Quanto à alegação do recorrente de que a exigência de manual de boas práticas prevista no subitem 9.3.6 do edital estaria de acordo com a Portaria n. 1.428/93 do Ministério da Saúde, entendo que, apesar de o inciso IV do art. 30 da Lei n. 8.666/93 prever a necessidade de atendimento à legislação especial, da análise da Portaria n. 1.428/93 do Ministério da Saúde não se verifica a obrigatoriedade de que as empresas que forneçam refeições possuam manual de boas práticas, não assistindo, portanto, razão ao recorrente. Aliás, a exigência de manual de boas práticas como condição para habilitação vem sendo rechaçada pelos Tribunais de Contas pátrios, conforme se verifica das decisões do Tribunal de Contas de São Paulo: Exame prévio de edital — Prestação de serviços de fornecimento de alimentação escolar — Pesquisa de capacidade técnico-operacional do licitante por meio de atestado registrado em Conselho Regional de Nutricionistas — Falta de amparo legal — Exigência de prova de experiência anterior na mesma atividade objeto da futura contratação — Inadmissibilidade — Apresentação de manual de boas práticas de manipulação — Solicitação só formulável ao vencedor da Licitação — Emissão bipartida de notas fiscais — Existência de meio distinto para permitir emprego de recursos provindos do Programa Nacional de Alimentação Escolar — Representação procedente (TCESP — 30826/026/07 — Plenário — sessão de 17/10/2007). Exame Prévio de Edital. A realização da ‘visita técnica’ deve observar o período compreendido entre a abertura do certame e a apresentação das propostas, conforme disposto no § 2° do art. 21 da Lei Federal n. 8.666/93. Exigência de Manual de Boas Práticas só pode ser feita para a vencedora do certame, não sendo cabível na fase de habilitação. Representação procedente. (TCESP —14.323/026/09 — Plenário — sessão de 13/05/2009).

Alega, ainda, o recorrente, que não haveria subjetividade na aferição da proposta mais vantajosa relativamente ao disposto no subitem 1.3 do edital, pois no caso de implantação de cozinha piloto, esta seria feita às expensas do Município.

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No que se refere ao local da prestação dos serviços licitados, efetivamente o subitem 1.3 do edital, ao admitir a instalação de cozinha piloto a critério da administração, apresenta uma descrição imprecisa do objeto licitado, o que sem dúvida alguma, poderia afetar o valor das propostas, mesmo que o custo da instalação corresse às expensas do Município. O Tribunal de Contas da União já editou Súmula n. 177 com o seguinte enunciado: A definição precisa e suficiente do objeto licitado constitui regra indispensável da competição, até mesmo como pressuposto do postulado de igualdade entre os licitantes, do qual é subsidiário o princípio da publicidade, que envolve o conhecimento, pelos concorrentes potenciais das condições básicas da licitação, constituindo, na hipótese particular da licitação para compra, a quantidade demandada uma das especificações mínimas e essenciais à definição do objeto do pregão.

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Relativamente à regra contida no subitem 9.3.3 do edital, de comprovação pelas licitantes de possuírem, no seu quadro permanente, profissional nutricionista, alega o recorrente que tal exigência seria necessária para comprovação de capacidade técnico-operacional e não violaria o caráter competitivo da licitação, em razão de se tratar de vultosa licitação para contratação do serviço de preparo de alimentação para os estudantes do Município. A exigência contida no subitem 9.3.3 do edital, de comprovação, pelas licitantes, de possuírem no seu quadro permanente profissional de nível superior na área de nutrição, empregado ou sócio da empresa, para habilitação, configura cláusula restritiva à ampla participação capaz de afetar o caráter competitivo da licitação. O serviço de preparo de alimentação para os estudantes do Município não prescinde do acompanhamento por profissional nutricionista, contudo, o que se configura irregular é a exigência de que tais profissionais possuam vínculo empregatício ou que sejam sócios da empresa. Segundo Marçal Justen Filho: Não se pode conceber que as empresas sejam obrigadas a contratar, sob vínculo empregatício, alguns profissionais apenas para participar da licitação. Interpretação ampliativa e rigorosa da exigência de vínculo trabalhista se configura como uma modalidade de distorção: o fundamental, para a Administração Pública, é que o profissional esteja em condições de efetivamente desempenhar seus trabalhos por ocasião da execução do futuro contrato. É inútil, para ela, que os licitantes mantenham profissionais de alta qualificação empregados apenas para participar de licitação.1 1

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos. 11. ed. São Paulo: Dialética, 2005, p. 332.

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E acrescenta: Aliás, essa é a interpretação que se extrai do próprio art. 30, quando estabelece que as exigências acerca de pessoal qualificado devem reputarse atendidas mediante mera declaração de disponibilidade apresentada pelo licitante. 2

O recorrente, em suas razões, salienta ainda que inexistiria irregularidade no que se refere aos subitens 17.1, c do edital e 15.1 c da minuta do contrato, pois seria óbvio que a base de cálculo a ser utilizada para a aplicação da multa seria o valor do contrato. O órgão técnico, a fls. 48, se manifestou pela retificação da decisão quanto ao subitem 17.1 c do edital e o item 15.1 c da minuta do contrato, que estabelecem percentual de 5% de multa para a hipótese de inexecução total do contrato. Destaca-se que o edital definiu objetivamente a conduta do contratado a ser punida e o percentual da multa compensatória que seria aplicada no caso de inexecução total do contrato. Apesar de os referidos dispositivos do edital não definirem expressamente a base de cálculo a ser utilizada para a aplicação da multa, por se tratar de multa pela inexecução total do contrato, somente poderia incidir o percentual estipulado sobre o valor total do contrato em razão do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. Os Tribunais pátrios têm reconhecido que a aplicação da pena seja feita levandose em consideração as circunstâncias do caso concreto, conforme se observa da decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais: ADMINISTRATIVO — INEXECUÇÃO PARCIAL DE CONTRATO DE FORNECIMENTO DE PRODUTOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA — APLICAÇÃO DE PENA — DISCRICIONARIEDADE SEGUNDO A GRAVIDADE DA INFRAÇÃO — DOSIMETRIA — PROPORCIONALIDADE. Restando pactuado multa de 10% sobre o valor do contrato administrativo para o caso de inadimplência da contratada, é razoável que, tendo havido execução parcial, a multa seja proporcional, ou seja, incida apenas sobre o valor da obrigação não cumprida na forma e na especificidade do contrato, ainda mais quando parte expressiva do objeto foi executada a tempo e modo. (Apelação Cível n. 1.0027.08.143449-3/001 — Desembargador Relator Edilson Fernandes — Julgamento: 05/05/2009 — Publicado em: 19/06/2009)

De toda forma, somente se houvesse a inexecução total do contrato é que haveria a aplicação da referida multa pela administração municipal. Sendo assim, neste ponto, revejo o posicionamento anterior para entender como sanada a irregularidade. 2

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JUSTEN FILHO, op. cit., p. 333.


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No que tange à cumulatividade de exigências econômico-financeiras, o recorrente apresenta alegação no sentido de que seria autorizada pela Lei n. 8.666/93 e que tal regra serviria para cumprir a finalidade da licitação de obtenção da proposta mais vantajosa. A cumulatividade de exigências econômico-financeiras prevista nos subitens 9.4.3, 9.4.4 e 9.4.8 não encontra amparo na Lei n. 8.666/93, que no § 2° do art. 31 estabelece: Art. 31. A documentação relativa à qualificação econômico-financeira limitarse-á a: [...] § 2° A Administração, nas compras para entrega futura e na execução de obras e serviços, poderá estabelecer, no instrumento convocatório da licitação, a exigência de capital mínimo ou de patrimônio líquido mínimo, ou ainda as garantias previstas no § 1° do art. 56 desta Lei, como dado objetivo de comprovação da qualificação econômico-financeira dos licitantes e para efeito de garantia ao adimplemento do contrato a ser ulteriormente celebrado.

Pareceres e decisões

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[...]

Como se vê, o Edital da Concorrência n. 012/2005 violou o dispositivo supratrasladado, na medida em que exigiu, cumulativamente, garantia de proposta e capital mínimo de 10% do valor estimado do contrato, o que se afigura como cláusula restritiva à ampla participação, não cumprindo, portanto, a finalidade da licitação de obtenção da proposta mais vantajosa, conforme entendimento por mim explicitado no voto do Processo n. 751.534. Denúncia. Exigência cumulativa de requisitos do § 2° do art. 31 da Lei de Licitações. [...] merece registro a decisão proferida pelo Plenário do egrégio Tribunal de Contas da União, consubstanciada no Acórdão n. 170/2007, de relatoria do Ministro Valmir Campelo: ‘É ilegal a exigência simultânea, nos instrumentos convocatórios, de requisitos de capital social mínimo e garantias para a comprovação [...] da qualificação econômico-financeira dos licitantes’. Na mesma esteira, aquela Corte de Contas manifestou, em linhas gerais, no Acórdão n. 808/2003 e na Decisão n. 681/1998, que as hipóteses previstas em lei não são cumulativas, mas permitem, tão somente, uma atuação discricionária do gestor na escolha da melhor forma de comprovar a qualificação econômico-financeira dos licitantes. Assim, não podem ser utilizadas de forma concomitante, sob pena de transformar a discricionariedade legítima em arbitrariedade vedada por lei. Frisou-se, ainda, que o objetivo da lei foi evitar que fossem efetuadas imposições demasiadas, que porventura ensejassem a inibição do caráter competitivo do certame. Ademais, vale citar decisum do Superior Tribunal de Justiça, no seguinte sentido: ‘O art. 31, § 2°, da Lei de Licitações determina que a Administração eleja um dos três requisitos, na fase de habilitação, em termos de exigência de comprovação da qualificação econômicofinanceira da empresa licitante, para depois estabelecer que tal requisito

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também será suficiente a título de garantia ao contrato a ser posteriormente celebrado’ (Resp n. 822.337/MS, 1ª Turma, Relator Ministro Francisco Falcão, DJ 1°/06/2006, p. 168). (Denúncia n. 751.534. Relator Conselheiro Eduardo Carone Costa, sessão do dia 05/06/2008).

Em outra vertente, o recorrente alega que a exigência de certidão negativa de protesto seria viável para a demonstração da regularidade econômico-financeira das licitantes e que tal exigência teve como objetivo confirmar a saúde financeira das licitantes para proteger o interesse público. Entendo que a exigência de certidão negativa de protesto também não encontra respaldo na Lei n. 8.666/93. A documentação relativa à qualificação econômicofinanceira deve se limitar à apresentação da documentação prevista no art. 31 da Lei n. 8.666/93. Não pode a Administração fazer exigências não previstas em lei, sob o argumento de confirmar a saúde financeira das licitantes para proteger o interesse público, pois regras editalícias dessa natureza afrontam o caráter competitivo da licitação. Por fim, alega o recorrente que não haveria irregularidade no contrato, uma vez que se trata de prestação contínua de serviço indispensável para a administração, o que afastaria a alegação de violação ao art. 57 da Lei de Licitações. Ao meu sentir, os serviços contratados são, sem dúvida alguma, de natureza contínua e indispensáveis para a administração, sendo admitida a fixação de prazo contratual superior a 12 meses, a teor do disposto no art. 57, II, da Lei n. 8.666/93. Quanto à realização de inspeção in loco para a verificação da execução do contrato e possível irregularidade relativa ao prazo contratual, por se tratar de prestação contínua de serviço indispensável para a administração, entendeu o órgão técnico a fls. 57 que a determinação contida no acórdão recorrido poderia ser revista, bem como o Ministério Público a fls. 75 do parecer ministerial também opinou pela inexistência de irregularidade no prazo contratual inicialmente fixado e pela desnecessidade da diligência determinada pela 2ª Câmara. Neste ponto, comungo do entendimento do órgão técnico e do Ministério Público, pois como o prazo contratual já expirou também entendo ser desnecessária a realização de inspeção in loco. Por outro lado, a multa de R$ 8.000,00 foi aplicada ao recorrente em razão de todas as irregularidades contidas no Edital da Concorrência n. 012/2005. Entendo que, em sede recursal, é possível a revisão da multa aplicada em razão da aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, conforme previsto 134


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no art. 320, do RITCEMG. Segundo o Professor José dos Santos Carvalho Filho “[...] o Poder Público, quando intervém das atividades sob seu controle, deve atuar porque a situação reclama realmente a intervenção, e esta deve processar-se com equilíbrio, sem excessos e proporcionalmente ao fim a ser atingido.”3 Do acórdão recorrido verifica-se que a multa originalmente aplicada foi mensurada tendo em vista os nove subitens do Edital da Concorrência n. 012/2005 considerados irregulares pela 2ª Câmara. Com a revisão do posicionamento em relação aos subitens 9.3.5 e 17.1 c do edital e 15.1, c do contrato, assim como o prazo contratual inicialmente estabelecido, a multa também deve guardar proporcionalidade, motivo pelo qual reduzo a multa para R$ 5.000,00. Diante de todo o exposto, dou provimento parcial ao Recurso Ordinário interposto para reformar a decisão recorrida e, consequentemente, considerar regulares os subitens 9.3.5 e 17.1, c do edital e 15.1, c da minuta do contrato, assim como o prazo contratual inicialmente estabelecido, reduzindo a multa aplicada para R$ 5.000,00, e tornando sem efeito a decisão que determinou a realização de inspeção in loco no Município de Uberaba.

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É o meu entendimento.

O Recurso de Revisão em epígrafe foi apreciado pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 30/06/10 presidida pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada; presentes o Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade, Conselheiro Substituto Licurgo Mourão e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram o voto exarado pelo relator, Conselheiro Eduardo Carone Costa.

3

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 33.

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Poder Legislativo municipal: observância aos novos limites de despesas estatuídos pela Emenda Constitucional n. 58/2009 CONSULTA N. 811.970

[...] como bem salientou a douta Auditoria, em seu parecer, esteja ou não a Lei Orçamentária de 2010 do Município de São Francisco de Paula obedecendo aos novos parâmetros constitucionais, a execução orçamentária há de observá-la, ou seja, deve ser respeitado o limite de 7% com o total da despesa do Poder Legislativo municipal, previsto no art. 29-A da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 58/2009. RELATOR: CONSELHEIRO ELMO BRAZ

RELATÓRIO Consulta formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de São Francisco de Paula, Sr. Pedro Martins Gomes, solicitando informações sobre a Emenda Constitucional n. 58 que altera o número de vereadores e, consequentemente, o percentual de repasse do Executivo para o Legislativo visto que, à época da consulta (27/10/09), estavam em fase de aprovação da LOA e a previsão orçamentária para o exercício de 2010 naquele Município estava fixada em 8%. A dúvida do consulente é se aprovam esse percentual e durante a execução fazem a adequação ou se já devem aprová-lo em 7%.

136

ASSCOM TCEMG

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Limite de despesas — Observância das alterações impostas pela Emenda Constitucional n. 58/2009 para a execução do orçamento de 2010 — Adequação do repasse financeiro, do Executivo ao Legistativo, aos novos parâmetros constitucionais.


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A Auditoria se manifestou a fls. 07-10, por meio do Auditor Gilberto Diniz, no sentido de que esteja ou não a Lei Orçamentária de 2010 obediente aos novos parâmetros constitucionais, a execução orçamentária há de observá-los. É o relatório.

PRELIMINAR Conheço da consulta por ser a parte legítima e a dúvida levantada de repercussão orçamentária, financeira, contábil, patrimonial e operacional, sendo, portanto, afeta à competência deste Tribunal.

MÉRITO

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A dúvida do consulente diz respeito à Emenda Constitucional n. 58, promulgada em 23/09/2009 e publicada no Diário Oficial da União de 24/09/2009, cujos arts. 1° e 2° se aplicam ao presente caso e dispõem: Art. 1° O inciso IV do caput do art. 29 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 29 [...] [...] IV — para a composição das Câmaras Municipais será observado o limite máximo de: a) 9 (nove) Vereadores nos Municípios de até 15.000 (quinze mil) habitantes; [...] Art. 2° O art. 29-A da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 29-A — O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5° do art. 153 e nos arts. 158 e 159, efetivamente realizado no exercício anterior: I — 7% (sete por cento) para Municípios com população de até 100.000 (cem mil) habitantes;

De acordo com o art. 3° da citada Emenda Constitucional, o disposto no art. 1° entra em vigor a partir do processo eleitoral de 2008, e o disposto no art. 2° entra em vigor a partir de 1° de janeiro do ano subsequente ao da promulgação da mesma. Pelo exposto, entendo que o novo limite com o total dos dispêndios do Poder Legislativo municipal deve ser observado a partir de 1° de janeiro de 2010. 137


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Quando a consulta foi formulada e protocolada neste Tribunal (outubro de 2009), o consulente informou que estavam em fase de aprovação da LOA. Assim, a essa altura (abril de 2010) a citada Lei Orçamentária já deve ter sido aprovada. No entanto, como bem salientou a douta Auditoria, em seu parecer, esteja ou não a Lei Orçamentária de 2010 do Município de São Francisco de Paula obedecendo aos novos parâmetros constitucionais, a execução orçamentária há de observá-la, ou seja, deve ser respeitado o limite de 7% com o total da despesa do Poder Legislativo municipal, previsto no art. 29-A da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 58/2009. É o meu parecer. Apenas a título de ilustração, destaco que o Supremo Tribunal Federal, em 11/11/09, referendando decisão monocrática, suspendeu liminarmente apenas os efeitos do inciso I do art. 3° da Emenda Constitucional n. 58, de 23/09/09, que retroagiu ao processo eleitoral de 2008 a alteração do número de vereadores, até o julgamento final da ADI n. 4307-MC/DF e da ADI n. 4310-MC/DF, nos termos do voto da relatora, Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha. É o meu parecer.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno, na sessão do dia 23/06/10, presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Elmo Braz. Impedido o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Impossibilidade de prorrogação contratual fundamentada em interpretação extensiva do inciso II do art. 57 da Lei de Licitações CONSULTA N. 833.225

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Aquisição de bens — Prorrogação contratual fundamentada em interpretação extensiva do art. 57, II, da Lei n. 8.666/93 — Impossibilidade — Dispositivo restrito à prestação de serviços — Contratos administrativos adstritos à vigência dos respectivos créditos orçamentários. [...] descabe cogitar de dar interpretação extensiva aos incisos do retrotranscrito art. 57, aí incluído o inciso II, explicitamente referido na consulta. Nele, a expressão ‘prestação de serviços’ há de ser tomada no sentido estrito, de obrigação de fazer, não podendo, por isso, abranger o significado — que lhe pretendeu atribuir o consulente — de fornecimento ininterrupto de bens [...] RELATOR: CONSELHEIRO ELMO BRAZ

RELATÓRIO Tratam os autos de consulta formulada pelo Controlador Interno do Município de Brumadinho, Sr. Warley José Rocha, que formula as seguintes questões: a) É possível que seja adotada a interpretação extensiva do inciso II do art. 57 da Lei Federal n. 8.666/93, em sua atual redação, a fim de que as situações de fornecimento contínuo de bens encontrem melhor situação de execução? b) Havendo tal possibilidade, como deve ser a instrução do processo de prorrogação contratual?

A Auditoria se manifestou a fls. 09-11, por meio do Auditor Gilberto Diniz que concluiu no sentido de que, em matéria de duração de contratos administrativos, a regra geral está inserida no caput do art. 57 da Lei n. 8.666/93 e as exceções estão contempladas nos respectivos incisos, os quais devem ser interpretados restritivamente. É o relatório. 139


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PRELIMINAR Sendo a parte legítima, nos termos do inciso XI do art. 210 da Resolução n. 12/2008, além da matéria abranger dúvida arrolada entre aquelas de competência legal desta Casa, conheço da presente consulta.

MÉRITO Adoto o irretocável parecer da douta Auditoria para responder a esta consulta, nos seguintes termos: Os próprios termos da consulta sugerem seja buscada a pretendida resposta numa interpretação do art. 57 da Lei n. 8.666/93. Transcrevo, por isso, os respectivos caput e incisos: ‘Art. 57. A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: I — aos projetos cujos produtos estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual, os quais poderão ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha sido previsto no ato convocatório; II — à prestação de serviços a serem executados de forma contínua, que poderão ter a sua duração prorrogada por iguais e sucessivos períodos com vistas à obtenção de preços e condições mais vantajosas para a administração, limitada a sessenta meses; III — (Vetado) IV — ao aluguel de equipamentos e à utilização de programas de informática, podendo a duração estender-se pelo prazo de até 48 (quarenta e oito) meses após o início da vigência do contrato.’ Nota-se que o dispositivo está estruturado sob forma de uma regra geral (inserta na cabeça do artigo) a que se acoplaram algumas exceções (contempladas nos incisos). A regra geral é, perceba-se, que a duração dos contratos administrativos não pode sobejar à vigência dos respectivos créditos orçamentários. As exceções existem, mas — porque exceções são — têm de ser interpretadas segundo o preceito clássico ‘interpretam-se as exceções estritissimamente’ (CARLOS MAXIMILIANO, Hermenêutica e aplicação do direito, 15. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 225-238). Nessa linha de raciocínio, descabe cogitar de dar interpretação extensiva aos incisos do retrotranscrito art. 57, aí incluído o inciso II, explicitamente referido na consulta. Nele, a expressão ‘prestação de serviços’ há de ser tomada no sentido estrito, de obrigação de fazer, não podendo, por isso, abranger o significado — que lhe pretendeu atribuir o consulente — de ‘fornecimento ininterrupto de bens, alguns essenciais à manutenção de atividades específicas como, por exemplo, na área de saúde’ (sic).

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Registro, ademais, que o elastecimento do conceito de prestação de serviços para abarcar a compra de bens, por serem eles essenciais à manutenção de hospitais e centros de saúde, seria, além de ofensivo à melhor técnica hermenêutica, também inconveniente sob o ponto de vista prático, pois nenhuma razão plausível poderia ser oposta à extensão do mesmo critério às compras de muitíssimos outros bens, também adquiridos pela Administração Pública sob o signo da essencialidade. Esclareço, finalmente, que, na esteira das considerações feitas, descabe cogitar da forma de instrução do processo de prorrogação contratual, tema do segundo quesito proposto pelo consulente.

Nestes termos, respondo à consulta formulada pelo controlador interno da Prefeitura de Brumadinho.

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A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 07/07/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheiro Substituto Hamilton Coelho e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Elmo Braz. Impedido o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Possibilidade de concessão de 13° salário a Vereadores CONSULTA N. 803.574

[...] a partir de uma perspectiva humanista/garantista do texto constitucional, que se coaduna com o ideal de um Estado Democrático de Direito e enseja uma hermenêutica ampliativa da expressão trabalhadores, prevista no caput do art. 7° da CR/88, defendo que o décimo terceiro salário deverá ser concedido aos agentes políticos. Acrescento, ainda, que o dispositivo constitucional não fez qualquer distinção, dentro da categoria dos agentes públicos, entre os agentes políticos e os servidores públicos (titulares de cargo ou ocupantes de emprego público).

ASSCOM TCEMG

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Concessão de décimo terceiro salário a vereadores — Possibilidade — Regulamentação em resolução ou em lei em sentido estrito de iniciativa privativa da Câmara Municipal — Obediência ao princípio da anterioridade — Súmula n. 91 do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais — Observância dos limites constitucionais referentes ao total da despesa do Legislativo municipal e ao subsídio dos vereadores.

RELATOR: CONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS ANDRADA

RELATÓRIO Trata-se de consulta formulada pelo Sr. Elvis Lúcio Barbosa Lima, Presidente da Câmara Municipal de Águas Formosas. O consulente inicia seu questionamento relatando que o Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em 23 de agosto de 2001, firmou, com a Assembleia Legislativa do Estado, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), por meio do qual se acordou o pagamento de um subsídio extra aos deputados estaduais, a ser efetuado ao final de cada ano, no mês de dezembro. Alegou, ainda, o consulente que o benefício foi denominado de parcela pelo exercício do mandato parlamentar no ano e que, nos termos estipulados no TAC, os deputados investidos em cargo de Secretários Estaduais e aqueles licenciados não fariam jus ao dito benefício. 142


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Em seguida, o consulente informou que o Ministério Público estadual nega qualquer vinculação da parcela prevista no TAC com o décimo terceiro salário bem como a substituição deste por aquela, tendo em vista que o pagamento da parcela somente será efetuado àqueles deputados que efetivamente exerceram o mandato parlamentar durante o ano. O consulente também destacou que o Ministério Público estadual vem arguindo, por meio de várias ADINs, a constitucionalidade do pagamento de décimo terceiro salário aos agentes políticos municipais. Ao final, indagou se é possível instituir um subsídio extra aos vereadores, denominado de parcela pelo exercício do mandato parlamentar, a ser pago a cada ano, no mês de dezembro, mediante a observância dos seguintes requisitos: criação por lei específica; previsão e dotação orçamentária própria e obediência ao princípio da anterioridade.

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É o relatório.

PRELIMINAR Verifico, nos termos constantes da petição inicial, que o consulente é parte legítima para formular a presente consulta, e que o seu objeto refere-se a matéria relevante, de competência desta Corte, nos termos dos arts. 210 e 212 do RITCEMG. Conheço, portanto, desta consulta.

MÉRITO Inicialmente, Srs. Conselheiros, farei uma análise doutrinária e jurisprudencial a respeito da possibilidade de se conceder décimo terceiro salário aos agentes políticos.1 Na doutrina pátria, José Rubens Costa2 assevera que o art. 39, § 4°, da CR/88 não impede a decomposição da remuneração dos agentes políticos em mais de doze parcelas anuais, pois a figura do “subsídio fixado em parcela única” serve apenas para “atribuir um valor numérico como remuneração do agente político, para observância de teto máximo do subsídio de todos os agentes políticos e dos servidores públicos” (art. 37, XI, da CR/88). 1

2

Sobre os agentes políticos municipais, Petrônio Braz ensina que: “O Governo do Município é exercido por agentes políticos (Pre feito, Secretários e Vereadores), auxiliados pelos servidores públicos efetivos e comissionados. O Prefeito e os Vereadores ocupam cargos eletivos e os Secretários, cargos de confiança, de recrutamento amplo. A eleição do Prefeito importa a do VicePrefeito com ele registrado (‑art. 29, II, e art. 77, § 1°, da CF).” (Remuneração dos agentes políticos municipais para a próxima legislatura. Jurídica Administração Municipal, Salvador, n. 3, p. 30-36, mar. 2000). COSTA, José Rubens. Manual do prefeito e do vereador. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 107.

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Em sentido contrário ao doutrinador acima citado, Dyllan Leandro Christofaro3 assevera que o Presidente da República, Vice-Presidente, Governadores e ViceGovernadores dos Estados e do Distrito Federal, Prefeitos e Vice-Prefeitos, Senadores, Deputados Federais, Estaduais, Distritais e Vereadores são agentes políticos que exercem mandato eletivo e NÃO cargo ou emprego público. Continua seu raciocínio aduzindo que, como esses agentes políticos não são ocupantes de cargo ou emprego público, não estão inseridos nos limites do art. 39, § 3°, da CR/88, consequentemente, não fazem jus aos direitos sociais previstos nos incisos IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX do art. 7° da CR/88, dentre os quais se encontra o décimo terceiro salário (inciso VIII). Por fim, o autor realça que não poderá a Lei Orgânica do Município estender esses direitos sociais aos agentes políticos, caso contrário estará eivada do vício de inconstitucionalidade. Feitas essas considerações doutrinárias, passo agora ao exame da jurisprudência do TJMG, STJ, STF e, ao final, da jurisprudência desta Corte de Contas. No âmbito do TJ mineiro, inexiste entendimento pacificado acerca da matéria tanto no controle de constitucionalidade difuso quanto no concentrado, conforme será demonstrado a seguir: Na Apelação Cível n. 1.0693.05.034387-2/001,4 o TJMG manifestou-se pela impossibilidade de o agente político receber 13° salário, na qualidade de servidor público, titular de cargo público, nos termos do art. 39, § 3°, da CR/88. Contudo, nessa mesma decisão, o Tribunal ressalvou, expressamente, que o agente político faria jus ao décimo terceiro salário se houvesse previsão em lei autorizativa. Em sentido divergente da decisão acima citada, tem-se o Reexame Necessário n. 1.0155.02.001918-0/001(1),5 no qual a 3ª Câmara Cível, ao confirmar sentença proferida em Ação Civil Pública, negou vigência à Lei do Município de Caxambu (Lei n. 1.610/2002), posicionando-se, contrariamente, à concessão da gratificação natalina ao Prefeito, Vice-Prefeito e Vereadores daquele Município. Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, primeiramente, destaco que, na ADI n. 1.0000.07.452524-7/000(1),6 a Corte Superior do Tribunal de Justiça declarou 3

CHRISTOFARO, Dyllan Leandro. Revista do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, n. 120, p. 50-51, nov./07-jan./08.

4

Apelação Cível n. 1.0693.05.034387-2/001 (7ª Câmara Cível, Desembargadora Relatora Heloisa Combat, data do julgamento: 19/02/2008). No mesmo sentido, encontram-se a Apelação Cível/Reexame Necessário n. 1.0417.04.000881-1/001 (6ª Câmara Cível, Desembargador Relator Maurício Barros, data do julgamento: 17/10/2006), a Apelação Cível n. 1.0358.04.003693-3/001 (6ª Câmara Cível, Desembargador Relator José Domingues Ferreira Esteves, data do julgamento: 23/05/2006), Apelação Cível/ Reexame Necessário n. 1.0344.06.032526-5/001 (7ª Câmara Cível, Desembargadora Relatora Heloisa Combat, data do julgamento: 01/08/2008) e Apelação Cível n. 1.0629.07.036122-1/001 (3ª Câmara Cível, Desembargador Relator Kildare Carvalho, data do julgamento: 10/04/2008).

5

Reexame Necessário n. 1.0155.02.001918-0/001(1) (3ª Câmara Cível, Desembargador Relator Kildare Carvalho, data do julgamento: 27/04/2006). No mesmo sentido, encontra-se o Agravo de Instrumento n. 1.0701.08.237144-7/001(1) (2ª Câmara Cível, Desembargador Relator Carreira Machado, data do julgamento: 10/02/2009).

6

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ADI n. 1.0000.07.452524-7/000(1), Desembargador Relator Roney Oliveira, data do julgamento: 07/04/2008.


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a inconstitucionalidade do art. 2° da Lei Complementar n. 026, de 04/09/2004, o qual institui o décimo terceiro salário ao Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários Municipais do Município de Patrocínio. Saliento que, neste julgado, a decisão não foi unânime, ficando vencidos os Desembargadores Reynaldo Ximenes Carneiro, Almeida Melo, Brandão Teixeira, José Domingues Ferreira Esteves, Duarte de Paula, Alvimar de Ávila, Edelberto Santiago, Sérgio Resende e Dárcio Lopardi Mendes. Na ADI n. 1.000008486655-7/000,7 o TJMG, em medida cautelar, determinou a suspensão do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Todavia, posteriormente, o STF, por meio de decisão monocrática, na Reclamação n. 7.396,8 suspendeu mencionada ADI, bem como os efeitos da cautelar concedida, sob o argumento de que os tribunais estaduais não possuem competência para processar e julgar representação de inconstitucionalidade na hipótese de o dispositivo da Constituição estadual — supostamente violado por lei municipal — fazer remissão à Constituição Federal.

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Diferentemente das ADIs acima mencionadas, o TJMG, na ADI n. 1.0000.09.4982956/000(1),9 não deferiu medida cautelar de suspensão de eficácia de dispositivos legais que regulamentam a concessão do décimo terceiro salário aos agentes políticos do Município de Juiz de Fora. Analisando os julgados do STJ a respeito da matéria, verifica-se que no Recurso Especial n. 801.160/DF,10 no Recurso Especial n. 837.188/DF11 e no Agravo Regimental interposto no Recurso Especial n. 742.171/DF,12 o Tribunal decidiu que, a despeito de o art. 39, § 3°, da CR/88 não se aplicar aos agentes políticos, a estes poderão ser conferidos direitos sociais, como o décimo terceiro salário, desde que haja expressa autorização em lei. Em pesquisa à jurisprudência do STF, pode-se observar que o Tribunal ainda não proferiu decisão definitiva de mérito quanto à extensão do direito social ao décimo terceiro salário aos agentes políticos, seja em controle difuso, seja em controle concentrado de constitucionalidade. 7

ADI n. 1.000008486655-7/000, Desembargador Relator Alexandre Victor de Carvalho, data do julgamento: 10/12/2008. Informa-se que, na ADI n. 1.0000.09.493035-1/000(1), o TJMG também, em medida cautelar, suspendeu o pagamento do décimo terceiro salário aos agentes políticos do Município de Tupaciguara. Em face desta decisão, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ajuizou a ADPF n. 193, requerendo liminar para suspender referida ADI bem como os efeitos da cautelar nela concedida. A Ministra Relatora, Cármen Lúcia, considerando as peculiaridades do caso, aplicou, por analogia, à ADPF algumas regras da Lei n. 9.868/1999, a qual dispõe sobre o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade.

8

Reclamação n. 7.396, Ministro Relator Menezes Direito, data da decisão: 17/12/2008. Informa-se que o Município de Santa Bárbara (MG) ajuizou a Reclamação n. 8.642 em face de decisão do TJMG, que, nos autos da ADI n. 1.0000.09.499735-0/000, deferiu medida cautelar para suspender lei daquele Município. O Município reclamante solicitou, em liminar, a suspensão dos efeitos da cautelar concedida. No entanto, como o TJMG noticiou ao STF que, em juízo de retratação, a cautelar foi revogada, com fundamento no pronunciamento proferido na Reclamação n. 7.396, o pedido do reclamante foi julgado prejudicado.

9

ADI n. 1.0000.09.498295-6/000(1), Desembargador Relator Almeida Mello, data do julgamento: 01/06/2009.

10

REsp. n. 801.160/DF, Quinta Turma, Ministra Relatora Laurita Vaz, data do julgamento: 16/04/2009.

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REsp. n. 837.188/DF, Sexta Turma, Ministro Relator Hamilton Carvalhido, data do julgamento: 26/02/2008.

12

AgRg no REsp. n. 742.171/DF, Quinta Turma, Ministro Relator Felix Fischer, data do julgamento: 03/02/2009.

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Pelos fatos acima expostos, depreende-se que a constitucionalidade da concessão do décimo terceiro salário aos agentes políticos encontra divergência na doutrina e na jurisprudência pátrias. Nesses termos, entendo que o enunciado de Súmula n. 9113 deverá ser mantido até a apreciação da matéria em caráter definitivo pelo STF. O enunciado de Súmula n. 91 admite o pagamento do décimo terceiro salário aos agentes políticos, mediante previsão em lei, votada na legislatura anterior para produzir efeitos na subsequente, devendo ser respeitados os limites constitucionais referentes ao total da despesa do Legislativo municipal e ao subsídio dos vereadores. O entendimento consolidado no enunciado continua a ser aplicado em vários julgados desta Casa.14 Portanto, é pacífico na jurisprudência deste Tribunal o reconhecimento do décimo terceiro salário como direito dos agentes políticos. Nesta seara, comungo do posicionamento de que o benefício em exame é devido por força do art. 7°, VIII, da CR/88. A propósito, Alcimar Lobato da Silva15 leciona que: “O que fica claro, pela simples leitura do dispositivo constitucional, (art. 7°, VIII, da CR/88) é que o direito à percepção da décima-terceira remuneração foi concedido a todos os trabalhadores e servidores públicos civis, lato sensu, alcançando desta forma os agentes políticos”, até porque a leitura dos direitos fundamentais deve ser ampliativa e não restritiva. Desse modo, a partir de uma perspectiva humanista/garantista do texto constitucional, que se coaduna com o ideal de um Estado Democrático de Direito e enseja uma hermenêutica ampliativa da expressão trabalhadores, prevista no caput do art. 7° da CR/88, defendo que o décimo terceiro salário deverá ser concedido aos agentes políticos. Acrescento, ainda, que o dispositivo constitucional não fez qualquer distinção, dentro da categoria dos agentes públicos, entre os agentes políticos e os servidores públicos (titulares de cargo ou ocupantes de emprego público). Destaco excerto do voto do Desembargador do TJMG, Almeida Melo, proferido, em sede de liminar, nos autos da ADI n. 1.0000.09.498295-6/000(1),16 que sintetiza com propriedade este entendimento:

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13

A redação atual do enunciado de Súmula n. 91 do TCEMG foi aprovada na sessão do Pleno de 10/12/1991 e publicada no MG em 27/12/1991. O enunciado foi sobrestado na sessão do Pleno de 19/11/2008, com publicação da decisão em 26/11/2008. Posteriormente, o sobrestamento foi cancelado na sessão do Pleno de 28/10/2009, restabelecendo-se a vigência do enunciado. A decisão foi publicada em 04/11/2009.

14

A título de exemplo, citam-se as Prestações de Contas Municipais n. 677.903 (sessão de 05/10/2006); 660.093 (sessão de 27/08/2009); 678.106 (sessão de 18/09/2008) e as Consultas n. 718.734 (sessão de 28/03/2007); 696.256 (sessão de 03/08/2005); 684.655 (sessão de 01/09/2004); 665.077 (sessão de 18/08/2004) e 675.616 (sessão de 12/03/2003).

15

SILVA, Alcimar Lobato da. Fixação de 13° subsídio aos vereadores. In: CONGRESSO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS DO BRASIL, 22, 2003, João Pessoa. Anais: Congresso Ministro Victor Amaral Freire. João Pessoa: Tribunal de Contas do Estado, 2004. v. 2, p. 124-129.

16

ADI n. 1.0000.09.498295-6/000(1), Desembargador Relator Almeida Melo, data do julgamento: 01/06/2009.


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[...] Considero que o acréscimo da gratificação de natal não tem caráter de adicional, abono, prêmio, verba de representação nem de outra espécie remuneratória assemelhada a esses itens (CF, art. 39, § 4°). O 13° salário é conquista do trabalhador (CF, art. 7°, VIII). Os direitos sociais conquistados não devem ter recuo. É preciso, na interpretação da Constituição, ter o cuidado com o alcance que esta interpretação pode acarretar. Tenho entendido que falta sustentação à tese que está na contramão, não só dos direitos sociais conquistados, como, também, das possibilidades de alteração constitucional.

A argumentação expendida, Srs. Conselheiros, para mim é por si só suficiente para respaldar o pagamento do décimo terceiro salário aos edis, sob a roupagem formal que se queira dar. Entretanto, para agregar conteúdo ao debate, gostaria de adentrar um pouco mais nos fundamentos adotados pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais para se questionar a legitimidade do pagamento do décimo terceiro salário aos agentes políticos.

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Primeiro, assevero que a noção conceitual de agente político não é pacífica na doutrina administrativista. Celso Antônio Bandeira de Mello17 e José dos Santos Carvalho Filho18 seguem uma linha mais restrita na conceituação da expressão, manifestandose no sentido de que ela abrange apenas: os chefes do Poder Executivo (Presidente, Governadores, Prefeitos e os vices respectivos), seus auxiliares imediatos (Ministros de Estado, Secretários Estaduais e Secretários Municipais) e os membros do Poder Legislativo (Senadores, Deputados Federais, Deputados Estaduais e Vereadores). Contrariamente ao posicionamento dos autores acima mencionados, Hely Lopes Meirelles19 confere maior amplitude à categoria dos agentes políticos, ensinando que estão inseridos nessa qualificação: [...] os Chefes do Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imediatos (Ministros e Secretários de Estado e de Município); os membros das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e Vereadores); os membros do Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos); os membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de 17 18

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Obs: José dos Santos Carvalho Filho, ao se posicionar contrariamente à classificação dos membros da Magistratura, do Ministério Público e dos Tribunais de Contas como agentes políticos, aduz que: “[...] parece-nos que o que caracteriza o agente político não é o só fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traçar os destinos do país. Complementa o autor dizendo que: [...] ao contrário do que ocorre com os legítimos agentes políticos, cuja função é transitória e política, sua vinculação ao Estado tem caráter profissional e de permanência e os cargos que ocupam não resultam de processo eletivo, e sim, como regra, de nomeação decorrente de aprovação em concurso público. Não interferem diretamente nos objetivos políticos, como o fazem os verdadeiros agentes políticos. [...]. Não se nos afigura adequada, com efeito, sua inclusão como agentes políticos do Estado. Mais apropriado é inseri-los como servidores especiais dentro da categoria genérica de servidores públicos [...].”

19

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

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atribuições governamentais, judiciais ou quase judiciais, estranhas ao quadro do serviço público (p. 78).

