SOBRE A REVISTA A segunda edição da Revista Argumento está disponível! Estamos muito contentes pois finalmente é possível falar em continuidade. A primeira edição foi importante pois se tratou do ponto inicial, sem o qual nada mais existiria. Entretanto, somente com o lançamento desta segunda edição - deste segundo ponto - é possível traçar uma linha. É somente a partir de agora que a Argumento passa a solidificar alguns traços específicos, uma personalidade, um estilo distinto que a diferencia de outras produções acadêmicas e/ou artísticas. Isso se reflete tanto em questões da arte e design da Revista quanto na opção dos trabalhos expostos. Os textos aqui publicados não possuem tema central, unem-se em seu ecletismo. Visamos acomodar trabalhos que abraçassem diversas áreas dentro das artes cênicas: voz, atuação, processos de criação, figurino, circo, dramaturgia e dança. Trabalharemos para que a Argumento apresente um conteúdo cada vez mais relevante e venha a se tornar, poética e esteticamente, inconfundível. Boa leitura! Rafael Wolff
EXPEDIENTE George Sada e Márcio Vegas Direção do Grupo Cena Hum Francielle Domanski Coordenação Acadêmica Rafael Wolff Edição Ana Luiza Fernandes Projeto gráfico Sugestões, críticas e anúncios: imprensa@cenahum.com.br www.cenahum.com.br /cenahum @cenahum @cenahum
SOBRE ESTA EDIÇÃO Márcio Vegas – Psicologia, Psicanálise e Interpretação – transcrição de palestra – teatro-psicologia Contamos com a transcrição da palestra do doutor em psicologia Márcio Vegas, que através de uma análise histórica da noção de inconsciente para Freud, propõe algumas pistas para atrizes e atores no que tange à arte da interpretação.
Keila Aquino – Bungee Jump na Torre Eiffeil ou as palavras que mordem o mundo – artigo – teatro A atriz Keila Aquino relata, em um artigo-memorial, o processo criativo do espetáculo What the Fuck is DIZ?, contemplando o interesse na investigação da palavra no teatro, os procedimentos que enriqueceram a pesquisa e a relação pessoal com seu próprio trabalho de atriz. Monahyr Campos – Negros & Alvos – relato de experiência – teatro O músico e artista independente Monahyr Campos traz um emocionante relato do processo colaborativo de Negros & Alvos, revelando as pessoas, os caminhos e as escolhas que fizeram parte do espetáculo final.
Humberto Gomes – Vou-me Atirar – dramaturgia O diretor e dramaturgo Humberto Gomes nos apresenta uma peça teatral com profundos questionamentos sobre a morte, onde três personagens discutem sobre o que poderiam (ou não) ter feito em vida.
Entrevista com Babaya – teatro-voz A Revista Argumento realizou uma entrevista com Babaya, uma das mais importantes e influentes pensadoras e preparadoras vocais do Brasil. Conversamos sobre sua trajetória e principais influências, sobre questões técnicas de saúde e higiene vocal e também sobre a voz no teatro contemporâneo. Cristiane Zolet – O Uso de Jogos Teatrais na Formação do Artista Circense – artigo – circo Cristiane Zolet, artista e educadora circense realiza uma retrospectiva histórica do circo e sua relação com o teatro; e propõe o uso de jogos teatrais como contribuição para a expressividade e formação da(o) acrobata circense.
Janaína Moraes – Uma Carta de Fio a Fio – crítica de espetáculo – dança A crítica de espetáculo que a dançarina e diretora-coreógrafa Janaína Moraes escreve se apresenta como uma sensível carta endereçada à própria equipe artística, onde a autora irá expor suas impressões, dúvidas e questionamentos sobre o espetáculo de dança Fio a Fio. Luisa Wolff – Criação Coletiva de Figurino no Grupo Teatro do Canto – artigo – figurino Luisa Wolff, figurinista, descreve a experiência e os resultados de sua pesquisa junto ao grupo de teatro comunitário Teatro do Canto, apresentando um processo de criação colaborativa de figurino desenvolvido durante a montagem do espetáculo E se Fôssemos Camarões?.
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PSICANÁLISE, O INCONSCIENTE, E A INTERPRETAÇÃO Conferência apresentada em agosto de 2015
por Márcio Vegas1
Boa noite a todos, gostaria de agradecer a Janja e a Cena Hum pelo convite e parabenizar a todos pelo projeto “Diálogos e Conexões”. Fico feliz pelo convite ainda por que faço parte dessa casa há 12 anos e sei a seriedade dessa proposta que está em sua 2ª edição. Gostaria de falar com vocês um pouco sobre a psicanálise, sua história e alguns conceitos. E por considerar que o seu campo de saber é o psiquismo humano, fica evidente que para vocês atores, que trabalham em dar vida a pessoas da ficção, que a psicanálise pode conter algum conhecimento que lhes interesse. Quem é essa pessoa? Como ela se tornou assim? O que se passa na cabeça dela para fazer isso? São algumas perguntas que fazemos em psicanálise e que devem também ser importantes para um ator na hora de interpretar uma personagem. E saibam que não há nada na ficção tão absurdo que não encontre seu correspondente na experiência humana. Ao contrário, é por que se experimentou algo que se produz arte.
Posso ir pouco além para insinuar os pontos de conexão entre o psicanalista e ator. Ambos trabalham com a arte da interpretação. Claro que a interpretação do ator não coincide com a do psicanalista, esse último interpreta no sentido de decifrar, traduzir para o consciente o sentido inconsciente do sofrimento de alguém. Aliás, o inconsciente é, provavelmente, a principal contribuição de Freud para a humanidade, e sua descoberta coincide com a invenção da psicanálise. Vou contar um pouquinho dessa história, para que possamos ter uma base comum de entendimento. O ano é 1881, Freud acabara de se formar em medicina como neurologista e abandonou seus trabalhos de pesquisa em neurofisiologia e abre seu consultório particular. Ele precisava ganhar dinheiro, pois ele queria se casar com sua noiva, Martha. Essa decisão o aproxima da clínica da histeria, por meio de Breuer, um famoso médico em Viena e amigo de Freud.
Márcio Zanardini Vegas, Psicanalista, graduado em Psicologia e especialista em Filosofia pela UFPR, Doutor em Psicologia pela UFSC, Professor na FAE, Membro da Escola da Coisa Freudiana de Curitiba e autor do livro A noção freudiana de construção. 1
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A histeria, ou melhor, a histeria conversiva (há a de angústia também) é um quadro clínico descrito desde os gregos antigos como uma doença, que por mais de 2000 anos ficou sem encontrar uma cura. A palavra histeria, vem do grego hyster — útero, em que se acreditava que a causa dessa doença era um viramento do útero de algumas mulheres. Ah, esqueci de dizer, histeria é uma doença que em geral acometia mulheres e que se caracteriza por sintomas físicos cujas causas não são orgânicas. Os casos mais notáveis são aqueles em surge a paralisia ou anestesia de algum membro do corpo, como uma perna, mas também seguido de ataques epileptoides, isto é, crises parecidas com uma crise epilética. Os famosos ataques histéricos, termo que hoje usamos para dizer de uma mulher quando ela começa a ter acessos incontroláveis de choro e raiva. Até esse tempo, 1880, não se sabia qual era causa dessa doença, inclusive alguns médicos achavam que era fingimento. Mas fato que não era fingimento, pois se podia atravessar uma agulha numa perna da paciente sem ela esboçar a menor reação de dor. Freud começa a receber mulheres assim e aprende a utilizar a hipnose, um dos métodos utilizados na época para eliminar os sintomas. Mas em vez de usar a sugestão para fazer o sintoma desaparecer, ele decidiu perguntar a paciente o que tinha acontecido, qual era a causa dos sintomas. O incrível foi descobrir que as pacientes relatavam eventos em sua vida, com forte carga emocional, que ela absolutamente não recordavam quando despertas. E ainda mais, que ao permitir que essas mulheres lembrassem e revivessem essa experiência o sintoma desaparecia em seguida.
Crédito: Unsplash.com
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Estava criado o método catártico, e isso tem muito a ver com a origem do teatro, pois a produção da catarse, isso é, uma grande descarga emocional, é parte da finalidade do teatro Grego. Não foi a toa que Freud recorreu à tragédia de Édipo para dar os próximos passos. A arte sempre está um passo a frente da ciência em entender o humano. Bem, mais o importante desse trabalho inicial de Freud, é que ele sem querer, tropeça, se depara com o inconsciente. Existem ideias ligadas a afetos dentro da gente ao qual desconhecemos sua existência. Com o avançar de seus estudos, ele descobre que isso não ocorre apenas na histeria e faz parte do humano. Suas pesquisas avançam ao ponto de em 1923 ele poder afirmar: “o eu não é o senhor em sua própria casa”. Isto é, esse eu, esse ser vontade que vos fala e possui uma consciência, não é a parte que domina e determina a própria vida. Somos inconscientemente determinados, há algo que atua em nós a nossa revelia, regido por regras de funcionamento e uma lógica própria, diferente da razão consciente. Assim, podemos entender o valor de sua descoberta e dizer que ela é proporcional a feita por Copérnico que afirmou que a Terra não é o centro do universo. Freud demonstrou que nós não somos o centro do nosso universo, há um estranho que nos habita e governa. E mais, podemos concluir que o humano são seres psiquicamente divididos e que o eu, sua parte consciente, mantém uma relação de total desconhecimento.
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Há uma dupla negação: não sei que não sei sobre o inconsciente. Gosto de trazer uma experiência para explicar essa dupla negação. Há uma diálogo de Platão, em que Aristóteles conversa com a Menôn sobre a origem das virtudes. Então, Aristóteles desenha um quadrado no chão e chama um escravo, sem qualquer conhecimento formal sobre matemática e pergunta: — Você saberia como fazer para dobrar a área desse quadrado? (ao que ele responde) — Creio que sim. — Pois então o faça. A primeira atitude do escravo foi dobrar os lados do quadrado, ao que ele percebe que produz um quadrado 4 vezes maior. E então ele para, pensa e descobre o que não sabia: ele não sabia que não sabia como dobrar a área de um quadrado. E só agora que sabe disso que há alguma chance dele passar a saber como fazê-lo. Com o inconsciente é a mesma coisa, os pacientes chegam no consultório sofrendo, e quando lhe perguntamos o que acontece, no máximo dizem, “é porque minha mãe...”, “por que meu marido...”. Não sabem que não sabem que há um saber, um saber inconsciente sobre a causa do que eles estão vivendo. Essa posição de ignorância que o eu, a consciência, mantém em relação ao inconsciente permite que ele se manifeste com certa liberdade no nosso cotidiano. Os fenômenos mais comuns que indicam a presença de um desejo inconsciente atuando são os atos falhos,
os chistes, os esquecimentos, as trocas de palavras. O inconsciente não está escondido nas profundezas do nosso ser, eles se apresentam em nossos atos e na nossa fala o tempo todo. Mas a relação entre o que se faz nesses momentos e o desejo inconsciente que os causa não é direta como às vezes queremos crer. Por exemplo: quando alguém troca o nosso nome por o de uma outra pessoa. Isso quer dizer o que? Que na verdade se está pensando ou desejando outra pessoa e não a gente? É o que muitas pessoas pensam, e até pode ser verdade, mas em geral, é preciso um trabalho de decifração para saber o que do inconsciente se apresenta nessa troca de nomes. Pode dizer outra coisa bem diferente, por exemplo: que se esta com raiva da pessoa e não assumimos e trocar o seu nome é um modo de expressar isso. Pode ? E muito mais. Mas que relação aqui podemos fazer com o trabalho do ator? Quem sabe, se possa perguntar no trabalho de construção da personagem, o que é que o personagem diz, revela, quando fala ou faz tal coisa; para além daquilo que é a intenção consciente. O que as palavras que foram escolhidas para dizer uma ideia portam de sentido para além da intenção? Como assim? Se é verdade que todo ato humano é inconscientemente determinado, temos aí sempre dois planos: 1. O da vontade, do eu 2. O plano inconsciente que se diz na fala do sujeito;