Com essas considerações, proponho as seguintes reflexões: a) Caso se considere uma denominação mais abrangente de agente político e se acolha as alegações invocadas pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais quanto à impossibilidade de se conceder o décimo terceiro salário àquela categoria de agente público, devemos concluir que o benefício não poderá ser conferido aos agentes políticos em sentido estrito e tampouco aos membros do próprio Ministério Público, dos Tribunais de Contas, da Magistratura20 e aos representantes diplomáticos. Exponho, nesse sentido, trecho do voto do Desembargador do TJMG, Brandão Teixeira, proferido no Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade n. 1.0042.03.004956-5/002:21 Admitir a alegação de que o décimo terceiro não é devido aos vereadores implicaria reconhecer, consequentemente, a verossimilhança do argumento de que os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário também não poderiam receber tal verba, na medida em que o artigo 39, § 4° e § 6°, da Constituição da República, insinua que eles se incluem entre os agentes políticos.

b) Mesmo que se confira um sentido mais restrito à expressão agente político, ainda assim não se justifica o tratamento diferenciado dado aos vereadores, tendo em vista que: b.1) em âmbito municipal, o Prefeito, Vice-Prefeito e Secretários municipais são aquinhoados com o benefício, conforme entendimento consolidado no enunciado de Súmula n. 91 do TCEMG, o qual foi ratificado nas seguintes consultas: Consultas n. 718.734 (sessão de 28/03/2007); 696.256 (sessão de 03/08/2005); 684.665 (sessão de 01/09/2004); 665.077 (sessão de 18/08/2004) e 675.616 (sessão de 12/03/2003). b.2) no âmbito do Estado de Minas Gerais, o Governador, o Vice-Governador, os Secretários estaduais e os membros da Assembleia Legislativa também recebem o décimo terceiro salário.22

148

20

O STF, no RE n. 228.977/SP (Ministro Relator Néri da Silveira, 2ª Turma, data do julgamento: 05/03/2002), referiu-se aos magistrados como ‘agentes políticos, investidos para o exercício de atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação específica’ (apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 433).

21

Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade n. 1.0042.03.004956-5/002, Desembargador Relator Herculano Rodrigues, data do julgamento: 12/08/2009. Informa-se que, nesse processo, a Corte Superior do TJMG decidiu, por maioria, pelo acolhimento da arguição, declarando, incidentalmente, a inconstitucionalidade da Emenda n. 08, de 18 de dezembro de 2002, à Lei Orgânica do Município de Arcos, a qual prevê a concessão da gratificação natalina aos agentes políticos daquele Município.

22

Em relação ao pagamento do décimo terceiro salário ao Governador, Vice-Governador, Secretários Estaduais e membros da Assembleia Legislativa, José Rubens Costa (13ª remuneração dos agentes políticos municipais, disponível em: <http://www. ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/artigos/032010.pdf>, acesso em: 05/04/2010) assevera que o benefício encontra-se


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b.3) no âmbito federal, o Presidente, o Vice-Presidente, os Ministros de Estado23 e os membros do Congresso Nacional igualmente fazem jus, no mês de dezembro de cada ano legislativo, à importância correspondente à parcela do subsídio. Em relação aos membros do Congresso Nacional, o pagamento da vantagem será proporcional ao efetivo comparecimento do parlamentar às sessões deliberativas realizadas até 30 de novembro. Além disso, os Senadores e os Deputados Federais possuem o direito de receber, no início e no final de cada ano legislativo, ajuda de custo correspondente à parcela do subsídio.24 previsto na Resolução n. 5.154, de 30/12/1994, especificamente em seu art. 1°, parágrafo único, e art. 5°: “Art. 1° [...] Parágrafo único — É devida aos membros da Assembleia Legislativa, no início e no final de cada sessão legislativa, ajuda de custo correspondente ao valor da remuneração. [...]

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Art. 5° Os valores da remuneração mensal do Governador, do Vice-Governador, de Secretário de Estado e de Secretário Adjunto, na data desta resolução, para vigorarem no exercício de 1995, correspondem ao da remuneração do Deputado Estadual, observados, respectivamente, os seguintes fatores de ajustamento: [...]” Obs: Posteriormente, com a edição da Resolução n. 5.200/2001, a remuneração dos Deputados Estaduais passou a ser disciplinada pelo art. 2°, § 1° e § 2°, da mencionada resolução, nos seguintes termos: “Art. 2° A remuneração mensal do Deputado constitui-se de: [...] § 1° O Deputado receberá, ainda, ajuda de custo, correspondente a duas parcelas no valor de R$6.000,00 (seis mil reais), pagas no início e no final de cada sessão legislativa. § 2° No mês de dezembro, ao Deputado é devida a importância correspondente ao subsídio fixo acrescido do subsídio variável, em valor proporcional ao efetivo exercício do mandato parlamentar no ano.” 23

Quanto ao pagamento do décimo terceiro salário ao Presidente, Vice-Presidente e Ministros de Estado, José Rubens Costa (13ª remuneração dos agentes políticos municipais, disponível em: <http://www.ejef.tjmg.jus.br/home/files/publicacoes/ artigos/032010.pdf>, acesso em: 05/04/2010) explica que o benefício encontra-se previsto no art. 4° do Decreto Legislativo n. 06/1995, o qual segue abaixo transcrito: “Art. 4° No mês de dezembro de 1995, o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado perceberão adicional correspondente à remuneração mensal resultante da aplicação deste decreto legislativo.” Em seguida, o autor pondera que, como o Decreto Legislativo n. 06/1995 é anterior à EC n. 19/1998, foi utilizada a expressão remuneração, em vez de subsídio.

24

A matéria encontra-se disciplinada nos arts. 2° e 3° do Ato Conjunto das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados n. 03, de 30 de janeiro de 2003. Seguem adiante transcritos os dispositivos: “Art. 2° No mês de dezembro, os parlamentares farão jus à importância correspondente à parcela fixa do subsídio, acrescida das parcelas variável e adicional, em valor proporcional ao efetivo comparecimento às sessões deliberativas realizadas até 30 de novembro. § 1° O pagamento de metade do valor de que trata o caput, no mês de junho, dar-se-á com base na legislação aplicável ao servidor público civil federal. § 2° Na hipótese de afastamento, o congressista fará jus a um doze avos por mês de exercício, proporcionalmente ao comparecimento às sessões. Art. 3° É devida ao parlamentar, a título de indenização, no início e no final previsto para a sessão legislativa ordinária e extraordinária, ajuda de custo equivalente ao valor da remuneração. § 1° A ajuda de custo destina-se à compensação de despesas com transporte e outras imprescindíveis ao comparecimento à sessão legislativa ordinária ou à sessão legislativa extraordinária convocadas na forma da Constituição Federal. § 2° Perderá o direito à percepção da parcela final da ajuda de custo o parlamentar que não comparecer a pelo menos dois terços da sessão legislativa. § 3° O valor correspondente à ajuda de custo não será devido ao suplente reconvocado na mesma sessão Legislativa.” Obs: a Mesa da Câmara dos Deputados, sob a justificativa de que o art. 3°, § 2°, do Ato Conjunto n. 03/2003 foi omisso quanto aos critérios para o pagamento da ajuda de custo no início da sessão legislativa ordinária, editou o Ato n. 24, de 04 de fevereiro de 2009. Por meio deste instrumento normativo, fixou-se, no âmbito exclusivo da Câmara dos Deputados, prazo mínimo de 30 dias de efetivo exercício do mandato para a percepção integral da vantagem no início da sessão legislativa ordinária. Segue transcrito o art. 1° do Ato n. 24/2009: “Art. 1° No âmbito da Câmara dos Deputados, o pagamento da ajuda de custo devida no início da sessão legislativa ordinária observará a proporcionalidade dos dias de efetivo exercício do mandato nos 30 (trinta) dias subsequentes à primeira assunção.

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Ressalto, por último, que outro argumento utilizado para se questionar a constitucionalidade do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores consiste no fato de esses serem remunerados por subsídio, o qual, por ser fixado em parcela única, não permitiria o acréscimo referente ao décimo terceiro salário. Se o argumento fosse esse, pura e simplesmente, seríamos então obrigados a constatar, da mesma forma, que os agentes públicos ou pelo menos parte deles25 que fossem remunerados por subsídio estariam impedidos de receber tal parcela. Passada a discussão acerca da legitimidade do pagamento do décimo terceiro salário aos agentes políticos, adentro, neste instante, numa outra questão, atinente à definição do instrumento normativo adequado para regulamentar a concessão deste direito aos vereadores. Nos termos do enunciado de Súmula n. 91, exige-se a confecção de lei em sentido estrito. No entanto, reitero, aqui, o voto por mim proferido, em retorno de vista, na Consulta n. 732.004, formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de Curvelo. Na ocasião, apresentei entendimento dissonante do voto do relator, no tocante à necessidade de o décimo terceiro salário dos membros da Câmara Municipal ser disciplinado por lei em sentido estrito. Para efeito de elucidação, pontuarei os fundamentos constantes do meu voto: 1) Partindo do pressuposto de que o subsídio dos vereadores pode ser fixado por meio de resolução, com base na nova redação dada ao art. 29, VI, da CR/88 pela EC n. 25/2000, posicionei-me favoravelmente à disciplina do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores por meio de resolução; 2) Expus que, como a concessão do décimo terceiro salário aos vereadores, a rigor, já decorre diretamente do texto constitucional, mais especificamente do Parágrafo único. Ocorrendo o afastamento do parlamentar antes do transcurso do prazo de 30 (trinta) dias, o Departamento de Pessoal da Câmara dos Deputados providenciará o ressarcimento, na folha subsequente, dos valores que excederem à proporcionalidade estabelecida no caput deste artigo.” 25

Os agentes públicos remunerados por subsídios subdividem-se em: a) agentes públicos facultativamente remunerados por subsídios, dentre os quais, encontram-se os servidores públicos organizados em carreira, nos termos do art. 39, § 8°, da CR/88 e b) agentes públicos obrigatoriamente remunerados por subsídios, dentre os quais, encontram-se os b.1) membros de Poder, detentores de mandato eletivo (estão alcançados pela expressão membros de Poder), Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais (art. 39, § 4°, da CR/88); b.2) membros do Ministério Público (art. 128, § 5°, I, c, da CR/88); b.3) integrantes da Advocacia Geral da União e da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, Procuradores dos Estados e do Distrito Federal e Defensores Públicos (art. 135 da CR/88); b.4) Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas (art. 73, § 3°, e art. 75 da CR/88) e b.5) servidores públicos policiais (art. 144, § 9°, da CR/88). Sobre a matéria, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ressalva que, embora o subsídio constitua uma parcela única, nos termos do art. 39, § 4°, da CR/88, os servidores ocupantes de cargos públicos, independentemente do regime remuneratório ao qual estão vinculados, farão jus ao décimo terceiro salário, por força do art. 39, § 3°, da CR/88. Complementa a autora dizendo que, na hipótese em tela, deve-se adotar uma interpretação conciliatória entre os dois dispositivos constitucionais, de modo que os direitos assegurados no art. 39, § 3°, da CR/88 não serão atingidos pela proibição de qualquer acréscimo ao subsídio (Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004). No entanto, ainda que se reconheça aos servidores ocupantes de cargos públicos, remunerados por subsídio, o direito ao décimo terceiro salário, a não concessão do benefício aos vereadores subsiste como critério discriminatório. Isto porque existem categorias de agentes públicos, remuneradas por subsídio (exemplo: membros do Poder Judiciário) que, a despeito de não estarem abrangidas pelo art. 39, § 3°, da CR/88, recebem décimo terceiro salário.

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rol de direitos sociais contido no capítulo II do Título II da CR/88, não há que se falar, tecnicamente, em instituição ou criação da gratificação, seja por lei ou por resolução. Portanto, deixei claro que o debate ora proposto se referia à definição de qual seria o instrumento formal adequado não para a criação, mas sim para a disciplina do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores; 3) Valendo-me do axioma da Teoria Geral de Direito “quem pode o mais, pode o menos”, aduzi que se pode a Câmara Municipal inovar o ordenamento jurídico, quando da fixação do subsídio aos seus vereadores, por meio de resolução, conforme art. 29, VI, da CR/88, o mesmo instrumento normativo seria apto a regulamentar o pagamento do décimo terceiro salário; 4) Enfatizei que a nova redação dada ao art. 29, VI, da CR/88 pela EC n. 25/2000,

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ao prever a fixação do subsídio dos vereadores mediante ato normativo da Câmara Municipal, privilegia o princípio da separação dos poderes, pois a aprovação da resolução não depende de sanção do chefe do Poder Executivo; 5) Com base no princípio do paralelismo das formas, segundo o qual os atos jurídicos, quando interligados, devem apresentar o mesmo instrumento de exteriorização, ponderei que se a fixação do valor principal, ou seja, do subsídio, pode ocorrer por meio de resolução, por consequência lógica, este instrumento normativo poderia ser utilizado na disciplina do décimo terceiro salário, o qual constitui parcela remuneratória eventual, de periodicidade anual. Após elencar meus argumentos, concluí que a exigência contida no enunciado de Súmula n. 91 do TCEMG, quanto à edição de lei para disciplinar a concessão do décimo terceiro salário, não subsiste em relação aos vereadores, uma vez que o seu texto fora editado há mais de 18 anos, em 1991, não tendo, portanto, acompanhado a nova redação dada ao art. 29, VI, da CR/88 pela EC n. 25/2000. Em seguida, salientei ser desnecessário propor o cancelamento do enunciado de súmula, já que o seu texto faz referência genérica a agente político. Sugeri, no presente caso, a utilização da técnica hermenêutica do distinguishing,26 com o propósito de afastar a aplicabilidade da súmula em relação aos membros do Poder Legislativo municipal e de manter o seu teor no que tange aos demais agentes políticos. 26

A técnica distinguishing, com origem no Direito norte-americano, consiste no afastamento de um certo precedente jurisprudencial (como uma súmula, por exemplo), sem de fato abandoná-lo, considerando-se uma peculiaridade do caso concreto que o diferencia das demais situações jurídicas a que se destina o posicionamento do Tribunal. O distinguishing apresenta-se, portanto, como uma forma de legitimar uma decisão-outra, tendo como fundamento a distinção substancial entre as hipóteses fáticas que geraram o precedente e o caso específico em análise. Sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro tem sido sustentada em diversos julgados recentes do Supremo Tribunal Federal.

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Portanto, no tocante à natureza do ato fixatório do décimo terceiro salário aos vereadores, entendo ser cabível resolução. Entretanto, deixo claro que, embora a Câmara Municipal possa se valer da resolução, nada impede que o órgão opte por regulamentar a concessão do benefício mediante processo legislativo mais complexo, voltado à elaboração de leis em sentido estrito. Baseio minha alegação no voto que proferi no retorno de vista da Consulta n. 752.708 (Conselheira Relatora Adriene Andrade, sessão de 01/07/2009), quando, com fundamento numa teoria mista ou eclética, defendi a possibilidade de os subsídios dos vereadores serem fixados por lei em sentido estrito, se assim a Câmara Municipal entender conveniente, apesar de a Constituição Federal permitir a disciplina da matéria por meio de resolução. Deste modo, emprego, na concessão do décimo terceiro salário aos vereadores, o mesmo raciocínio desenvolvido, na Consulta n. 752.708, para a fixação dos subsídios, de modo a se permitir a regulamentação daquele direito por meio de resolução ou de lei em sentido estrito de iniciativa própria do Legislativo municipal. Por fim, atendo-me à indagação do consulente sobre a possibilidade de se instituir um subsídio extra aos vereadores, denominado de parcela pelo exercício do mandato parlamentar, ressalto que, nos moldes em que o questionamento foi feito, o objeto da presente consulta recai justamente sobre a legitimidade do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores. Isto porque, independentemente da nomenclatura que se confere ao benefício — décimo terceiro subsídio, gratificação natalina, adicional natalino — ele não perderá a natureza jurídica de décimo terceiro salário, quando pago aos edis, a título de subsídio extra, no mês de dezembro de cada sessão legislativa. Esclareço, por oportuno, que, diante da inexistência de suporte documental nos autos, não entrarei no mérito da natureza jurídica do benefício intitulado parcela pelo exercício do mandato parlamentar no ano, acordado entre o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e a Assembleia Legislativa do Estado em Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), assinado em 23 de agosto de 2001. No entanto, gostaria de cientificar o consulente, bem como os meus Pares, que o Desembargador do TJMG, Nepomuceno Silva, ao se posicionar pela não ratificação da liminar de suspensão do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores da Câmara Municipal de Belo Horizonte, nos autos da ADI n. 1.0000.08.486655-

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7/000(1),27 fundamentou sua argumentação no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e a Assembleia Legislativa estadual. Segue transcrito excerto de seu voto: A questão, aqui, traz a lume uma simetria, partindo de um ajustamento de conduta firmado entre o Ministério Público e a Assembleia Legislativa, onde temos [...] uma parcela no valor de R$6.000,00 (seis mil reais) paga em dezembro de cada ano [...]. A simetria buscaria estender isso aos vereadores, pelo que percebi daquele ajustamento de conduta, com o legislativo estadual. [...] [...] Na esteira da previsão ministerial penso que, de modo amplo, há uma correspondência na incidência do 13° salário. Aliás, o próprio Ministério Público descreveu esse ajustamento, em sede cautelar. Na minha consciência julgadora, peço vênia para acompanhar a dissidência, mantendo este entendimento até eventual exame posterior, em face do ajustamento que permitiu aos deputados perceber tal parcela. [...] Não vejo como, primo oculi, dar tratamento diferenciado. Por isso, peço vênia para negar a ratificação.

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Conclusão: pelas razões elencadas, respondo a esta consulta, em suma, nos seguintes termos: É legítimo conceder décimo terceiro salário aos membros da Câmara Municipal, desde que sejam observados os seguintes requisitos: 1) A concessão do benefício deverá ser regulamentada em resolução ou lei, em sentido estrito, de iniciativa privativa da Câmara Municipal, cabendo a esta optar pelo instrumento normativo que será adotado; 2) A resolução ou a lei, em sentido estrito, deverá ser votada na legislatura anterior para produzir efeitos na subsequente em virtude do princípio da anterioridade; 3) Os limites constitucionais referentes ao total da despesa do Legislativo municipal e ao subsídio dos vereadores deverão ser respeitados (art. 29, VI e VII, art. 29-A, caput e art. 29-A, § 1°, da CR/88). É o meu parecer.

Na oportunidade manifestou-se o Conselheiro Eduardo Carone Costa: Sr. Presidente, tenho convicção sobre essa matéria. Entendo que a conceituação, como direito social do trabalhador brasileiro, é inquestionável. Na verdade, isso foi instituído, mantido e consolidado tendo nítido o caráter alimentar, mas 27

ADI n. 1.0000.08.486655-7/000(1), Desembargador Relator Alexandre Victor de Carvalho, data do julgamento: 10/12/2008.

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não vou fazer a minha declaração de voto estribado unicamente nessa questão, embora tenha juridicidade indiscutível. Examinando sob um outro aspecto, o da inexistência de dispositivo legal ou constitucional, que fixe o número exato de parcelas remuneratórias com subsídios únicos que possam ser auferidas pelos destinatários da Emenda n. 19, cabe, perfeitamente, a qualquer um dos Poderes, Federal, Estadual ou Municipal, estabelecer a remuneração que entender cabível aos membros desses poderes, porque essa remuneração a ser estabelecida, sem se vincular ao direito social, é que tem de se adequar à existência de um ato legislativo formal e ao princípio da anterioridade. É lógico que, se fosse examinar sob o aspecto social, não teria que observar a anterioridade — é ínsita a concessão da vantagem, independentemente de votação com observância da anterioridade. E tem-se que observar, dentro dessa segunda ótica, os limites da lei de responsabilidade fiscal, porque é despesa pública. Estou falando sem me ater à tese do direito social, que acho que é mais importante. Então, se atendidos esses pressupostos, onde está o impedimento constitucional e legal para se perceber essa remuneração a maior, além das doze, sendo observada também a Emenda n. 19, que é um subsídio? Não vejo plausibilidade na tese em contrário. Entendo perfeitamente legítimo o pagamento, observadas as etapas que acabei de mencionar. Por isso, respondo, afirmativamente, que é devido o pagamento e, se partirmos exata e exclusivamente para examinar a questão do direito social, não posso distinguir entre os trabalhadores. Tanto faz ser submetido ao regime estatutário de estabilidade, ao vitalício ou ao parlamentar por mandato temporário, o direito de caráter alimentar não pode ser deferido a uns e indeferido a outros. Isso não me parece jurídico e legítimo. Acompanho o voto de V. Exa. quanto a essa possibilidade, porque nossa Súmula n. 91 fala isso e entendo correta a sua dicção.

Na sessão do dia 07/04/10, acompanharam o entendimento do relator o Conselheiro Eduardo Carone Costa e o Conselheiro Elmo Braz, oportunidade em que o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho pediu vista dos autos.

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Retorno de Vista CONSELHEIRO SUBSTITUTO HAMILTON COELHO

RELATÓRIO Cuida-se de consulta formulada pelo Presidente da Câmara Municipal de Águas Formosas, que indaga sobre a possibilidade de se instituir, no âmbito do Legislativo municipal, parcela pelo efetivo exercício do mandato parlamentar no ano, em valor correspondente a um subsídio mensal, a ser pago no mês de dezembro de cada ano. O consulente alicerça sua dúvida no fato de o Ministério Público ter autorizado a Assembleia Legislativa mineira a pagar dita parcela aos Deputados estaduais, mediante Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), celebrado em 2001, sob o entendimento de que a verba não caracteriza sucedâneo da gratificação natalina, enquanto concedida somente aos parlamentares em efetivo exercício.

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O relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, em sua análise do mérito (fls. 2639), na Sessão de 07/04/10, posicionou-se pela legitimidade da concessão (embora entendendo que o benefício pretendido se confundiria com o décimo terceiro salário, posto que pago “a título de subsídio extra, no mês de dezembro de cada sessão legislativa”), estribado nos seguintes fundamentos: 1) Diante do dissenso doutrinário e jurisprudencial acerca do tema, deveria prevalecer o entendimento sumulado por esta Corte de Contas, segundo o qual a outorga da gratificação natalina aos agentes políticos se legitima por “lei votada na legislatura anterior, para produzir efeito na subsequente” (Súmula n. 91, publicada em 27/12/91) (fls. 29). 2) A partir de uma leitura “humanista/garantista” do texto constitucional, seria lícito adotar-se uma “hermenêutica ampliativa da expressão trabalhadores”, contida no caput do art. 7° do Magno Texto Federal, de modo a abranger os agentes políticos (fls. 30). 3) “O dispositivo constitucional não fez qualquer distinção, dentro da categoria dos agentes públicos, entre os agentes políticos e os servidores públicos (titulares de cargo ou ocupantes de emprego público)” (fls. 30). 4) Acaso se conclua pela impossibilidade de concessão do benefício, a julgar pela acepção mais abrangente do termo agentes políticos, defendida pelo Professor Hely Lopes Meirelles, os membros da Magistratura (art. 93, V, da CR/88), do Ministério Público (art. 128, § 5°, I, c), dos Tribunais de Contas (art. 73, § 3°, e art. 75), 155


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da Advocacia Geral da União, os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, os Defensores Públicos (art. 135), os policiais (art. 144, § 9°) e os servidores facultativamente remunerados por subsídios (art. 39, § 8°) também não poderiam recebê-lo (fls. 32 e 34). 5) Nas esferas estadual e federal, os agentes políticos já recebem o décimo terceiro subsídio (fls. 33). 6) Portanto, seria medida de justiça estender a vantagem aos vereadores, desde que autorizada por lei ou resolução, observados o princípio da anterioridade e os limites insculpidos nos artigos 29, VI e VII, e 29-A, caput e § 1°, da Constituição da República (fls. 38-39). O Conselheiro Eduardo Carone, acompanhando o voto do relator, asseverou que o décimo terceiro subsídio seria um direito social de caráter alimentar conferido indistintamente a todos os trabalhadores, assim considerados também os parlamentares. Afirmou, outrossim, que, diante da “inexistência de dispositivo legal ou constitucional, que fixe o número exato de parcelas remuneratórias com subsídios únicos que possam ser auferidas pelos destinatários da Emenda n. 19”, seria da alçada de cada Poder fixar a remuneração que julgasse cabível a seus membros (fls. 39-40). Votou também de acordo com o relator o Conselheiro Elmo Braz. Diante de minha convicção em sentido contrário, pedi vista dos autos, para melhor refletir sobre a matéria, e trazer por escrito o meu voto. É o relatório.

MÉRITO A matéria debatida nestes autos pode ser resumida em duas perguntas: a Constituição de 1988 confere ao agente político o direito de receber gratificação natalina ou verba remuneratória similar? E, se não o faz, proíbe a sua instituição por lei? Para responder à primeira questão, faz-se necessário definir o alcance de dois comandos constitucionais, a saber: Art. 7° São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] VIII — décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; [...] Art. 39

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[...] § 3° Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7°, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir (destaquei).

A fim de que possamos extrair a correta exegese desses comandos normativos, impõese, primeiramente, estabelecer um paralelo conceitual entre agentes políticos, trabalhadores e servidores ocupantes de cargo público. A doutrina moderna vem entendendo que o apanágio essencial do agente político e que o distingue dos demais agentes públicos é o fato de não possuir vínculo profissional, mas exclusivamente político com o Poder Público: O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um munus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 247).

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A ideia de agente político liga-se, indissociavelmente, à de governo e à de função política, a primeira dando ideia de órgão (aspecto subjetivo) e, a segunda, de atividade (aspecto objetivo). [...] Essas funções políticas ficam a cargo dos órgãos governamentais ou governo propriamente dito e se concentram, em sua maioria, nas mãos do Poder Executivo, e, em parte, do Legislativo; no Brasil, a participação do Judiciário em decisões políticas praticamente inexiste, pois a sua função se restringe, quase exclusivamente, à atividade jurisdicional sem grande poder de influência na atuação política do Governo, a não ser pelo controle a posteriori. O mesmo se diga com relação aos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas, o primeiro exercendo uma das funções essenciais à justiça, ao lado da Advocacia-Geral da União, da Defensoria Pública e da Advocacia, e o segundo a função de auxiliar do Legislativo no controle sobre a Administração. Em suas atribuições constitucionais, nada se encontra que justifique a sua inclusão entre as funções de governo; não participam, direta ou indiretamente, das decisões governamentais. Não basta o exercício de atribuições constitucionais para que se considere como agente político aquele que as exerce, a menos que se considere como tal todos os servidores integrados em instituições com competência constitucional, como a Advocacia-Geral da União, as Procuradorias dos Estados, a Defensoria Pública, os militares (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 477-478). Alguns autores dão sentido mais amplo a essa categoria, incluindo Magistrados, membros do Ministério Público e membros dos Tribunais de Contas. Com a

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devida vênia a tais estudiosos, parece-nos que o que caracteriza o agente político não é só o fato de serem mencionados na Constituição, mas sim o de exercerem efetivamente (e não eventualmente) função política, de governo e administração, de comando e, sobretudo, de fixação das estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que cabe realmente traçar os destinos do país (CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 512).

Assim, para estes e outros administrativistas de renome, como Marçal Justen Filho (Curso de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 719), Odete Medauar (Direito administrativo moderno. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 305) e Lúcia Valle Figueiredo (Curso de direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 617), são agentes políticos apenas o Presidente da República, Governadores, Prefeitos e respectivos vices, Senadores, Deputados federais e estaduais, Vereadores, Ministros de Estado e Secretários estaduais e municipais. Diante disso, só posso concluir que a conceituação de agente político defendida tradicionalmente por Hely Lopes Meirelles (Direito administrativo brasileiro. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 73), que classificava como tais os magistrados, promotores, ministros e conselheiros dos Tribunais de Contas, restou superada pela doutrina hodierna. Partindo-se, então, do pressuposto de que a relação dos agentes políticos com o Estado não é de natureza profissional, já é possível distingui-los dos trabalhadores e servidores públicos. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é unânime em afirmar que o agente político não é equiparável ao trabalhador a que alude a Carta Magna da República, em seu art. 195, inciso II: A Lei 9.506, de 1997, ao acrescentar a alínea h ao inciso I do art. 12 da Lei 8.212, de 1991, tornando segurado obrigatório do regime geral de previdência social o exercente de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, desde que não vinculado a regime próprio de previdência social, inovou, sobremaneira: fez do agente político o trabalhador indicado no inc. II do art. 195 da Constituição. Agente político, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, é espécie de agente público. E agente público é ‘quem quer que desempenhe funções estatais’ (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 227). Forte em Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, Celso Antônio formula a classificação dos agentes públicos, englobando-os em três grandes grupos: a) agentes políticos; b) servidores estatais, abrangendo servidores públicos e servidores das pessoas governamentais de Direito Privado; c) particulares em atuação colaboradora com o Poder Público (Celso Antônio Bandeira de Mello, op. cit., p. 229). Leciona Celso Antônio que ‘agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o

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arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder. [...] São agentes políticos apenas o Presidente da República, os Governadores, Prefeitos e respectivos vices, os auxiliares imediatos dos Chefes de Executivo, isto é, Ministros e Secretários das diversas Pastas, bem como os Senadores, Deputados Federais e Estaduais e os Vereadores’ (op. cit., p. 229). Os agentes políticos ‘entretêm com o Estado vínculo de natureza política e não de natureza profissional’, acrescenta Celso Antônio (op. e loc. cit.). Maria Sylvia Zanella Di Pietro não discrepa, substancialmente, da lição de Celso Antônio. Para Di Pietro, os agentes políticos exercem funções de natureza política, ligados aos órgãos governamentais da cúpula do Estado (Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 1990, p. 306). O agente político, portanto, não é o ‘trabalhador’ do inciso II do art. 195 da Constituição Federal, convindo esclarecer que esta, no art. 29, IX, deixa expresso que os vereadores estão sujeitos à disciplina dos parlamentares.

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[...] Assim, parece forçoso concluir que o legislador constitucional, quando utilizou o termo trabalhadores para eleger incidência de contribuições para a seguridade, como feito no art. 195, limitou a abrangência à remuneração recebida pelos empregados da iniciativa privada ou, no máximo, aos servidores celetistas. Em todo o contexto da carta a interpretação autorizada do termo leva a essa conclusão (Plenário do STF, Recurso Extraordinário n. 351.717/PR, Relator Ministro Carlos Velloso, DJ de 21/11/03) (destaquei). EMENTA: Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Contribuição previdenciária sobre remuneração dos exercentes de mandato eletivo. 3. Não equiparação do agente político a trabalhador (art. 195, II, com redação anterior à EC 20). 4. Cobrança da contribuição após EC 20: impossibilidade de discussão de temas não abordados no Tribunal de origem. 5. Agravo regimental a que se nega provimento (STF, Segunda Turma, Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 341.404/PR, Relator Ministro Gilmar Mendes, DJ de 28/05/04) (destaquei). A questão posta na inicial desses autos diz respeito à inexigibilidade da contribuição previdenciária incidente sobre a remuneração dos exercentes de mandato eletivo, tendo em vista o fato de a norma constitucional inscrita no artigo 195, II (anterior à EC 20/98) se referir a trabalhador, segurado com o qual não se equipara o agente político (STF, Primeira Turma. Trecho do voto do relator, Ministro Eros Grau, nos autos do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 367.522/RS. DJ de 01/10/04. No mesmo sentido: RE 307529 AgR-ED/PR, Relator Ministro Eros Grau, DJ de 24/3/06) (destaquei).

Ora, se, em sede de hermenêutica constitucional, o agente político não é considerado trabalhador para fins previdenciários, por que o seria para fazer jus aos direitos trabalhistas enumerados no art. 7° da Magna Carta? Uma coisa é defender o caráter alimentar e retributivo do subsídio recebido pelo agente político, “porquanto os eleitos hão que se dedicar quase exclusivamente às 159


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suas atribuições” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 682); outra é concluir que a eles são devidas parcelas ínsitas aos vínculos de trabalho, o que, no meu sentir, há diferença. A ausência desse liame de natureza profissional com a Administração Pública igualmente distingue os agentes políticos dos servidores públicos: Recurso em mandado de segurança. Ex-deputados estaduais. Postulação de pagamento de 13° salário. Inocorrência de relação de trabalho com o Poder Público. Inviabilidade. Deputado estadual, não mantendo com o Estado, como é da natureza do cargo eletivo, relação de trabalho de natureza profissional e caráter não eventual sob vínculo de dependência, não pode ser considerado como trabalhador ou servidor público, tal como dimana da Constituição Federal (arts. 7°, inciso VIII, e 39, § 3°), para o fim de se lhe estender a percepção da gratificação natalina (STJ, Quinta Turma, RMS n. 15.476/BA, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, DJ de 12/04/04) (destaquei).

Não ignoramos o fato de que a jurisprudência recente do STJ vem defendendo a possibilidade de se conferir, por lei, direitos sociais aos agentes políticos, conforme ressaltado pelo próprio relator, a fls. 29. Sem embargo, o que queremos demonstrar, nesse ponto, é que, de todo modo, a Constituição da República não lhes assegura tais direitos. Portanto, não há como se valer do disposto no art. 39, § 3°, da Constituição da República, como arrimo para a outorga de direitos sociais aos agentes políticos, pois dita regra tem destinatários expressos: “servidores ocupantes de cargo público” (destaquei). Se o legislador constitucional quisesse estender essas vantagens aos agentes políticos, o teria feito expressamente. Não bastasse a jurisprudência, também a própria doutrina chancela esse entendimento. O professor Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, ao tecer suas considerações acerca do citado comando constitucional, assevera: “Anote-se que ditas observações só valem para os servidores públicos, não abrangendo os agentes políticos, pois é apenas dos primeiros que cogita o art. 39, § 3°” (op. cit., p. 273). Resta, agora, investigar a segunda questão: a CR/88 veda a concessão, mediante lei, de décimo terceiro subsídio ou verba assemelhada aos agentes políticos? Dispõe o § 4° do art. 39 da Constituição: § 4° O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.

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Para explicar o real significado da expressão subsídio fixado em parcela única, valhome da proficiência do consagrado constitucionalista José Afonso da Silva: Subsídio. Termo que, tradicionalmente, designava a retribuição outorgada a pessoa investida em cargo eletivo. [...] O subsídio parlamentar, então, se dividia em duas partes: uma fixa e outra variável. Aquela era recebida mensalmente sem consideração ao comparecimento do parlamentar aos trabalhos legislativos, enquanto a parte variável correspondia ao comparecimento efetivo e participação nas votações. [...] [...] A parcela é única em cada período, que, por regra, é o mês. Trata-se, pois, de parcela única mensal. Historicamente, subsídio era uma forma de retribuição em duas parcelas: uma fixa e outra variável. Se a Constituição não exigisse parcela única, expressamente, essa regra prevaleceria. A primeira razão da exigência de parcela única consiste em afastar essa duplicidade de parcelas que a tradição configurava nos subsídios (op. cit., p. 682-683) (destaquei).

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No mesmo sentido, o magistério da Professora Maria Sylvia: Ao falar em parcela única, fica clara a intenção de vedar a fixação dos subsídios em duas partes, uma fixa e outra variável, tal como ocorria com os agentes políticos na vigência da Constituição de 1967 (op. cit., p. 496).

Dessarte, utilizando-se o método teleológico de interpretação da Lei Maior, e examinando-se o contexto que engendrou a atual redação do § 4° de seu art. 39, resta evidente que a pretensão veiculada na presente consulta coincide justamente com aquilo que o legislador constitucional quis proibir. Efetivamente, a partir das lições doutrinárias transcritas, só é possível inferir que a criação de parcela remuneratória a ser paga de modo proporcional ao comparecimento do parlamentar às sessões legislativas, a par do subsídio a ele já garantido, representa o retrocesso ao antigo modelo estipendiário dos agentes políticos, expressamente vedado pelo novel Diploma Republicano. E não importa a nomenclatura que se atribua a tal verba, porque o dispositivo constitucional veda o acréscimo de “qualquer outra espécie remuneratória”, o que abrange toda parcela retributória (pela prestação do serviço), e aí se inclui, sem dúvida, a gratificação natalina. Aliás, “na vedação estabelecida só não se incluem as verbas indenizatórias” (BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 269). Ora, se o subsídio é uma parcela única de periodicidade mensal, consoante ensina José Afonso da Silva, como pretender o recebimento de dois subsídios num só mês? Ou, no caso dos autos, como justificar a criação de uma parcela pelo efetivo 161


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exercício do mandato parlamentar no ano, se o próprio subsídio já é pago em razão dessa atividade? Outro argumento favorável à concessão do 13° subsídio aos agentes políticos, levantado pelo relator, alude à conclusão de que, se estes não podem recebê-lo, também não o podem os Magistrados (art. 93, V, da CR/88), Promotores (art. 128, § 5°, I, c), Ministros e Conselheiros dos Tribunais de Contas (art. 73, § 3° e art. 75), membros da Advocacia Geral da União, os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, os Defensores Públicos (art. 135), os policiais (art. 144, § 9°) e os servidores facultativamente remunerados por subsídios (art. 39, § 8°). Com o maior respeito aos partidários desta interpretação, entendo que ela não subsiste diante da distinção fundamental entre os agentes políticos e os servidores públicos, já exaustivamente assinalada neste voto: o vínculo entre aqueles e o Estado é de natureza exclusivamente política, transitória, enquanto que, para estes, essa relação é de trabalho, assumindo, por isso, feição duradoura. E é justamente em razão desse liame de natureza profissional que a doutrina moderna classifica como servidores públicos os membros do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais de Contas e demais agentes públicos acima referidos: Algumas categorias se enquadrarão necessariamente como servidores estatutários, ocupantes de cargos e sob regime estatutário, estabelecido por leis próprias: trata-se dos membros da Magistratura, do Ministério Público, do Tribunal de Contas, da Advocacia Pública e da Defensoria Pública. Embora exerçam atribuições constitucionais, fazem-no mediante vínculo empregatício com o Estado, ocupam cargos públicos criados por lei e submetem-se a regime estatutário próprio estabelecido pelas respectivas leis orgânicas (DI PIETRO. Op. cit., p. 481) (destaquei). Os agentes servidores [do Poder Judiciário] são aqueles que percebem remuneração dos cofres públicos. Diferenciam-se em magistrados, servidores estatutários e servidores não estatutários. [...] O Ministério Público é integrado por três categorias de agentes, todos servidores. Existem os procuradores e promotores públicos, os estatutários e os não estatutários (JUSTEN FILHO, op. cit., p. 728-729). Ninguém discute a importância do papel que tais agentes desempenham no cenário nacional, mas, ao contrário do que ocorre com os legítimos agentes políticos, cuja função é transitória e política, sua vinculação ao Estado tem caráter profissional e de permanência e os cargos que ocupam não resultam de processo eletivo, e sim, como regra, de nomeação decorrente de aprovação em concurso público. Não interferem diretamente nos objetivos políticos, como o fazem os verdadeiros agentes políticos. Assim, sua fisionomia jurídica se distancia bastante da que caracteriza estes últimos.

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Não se nos afigura adequada, com efeito, sua inclusão como agentes políticos do Estado. Mais apropriado é inseri-los como servidores especiais dentro da categoria genérica de servidores públicos [...] (CARVALHO FILHO. op. cit., p. 512) (destaquei).

Uma vez compreendidos como servidores, tais agentes se enquadram na regra do art. 39, § 3°, da Constituição, fazendo jus às verbas ali mencionadas. Alguns poderiam argumentar que os magistrados, por exemplo, são abrangidos na expressão membro de Poder a que alude o § 4°, e que, portanto, a eles se aplicaria a vedação respectiva. Em havendo aparente conflito entre normas constitucionais — no caso, entre os §§ 3° e 4° do art. 39 —, impõe-se a aplicação do princípio da concordância prática, para encontrar a solução hermenêutica que viabilize a coexistência harmônica entre os interesses constitucionalmente protegidos.

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Assim, de um lado, temos a regra — os agentes políticos remunerados por subsídio devem recebê-lo em parcela única, vedado o acréscimo de quaisquer verbas remuneratórias — e, de outro, a ressalva — servidores ocupantes de cargo público, porquanto expressamente excepcionados pelo § 3°. Em outras palavras, somente os detentores de vínculo profissional com a Administração Pública podem receber as parcelas de que trata o § 3°, ainda que sua remuneração seja fixada na forma do § 4°. Logo, sob qualquer ângulo que se encare a questão, é impossível desvencilhar-se da proibição constitucional. Nem mesmo a lei pode outorgar-lhes tal vantagem, porque esta já nasceria eivada pelo vício da inconstitucionalidade. Seria preciso, de fato, uma emenda constitucional, alterando o texto do § 3° do art. 39, para que os agentes políticos fossem autorizados a receber gratificação natalina. Nesse contexto, a Súmula n. 91 desta Corte de Contas também não pode ser invocada, pois foi editada em data anterior à EC n. 19/98, que conferiu a atual redação ao § 4° do art. 39. Vale dizer: essa Súmula não foi recepcionada pela nova ordem constitucional introduzida pela Emenda. Ressalto ainda que a pretensão em análise não se legitima em razão do Termo de Ajustamento de Conduta mencionado pelo consulente, porque deliberações dessa natureza não produzem efeitos erga omnes. É apropriado trazer a lume, nesse ponto, trecho do voto do Desembargador Edgar Penna Amorim, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos autos da Medida Cautelar na ação direta de inconstitucionalidade n. 1.0000.08.486655-7/000, que culminou na suspensão do pagamento do adicional natalino aos vereadores da Câmara Municipal de Belo Horizonte (Relator Desembargador Alexandre Victor de Carvalho, DJ de 30/04/09): 163


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O termo de ajustamento de conduta é um ato administrativo celebrado pelo Ministério Público, no âmbito das suas competências extrajudiciais. A meu ver, não se retira nem a legitimidade do representante, menos, ainda, enfraquece a tese, data venia, o fato de que, administrativamente, aquela instituição tenha celebrado, em algum momento, um termo de ajustamento de conduta, estabelecendo [...] aquilo que se considerava possível de ser recebido pelos Srs. Deputados Estaduais.

O mesmo raciocínio vale para as demais instâncias em que a mencionada parcela foi instituída. Se agentes políticos de outras esferas federativas percebem verba semelhante, nem por isso ela se torna lícita. Muitas práticas antes disseminadas na Administração Pública já foram posteriormente declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado. Assim sendo, ouso discordar da tese oposta, pois, a meu ver, a parcela pelo efetivo exercício do mandato parlamentar padece de inconstitucionalidade manifesta. A uma, porque os agentes políticos, do modo como são conceituados pela jurisprudência e pela doutrina moderna, não ostentam a condição de trabalhadores, empregados ou servidores, e, portanto, não são alcançados pelas normas dos arts. 7°, VIII, e 39, § 3°, da Constituição da República. E a duas, porque a criação de tal vantagem pela via infraconstitucional encontra vedação instransponível no art. 39, § 4°, do Magno Texto Federal. Conclusão: diante de todo o exposto, proponho resposta ao consulente nos termos da fundamentação, que conclui pela vedação de se instituir parcela pelo efetivo exercício do mandato parlamentar no ano.

Tendo em vista o entendimento esposado pelo Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, manifestou-se o Conselheiro Antônio Carlos Andrada, relator dos autos: Sr. Presidente, ouvi atentamente o bem lançado voto do Conselheiro Hamilton Coelho, que fez um trabalho de pesquisa merecedor de elogios. Ele levanta uma tese bem diferente da que lancei no meu voto. Confesso que, ouvindo atentamente, não encontrei, na análise momentânea que fiz aqui durante a leitura do voto, razões para rever a minha posição inicial. É lógico que essa discussão não vai se esgotar nesta sessão, e não se esgota também no âmbito desta Corte, mas tenho o entendimento de que tem que partir de um ponto diferenciado. Toda essa discussão sobre os conceitos de subsídios, de agente político, de servidor público, de função pública tem validade, mas ela precisa estar, primeiro, calcada e ancorada em princípios constitucionais. 164


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Tenho como garantidíssimo, na minha visão, que a Constituição assegura direitos ao trabalhador. E aí não vem a distinção de que o trabalhador é aquele da CLT, é o trabalhador rural, é o trabalhador urbano, não são conceitos doutrinários e nem conceitos jurídicos. É a pura expressão da palavra. Trabalhador é quem trabalha, o resto é filigrana. Ora, não consigo, na minha construção jurídica, administrativa, conceber por que, no Estado Democrático de Direito, em que se tanto preza pela democracia, em que se tanto preza pelas eleições, em que se tanto preza pelas liberdades, justamente aqueles que são escolhidos pelo povo para representar o símbolo maior, que é o exercício da representatividade em um Estado Democrático, é que não são considerados trabalhadores. Eles não trabalham. Então, se um Deputado, se um Senador, se o Presidente da República, se o Ministro, se o Prefeito, se o Vereador não é trabalhador, eles são o quê? Estamos desqualificando o produto da democracia. Se eles não funcionam bem, é outra história. Se o povo não escolheu bem, é outra história, mas retirar de quem é eleito a condição de trabalhador... Se o Deputado não comparece ao Plenário da Assembleia, ele é criticado porque não trabalha, mas ele não pode receber o 13° porque não é trabalhador. É incoerente.

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Não consigo entender a lógica que afasta quem é eleito representante público de não ser um legítimo trabalhador. O vínculo com o Estado e as relações de estabilidade é que são outras. Cada um vai ter uma tratativa diferenciada com relação a direitos que são desdobramentos da função. Aquele que trabalha em lugar insalubre vai receber adicional de insalubridade. Aquele que trabalha em situação de risco vai receber adicional de periculosidade. São as peculiaridades da função. Mas o direito de quem trabalha, consagrado no mundo ocidental, de receber o 13° salário ser retirado daquele que é eleito, eu não entendo nem concordo. Essa convicção permanece. Continuo muito convicto de que o 13° é um direito consagrado como princípio a ser dado a todo trabalhador, pois é consequência da evolução da luta dos trabalhadores de anos e anos, de séculos e séculos. É uma conquista que nós não podemos desconsiderar. Então, mantenho meu voto na forma em que lancei.

Na oportunidade, manifestou-se o Conselheiro Sebastião Helvecio: Sr. Presidente, Sra. Procuradora e Srs. Conselheiros, eu também queria me manifestar nesse instante, porque acho esse tema da maior relevância. E a ótica que pretendo abordar é exatamente dentro do princípio basilar da nossa Constituição, que é o princípio federativo. O Brasil é uma República Federativa e entre as assimetrias que nós encontramos, certamente, a da representação municipal é uma delas. O art. 18 garante exatamente essa autonomia aos estados e municípios e, dentro desse 165


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princípio, entendo, como o Conselheiro Antônio Carlos Andrada também entendeu, que o trabalho da representação, no caso específico da consulta do vereador, representa exatamente essa atuação do agente político. Dessa maneira, entendo, também, que o 13° não cria nenhum subsídio adicional, nenhum tipo de verba adicional. Portanto, concordo in totum com o pensamento esposado pelo nobre Conselheiro Antônio Carlos Andrada, no seu voto muito bem fundamentado, e acho muito interessante essa tendência atual que vamos percebendo nos Tribunais, dessa visão social das decisões. A nossa Súmula 91, em que pese a sua votação ser anterior à da Emenda Constitucional, tem validade total e, no meu entender, ela deve permanecer, até que haja, se por acaso houver, uma manifestação divergente do Supremo Tribunal Federal. Então, meu voto é de acordo com o do Conselheiro Relator Antônio Carlos Andrada, felicitando-o por essa correção de mais uma, entre tantas assimetrias da nossa federação, quase sempre naquele órgão mais simples, naquele Poder mais perto do povo, que é o Poder Municipal.

Na sessão do dia 12/05/10, após a apresentação do voto divergente exarado pelo Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, a Conselheira Adriene Andrade e o Conselheiro Sebastião Helvecio acompanharam o voto do Conselheiro Relator Antônio Carlos Andrada. Na oportunidade, pediu vista dos autos o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Retorno de Vista CONSELHEIRO EM EXERCÍCIO GILBERTO DINIZ

RELATÓRIO Trata-se de consulta formulada pelo Sr. Elvis Lúcio Barbosa Lima, Presidente da Câmara de Vereadores de Águas Formosas, por meio da qual indaga, em síntese, sobre a possibilidade de instituir parcela pecuniária extra pelo efetivo exercício do mandato parlamentar, a ser paga no mês de dezembro, no valor correspondente ao subsídio mensal, mediante lei específica, previsão orçamentária e dotação própria, respeitando-se, ainda, o princípio da anterioridade. O relator da consulta, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, que presidia a Sessão do Pleno do dia 07/04/10, superada a preliminar de conhecimento, entendeu que a essência do questionamento recai sobre a legitimidade do pagamento do décimo terceiro salário aos vereadores, embora denominado pelo consulente de parcela anual pelo exercício do mandato.

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Nessa linha, e depois de ter feito análise doutrinária e jurisprudencial sobre a questão, o Conselheiro Antônio Carlos Andrada concluiu, em suma, que é legítimo conceder décimo terceiro salário aos membros da Câmara Municipal, desde que regulamentado em resolução ou lei em sentido estrito de iniciativa da edilidade, observado o princípio da anterioridade e respeitados os limites constitucionais inerentes à despesa do Legislativo Municipal e ao subsídio dos edis. Na mencionada assentada, os Conselheiros Eduardo Carone Costa e Elmo Braz acompanharam o relator. Na sequência, o Conselheiro Hamilton Coelho pediu vista, para trazer voto escrito sobre a matéria. Na Sessão do Pleno do dia 12/05/10, o Conselheiro Hamilton Coelho proferiu voto em sentido oposto ao do relator, por entender que a parcela pelo efetivo exercício do mandato parlamentar padece de inconstitucionalidade manifesta. A uma, porque os agentes políticos, como conceituados pela jurisprudência e pela doutrina moderna, não ostentam a condição de trabalhadores, empregados ou servidores, e, portanto, não são alcançados pelas normas da Constituição da República, arts. 7°, VIII, e 39, § 3°. A duas, porque a criação de tal vantagem pela via infraconstitucional encontra vedação intransponível no Magno Texto Federal, art. 39, § 4°. Depois do voto do Conselheiro Hamilton Coelho, o Conselheiro Antônio Carlos Andrada reafirmou seu entendimento e a Conselheira Adriene Andrade e o Conselheiro Sebastião Helvécio acompanharam o relator. Sequencialmente, pedi vista. É o relatório do essencial. 167


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MÉRITO A fim de se obter solução jurídica, razoável e justa para a tese ora discutida, deve-se adotar perspectiva moderna de interpretar o Direito de forma inclusiva, sobretudo em se tratando de garantias e direitos fundamentais da pessoa humana, como é o caso dos direitos sociais plasmados na atual Constituição brasileira. E mais, deve-se entender a Constituição como sistema aberto de princípios e regras, não se podendo olvidar, ainda, que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos, entre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Partindo dessas premissas, destaca-se que a Carta Política de 1988, no art. 6° — inserido no Capítulo II do Título II, que cuida dos direitos e garantias fundamentais —, estatui que são direitos sociais, entre os outros ali enumerados, o trabalho e a previdência social. Mais adiante, o caput do art. 170 prescreve que a ordem econômica se funda na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, para garantir a todos existência digna. Já no art. 193 está escrito que a ordem social tem como base o primado do trabalho. Como se percebe, o Texto Magno erigiu o trabalho a valor jurídico de exponencial relevo e ponto nuclear da organização da sociedade brasileira, tanto no plano político como econômico e social. O constitucionalista lusitano Jorge Miranda, citado por seu compatriota Gomes Canotilho, ao discorrer sobre o tema trabalho no contexto da Constituição de Portugal, comentário que, a propósito, cai como luva também em se tratando da vigente Constituição brasileira, assim pontificou: O conceito de trabalho, como transparece do texto, é um conceito constitucional polissémico, afigurando-se-nos erróneo querer captar o conceito de trabalho sob uma perspectiva unidimensional (In: Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Lisboa: Almedina, p. 347).

Nessa mesma linha, a Professora Cármen Lúcia Antunes Rocha, atualmente ministra do Supremo Tribunal Federal, retrata de forma bastante explícita e didática a amplidão que deve ser emprestada ao valor jurídico trabalho, neste trecho de seu magistério: O trabalho é que constitui um instrumento de realização da obra humana, não o emprego. É ele que constitui uma dimensão específica e especial da dignidade humana. A dignidade no trabalho e pelo trabalho, revelada nas versões constitucionais dos sistemas contemporâneos, inspira-se naquele valor, não numa forma única de sua prestação mediante vínculo empregatício, como parece comum supor (In: Princípios constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 51-52).

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Os excertos doutrinários colacionados, com efeito, coadunam-se com o conceito jurídico de trabalho, que deve ser entendido de forma holística ou totalizante. É dizer, “a atividade física ou intelectual aplicada, habitualmente, para a produção da riqueza, ou ao exercício lícito de uma profissão, função ou ofício” (In: Dicionário de tecnologia jurídica, 12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p. 826). Pode-se concluir, portanto, que o termo trabalho, no contexto da Constituição Federal de 1988, não tem a conotação de emprego e, consequentemente, que a expressão trabalhador não é, necessariamente, sinônima de empregado. Nessa ordem de ideias, não me parece de boa lógica jurídica sustentar que o exercente de mandato eletivo não é trabalhador, ainda mais que o próprio texto magno reconhece que tal espécie de agente público será remunerada. Ora, como é cediço, somente se

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remunera quem trabalha e, por conseguinte, quem trabalha é trabalhador. A esse respeito, a Professora Cármen Lúcia é categórica ao afirmar: Nem se há, de outra parte, imaginar que ao ocupante de mandato não se há de remunerar, pois o sistema jurídico impõe contraprestação pelo desempenho de função pública também eletiva, a qual, se não tem natureza de emprego, na acepção adotada pelo direito laboral, é trabalho no sentido de ser o desempenho de uma atividade prestante ao atendimento de necessidades, interesses e conveniências de terceiros segundo normas impositivas que não podem deixar de ser atendidas (op. cit., p. 309).

Lado outro, não impressiona o fato de o Supremo Tribunal Federal ter decidido que o termo trabalhador constante no inciso II do art. 195 da Lei Maior não abarca o agente político. Isso porque o mencionado dispositivo constitucional se refere aos segurados do Regime Geral de Previdência Social, que é próprio, como sabido e ressabido, ao trabalhador da iniciativa privada e das entidades estatais de direito privado. Desse modo, o termo trabalhador desafia interpretação sistemática no conjunto material a que alude, e não paira dúvida quanto ao fato de que o preceptivo constitucional indicado se cinge à regulação da seguridade social, tema específico que precisa abranger as particularidades de cada categoria que a deve financiar. Nesse contexto, a expressão trabalhador contida no caput do art. 7° da Carta Federal de 1988 não me parece se dirigir, apenas, ao trabalhador empregado. A própria norma constitucional fundante, aliás, reconhece que a expressão trabalhador é gênero e não espécie, quando o seu inciso XXXIV prescreve a igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício (o empregado) e o trabalhador avulso. Essa constatação torna-se ainda mais evidente quando se realiza o exame individualizado dos demais direitos arrolados no aludido art. 7° constitucional. Por exemplo, nos 169


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incisos IX, X e XIII a Constituição refere-se ao trabalho, o que conduz à conclusão de que se trata de regra geral, isto é, não dirigida apenas ao trabalhador subordinado ou ao empregado. A mesma interpretação, todavia, não se extrai dos incisos I e II porque o texto constitucional, nesses dispositivos, prescreve, de forma expressa, que os destinatários dos direitos neles insculpidos é o trabalhador empregado. Não é esse o alcance, entretanto, do direito ao décimo terceiro salário garantido pelo inciso VIII do indigitado dispositivo constitucional, consoante se passa a demonstrar. Numa retrospectiva, verifica-se que, no início, esse direito foi instituído com a denominação de gratificação de natal ou gratificação natalina, pela Lei n. 4.090, de 13/07/62. Antes desse diploma legal, essa gratificação tinha característica ou natureza de liberalidade, por ser sua prática espontânea dos empregadores. Esse pagamento foi estendido aos trabalhadores públicos, por meio da legislação dos entes federados, ficando absolutamente inserido na cultura brasileira, tanto que, com a Constituição da República de 1988, passou a figurar no rol dos direitos fundamentais sociais. De gratificação natalina ou gratificação de natal, esse direito passou, na exata dicção do inciso VIII do art. 7° da Constituição Federal de 1988, a ser um décimo terceiro salário, ou seja, um salário extra anual. Esse direito, portanto, não tem relação direta com a contraprestação de serviço, tampouco se fundamenta no liame jurídico existente entre empregador e empregado. O pagamento do décimo terceiro salário, em verdade, fundamenta-se, pelos registros históricos, na necessidade de oferecer aos trabalhadores um pagamento adicional em decorrência das despesas extras geradas pelas comemorações das festas de final de ano, sobretudo as do Natal, hoje, com forte apelo ao consumo. Em última ratio, tal pagamento tem finalidade eminentemente econômica, eis que beneficia as atividades empresariais, com o aumento da produção e das vendas, e o próprio Estado, por conseguinte, já que, com o aquecimento da economia nessa época, a arrecadação de tributos também tende a aumentar. Portanto, a manutenção de vínculo político e, não, empregatício, entre a Administração e o exercente de mandato eletivo não constitui, com efeito, óbice a que lhe seja pago décimo terceiro salário. Em razão disso, não me parece relevante o argumento de não ter a Constituição estendido diretamente esse direito aos agentes políticos, como fez em relação ao servidor ocupante de cargo público. A uma, porquanto a fixação da remuneração de tais agentes é de competência das correspondentes Casas Legislativas, nos termos da própria Lei Maior da República. A duas, porque, de igual forma, a Carta Magna, a par de também considerar a previdência como direito social, não disciplinou direta ou expressamente a 170


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aposentadoria dos agentes políticos exercentes de mandato eletivo. Nem por isso, chegou-se a cogitar que a esse agente político fosse vedado tal direito. Pelo contrário, o Supremo Tribunal Federal, ao enfrentar a questão, entendeu que lei editada pelo respectivo ente federal pode disciplinar a aposentadoria de parlamentares, mormente se for considerado o fato de se ter a bilateralidade das contribuições, v. g., no julgamento das ADINs 148-5/ES, em 20/11/97 (DJ 20/11/97), e 512-0/PB, em 03/03/99 (DJ 18/06/01), e do REX 199720-6/SP, em 29/6/98 (DJ 11/09/98). Nos citados arestos, a Corte Suprema brasileira entendeu que os agentes políticos exercentes de mandato eletivo são servidores em sentido lato ou amplo, ocupantes de cargo temporário, a que alude o § 2° do art. 40 da Constituição Federal de 1988 (atual § 13 do art. 40 da CF/88, com a Emenda Constitucional 20/98). Sobre essa questão, colhem-se, do voto condutor do acórdão da ADI 148-5/ES, proferido pelo Ministro Ilmar Galvão, os seguintes trechos:

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Realmente, não há como deixar de reconhecer que, pelo menos em seu mais amplo sentido, os membros do Poder Legislativo — Deputados Federais e Senadores, no âmbito federal, Deputados Estaduais e Distritais, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, e Vereadores, no âmbito municipal — hão de ser considerados passíveis de ser abrangidos pelo conceito de servidor [...]. [...] Ora, afigura-se certo afirmar que os membros do Poder Legislativo, em geral, no desempenho de seu MANDATO — de exercício necessariamente limitado NO TEMPO [...] —, ocupam típicos CARGOS PÚBLICOS TEMPORÁRIOS, os quais têm, na temporariedade, elemento ínsito à sua própria natureza. Vale dizer, aliás, que aquele § 2° do art. 40 da Carta de 1988 praticamente NENHUMA aplicação teria, se não alcançasse os membros do Poder Legislativo.

A seu turno, também dos votos condutores proferidos pelo Ministro Marco Aurélio, nos outros dois julgados que citei, extraem-se os seguintes excertos. Na ADI 512-0, S. Exa. assim pontificou: “a expressão ‘servidor público’, contida na Emenda n. 20, tem sentido abrangente e alcança, também, os agentes políticos”. Desta feita, no REx 199720-6, o citado magistrado, ao interpretar o parágrafo único do art. 149, asseverou que “a alusão a servidores nele contida surge no campo da generalidade, albergando, assim, a situação dos próprios agentes do poder”. Somente essa senda descortinada pelo intérprete maior e guardião da Constituição brasileira, é dizer, que os agentes políticos exercentes de mandato eletivo são considerados servidores, seria suficiente para dirimir qualquer dúvida a respeito dessa matéria, lançando pá de cal sobre a controvertida questão. Mas continuando na esteira da argumentação até então exposta, exegese reducionista ou restritiva do inciso VIII do art. 7° da Carta Federal de 1988 se harmoniza com os fundamentos da República Federativa do Brasil que preconizam a preservação da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e, ainda, com o princípio 171


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da igualdade, sobretudo no campo da aplicação dos direitos sociais? A resposta, estou convencido pelos argumentos apresentados, é desenganadamente negativa, pois é indigno, injusto e desigual não considerar que a situação ensejadora de um salário extra ao trabalhador submetido a uma relação empregatícia também não atinge os demais trabalhadores, notadamente os exercentes de mandato eletivo municipal, simplesmente pelo fato de o vínculo mantido com o Poder Público ser de natureza política. Nessa linha de raciocínio, em homenagem à dignidade da pessoa humana, à valorização social do trabalho e ao princípio da igualdade da aplicação dos direitos sociais, é forçosa a conclusão de que é legítimo o pagamento de décimo terceiro salário ou subsídio ao exercente de mandato eletivo, observadas, por óbvio, as regras constitucionais e legais inerentes à fixação de remuneração para os agentes políticos municipais. Nem mesmo se pode cogitar que a regra contida no § 4° do art. 39 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda 19/98 — instituidora do subsídio único ao membro de poder, detentor de mandato eletivo, ministros de Estado e secretários estaduais e municipais —, constitua óbice intransponível à instituição desse subsídio extra, a título de décimo terceiro salário ou subsídio ao agente político municipal. É que, com essa sistemática remuneratória, o que ficou vedado foi o recebimento de quaisquer outros acréscimos pelo exercício do mandato eletivo, que passou a ser remunerado, exclusivamente, por subsídio fixado em parcela única. E não se pode olvidar que a expressão parcela única diz respeito, apenas e tão somente, ao estipêndio mensal a que fazem jus os agentes públicos remunerados na forma do dispositivo sob comento. Ora, o décimo terceiro salário, repita-se, não tem como fundamento a contraprestação de serviço ou, no caso específico, o exercício do mandato. Como fartamente demonstrado, o décimo terceiro consolidou-se como salário extra que tem, em última ratio, finalidade eminentemente econômica. Isso porque tal salário extra, tradicionalmente concedido ao trabalhador brasileiro, objetiva fazer face às despesas geradas pelas comemorações de fim de ano, propiciando-lhe um Natal com mais fartura, o que, por conseguinte, provoca aquecimento da economia e maior arrecadação tributária. Para ênfase dessa assertiva, louvo-me, uma vez mais, no magistério da Professora Cármen Lúcia, que assim discorre sobre o tema: O subsídio é fixado em parcela única, mas a remuneração não necessariamente. Não há qualquer vedação constitucional a que os demais direitos dos agentes públicos, aí incluídos aqueles definidos na norma do art. 39, § 4°, venham a ser espoliados ou excluídos do seu patrimônio. Nem o poderia, porque Emenda Constitucional não pode sequer tender a abolir, que dirá botar por terra, direitos fundamentais como aquele relativo ao pagamento no período de férias, o 13°, dentre outros, que alteram o valor remuneratório, mas não o valor do subsídio. [...] Subsídio não elimina nem é incompatível com vantagens constitucionalmente obrigatórias ou legalmente concedidas. O que não se admite mais é a concessão de um aumento que venha travestido de vantagem, mas que dessa natureza não é. A vantagem guarda natureza própria, fundamento específico e caracterização

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legal singular, que não é confundida com os sucessivos aumentos e aumentos sobre aumentos, que mais escondiam que mostravam aos cidadãos quanto cada qual dos seus agentes percebia em função do exercício do seu cargo, função ou emprego público (op. cit., p. 311 e 314).

Nessa mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça, em decisões recentes, no Agravo Regimental em REsp 742.171-DF, DJe 02/03/09; no REsp 1.006.606/DF, relatora Laurita Vaz, DJe de 15/09/08; e no REsp 837.188/DF, relator Hamilton Carvalhido, DJe 04/08/08, decidiu que o décimo terceiro salário, por ser um direito social, pode ser concedido ao agente político mediante lei. Pelas razões expendidas, concluo que a Câmara de Vereadores, no uso da competência que lhe confere o inciso VI do art. 29 da Carta Federal, e observados o princípio da anterioridade e os limites constitucionais e legais pertinentes à remuneração dos edis e às despesas do Legislativo Municipal, pode instituir o pagamento de décimo terceiro subsídio para os vereadores, por meio de lei específica.

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A legalidade formal específica, com efeito, impõe-se no caso da fixação da remuneração dos agentes políticos municipais, incluídos os vereadores, a teor do que dispõe o inciso X do art. 37 da Constituição da República, com a redação dada pela EC 19/98, e ainda com fundamento nas razões por mim aduzidas no processo n. 752.708, que também agrego ao presente voto. O processo legislativo, nesse caso, é mais consentâneo com a República e com os princípios que regem o Estado Democrático de Direito, por propiciar maior transparência e publicidade ao ato de fixação dos subsídios dos edis, possibilitando controle mais amplo e eficaz pela sociedade, afinal de contas trata-se da criação de dispêndio a ser custeado com recursos públicos.

VOTO Assim sendo, acompanho o voto do relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, exceto na parte que S. Exa. admite a fixação do décimo terceiro salário ou subsídio para o vereador também por meio de resolução, a critério da Câmara de Vereadores, pois entendo que deva ser feita por lei específica.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 30/06/10 presidida pelo Conselheiro Antônio Carlos Andrada; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz e Conselheira Adriene Andrade, que aprovaram o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada. Vencido em parte o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz. Vencido na totalidade o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho.

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Adoção do instituto jurídico do credenciamento para prestação de consultas médicas CONSULTA N. 811.980

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — I. Realização de sistema de credenciamento para prestação de consultas médicas. Possibilidade. Procedimento formal de inexigibilidade de licitação. Edital de credenciamento. II. Remuneração dos serviços prestados pelos particulares credenciados. Fixação de valores acima do mínimo indicado pelo SUS. Possibilidade. Complementação com recursos do próprio Município. Observância dos limites de despesas estabelecidos nas leis orçamentárias locais. III. Atendimento no consultório do médico credenciado. Possibilidade. Inexistência de vínculo profissional com o ente federativo. Marcação da consulta a cargo da Secretaria Municipal de Saúde. Escolha do credenciado pelo usuário. [...] realizado o procedimento de inexigibilidade, mediante um edital de credenciamento, o usuário deverá ter liberdade de escolher o profissional a que deseja recorrer, dentre aqueles selecionados, sendo inadmissível que a escolha fique a cargo da Administração. RELATOR: CONSELHEIRO ANTÔNIO CARLOS ANDRADA

RELATÓRIO Versam os presentes autos sobre consulta formulada pelo Sr. Fernando Souza Costa, Prefeito Municipal de Carangola, elaborada nos seguintes termos, conforme documento acostado a fls. 01-03: 1) Pode o Município realizar sistema de credenciamento de consultas médicas de diferentes especialidades? 2) Caso positiva a resposta acima, o valor das consultas deverá ser o preço praticado no Sistema Único de Saúde (SUS) ou poderá o Município estipular o valor das consultas? 3) No sistema de credenciamento, poderá a consulta ser prestada no próprio consultório médico, após marcação feita pela Secretaria Municipal de Saúde?

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É, em síntese, o relatório.

PRELIMINAR Verifico, nos termos constantes da petição inicial a fls. 02 e 05, que o consulente é parte legítima, de acordo com o art. 210, I, do RITCEMG e, por se tratar de matéria de competência desta Corte e de grande repercussão, conheço da presente consulta para respondê-la em tese.

MÉRITO O tema referente à possibilidade de a Administração Pública adotar o instituto jurídico do credenciamento de prestadores de serviço de saúde já foi debatido,

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em diversas oportunidades, por este Tribunal de Contas, havendo uniformidade no entendimento acerca dos principais aspectos relativos a esse instituto. Cite-se recente julgado da relatoria do Conselheiro Eduardo Carone, no qual se delimita a utilização do instituto do credenciamento: O instituto do credenciamento visa à contratação de todos aqueles que preencherem os requisitos determinados em edital. Não há que se falar em ordem de preferência sob justificativa alguma. Qualquer empresa que cumpra com as exigências editalícias e que aceite o valor predeterminado deve ser contratada pela Administração. Caso contrário, não será própria a utilização do credenciamento (Denúncia n. 751.882, Primeira Câmara, sessão: 18/09/08).

Dessa forma, pode-se conceituar o instituto do credenciamento como sendo o procedimento administrativo que visa à contratação de prestadores de serviços mediante requisitos estabelecidos previamente no edital de convocação, quando determinado serviço público necessita ser prestado por uma pluralidade de contratados simultaneamente. Nesse mesmo sentido, o Professor Luciano Ferraz conceitua o credenciamento como: O processo administrativo, pelo qual a Administração convoca interessados para, segundo condições previamente definidas e divulgadas, credenciarem-se como prestadores de serviços ou beneficiários de um negócio futuro a ser ofertado, quando a pluralidade de serviços prestados for indispensável à adequada satisfação do interesse coletivo ou, ainda, quando a quantidade de potenciais interessados for superior à do objeto a ser ofertado e por razões de interesse público a licitação não for recomendada (Licitações, estudos e práticas. 2. ed. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002. p. 118).

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Tecidas as considerações iniciais sobre a definição do instituto do credenciamento, passa-se à exposição sobre qual procedimento a ser utilizado para a sua implementação. Sobre a questão, o Tribunal de Contas da União e este Tribunal de Contas já se manifestaram, respectivamente, no sentido de que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade, tendo em vista a inviabilidade de competição, verbis: Ante o previsto no caput do art. 25 da Lei n. 8.666/93, de 21/06/93, e por exigir um grau de subjetividade bastante razoável, com referência à fixação dos critérios para julgamento da licitação, caso viesse a ser implementada pelos motivos aventados, propomos, por tudo isso, o credenciamento, com inexigibilidade de processo licitatório, uma vez que a norma legal dá ensejo ao abrigo de tal propositura, dada a impossibilidade prática de estabelecer-se o confronto entre licitantes, no mesmo nível de igualdade (Processo n. TC — 008.797/93-5, sessão: 09/12/2003. TCU). Com efeito, o fundamento legal para o credenciamento é a inexigibilidade de licitação, com fulcro no art. 25, caput, da Lei n. 8.666/93, pelo qual caberá à Administração justificar a inviabilidade de competição, nos termos do art. 26, parágrafo único, da citada Lei de Licitações, devendo, ainda, observar os aspectos necessários e pertinentes para a implantação deste sistema, de modo a preservar a lisura e transparência do procedimento (excerto do voto aprovado proferido pelo Revisor Conselheiro Simão Pedro no Recurso de Revisão n. 687.621, Relator Conselheiro Substituto Gilberto Diniz, sessão Pleno: 06/06/2007. TCEMG).

Tem-se, portanto, que o credenciamento é uma hipótese de inexigibilidade, em que a inviabilidade de competição se caracteriza pela possibilidade de competição de todos. Insta salientar, ainda, que, realizado o procedimento de inexigibilidade, mediante um edital de credenciamento, o usuário deverá ter liberdade de escolher o profissional a que deseja recorrer, dentre aqueles selecionados, sendo inadmissível que a escolha fique a cargo da Administração. Diante do exposto, quanto à primeira pergunta formulada pelo consulente, tem-se que o Município pode realizar sistema de credenciamento de consultas médicas, desde que precedido de procedimento formal de inexigibilidade de licitação, nos termos do art. 5°, caput, c/c o parágrafo único do art. 26 da Lei n. 8.666/93. Passo à análise da segunda questão, que diz respeito aos valores a serem fixados pelas consultas médicas. A propósito, reporto-me ao texto constitucional, que dispõe sobre os meios de prestação de serviços de saúde, verbis: Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

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§ 1° As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

A seu turno, a Lei Federal n. 8.080/90, que dispõe sobre o sistema de saúde, estabelece: Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada. Art. 25. Na hipótese do artigo anterior, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos terão preferência para participar do Sistema Único de Saúde (SUS). Art. 26. Os critérios e valores para a remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura assistencial serão estabelecidos pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovados no Conselho Nacional de Saúde.

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§ 1° Na fixação dos critérios, valores, formas de reajuste e de pagamento da remuneração aludida neste artigo, a direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS) deverá fundamentar seu ato em demonstrativo econômico-financeiro que garanta a efetiva qualidade de execução dos serviços contratados. § 2° Os serviços contratados submeter-se-ão às normas técnicas e administrativas e aos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), mantido o equilíbrio econômico e financeiro do contrato.

Dessa forma, em princípio, a remuneração dos serviços prestados por particulares, visando à complementação dos serviços prestados pelo Estado, deverão atender aos parâmetros fixados pelo SUS. Entretanto, não se vislumbra qualquer óbice para que o Município estabeleça preços acima dos mínimos, em razão de características locais e visando atrair um número maior de profissionais. Nesse sentido, a Portaria n. 1.286/93 do Ministério da Saúde, expõe: Art. 4° [...] Parágrafo único. No tocante aos critérios e valores para a remuneração dos serviços privados, o órgão competente da direção nacional do Sistema Único de Saúde elaborará tabela de preços mínimos dos procedimentos médicos e hospitalares, podendo, entretanto, o Município ou o Estado, no contrato celebrado com o setor privado de fins lucrativos, não lucrativos ou filantrópicos, estabelecer preços acima dos mínimos, em razão das necessidades e disponibilidades materiais e financeiras da respectiva esfera de governo (grifo nosso).

A propósito, esclareça-se que os Municípios, ao adotarem valores diferentes dos mínimos estabelecidos pelo SUS, deverão empregar recursos próprios e verificar os limites de despesas estabelecidos nas leis orçamentárias locais. 177


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É o que estabelece a Portaria n. 1.606/2001, também do Ministério da Saúde: Art. 1° Definir que os estados, Distrito Federal e municípios que adotarem tabela diferenciada para remuneração de serviços assistenciais de saúde deverão, para efeito de complementação financeira, empregar recursos próprios estaduais e/ou municipais, sendo vedada a utilização de recursos federais para esta finalidade.

Destarte, o Município poderá fixar valores acima do mínino fixado pelo Sistema Único de Saúde para os serviços de saúde. Entretanto, a fixação da remuneração deverá observar os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, levando-se em conta as circunstâncias locais e as disponibilidades financeiras, sob pena de ver-se frustrado o modelo adotado pelo Município para a prestação de serviços de saúde. Diante do exposto, em resposta à segunda questão, afirma-se que o valor das consultas poderá ser fixado acima dos valores mínimos estabelecidos pela direção nacional do SUS, cuja complementação deverá ser efetuada com recursos do próprio Município. Finalmente, quanto à terceira questão, ou seja, se a consulta poderá ser prestada no próprio consultório médico, após marcação feita pela Secretaria Municipal de Saúde, a resposta é afirmativa, haja vista que o profissional credenciado não possui vínculo profissional com o ente federativo, não havendo necessidade de prestar o atendimento em local específico do contratante, ressaltando que a escolha do profissional deverá ficar a cargo do usuário e não da Administração. Conclusão: diante das razões expostas, respondo aos questionamentos elaborados nesta consulta, em suma, nos seguintes termos: 1) O Município pode realizar sistema de credenciamento de consultas médicas, desde que precedido de procedimento formal de inexigibilidade de licitação, nos termos do art. 5°, caput, c/c o parágrafo único do art. 26 da Lei n. 8.666/93. 2) A remuneração dos serviços prestados por particulares poderá ser fixada acima dos valores mínimos estabelecidos pela direção nacional do SUS, cuja complementação deverá ser efetuada com recursos do próprio Município e levando-se em conta as circunstâncias locais e as disponibilidades financeiras, sob pena de ver-se frustrado o modelo adotado pelo Município para a prestação de serviços de saúde. 3) A consulta poderá ser prestada no próprio consultório médico, após marcação feita pela Secretaria Municipal de Saúde, haja vista que o profissional credenciado não possui vínculo profissional com o ente federativo, não havendo necessidade de prestar o atendimento em local especificado pelo contratante, desde que a escolha do profissional fique a cargo do usuário. 178


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De acordo com o art. 216 do RITCEMG — Resolução n. 12/2008, este entendimento implica a reforma das teses que dispunham sobre a matéria em outro sentido. É o parecer que submeto à consideração dos Srs. Conselheiros.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 05/05/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram o parecer exarado pelo Relator Conselheiro Antônio Carlos Andrada.

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Possibilidade de utilização do procedimento de dispensa de licitação quando esta for inexigível e seu valor se enquadrar nas hipóteses do artigo 24, I e II, da Lei n. 8.666/93 CONSULTA N. 812.005

[...] resta demonstrado que é possível à Administração optar pelo procedimento de dispensa de licitação previsto no art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93, nos casos em que a contratação, ainda que se enquadre na hipótese de inexigibilidade, tenha valores inferiores aos limites previstos no citado dispositivo legal, sendo desnecessária a ratificação e a publicação do ato de dispensa em órgão oficial de imprensa. RELATORA: CONSELHEIRA ADRIENE ANDRADE

RELATÓRIO Tratam os autos de consulta formulada pelo Sr. William Lúcio Goddard Borges, Prefeito do Município de Sabará, por meio da qual apresenta o seguinte questionamento: Considerando-se, em tese, as hipóteses de inexigibilidade de licitação previstas no art. 25 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, cujos valores se situem no limite do art. 24, II, do Estatuto Licitatório pátrio é necessário obedecer

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ASSCOM TCEMG

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Hipótese de inexigibilidade de licitação — Opção pelo procedimento de dispensa de licitação nos casos previstos pelo art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93 — Possibilidade — Desnecessidade de ratificação do ato de dispensa pela autoridade superior e de sua publicação em órgão oficial de imprensa — Princípios da eficiência, razoabilidade, proporcionalidade e economicidade — Necessidade de motivação do ato.


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in litteris ao disposto no art. 26 do aludido diploma legal, especialmente no que toca à ratificação e publicação do ato na imprensa oficial, ou pode a Administração, em nome da eficiência, da simplificação de procedimentos e da racionalização administrativa relevar tal formalidade?

Autuada, a consulta foi distribuída à minha relatoria, conforme despacho a fls. 3. O Auditor Hamilton Coelho emitiu parecer a fls. 6-11, opinando pela possibilidade de a Administração optar pelo procedimento de dispensa de licitação quando as situações de inexigibilidade se enquadrarem nas hipóteses do art. 24, incisos I ou II, da Lei n. 8.666/93, desobrigando-se, dessa forma, o ente público de ratificar e publicar o ato de dispensa na imprensa oficial. É o relatório, em síntese.

PRELIMINAR

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Preliminarmente, tomo conhecimento da consulta, por ser legítima a autoridade consulente e por ser afeta à competência desta Corte a matéria objeto da indagação, nos termos do inciso XI do art. 3° e do art. 210 do RITCEMG, passando a respondê-la em tese.

MÉRITO Acolhida a preliminar, passo ao exame do quesito formulado. A matéria da consulta refere-se aos procedimentos estabelecidos pela Lei n. 8.666/93 para a formalização das contratações diretas realizadas pela Administração Pública. Da leitura desse diploma legal e do art. 37, XXI, da CR/88, observa-se que as contratações realizadas pelo Poder Público devem obediência a um rigoroso procedimento licitatório. Entretanto, em alguns casos, previstos pela própria lei, é possível a adoção de um procedimento simplificado para a seleção da contratação mais vantajosa para a Administração Pública. Assim, discriminam os arts. 24 e 25 da Lei n. 8.666/93 as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação, nas quais haverá a contratação direta de um particular para a aquisição de bens ou para prestação de serviços ao ente público. Não obstante, a contratação direta com fulcro nos dispositivos supracitados não autoriza o descumprimento de formalidades prévias, principalmente a verificação da necessidade e da conveniência da contratação e a disponibilidade dos recursos públicos. Nesse sentido, o art. 26 da Lei n. 8.666/93 especifica as medidas a serem adotadas pela Administração para os casos de contratação sem licitação, determinando a composição de um processo que formalize essa pactuação: 181


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Art. 26. As dispensas previstas nos §§ 2° e 4° do art. 17 e no inciso III e seguintes do art. 24, as situações de inexigibilidade referidas no art. 25, necessariamente justificadas, e o retardamento previsto no final do parágrafo único do art. 8° desta Lei deverão ser comunicados, dentro de 3 (três) dias, à autoridade superior, para ratificação e publicação na imprensa oficial, no prazo de 5 (cinco) dias, como condição para a eficácia dos atos. Parágrafo único. O processo de dispensa, de inexigibilidade ou de retardamento, previsto neste artigo, será instruído, no que couber, com os seguintes elementos: I — caracterização da situação emergencial ou calamitosa que justifique a dispensa, quando for o caso; II — razão da escolha do fornecedor ou executante; III — justificativa do preço; IV — documento de aprovação dos projetos de pesquisa aos quais os bens serão alocados.