Um exemplo bem pueril. É um menino de 04 anos que está muito apaixonado por sua mãe querida e diz: “mamãe, eu amo tanto, amo tanto você, que queria ter cozinhar numa panela e te comer todinha”. Aqui a divisão é nítida, por ser uma criança e não haver muita censura como num adulto. Por um lado ele realmente ama muito essa mãe, mas por outro, lhe deseja a morte para garantir de que não seja de mais ninguém, só sua. Ele fala com a naturalidade das crianças, é a mãe que vem apavorada me contar por que reconhece um ódio que não sabia existir. Mas quem é que já odiou verdadeiramente o porteiro no prédio? Isso a gente sente apenas por quem importa de verdade na nossa vida. O que temos de entender é que o menino em sua fala, ao expressar o seu amor, acaba por dizer mais do que pretendia. Esses dois planos da fala são o enunciado e a enunciação. No enunciado, temos a significação, aquilo que se pretende dizer e que as palavras portam. Enunciação é o plano do sentido inconsciente, que emerge numa fala a despeito da significação das palavras. Ele aparece, em geral, no final da sentença. Mais um exemplo: Casa, essa palavra possui um significado que todos entendemos, sabemos o que é uma casa. Mas “casa”, conforme apresentado numa frase, por sua relação com as outras palavras, adquire outro sentido: — “Venha você também para a casa do senhor e seja salvo!” (casa faz parte de conversão)
— “Ah, aquele lá, está fora da casinha...” ( casa faz parte de louco) O lugar que a palavra ocupa em relação as outras palavras modifica o sentido de casa. É aí que o inconsciente age, pois é ele quem determina a escolha das palavras quando passamos a falar. Deste modo, pala além da intenção do falante, produz também um sentido que é inconsciente. Mas como saber esse sentido na fala de uma pessoa, ou uma personagem? De início, não temos como saber, mas em uma análise é possível decifrar a fala que se produz durante uma sessão. Quem sabe o mesmo se possa fazer com uma personagem? Deixa-lo falar, passa-lo a escutar não tanto tentando entender o que ele quer dizer, mas o que diz quando fala. Não é possível decifrar o personagem, pois o saber inconsciente está no próprio sujeito, mas pode-se fazer o exercício de construção da personagem considerando esse plano inconsciente em sua fala e seus atos. Basta se perguntar a cada fala, a cada ação: O que ele realiza para além de sua intenção? Talvez cheguemos a um entendimento do jogo de forças e conflitos que determinam que ele transmita uma ideia de determinado modo e não de outro. Claro que para aplicar essa ideia seria preciso algum trabalho e estudo para entender mais sobre o funcionamento do inconsciente. Espero na verdade instiga-los a quererem saber uma pouco sobre a psicanálise, o que habita os seus personagens e a vocês próprios para além do que vocês sabem. Obrigado.
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BUNGEE JUMPING NA TORRE EIFFEL OU AS PALAVRAS QUE MORDEM O MUNDO MEMORIAL DO PROCESSO DO ESPETÁCULO
WHAT THE FUCK IS DIZ? SOB A PERSPECTIVA DA ATRIZ Keila Aquino de Freitas1 Orientador: Cristóvão de Oliveira2
O presente memorial apresenta o olhar da atriz sobre seu processo criativo em What the fuck is DIZ?, projeto desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso de Bacharelado em Artes Cênicas da UNESPAR, Campus II – FAP, abordando as principais fases do processo de criação do espetáculo. O memorial contempla a trajetória do grupo desde o primeiro encontro dos integrantes, o interesse em comum na investigação da palavra no teatro, o desenvolvimento dos procedimentos no trabalho que enriqueceram a pesquisa, até chegar na relação pessoal com seu próprio trabalho de atriz. Muito precisamente cada palavra designa o desconhecido. Diga o que você não sabe. Dê o que você não possui. Aquilo do que não se pode falar, é isso que é preciso dizer Valère Novarina
Os primeiros impulsos do novo processo
O processo começou com trabalho de mesa onde foi realizado um levantamento de pontos em comum, desejos do grupo, temas, influências de cada participante. Alguns desses pontos em comum destacados foram: o absurdo, a condição humana, o surrealismo, o sonho da liberdade, o abuso de poder, a guerra, as relações humanas e a política. As primeiras leituras foram alguns dos textos de Samuel Beckett, Fernando Arrabal, Yasmina Reza, Copi, Carlos Gorostiza, Griselda Gambaro,
Bosco Brasil, Adriano Garib, Nick Silver, Grace Passô, Marcelo Bourscheid, Jean-Luc Lagarce, Franz Kafka, Harold Pinter, Philip Ridley e Newton Moreno. Primeiro uma leitura branca, sem intenções, buscando ouvir todas as palavras. Depois a discussão sobre a força do texto naquele momento, sobre a possibilidade de usá-lo na íntegra ou de apenas torná-lo referência para a montagem. Após as leituras, o grupo notou que nenhum destes textos (apesar de incríveis, profundos, com temas bas-
Graduada em Tecnologia em Produção Cênica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduada na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) no curso de Bacharelado em Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Pós-graduada em Contação de Histórias e Literatura Infantil Juvenil pela Faculdade de Ampére (FAMPER). Atriz, diretora e diretora de produção através do Sindicato dos Artistas e Técnicos no Estado do Paraná. E-mail: keilaaquino.f@gmail.com 1
Professor Assistente na Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) Campus de Curitiba II – FAP. Mestre em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), 2012. Bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Direção Teatral pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP), 2005. Membro do Grupo de Pesquisa Processos Criativos – Poéticas da Cena. Autor do livro “A Singularidade no Trabalho do Ator” (Editora Prismas, 2016). E-mail: cristovaofap@gmail.com 2
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Espetáculo What the fuck is DIZ? (2016-2017) com dramaturgia coletiva e textos em português escritos por Fernando Vettore.