Da análise do dispositivo acima transcrito, constata-se que para as despesas de pequeno valor, nos termos do art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93, a Administração pode desobrigar-se das formalidades de ratificação do ato de dispensa pela autoridade superior e de sua publicação na imprensa oficial, haja vista a simplicidade e a pequena relevância dessas contratações. Isso porque o legislador entendeu que o valor da contratação, abaixo de R$8.000,00 para serviços e de R$15.000,00 para obras e serviços de engenharia, não justifica o dispêndio de parcela significativa de recursos em rigorosos e minuciosos mecanismos de controle. Assim, em observância aos princípios da eficiência, da razoabilidade, da proporcionalidade e da economicidade, nas hipóteses dos incisos I e II do art. 24 da Lei de Licitações, o gestor pode abster-se da publicação do ato de dispensa em órgão oficial de imprensa, uma vez que os custos para essa publicação podem até ser superiores ao valor da despesa contraída. Interpretando a Lei n. 8.666/93 de forma sistêmica, conclui-se que as contratações de serviços e as compras no valor de até R$8.000,00 merecem ser fundamentadas nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93, ainda que se enquadrem na hipótese de inexigibilidade de licitação, pois para gastos de tais valores não se justifica a adoção de procedimentos administrativos mais complexos. Não é por acaso que as modalidades de licitação tornam-se mais minuciosas à medida que os valores contratados se elevam, pois para aquisições de grande vulto faz-se necessária a observância de rigorosos mecanismos de controle do dinheiro público. O Professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes,1 ao comentar decisão do Tribunal de Contas do Distrito Federal acerca do enquadramento das despesas que não ultrapassem os limites fixados nos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93 nas hipóteses de dispensa ou inexigibilidade de licitação, assim se manifestou: 1

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JACOBY FERNANDES, Jorge Ulisses. Vade-Mécum de licitações e contratos. 2. ed. rev. atual e ampl. Belo Horizonte: Forum, 2005. p. 409-410.


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Dispensa — fundamentação — fornecedor exclusivo TCDF decidiu: “[...] diante da possibilidade de duplo enquadramento, considerou incorreta a fundamentação das notas de determinadas notas de empenho tendo em vista enquadrar-se no art. 25, I, e não 24, II, da Lei n. 8.666/93, relevando a falha, porque as despesas serão inexigíveis de licitação”. Fonte: TCDF. Processo n. 417/96. Decisão n. 6.431/96. Nota: a melhor interpretação parece ser, no entanto, o enquadramento no dispositivo que represente maior vantagem para Administração Pública, no caso, o inc. II do art. 24, porque se poupa o custo da publicação. No âmbito do Distrito Federal a decisão está correta porque à época a publicação não era cobrada.

A respeito do tema, o Tribunal de Contas da União adota igual entendimento: REPRESENTAÇÃO. ATOS DE DISPENSA E INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO. PUBLICAÇÃO E FUNDAMENTAÇÃO. CONHECIMENTO. PROCEDÊNCIA. As aquisições caracterizadas por dispensa ou inexigibilidade de licitação, previstas nos arts. 24, incisos III e seguintes, e 25, da Lei n. 8.666/93, podem ser fundamentadas em dispensa de licitação, alicerçadas no art. 24, incisos I e II, da referida lei, quando os valores se enquadrarem nos limites estabelecidos neste dispositivo (Acórdão 1336/2006, Plenário, Relator Ministro Ubiratan Aguiar, DOU 07/08/06).

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Reitero que a desnecessidade de publicação em órgão de imprensa oficial não exime o órgão público de motivar o ato que dispensou a licitação, haja vista ser imprescindível dar conhecimento ao público da conduta da Administração. Dessa forma, resta demonstrado que é possível à Administração optar pelo procedimento de dispensa de licitação previsto no art. 24, I e II, da Lei n. 8.666/93, nos casos em que a contratação, ainda que se enquadre na hipótese de inexigibilidade, tenha valores inferiores aos limites previstos no citado dispositivo legal, sendo desnecessária a ratificação e a publicação do ato de dispensa em órgão oficial de imprensa.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 12/05/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheiro Sebastião Helvecio e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pela relatora, Conselheira Adriene Andrade.

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Limitações ao exercício concomitante de mandato de Prefeito com atividade profissional privada CONSULTA N. 812.227

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Exercício concomitante do mandato de Prefeito com atividade profissional privada — Possibilidade — Observância dos impedimentos e incompatibilidades previstas na Lei Orgânica do Município e dos princípios da moralidade e impessoalidade. [...] além de observar as regras impostas pelo direito local, o outro ofício desempenhado pelo Prefeito não poderá imiscuir-se na seara administrativa, a fim de prevenir a contaminação entre as esferas pública e privada. RELATORA: CONSELHEIRA ADRIENE ANDRADE

RELATÓRIO Tratam os autos de consulta formulada pelo Sr. Jorge Romel Cunha, Prefeito do Município de São João do Oriente, por meio da qual apresenta o seguinte questionamento: Pode um Prefeito Municipal, dentro do seu mandato, vir a exercer, nos fins de semana e feriados, bem como antes ou depois do horário de expediente da Prefeitura, uma atividade profissional privada (por exemplo: atendimento em seu consultório médico particular; atividade de contadoria; trabalho em comércio ou até mesmo trabalho voluntário)?

Autuada, a consulta foi distribuída à minha Relatoria, conforme despacho a fls. 08. O Auditor Gilberto Diniz emitiu parecer a fls. 11-14, opinando, em preliminar, pelo não conhecimento da consulta, em razão de seu objeto não envolver dúvida sobre a gestão de recurso público. No mérito, esclareceu ser possível o exercício concomitante do mandato de Prefeito e de atividade profissional de caráter privado, desde que não configuradas as incompatibilidades eventualmente previstas nas legislações nacional e municipal e sempre em obediência ao princípio da moralidade e da ética de cada atividade ou ofício. 184


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É o relatório, em síntese.

PRELIMINAR Pelo exame dos pressupostos de conhecimento da presente consulta, infere-se a legitimidade da autoridade consulente, consoante preceituado no inciso I do art. 210 do RITCEMG. No tocante ao seu objeto, ainda que possa haver divergência quanto à competência desta Corte para emitir parecer acerca da possibilidade do exercício concomitante do mandato de Prefeito e de outra atividade profissional, entendo que essa matéria é afeta às atribuições deste Tribunal, pois envolve reflexões sobre proibições e incompatibilidades impostas aos chefes do Poder Executivo municipal, que repercutem no exercício de seus mandatos e no regime de trabalho durante seus misteres.

Pareceres e decisões

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Assim, tendo em vista que o questionamento formulado pelo consulente é relevante e de inegável interesse para o correto exercício da gestão pública, considero pertinente que esta Corte esclareça, em tese, sua dúvida e estabeleça as diretrizes que poderão auxiliá-lo na gestão administrativa, em atendimento à missão orientadora e pedagógica afeta aos Tribunais de Contas. Desse modo, preenchidos os requisitos de admissibilidade estipulados no art. 212 do RITCEMG, conheço da presente consulta.

MÉRITO Acolhida a preliminar, passo ao exame do quesito formulado. A presente consulta remete-nos à análise da possibilidade do exercício concomitante do mandato de Prefeito e de outra atividade profissional. Não recai, portanto, sobre a acumulação de cargos, empregos ou funções, matéria disciplinada nos incisos XVI e XVII do art. 37 e no art. 38 da CR/88, mas diz respeito às proibições e às incompatibilidades opostas ao exercício de cargos e mandatos municipais. Nos termos dos incisos IX e XIV do art. 29 da CR/88,1 compete ao Município, por meio da Lei Orgânica, estabelecer os casos de proibições e incompatibilidades para o exercício da vereança, observados os princípios constitucionais. Embora o texto constitucional faça menção expressa apenas ao exercício da vereança, não 1

CR/88, Art. 29: O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...] IX — proibições e incompatibilidades, no exercício da vereança, similares, no que couber, ao disposto nesta Constituição para os membros do Congresso Nacional e na Constituição do respectivo Estado para os membros da Assembleia Legislativa; [...] XIV — perda do mandato do Prefeito, nos termos do art. 28, parágrafo único.

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pairam dúvidas de que na Lei Orgânica do Município devem inscrever-se todos os impedimentos do Prefeito, inclusive os de caráter profissional. A lição de Hely Lopes Meirelles corrobora esse entendimento, in verbis: Incompatibilidades ou impedimentos são restrições de interesse administrativo opostos ao exercício do mandato. Para cargos e mandatos municipais a competência para estabelecer incompatibilidades ou impedimentos é agora do próprio Município, razão pela qual a Constituição da República limitou-se a fixálos para os membros do Congresso Nacional (art. 54), dispondo, em seu art. 29, IX (cf. EC 1, de 1992), aplicarem-se, no que couber, aos vereadores (Direito municipal brasileiro, 15. ed., SP: Malheiros, p. 106).

No mesmo sentido são os ensinamentos de José Nilo de Castro: As mesmas regras, referentemente às incompatibilidades do exercício do mandato, estabelecidas para os Vereadores, devem aplicar-se ao Prefeito Municipal, na Lei Orgânica (Direito municipal positivo, 5. ed., Del Rey, p. 205).

Outrossim, a análise de eventual impedimento para o exercício concomitante de atividade profissional privada com o mandato de Prefeito deverá basear-se na Lei Orgânica do Município, bem como nos princípios constitucionais que regem a administração pública. Note-se que, além de observar as regras impostas pelo direito local, o outro ofício desempenhado pelo Prefeito não poderá imiscuir-se na seara administrativa, a fim de prevenir a contaminação entre as esferas pública e privada. Assim, na apreciação sistemática do art. 54 da CR/88, conclui-se que o Prefeito estará impedido de celebrar contratos pessoais com a Administração Pública, ser proprietário, controlador ou diretor de empresas beneficiadas com privilégios ou favores concedidos pelo Município e exercer o patrocínio de causas contra a Fazenda Pública ou de causas em que o Município seja interessado. Esse tema já foi apreciado por este Tribunal, nos autos da Consulta n. 440.560/98, da relatoria do Conselheiro Sylo Costa, oportunidade em que deliberou o seguinte: EMENTA: INADMISSIBILIDADE DE CONTRATAÇÃO POR AUTARQUIA MUNICIPAL DOS SERVIÇOS PROFISSIONAIS MÉDICOS DE QUEM É PREFEITO. OBEDIÊNCIA AO ART. 9°, III, E § 3°, DA LEI DE N. 8.666/93, COM REDAÇÃO DADA PELAS LEIS N. 8.883, DE 08.06.94, E 9.648, DE 27.05.98, E AINDA AOS PRINCÍPIOS DA IMPESSOALIDADE E MORALIDADE EXPRESSOS NO ART. 37, CAPUT, DA CARTA FEDERAL.

Do parecer do Conselheiro Relator, destaque-se o trecho em que afirma que: [...] há incompatibilidade, não pelo fato de o Prefeito estar exercendo uma função pública, mas em razão da sua contratação pelo ente municipal afrontar

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os princípios maiores da Constituição. Isto, face aos princípios da impessoalidade e moralidade insculpidos na Lei Maior, em seu art. 37, caput de observância obrigatória para todos os entes da Administração Pública; é inadmissível a contratação por uma autarquia municipal dos serviços profissionais de médico que é Prefeito Municipal. Reforça nossa posição o disposto no art. 9° da Lei n. 8.666/93, inciso III, que veda a participação direta ou indireta de servidor ou dirigente de órgão, in casu o Prefeito Municipal, na licitação ou na execução de obras ou serviços e no fornecimento de bens a ele necessários.

Além das vedações inerentes à Administração, o exercício de determinadas atividades pode ser considerado inconciliável com o mandato de Prefeito pelos estatutos da categoria, como ocorre, por exemplo, com a advocacia, profissão considerada incompatível, mesmo em causa própria, para o chefe do Poder Executivo, por força do art. 28 da Lei n. 8.906/94, Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

Pareceres e decisões

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Assim sendo, respeitadas as hipóteses legais de incompatibilidade e os princípios que regem a Administração Pública, não haverá óbice ao exercício concomitante de uma atividade profissional privada pelo Prefeito do Município. Conclusão: diante de todo o exposto, entendo ser possível o exercício concomitante de atividade profissional privada com o mandato de Prefeito, desde que respeitados os impedimentos e as incompatibilidades previstos na Lei Orgânica do Município, bem como os princípios da moralidade e impessoalidade. É o parecer que submeto à apreciação dos Senhores Conselheiros.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 09/06/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Substituto Hamilton Coelho e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pela relatora, Conselheira Adriene Andrade. Impedido o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Sistema de Registro de Preços: necessidade de demonstração da conformidade dos preços que orientam o certame com os praticados no mercado CONSULTA N. 812.445

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Licitação — Sistema de Registro de Preços — Cotação prévia de preços — Ausência de interessados — Dificuldade para instrução dos processos licitatórios — Utilização de bancos de dados de outros órgãos, entidades ou entes federados, cujos mercados sejam regionalmente semelhantes — Possibilidade — Viabilidade de juntada de outros documentos comprobatórios da compatibilidade de preços com os praticados no mercado — Observância do princípio da maior competitividade possível na fixação do objeto licitado e na composição do edital do certame. ASSCOM TCEMG

[...] as peculiaridades de casos concretos podem levar o gestor a situações que não propiciem colheita de propostas suficientes para uma adequada comparação. Em hipóteses como esta, em que não seja razoavelmente possível obterem-se mais propostas, deve-se procurar outros elementos que configurem demonstração da compatibilidade de preços com o mercado. Por exemplo, documentos que comprovem outras vendas efetuadas por fornecedores a entes privados ou públicos, anúncios públicos, extratos de publicações contratuais, pesquisas em sítios eletrônicos de compras governamentais de outros entes federativos etc. RELATOR: CONSELHEIRO SEBASTIÃO HELVECIO

RELATÓRIO Trata-se de Consulta protocolada neste Tribunal sob o n. 226.704/02, em 19/01/2010, formulada pelo Controlador Interno do Município de Guapé — MG, Paulo Júnior Barbosa, na qual apresenta questão relacionada à dificuldade de obtenção de propostas de eventuais licitantes, para formação de uma cotação suficiente de 188


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preços no mercado para instrução dos procedimentos relativos ao registro de preços. Indaga, in verbis: O que pode ser feito diante do fato exposto acima e o que pode ser observado para que seja instituído um registro de preços que atenda a Administração, sem os entraves propostos.

Em atendimento ao art. 214 do Regimento Interno, anoto que não foi localizada nos arquivos deste Tribunal nenhuma deliberação desse egrégio Plenário sobre as questões formuladas. É o relatório.

PRELIMINAR

Pareceres e decisões

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O consulente, controlador interno do Município de Guapé/MG, é legitimado à formulação de consulta a este Tribunal, nos termos do inciso XI do art. 210 do Regimento Interno, e seus questionamentos preenchem, ainda, os requisitos de admissibilidade do seu art. 212, não abordam caso concreto e encerram relevante repercussão jurídica, estando a resposta, assim, inserida no âmbito de competência desta Corte de Contas. Presentes os pressupostos, voto pela admissão da consulta.

Diante da preliminar suscitada pelo relator, manifestou-se Conselheiro Eduardo Carone Costa: Sr. Presidente, com a devida vênia, eu acho que isso é uma consultoria, porque a pergunta não revela nenhuma dúvida de natureza financeira, orçamentária, contábil ou patrimonial. Solicita o signatário, o controlador interno, que o Tribunal apresente o que pode ser feito em termos de registro de preço. Ele alega, na exposição, que não encontra regras definidas para que o registro de preço possa ser aplicado em todos os municípios. Isso não é matéria, a meu ver, que o Tribunal possa regulamentar e obrigar os municípios.

A preliminar suscitada pelo relator foi acolhida. Vencido o Conselheiro Eduardo Carone Costa.

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MÉRITO O consulente questiona, em suma, acerca de abordagem jurídica referente à notória dificuldade da maioria dos municípios mineiros em obterem respostas das empresas, quando são feitas consultas para formação de cotações de preços, com o objetivo de se instruírem processos de licitação para registro de preços. Quanto ao Sistema de Registro de Preços, Justen Filho1 o considera uma das mais úteis e interessantes alternativas de gestão de contratações colocada à disposição da Administração Pública. As vantagens propiciadas pelo SRP até autorizam a interpretação de que sua instituição é obrigatória por todos os entes administrativos, não se tratando de uma mera escolha discricionária.

O citado jurista conceitua o registro de preços como um contrato normativo, constituído como um cadastro de produtos e fornecedores, selecionados mediante licitação, para contratações sucessivas de bens e serviços, respeitados lotes mínimos e outras condições previstas no edital.

Como cediço, o sistema de registro de preços está minuciosamente descrito no art. 15 da Lei n. 8.666/93, cujo § 3° estabelece: Art. 15 [...] [...] § 3° O sistema de registro de preços será regulamentado por decreto, atendidas as peculiaridades regionais [...]

Desse comando extrai-se que o sistema de registro de preços deva levar em conta as peculiaridades regionais que podem ser mais bem atendidas se for esse sistema instituído por decreto do Executivo. A exemplo da União, Decreto n. 3.931, de 19 de setembro de 2001, e do Estado de Minas Gerais, Decreto n. 44.787, de 18 de abril de 2008, mostra-se recomendável aos Municípios a adoção de ato normativo que regule, no âmbito de sua autonomia administrativa, o procedimento de registro de preços, atentando-se, sempre, por óbvio, aos comandos centrais sobre o tema, inseridos na Lei de Licitações e contratos administrativos e na Lei n. 10.520/2002, que regula o pregão. Quanto à especificidade dessa consulta, o tema versa sobre dificuldades nos procedimentos de cotação de preços hábeis a fim de se instruir os procedimentos de licitação para registro de preços, de modo a se demonstrar, da melhor forma possível, que os preços registrados estão em conformidade com os praticados no mercado. 1

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Comentários à Lei de Licitações e contratos administrativos. São Paulo: Dialética, 2005, p. 144.


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Entendo que esse é um dos objetivos mais importantes do instituto da licitação, consagrado no art. 37, XXI, da Constituição Cidadã, ou seja, devem ser viabilizadas compras governamentais compatíveis com os valores praticados no mercado, sendo indispensável essa demonstração, não só nos autos dos processos licitatórios para registro de preços, mas, também, nos demais procedimentos de aquisição de bens e serviços pela Administração Pública, como em diversas oportunidades determina a legislação infraconstitucional sobre o tema. Deve-se, assim, atentar para o cumprimento efetivo do art. 43, IV, da Lei de Licitações, com a realização de procedimento minucioso de cotação prévia de preços para composição da estimativa, de modo a se mostrarem, nos autos da licitação, valores inequivocamente adequados aos praticados no mercado. Do mesmo modo, deve-se cumprir o art. 3°, I e III, da Lei n. 10.520, com a adoção e inserção nos autos, quando da elaboração da fase interna da licitação, de ampla fundamentação técnica sobre a composição do orçamento dos itens licitados.

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Como se vê, a regra é que se faça na fase interna da licitação uma cotação ampla, detalhada, transparente, cuidadosa, de modo a se configurar um juízo seguro de que os preços orçados estão compatíveis com os que são praticados comumente para a iniciativa privada. O Tribunal de Contas da União já abordou questão similar, no Acórdão 828/2004, por meio de sua Segunda Câmara, citado no próprio Manual de Licitações do TCU,2 no qual se recomendou ao gestor: Promova, em todos os procedimentos licitatórios, a realização de pesquisa de preços em pelo menos duas empresas pertencentes ao do objeto licitado ou consulta a sistema de registro de preços, visando aferir a compatibilidade dos preços propostos com os praticados no mercado, nos termos do disposto no inciso V, § 1°, art. 15 e inciso IV, art. 43, da Lei 8.666, de 1993 e Decisões n. 431/1993-TCU Plenário, 288/1996-TCU Plenário e 386/1997 Plenário.

Acórdão 828/2004 Segunda Câmara Este Tribunal de Contas também se pronunciou sobre a questão na Licitação n. 696.116, Relator Conselheiro Wanderley Ávila, citada na edição especial da Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais:3 Licitação. Pesquisa de preços no mercado. ‘[...] não constou dos autos a comprovação da realização de ampla pesquisa de mercado, objetivando a 2

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações e contratos: orientações básicas. Tribunal de Contas da União, Brasília, 3. ed., ver., atual. ampl. p. 41, 2006.

3

BRASIL. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. A Lei 8.666/93 e o TCEMG. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais — edição especial, Belo Horizonte, ano XXVII, p. 56, 2009.

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aferição de compatibilidade dos preços ofertados pelos licitantes. [...] A pesquisa apresentada limitou-se a 01 (um) fornecedor para cada marca do produto [...], não sendo, portanto, observada a amplitude exigida no art. 3° do Decreto Municipal n. 2.302/1999, c/c disposto no § 1° do art. 15 da Lei n. 8.666/93. Apesar da realização de pesquisa em três empresas distintas, cada uma delas cotou uma marca diferente e, nestes termos, a amplitude da pesquisa restou prejudicada’ (Licitação n. 696.116. Relator Conselheiro Wanderley Ávila. Sessão do dia 03/05/2006). Licitação. Pesquisa de mercado. ‘[...] a ausência de pesquisa de mercado é uma falta grave, pois a verificação da compatibilidade do preço contratado, com o valor rotineiramente praticado, é dever que independe de exigência legal, estando afeto ao cuidado do administrador para com o dinheiro público. [...] o Tribunal de Contas da União orientou que se deve realizar ampla pesquisa de preços no mercado, a fim de estimar o custo do objeto a ser contratado, conforme reitera em inúmeras decisões, com destaque para o Acórdão n. 1182/04, produzido na Sessão Plenária de 18/09/04. Dessa forma, [...] ao infringir o art. 43, inciso IV, da Lei de Licitações, [o administrador cria o] [...] risco de uma contratação onerosa, fora dos padrões de mercado’ (Licitação n. 704.186. Relatora Conselheira Adriene Andrade. Sessão do dia 06/05/2008).

A propósito, a obra do TCU, de 409 páginas, e a edição especial da revista desta Casa, de 285 páginas, todas disponíveis gratuitamente nos respectivos sítios da internet, se revelam ferramentas bastante úteis ao cotidiano das contratações públicas, servindo de manuais para condução dos respectivos processos. Entretanto, voltando à consulta, as peculiaridades de casos concretos podem levar o gestor a situações que não propiciem colheita de propostas suficientes para uma adequada comparação. Em hipóteses como esta, em que não seja razoavelmente possível obterem-se mais propostas, deve-se procurar outros elementos que configurem demonstração da compatibilidade de preços com o mercado. Por exemplo, documentos que comprovem outras vendas efetuadas por fornecedores a entes privados ou públicos, anúncios públicos, extratos de publicações contratuais, pesquisas em sítios eletrônicos de compras governamentais de outros entes federativos etc. Aliado a isso, deve-se, ainda, ter sempre em mente o princípio da mais ampla competitividade possível, que impõe ao administrador conferir, quando da gestão de seu sistema de compras e da confecção de seus editais, a maior atratividade possível e, ainda, evitar cláusulas restritivas injustificadas ou inadequadas. Deve prevalecer esse comando para que se apresentem mais propostas e se elevem as chances de contratações por menores preços, conforme impõe o art. 3°, § 1°, I, da Lei n. 8.666/93, que veda aos agentes públicos admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo

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e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato.

Joel de Menezes Neibuhr4 adverte que a concretização rigorosa da competitividade não é tarefa fácil. O agente público responsável pela licitação deve saber com clareza o que visa a Administração Pública, explicar esse interesse no edital a ser publicado sem deixar margem a dúvidas, fazendo com que todos os que virtualmente possam respaldar a pretensão negocial administrativa se apresentem e, por fim, apreciar as propostas sem se apartar dos termos iniciais.

De qualquer modo, é imprescindível que o gestor de recursos públicos, ou o que sua vez faz, demonstre ao longo dos procedimentos de contratação, por meios razoáveis, que os valores orçados e, consequentemente, os contratados, são compatíveis com o mercado e que ele se esforçou para conferir ao certame a maior competitividade possível, explicitando os motivos ou fatos que ensejaram uma eventual e indesejada ausência de interessados.

Pareceres e decisões

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Vale lembrar que a Lei de Licitações, a Lei do Pregão e as boas práticas em administração pública recomendam uma rigorosa organização de processos e de documentos; objetos licitados bem definidos e transparentes; justificativas consistentes quanto às necessidades administrativas; controle permanente e planejamento adequado de compras, em constante articulação com as unidades administrativas; dentre outras condutas úteis a conferir melhor qualidade à gestão de recursos públicos e a propiciar a realização de procedimentos licitatórios eficazes. Essas práticas, sem dúvida, também colaboram para a geração de maior atratividade aos certames, colocando em prática o princípio da maior competitividade possível. De todo exposto, no intuito de responder à indagação desta consulta, podese concluir, não obstante a vastidão do tema, que a regra vigente é a da maior competitividade possível, a qual impõe a tarefa de configuração, pelo gestor, de objetos licitados bem definidos e atraentes e de editais o menos possível restritivos, para que acorra ao certame o maior número possível de interessados, viabilizando, assim, ampla cotação para uma definição consistente e clara de que preços orçados e, também, os contratados estão compatíveis com os praticados no mercado, como, aliás, impõem o art. 15, V, § 1° e o art. 43, IV, da Lei n. 8.666/93 e, também, o art. 3°, III, da Lei n. 10.520/02. Não sendo possível, eventualmente, por circunstâncias excepcionais, a confecção dessa ampla cotação de preços, devem ser explicitados, nos autos, os motivos que a 4

Pregão presencial e eletrônico. Curitiba: Zênite, 2004.

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inviabilizaram e serem colhidos e anexados, dentro do razoável, outros documentos que se prestem a comprovar valores de mercado para o objeto da licitação. Conclusão: diante do exposto, concluo, nos casos eventuais em que não acorram suficientes potenciais licitantes aos procedimentos de aquisição de bens e serviços pela Administração, tanto para a fase interna quanto para a fase externa, de modo a se configurar clara compatibilidade com os preços praticados no mercado, ser imprescindível que se faça demonstrar, nos autos, nas oportunidades processuais cabíveis, que o gestor envidou os esforços possíveis, dentro do razoável, para obter as cotações e outros documentos que comporiam esse juízo e que observou o princípio da maior competitividade possível na fixação do objeto licitado e na composição do edital do certame. É a resposta.

Na sessão do dia 14/04/10, pediu vista dos autos o Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

Retorno de Vista CONSELHEIRO EM EXERCÍCIO GILBERTO DINIZ

RELATÓRIO Tratam os autos de consulta formulada pelo Sr. Paulo Júnior Barbosa, Controlador Interno do Município de Guapé, na qual o consulente relata dificuldade de se instituir, na Administração, o sistema de registro de preços devido a insuficiência de empresas interessadas em apresentar cotações, quando consultadas em pesquisa prévia de mercado, levando a Prefeitura a ter em mãos a informação de preços de apenas um favorecido. Ao final, indaga: O que pode ser feito diante do fato exposto acima e, o que pode ser observado para que seja instituído um registro de preços que atenda a Administração, sem os entraves expostos.

Autuada e distribuída à relatoria do Conselheiro Sebastião Helvecio, a consulta foi levada à apreciação do Pleno na sessão de 14/04/10, que assim concluiu, verbis: Diante do exposto, concluo, nos casos eventuais em que não acorram suficientes potenciais licitantes aos procedimentos de aquisição de bens e serviços pela

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Administração, tanto para a fase interna quanto para a fase externa, de modo a se configurar clara compatibilidade com os preços praticados no mercado, ser imprescindível que se faça demonstrar, nos autos, nas oportunidades processuais cabíveis, que o gestor envidou os esforços possíveis, dentro do razoável, para obter as cotações e outros documentos que comporiam esse juízo e que observou o princípio da maior competitividade possível na fixação do objeto licitado e na composição do edital do certame.

Após o voto do Conselheiro Relator, pedi vista dos autos para melhor refletir sobre o caso. É o relatório, em síntese.

MÉRITO

Pareceres e decisões

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Ressalto, inicialmente, que a preocupação do gestor é de todo pertinente. A ampla pesquisa, no âmbito de qualquer procedimento licitatório, com efeito, é instrumento essencial para aferição da conformidade dos valores apresentados em cada proposta comercial com os preços praticados no mercado, ensejando a desclassificação daquela que esteja em desconformidade com o parâmetro utilizado na busca da proposta que ofereça mais vantagens para a Administração Pública. Evita-se, com isso, a ocorrência de preço inexequível ou de sobrepreço, nos termos do preceituado no inciso XXI do art. 37 da Constituição da República de 1988 e no inciso V do art. 43 da Lei n. 8.666/93, Lei Nacional de Licitação. A realização de pesquisa dessa natureza, porém, não constitui tarefa fácil, por exigir estrutura composta de equipamentos, recursos e pessoal especializado, com domínio sobre as peculiaridades do mercado e as técnicas de coleta e tabulação de dados. Além disso, a Administração Pública depara-se, com frequência, com outros fatores que dificultam ainda mais essa tarefa, como o da hipótese levantada pelo consulente, materializada no desinteresse de fornecedores em disponibilizar cotações de produtos por eles comerciados que propiciem subsídios para a formação de banco de dados com os preços comumente praticados no mercado. Cumpre evidenciar, entretanto, que o indeclinável dever de a Administração demonstrar a realidade dos preços praticados no mercado, nos termos estabelecidos no § 1° do art. 15 da Lei n. 8.666/93, não necessariamente se vincula à realização de ampla pesquisa. Diante de comprovadas dificuldades, como aquela relatada pelo consulente, pode o realizador do certame valer-se de bancos de dados de outros órgãos ou entidades, mesmo de outros entes federados, cujos mercados sejam regionalmente semelhantes. A respeito desse tema, o Professor Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, assim preleciona, in verbis: 195


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Com frequência, surge a questão da possibilidade de uma Prefeitura servir-se de ampla pesquisa realizada por outra, em período recente: A resposta deve considerar dois aspectos: 1. custo de vida e preços em geral — como regra, há indicadores oficiais do custo de vida envolvendo as cidades brasileiras, pelo menos das grandes capitais. Se os índices são bastante próximos, podem ser utilizados os bancos de dados da pesquisa realizada, desde que satisfeito também o item seguinte; 2. nas compras ordinárias, corriqueiras, da Administração, envolvendo quase que unicamente o mercado local, é de todo conveniente que seja promovida pesquisa de reforço para corroborar os dados básicos da pesquisa promovida por outra entidade. A combinação desses dois parâmetros constitui um guia seguro para a ação administrativa (In: Sistema de registro de preços e pregão. 2. ed. BH: Fórum, 2006, p. 218-219).

Nessa esteira, como bem salientado pelo relator, quando não ocorram suficientes potenciais licitantes, a solução mais consentânea com a legislação, especialmente com os comandos insertos no § 1° do inciso V do art. 15 e no art. 113 da Lei Nacional de Licitação, é a cabal demonstração, nos autos do procedimento licitatório, que os preços que orientam o certame estão em conformidade com os praticados no mercado. Isso pode ser feito por meio de pesquisas em sítios eletrônicos de compras governamentais de outros entes federados; de extratos de publicações contratuais; de vendas efetuadas por fornecedores a entes privados ou públicos; de consultas a revistas especializadas; de questionários, se a pesquisa for feita diretamente no estabelecimento comercial; de ligação telefônica, tomando-se o cuidado de registrar o número do telefone, dia e hora da ligação e nome do atendente; da internet, entre outros. Não se pode deixar de registrar, ainda, que os princípios da isonomia, economicidade e competitividade devem ser prestigiados ao longo de todo o procedimento licitatório. E mais: devem ser considerados os requisitos vetores da ampla pesquisa, consubstanciados, principalmente, na generalidade, que é a delimitação dos possíveis fornecedores à Administração, e na atualidade, que consiste na eleição de margem temporal da pesquisa que reflita, inequivocamente, a adequação do preço à realidade do mercado. Como se vê, a dificuldade levantada pelo consulente pode ser contornada, valendo-se das orientações contidas no voto do relator, devendo o administrador público demonstrar a regularidade dos atos praticados, documentando os dados obtidos na pesquisa balizadora do parâmetro adotado para escolha do preço pela Administração. 196


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Conclusão: nesses termos, acompanho o voto do relator, Conselheiro Sebastião Helvecio, ressaltando a necessidade de a Administração motivar as ocorrências e os atos praticados para instituição do Registro de Preços.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno, na sessão do dia 21/07/10, presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, Conselheiro Elmo Braz, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Sebastião Helvecio.

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Impossibilidade de autorização, pelo Poder Legislativo, de abertura de créditos especiais ao Poder Executivo sem indicação das fontes financiadoras desses créditos no projeto de lei CONSULTA N. 833.284

EMENTA: Consulta — Câmara Municipal — Autorização para abertura de créditos especiais ao Poder Executivo — Indicação das fontes financiadoras desses créditos no projeto de lei — Necessidade — Aplicabilidade da regra geral da estrita legalidade orçamentária — Justificativa para abertura dos créditos especiais — Observância do disposto no art. 45 da Lei n. 4.320/64. No caso dos créditos especiais, que são o objeto desta consulta, entendo que relegar a momento posterior à autorização legislativa a indicação das fontes dos recursos pelo Executivo significa conferir a esse Poder uma faculdade de alteração orçamentária de forma unilateral que não tem previsão na Constituição nem na legislação orçamentária. RELATOR: CONSELHEIRO SEBASTIÃO HELVECIO

RELATÓRIO Trata-se de Consulta protocolada neste Tribunal de Contas sob o n. 231.552/02, em 06/04/2010, formulada pelos Vereadores Sérgio Eugenio Silva, Alessandra Vitar Sudério e Erik dos Reis Roberto, do Município de Três Pontas, na qual se indaga, conforme a fls. 01: “a abertura de créditos especiais sem a indicação dos recursos a serem anulados pode ser autorizada pela Câmara Municipal?” Em atendimento ao art. 214 do Regimento Interno, anoto que este Tribunal já se pronunciou sobre a matéria autorização e abertura de créditos especiais nas Consultas n. 43.664, Conselheiro Hércules Diz, sessão 13/02/1992; 190.737, Conselheiro Nilson Gontijo, sessão de 02/08/1995; 214.957, também do Conselheiro Nilson Gontijo, sessão de 16/08/1995.

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Entretanto, observo que essas citadas consultas não abordam especificamente a dúvida inserida nesta consulta, relativa ao momento correto para a indicação das fontes destinadas a cobrir créditos adicionais especiais — questão, ainda, não especificamente tratada por esse Plenário. As decisões foram citadas, portanto, como sói acontecer nos pareceres que ofereço em consultas, com o objetivo de colaborar para a promoção de melhor tratamento das informações produzidas no âmbito deste Tribunal, importante para a sistematização dos pareceres da Casa, e de conferir mais utilidade à incumbência dada a essa Corte pelo art. 3°, XI, da Lei Complementar n. 102/2008. É o relatório.

PRELIMINAR

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Os consulentes, vereadores do Município de Três Pontas/MG, compondo um terço da Câmara Municipal, são legitimados à formulação de consulta a este Tribunal, nos termos do inciso VII do art. 210 do Regimento Interno, e seus questionamentos preenchem, ainda, os requisitos de admissibilidade do seu art. 212 e encerram relevante repercussão jurídica, financeira e orçamentária, estando a resposta, assim, inserida no âmbito de competência desta Corte de Contas. Interessante anotar, entretanto, que a Câmara Municipal de Três Pontas conta com 10 vereadores eleitos, conforme informações disponíveis no sítio eletrônico do Tribunal Regional Eleitoral. De uma primeira leitura, poder-se-ia inferir que não se enquadraria o número de 3 vereadores no quantitativo de 1/3, no mínimo, dos componentes da edilidade, conforme nosso Regimento Interno, vez que, em termos pragmáticos, a terça parte de 10 seria 3,33, ou seja, quantidade numérica maior que a de consulentes. Entretanto, entendo que deva prevalecer a lógica do arredondamento para a definição do quórum, utilizada amplamente no estabelecimento das votações do Poder Legislativo, pelo que, feitas essas considerações, efetivamente voto pela admissão da consulta.

MÉRITO Os consulentes questionam sobre a possibilidade de a Câmara Municipal autorizar a abertura de créditos especiais sem a indicação de quais os recursos orçamentários seriam anulados para cobertura das despesas. 199


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Em uma análise superficial, a questão poderia parecer de fácil resposta, vez que o art. 167, V, da Constituição Cidadã expressamente veda “a abertura de crédito suplementar ou especial sem prévia autorização legislativa e sem indicação dos recursos correspondentes.” Entretanto, analisando-se a documentação anexada, percebe-se que a dúvida reside, basicamente, se é necessária, ou não, no projeto de lei ou na lei que autoriza a abertura dos créditos especiais, a indicação dos recursos que os sustentarão. Noutras palavras, entendo que a dúvida reside, em suma, se é possível, somente na prolação do decreto do Poder Executivo que efetivamente abrir os créditos especiais, fazer a indicação dos recursos que os embasariam. Este egrégio Plenário, por vezes, abordou o tema da abertura dos créditos adicionais, a exemplo do que se consignou na Consulta n. 723.995, relator eminente Conselheiro Substituto Gilberto Diniz, sessão de 03/10/2007, que, com base no inciso XXIII do art. 84, c/c o inciso III do art. 165 e o inciso V do art. 167 da Constituição e, ainda, nos arts. 42 e 43 da Lei n. 4.320/64, assim fez-se consignar: De forma meridiana e concatenada, esses dispositivos tecem a sistemática a ser observada pela Administração Pública, para suprir inexistências e insuficiências orçamentárias, mediante diploma específico de iniciativa privativa do Chefe do Executivo, na qualidade de representante legal das entidades políticas e, por conseguinte, o responsável pela gestão superior de seus respectivos orçamentos. Vale dizer, no sistema prescrito pelo legislador constituinte de 1988, compete ao Chefe do Executivo, nos três níveis de governo, tanto a iniciativa da Lei Orçamentária Anual como a de abertura de créditos suplementares ou especiais, podendo a Lei de Meios autorizar a suplementação orçamentária até determinado limite. No entanto a abertura de créditos adicionais deve ser precedida de exposição de motivos, sendo que o respectivo ato deve indicar a fonte dos recursos para fazer face à despesa, a qual se pode originar de superávit financeiro, excesso de arrecadação, anulação parcial ou total de dotações orçamentárias ou operações de crédito (grifos acrescidos).

Na doutrina, Afonso Gomes Aguiar,1 comentando o caput do art. 43 da Lei 4.320/64, defende que Afora a existência de recursos financeiros exigida legalmente, para atender às despesas a serem amparadas pelos citados créditos, exige a verba de lei que a sua abertura seja precedida de uma exposição de motivos, onde fiquem consubstanciadas as razões que justifiquem a necessidade da abertura dos mesmos. Como a abertura desses créditos é feita por Decreto depois de autorizada por lei, deve-se compreender que a justificativa prévia aqui exigida é da obrigação do Chefe do Poder Executivo que a dirige ao Poder Legislativo, 1

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AGUIAR, Afonso Gomes. Lei n. 4.320 comentada ao alcance de todos. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 303 e 304.


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no momento em que remete a este o Projeto de lei propondo autorização para a abertura dos créditos referidos.

Como se vê, defende o autor que as justificativas para a solicitação de créditos suplementares e especiais pelo Poder Executivo ao Legislativo devem constar expressamente do projeto de lei respectivo. Nessa linha, avançando mais no tema, entendo que, além dessas justificativas, a fonte dos recursos que cobrirão esses novos créditos orçamentários deve constar da proposta legislativa. Essa afirmação, no meu sentir, decorre de diversos princípios reconhecidos pelo Direito Financeiro, dentre os quais se destacam o da legalidade orçamentária2 (art. 48, II, IV, 166, 167, I, III, V, VI e IX, da CR/88), o do planejamento orçamentário e o da transparência orçamentária.