tante potentes e escritos por grandes autores), apontava caminhos aos quais seria possível dar continuidade. Esse formato de dramaturgia pronta não se encaixava no processo e, por consequência, foi descartado o uso de um texto pronto como ponto de partida para a cena. Percebeu-se, de imediato, um árduo trabalho pela frente. Assim, como no trabalho anterior No. Pas. Non, era preciso começar do ponto zero, da investigação de possibilidades da palavra e a criação de uma dramaturgia autoral. Apesar de ser o caminho mais difícil, em matéria de partida, de início de processo, era o que parecia ser o mais honesto para a realização deste trabalho.
riavelmente, todos os dias, a cada hora, a cada minuto na sala de ensaio. As escolhas que permanecem são consequência de uma violência, como comenta Anne Bogart:
A escrita
No processo, o foco era a realização da exploração dos materiais criativos que poderiam ou não resultar em cena. Como parte acompanhante desse processo, foram feitos registros - através de anotações em um caderno específico, fotos e vídeos - para que, posteriormente, pudessem provocar estímulos no desenvolvimento da escrita. Esses registros serviram como possibilidades de memória, revisitação das experiências vivenciadas em sala de ensaio e exerceram um confronto direto com a teoria. Toda a pesquisa nos conduz a pensar sobre as noções que temos sobre o que é Teatro. Desenvolver nossas práticas em sala de ensaio, fabricar ideias, abrir leques de possibilidades e depois escrever sobre, são experiências que acabam gerando uma constante e provocativa interrogação acerca do que se produz. Dos conceitos e hipóteses surgem mundos de possibilidades a serem verificadas e colocadas em prática e vice versa.
É indissociável a noção de reflexão durante o ato de agir criativamente, que certamente move a associação de ideias em conjunto, negar o que não cabe, considerando que cada um tem seu lugar no mundo e na produção artística da cena. Tudo que operacionaliza as ações está diretamente ligado às escolhas, que mudam constantemente, inva-
A arte é violenta. Ser decidido é uma atitude violenta. Antonin Artaud definiu a crueldade como “determinação inflexível, diligência, rigor”. Colocar uma cadeira em determinado ângulo do palco destrói todas as outras escolhas possíveis, todas as outras opções possíveis. Quando um ator adquire um momento espontâneo, intuitivo ou apaixonado durante o ensaio, o diretor pronuncia as palavras fatídicas “guarde isso” eliminando todas as outras soluções possíveis. Essas duas palavras cruéis cravam uma faca no coração do ator, ele sabe que a próxima tentativa de recriar aquele resultado será falsa, afetada e sem vida. Mas lá no fundo o ator também sabe que a improvisação ainda não é arte. Só quando houve uma decisão é que o trabalho pode realmente começar. A determinação, a crueldade que extinguiu a espontaneidade do momento, exige que o ator comece um trabalho extraordinário: ressuscitar os mortos. O ator tem de encontrar uma espontaneidade nova, mais profunda, dentro dessa forma estabelecida. E isso, para mim, é o que faz dos atores heróis. Eles aceitam essa violência, trabalham com ela, levando habilidade/ e imaginação à arte da repetição. (BOGART, 2011, p. 51).
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Durante a criação deste espetáculo, é evidente perceber que tudo serve como possibilidade, mas nem tudo é bom o suficiente para permanecer, então, novamente a violência da escolha surge como uma urgência. É necessário falar sobre a experiência vivenciada durante o processo que é o cerne da obra artística do fazer teatral. A produção de pensamento na sala de ensaio é constante, sobretudo, porque é necessário fazer a aproximação da cena com a teoria no âmbito da universidade. Escrever um memorial a começar pelas anotações dos ensaios se torna laborioso, uma vez que essas anotações são inacabadas por serem rascunhos, trechos, impressões do que permaneceu após as experiências vivenciadas nos ensaios. Anotações que jamais revelarão o todo do processo. No entanto, é uma prática que vem sendo cada vez mais intensificada pelos artistas e se torna fundamental pois, ao falar sobre o que se faz, estamos produzindo material dialógico, abrindo um campo intelectual que traz possibilidades novas para a criação. Pensar e fazer se tornam ações inseparáveis, já não é possível separar o ato de criar do ato de refletir sobre o que se cria. Isso já faz parte da natureza do teatro contemporâneo, como cita André Carreira: “[...] podemos dizer que o pensar também é fazer arte. Atualmente, é difícil tratar de delimitar o que seria a própria arte. (CARREIRA, 2012, p. 6). Qual seria o teatro que desejamos fazer? A resposta para essa pergunta não é fácil, mas talvez possa ser encontrada quando olhamos para a busca que o grupo faz em direção a um teatro que tenha as digitais de cada integrante, na procura do novo, do que possa ser inédito no repertório de pesquisa, na trajetória do grupo. Um trabalho autoral que proporcione experiências interessantes aos olhos de quem faz e aos olhos de quem vê.