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Outrossim, não se pode olvidar que, hoje, a tendência é a de que os orçamentos não mais se apresentem como mera ficção, sendo de se esperar dos Tribunais de Contas a defesa e a promoção de orçamentos reais, efetivamente democráticos, essenciais à atuação dos Estados modernos. Devem ser eles vinculativos e verdadeiros programas de governo aprovados por lei, razão pela qual qualquer alteração sensível na destinação dos seus recursos deve contar com a aprovação do legislativo. Kiyoshi Harada3 anota que No Estado moderno, não mais existe lugar para orçamento público que não leve em conta os interesses da sociedade. Daí por que o orçamento sempre reflete um plano de ação governamental. Daí, também, seu caráter de instrumento representativo da vontade popular, o que justifica a crescente atuação legislativa no campo orçamentário.

Regis Fernandes de Oliveira,4 reconhecendo a importância que tomou o fenômeno da intervenção ativa do Estado na economia ao longo do século XX, afirma que: [...] o orçamento deixou de ser um mero documento de caráter administrativo e contábil, para assumir a significação de elemento ativo com gravitação primordial sobre as atividades gerais da comunidade. [...] Daí o orçamento se constituir em peça importante na vida das nações. Deixa de ser mero instrumento financeiro e contábil para passar a ser o instrumento de ação do Estado. Através dele se fixam os objetivos a serem atingidos. Por meio dele é que o Estado assume funções reais de intervenção no domínio econômico. Em suma, deixa de ser mero instrumento estático de previsão de 2

Cf. HARADA, Kiyoshi. Direito financeiro e tributário. 18. ed.rev. ampl. São Paulo: Atlas, 2009, p. 68.

3

HARADA, Kiyoshi, op. cit., p. 58.

4

FERNANDES, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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receita e autorização de despesas para se constituir no documento dinâmico, solene de atuação do Estado perante a sociedade, nela intervindo e dirigindo seus rumos. Assim como tudo na vida, é cíclico, vendo nascer e extinguirem-se relações jurídicas.

Com a convicção dessa necessidade de se reafirmar, cada vez mais, o aspecto democrático, programático e vinculativo do orçamento público, pode-se afirmar que o princípio da legalidade orçamentária toma especial destaque, sendo norma de inegável assento constitucional. É certo, entretanto, que o art. 165, § 8°, da Constituição Cidadã autoriza o que a Lei n. 4.320/64 previu como o que pode ser considerado exceção a essa regra de rigidez orçamentária decorrente do princípio da legalidade. Conforme o seu art. 7°, I, créditos suplementares têm a faculdade de serem abertos por decreto, sem necessidade de consulta específica ao Poder Legislativo, até certo limite, se essa hipótese for prevista pela Lei Orçamentária Anual. Nesses casos, como o único momento para a indicação dos recursos que comporão a alteração orçamentária é o da edição do próprio decreto do Executivo, vislumbro ser essa a única hipótese em que a Constituição Cidadã autoriza modificação do orçamento sem participação do Poder Legislativo. No caso dos créditos especiais, que são o objeto desta consulta, entendo que relegar a momento posterior à autorização legislativa a indicação das fontes dos recursos pelo Executivo significa conferir a esse Poder uma faculdade de alteração orçamentária de forma unilateral que não tem previsão na Constituição nem na legislação orçamentária. Não estando os créditos especiais contemplados na citada exceção, vez que devem ter autorização legislativa específica, ou seja, caso a caso, entendo que, nesses casos, deva prevalecer a regra geral de estrita legalidade orçamentária, pela qual a proposta legislativa deve conter as justificativas devidas e as fontes de custeio para a pretendida autorização de crédito destinado a cobrir despesas para as quais não haja dotação orçamentária específica. Sergio Jund,5 resumindo em quadro esquemático as características que têm os créditos adicionais, considera a indicação dos recursos para abertura de créditos especiais “obrigatória, devendo constar da lei de autorização e do decreto de abertura.” Convém ainda ressaltar que deverá ser observado o que dispõe o art. 45 da Lei 4.320/64 no que se refere à vigência dos créditos adicionais os quais deverão se limitar ao exercício financeiro em que forem abertos, salvo expressa disposição legal em contrário, quanto aos especiais e extraordinários. 5

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JUND, Sergio. Administração, orçamento e contabilidade pública. Rio de Janeiro: Campus, 2006, p. 134.


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Desse modo, por todo o exposto, entendo ser necessário o debate entre Poder Executivo e Poder Legislativo acerca das fontes que comporão os recursos que suportarão os créditos adicionais, na modalidade especiais, pelo que a descrição dessas fontes deve, necessariamente, integrar os projetos de lei encaminhados com essa finalidade. Conclusão: diante do exposto, respondendo objetivamente à questão formulada, concluo pela impossibilidade de autorização, pelo Poder Legislativo, de abertura de créditos especiais ao Poder Executivo sem que se tenha indicado, no projeto de lei, as fontes que financiarão esses créditos, juntamente com as justificativas cabíveis.

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A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 21/07/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, Conselheiro Elmo Braz e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro Sebastião Helvecio. Declarouse suspeita a Conselheira Adriene Andrade.

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Cômputo dos recursos repassados à iniciativa privada, para execução de serviços de atendimento à saúde, no percentual mínimo de 15% exigido constitucionalmente CONSULTA N. 809.069

[...] é permitido ao Sistema Único de Saúde recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada quando suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de determinada área, sendo que a participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público. RELATOR: CONSELHEIRO EM EXERCÍCIO GILBERTO DINIZ

RELATÓRIO Tratam os autos de consulta formulada pelo Sr. Nelson Alves Lara, Prefeito Municipal de Guapé, mediante a qual indaga a esta Corte de Contas se, quando o Município repassa recursos a entidade privada sem fins lucrativos para a execução de serviços públicos e gratuitos de atendimento à saúde da população, mediante convênio, tais repasses são considerados para verificação do atendimento à obrigação de aplicação mínima de 15% da receita corrente líquida na saúde. 204

ASSCOM TCEMG

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Repasse de recursos à entidade privada sem fins lucrativos para execução de serviços públicos gratuitos de atendimento à saúde — Possibilidade — Insuficiência do Sistema Único de Saúde no Município — Necessidade de cobertura assistencial à população — Participação complementar dos serviços privados — Formalização mediante contrato ou convênio — Cômputo no percentual mínimo de 15% previsto no art. 77, III, do ADCT da CR/88 — Observância do disposto no art. 199 da CR/88 e na IN TCEMG n. 19/2008.


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Consoante ressalta o consulente, o questionamento estriba-se na assertiva de que aos Municípios compete a execução de serviços de saúde (inciso I do art. 18 da Lei Federal n. 8.080/90), sendo-lhes facultada, ainda, a celebração de convênios com a iniciativa privada, preferencialmente com entidades filantrópicas, nos termos em que dispõem os arts. 24 e 25 da sobredita lei, em caráter complementar. Após a autuação e distribuição do feito, ao fundamento do disposto no inciso I do art. 213 do Regimento Interno, encaminhei os autos à Diretoria de Análise Formal de Contas, que se manifestou a fls. 05-06, pela possibilidade de os mencionados recursos comporem os 15% exigidos constitucionalmente, nas ações e serviços públicos de saúde, mediante a devida prestação de contas como estabelece este Tribunal na Instrução Normativa n. 19/2008. Para sustentar tal entendimento, a unidade técnica reportou-se, também, ao parecer

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exarado na Consulta n. 732.243, de relatoria do Conselheiro Eduardo Carone Costa, aprovada à unanimidade, pelo Tribunal Pleno, na sessão de 1°/08/07. Em suma, é o relatório.

PRELIMINAR Preenchidos os requisitos de admissibilidade assinalados nos incisos I a IV do art. 212 do Regimento Interno, uma vez que a matéria é de competência do Tribunal, não versa sobre caso concreto, contém indicação precisa da dúvida e foi subscrita pelo Prefeito Municipal, voto, preliminarmente, pelo conhecimento da consulta para submeter o incluso parecer à deliberação deste Tribunal Pleno.

MÉRITO No mérito, em observância ao disposto no art. 214 da norma regimental, devo ressaltar que a indagação do consulente já foi objeto de análise por esta Corte de Contas, tendo o Colegiado deliberado a respeito da matéria nas Consultas autuadas sob os n. 716.941 e 732.243, de relatoria dos Conselheiros Antônio Carlos Andrada e Eduardo Carone Costa, apreciadas, respectivamente, nas sessões de 07/03/07 e 1°/08/07. Importa evidenciar que, a despeito de a Consulta n. 732.243 possuir escopo mais amplo do que a ora enfrentada, aborda a questão da possibilidade de trespasse dos serviços de saúde à iniciativa privada, partindo das disposições constitucionais contidas nos arts. 196, 197 e 199 da Carta Federal, destacando a norma prescrita no § 1° deste último dispositivo, que estabelece, in verbis: 205


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Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. § 1° As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência, as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

De igual modo, naquele parecer, invocaram-se os preceitos da Lei Federal n. 8.080, de 19/09/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, com ênfase para as regras concernentes ao art. 24 e parágrafo único, por meio das quais é permitido ao Sistema Único de Saúde recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada quando suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de determinada área, sendo que a participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público. Colhe-se, ainda, do aludido parecer, referência à Portaria n. 358/GM, do Ministério da Saúde, de 22/02/06, que estatui, dentre outras, condições para participação da iniciativa privada na complementaridade dos serviços de saúde, ex vi do disposto nos arts. 3°, 6° e 7°. No Processo n. 716.941, o consulente havia questionado se o repasse de recursos financeiros, a título de subvenção social, feito a um hospital filantrópico, único no Município, mediante lei municipal e celebração de convênio, constitui gasto com saúde, conforme a Emenda Constitucional n. 29, de 13/09/00, ao que o Colegiado, nos termos do voto do relator, respondeu afirmativamente, informando que a matéria se encontra regulamentada, no âmbito deste Tribunal, na Instrução Normativa n. 11/2003, que contém normas a serem observadas pelo Estado e pelos Municípios para assegurar a aplicação dos recursos mínimos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde. No sobredito parecer, foram evidenciados os aspectos da seguridade social, insertos no art. 194 da Lei Maior da República, especialmente os objetivos da universalidade da cobertura e do atendimento, da uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais, da seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços, inscritos nos incisos I a III do referido comando constitucional. Demais disso, destacou-se, no tocante à participação de entidade de natureza privada na assistência à saúde, além do § 1° do art. 199 da Constituição, a vedação à destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos, conforme impõe o § 2° do mencionado dispositivo, e quanto a 206


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essa transferência, a natureza de subvenção social, nos moldes do inciso I do § 3° do art. 12 da Lei Federal n. 4.320/64. Assim, uma vez assentadas as bases constitucionais e legais para a participação da iniciativa privada, em caráter complementar, nas ações e serviços de saúde, conforme fixado nas citadas consultas, resta-me esclarecer ao consulente que o repasse de recurso às entidades privadas, sem fins lucrativos, mediante convênio, para essa finalidade, deve ser computado nos 15% exigidos pelo inciso III do art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado à Carta Federal por força da Emenda n. 29/00. Nessa trilha, para corroborar tal entendimento, ressalta-se que o Tribunal, por via da Instrução Normativa n. 19/2008, que revogou a Instrução Normativa n. 11/2003, ao disciplinar a fiscalização da aplicação de recursos nas ações e serviços públicos de saúde, com vistas a assegurar a observância do referido percentual mínimo de 15%, impõe, consoante se vê no inciso III do art. 10, para fins de controle na esfera municipal, que devem ser disponibilizados à Corte de Contas, mensalmente, as notas de empenho e os respectivos comprovantes referentes às despesas naquele setor, incluídos os termos de convênios, acompanhados das correspondentes prestações de contas e dos comprovantes legais a eles atinentes.

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Conclusão: pelo exposto, respondo a indagação para concluir, na esteira dos entendimentos firmados nas Consultas n. 716.941 e 732.243, as quais devem ser remetidas ao consulente, que o repasse de recursos públicos a entidade privada, sem fins lucrativos, para a execução, em caráter complementar, de serviços públicos e gratuitos de atendimento à saúde da população, é considerado para verificação do atendimento à obrigação de aplicação mínima do percentual de 15% de que trata o inciso III do art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, observado, ainda, o disposto na Instrução Normativa n. 19/2008, que pode ser acessada pelo interessado no endereço eletrônico <www.tce.mg.gov.br>.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 16/06/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Elmo Braz, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, Conselheira Adriene Andrade e Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Custeio pela administração pública municipal de despesa decorrente de prorrogação de licença-maternidade CONSULTA N. 812.556

EMENTA: Consulta — Prefeitura Municipal — Despesa decorrente da prorrogação de licença-maternidade — I. Custeio pela administração pública. Possibilidade prevista no art. 2° da Lei Federal n. 11.770/08. Necessidade de regulamentação pelo Município. Não configuração de benefício previdenciário. Benefício de natureza remuneratória. II. Servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação. a) Custeio com recursos do Fundeb. Possibilidade. Utilização da parcela dos 60% destinada à remuneração dos profissionais do magistério e da educação básica. Observância ao preceituado no art. 22 da Lei Federal n. 11.494/07. b) Custeio com recursos advindos da manutenção e desenvolvimento do ensino. Possibilidade. Necessidade de obediência ao disposto no art. 212 da CR/88, nos arts. 70, I, e 71, VI, ambos da Lei Federal n. 9.394/96 e na IN TCEMG 13/08. III. Servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Saúde. Custeio com recursos das ações e serviços públicos em saúde. Possibilidade. Cômputo como gastos públicos em ações e serviços de saúde. Art. 3° da IN TCEMG n. 19/08. Inclusão no percentual de 15% previsto no art. 77 do ADCT da CR/88. [...] considerando que a prorrogação da licença-maternidade possui caráter remuneratório, não podendo ser custeada pelo Regime Geral de Previdência Social, tampouco pelo regime previdenciário próprio, tal benefício representa despesa pública para o tesouro, in casu, municipal, o qual deve arcar com a obrigação de pagá-lo, caso o ente opte pela sua concessão. RELATOR: CONSELHEIRO EM EXERCÍCIO GILBERTO DINIZ

RELATÓRIO Trata-se de consulta subscrita pela Sra. Maria Beatriz de Castro Alves Savassi, Prefeita do Município de Patos de Minas, que formula a esta Corte de Contas os seguintes questionamentos, in verbis: 208


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1 — A despesa decorrente da prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação poderá ser custeada com recursos do Fundeb? 2 — A despesa decorrente da prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação poderá ser custeada com recursos da Manutenção e Desenvolvimento do Ensino? 3 — A despesa decorrente da prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Saúde poderá ser custeada com recursos das Ações e Serviços Públicos em Saúde?

A consulente apresenta tais indagações ao argumento de que a Lei Federal n. 11.770/08 criou a possibilidade de prorrogar, por 60 dias, a duração da licençamaternidade prevista no inciso XVIII, do caput do art. 7° da Constituição da República. Em razão da relevância da matéria e da repercussão para os Municípios jurisdicionados, consoante faculta o inciso I do art. 213 do Regimento Interno, encaminhei o processo à Diretoria Geral de Controle Externo, a qual se pronunciou por meio da Assessoria de Estudos e Normatização, a fls. 05-09, manifestando o entendimento de que “o Município deve, em primeiro lugar, regulamentar a prorrogação da licença-maternidade e, após analisar as possibilidades de custeio com recursos vinculados.”

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A área técnica, com arrimo no art. 60 do ADCT da Carta Federal, alterado pela Emenda Constitucional n. 53/06, e no art. 22 da Lei Federal n. 11.494/07, entendeu que “a remuneração dos profissionais do magistério pode ser custeada pelo ente, desde que o servidor esteja em efetivo exercício.” Nesses termos, deu por respondida as duas primeiras indagações, ressaltando que, Como a licença-maternidade tem natureza salarial, e o gasto com a remuneração dos profissionais do magistério entra no cômputo dos vinte e cinco por cento utilizado com o desenvolvimento do ensino, a prorrogação da licença-maternidade por ter a natureza de remuneração integra a base de cálculo desse percentual.

Quanto ao terceiro questionamento, valendo-se das disposições contidas na quinta diretriz da Resolução n. 322/01, do Conselho Nacional de Saúde, e no art. 3° da Instrução Normativa n. 19/08, deste Tribunal, concluiu que a despesa com a prorrogação da licença-maternidade, a qual também tem caráter remuneratório, poderá integrar o percentual de gastos com ações e serviços públicos de saúde. É o relatório, no necessário.

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PRELIMINAR Preenchidas as condições de admissibilidade fixadas expressamente nos incisos I a IV do art. 212 do Regimento Interno, considerando que a matéria é de competência do Tribunal, não versa sobre caso concreto, contém indicação precisa da dúvida e foi subscrita pela Prefeita do Município de Patos de Minas, voto, preliminarmente, pelo conhecimento da consulta.

MÉRITO No mérito, para a elucidação das questões postas pela consulente, ressalta-se que a possibilidade de prorrogação da licença-maternidade foi assegurada por meio da Lei Federal n. 11.770, de 09/09/08, que instituiu o Programa Empresa Cidadã, destinado a ampliar em 60 dias a duração do referido benefício, previsto no inciso XVIII do art. 7° da Constituição Federal de 1988, mediante a concessão de incentivo fiscal. A adesão a tal programa é voluntária e confere à pessoa jurídica o direito de deduzir do imposto de renda devido o valor correspondente à remuneração da empregada, referente aos 60 dias da prorrogação da licença-maternidade. O art. 2° da mencionada lei reservou aos entes públicos o direito de instituírem programa que garanta a prorrogação da licença para suas servidoras, nos seguintes termos: Art. 2° É a administração pública, direta, indireta e fundacional, autorizada a instituir programa que garanta a prorrogação da licença para suas servidoras, nos termos do que prevê o art. 1° desta Lei.

Como se vê, a Lei Federal n. 11.770/08, para a esfera pública, apenas permitiu a criação do programa, donde se conclui que cada ente da Federação deverá regulamentar a matéria no seu âmbito de competência, estando a prorrogação da licença-maternidade, na Administração Pública Federal, instituída pelo Decreto n. 6.690, de 11/12/08 e, no Poder Executivo do Estado de Minas Gerais, por meio da Lei n. 18.879, de 27/05/10. Ainda no que diz respeito à prorrogação da licença-maternidade, merece registro que o período adicional não constitui, ao contrário da licença-maternidade propriamente dita, benefício previdenciário. É que, conforme dispõe o art. 5° da Lei Federal n. 9.717, de 27/11/98, que estabelece regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal, esses regimes não podem conceder benefícios distintos dos 210


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previstos no Regime Geral de Previdência Social, de que trata a Lei n. 8.213, de 24/07/91, salvo disposição em contrário da Constituição da República. Nesse sentido é a Nota Explicativa n. 01/08 CGNAL/DRPSP/SPS/MPS, de 10/09/08, do Ministério da Previdência Social, consoante estatui o seguinte trecho: O benefício previdenciário concedido à gestante pelos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS) deve ter duração de apenas 120 dias, considerando o disposto no art. 5° da Lei n. 9.717/98. A prorrogação de 60 dias da licençamaternidade não será concedida pelo RGPS e, portanto, também não é considerada benefício previdenciário para os RPPS. É indevida a utilização de recursos previdenciários dos RPPS para custeio do período de prorrogação da licença-maternidade, considerando o disposto no art. 1°, III, e no art. 5° da Lei n. 9.717/98. [...]

Pareceres e decisões

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Não há obrigatoriedade por parte dos Entes Federativos em conceder a prorrogação da licença-maternidade por 60 dias, porém, se o Ente Federativo quiser instituir esse programa, deverá custear com recursos do Tesouro o pagamento da remuneração integral durante a prorrogação da licença à gestante.

Assim, considerando que a prorrogação da licença-maternidade possui caráter remuneratório, não podendo ser custeada pelo Regime Geral de Previdência Social, tampouco pelo regime previdenciário próprio, tal benefício representa despesa pública para o tesouro, in casu, municipal, o qual deve arcar com a obrigação de pagá-lo, caso o ente opte pela sua concessão. À guisa de exemplo, registra-se que, no âmbito do Poder Executivo de Minas Gerais, o art. 7° da Lei n. 18.879/10 previu, expressamente, que a prorrogação da licençamaternidade será custeada com recursos do Tesouro Estadual. Feitas essas considerações, passo ao enfrentamento das questões trazidas pela consulente. Na primeira, indaga sobre a possibilidade de o Município custear a prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria de Educação com recursos oriundos do Fundeb. Inicialmente, cumpre salientar que o referido Fundo, criado pela Emenda Constitucional n. 53/06 e disciplinado, atualmente, pela Lei Federal n. 11.494, de 20/06/07, destina-se, nos termos do art. 2° dessa lei, à manutenção e ao desenvolvimento da educação básica pública e à valorização dos trabalhadores em educação, incluindo a condigna remuneração destes profissionais. A seu turno, o art. 22 do citado diploma legal assegura que pelo menos 60% dos recursos anuais do Fundeb são destinados ao pagamento da remuneração dos profissionais do magistério da educação básica em efetivo exercício na rede pública. 211


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E mais, consoante se infere do inciso II do parágrafo único do mencionado dispositivo legal, são considerados profissionais do magistério da educação somente aqueles que exercem atividades de docência e os que oferecem suporte pedagógico direto a essas atividades, incluídas as de direção ou administração escolar, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional. Desse modo, respondendo ao primeiro questionamento da consulente e, considerando que a prorrogação da licença-maternidade tem natureza remuneratória, a despesa dela decorrente poderá ser custeada com a parcela dos 60% dos recursos do Fundeb, que deve ser destinada à remuneração dos profissionais do magistério da educação básica em efetivo exercício na rede pública, desde que as servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação estejam albergadas no conceito de profissionais do magistério a que alude o inciso II do parágrafo único do art. 22 da Lei Federal n. 11.494/07, observadas, ainda, as normas prescritas nos incisos I e III desse mesmo dispositivo legal. Cumpre ressaltar, por oportuno, que o afastamento em virtude da prorrogação da licença-maternidade subsume-se na definição de efetivo exercício, fixada no inciso III do parágrafo único do art. 22 do sobredito diploma legal, porquanto caracteriza afastamento temporário previsto em lei, com ônus para o empregador, que não implica rompimento da relação jurídica existente. Para responder o segundo questionamento, isto é, se a despesa decorrente da prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação poderá ser coberta com recursos da manutenção e desenvolvimento do ensino, cabe perquirir, primeiro, quais gastos podem ser computados no percentual mínimo constitucionalmente exigido no art. 212 da Carta Federal, à luz da legislação de regência. A Lei Federal n. 9.394, de 20/12/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, prescreve, no inciso I do art. 70, que as despesas com a remuneração e o aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação serão consideradas como de manutenção e desenvolvimento do ensino. Por outro lado, estatui, no inciso VI do art. 71, que não constituirão despesas dessa natureza aquelas realizadas com pessoal docente e demais trabalhadores da educação, quando em desvio de função ou em atividade alheia à manutenção e desenvolvimento do ensino. Conjugando tais fundamentos com as razões que sustentam a resposta dada à primeira indagação, tem-se que a despesa advinda da dilação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação, que constituem o corpo docente ou são efetivamente profissionais da educação, poderá ser financiada com recursos da manutenção e desenvolvimento do ensino, integrando, pois, o 212


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percentual de 25% aludido no art. 212 da Carta Magna, excetuadas, obviamente, as profissionais do magistério da educação básica agasalhadas pelo inciso II do parágrafo único do art. 22 da Lei Federal n. 11.494/07, as quais são remuneradas com os recursos do Fundeb. As outras servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Educação, isto é, aquelas que não se amoldam ao disposto no inciso II do parágrafo único do art. 22 da Lei Federal n. 11.494/07, ou que não exerçam atividade considerada como de manutenção e desenvolvimento do ensino, devem ser remuneradas com recursos próprios do tesouro municipal e não com recursos vinculados à educação. Em complemento, vale esclarecer que a Instrução Normativa n. 13/08, deste Tribunal, nos termos do inciso I do art. 5°, considera como despesa realizada com manutenção e desenvolvimento do ensino a que se refere à “remuneração e aperfeiçoamento do pessoal docente e demais profissionais da educação”. De igual modo, o caput do art. 11 do aludido normativo manda destinar, também, pelo menos 60% dos recursos do Fundeb para a remuneração dos profissionais do magistério da educação básica em efetivo exercício na rede pública, observados os limites de despesa com pessoal fixados pela Lei Complementar n. 101, de 04/05/00, identificando, por via do inciso I do § 1° do citado dispositivo regulamentar, quem são os profissionais do magistério da educação.

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No que diz respeito à terceira indagação da consulente, a resposta encontra solução na Instrução Normativa n. 19/08, desta Corte de Contas, que contém normas a serem observadas pelo Estado e pelos Municípios para assegurar a aplicação dos recursos mínimos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde. O caput do art. 3° desse normativo prevê que as despesas com pessoal, incluída a remuneração dos servidores e, consequentemente, a prorrogação da licença-maternidade, e, ainda, outras despesas de custeio e de capital, financiadas pelo Município conforme o disposto no art. 196, no § 2° do art. 198 e no art. 200 da Constituição Federal, bem assim na Lei n. 8.080, de 19/09/90, são computadas como gastos públicos em ações e serviços de saúde. A despesa decorrente da prorrogação da licença-maternidade das servidoras lotadas na Secretaria Municipal de Saúde, portanto, poderá ser custeada com recursos das ações e serviços públicos de saúde, compondo, assim, o percentual de 15% de que trata o inciso III do art. 77 do ADCT da Carta Federal de 1988, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 29/00. Finalmente, devo consignar que, na hipótese de o Município contratar substituto para as servidoras em gozo da prorrogação da licença-maternidade, deve a Administração Pública atentar para as disposições da Lei Complementar n. 101/00 213


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— Lei de Responsabilidade Fiscal, notadamente os arts. 15 a 23, para que não haja comprometimento do equilíbrio das contas públicas, tendo em vista que a eventual contratação representará aumento dos gastos com pessoal, importando, ainda, na geração de despesa ou mesmo assunção de nova obrigação. Conclusão: pelo exposto, Sr. Presidente, entendo respondidas as questões apresentadas pela Sra. Maria Beatriz de Castro Alves Savassi, Prefeita do Município de Patos de Minas.

A consulta em epígrafe foi respondida pelo Tribunal Pleno na sessão do dia 14/07/10 presidida pelo Conselheiro Wanderley Ávila; presentes o Conselheiro Eduardo Carone Costa, Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, Conselheiro Sebastião Helvecio, que aprovaram, por unanimidade, o parecer exarado pelo relator, Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz.

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Irregularidades praticadas com grave violação às normas licitatórias* PROCESSO ADMINISTRATIVO N. 697.917

EMENTA: Processo Administrativo — Denúncia — Câmara Municipal — Irregularidades — I. Aquisição de combustível sem processo licitatório. Afronta ao art. 37, XXI, da CR/88 c/c o art. 2° da Lei n. 8.666/93 e ao art. 63, § 2°, III, da Lei n. 4.320/64. Aplicação de multa. II. Pagamentos efetuados, com aquisição de combustíveis, para abastecimento de veículo particular de Vereador. Violação aos princípios da moralidade e da impessoalidade. Presença de elementos suficientes para a quantificação do dano ao erário. Determinação de ressarcimento aos cofres públicos — Encaminhamento ao Ministério Público de Contas.

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ASSCOM TCEMG

[...] o responsável não procedeu ao planejamento anual para compras e, via de consequência, fracionou as despesas de forma indevida e se omitiu no dever de licitar. O planejamento, no caso dos autos, era perfeitamente factível, uma vez que tais despesas são necessidades ordinárias, que se repetem a cada ano, não havendo que se falar em escusas para a observância da lei. RELATOR: AUDITOR LICURGO MOURÃO

RELATÓRIO Trata-se de processo administrativo originado a partir de denúncias formuladas pelos Srs. Marcos Antônio de Oliveira, Dercílio Ângelo Leão e Gilmar Dornellas de Carvalho, vereadores à Câmara Municipal de João Pinheiro, à época, protocolizadas neste Tribunal em 07/05/04, acostadas a fls. 2-4, 15-17, 43-45 e 51-53, noticiando possíveis irregularidades ocorridas no mencionado órgão legiferante, conforme despacho do então Conselheiro Relator a fls. 127. O responsável, José Humberto Machado, foi regularmente citado em 13/06/05, conforme certidão a fls. 134, tendo apresentado a defesa a fls. 149-153, acompanhada dos documentos a fls. 154-167. *

Cumpre informar que até o fechamento desta edição a decisão proferida pelo Tribunal nos autos epigrafados não havia transitado em julgado.

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Em sede de reexame, a unidade técnica manifestou-se, a fls. 170-177, pela ratificação das irregularidades apontadas no relatório técnico inicial, remetendo à consideração superior a análise do item 3.1 — Distribuição de sacos de cimento a afilhados do presidente da Câmara. Ato contínuo, a Auditoria, em 28/06/06, a fls. 179, lançou parecer pela improcedência das denúncias, salvo quanto às irregularidades no âmbito das licitações. Por sua vez, em 22/04/08, o Ministério Público de Contas opinou, a fls. 180-181, pela irregularidade dos procedimentos licitatórios examinados e por aplicação, ao responsável, das sanções previstas no Regimento Interno, pois as falhas apontadas afrontam os princípios insertos na Constituição da República, sobretudo os da legalidade e moralidade. Em cumprimento às disposições da Lei Complementar n. 102/08, os presentes autos foram redistribuídos a esta relatoria em 29/04/08. É o relatório, em síntese.

MÉRITO Considerando a análise procedida nos autos, restaram configuradas as irregularidades a seguir examinadas: 1 Compra de combustíveis sem licitação no valor total de R$33.471,13 — (fls. 02-12, 15-19 e 51-56) Favorecidos: Posto Itaipu Ltda. — R$4.600,00; e Sayonara Comércio de Petróleo Ltda. — R$28.871,13 Exercício: 2003 De acordo com as denúncias, a fls. 3-4, 16-17, e 52-53, a Câmara teria realizado despesas com aquisição de combustível sem os devidos processos licitatórios. Em sua peça de defesa, a fls. 151, o responsável alegou que a falta de licitação se deu em razão da falta de assessoria jurídica e contábil para orientá-lo quanto à adoção do correto procedimento. Aduziu, ainda, que as empresas fornecedoras são idôneas e os preços pagos eram compatíveis com aqueles praticados no mercado. Analisando os documentos que instruíram a inicial, notadamente as notas de empenho e respectivas notas fiscais acostadas a fls. 5-12, 18-19, e 55-56, tem-se que a Câmara despendeu, durante o exercício de 2003, a quantia de R$33.471,13 para a 216


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compra de combustível, sem mencionar ou identificar o devido processo licitatório, pois o montante superou o valor limite para dispensa de licitação na hipótese de compras — R$8.000,00, conforme previsto no art. 24, II, da Lei n. 8.666/93. O próprio responsável admite em sua defesa que as despesas não foram precedidas de licitação, quando, a fls. 151, assevera que tal fato ocorreu em razão da falta de assessoria jurídica e contábil. Destarte, tem-se que o responsável não procedeu ao planejamento anual para compras e, via de consequência, fracionou as despesas de forma indevida e se omitiu no dever de licitar. O planejamento, no caso dos autos, era perfeitamente factível, uma vez que tais

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despesas são necessidades ordinárias, que se repetem a cada ano, não havendo que se falar em escusas para a observância da lei. Acrescente-se, ainda, declaração acostada a fls. 14, firmada pelo setor de Contabilidade/Tesouraria daquela Câmara, em atendimento a requerimento do vereador Marcos Antônio de Oliveira, que no exercício de 2003 não fora feita licitação. Assim, a ausência de licitações na hipótese dos autos viola o art. 37, XXI, da Constituição da República, o art. 2° da Lei n. 8.666/93 e os princípios da isonomia, da impessoalidade, da legalidade e moralidade. Tal entendimento, ademais, já está consolidado na jurisprudência desta Corte com a da Súmula n. 89. Ademais, ressai do exame das notas de empenho acostadas a fls. 5, 7, 9, 19, 55, que os seus históricos não mencionam a quantidade de combustível e nem identificam os veículos, evidenciando-se, dessa forma, que as despesas não observaram o estágio da liquidação disposto no art. 63, § 2°, III, da Lei n. 4.320/64, notadamente à falta de comprovantes da entrega de material. Ante o exposto, consideramos irregulares as despesas com a compra de combustível sem licitação, uma vez que violaram o art. 37, XXI, da Constituição da República, c/c o art. 2° da Lei de Licitações, além de afrontarem o estágio da liquidação previsto no art. 63, § 2°, III, da Lei n. 4.320/64. 2 Objeto: Compra de combustível para locomoção do vereador José Donizeth Oliveira — (fls. 5-8) Favorecido: Posto Itaipu Ltda. 217


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Valor pago: R$4.600,00 Exercício: 2003 Segundo os denunciantes, a fls. 3-4, a Câmara teria pago a importância de R$4.600,00 ao Posto Itaipu Ltda., com o objetivo de custear as despesas de combustível com o deslocamento do vereador José Donizeth Oliveira, do Distrito de Luizlândia do Oeste à cidade de João Pinheiro, conforme notas de empenho a fls. 5-8. O responsável argumentou, a fls. 150, que os pagamentos consistiram na ajuda de custo paga pela Câmara em razão das viagens que o citado edil faria em 2003, a fim de comparecer às sessões do Legislativo, realizadas todas as quintas-feiras, de fevereiro a dezembro, excluído o mês de julho, e às reuniões da Comissão de Finanças, que ocorriam às terças-feiras. Aduziu, ainda, que tais pagamentos estavam amparados no art. 99, da Resolução 11/90, que instituiu o Regimento Interno da Câmara Municipal, verbis: Ao vereador residente em distrito longínquo do Município, que tenha especial dificuldade de acesso à sede da edilidade para comparecimento às sessões, nesta sendo obrigado a pernoitar, será concedida ajuda de custo, que será fixada em Resolução (grifo nosso).

O responsável invoca a seu favor o dispositivo do Regimento Interno que estabeleceu sobre o pagamento de ajuda de custo ao vereador residente em distrito distante que tivesse necessidade de pernoitar na sede da edilidade por motivo de comparecimento às sessões legislativas, do qual, mediante simples leitura, percebe-se que carecia de regulamentação para a sua implementação, consoante se vê na sua parte final. Portanto, em nenhum momento esse dispositivo permitiu o pagamento de combustível a vereador residente fora da sede daquele Município, mas o pagamento de ajuda de custo, a ser fixado em instrumento normativo próprio. A respeito do tema sob exame, conforme ressaltado no exame inicial, a fls. 120, este Tribunal, em diversas oportunidades, a exemplo das Consultas n. 676.645, 677.255 e 682.182, manifestou-se pela ilegalidade da compra de combustível para o abastecimento de veículo particular de agente político, o que configuraria despesa estranha ao orçamento e subsídio indireto. Dentre as consultas referenciadas, destaco os seguintes excertos da 682.162, relatada pelo Conselheiro Eduardo Carone, na sessão de 15/06/2004, verbis: Ainda, imperioso acrescentar que a Consulta n. 677.255, com objeto semelhante, já foi respondida pelo Conselheiro Moura e Castro e aprovada por unanimidade na Sessão Plenária de 14/05/2003, onde ficou decidido que: ‘Como já afirmei alhures, em razão da autonomia consagrada no art. 18 da Constituição da República e das finanças locais, os municípios podem ampliar

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ou restringir direitos e obrigações, mas não estão autorizados a subsidiar despesas estranhas ou contrárias aos interesses peculiares de sua população, principalmente quando realizadas em proveito de alguns munícipes, sejam eles agentes políticos ou não, pois, na esfera pública, não se deve favorecer nem privilegiar determinado grupo de pessoas em prejuízo dos contribuintes. A bem da verdade, se de um lado o município é autônomo, podendo assumir toda e qualquer obrigação pública local, de outro não devemos perder de vista que essa autonomia não é um fim em si própria, mas meio de dotar aquele ente político de instrumentos legais capazes de promover os anseios de sua sociedade, nunca de uma classe, muito menos a dos agentes políticos que devem dar exemplo de moralidade. Nesse sentido, o município deve evitar o perigoso e indesejável comprometimento de seu orçamento para, em nome de um suposto interesse local, arcar com despesas particulares de membros de Poder. Assim, os dispêndios com telefone e combustível, este para facilitar a locomoção urbana e aquele a fim de permitir a rápida comunicação, são próprios e particulares dos vereadores de Lambari.

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Logo, além de estranha ao Município (art. 4° da Lei 4.320/64), referida despesa, verdadeiro gasto com servidor (art. 18 da Lei de Responsabilidade Fiscal), nada mais é do que subsídio indireto vedado pela Constituição da República (art. 39, § 4°), que não será computada como despesa de pessoal do Legislativo. Como se vê, não é moral (art. 37 da Constituição Federal) nem razoável (art. 13 da Constituição Estadual) a Câmara Municipal de Lambari utilizar recursos públicos para remunerar seus membros em desacordo com os parâmetros legais aplicáveis. Nesse pé, aflora a impossibilidade de os municípios poderem custear a aquisição, para posterior fornecimento aos vereadores, de aparelhos celulares, cartões de crédito telefônico e combustíveis para utilização em veículo particular, tanto para uso pessoal quanto a serviço do Legislativo, por configurar, ao mesmo tempo, despesas estranhas ao orçamento e subsídio indireto sem amparo legal. A propósito, o Conselheiro Eduardo Carone, relator da Consulta n. 676.645, ao proferir voto na sessão de 09/04/2003, o qual acompanhei, advertiu que não há que se falar em ajuda de quota mensal de fornecimento de combustível porque tal quota configura acréscimo ao subsídio mensal do vereador, prática que vai na contramão do ordenamento jurídico constitucional pátrio, não significando isso, todavia, que o agente político esteja impedido de receber parcela indenizatória decorrente de despesas efetuadas no exercício da atribuição legislativa. Nesse contexto, entendo que, nas hipóteses de deslocamento motivado em razão de viagem a serviço, há necessidade da utilização do sistema de diárias mediante espécie normativa específica.’

Por fim, reputa-se oportuno colacionar o seguinte excerto, extraído dos autos da Apelação Cível n. 509.348-5/7-00, da Nona Câmara de Direito Público do Tribunal 219


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de Justiça do Estado de São Paulo, cujo voto é da lavra do eminente Desembargador Sérgio Gomes, aplicável ao caso vertente, mutatis mutandis, verbis: Ficou comprovado que o erário suportou os gastos com base em resoluções e não se olvida que compete ao Presidente da Câmara Municipal ‘executar as deliberações do Plenário’. Entretanto, a autonomia do princípio da moralidade indica a necessidade de sua observância como princípio informador da Administração Pública, não sendo admissível a execução de deliberações ilegais ou imorais. [...]

Ademais, ressai do exame das Notas de Empenho n. 243 e 157, pagas, respectivamente, em 22/04/03 e 24/03/03, a fls. 5 e 7, que os seus históricos não mencionam a quantidade de combustível e nem especificam o número de sessões legislativas, evidenciando-se, dessa forma, que as despesas não observaram o estágio da liquidação disposto no art. 63 da Lei n. 4.320/64, notadamente a falta de comprovantes da entrega de material. Mas não é só. Conforme dito pelo próprio responsável, a fls. 150, a ajuda de custo visava ao custeio das viagens em razão das sessões da Câmara na legislatura de 2003. Assim, nada justifica, o consumo de 2.020 litros de gasolina pelo aludido edil, conforme revelam as notas fiscais a fls. 6 e 8, emitidas, respectivamente, em 24/03/03 e 18/02/03, o que só reforça o entendimento de que as despesas são ilegais e imorais, e causaram prejuízo ao erário municipal. Ante o exposto, consideramos irregulares as despesas com a compra de combustível para abastecimento do veículo particular do vereador José Donizeth de Oliveira, visto que realizadas sem autorização legal, além de contrariar os princípios da moralidade e impessoalidade, e a jurisprudência deste Tribunal consolidada em sede de consultas. Consectariamente, impõe-se ao responsável a determinação de devolução ao erário municipal da quantia de R$4.600,00, devidamente corrigida. 3 — Objeto: Compra irregular de combustível — (fls. 16-42) Favorecido: Sayonara Comércio de Petróleo Ltda. Valor pago: R$8.100,37 Exercício: 2003 Segundo a denúncia, a fls. 16-17, a Câmara teria comprado tambores e galões de óleo diesel, além de álcool, apesar de o único veículo pertencente à Câmara ser 220


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movido a gasolina — Fiat Uno. As notas de autorização de abastecimento também teriam sido assinadas por pessoas estranhas aos quadros do Legislativo local. O responsável, a fls. 150, aduziu textualmente que: As despesas no importe de R$8.100,37, contidas na N.F n. 006.943 de 17/12/03, empenhada na Nota de n. 00807, pagamento a Sayonara Comércio de Petróleo Ltda., de fornecimento de combustível nas notas consignadas ao próprio signatário desta, ora nominadas a José Humberto, ora Miúdo (apelido), foram provenientes dos gastos de locomoção em seu veículo próprio, D-10, a diesel, a serviço do Município, e no exercício de seu cargo de Presidente da Câmara Municipal. O veículo oficial da Câmara, Fiat Uno, ficava à disposição dos demais vereadores em seus deslocamentos, não sendo utilizado pelo Presidente, porquanto era a Câmara Municipal composta de 15 membros, e sempre algum vereador necessitava de se deslocar e o fazia no veículo referido.

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Da análise da Nota de Empenho n. 0022, no valor de R$8.100,37, em favor de Sayonara Comércio de Petróleo Ltda., quitada em 30/12/03, a fls. 19, observa-se que o seu histórico não identifica o veículo oficial da Câmara como beneficiário do combustível pago. Por outro lado, as notas de fornecimento juntadas a fls. 20-40 revelam o fornecimento principalmente de óleo diesel, em tambor, para os mais variados veículos, como, por exemplo, Pampa, trator, Uno, a fls. 23, 27 e 31. A esses fatos, acrescente-se a própria argumentação articulada pelo responsável, destacada em linhas anteriores, a qual demonstra de forma inequívoca que as despesas suportadas pela Câmara foram resultantes do abastecimento de seu veículo D-10, movido a diesel. A questão sob exame é bastante similar àquela enfrentada no tópico anterior. Por conseguinte, reporte-se às razões ali aduzidas para considerar as despesas ilícitas, pois sem amparo legal, além de contrariar os princípios da moralidade e impessoalidade. Por sua pertinência com o tema sob exame, apenas destaco excertos da Consulta n. 810.007, relatada pelo Conselheiro Eduardo Carone, na sessão de 3 de fevereiro do ano em curso. Senão veja: A indagação subscrita pelo consulente é acerca da possibilidade ou não de o vereador de Ibitiúra de Minas abastecer seu veículo particular com recursos da Câmara Municipal para eventuais trabalhos do legislativo e se há necessidade de algum ato da Câmara para regulamentar o referido gasto. Como bem salientou a douta Auditoria em seu pronunciamento a fls. 10, a situação descrita pelo consulente configura verdadeiro contrato de locação de fato, eis que, ainda que o veículo não seja permanentemente

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posto à disposição do órgão, a sua eventual utilização em serviço de interesse da Administração, mediante contraprestação (abastecimento), constituirá contrato de locação próprio da Câmara. Ademais, o uso intercalado do veículo — ora em caráter particular, ora a serviço — tornaria bastante difícil a mensuração do quantum a ser indenizado, o que redundaria em confusão patrimonial envolvendo o agente público e o órgão contratante. [...] Nesse sentido, respondo à indagação do consulente no sentido da ilicitude da utilização de veículo de propriedade particular de vereador pela Câmara Municipal mediante fornecimento pelo Legislativo Municipal de combustível, por contrariar os princípios da moralidade e impessoalidade.

Ante o exposto, consideramos irregulares as despesas com a compra de combustível para abastecimento do veículo particular do vereador José Humberto Machado, visto que realizadas sem autorização legal, além de contrariar os princípios da moralidade e impessoalidade, e a jurisprudência deste Tribunal consolidada em sede de consultas. Consectariamente, impõe-se ao responsável a determinação de devolução ao erário municipal da quantia de R$8.100,37, devidamente corrigida. 4 — Objeto: Distribuição de sacos de cimento a afilhados do presidente da Câmara — (fls. 43-50) Favorecido: Cimac Ltda. Valor pago: R$668,10 Exercícios: 2003 A denúncia, a fls. 43-45, narra a suposta distribuição de 30 sacos de cimento a afilhados políticos do presidente da Câmara, comprados junto à empresa de material de construção Cimac Ltda., no valor de R$668,10, conforme documentos a fls. 46-50. Em sua defesa, a fls. 151, o responsável alega que o cimento foi comprado e utilizado para atendimento de serviço da Câmara e que os pedidos juntados a fls. 48-50 “foram objeto de montagem”. Este tópico veio alicerçado na Nota de Empenho n. 0034, em favor da Cimac Ltda., quitada em 23/05/03, no valor de R$668,10, cujo histórico demonstra que os sacos de cimento foram destinados ao conserto do telhado e de outros reparos do prédio da Câmara, acompanhada dos pedidos a fls. 48-50. A documentação que instrui este ponto da denúncia não é suficientemente forte para embasar qualquer condenação de ressarcimento ao erário ou mesmo a aplicação de 222


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multa. Isso porque, conforme salientado no exame técnico a fls. 122, os aludidos pedidos contendo o nome das pessoas indicadas pelos denunciantes não são hábeis a comprovar o desvio de cimento da Câmara em prol de “afilhados políticos“ de seu presidente, ora responsável. Ante o exposto, fica prejudicado este tópico da denúncia, porquanto não restou comprovado o ato de ordenamento da despesa com vistas a atender interesses particulares. 5 — Objeto: Pagamento de combustível fornecido a particular — (fls. 51-99) Favorecido: Sayonara Comércio de Petróleo Ltda. Valor pago: R$5.276,37

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Exercício: 2003 A denúncia, a fls. 51-53, trata de uma suposta simulação de compra e venda de gasolina entre a Câmara Municipal e o Posto Sayonara, com a possível participação de Ronaldo José Resende, sócio-gerente da empresa Mont-Sat Proteção, no valor de R$1.884,11. Além do prejuízo ao erário municipal, tais despesas não teriam observado o estágio da liquidação previsto no art. 63 da Lei n. 4.320/64 e nem foram precedidas de licitação. O responsável, a fls. 151, alega que após a identificação do erro que resultou no pagamento indevido de combustível, o gerente da aludida empresa providenciou o depósito na conta bancária do Posto Sayonara, no valor de R$1.954,01, conforme documento a fls. 154. Por sua vez, em razão de a Câmara já ter feito o pagamento do combustível descrito na Nota Fiscal n. 006.942, de 17/12/03, objeto desta denúncia, a fls. 56, o Posto Sayonara deduziu o valor de R$1.954,01 na Nota Fiscal 007.173, de 23/03/04, de acordo com o documento a fls. 156. No tocante aos aspectos licitatórios e aos do estágio da liquidação das despesas, tais irregularidades foram analisadas no tópico 2.1 desta proposta de voto. A instrução dos presentes autos não permite aferir se o combustível pago pela Câmara, referente a 2.409 litros de gasolina, representado pela Nota de Empenho n. 0022, acompanhada da Nota Fiscal n. 006.942, no valor de R$5.276,37, a fls. 55 e 56, foi realmente destinado ao abastecimento de veículos particulares. Entretanto, o episódio revela a total ineficiência do controle interno daquela Câmara, que permitiu a liquidação e o pagamento de despesas no valor de R$1.884,11, as quais eram de responsabilidade da empresa Mont-Sat Proteção. 223


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Ante o exposto, restou prejudicado este tópico da denúncia, pois ficou demonstrado nos autos a devolução ao erário municipal do valor pago indevidamente. Deixo de imputar multa em razão das irregularidades atinentes à liquidação dessas despesas, pois já examinadas no tópico 2.1.

PROPOSTA DE VOTO Considerando a realização de despesas no valor de R$33.471,13 com a compra de combustível sem o devido processo licitatório, em afronta ao art. 37, XXI, da CR/88 c/c o art. 2° da Lei n. 8.666/93; além de formalizadas sem a observância do estágio da liquidação previsto no art. 63, § 2°, III, da Lei n. 4.320/64 (item 1); adoto o entendimento pela irregularidade das despesas realizadas sem a observância dos devidos procedimentos licitatórios, bem como de normas de direito financeiro, conforme item 1 desta proposta de voto, com fulcro no art. 276, § 2° c/c art. 318, II, do RITCMG, imputando-se multa ao Sr. José Humberto Machado, ex-presidente da Câmara Municipal de João Pinheiro, no valor de R$3.300,00. Considerando, ainda, que estão presentes nos autos elementos suficientes para a quantificação do dano ao erário, em decorrência da realização de despesas com a compra de combustível para abastecimento dos veículos particulares dos vereadores José Donizeth Oliveira e José Humberto Machado, visto que realizadas sem autorização legal, em contrariedade aos princípios da moralidade e impessoalidade, bem como à jurisprudência consolidada deste Tribunal em sede de consultas (itens 2 e 3); adoto o entendimento pela irregularidade dos pagamentos efetuados sem supedâneo legal e pela responsabilização do Sr. José Humberto Machado, ex-presidente da Câmara Municipal retrocitada, para que restitua aos cofres públicos municipais o valor de R$12.700,37, devidamente corrigido, nos termos do art. 94 da Lei Complementar n. 102/08 c/c o art. 316 do RITCMG. Faz-se necessário ainda advertir o atual mandatário daquele Legislativo que promova o devido aperfeiçoamento de seu sistema de controle interno, no prazo de 90 dias, a título preventivo, sob pena de sanção pelo descumprimento de determinação desta Corte, nos termos do art. 83, I, da LC n. 102/08, para que as falhas ora verificadas não voltem a se repetir. Adoto ainda o entendimento pelo encaminhamento imediato dos presentes autos ao Ministério Público de Contas, para as providências cabíveis, em razão da infringência aos ditames da Lei n. 8.666/93, da Lei n. 4.320/64 e dos dispositivos constitucionais, bem como para verificar a configuração do ilícito descrito no inciso VIII do art. 10 da Lei n. 8.429/92. 224


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Cumpram-se as disposições contidas no parágrafo único do art. 364 do Regimento Interno deste Tribunal. Em seguida, arquivem-se os autos.

O processo administrativo em epígrafe foi apreciado pela Primeira Câmara na sessão do dia 08/06/10, presidida pela Conselheira Adriene Andrade; presentes o Conselheiro Substituto Hamilton Coelho e Conselheiro em Exercício Gilberto Diniz que acolheram a proposta de voto exarada pelo relator, Auditor Licurgo Mourão.

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Irregularidades em contratações e em procedimentos licitatórios* PROCESSO ADMINISTRATIVO N. 701.613

Decisões reiteradas deste Tribunal assentaram, de maneira definitiva, a necessidade de conjugação de notória especialização do prestador com a singularidade da prestação para que a contratação se subsuma à hipótese de inexigibilidade inscrita no art. 25, II, da Lei Nacional de Licitações e Contratos.

ASSCOM TCEMG

EMENTA: Processo administrativo — Fundação estadual — Inspeção — Irregularidades — I. Falhas no controle interno. II. Subcontratação de serviços relacionados à atividade-fim da entidade, realizada mediante procedimento de inexigibilidade de licitação. Não caracterização da singularidade do objeto contatado e da notória especialização do prestador. Viabilidade de competição. Terceirização indevida de atividade-fim. Burla ao concurso público. III. Contratação de serviços de consultoria mediante procedimento de inexigibilidade de licitação. Não apresentação de justificativa do preço, do ato de ratificação da situação de inexigibilidade e da comprovação de sua publicação. Não demonstração da compatibilidade do preço contratado com o praticado no mercado. IV. Procedimentos licitatórios realizados sem observância das formalidades legais. Adoção de critério de desempate em desacordo com o disposto na Lei de Licitações. Não apresentação da estimativa do valor total da contratação. Acréscimo superior a 25% do valor do contrato. Ausência das assinaturas dos licitantes vencidos na ata do pregão. V. Contratação direta. a) MGS. Declaração pelo TCEMG de ilegalidade da contratação, por procedimento de dispensa de licitação, em parecer emitido em consulta. Terceirização indevida de atividade-fim. b) Coordenador de mestrado. Desempenho de atividade típica da Fundação. Configuração de terceirização indevida — Imputação de multa aos responsáveis — Encaminhamento ao Ministério Público de Contas.

RELATOR: AUDITOR HAMILTON COELHO

* Cumpre informar que, até o fechamento desta edição, a decisão proferida pelo Tribunal no autos epigrafados não havia transitado em julgado.

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RELATÓRIO Trata-se de inspeção efetuada na Fundação João Pinheiro para verificar a legalidade das despesas realizadas entre janeiro de 2003 e março de 2005. Encerrados os trabalhos, a equipe técnica lavrou o relatório a fls. 344-364. Em face das irregularidades apontadas, abriu-se vista aos responsáveis que, após deferimento de dilação de prazo, apresentaram defesa conjunta a fls. 418-435 e a documentação a fls. 436-464, em petição subscrita por procurador da própria Fundação. Após redistribuição do feito, a entidade inspecionada requereu vista dos autos fora da secretaria para obtenção de cópias para o seu arquivo (fls. 463). Foi deferida vista dos autos na secretaria, pelo prazo de três dias. À continuação, o processo foi remetido à Diretoria Técnica competente para reexame, consubstanciado no relatório a fls. 510-531.

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Com vista dos autos, o Ministério Público emitiu o parecer a fls. 534-538, no qual opina pelo desentranhamento da defesa apresentada, aplicação dos efeitos da revelia, irregularidade dos procedimentos analisados nos autos e consequente aplicação de multa aos responsáveis.

PRELIMINARES Preliminarmente, 1) a despeito da manifestação do Parquet, tomo conhecimento das razões de defesa e da documentação apresentada, por respeito ao princípio da verdade material e tendo em vista que, a fls. 411, o então relator concedeu prorrogação do prazo regimental, à época bastante exíguo; 2) Em que pese a aplicação subsidiária das normas gerais de licitação estabelecidas pela Lei Nacional de Licitações e Contratos à modalidade pregão, afasto da lide os membros da equipe de apoio, uma vez que, trabalhando sob a orientação do pregoeiro, não possuem atribuições que importem julgamento ou deliberação, sendo tais atos de responsabilidade do próprio pregoeiro. A responsabilidade solidária perante os órgãos de controle externo, estabelecida no art. 51, § 3°, da Lei n. 8.666/93, recai, exclusivamente, sobre o pregoeiro. Nesse sentido a lição do administrativista Carlos Pinto Coelho Motta: É de se refletir, realmente, a respeito da superfunção de pregoeiro, acerca da qual só o tempo e a práxis consolidada julgarão o acerto. A equipe de apoio poderá talvez minimizar os entraves e dificuldades a serem enfrentados, embora, juridicamente, não possa haver previsão de responsabilidade solidária nas decisões. (In: Eficácia nas licitações e contratos. 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 954) (destaquei).

As preliminares suscitadas pelo relator foram acolhidas pelos Conselheiros presentes, por unanimidade. 227


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MÉRITO No mérito, passo a examinar as irregularidades assinaladas no relatório de inspeção, cotejando-as com as razões de defesa apresentadas e subsidiadas pelo reexame técnico e pelo parecer do Ministério Público de Contas. 1 Procedimentos gerais e controle interno — fls. 348 1.1 Os processos licitatórios não se encontravam devidamente instruídos e organizados para o exame in loco, a despeito do estabelecido no art. 1° das INTCs n. 06/99 e 07/03. 1.2 A entidade não dispõe de manuais internos ou instruções normativas relativas a dispensa, inexigibilidade e procedimentos licitatórios. 1.3 Os documentos relativos a contratos celebrados mediante dispensa e inexigibilidade não se encontravam autuados, numerados ou devidamente identificados. Os defendentes colacionaram excerto doutrinário e trechos de diversos julgados, oriundos do Judiciário e das Cortes de Contas no sentido de que “falhas de caráter formal não são passíveis de sanção”. Concluíram afirmando que, à luz das decisões citadas, as irregularidades descritas nos itens 1.1 e 1.3 seriam “meros vícios formais [...], não havendo que se falar em aplicação de qualquer tipo de sanção administrativa em decorrência disso” (fls. 422). No reexame, a diretoria técnica ratificou todas as irregularidades assinaladas, por considerar que os defendentes não trouxeram aos autos novos elementos de convicção. É prática usual, para reforçar a defesa, referir-se a formalidade como sinônimo de prática irrelevante, inútil, caprichosa; de contratempo incômodo. No âmbito da Administração e, sobretudo, no plano dos contratos públicos, entretanto, as formalidades não são meras faculdades às quais se permite renunciar. Veja-se o ensinamento do administrativista Carlos Motta sobre algumas delas: A autuação, o protocolo e a numeração destinam-se a assegurar a seriedade e a confiabilidade da atividade administrativa. A documentação por escrito e a organização dos documentos em um único volume asseguram a fiscalização e controle da legalidade do procedimento (In: Eficácia nas licitações e contratos, 10. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 235).

Ao argumentar pela insignificância das formalidades consignadas em lei e das boas práticas de controle interno, os responsáveis admitiram a sua inobservância. Ademais, é equivocada a assertiva de que as falhas “não comprometeram o 228


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procedimento e não acarretaram prejuízo à Administração” (fls. 421), uma vez que a omissão da pesquisa de preços reduz a probabilidade de assegurar a contratação mais econômica para o erário, e a desorganização documental pode se prestar a encobrir fraudes, inserções intempestivas e fabricações. Pelo exposto, em face das irregularidades descritas nos itens 1.1 até 1.3, não refutadas na defesa, aplico multa de R$1.000,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho. 2 Subcontratação de serviços relacionados à atividade-fim da entidade, indevidamente realizada mediante inexigibilidade de licitação, no valor de R$464.170,00 — fls. 349-356 2.1 Contrato FJP/AJ-067/03 (fls. 55-59) Favorecido: Top Consultoria Empresarial

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Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados ao TJMG Valor pago: R$49.620,00 2.2 Contrato FJP/AJ-068/03 (fls. 62-66) Favorecido: AWFA Consultoria e Projetos Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados ao TJMG Valor pago: R$49.620,00 2.3 Contrato FJP/PJ-159/03 (fls. 90-93) Favorecido: AWFA Consultoria e Projetos Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados ao TJMG Valor pago: R$76.360,00 2.4 Contrato FJP/PJ-160/03 (fls. 96-99) Favorecido: TOP Consultoria Empresarial Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados ao TJMG Valor pago: R$46.650,00 2.5 Contrato FJP/PJ-049/04 (fls. 110-112) Favorecido: Sucram Consultoria e Serviços 229


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Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados ao BDMG Valor pago: R$37.000,00 2.6 Contrato FJP/PJ-015/05 (fls. 115-118) Favorecido: TECTeam Informática Objeto: subcontratação de serviços de consultoria e desenvolvimento de sistemas de informática a serem prestados à Seplag Valor pago: R$45.000,00 2.7 Contrato FJP/PJ-018/05 (fls. 160-163) Favorecido: Instituto Publix Objeto: subcontratação de serviços de consultoria a serem prestados à Seplag Valor pago: R$96.920,00 2.8 Contrato FJP/PJ-043/04 (fls. 187-190) Favorecido: Eugênio Vilaça Mendes Objeto: subcontratação de serviços a serem prestados à Secretaria de Estado de Saúde Valor pago: R$63.000,00 Irregularidades comuns a todos os procedimentos (os dispositivos mencionados, quando não indicado outro diploma, referem-se à Lei n. 8.666/93):

a) Foram contratados mediante inexigibilidade de licitação serviços desprovidos do atributo da singularidade, com afronta ao estabelecido no art. 25, II. Os defendentes sustentaram, a partir de lição do jurista Marçal Justen Filho, que a singularidade “não significa ausência de pluralidade de sujeitos em condições de desempenhar o objeto” (fls. 423), e que decorreria da combinação entre necessidade excepcional da Administração e inviabilidade de seu atendimento por profissional padrão. Acrescentaram que a complexidade dos trabalhos, sua importância e suas características específicas são suficientes para configurar a singularidade do objeto. Por ocasião do reexame, o órgão técnico asseverou, em síntese, que a singularidade dos serviços não foi demonstrada, que o fato de as empresas terem participado da 230


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concepção do projeto não impediria a participação de outras na sua execução, e que este Tribunal já se manifestou quanto à necessidade de singularidade do objeto almejado para que fique configurada a situação de inexigibilidade. Em seu parecer, o Parquet também destacou o posicionamento consolidado nesta Corte de Contas no sentido de considerar irregular a contratação mediante inexigibilidade de licitação quando não demonstrada a singularidade do objeto, entendimento consignado no Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 684.973 (fls. 537).

E concluiu que “as contratações para prestação de serviços de consultoria e informática não se inserem na hipótese de inexigibilidade do certame” (fls. 536). Decisões reiteradas deste Tribunal assentaram, de maneira definitiva, a necessidade de conjugação de notória especialização do prestador com a singularidade da prestação para que a contratação se subsuma à hipótese de inexigibilidade inscrita no art. 25, II, da Lei Nacional de Licitações e Contratos. Cito, exempli gratia, trechos dos pareceres emitidos nas Consultas n. 652.069 e 688.701:

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De início é importante dizer que singularidade, como estabelece a Lei de Licitação, é do objeto do contrato. É o serviço pretendido pela Administração que é singular, e não o executor do serviço. Aliás, todo profissional é singular, posto que esse atributo é da própria natureza humana (Jorge Ulisses Jacoby em seu livro Contratação direta sem licitação, p. 299). [...] Singular é, pois, a característica do objeto que o individualiza, que o distingue dos demais. É a presença de um atributo incomum na espécie. A singularidade não está associada à noção de preço, de dimensões, de localidade, de cor ou de forma. Assim, a singularidade pode incidir sobre um serviço cujo valor esteja abaixo dos limites dos incisos I e II do art. 24 da Lei n. 8.666/93 (Consulta n. 652.069, relator Conselheiro Elmo Braz, sessão de 12/12/01) (destaquei). A polêmica sempre apresentada a esta Corte tem sido o argumento levantado por alguns profissionais liberais que consideram o seu trabalho como personalíssimo, marcante, e que por isso têm a natureza singular, exigida pelo inciso II do art. 25 da mencionada Lei. Diante de tal raciocínio, tem-se como entendimento que, se o contratado tem a notória especialização, a singularidade do serviço é uma consequência. Mas não é verdade. Sabemos que a notoriedade não é inerente ao profissional do direito ou operador do direito, como chamado por alguns. É adquirida, personalíssima e depende da capacidade de cada um e, às vezes, pode permitir a contratação direta com o Poder Público, desde que o serviço a ser contratado esteja revestido do caráter singular. Ressalte-se, também, que a confiança do Administrador não é fator caracterizador da inexigibilidade. Pelo contrário, o que deve nortear a sua escolha é o interesse

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público que alcança toda a coletividade, portanto, impessoal (Consulta n. 688.701, relator Conselheiro Elmo Braz, sessão de 15/12/04) (destaquei).

Dada a recorrência e a repercussão da matéria no Tribunal, foi suscitado incidente de uniformização de jurisprudência, que consolidou a necessidade de observar, concomitantemente, a notória especialização do prestador e a singularidade do objeto para que se configure a situação de inexigibilidade. Do voto vencedor, extraio: Infere-se que a notória especialização é apenas um dos requisitos que legitimam a contratação, restando, ainda, a necessidade de o serviço se arrolar entre os previstos no art. 13 e, finalmente — este o dado essencial —, que o serviço seja singular. Dessa forma, o que possibilita seja um serviço tido como técnico especializado singular passível de contratação direta é o somatório dos seguintes fatores: a) especificidade do serviço, isto é, que o serviço exija determinado grau de especialização para ser executado que o faça destoar dos que corriqueiramente afetam a Administração; b) reconhecido calibre profissional (notoriedade) da pessoa física ou jurídica a ser contratada pela Administração; c) heterogeneidade do produto final (serviço) a ser desempenhado pelo contratado (Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 684.973, relator Conselheiro José Ferraz, sessão de 14/04/04) (destaquei).

Por fim, a questão foi objeto de enunciado da Súmula desta Corte de Contas: Nas contratações de serviços técnicos celebradas pela Administração com fundamento no artigo 25, inciso II, combinado com o art. 13 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, é indispensável a comprovação tanto da notória especialização dos profissionais ou empresas contratadas como da singularidade dos serviços a serem prestados, os quais, por sua especificidade, diferem dos que, habitualmente, são afetos à Administração (Súmula n. 106, publicada no MG de 22/10/08, p. 40; mantida no MG de 26/11/08, p. 72) (destaquei).

O Judiciário tem adotado idêntico entendimento: ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIÇO DE ADVOCACIA. CONTRATAÇÃO COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO À LEI DE LICITAÇÕES (LEI 8.666/93, ARTS. 3°, 13 E 25) E À LEI DE IMPROBIDADE (LEI 8.429/92, ART. 11). EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS CONTRATADOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. APLICAÇÃO DE MULTA CIVIL EM PATAMAR MÍNIMO. 1. A contratação dos serviços descritos no art. 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização. 2. A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contratado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito

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de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente. 3. A multa civil, que não ostenta feição indenizatória, é perfeitamente compatível com os atos de improbidade tipificados no art. 11 da Lei n. 8.429/92 (lesão aos princípios administrativos), independentemente de dano ao erário, dolo ou culpa do agente. 4. Patente a ilegalidade da contratação, impõe-se a nulidade do contrato celebrado, e, em razão da ausência de dano ao erário com a efetiva prestação dos serviços de advocacia contratados, deve ser aplicada apenas a multa civil, reduzida a patamar mínimo (10% do valor do contrato, atualizado desde a assinatura). 5. Recurso especial provido em parte (Segunda Turma do STJ. REsp 488842/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, 17/4/08, DJe de 05/12/08) (destaquei).

Constato que os defendentes não diligenciaram pela demonstração da singularidade dos objetos contratados. Quanto aos contratos descritos nos itens 2.1 a 2.4, suscitaram “a complexidade da metodologia, a importância social do trabalho e as características específicas do Judiciário” (fls. 424) na tentativa de justificar a preterição do procedimento licitatório. Não há, por exemplo, informações que demonstrem experiência prévia em consultoria ao Judiciário das empresas escolhidas, ou circunstância equivalente que permita concluir que eram aquelas as prestadoras mais indicadas para a execução dos serviços. A lista de clientes anteriores da AWFA Consultoria e Projetos (fls. 77-80) é composta de órgãos do Executivo ou organizações particulares, e não há, no currículo da TOP Consultoria Empresarial, informação quanto à experiência anterior.

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Aliás, como bem observado pela unidade técnica, a própria similitude entre as atividades desenvolvidas pelas empresas TOP e AWFA indica que havia, ao menos, dois potenciais prestadores dos serviços, e a consequente obrigatoriedade do procedimento licitatório. É inconsistente o termo de reconhecimento (fls. 441), que trata ambas as empresas como uma só entidade, e se baseia no fato de que a Fundação não dispunha, naquele momento, “de servidores com o perfil e a capacitação descritos”. Lê-se também, no referido termo, que “o processo formal de licitação dificulta e/ou impede a contratação de profissionais que de fato detenham a qualificação e a experiência requeridas pelo projeto”. Ora, é evidente que a assunção deliberada de obrigações contratuais superiores à própria capacidade produtiva não pode justificar a contratação direta, nem subsidiar a teórica situação de inexigibilidade suscitada no termo de reconhecimento. Tampouco foram as características específicas do Judiciário que guiaram a escolha das empresas, haja vista que jamais haviam desenvolvido atividades em órgãos da Justiça. Vê-se que a contratação direta ilegal, ao contrário do alegado no termo de reconhecimento, não impediu que fossem contratados prestadores desqualificados para a execução dos contratos, uma vez que foram escolhidos consultores sem qualquer experiência em administração do Judiciário. 233


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Quanto ao item 2.5, os defendentes limitaram-se a registrar que os serviços foram executados satisfatoriamente e dentro do prazo contratado, deixando incontestada a ausência de singularidade denunciada no relatório de inspeção. Sobre o item 2.6, sustentaram que a alta complexidade do serviço contratado afastaria a sua natureza comum. A descrição pormenorizada e repleta de termos técnicos do objeto, oferecida pelos responsáveis, efetivamente demonstra a sua complexidade, mas em nada contribui para provar a sua singularidade. Os defendentes não se manifestaram quanto à ausência de singularidade do objeto contratado com o Instituto Publix (item 2.7). Finalmente, quanto à contratação de Eugênio Vilaça Mendes (item 2.8), faz-se necessário um exame mais detido. Além de suscitar a diferenciação, de autoria de Marçal Justen Filho, entre singularidade e exclusividade, os responsáveis fazem menção, como em diversas outras passagens de seu arrazoado, à “necessidade excepcional de implantação dos projetos do Governo” (fls. 428). É preciso estabelecer de maneira definitiva que a execução de programas do Governo é a função intrínseca dos órgãos do Executivo estadual, e jamais poderia ser considerada circunstância atípica ou excepcional. A imposição de prazos e metas inobserváveis tampouco teria o condão de justificar o atropelo das regras consignadas na Lei Nacional de Licitações e Contratos. Assim, ante o malogrado êxito dos defendentes em demonstrar a singularidade dos serviços contratados e a jurisprudência consagrada nesta Corte de Contas e no Judiciário, julgo, em consonância com os estudos técnicos e o parecer do Ministério Público, configurada a infração ao disposto no art. 25, II, da Lei n. 8.666/93.

b) Foram subcontratados serviços típicos da entidade inspecionada, expressamente incluídos no rol inscrito no art. 4° do Decreto Estadual n. 43.707/03 (Estatuto da Fundação João Pinheiro), sem que fossem demonstradas as vantagens da medida. Os defendentes afirmaram, quanto aos itens 2.1 a 2.4, que não houve terceirização do objeto do contrato, que as favorecidas foram contratadas em virtude de sua experiência no ramo, “do conhecimento do projeto anterior e da confiança nelas depositada”, e que não houve transferência de responsabilidade da Fundação às empresas TOP e AWFA (fls. 424). A irregularidade não foi contestada quanto aos itens 2.5 a 2.8. No reexame, o órgão técnico apontou contradição nas razões de defesa apresentadas, tendo em vista que, por um lado, os defendentes negam a terceirização e, por outro, admitem que havia deficiência de pessoal qualificado no quadro próprio para a execução dos serviços. O estudo reafirma a prática da terceirização e ressalta que, 234


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por tratar-se de atividade-fim, a Fundação deveria prestar os serviços diretamente ou demonstrar as vantagens de subcontratá-los. O Ministério Público de Contas também constatou “a contratação de pessoal sem a realização de concurso público, em afronta ao art. 37, II, da CF/88” (fls. 537). Como visto, é fundamental a demonstração da infungibilidade do objeto para que fique caracterizada a situação de inexigibilidade, e a confiança, fenômeno subjetivo, não se coaduna com a impessoalidade que norteia a ação administrativa republicana. Ainda sobre os itens 2.1 a 2.4, é esclarecedora a alegação contida na defesa de que “em razão do curto espaço de tempo de sua implementação [...] a contratação de apenas uma delas seria prejudicial para a plena satisfação do objeto” (fls. 424). Conjugada com o fato de que as propostas apresentadas por ambas as empresas eram praticamente idênticas (fls. 42-52 e 71-87), a informação oferecida pelos defendentes permite concluir, com segurança, que, após celebrar contrato de amplo objeto, e cuja execução extrapolava a capacidade de sua mão de obra disponível — conforme repisado pelos próprios defendentes —, a Fundação João Pinheiro (FJP) transferiu os encargos decorrentes a terceiros, dividindo entre eles as obrigações contraídas perante o Tribunal de Justiça a fim de assegurar a observância do prazo para conclusão dos trabalhos.

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Reitero que os defendentes indicaram o déficit de mão de obra como motivação primordial para a contratação das firmas de consultoria: há de se observar que a Fundação João Pinheiro, à época, não possuía pessoal suficiente para compor a equipe que acompanharia a implantação do novo modelo organizacional do TJMG, motivo pelo qual as empresas TOP e AWFA foram contratada (fls. 424). Considerando que a Fundação João Pinheiro não dispõe, no momento, de servidores com o perfil e a capacitação descritos [...] solicito a contratação de serviços de consultoria da AWFA Consultoria e Projetos S/C Ltda. e TOP Consultoria Empresarial S/C Ltda. (fls. 441).

Tem-se, assim, que os responsáveis, sem negar que se tratava de atividadesfim da entidade, admitiram a terceirização da execução do contrato celebrado com o TJMG. Igualmente reveladora é a descrição do convênio entre a Fundação João Pinheiro e a Secretaria de Estado de Saúde (SES), constante a fls. 427. Ali se descobre que caberia “à FJP realizar a sua missão (pesquisa e formação de recursos humanos) e administrar, de forma terceirizada, a contratação de especialistas identificados e selecionados pela SES”. A descrição oferecida pelos defendentes não deixa dúvida de que o favorecido foi previamente escolhido pela Secretaria de Saúde, e que a 235


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participação da Fundação João Pinheiro teve por fim intermediar a sua contratação por meio de suposta situação de inexigibilidade. A fls. 181-183, consta ofício emanado da Secretaria de Estado de Saúde em que é especificado o nome do contratado, o embasamento legal a ser utilizado (art. 25, II, da Lei n. 8.666/93), as atividades a serem desenvolvidas, em pormenores, e o valor a ser despendido pela Secretaria, coincidente com as quantias pagas pela Fundação João Pinheiro ao prestador dos serviços. A atuação da Fundação como mera intermediária, portanto, é inequívoca. Ressalto que o direcionamento por parte da Secretaria de Estado de Saúde foi tamanho que sequer se tentou demonstrar a suposta notória especialização do favorecido — Eugênio Mendes Vilaça —, ausentes informações quanto à sua formação profissional e acadêmica, experiência prévia ou mesmo currículo. A prática em debate tem sido sistematicamente rechaçada em decisões desta Casa de Contas, e deu origem ao Enunciado n. 35 da Súmula: É vedada na Administração Pública Estadual a contratação indireta de pessoal, salvo para o desempenho das atividades relacionadas com transporte, conservação, custódia, operação de elevadores, limpeza e outras assemelhadas (publicada no MG de 25/02/88, p. 10, ratificada no MG de 23/04/02, p. 30, mantida no MG de 26/11/08, p. 72).

O parecer emitido na Consulta n. 442.370 é paradigmático e destaca que a terceirização de atividade-fim fulmina a obrigatoriedade do concurso público, estabelecida na Constituição da República: Entretanto, cabe ainda lembrar que a transferência para terceiros de atividade-fim de determinado ente político é irregular. Isto porque, além da subcontratação de mão de obra para o exercício de funções permanentes constituir burla à exigência de concurso prévio estabelecido no art. 37, II, da Constituição Federal, é indispensável a profissionalização dos servidores públicos, como garantia da prestação de serviços à camada da população mais desfavorecida. Toda atividade, pública ou privada, obrigatoriamente, para atingir o seu objetivo, desempenha, concomitantemente, atividade-fim e atividade-meio, sendo que aquela se dirige diretamente à sua razão de ser; esta desenvolve serviço de apoio, sem o que a atividade-fim não poderia existir. Nesse sentido, a terceirização é lícita enquanto só alcança a atividademeio, ou seja, serviço complementar da Administração Pública, tais como, vigilância, limpeza, manutenção, informática, etc. Aliás, esta é a posição do Tribunal de Contas da União a respeito da matéria: ‘Efetivamente, a contratação indireta de pessoal, por meio de empresa particular, para o desempenho de atividades inerentes à Categoria Funcional [...], abrangida pelo Plano de Classificação e Retribuição de Cargos do Serviço Civil da União, configura procedimento atentatório a preceito constitucional

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que impõe a aprovação prévia em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público [...]’ (Processo n. TC-475.054/95-4, Ministro Relator José Antônio B. de Macedo, publicado no Diário Oficial da União, seção I, p. 11.05311.054, dia 24/07/95). Consagra-se, aqui, o entendimento segundo o qual não é possível a terceirização de serviços que constituem atividade-fim, ou atribuições típicas de cargos permanentes. [...] Ante o exposto, concluo não ser possível ao Município a terceirização de todos os seus serviços, mas apenas a daqueles de natureza auxiliar, ligados à atividade-meio. Não pode o Município terceirizar serviços que abrangem sua atividade-fim, traduzindo atribuições típicas de cargos permanentes, que só podem ser preenchidos por concurso público (relator Conselheiro Moura e Castro, sessão de 22/04/98) (destaquei).

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Ao atribuir a terceirização dos serviços à insuficiência de mão de obra no quadro permanente, supostamente resultante de longo lapso temporal sem a realização de concurso público, os responsáveis descreveram justamente a prática proscrita pelo parecer colacionado. Admitiram, enfim, o desempenho por terceiros de atividades típicas da Fundação, atribuídas exclusivamente aos ocupantes de cargo permanente da entidade. Admitida a terceirização de atividades-fim, consubstanciada nos contratos descritos nos itens 2.1 até 2.4, e incontestada quanto aos itens 2.5 a 2.8, julgo caracterizada a infração ao disposto no art. 37, II, da Constituição da República.

c) Os procedimentos não foram instruídos com justificativa do preço, a despeito da exigência consignada no art. 26, parágrafo único, III. Os defendentes sustentaram que a imputação “não é inteiramente verdadeira” (fls. 430), e que, uma vez iniciado o procedimento de licitação, são consultados preços por telefone, motivo pela qual não são informados nos autos, “um pequeno deslize na conduta administrativa” que “não mais se repetirá”. Acrescenta que, mesmo após a celebração do contrato, a entidade monitora continuamente o preço dos serviços, a fim de garantir sempre o melhor negócio para a Administração. No reexame, o órgão técnico ratificou a irregularidade. A comprovação da razoabilidade dos preços é fundamental para inibir que a contratação direta dê lugar a abusos por parte do prestador teoricamente insubstituível. O administrativista Marçal Justen Filho discorre sobre a exigência, consignada no art. 26, parágrafo único, III: A questão adquire outros contornos em contratações diretas, em virtude da ausência de oportunidade para fiscalização mais efetiva por parte da comunidade e dos próprios interessados. Diante da ausência de competição, amplia-se o risco de elevação dos valores contratuais.

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[...] A razoabilidade do preço deverá ser verificada em função da atividade anterior e futura do próprio particular. O contrato com a Administração Pública deverá ser praticado em condições econômicas similares com as adotadas pelo particular para o restante de sua atividade profissional. Não é admissível que o particular, prevalecendo-se da necessidade pública e da ausência de outros competidores, eleve os valores contratuais. [...] Ademais, deverão ser adotadas as formalidades previstas no art. 26, que envolvem, basicamente, a documentação acerca do preenchimento dos requisitos legais para a contratação. Deverá instaurar-se procedimento administrativo, ao qual serão juntados os documentos referentes ao cumprimento de todas as etapas e formalidades acima indicados, inclusive no tocante ao preço adotado. (In: Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 377-378)

Em face do consentimento dos próprios responsáveis, fica caracterizado, de maneira inequívoca, o descumprimento do disposto no art. 26, parágrafo único, III. Irregularidades específicas (itens indicados entre parênteses)

d) Os objetos contratados com as empresas AWFA e Top eram similares, fato que evidencia a viabilidade da competição (itens 2.1 até 2.4). Os defendentes reiteraram a deficiência de pessoal da Fundação para a execução do contrato celebrado com o TJMG e afirmaram que, em virtude do prazo exíguo e da amplitude do objeto, “a contratação de apenas uma delas seria prejudicial para a plena satisfação do objeto contratual” (fls. 424). No reexame, o órgão técnico voltou a afirmar que a similaridade das ações desenvolvidas pelas duas empresas contratadas demonstra a viabilidade do procedimento licitatório. Conforme já consignado na análise da ocorrência b, os responsáveis relataram que o objeto contratado com o Tribunal de Justiça foi subcontratado simultaneamente às duas firmas indicadas, a fim de que não fosse extrapolado o prazo fixado no contrato original. Relatam os defendentes, ainda, que se lançou mão da suposta situação de inexigibilidade em razão da insuficiência de mão de obra na entidade, indicando que os terceiros contratados desempenharam atividades-fim da Fundação. É importante assinalar que a dispensa de licitação “para a aquisição, por pessoa jurídica de direito público interno, de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública”, prevista no art. 24, contempla situações em que a Administração já dispõe dos meios para a execução do objeto almejado, consubstanciados na entidade designada para aquele fim específico. Nas palavras do jurista Marçal Justen Filho, 238


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as prestadoras de serviço público ressaltam mera alternativa organizacional da Administração Pública. Em vez de optar por atribuir certas competências a seus próprios órgãos, a pessoa política institui sujeitos autônomos (In: Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13. ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 305).