Preparação
A ação física acontece no entre, na relação, e exige um corpo-em-arte preparado para que ela ocorra. Esse corpo precisa estar aberto para ser afetado já que “o atuador não se afeta para depois agir. Ele, em realidade, age com afeto, no afeto e pelo afeto” (FERRACINI, 2009, p. 127). Estar aberto e ser afetado. A palavra como propulsora do afeto. As ações físicas são uma ponte entre o trabalho do ator e a relação entre as materialidades da cena. Tendo como pressuposto as afirmações de Ferracini, o trabalho acerca das ações físicas se torna bastante pertinente para o grupo, pois possibilita a investigação das relações entre palavra e afeto. A preocupação com a palavra, com a busca por uma dramaturgia a priori, é deixada de lado, abrindo novas possibilidades no processo. Os integrantes deixam-se levar pelos afetos, pelas sensações, pelas trocas e, nesse primeiro momento, esquecem completamente os sentidos ou significados das palavras. Inicia-se um trabalho inverso ao início da pesquisa, livre de textos, atento às ações, aos gestos. A relação dos atores ganha mais força com essa nova perspectiva, sentem-se mais livres para criar e mais atentos ao trabalho, pois sem significados nas palavras o corpo deve estar mais concentrado aos gestos do outro para que haja troca. A comunicação é feita através de sons, pelos olhos, pela intenção, pela entonação da voz e não pela tentativa de compreender o que se fala, pois nessa fase da produção de cena ainda não se pretendia compreender quaisquer tipos de sons que pudessem soar como alguma palavra que tivesse significado. Criou-se um víncu-
lo muito íntimo entre os atores, uma nova linguagem que somente os atores começaram a compreender ao trocar afetos. Surgiram várias cenas ao longo do processo, algumas potentes, outras menos, a maioria delas é descartada para que se possa encontrar o que se desejava de fato. A incomunicabilidade foi um tema que surgiu e ganhou força durante os encontros. Desde então, o grupo passou a refletir sobre as cenas que permaneciam e que se repetiam na sala de ensaio. Quais eram os microuniversos de discussões presentes, o cheiro da cena, as cores da cena, discutiu-se sobre teatro contemporâneo, sobre as influências de Bertolt Brecht que começaram a ganhar força e se tornar presentes no trabalho, sobre a incomunicabilidade no mundo, nas relações humanas. Essas eram algumas das questões constantemente pensadas e muitas delas permeavam com bastante frequência as escolhas que eram tomadas. Falar sobre nossa pátria, nossos sonhos guardados em gavetas, sobre a distância daqueles que amamos, sobre desejos e frustrações através de outra língua não é uma tarefa fácil, ainda mais quando essa língua é uma criação bastante particular do grupo, que surge no processo através das improvisações. Era necessário se reinventar e buscar a força do afeto em algum outro lugar que não parecia habitar no sentido lógico de uma dramaturgia linear. Assim, através dos exercícios de improvisação e viewpoints3 surgiu o principal procedimento para a fala da cena, a maneira pela qual seria conduzida a dramaturgia do espetáculo: a uberlíngua4.
Viewpoints é uma técnica de composição que atua como um meio para pensar e agir sobre movimento, gesto e espaço criativo. Foram adaptadas para o teatro por Anne Bogart e Tina Landau. 3
Expressão sugerida pelo professor Dr. Francisco Gaspar (orientador na disciplina de TCC - Prática de Montagem Cênica) e adotada pelo grupo. Quando Gaspar batizou com este nome, tinha uma percepção diferente do que viria a ser a uberlíngua dentro do processo. O grupo, por outro lado, tomou outros caminhos mas continuou utilizando o termo. 4
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Blablação e a uberlíngua de What the fuck is diz?
Nas primeiras improvisações, para fugir da dependência das palavras e seus significados, o diretor pediu que os atores utilizassem o jogo da blablação, a orientadora Natália Soldera, que acompanhava os exercícios de improvisação, provocava, instigava e auxiliava a detectar os pontos fortes e fracos dos procedimentos. Blablação significa, simplesmente, a substituição de palavras articuladas por configurações de sons. Não deve ser confundida com “duplo sentido”, onde palavras reais são invertidas, ou mal pronunciadas, para confundir o significado. A blablação é uma expressão vocal que acompanha uma ação, não a tradução de uma frase portuguesa. O significado de um som na blablação não deve ser compreendido, até que o ator transmita por meio da ação, expressões ou tom de voz. (...) A blablação desenvolve a linguagem expressiva física, que é vital para a vida no palco, quebrando a dependência das palavras para expressar o significado. Pelo fato de a blablação usar os sons da linguagem, subtraindo dela os símbolos (palavras), coloca o problema da comunicação no nível da experiência direta. (SPOLIN, 2015, p. 108). A blablação ajudou os atores a exercitarem suas ações físicas e sua atenção pois, quando as palavras lhe são negadas, o corpo precisa ser muito mais expressivo e a comunicação ocorre através das ações. No entanto, em um determinado momento da improvisação notou-se que algumas palavras surgiam: a união de alguns sons provocou uma ou duas palavras que soaram em português. E isso não pôde ser ignorado, pois repercutiu positivamente no andamento da cena. A partir desse momento, interrompeu-se a utilização da blablação como procedimento, já que esse jogo não se sustentava mais nessa pesquisa. Nos ensaios seguintes, o diretor pediu aos atores que pensassem em uma língua - um idioma que exista no mundo, o primeiro que viesse à cabeça de cada um - e que, a partir disso, se estabelecesse um diálogo através desse idioma. Imediatamente a atriz começou a falar em alemão e o ator em inglês. Entretanto, o alemão não é uma língua fácil de ser compreendida como o inglês, também não é dominada pela atriz, que conhece apenas algumas palavras e frases. Mas isso se tornou absolutamente interessante, visto que a instrução do diretor era para que não se preocupassem com o significado das palavras que estavam dizendo mas, sim, para que dissessem as primeiras palavras que viessem à cabeça, mesmo que não houvesse lógica no que se dizia: o mais importante era se preocupar com a fonética das palavras. Para dar sequência ao jogo, a atriz passou a inventar outras palavras mentalmente para poder dialogar, com base nos sons que o alemão produz. Então, mesmo que alguém ali soubesse falar alemão não compreenderia nenhum dos textos falados. Já o ator não pareceu seguir o mesmo sentido do jogo, pois fala inglês com fluência e lógica. Percebeu-se que o investimento na linguagem estrangeira é muito potente e elencou-se as potencialidades do jogo através de anotações. Essa nova forma de comunicação, assim como na blablação, tornava a situação, muitas vezes, incompreensível. Dessa forma, o corpo precisava ser compreendido, precisava se expressar para o outro fisicamente mais do que verbalmente. Havia um discurso em cena, a princípio, falava-se sobre educação, as personagens criadas pelos atores eram uma professora e um aluno. A forma como se coloca as palavras estrangeiras, utilizando as entonações e intenções na fala, como o som é emitido era mais importante que o próprio significado das palavras. As palavras são entendidas pela forma que se dá corpo a ela. A palavra é corpo. Por alguns ensaios, o grupo insistiu na investigação destas personagens: professora e aluno. Avançando no processo o diretor pediu aos atores que pensassem em um lugar onde pessoas completamente diferentes pudessem se encontrar, um local que causasse choque entre culturas, propício para o encontro de idiomas diferentes para que, assim, fossem exploradas novas possibilidades, proporcionando o surgimento de novas personagens.
Foi nesse dia que o inglês perdeu força em cena, em razão de que era o idioma mais acessível para todos. Estávamos sempre traduzindo mentalmente, buscando significados para dar continuidade à cena, o que fugia da proposta do jogo. Tudo que o ator dizia era imediatamente traduzido pela atriz, e isso não era recíproco: não acontecia o mesmo com o alemão. O inglês passou a se tornar um problema, o ator começou a demonstrar dificuldades com a proposta da comunicação, pois entendia o que falava mas não entendia o que ouvia. O inglês, nesse processo, não tinha a mesma força afetiva que o alemão. Por ser completamente diferente da língua portuguesa, o alemão direcionava nosso olhar para os afetos e para as reações, para as ações físicas como um todo e não para o significado das palavras. O mesmo ocorria nas tentativas de cenas realizadas em espanhol. Era necessário dois idiomas que não fossem completamente compreendidos na conversação; a comunicação deveria se dar através das ações e os diálogos deveriam desafiar e estimular os atores na criação de novas imagens nesse jogo. Assim, o grupo sentiu necessidade de, por ora, abandonar o inglês e se propôs a investigar uma outra língua que não era dominada pelo ator. O diretor pediu ao ator que pensasse em outro idioma. O ator escolhe o francês e, dessa vez, o jogo passou a ficar equilibrado. Logo, percebeu-se que os rumos do trabalho se tornavam inversos àquele que se pensava como base do projeto desse espetáculo. Por um momento, bastante significativo na pesquisa, a palavra enquanto significado não era mais a base para a criação do espetáculo, pelo contrário: o afeto ganhava força, ou seja, tudo que se vê, o que se sente, que é transmitido através dos sons, das imagens é o que se torna o gerador de discurso. Entendemos a palavra como afeto. Levados pelo afeto, pelas sensações, pelas trocas, os atores passaram a criar um vínculo bastante íntimo na cena. Um terceiro e quarto idioma nasceram daquela troca de palavras estranhas, compreendido somente por eles, uma brincadeira com as línguas.
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De que forma esses idiomas, pertencentes ao mundo, estão registrados no corpo desses atores? É isso que importou para o processo: como esses atores imaginavam e pronunciavam as palavras, não interessava o que se dizia, mas os sons que eram produzidos, a intensidade, as sensações que surgiam através das falas, a brincadeira com os sotaques, os clichês. A memória emotiva fazia com que ressoasse uma certa dureza do sotaque alemão em contraste com a graciosidade do francês. Assim, criou-se um terceiro e quarto idiomas com diferenças que delimitaram a geografia de cada personagem mas que, com o tempo de ensaio e com as contaminações entre os diálogos, acabaram tornando-se mais híbridos. Ainda assim, nesses primeiros passos, o trabalho não parecia ter a força suficiente que o grupo buscava. A orientadora Natália Soldera atentava sempre para o fato do grupo estar seguindo métodos que não permitiam com que se perdessem, se desequilibrassem ou abrissem “buracos” onde cairiam e, quem sabe, encontrariam novos caminhos. Por um tempo, a pedido da orientadora, o grupo tentou se deixar “bagunçar”. Foi necessário se perder para poder se encontrar. A partir daí, o trabalho com a comunicação começou a tomar um caminho bastante especial e, estudando sobre os idiomas, observou-se que algumas palavras dos dois idiomas europeus são semelhantes ao português. Descobrimos que no trabalho existiam palavras a serem exploradas: as cognatas e as falsas cognatas5. As palavras cognatas6 se tornaram palavras-chave na dramaturgia, indicavam o assunto e as situações das cenas, criando proximidade com o público que, deste modo, poderia se aproximar cada vez mais da cena. Durante os diálogos, o público se esforçaria para compreender, observaria o corpo dos atores, as ações, o rosto, os olhares, os sons. Por meio das palavras cognatas, o público poderia rir, sentir-se contemplado, sentir-se abraçado e, mais do que antes, convidado a entrar no jogo.