Está evidente, portanto, que a licitude da contratação direta, nesses casos, decorre da peculiaridade de ser a própria Administração, por meio de órgão ou entidade especializada, a prestadora dos serviços ou fornecedora dos bens. A suscitação da dispensa prevista no art. 24, VIII, como pretexto para a livre contratação de particulares, constitui deformidade inaceitável. Não se pode conceber que subsista, no ordenamento juslicitatório, via colateral que estenda a particulares as prerrogativas reservadas a entidades estatais, verdadeiras alternativas

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organizacionais da Administração, criadas com o fim de atender necessidades específicas do próprio Estado. Pela mesma razão, a contração de obrigações superiores à própria capacidade de execução pela entidade especializada desvirtua, por si só, a mens legis investida no dispositivo, que diz respeito precisamente à circunstância de o ente, dispondo de suficientes meios, prescindir da participação de particulares para satisfação do objeto almejado. Trago à baila, a propósito, advertência do referido autor: a contratação direta não legitima escolhas despropositadas da Administração Pública. Não é válido desembolsar inadequadamente recursos públicos, sob pretexto da desnecessidade de licitação. O campo da contratação direta não está excluído da incidência dos princípios norteadores da atividade administrativa do Estado (op. cit., p. 286).

Tendo em vista que na análise das irregularidades comuns a todos os contratos (ocorrências a e b) já foi enfrentada a questão da viabilidade de competição entre as firmas TOP e AWFA, considero desnecessárias novas observações.

e) Foram contratadas empresas que participaram da “concepção do novo modelo organizacional desenhado para o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo imprescindível sua participação no processo de acompanhamento” (fls. 40 e 41), escolha que afronta o disposto no art. 9°, I e II (itens 2.1 até 2.4). Os defendentes afirmaram, a fls. 424, que existiam dois projetos e dois contratos diferentes, um relativo ao redesenho organizacional e outro referente à sua implementação no TJMG. Concluíram afirmando que, havendo dois contratos com objetos distintos, estaria afastada a hipótese de afronta aos incisos I e II do art. 9° da Lei n. 8.666/93. 239


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No reexame, a unidade técnica observou que os dispositivos indicados não foram infringidos, tendo em vista a exceção consignada no próprio art. 9°, § 1°, da Lei de Licitações e Contratos: Art. 9° [...] § 1° É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.

À luz do permissivo transcrito, afasto a irregularidade imputada pela equipe de inspeção.

f) Os contratos foram celebrados após o início da execução dos serviços, em ofensa ao disposto no art. 60, parágrafo único (itens 2.1-2.4).

g) A publicação dos atos de ratificação das situações de inexigibilidade não observou o prazo fixado no art. 26 (itens 2.3 e 2.4). Os defendentes limitaram-se a afirmar que as falhas formais “não produziram efeitos prejudiciais com relação ao erário” (fls. 425). No reexame, ante a ausência de novos elementos, concluiu-se pela ratificação das irregularidades inicialmente apontadas. O Ministério Público de Contas rechaçou as alegações dos defendentes, assinalando que não se tratam de meras falhas formais, “mas sim de frontais lesões aos princípios da legalidade, da igualdade e da publicidade e, potencialmente, aos da moralidade, da eficiência e da probidade administrativa, entre outros” (fls. 537). Como frisado no item 1, é temerário, no âmbito da Administração Pública, considerar as formalidades legais como rituais vazios ou meros caprichos: são justamente elas que asseguram a seriedade e a confiabilidade dos atos oficiais. Admitida pelos próprios defendentes, julgo configurada a infração ao disposto nos arts. 26 e 60, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93.

h) O objeto do contrato (fls. 110) é incompatível com o objeto social (fls. 104) da empresa favorecida (item 2.5). Os defendentes afirmaram que o serviço foi prestado de forma satisfatória e que os preços contratados eram “os de mercado” (fls. 425). No reexame, o órgão técnico reiterou as falhas apontadas no relatório de inspeção, tendo em vista que os defendentes não se manifestaram sobre o mérito dos apontamentos. 240


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Com efeito, o objeto social da Sucram Consultoria e Serviços Ltda. inclui consultoria em engenharia civil, incorporação, loteamento e urbanização, e ainda em “elaboração de textos, traduções e ilustrações” (fls. 104). Já o contrato glosado tinha por objeto serviços relacionados à informática, incluindo “suporte para adaptação e gestão agregada da rede informacional, aperfeiçoamento do controle de fluxos, apoio técnico estratégico e suporte técnico nos casos de maior complexidade” (fls. 110). Embora não constitua desobediência a nenhum dispositivo legal específico, a discrepância detectada realça o fracasso dos responsáveis em demonstrar que a contratada, se não a única, era ao menos a mais qualificada para a prestação dos serviços.

i) Não foi estabelecido o prazo de execução do contrato, contrariando o disposto no art. 57, § 3, da Lei n. 8.666/93 (item 2.6).

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Alega-se, na defesa, “que realmente houve falha” (fls. 426) e que o prazo de vigência teria sido fixado no Aditivo n. 214/05, celebrado em 13/09/05. A irregularidade foi ratificada no reexame. O suposto aditivo não foi apresentado. Ainda assim, a retificação teria sido excessivamente tardia, tendo em vista que o contrato original foi celebrado em 10/02/05. Admitida a falha pelo defendente, considero caracterizada a desobediência ao comando do art. 57, § 3°, da Lei de Licitações e Contratos.

j) Não foi emitido parecer técnico ou jurídico sobre a contratação (item 2.6). A ausência de parecer foi contestada de maneira genérica, em conjunto com as falhas descritas nos itens e, f, e g. No reexame, o órgão técnico reiterou a irregularidade. Observo que os “pareceres técnicos ou jurídicos emitidos sobre a licitação”, previstos no art. 38, VI, não têm caráter obrigatório: apenas se exige que, sendo emitidos, sejam juntados ao processo. Todavia, o parágrafo único do mesmo artigo impõe que as minutas de instrumentos convocatórios e contratos sejam aprovados pela assessoria jurídica do órgão. Constata-se que há manifestação da procuradoria jurídica na autorização do Presidente para a contratação direta (fls. 113), e no ajuste celebrado (fls. 115-118), em razão do que julgo afastada a infração ao contido no art. 38, parágrafo único, da Lei n. 8.666/93.

k) Não foi demonstrado o vínculo entre o Instituto Publix e os dois consultores cujos currículos subsidiariam a constatação de sua notória especialidade (item 2.7). 241


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Alega-se, na defesa, que o estatuto do Instituto Publix prevê “o trabalho de pessoas físicas e jurídicas de forma associada” (fls. 426), e que, conforme consta de ata de assembleia juntada aos autos, os consultores mencionados são membros do instituto contratado. Em face das alegações e da cópia da ata juntada aos autos, o órgão técnico considerou sanada a irregularidade inicialmente apontada. Com efeito, a ata de assembleia reproduzida a fls. 448-449, datada de 1°/03/04, registra a admissão de Caio Márcio Marini Ferreira, Humberto Falcão Martins e Nelson Marconi como associados do Instituto Publix, em razão do que fica afastada a irregularidade apontada.

l) Não foi emitido parecer técnico ou jurídico sobre a contratação, contrariando o disposto no art. 38, VI, da Lei n. 8.666/93 (item 2.8). Os defendentes citaram lição de Marçal Justen Filho em que se sustenta a facultatividade dos pareceres técnicos ou jurídicos (fls. 428). O órgão técnico, em sede de reexame, confirmou a irregularidade (fls. 511). Observo que consta carimbo, identificação e rubrica de procuradora no instrumento de contrato, a fls. 187-190, descaracterizando a irregularidade apontada.

m) A publicação do ato de ratificação da situação de inexigibilidade não observou o prazo fixado no art. 26 da Lei n. 8.666/93 (item 2.8). Os defendentes alegaram que se trata de “vício formal que já foi sanado, não existindo mais tal irregularidade” (fls. 428). No reexame, o apontamento inicial foi reiterado, tendo em vista a admissão, pela defesa, da ocorrência de “vício formal” (fls. 518). Admitida na defesa, julgo configurada a falha indicada. Da análise das irregularidades comuns e específicas, pode-se concluir que as contratações glosadas foram promovidas de maneira temerária, atropelando os comandos legais quanto à matéria e quanto à forma. Observo que, na defesa, as irregularidades de cunho formal não foram negadas, e que os responsáveis se limitaram a tentar minimizá-las e a prometer evitá-las nos procedimentos ulteriores. Já quanto ao objeto das contratações diretas, o arrazoado de defesa foi mais assertivo, indicando deficiências de mão de obra e prazos curtos de execução. A argumentação oferecida, contudo, só deixou mais clara a prática da terceirização de atividadesfim, revestida por teóricas situações de inexigibilidade que, em nenhum caso, 242


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observaram conjugadamente os requisitos de singularidade do objeto e de notória especialização do contratado. Os documentos e justificativas apresentados revelam uma práxis perniciosa, com origem na escolha prévia de determinado profissional ou firma autônoma por órgãos do Executivo, seguida de celebração de convênio com a Fundação João Pinheiro, por meio do qual se repassa a quantia exigida pelo prestador dos serviços, que é subcontratado utilizando-se do subterfúgio da suposta situação de inexigibilidade. A triangulação órgão do Executivo-Fundação-prestador não encontra suporte no Estatuto de Licitações e Contratos, uma vez que decorre não de inviabilidade de competição, mas da prévia eleição do contratado pelo órgão do Executivo, como explicado pelos próprios defendentes. Percebe-se, da argumentação apresentada e de certos documentos que instruem os autos, verbi gratia os peculiares termos

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de reconhecimento, que os responsáveis consideram legítima e corriqueira a terceirização de serviços típicos e exclusivos da Fundação a prestadores escolhidos por órgãos do Executivo, informando, em termos francos, que a entidade não se encontrava materialmente e tecnicamente apta a executar, por si própria, os objetos dos convênios celebrados com as secretarias solicitantes. É fonte de consternação a conduta evidenciada no documento reproduzido a fls. 181-183, emitido pela Secretaria de Estado de Saúde (SES): a escolha prévia do prestador, bem como o emprego do subterfúgio da suposta inexigibilidade, é formalmente ordenada à Fundação. A explícita burla à licitação é consentida pela entidade, que se limitou a executar a contratação nos moldes propostos pelos órgãos do Executivo. É difícil presumir a boa-fé em tal triangulação, uma vez que, caso fosse a competição efetivamente inviável, seria rigorosamente desnecessária a intermediação da Fundação João Pinheiro. Sequer se pode argumentar que caberia à entidade coordenar os serviços, uma vez que a proposta de trabalho foi apresentada pelo prestador diretamente à SES, incluindo a “coordenação de grupos-tarefa para o desenvolvimento de projetos relativos ao Plano de Governo” (fls. 182). Por fim, reitero que a ausência de comprovação da singularidade dos objetos contratados, ainda que superadas todas as demais irregularidades, seria suficiente para configurar a ilegalidade das contratações analisadas. A excepcionalíssima contratação direta, como visto, deve se fazer acompanhar de robusta demonstração da infungibilidade da prestação almejada, inclusive quando se trata de serviços técnicos, de alto nível de complexidade, mas passíveis de execução por diferentes profissionais qualificados. Pelo exposto, julgo irregulares os contratos descritos de 2.1 até 2.8, bem como as despesas deles decorrentes, e aplico multa aos responsáveis, sendo: 243


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— R$21.000,00 à Sra. Maria Helena de Andrade, Diretora de Planejamento, Gestão e Finanças à época (itens 2.1-2.5); — R$14.000,00 ao Sr. Geraldo Magela Pereira, Superintendente Financeiro à época (itens 2.6 e 2.7); e — R$6.300,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho, Presidente da entidade à época (item 2.8). 3 Contratação de serviços de consultoria, para a realização de concurso vestibular, mediante procedimento de inexigibilidade irregular — fls. 355-356 3.1 Contrato FJP/JP-119/03 (fls. 192-197) Favorecido: Fundep Objeto: serviços de consultoria relativos à realização de vestibular Valor pago: R$30.000,00

a) Embora repetidamente solicitados pela equipe de inspeção, não foram apresentados a justificativa do preço, o ato de ratificação da situação de inexigibilidade e a comprovação de sua publicação, em infração ao disposto no art. 26, caput e inciso III, da lei de regência.

b) A justificativa da contratação faz menção a situação de inexigibilidade, ao passo que o instrumento de contrato reporta-se à dispensa de licitação.

c) Não houve demonstração da compatibilidade do preço contratado com o praticado no mercado, a despeito do estabelecido no art. 24, XXIII, da Lei de Licitações e Contratos. Os defendentes observaram que “a Fundep é uma entidade de direito privado, motivo pelo qual os fundamentos legais apresentados como justificativa para os contratos não se mostram adequados” (fls. 429). Acrescentaram que é fácil comprovar a inocorrência de prejuízo ao erário, já que a contratação configurava a hipótese de inexigibilidade prevista nos arts. 13, I e IV, e 25, II, da Lei n. 8.666/93. Afirmaram também que foi promovida pesquisa de preços, ainda que de maneira informal (por telefone), e que o “pequeno deslize na conduta administrativa” não deveria ser objeto de sanções (fls. 429-430). O órgão técnico, no reexame, citou trecho do parecer emitido no Processo de Consulta n. 259.643-1, em 14/02/96, no qual o Tribunal autorizou a contratação direta com a favorecida nos moldes do art. 24, XIII, da Lei de Licitações e Contratos. Assinalou, 244


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porém, que não foi essa a fundamentação do contrato glosado, e que não foi providenciada a justificativa do preço. Com isso, ratificou as irregularidades apontadas no relatório de inspeção. Na mesma linha de raciocínio, o Ministério Público advertiu que, “caso configurada uma das hipóteses de dispensa ou inexigibilidade, o processo deve ser devidamente formalizado, nos termos do art. 26 da referida Lei” (fls. 537). Das irregularidades detectadas, constata-se que a contratação direta foi promovida de maneira completamente irregular, sem que a situação de inexigibilidade fosse ratificada pela autoridade competente, e sem que fosse demonstrada a razoabilidade dos preços contratados. Como visto, a demonstração da compatibilidade dos preços com a prática do mercado é crucial na contratação direta, quando não há o controle por parte dos participantes e interessados. Assim, a alegação de que foi promovida

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pesquisa de preços por telefone, repetida de maneira insistente pelos defendentes, mostra-se descabida em face da cautela imposta pela lei. A equipe de inspeção observou também que um aditivo contratual foi providenciado a fim de alterar a cláusula que indicava a dispensa de licitação como fundamento da contratação, substituindo-a por situação de inexigibilidade. O fato é ilustrativo da temeridade com que a contratação foi conduzida, e revela a peculiar circunstância de haver sido o seu fundamento debatido com a execução já em curso. Confirmadas as irregularidades indicadas pelo órgão técnico, julgo irregular a contratação analisada, por inobservância do disposto nos arts. 24, XXIII, e 26 da Lei n. 8.666/93, submetendo o então Presidente da Fundação João Pinheiro, Sr. Amilcar Vianna Martins Filho, à multa no valor de R$1.500,00. 4 Despesas precedidas de procedimentos licitatórios realizados com inobservância de formalidades legais — fls. 356-359 4.1 Concorrência n. 01/03 Contrato FJP/PJ-170/03 e TAs n. 088/04, 185/04 e 219/04 (fls. 238-251) Favorecido: Organizações Lerbach Objeto: prestação de serviços de impressão e reprografia Valor pago: R$158.943,76 a) Foi adotado critério de desempate em desacordo com o disposto no art. 45, §§ 2° e 3°, da Lei Nacional de Licitações e Contratos. 245


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Os defendentes afirmaram que, diante do empate ocorrido, optaram pela empresa que ofereceu os menores preços para os serviços mais demandados pela instituição. Em sede de reexame, a Diretoria Técnica rechaçou a argumentação dos defendentes, observando que o instrumento convocatório previa a escolha da proposta que apresentasse o menor preço por item. Assim, a entidade deveria ter contratado ambas as proponentes, “cada qual para os itens nos quais apresentaram menor preço” (fls. 521). A falta de critério para desempate também foi afastada, tendo em vista o art. 45 da Lei n. 8.666/93, que determina a realização de sorteio sempre que houver empate entre dois ou mais licitantes. Além de admitir a adoção de critério de julgamento não previsto no instrumento convocatório, os responsáveis não promoveram sorteio entre as participantes empatadas, infringindo o comando inserto no art. 45, §§ 2° e 3°, da Lei n. 8.666/93. Como bem observado pela equipe de inspeção, caso decidisse levar em conta os preços propostos por item, a Comissão Permanente de Licitação (CPL) deveria concluir pela adjudicação, a cada licitante, dos itens para os quais tivesse oferecido os menores preços. b) Não foi apresentado orçamento que estimasse o valor total da contratação, a despeito do estabelecido no art. 7°, § 2°, II, do Estatuto de Licitações e Contratos. Os responsáveis voltaram a afirmar que as cotações de preços são obtidas por telefone, em virtude do que não constariam dos processos licitatórios, “vício que não mais se repetirá” (fls. 430). c) O prazo de prorrogação estabelecido no 2° Termo Aditivo sobrepõe-se ao prazo de vigência do Contrato n. 170/03. d) Embora tenha mantido o preço unitário, a ampliação do objeto acordada no 2° aditivo extrapolou o limite de 25%, fixado no art. 65, § 1°, da Lei n. 8.666/93. Alega-se, na defesa, que houve aumento considerável na demanda de serviços reprográficos em virtude de ampliação repentina do volume de serviços prestados pela Fundação. A fim de evitar atrasos na conclusão dos novos serviços, procedeu-se à celebração de termos aditivos, que seriam rescindidos posteriormente. Por fim, os defendentes asseguraram que os preços fixados nos aditivos são compatíveis com a prática do mercado, tendo em vista o seu monitoramento contínuo por telefone. No reexame, o órgão técnico observou que, ao atribuir a celebração dos aditivos ao aumento do volume de serviços, e ao informar que prontamente rescindiria o ajuste, os responsáveis admitiram a ampliação irregular do objeto. 246


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Dado que o contrato original previa dispêndios no valor total de R$100.000,00, os pagamentos que extrapolaram R$125.000,00, teto decorrente do disposto no art. 65, § 1°, equivalem a despesas realizadas sem licitação. Tendo em vista a gravidade da irregularidade, e que as falhas formais não foram refutadas pelos defendentes, considero irregular a contratação e aplico multa aos responsáveis, sendo: — R$300,00, individualmente, aos Srs. Sálvio Ferreira de Lemos Eguimar Rodrigues Barroso, Neusa Santiago Lima, Márcio Macedo Botinha e Antônio de Pádua Pinto Fernandes, então membros da CPL, em virtude da infração ao disposto nos arts. 41, 44 e 45, §§ 2° e 3°, da Lei n. 8.666/93, no julgamento das propostas relativas à Concorrência n. 01/03; — R$2.300,00, individualmente, aos Srs. Geraldo Magela Pereira e Maria Helena de

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Andrade, representantes da entidade na celebração do Contrato FJP/PJ-170/03 e Termo Aditivo n. 185/04, respectivamente; e — R$3.300,00 à Sra. Maria Helena de Andrade em razão da ofensa frontal ao art. 65, § 1°, na celebração do Termo Aditivo n. 219/04, que acarretou a realização de despesas no valor de R$33.943,76 não precedidas de procedimento licitatório. 4.2. Pregão presencial n. 001/2004 Contrato FJP/PJ-104/04 (fls. 281-285) Favorecido: Terra Viagens e Turismo Objeto: agenciamento de viagens e atividades correlatas Valor pago: R$52.936,65

a) Não foi elaborado orçamento do objeto licitado, em desacordo com o disposto no art. 7°, III, da Lei Estadual n. 14.167/02.

b) Não há comprovação de que o valor estimado da contratação era compatível com o praticado no mercado, a despeito do comando do art. 8°, XII, do Decreto Estadual n. 42.408/02.

c) Não constam as assinaturas dos licitantes vencidos na ata do pregão, em afronta ao disposto no item 8.5 do edital e ao estabelecido no art. 8°, XVIII, do Decreto Estadual n. 42.408/02. Os defendentes admitiram a ausência de orçamento e novamente afirmaram que a Fundação monitorava os preços de mercado via telefone. Sustentaram também que não houve 247


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interposição de recurso, pelo que o vício formal da inexistência de assinaturas não teria comprometido o desenvolvimento do processo licitatório. O órgão técnico, no reexame, ratificou a irregularidade, observando que os defendentes admitiram as falhas. A coleta de preços por telefone e a tentativa de minimização das irregularidades de natureza formal já foram tratadas na análise das demais falhas. Considerando que os responsáveis não refutaram as impropriedades, julgo irregular a contratação e aplico multa aos responsáveis, sendo: — R$300,00 ao Sr. Edmar Alves da Silva, pregoeiro responsável, designado pela Portaria n. 025/04, a fls. 09-10, e subscritor da ata a fls. 275-278; e — R$1.000,00 à Sra. Maria Helena de Andrade, então Diretora de Planejamento, Gestão e Finanças. 5 Despesas não precedidas de procedimento licitatório — fls.360-362 5.1 Contrato FJP/AJ-031/03 e TAs n. 102/03, 18/04, 52/04, 150/04 e 247/04 (fls. 286-313) Favorecido: Minas Gerais Administração e Serviços (MGS) Objeto: terceirização de atividades-meio Valor estimado: R$1.098.561,30 a) Não foi constituído processo formal de dispensa de licitação, em desobediência ao estabelecido no art. 26 da Lei de Licitações e Contratos. b) Foi declarada, por este Tribunal, a ilegalidade da contratação direta da MGS, mediante dispensa, no parecer emitido na Consulta n. 390.863, sessão de 03/04/97. c) Não foi demonstrada a compatibilidade do preço contratado com o praticado no mercado, em afronta ao disposto no art. 24, VIII, da Lei n. 8.666/93. d) Certos empregados da contratada, admitidos para a execução de atividadesmeio, desenvolvem atividades próprias da Fundação, com afronta ao estabelecido no art. 37, II, da Constituição da República, arts. 20, II, e 21, § 1°, da Constituição do Estado, no art. 2° do Decreto Estadual n. 31.930/90 e no Enunciado n. 35 da Súmula desta Corte de Contas. Os defendentes explicaram que havia muito tempo não se promovia concurso na Fundação, em razão das exigências formais para a criação de vagas. Acrescentaram 248


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que o desempenho de atividades-meio por empregados da MGS acarretou uma “situação de extrema dependência”, em virtude da qual os contratos teriam sido sucessivamente prorrogados (fls. 433). Os responsáveis admitiram que os contratados, “em regime de urgência, passaram a realizar atividades-fim desta Fundação”, atribuindo a distorção a motivos imperiosos e à necessidade de evitar a interrupção dos trabalhos da entidade (fls. 433). Alegaram também que alguns empregados da MGS que exerciam atividade-fim já estariam sendo remanejados para atividades-meio. Por fim, os defendentes sustentaram, mais uma vez, que controlavam por telefone a compatibilidade dos preços com a média do mercado. No reexame, o órgão técnico analisou a fundo a contratação da MGS em face da

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hipótese de dispensa consignada no art. 24, VIII, da Lei n. 8.666/93. Mencionou o parecer emitido por esta Corte de Contas na Consulta n. 390.863, citado no próprio relatório de inspeção, em que a contratação direta da empresa foi declarada ilegal. Assinalou que a MGS só passou a integrar a Administração Pública após o início da vigência da Lei de Licitações e Contratos, e que não foi criada para o desempenho das atividades contratadas com a Fundação João Pinheiro. Observou também que o jurista Jorge Ulisses Jacoby Fernandes afastou a subsunção de ajustes com entidades criadas após a promulgação da Lei n. 8.666/93 à mencionada hipótese de dispensa; e que ação movida pela Promotoria de Justiça Especializada de Defesa do Patrimônio Público (Processo n. 0024.01.554.774-8), ainda pendente de julgamento, requer a anulação de contratos firmados entre a MGS e órgãos do Executivo Estadual. Pontuando os requisitos estabelecidos no mencionado dispositivo, concluiu, em síntese, que: — a MGS não foi criada para o fim específico de prestar serviços a pessoas jurídicas de direito público interno; — não foi comprovada a compatibilidade entre os preços contratados e a média do mercado; e — a contratação da MGS sem prévia licitação violou preceitos da Constituição da República e da Lei n. 8.666/93. Somam-se, na contratação em análise, a burla à licitação e ao concurso público. A defesa admite explicitamente a terceirização, atribuindo-a à própria inércia da Administração em promover novos concursos. Reitero que os defendentes não hesitam em informar que certos contratados “passaram a realizar atividades-fim desta Fundação” (fls. 433). Quanto à falta de demonstração da razoabilidade dos 249


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preços, repetiram a alegação de que colhiam orçamentos por telefone. As escassas razões de defesa não abordam a proibição à contratação direta da MGS em parecer do Tribunal, nem o fato de que não foi constituído processo formal de dispensa. Admitidas expressamente as irregularidades pelos responsáveis, inclusive a terceirização de atividades-fim, reitero a análise desenvolvida no item 1 quanto à ilegalidade da prática, que consubstanciou desobediência ao disposto nos art. 37, II e XXI, da Constituição da República, e aplico multa de R$35.000,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho, Presidente da Fundação João Pinheiro à época. 5.2 Empenhos n. 177, 1752, 437, 1272, 237, 1600 e 197 (fls. 361-362) Favorecida: Luciene Cristina Dias de Oliveira Objeto: desempenho da coordenação do mestrado em Administração Pública da Escola de Governo Valor pago: R$39.008,98

a) A favorecida foi contratada para desempenhar atividade típica e de competência exclusiva da Fundação João Pinheiro, prática que configura infração ao disposto no art. 37, II, da Constituição da República, arts. 20, II, e 21, § 1°, da Constituição do Estado, no art. 2° do Decreto Estadual n. 31.930/90 e no Enunciado n. 35 da Súmula desta Corte de Contas. Os defendentes voltaram a afirmar que havia anos não se promovia concurso na entidade. Sustentaram que não havia nos quadros da entidade, nem da MGS, profissional com a qualificação exigida para o cargo, em razão do que teriam contratado Luciene Cristina Dias de Oliveira, durante prazos determinados, em épocas nas quais a prestação dos serviços almejados era imprescindível. Admitiram que não foi formalizado instrumento de contrato e novamente alegaram que, por meio de telefonemas, apuravam a compatibilidade da remuneração com a prática do mercado. No reexame, ponderando que os responsáveis admitiram as práticas irregulares, o órgão técnico reiterou a imputação inicial. Admitida a terceirização de atividade-fim, com burla ao concurso público, conduta cuja inconstitucionalidade e ilegalidade já foram anteriormente demonstradas, julgo irregulares as despesas glosadas, que sequer foram previstas em instrumento 250


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de contrato, e aplico multa aos ordenadores, sendo R$2.300,00 à Sra. Maria Helena de Andrade e R$750,00 ao Sr. Geraldo Magela Pereira. À luz do exposto, manifesto-me, em proposta de voto, preliminarmente, pelo acolhimento da defesa apresentada, haja vista a prorrogação de prazo deferida pelo antigo relator, e exclusão dos membros da equipe de apoio da relação processual, convencido de que não podem ser pessoalmente responsabilizados por decisões subscritas pelo pregoeiro. No mérito, posiciono-me pela ilegalidade das despesas analisadas nos autos, e, com amparo nas disposições do art. 85, II, da Lei Orgânica desta Corte de Contas, aplicação de multas aos responsáveis no valor total de R$92.550,00, sendo:

a) R$1.000,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho, Presidente à época, em razão de

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falhas no controle interno, incluindo a desorganização dos documentos relativos a procedimentos licitatórios, a despeito do estabelecido no art. 1° das INTCs n. 06/99 e 07/03 (item 1);

b) R$21.000,00 à Sra. Maria Helena de Andrade, Diretora de Planejamento, Gestão e Finanças à época — itens 2.1 a 2.5, R$14.000,00 ao Sr. Geraldo Magela Pereira, Superintendente Financeiro à época — itens 2.6 e 2.7, e R$6.300,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho — item 2.8, em face da terceirização de típicas atividades-fim da entidade, com burla ao concurso público e desobediência ao art. 37, II, da Constituição da República, a título de inexigibilidade de licitação, no valor total de R$464.170,00, sem que fosse demonstrada a singularidade das prestações e a inviabilidade de competição, além de diversas irregularidades de natureza formal, com grave infração ao disposto nos arts. 26, 57 e 60, dentre outros, da Lei n. 8.666/93;

c) R$1.500,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho em virtude de irregularidades na realização de despesas de R$30.000,00 mediante procedimento de inexigibilidade de licitação, destacando-se a equivocada fundamentação legal do processo, a ausência de comprovação da razoabilidade do preço contratado, da ratificação da situação de inexigibilidade e de sua posterior publicação, com ofensa frontal ao disposto nos arts. 24, XXIII, e 26 da Lei de Licitações e Contratos (item 3);

d) R$300,00, individualmente, aos Srs. Sálvio Ferreira de Lemos, Eguimar Rodrigues Bastos, Neusa Santiago Lima, Márcio Macedo Botinha e Antônio de Pádua Pinto Fernandes, membros da Comissão Permanente de Licitação, e R$2.300,00, individualmente, ao Sr. Geraldo Magela Pereira e à Sra. Maria Helena de Andrade à vista da realização de despesas no valor de R$125.000,00 por meio de processo 251


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de concorrência maculado por diversas irregularidades, dentre as quais destaco a ausência de orçamento do valor total da contratação e a adoção de critério de desempate contrário à lei, com ofensa ao estabelecido nos arts. 7° e 45, entre outros, da Lei Nacional de Licitações e Contratos (item 4.1);

e) R$3.300,00 à Sra. Maria Helena de Andrade em face da ampliação de objeto de contrato em proporção superior ao limite de 25% estabelecido no art. 65, § 1°, da Lei n. 8.666/93, que resultou na realização de despesas no valor de R$33.943,76 não precedidas de licitação (item 4.1);

f) R$ 300,00 ao Sr. Edmar Alves da Silva, pregoeiro responsável, e R$1.000,00 à Sra. Maria Helena Andrade pela realização de despesas no valor de R$52.936,65 mediante procedimento de pregão presencial irregular, incluindo a ausência de orçamento do objeto licitado e a não comprovação da compatibilidade do preço com a prática do mercado, com explícita violação ao fixado no art. 7°, III, da Lei Estadual n. 14.167/02 e no art. 8° do Decreto Estadual n. 42.408/02 (item 4.2);

g) R$35.000,00 ao Sr. Amilcar Vianna Martins Filho pela realização de despesas no valor de R$1.098.561,30 sem licitação, agravada pelo fato de constituir terceirização de atividades-fim da Fundação e pela existência de parecer desta Corte de Contas que declara a ilegalidade da contratação direta da MGS (item 5.1);

h) R$2.300,00 à Sra. Maria Helena de Andrade e R$750,00 ao Sr. Geraldo Magela Pereira em face da realização de despesas no valor de R$39.008,98 sem licitação, agravada pelo fato de que a contratação configurou terceirização de atividade de competência exclusiva da Fundação João Pinheiro (item 5.2). Tendo em vista a recorrência da terceirização de atividades-fim da Fundação e o desprendimento com que a prática é descrita pelos responsáveis, recomendo que, em futuras inspeções na entidade, dê-se especial atenção às contratações de serviços profissionais mediante inexigibilidade de licitação e aos contratos referentes a terceirização de atividades-meio, observandose, também, se persiste a prática de intermediar contratações (ilícitas) de outros órgãos do Executivo. Transitado em julgado o decisum, cumpram-se as disposições do art. 364 do Regimento Interno deste Tribunal. Ao final, à vista da constatação de grave transgressão à norma legal, encaminhe-se o processo ao Ministério Público de Contas para as providências de seu mister.

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Ultimados os procedimentos pertinentes à espécie, impõe-se o arquivamento dos autos, conforme o disposto no inciso I do art. 176, regimental.

O Processo Administrativo em epígrafe foi apreciado pela Segunda Câmara na sessão do dia 1º/07/10 presidida pelo Conselheiro Eduardo Carone Costa; presentes o Conselheiro Elmo Braz e o Conselheiro Substituto Gilberto Diniz, que acolheram a proposta de voto exarada pelo relator, Auditor Hamilton Coelho.

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Licitação para locação de veículos leves, utilitários e motocicletas: necessidade de parcelamento do objeto em lotes* ASSCOM TCEMG

Excelentíssimo Senhor Relator,

1 Relatório Tratam os autos de denúncia ofertada pela empresa Autoplan Locadora de Veículos Ltda., em face do procedimento licitatório Concorrência n. 08/2008, elaborado pela Prefeitura Municipal de Nova Lima.

PROCURADOR GLAYDSON SANTO SOPRANI MASSARIA

A licitação objetiva a locação de veículos leves, motocicletas e utilitários, com motoristas, conforme anexos do edital no tipo menor preço global. Acrescente-se que o custo estimado da contratação é de R$ 4.994.400,00.

A denunciante alega que o edital da licitação teria restringido a concorrência ao estipular a obrigatoriedade do cadastro no Departamento Estadual de Rodagem e Certificado de Registro Nacional de Transportador Rodoviário de Carga (RNTRC) da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para as licitantes na fase habilitatória. Requer, por isso, a suspensão do certame e a exclusão do item 9.5, letras c e d do edital que elenca os citados documentos. Passado isso, os autos foram encaminhados ao Conselheiro Relator que, em despacho a fls. 75-77, negou provimento ao pedido de suspensão da licitação por considerar frágeis os argumentos levantados e por constar na Lei n. 11.442/2007 a exigência de “prévia inscrição do interessado em sua exploração (transporte de cargas) no

* Parecer emitido pelo Ministério Público de Contas na Denúncia n. 795.945 de relatoria do Conselheiro Eduardo Carone Costa.

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Registro Nacional de Transportes Rodoviários de Cargas (RNTRC) da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)”. Logo, a exigência da letra d, item 9.5 do edital, estaria em consonância com o art. 30, IV, da Lei n. 8.666/93. O denunciante foi intimado da decisão, contudo, quedou-se inerte. A Diretoria de Análise Formal de Contas (DAC), por meio de sua Coordenadoria de Área de Exame de Instrumento Convocatório de Licitação (CAIC), manifestou-se a fls. 80-85 que a exigência de cadastro no DER restringiria o caráter competitivo da licitação e opinou pela necessidade de oitiva dos gestores municipais para justificarem o estabelecimento do item do edital impugnado. É o relatório, no essencial. Passa-se à manifestação.

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2 Fundamentação 2.1 Exigências para habilitação O edital licitatório estabeleceu que a empresa licitante para ser habilitada no certame deveria apresentar, entre outros documentos, cadastro junto ao Departamento de Estradas e Rodagem estadual e o Certificado de Registro Nacional de Transportador Rodoviário de Carga (RNTRC) da ANTT. Importa observar que este Parquet não concorda com as conclusões a que chegou a CAIC/DAC, tendo em vista que as exigências insculpidas no edital de licitação municipal decorrem de normação legal para o objeto licitado desde que direcionadas à finalidade a que se destinam. A municipalidade não deve justificar a inclusão no edital de exigências previstas em lei, por óbvio, já que não está dentro do âmbito de seu juízo de discricionariedade e decisão. Contudo, os pontos atacados no edital devem ter relação direta com o tipo de serviço a ser prestado, pois o cadastro junto ao DER e o certificado da ANTT prestam-se a atestar a licitude de serviços diversos, qual sejam, transporte de pessoas e cargas respectivamente. Trazemos à colação trecho da palestra proferida, em 14/06/2004, pelo Professor Diogenes Gasparini, no II Seminário de Direito Administrativo do Tribunal de Contas do Município de São Paulo — Licitação e contrato: direito aplicado referente ao princípio da competitividade, in verbis: Em suma, o princípio da competitividade de um lado exige sempre que se verifique a possibilidade de se ter mais de um interessado que nos possa atender, que nos possa fornecer o que desejamos. Essa constatação determina

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ou não a promoção da licitação. Portanto, a competição é exatamente a razão determinante do procedimento da licitação, mas ele tem uma outra faceta que muitas vezes é desapercebida pelo operador do Direito. Se a competição é a alma da licitação, é evidente que quanto mais licitantes participarem do evento licitatório, mais fácil será à Administração Pública encontrar o melhor contratado. Sendo assim, deve-se evitar qualquer exigência irrelevante e destituída de interesse público, que restrinja a competição. Procedimento dessa natureza viola o princípio da competitividade (grifo nosso).

Por isso, ao exigir documentação necessária e prevista em lei não há que se falar em afronta ao aludido princípio licitatório no certame em análise, desde que condicionado aos parâmetros que serão traçados no decorrer desta peça de opinião. Eis as razões que justificam esse posicionamento:

2.2 Do cadastro junto ao DER/MG Desse modo, quanto ao cadastro junto ao Departamento de Estradas e Rodagens do Estado de Minas Gerais (DER) esclareça-se que é o órgão competente para auxiliar a fiscalização de trânsito no âmbito estadual e não é outra a finalidade do referido documento habilitatório. A competência do DER/MG para fiscalizar o serviço licitado pelo Município decorre de previsão do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), principalmente, inserida nos artigos a seguir. O DER compõe o Sistema Nacional de Trânsito e tem suas competências determinadas em cada Estado da federação, in verbis: CTB Art. 5° O Sistema Nacional de Trânsito é o conjunto de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios que tem por finalidade o exercício das atividades de planejamento, administração, normatização, pesquisa, registro e licenciamento de veículos, formação, habilitação e reciclagem de condutores, educação, engenharia, operação do sistema viário, policiamento, fiscalização, julgamento de infrações e de recursos e aplicação de penalidades. [...] Art. 7° Compõem o Sistema Nacional de Trânsito os seguintes órgãos e entidades: [...] IV — os órgãos e entidades executivos rodoviários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; (grifo nosso).

Noutro ponto do CTB, encontra-se previsão expressa para que o Estado auxilie na fiscalização e coordenação do Sistema de Trânsito, e no caso de Minas Gerais esse tipo de transporte por fretamento fica a cargo do DER, in verbis: 256


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Art. 22. Compete aos órgãos ou entidades executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito de sua circunscrição: I — cumprir e fazer cumprir a legislação e as normas de trânsito, no âmbito das respectivas atribuições; [...] V — executar a fiscalização de trânsito, autuar e aplicar as medidas administrativas cabíveis pelas infrações previstas neste Código, excetuadas aquelas relacionadas nos incisos VI e VIII do art. 24, no exercício regular do Poder de Polícia de Trânsito; (grifo nosso).

E ainda, cite-se de forma específica que é atribuição do órgão de trânsito estadual — DER — o controle e fiscalização no âmbito rodoviário, in verbis: Art. 23. Compete às Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal: [...]

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III — executar a fiscalização de trânsito, quando e conforme convênio firmado, como agente do órgão ou entidade executivos de trânsito ou executivos rodoviários, concomitantemente com os demais agentes credenciados; (grifo nosso).

O serviço licitado pelo Município apesar de ter sido nominado de locação de veículos com motorista, na verdade, trata-se de fretamento de veículo. Sendo assim, o DER conforme o Decreto Estadual n. 44.035/2005 é o órgão competente para cadastrar as empresas que prestam esse serviço no Estado de Minas Gerais e estipula que o referido cadastro é condição indispensável para o exercício legal da atividade, in verbis: Decreto Estadual n. 44.035/05 Art. 2° Para efeito de prestação de serviço fretado de transporte rodoviário intermunicipal de pessoas, considera-se: [...] V — fretamento contínuo — serviço autorizado pelo DER/MG, destinado ao deslocamento de empregados e servidores de pessoas jurídicas privadas ou públicas, bem como de grupo de pessoas matriculadas ou inscritas em estabelecimento de ensino, desde que comprovado o vínculo, em caráter habitual, mediante contrato e emissão de documento fiscal, com pontos de origem e destino preestabelecidos, não aberto ao público, vedado qualquer característica de transporte público; [...] § 2° Nos serviços de fretamento de natureza contínua o veículo a ser utilizado na prestação de serviço será o estabelecido no contrato celebrado entre as partes.