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Nem todas as cognatas identificadas nos idiomas eram adaptadas à cena: muitas foram descartadas por não se adequarem a dramaturgia. Algumas das palavras cognatas incluídas na dramaturgia do espetáculo: hotel, apartment, creme, ballons, schokolade, diskurs/discours d’anniversaire, restaurant, familie, musik, portugiesisch, Brasilien, champagne, silence, fotografie, entre outras. Além das cognatas, a dramaturgia do espetáculo transporta o público para lugares e situações de fácil identificação, compreensão, associação, dando um tom familiar, popular aos olhos de quem assiste. Lugares visitados através da dramaturgia: Torre Eiffel, Rio de Janeiro, Berlin, Paris, samba, festa de aniversário, o texto de Hamlet, as músicas de aniversário cantadas em alemão e francês e a própria sonoplastia do espetáculo composta apenas por músicas brasileiras. Como diz Novarina: “O mundo não tem que ser descrito, nem imitado, nem repetido, mas deve ser de novo chamado pelas palavras” (NOVARINA, 2009, p. 48). Através das cognatas, o desejo que atravessava o processo e todos que neles estavam, era o de chamar o mundo e as coisas conhecidas por ele através das palavras.
Logo as cognatas reverteram e confundiram, mais uma vez, a noção que o grupo tinha sobre a pesquisa. A palavra que havia ficado em segundo plano com o desdobramento das novas línguas, voltou com força total, pois nesse momento a palavra cognata gerava afeto e elevava a potência da cena de maneira que tudo ganhava um novo sentido. Elas também contribuíram na dramaturgia para a criação das cenas e como localizadoras para o espectador. Compreendeu-se que, inspirados pelos idiomas francês e alemão, os atores criaram uma nova forma de comunicação que passou a ser chamada de uberlíngua. Über (pronuncia-se “iuba”) é uma palavra alemã que tem variações em seu significado podendo ser “sobre”, “por cima de”, “acima de”, “além”, “acerca de”. Nesse sentido, pode ser compreendida como além ou acerca dos idiomas originais, da língua em si. A dramaturgia por meio da uberlíngua (traduz-se acerca da língua), não pretende ser linear, assim como não pretende ser apenas composta por palavras inventadas, estrangeiras, mas torna-se potente através das cognatas que tem a função de carregar sentidos e promover os afetos do espetáculo.
Diferenças da blablação para a uberlíngua
Em diversos momentos, durante o estabelecimento dos diálogos na cena, o diretor pedia aos atores para que interrompessem a uberlíngua e continuassem a mesma cena se comunicando em português. Mesmo o diretor não entendendo a comunicação feita através da uberlíngua, os atores sabiam exatamente o que falavam, se comunicavam efetivamente. Certamente, um processo que demandou tempo para alcançar esse estágio. Com bastante ensaios e trocas, uma das características da uberlíngua, era ser pensada pelos atores antes de ser pronunciada. As palavras semelhantes aos idiomas francês e alemão, são mentalmente formuladas para serem ditas e, mesmo fingindo falar esses idiomas, buscando imitar os idiomas, os atores criaram um código entre eles e com o tempo não hesitavam nos diálogos . Na blablação, não se entendem as palavras somente as intenções. O trabalho se aproxima desse jogo, mas se diferencia quando se passa a investigar formas de pronunciar a partir de idiomas existentes no mundo, incluindo as palavras cognatas que expressam significados, o que não é permitido através da blablação. A sexta cena do espetáculo, que antecede o epílogo e a despedida, chama-se O diskurs d’anniversaire é o melhor exemplo para essa diferenciação. Nessa cena, a personagem Anne entra em cena cantando Zum Geburtstag viel Glück, que significa “parabéns pra você” em alemão; enquanto isso, Franz canta Joyeux Anniversaire em francês e os dois comemoram. Anne diz, através da uberlíngua, que na Alemanha aniversário é sinônimo de festa.
Disponível em:< http://brasilescola.uol.com.br/gramatica/palavras-cognatas.htm> Acesso em: 17/03/2017.
A palavra cognata deriva do latim cognatus, cujo significado é "parente, relacionado, ligado ou semelhante”. O prefixo “co”, que significa “junto”, mais “nato”, que significa “nascido”, é o substantivo que usamos para nomear as palavras que “nasceram juntas”. Quando o assunto é língua portuguesa, dizemos que as palavras cognatas são aquelas que apresentam a mesma raiz ou que têm a mesma origem etimológica que outra palavra. 6
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A palavra festa em alemão é a mesma utilizada para o inglês: party. Nessa cena, essa palavra é encontrada em três momentos, que são crescentes dentro da dramaturgia, possuindo três significados diferentes em cada momento que é dita. Dividida em três partes, há uma brincadeira com a pronúncia da palavra, que soa e parece ser a mesma nos três casos. Party que
significa festa, se transforma gradativamente no jogo de partir o bolo e depois em despedida partir, ir embora. No último momento da cena, um clima de desentendimento pelo corte do bolo (que é falso), já está estabelecido nos minutos anteriores ao último diálogo. Anne quebra o silêncio e diz a Franz sua última fala do espetáculo: “quèsé nécesséir partir”.
O trabalho da atriz sobre si mesma
Registro da preparação da atriz antes da entrada do público.