Portanto, quanto ao referido item exigido no edital de licitação não há que se falar em restrição à competitividade nem em exigência descabida ou desarrazoada por ser previsão decorrente de lei. 257


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2.3 Do certificado de Registro Nacional de Transportador Rodoviário de Carga Noutro giro, importa tratar da exigência de certificado junto à Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) quando a empresa pretende realizar transporte de cargas em território nacional (amplo sentido) e o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros. A ANTT foi criada e teve suas competências estabelecidas pela Lei Federal n. 10.233/2001. Eis as competências da agência reguladora que interessa ao presente caso, in verbis: Art. 22. Constituem a esfera de atuação da ANTT: [...] III – o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; IV – o transporte rodoviário de cargas; V – a exploração da infraestrutura rodoviária federal;

Ao adentrar nas atribuições específicas da mencionada agência, tem-se que sua competência fiscalizatória irradia-se até para o transporte de passageiros na modalidade de fretamento, in verbis: Art. 26. Cabe à ANTT, como atribuições específicas pertinentes ao Transporte Rodoviário: [...] III – autorizar o transporte de passageiros, sob regime de fretamento; [...] VII – fiscalizar diretamente, com o apoio de suas unidades regionais, ou por meio de convênios de cooperação, o cumprimento das condições de outorga de autorização e das cláusulas contratuais de permissão para prestação de serviços ou de concessão para exploração da infraestrutura. [...] § 6° No cumprimento do disposto no inciso VII do caput, a ANTT deverá coibir a prática de serviços de transporte de passageiros não concedidos, permitidos ou autorizados (grifo nosso).

Quanto ao transporte de cargas é de clareza meridiana a exigência do certificado, tendo em vista estar inserta na Lei Federal n. 11.442/07, in verbis: Art. 1° Esta Lei dispõe sobre o Transporte Rodoviário de Cargas (TRC) realizado em vias públicas, no território nacional, por conta de terceiros e mediante remuneração, os mecanismos de sua operação e a responsabilidade do transportador. Art. 2° A atividade econômica de que trata o art. 1° desta Lei é de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência, e depende de prévia inscrição do interessado em sua exploração no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTR-C) da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), nas seguintes categorias:

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I — Transportador Autônomo de Cargas (TAC), pessoa física que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade profissional; II — Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas (ETC), pessoa jurídica constituída por qualquer forma prevista em lei que tenha no transporte rodoviário de cargas a sua atividade principal (grifo nosso).

Contudo, interessa salientar que ao pesquisar no sítio eletrônico da ANTT1 percebese que o RNTRC só é necessário para os veículos com capacidade de carga útil igual ou superior a 500 Kg. Destarte, o certificado é condição indispensável ao exercício da atividade e transporte de cargas no âmbito do Estado de Minas Gerais, ou seja, legal e imprescindível a exigência constante no edital da concorrência em análise.

2.4 Da necessária separação do objeto em lotes

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Retomando o que fora dito no início dessa peça de opinião quanto ao princípio da competitividade, percebe-se que sua concretude dar-se-ia de forma mais evidente com a separação do certame em lotes, como será demonstrado a seguir. O edital ao tratar num bloco único os veículos para transporte de pessoas e transporte de cargas, bem como a documentação exigida para habilitação de forma conjunta acaba por estabelecer empecilho à ampla concorrência. Estabelece a Lei de Licitações e Contratos que o objeto da licitação deve ser fracionado no maior número de parcelas técnica e economicamente possíveis, visando a uma maior competitividade e assim vantagem de contratação para a Administração, desse modo, o art. 23, § 1°, da Lei n. 8.666/93, assim dispõe: § 1° As obras, serviços e compras efetuadas pela administração serão divididas em tantas parcelas quantas se comprovarem técnica e economicamente viáveis, procedendo-se à licitação com vistas ao melhor aproveitamento dos recursos disponíveis no mercado e à ampliação da competitividade, sem perda da economia de escala.

1

Pesquisa realizada em 18 de agosto de 2009 no endereço eletrônico: <http://www.antt.gov.br/carga/rodoviario/faq.asp>, Resolução ANTT n. 3056, de 12/03/2009, D.O.U. de 13/03/2009, in verbis: Art. 4° Para inscrição e manutenção do cadastro no RNTRC o transportador deve atender aos seguintes requisitos, de acordo com as categorias: I - Transportador Autônomo de Cargas (TAC): [...] e) ser proprietário, coproprietário ou arrendatário de, no mínimo, um veículo ou uma combinação de veículos de tração e de cargas com Capacidade de Carga Útil (CCU), igual ou superior a quinhentos quilos, registrados em seu nome no órgão de trânsito como de categoria aluguel, na forma regulamentada pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN); e II - Empresas de Transporte Rodoviário de Cargas (ETC): [...] g) ser proprietário ou arrendatário de, no mínimo, um veículo ou uma combinação de veículos de tração e de cargas com Capacidade de Carga Útil (CCU), igual ou superior a quinhentos quilos, registrados em seu nome no órgão de trânsito como de categoria aluguel, na forma regulamentada pelo CONTRAN.

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Considerando que as exigências legais são diversas para os dois núcleos do objeto licitado – transporte de pessoas e transporte de carga – tal discrímen deveria estar presente na documentação exigida para habilitação conforme o veículo e sua finalidade almejada pela municipalidade. Assim, parece ser o mais vantajoso economicamente para o Poder Público o parcelamento do objeto em lotes conforme a finalidade do veículo e/ou sua capacidade de carga, tendo em vista que somente aqueles que têm capacidade de carga útil superior a 500 kg necessitam do RNTRC da ANTT. Nesse quadrante, haverá a redução dos requisitos de habilitação, garantindo o acesso ao certame de mais empresas, ocasionando maior competitividade e redução dos preços. Esse é também o entendimento da doutrina e, nesse sentido, Marçal Justen Filho discorre: O art. 23, § 1°, impõe o fracionamento como obrigatório. A regra retrata a vontade legislativa de ampliar a competitividade e o universo de possíveis interessados. O fracionamento conduz à licitação e contratação de objetos de menor dimensão quantitativa, qualitativa e econômica. Isso aumenta o número de pessoas em condições de disputar a contratação, inclusive pela redução dos requisitos de habilitação (que serão proporcionados à dimensão dos lotes). Tratase não apenas de realizar o princípio da isonomia, mas da própria eficiência. A competição produz redução de preços e supõe que a Administração desembolsará menos, em montantes globais, através da realização de uma multiplicidade de contratos de valor inferior do que pela pactuação de contratação única.2

No mesmo sentido, Jessé Torres Pereira Júnior: Por conseguinte, parcelar a execução, nessas circunstâncias, é dever a que não se furtará a Administração sob pena de descumprir princípios específicos da licitação, tal como o da competitividade. Daí a redação trazida pela Lei 8.883/94 haver suprimido do texto anterior a ressalva a critério e por conveniência da Administração, fortemente indicando que não pode haver discrição (parcelar ou não) quando o interesse público decorrer superiormente atendido do parcelamento.3

O Tribunal de Contas da União editou a Súmula n. 247, cuja redação é a seguinte: É obrigatória a admissão da adjudicação por item e não por preço global, nos editais das licitações para a contratação de obras, serviços, compras e alienações, cujo objeto seja divisível, desde que não haja prejuízo para o conjunto ou complexo ou perda de economia de escala, tendo em vista o objetivo de propiciar a ampla participação de licitantes que,

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2

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 12. ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 259.

3

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários à lei das licitações e contratações da administração pública. 7.ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 277.


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embora não dispondo de capacidade para a execução, fornecimento ou aquisição da totalidade do objeto, possam fazê-lo com relação a itens ou unidades autônomas, devendo as exigências de habilitação adequar-se a essa divisibilidade.

Portanto, esse Parquet entende que o certame deva ser dividido em três lotes e os requisitos de habilitação correlacionados a cada um deles e da seguinte forma: a) Lote 1 — transporte de passageiros com a exigência para habilitação do cadastro junto ao DER/MG; b) Lote 2 — transporte de carga em veículos com capacidade igual ou superior a 500 kg e o necessário certificado RNTRC da ANTT e c) Lote 3 — transporte de carga em veículos com capacidade inferior a 500 kg, em que é desnecessário o referido RNTRC da ANTT.

2.5 Da necessidade de participação da contratada no processo

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Na hipótese de haver sido adjudicado o objeto contratual e dado início a execução do contrato, é necessária também a intimação da empresa contratada para se manifestar, tendo em vista a possibilidade de anulação da licitação e, por conseguinte, do próprio contrato. Sobre esse assunto, faz-se necessário esclarecer que a doutrina tem conferido tratamento idêntico aos casos de revogação e anulação. Para José dos Santos Carvalho Filho4, o direito ao contraditório tem cabimento nos casos de desfazimento da licitação, seja por meio da revogação ou da anulação, senão veja: O desfazimento da licitação, seja pela anulação, seja pela revogação [...], obriga a Administração a assegurar aos interessados o contraditório e a ampla defesa [...]. É verdade que já houve decisão considerando que a citada garantia somente se aplicaria no caso de revogação, não incidindo sobre a anulação. É inegável a erronia de tal pensamento: o art. 49, § 3°, do Estatuto, alude a desfazimento, e este, como é óbvio, abrange a anulação e a revogação; essas modalidades desfazem a licitação e, portanto, são espécies de desfazimento. Assim, em qualquer desses casos fica assegurado o contraditório aos interessados na permanência do certame. O escopo da norma é o de impedir que o desfazimento seja mascarado por objetivos escusos e inverídicos, vulnerando o princípio da transparência, que não pode ser relegado pela Administração (grifo nosso).

Nesse sentido, colacione-se a ementa do seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ANULAÇÃO DE LICITAÇÃO PÚBLICA. CONTRATOS. PROCESSO ADMINISTRATIVO. GARANTIA DO DIREITO ADQUIRIDO E DO ATO JURÍDICO PERFEITO. A Administração pode anular seus 4

CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de direito administrativo. 19. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 267-268.

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próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos. Súmula n. 473/STF. Processo administrativo e garantia da ampla defesa. Inobservância. Agravo regimental não provido. (RE 342593 AgR / SP — SÃO PAULO)

A jurisprudência atenta que o exercício do contraditório e da ampla defesa só se legitima quando nasce a expectativa do direito subjetivo ao licitante. Em outras palavras, a oportunização do contraditório depende do momento em que ocorre a anulação do certame, senão veja: REPRESENTAÇÃO. LICITAÇÃO. DISCRICIONARIEDADE DO ATO DE REVOGAÇÃO. DESNECESSIDADE DO CONTRADITÓRIO PARA REVOGAÇÃO DE LICITAÇÃO EM ANDAMENTO. IMPROCEDÊNCIA. O juízo de conveniência e oportunidade a respeito da revogação da licitação é, pela sua própria natureza ato discricionário, privativo da autoridade administrativa que deve resguardar o interesse público. A revogação de licitação em andamento com base em interesse público devidamente justificado não exige o estabelecimento do contraditório e ampla defesa, visto que não se concretizou o direito adquirido nem o ato jurídico perfeito, decorrente da adjudicação do objeto licitado. Voto do Ministro Relator [...] 6. Verifica-se que a empresa representante foi considerada, pela ECT, a licitante classificada em primeiro lugar para três das nove regiões objeto da Concorrência n. 9/2004. O certame não chegou a ser concluído, pois foi revogado antes de sua homologação e da adjudicação do objeto da licitação. No caso concreto, considero que o direito subjetivo da empresa representante surgiria, apenas, com a aceitação definitiva da proposta e adjudicação do objeto da licitação. Assim, não há que se falar em descumprimento, nessa etapa, do princípio do contraditório e da ampla defesa. Ademais, a revogação da Concorrência n. 9/2004 foi um ato discricionário e privativo da Administração, cujas razões fundamentaram-se no interesse público, não tendo a empresa representante, direta ou indiretamente, dado causa à revogação. 7. Nesse sentido, cito trechos do despacho de 08/06/2004, exarado pelo Exmo. Sr. Ministro Cézar Peluso no Agravo de Instrumento STF n. 228.554-4, que assim enfrentou questão semelhante: ‘A decisão de revogar a licitação consulta os melhores interesses da apelante. A fls. 257-TA se vê a designação do Diretor da DILOG como substituto da presidência da RFFSA, sendo que o ato foi praticado durante a substituição, com o que não há qualquer desvio de poder de seu autor. Considera-se, ainda, que não se concretizou o direito adquirido, bem como o ato jurídico perfeito, pois o direito, para a apelada, nasceria da adjudicação do objeto da concorrência, consequência da homologação. Essa homologação não foi lançada, considerando-se que as condições da licitação não consultavam os mais elevados interesses da apelante. [...] Ora, o direito adquirido surge com a aceitação definitiva da proposta e adjudicação do objeto da licitação. No caso

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vertente, não se chegou a tal ponto, eis que o presidente em exercício da empresa apelante acatou parecer de sua assessoria e resolveu revogar o processo licitatório [...]. Uma coisa é a revogação da licitação por interesse público, e outra, completamente diversa, é a sua anulação por algum vício que a torne inválida. No último caso, até se pode defender que se observem os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, visto que, na situação litigiosa que se instaura, não parece desarrazoado reconhecer ao licitante interessado a faculdade de opor razões jurídicas no sentido da higidez da licitação e da consequente ilegitimidade do ato de anulação. Mas não faz nenhum sentido, no primeiro caso, admitir que se observe o mesmo procedimento, e pela simples razão de que o juízo de conveniência e oportunidade a respeito da revogação da licitação é, pela sua própria natureza discricionária, privativo da autoridade administrativa [...]. Como se sabe, ‘a revogação é uma expressão da discricionariedade no processamento positivo das funções da Administração: seu fundamento último, como o de todo ato administrativo, é o interesse público; seu fundamento imediato é a liberdade, ou melhor, a discrição administrativa, por não estar a decisão vinculada a um dos elementos de fim e de mediação’, de modo que, positivando-se uma inconveniência superveniente, como a da hipótese, a Administração ‘revoga por motivo de mérito, quando, em virtude de razões supervenientes, muda o entendimento dos fatos e do direito, optando por outra via mais conveniente, renunciando, assim, à anterior, embora igualmente válida’ [...]

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Ora, antes da homologação da licitação, não exsurge aos concorrentes nenhum direito subjetivo capaz de impedir a revogação da abertura do processo licitatório, por óbvia conveniência pública, superveniente à desistência de todos os concorrentes menos um, nem tampouco alguma lesão patrimonial, de que se irradiasse direito a indenização. Nessas circunstâncias, em que com a revogação nada sofreu a esfera dos direitos e interesses privados, não havia lugar para observância de contraditório e ampla defesa, inerentes à cláusula constitucional do justo processo da lei (due process of law), cujo alcance está em impedir ação arbitrária e lesiva do Estado.” 8. Semelhante também é o entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça ao examinar, em 18/12/2000, o Mandado de Segurança n. 7.017DF, cuja ementa destaco a seguir: EMENTA: ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 49, § 3°, DA LEI 8.666/93. [...] Revogação de licitação em andamento com base em interesse público devidamente justificado não exige o cumprimento do § 3° do art. 49 da Lei 8.666/93. [...] Só há aplicabilidade do § 3°, do art. 49, da Lei 8.666/93, quando o procedimento licitatório, por ter sido concluído, gerou direitos subjetivos ao licitante vencedor (adjudicação e contrato) ou em caso de revogação ou de anulação onde o licitante seja apontado, de modo direto ou indireto, como tendo dado causa ao proceder o desfazimento do certame.

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Mandado de segurança denegado. 9. Cito, também, a manifestação do Tribunal Regional Federal da Primeira Região que, ao examinar a Apelação em Mandado de Segurança n. 22.973-4/DF, firmou a seguinte posição, extraída da ementa do processo: EMENTA. ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. REVOGAÇÃO. INTERESSE PÚBLICO. MANDADO DE SEGURANÇA. MATÉRIA DE PROVA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. CARÊNCIA DA AÇÃO. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. OBSERVÂNCIA. [...] 2. Somente após a homologação do resultado e consequente adjudicação do objeto da licitação impõe-se a observância do princípio do contraditório se, em decorrência de razões de interesse público fundadas em fato superveniente devidamente comprovado, a Administração resolver revogála (Lei n. 8.666/93, art. 49, § 3°). 10. Pelo exposto, considero válido o ato administrativo que revogou o certame em discussão. (Acórdão 111/2007 — Plenário AC-0111-05/07-P) (grifo nosso).

Com o fito de espancar qualquer dúvida ou divergência no âmbito administrativo, cite-se a Súmula Vinculante n. 3 do STF: Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão (grifo nosso).

Destarte, a necessidade de obediência ao contraditório e à ampla defesa decorre da existência de direito subjetivo do licitante, que se consubstancia tão somente com a aceitação definitiva da proposta e a consequente adjudicação do objeto. Por isso, in casu, se houve contrato firmado, a empresa contratada deverá participar do processo trazendo, caso queira, suas alegações de fato e direito. Conclusão: posto isso, conclui o Ministério Público que se deve ser intimada a autoridade municipal responsável para trazer cópia integral dos autos da concorrência pública em análise, bem como, se quiser, apresentar suas justificativas preliminares. Após, requer o retorno dos autos a este Ministério Público para emissão de parecer conclusivo. Glaydson Santo Soprani Massaria Procurador do Ministério Público de Contas

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Restrições à competitividade em edital de licitação para aquisição de carnes*

Tratam os autos de denúncia, formulada a esta Corte pela empresa Lincon Indústria e Comércio Ltda., em razão de possíveis irregularidades ocorridas no procedimento licitatório Pregão Presencial n. 134/2008 — Procedimento Administrativo n. 817/2008, promovido pela Prefeitura Municipal de Ribeirão das Neves, visando “o registro de preços para aquisição de carnes, de acordo com especificações contidas no Anexo III do edital”. Inicialmente a empresa Lincon Indústria e Comércio apresentou denúncia alegando restrição à ampla competitividade em razão do tipo adotado ter sido o do menor preço global. Os autos foram encaminhados a esta Coordenadoria para pronunciamento. A fls. 85-88, este Órgão Técnico considerou que o objeto da licitação deveria ser fracionado no maior número de parcelas técnico e economicamente possíveis, ou ter seu tipo licitatório alterado para “menor preço unitário” sob pena de restrição à ampla participação no certame. Por decisão monocrática o Exmo. Sr. Presidente Elmo Braz, a fls. 71, determinou a suspensão do certame e concedeu prazo para o saneamento das irregularidades apontadas, decisão referendada pela Segunda Câmara, na sessão de 19/02/2009, a fls. 92. Concedido prazo para saneamento das irregularidades apontadas, o Sr. Walace Ventura Andrade, Prefeito Municipal, e a Sra. Renata Vaz de Souza, Presidente da Comissão Permanente de Licitação do Município de Ribeirão das Neves, apresentaram nova minuta do edital, retificando-o no que tange ao tipo, que passou a ser: menor preço por item. Ao manifestar sobre esse novo documento, este Órgão Técnico considerou que as determinações desta Corte foram atendidas e que a minuta do edital poderia ser publicada, dando-se continuidade ao procedimento licitatório, conforme fls. 153-157. O douto Ministério Público, em seu pronunciamento a fls. 160-161, observa que a Prefeitura Municipal cumpriu a decisão liminar desta Corte e esclarece que não subsistem motivos para suspensão do certame, opinando pela revogação da referida suspensão. A fls. 162-164, o Sr. Conselheiro Relator Eduardo Carone Costa, verificou que a documentação apresentada atendeu às determinações desta Corte de Contas, votando pela revogação da * O entendimento esposado pelo órgão técnico neste relatório foi acolhido pelo Tribunal.

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suspensão do certame e determinando ainda a notificação à Prefeitura Municipal de Ribeirão das Neves a fim de que apresentasse a prova da publicação do edital e que encaminhasse a íntegra do novo instrumento editalício a este Tribunal da Contas no prazo de 10 dias. A decisão foi aprovada na sessão da Segunda Câmara, a fls. 330. Assim, a Prefeitura procedeu à determinação desta Corte de Contas encaminhando cópia do novo edital e respectiva publicação a fls. 168-328 dentro do prazo concedido. A empresa Lincon Indústria e Comércio Ltda. apresentou nova denúncia, a fls. 339, sob o Protocolo n. 02139462/2009, versando sobre o item n. 12.6.4.7 do edital: “O licitante deverá apresentar o certificado de regularidade e registro de pessoa jurídica expedido pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária.” O Exmo. Sr. Conselheiro Relator, a fls. 331-335, determinou liminarmente, ad referendum da 2ª Câmara, a suspensão do procedimento licitatório, com fulcro no art. 76, XIV e XVI da Constituição Estadual e art. 60 da Lei Complementar n. 102/2008. O Exmo. Sr. Conselheiro Relator Eduardo Carone Costa determinou, ainda, a intimação do Prefeito Municipal de Ribeirão das Neves e do pregoeiro, para que suspendessem o certame na fase em que se encontra, encaminhando cópia da publicação da referida suspensão (Protocolo n. 02142502/2009, fls. 421-422). Concedeu prazo de 10 dias para apresentação da defesa, que foi Protocolizada sob o n. 02145612/2009 e juntada a fls. 435-502. A fls. 424-429, na sessão da Segunda Câmara do dia 14/05/2009, foi referendada a decisão monocrática do Relator Conselheiro Eduardo Carone Costa. Conforme despacho a fls. 504, o Exmo. Sr. Conselheiro Relator Eduardo Carone, determinou o encaminhamento dos autos a esta Coordenadoria para manifestação no prazo de cinco dias. Isto posto, passa-se à análise da irregularidade apontada pelo denunciante: Restrição à ampla competitividade em razão da exigência de os licitantes apresentarem o certificado de regularidade e registro de pessoa jurídica expedido pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária: Aduz a denunciante, a fls. 339-344, amparada por parecer jurídico fundamentado emitido pelo escritório de advocacia Ney Proença Doyle (fls. 346-357), ser ilegal a exigência de registro da empresa no Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV) constante do item 12.6.4.7 do edital. Argumenta ainda que, considerando que o seu ramo de atividade é entreposto frigorífico, indústria de carnes e derivados e que a exigência de registro no CRMV, bem como de certificado de regularidade perante o Conselho de classes só poderiam ser exigidos dos profissionais liberais ou de pessoas jurídicas que exercem atividades inerentes à medicina veterinária, tais como clínicas e hospitais veterinários, laboratórios e outros, desnecessário se faria o registro da empresa no CRMV. 268


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Informa que o Decreto Federal n. 30.691/52, c/c Lei Federal n. 1.283/50, exige apenas que o responsável técnico da indústria de carnes e derivados seja um médico veterinário regularmente inscrito no CRMV e que a médica veterinária, Mônica Guerra, que consta em seu quadro de funcionários supre esta exigência. Por fim, salienta que a atividade de indústrias de carne e derivados exige que as empresas deste ramo estejam regularmente registradas no Serviço de Inspeção Federal do Ministério da Agricultura/Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal e que, conforme documento a fls. 363, a empresa está devidamente registrada neste órgão, submetendo-se à sua fiscalização.

Estudo técnico

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A defesa apresentada a fls. 437 e seguintes, informa que as exigências trazidas no edital estão em conformidade com as disposições legais constantes no artigo 30, § 1°, I, da Lei n. 8.666/93, e com o Parecer Jurídico n. 031/2009 do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de Minas Gerais, a fls. 442-451. Ressaltou que referida exigência está fundamentada no artigo 1° da Resolução n. 592 do Conselho Regional de Medicina Veterinária e nos artigos 5° e 27 da Lei n. 5.517/68. E que o contrato que a empresa denunciante possui com a médica veterinária Mônica Guerra não é válido, uma vez que ele venceu em 13/09/2003 e não poderia ser prorrogado por mais de dois anos. Por fim, informou que a Administração não acatou a impugnação apresentada pela empresa licitante, ora denunciante, em virtude do interesse público se sobrepor ao interesse particular. Da análise: cumpre a este Órgão Técnico informar que o item 12.6.4.7 do edital, no que se refere á qualificação técnica, estabelece a seguinte exigência: “O licitante deverá apresentar o certificado de regularidade e registro de pessoa jurídica expedido pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária.” Entende-se como pertinente a alegação da denunciante no sentido de ser irregular a exigência de registro da empresa no CRMV, pois, considerando que a licitante desenvolve atividade básica diversa a dos profissionais de medicina veterinária, não estaria, portanto, sujeita ao registro no CRMV, mas sim à Inspeção Federal do Ministério da Agricultura (Cláusula 2ª do Contrato Social, a fls. 365-369). Desta forma, somente o médico veterinário é quem deveria estar registrado no CRMV. Nesse sentido é o entendimento do STJ e dos Tribunais Regionais Federais, conforme se verifica dos julgados abaixo colacionados: Como se vê, suas atividades básicas não são as peculiares da medicina veterinária, embora seus produtos tenham de ser inspecionados por médicos veterinários. São estes, e não a autora, que estão sujeitos ao registro no Conselho recorrente. A recorrida está sujeita a inspeção federal, do

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Ministério da Agricultura (doc. a fls. 20), e não do Conselho Regional de Medicina Veterinária e isto está bem claro pelo disposto no artigo 1° da Lei n. 6.839, de 30 de outubro de 1980, verbis: ‘O registro de empresas e a anotação dos profissionais legalmente habilitados, delas encarregados, serão obrigatórios nas entidades componentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros.’ Ora, a atividade básica do impetrante não é peculiar à medicina veterinária e sim o comércio, a indústria, a exportação e a importação de peixe, carne e produtos alimentícios e seus subprodutos. É claro que, para a realização de seus objetivos comerciais necessita ela de médicos veterinários, como de advogados, economistas, contadores, administradores etc. E ninguém sustenta que ela está sujeita a registro e a pagar mensalidades à OAB e aos Conselhos Regionais de Economia, Contabilidade e de Administração de Empresas. O colendo Supremo Tribunal Federal, no RE n. 86912-PR, RTJ — 100/670, acolheu este entendimento em acórdão, de cuja ementa consta o seguinte: ‘Conselho Regional de Medicina Veterinária — Exigência de inscrição de pessoas jurídicas, associadas do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados — Segundo a nova redação dada ao art. 27 da Lei n. 5.517 pela Lei n. 5.634, de 02/12/70, as firmas, associações, companhias, cooperativas, empresas de economia mista e outras que estão sujeitas a registro, são aquelas que exercem atividades peculiares à medicina veterinária. Estão, pois, excluídas as que, como os matadouros e frigoríficos desempenham atividades apenas parcialmente dependentes do exercício da medicina veterinária, no tocante à inspeção sanitária’ (Recurso Especial n. 37.665 — SP, In: DJ 11/10/93) (grifos nossos). “ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. CRIAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE SUÍNOS. DESNECESSIDADE DO REGISTRO NO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. PRECEDENTES. 1. O STJ firmou entendimento de que não é considerada atividade básica vinculada ao exercício da medicina veterinária aquela desempenhada por estabelecimentos que exploram a criação, o abate e o comércio de carne suína e derivados, daí por que estão dispensados da obrigatoriedade de registro no Conselho Regional de Medicina Veterinária. 2. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, improvido.”(Resp n. 623.131-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ, 19/12/2006). “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. FRIGORÍFICO. DESNECESSIDADE DO REGISTRO NO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. PRECEDENTES. 1. O prequestionamento dos dispositivos legais tidos como violados constitui requisito indispensável à admissibilidade do recurso especial. Incidência das Súmulas n. 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 2. O STJ firmou entendimento de que não é considerada atividade básica vinculada ao exercício da medicina veterinária aquela desempenhada por matadouros e frigoríficos que exploram o comércio, a importação, a

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exportação e a industrialização de carne bovina e derivados, daí por que estão dispensados da obrigatoriedade de registro no Conselho Regional de Medicina Veterinária.” 3. Recurso especial não conhecido. (Resp. n. 203.510-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ, 19/09/2005)” (grifos nossos). “PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. FRIGORÍFICO. DESNECESSIDADE DO REGISTRO NO CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. PRECEDENTES. 1. O STJ firmou entendimento de que não é considerada atividade básica vinculada ao exercício da medicina veterinária aquela desempenhada por matadouros e frigoríficos que exploram o comércio, a importação, a exportação e a industrialização de carne bovina e derivados, daí por que estão dispensados da obrigatoriedade de registro no Conselho Regional de Medicina Veterinária. Precedentes: REsp 224.482/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha; DJ, 19/09/2005; REsp 203.510/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha; DJ, 19/09/2005; REsp 130.676/RS, Rel. Min. Castro Meira; DJ, 13/12/2004; REsp 447.844/RS, Rel. Min. Eliana Calmon; DJ, 03/11/2003; REsp 186.566/RS, Rel. Min. José Delgado; DJ, 15/03/1999; REsp 149.847/CE, Rel. Min. Hélio Mosimann; DJ, 04/05/1998; REsp 38.894/SP, Rel. Min. César Asfor Rocha; DJ, 21/02/1994; REsp 37.665/SP, Rel. Min. Garcia Vieira; DJ, 11/10/1993. 2. O critério legal para a obrigatoriedade de registro, junto aos conselhos profissionais, bem como para a contratação de profissional específico, é determinado pela atividade básica ou pela natureza dos serviços prestados pela empresa. 3. Recurso Especial provido. (Decisão no REsp 730.584/RS, Rel. Min. Luiz Fux, DJ de 19/12/2005)”

Estudo técnico

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“ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. LEI N. 6.839/90. EXIGIBILIDADE DE REGISTRO DEPENDENTE DA ATIVIDADE BÁSICA EXERCIDA. I. A Lei n. 6.839/80 dispõe, em seu Art. 1°, sobre a obrigatoriedade de registro de empresas, bem como dos profissionais delas encarregados, legalmente habilitados, perante as entidades competentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros. II. O exercício da profissão de medicina veterinária é disciplinado pela Lei 5.517/68, cujo Art. 27, com redação dada pela Lei n. 5.634/70, prevê as hipóteses em que o registro junto ao Conselho de Medicina Veterinária é exigido, tomandose por base os Arts. 5° e 6°, os quais preceituam as atividades peculiares à medicina veterinária. III. A obrigatoriedade de registro perante os conselhos profissionais, bem como a contratação de profissional específico é verificada tomando-se por critério a atividade básica ou a natureza dos serviços prestados pela empresa. IV. Os autores cujas atividades não se coadunam com a medicina veterinária não estão obrigados ao registro no Conselho Regional de Medicina Veterinária, exceção feita àquele que comercializa animais vivos (Precedentes do C. STJ). V. Remessa oficial e apelação do CRMV parcialmente providas. (APELAÇÃO/REEXAME NECESSÁRIO — 1350415 — Processo n. 2003.61.00.025478-4 — DJF3 DATA: 24/03/2009 — DESEMBARGADORA FEDERAL ALDA BASTO — TRF 3ª Região).”

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ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA VETERINÁRIA. FRIGORÍFICO. NÃO OBRIGATORIEDADE DE REGISTRO. I — O CRITÉRIO LEGAL PARA A OBRIGATORIEDADE DE REGISTRO JUNTO AOS CONSELHOS PROFISSIONAIS É DADO PELO ART. 1° DA LEI N. 6.839/80 E DETERMINA-SE PELA ATIVIDADE BASICA OU PELA NATUREZA DOS SERVIÇOS PRESTADOS. II — EMPRESA VOLTADA À INDUSTRIALIZAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE CARNES, LATICÍNIOS E PRODUTOS AGROPECUÁRIOS EM GERAL NÃO SE SUJEITA A TAL EXIGÊNCIA, VEZ QUE O EMPREGO DE PROFISSIONAIS DE MEDICINA VETERINÁRIA É DE CARÁTER MERAMENTE ANCILAR DE SEU PROCESSAMENTO INDUSTRIAL. III — SENTENÇA MANTIDA. (APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA — Processo n. 89.03.032932-5 — DOE DATA: 29/07/1991 — DESEMBARGADOR FEDERAL MÁRCIO MORAES — TRF 3ª Região).

Ressalta-se que o artigo 1° da Resolução 592 do Conselho Regional de Medicina Veterinária e o artigo 27 da Lei n. 5.517/68 se referem a empresas que exercem atividades privativas e peculiares à medicina veterinária, o que não é o caso da empresa licitante, que possui como atividade econômica principal: “Claúsula segunda do contrato social da empresa: O objetivo social da empresa continua sendo o comércio, indústria e venda ambulante e a varejo de carnes, derivados, embutidos, salsicharia, frios em geral, abate em estabelecimentos de terceiros de bovinos, suínos e aves.” Assim, este Órgão Técnico entende que a exigência de os licitantes apresentarem o certificado de regularidade e registro de pessoa jurídica expedido pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária é uma cláusula restritiva à ampla competitividade. Quanto à exigência de inscrição ou registro no CRMV do responsável técnico da empresa também pode ser considerada restritiva, pois existem inúmeras controvérsias, tanto na jurisprudência, como entre os próprios técnicos, acerca da atividade básica exercida pelas indústrias de produtos de origem animal, principalmente aquelas relacionadas à fabricação e ao comércio de alimentos de origem animal, tais como carnes, derivados de leites e afins, razão pela qual o Poder Judiciário, em seus julgados, vem entendendo que o responsável técnico das citadas empresas pode ser profissional de outra área que não a de medicina veterinária. TRIBUTÁRIO: EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. FRIGORÍFICO. EXIGIBILIDADE DE CONTRATAÇÃO DE QUÍMICO E INSCRIÇÃO DA EMPRESA NO CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA. I — A EXIGIBILIDADE DA SUPERVISÃO DE QUÍMICO NO FRIGORÍFICO AUTUADO DECORRE DE LEI. II — NO CASO, É IMPRESCINDÍVEL A INSCRIÇÃO DA EMPRESA NO CONSELHO REGIONAL DE QUÍMICA. III — RECURSO IMPROVIDO. (Apelação Cível n. 92.03.029032-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL ARICE AMARAL, DJ, 19/02/1997, TRF 3ª Região).

Há quem considere que as atividades de tais empresas estão relacionadas à química; há quem defenda a tese de que elas estariam relacionadas à medicina veterinária; e há também quem 272


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sustente que elas estejam ligadas a outras áreas, como agronomia ou farmácia. Por fim, há aqueles que entendem que tais indústrias se submetem tão somente à vigilância sanitária. Quanto ao fato de o edital exigir que o responsável técnico seja registrado no CRVM, importante ressaltar que o registro de uma empresa e a anotação dos profissionais legalmente habilitados dela encarregados, nas entidades competentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões (os conselhos), se dá em razão de sua atividade básica, ou em relação àquela pela qual preste serviços a terceiros, nos exatos termos do artigo 1° da Lei n. 6839/80, que dispõe, in verbis:

Estudo técnico

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Art. 1° O registro de empresas e a anotação dos profissionais legalmente habilitados, delas encarregados, serão obrigatórios nas entidades componentes para a fiscalização do exercício das diversas profissões, em razão da atividade básica ou em relação àquela pela qual prestem serviços a terceiros (grifos nossos).

Assim, verifica-se que a obrigatoriedade de registro da empresa junto a um conselho, bem como de contratação de um determinado tipo de profissional, varia em função da atividade básica por ela exercida, ou em razão daquela pela qual presta serviços a terceiros. Em seu cadastro nacional de pessoa jurídica, a empresa impugnante tem como código e descrição da atividade econômica principal: “Frigorífico — abate de bovinos.” (fls. 364) No caso em tela, não há como se afirmar, categoricamente, que todas as indústrias de produtos de origem animal instaladas no Estado de Minas Gerais exercem atividade básica relacionada à medicina veterinária ou à química, eis que, para tanto, seria necessária a análise individual de cada uma dessas indústrias, já que suas atividades são extremamente diversificadas. Cada indústria tem uma realidade própria, com uma linha de produção própria, diversa das demais, não sendo razoável a imposição, a todas, de modo geral, da contratação de um profissional de uma determinada área. Não se pode afirmar, de modo definitivo, que a presença de um médico veterinário ou de um químico é melhor ou mais capacitado para as indústrias de produtos de origem animal instaladas no Estado de Minas Gerais. Ademais, importa salientar que, não há dispositivo legal a amparar a exigência de que o responsável técnico da empresa seja, necessariamente, um médico veterinário, uma vez que apesar das legislações federais regularem que ao médico veterinário cabe atuar na inspeção higiênico-sanitária, as mesmas não dispõem que a responsabilidade técnica para fiscalizar as atividades desempenhadas por frigoríficos que exploram o comércio de carnes, seja exclusiva desta profissão.

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CONSTITUIÇÃO FEDERAL — garante o livre exercício profissional (art. 5, XIII) SIF — LEGISLAÇÕES FEDERAIS

SISP — LEGISLAÇÕES ESTADUAIS

Lei n. 1.283 de 18/12/50

Lei n. 8.208 de 30/12/92

Decreto n. 30.691 de 29/03/52

Decreto n. 36.964 de 23/06/93

Decreto n. 78.713 de 11/11/76

E ainda, nota-se que o artigo 5° da Lei n. 5.517/68, estabelece que a competência do médico veterinário é privativa e não exclusiva: Art. 5° É da competência privativa do médico veterinário o exercício das seguintes atividades e funções a cargo da União, dos Estados, dos Municípios, dos Territórios Federais, entidades autárquicas, paraestatais e de economia mista e particulares [...].

Os quadros comparativos entre a formação acadêmica dos profissionais da química na área de alimentos X médicos veterinários, extraídos do site do Conselho Regional de Química da 4ª região (<http//www.crq4/frigo.php>) demonstra claramente que, além de a grade curricular de produtos carnes do Curso de Química ser idêntica à do Curso de Medicina Veterinária, a carga horária daquele, nas matérias afetas à carnes, é bem superior a este. Senão vejamos: FABRICAÇÃO DE PRODUTOS DE ORIGEM ANIMAL — PRODUTOS CÁRNEOS Cursos

Medicina Veterinária

Química

Disciplinas tecnológicas necessárias ao processamento de produtos de origem animal (Produção/CQ/MA/Gestão)

487 horas

1.856 horas

Disciplinas específicas para produção de produtos cárneos

60 horas

448 horas

Disciplinas específicas para controle de qualidade de produtos cárneos

90 horas (somente para CQ microbiológicos)

544 (CQ físico-químico, microbiológico e sensorial)

Disciplinas específicas para desenvolvimento de produtos cárneos

0

48 horas

Currículo

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Disciplinas específicas para controle ambiental

22 horas

64 horas

Formação para atuar nas indústrias de produção de carne: Cursos de Medicina Veterinária

Cursos de Química

487 horas de disciplinas específicas sobre a produção industrial

1.856 horas de disciplinas específicas sobre a produção industrial

Estudo técnico

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Nota-se, portanto, que tanto o químico como o médico veterinário estariam aptos a atuar como responsável técnico de indústrias que explorem a criação, o abate e o comércio de carne suína e derivados. Verifica-se, assim, que o edital também não poderia impor que as indústrias de produtos de origem animal apresentassem um médico-veterinário em seu quadro de funcionários. Isso porque, em muitos casos, pode ocorrer que a atividade básica da empresa não seja relacionada à medicina veterinária, mas sim à química, ou até a outras áreas técnicas, hipóteses em que a contratação de um químico (ou de outro profissional) seria mais eficiente e razoável. Assim, entende este Órgão Técnico, s.m.j, que não há como o Município de Ribeirão das Neves impor, de modo peremptório, que as empresas licitantes possuam certificado de regularidade e registro pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária, e nem que demonstrem a contratação de um médico-veterinário como seu responsável técnico, com a exclusão de um químico, o qual, de acordo com a atividade básica dessas empresas, pode ser perfeitamente habilitado e responder, tecnicamente, por elas. Cumpre-nos ressaltar a importância da exigência de um responsável técnico para garantir a Saúde Pública, mas desde que não seja fixada uma determinada área de especialização. Conclusão: por todo o exposto, entende este Órgão Técnico, s.m.j., após análise da denúncia a fls. 339-344, e da defesa a fls. 437-441 que o edital possui as irregularidades abaixo apontadas: — Exigência do registro de pessoa jurídica, expedido pelo Conselho Regional de Medicina Veterinária das licitantes, uma vez que as mesmas estão sujeitas à inspeção federal do Ministério da Agricultura e não do Conselho Regional de Medicina Veterinária; — Exigência de que o profissional responsável técnico seja registrado junto ao Conselho Regional de Medicina Veterinária. 275


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Entende-se ainda que esta Corte de Contas pode determinar que a Administração Municipal adapte o edital aos termos da lei.

À consideração superior, CAIC/DAC Karla da Costa Martins Técnico do Tribunal de Contas Luanna de Freitas Queiroz Jardim Técnico do Tribunal de Contas Roberta Moraes Raso Leite Soares Técnico do Tribunal de Contas

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