Pensar no trabalho individual realizado neste processo se torna a parte mais complexa da escrita. No entanto, é a que se mostra mais necessária visto que toda a elaboração deste memorial envolve a prática em conjunto, mas também a relação individual com o próprio trabalho. Durante o desenvolvimento do espetáculo e entre cada procedimento na sala de ensaio, muitos momentos foram determinantes para o desenvolvimento pessoal e disciplinar no trabalho da atriz. A primeira questão levantada foi feita no primeiro encontro com o orientador da escrita deste memorial: “Qual seu interesse, seu foco de pesquisa, no seu próprio trabalho como atriz dentro do
processo?”. De imediato, essa pergunta não foi respondida pois demandaria tempo e um olhar mais atento para o processo que se iniciaria para respondê-la. Ao olhar para o trabalho realizado no ano anterior na cena No. Pas. Non, viu-se que o trabalho da atriz, assim como do ator, não trazia características de personagens. O foco daquele trabalho especificamente não foi a criação e o desenvolvimento de personagens. Por consequência disto, em cena se apresentavam como dois sujeitos falantes que usam seus corpos para expressar através da fala, palavras contidas em uma dramaturgia que atua entre um estado constante de memória e infância.
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Apesar de não ter sido feito um trabalho focado na construção de personagens, em inúmeros momentos da cena, os atores variavam de um estado narrativo para um estado de representação. Encontram-se pistas sobre isso na afirmação de Odette Aslan (2008) quando ela argumenta que [...] cada um toma da personagem somente os traços que lhe interessam, de acordo com a utilização que ele quer fazer dela. Suporte para a imaginação, a personagem também é suporte para todas as explorações, daí as inumeráveis variantes e deformações. (ASLAN, 2008, p.63). A partir dessa percepção, a atriz começou a observar que existem pontos relativamente parecidos a serem sublinhados durante o processo individual realizado em What the fuck is DIZ?. Apesar de serem espetáculos completamente diferentes, a relação da representação ou mesmo a ideia de sujeitos falantes é algo que chama a atenção como possível ponto de reflexão a ser desenvolvido aqui. Em relação ao trabalho da atriz sobre si mesma, ao criar a personagem Anne, acaba construindo um equivalente: a atriz, ao representar, não pretende ser outra pessoa, não deixa de ser ela mesma para que isso ocorra. Afinal, todo o material de que precisa para criar a personagem está nela, em seu corpo, em sua voz e se manifesta através de suas ações físicas: No trabalho devemos sempre começar de si mesmo, da própria qualidade natural, e então continuar de acordo com as leis da criatividade. [...] A arte começa quando não existe papel, existe somente o “eu” em uma dada circunstância da peça [...]. O ator realmente atua e vive seus próprios sentimentos: ele toca, cheira, ouve, vê com toda a finesse de seu organismo, seus nervos; ele verdadeiramente atua com eles. (STANISLAVSKI apud BURNIER, 2009, p. 23). Para Luís Otávio Burnier (2009), existe uma diferença bastante significativa entre os conceitos de interpretação e representação. Para ele, interpretar pode ser entendido como traduzir um texto para a cena, enquanto representar está mais para um encontro de equivalentes, onde o ator é o criador do jogo e não somente o intérprete de um texto. Renato Ferracini (2009), ao dialogar com a obra de Burnier, acentua a afirmação na seguinte passagem: [...] o ator que representa busca sua expressão por meio de suas ações físicas e vocais. Ele, o ator, não parte do texto literário, mas o esquece e busca o material para seu trabalho em sua própria pessoa e na dinamização de suas energias potenciais. Ele não se coloca entre o ator e a personagem, mas deixa que este faça a própria interpretação de suas ações vivas. Poderíamos dizer que a “personagem”, para o ator que representa, vem antes do texto, já que ele possui um vocabulário de ações físicas e vocais codificadas que poderá emprestar a ela a qualquer momento. Assim quando esse ator vai montar o espetáculo, já tem todo o material físico e vocal que dará vida a peça. (FERRACINI, 2009, p. 51). Nessa perspectiva, pode-se dizer que uma relação bastante especial surgiu no trabalho com a criação dessa personagem que, para além dos materiais encontrados nas ações físicas e vocais da atriz, necessitava uma busca maior: encontrar palavras, sobretudo sons, que representassem a língua alemã e que, assim, reverberassem as características da personagem Anne. O foco dessa pesquisa estava na fala, mas também nos gestos pois, ao falar e não ser compreendida através da fala, fez com que se tornasse necessário expressar-se de maneira mais viva: os gestos deveriam ser mais precisos e limpos para que pudessem revelar as intenções. O gesto é complemento absoluto da palavra e, nesse trabalho, uma coisa não existe sem a outra, são inseparáveis.
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Os gestos, assim como a uberlíngua, fazem parte do texto e são de igual importância como material dramatúrgico. Para a elaboração de gestos limpos e movimentos mais precisos no espaço e para o surgimento de novas inflexões nos sons produzidos, foram constantemente realizados exercícios através dos viewpoints propostos pelo diretor. Nessa empreitada, todo o físico estava envolvido para sustentar a uberlíngua: os sons desse novo procedimento foram aos poucos se organizando no corpo da atriz, que possui ascendência alemã em sua árvore genealógica. Os primeiros sons saiam com bastante naturalidade. Ao falar, ela elaborava mentalmente os próximos sons possíveis, revisitando aquelas palavras que conhece na língua. O estrangeiro habitante em seu corpo empolgava e a realização das ações se tornavam prazerosas; cada vez que uma nova cognata surgia, a atriz se deixava afetar pela língua, o português se tornava poesia na dramaturgia: quando surgia, vinha com uma força surpreendente, capaz de comover os atores e o público. A atriz passou a analisar o idioma alemão, procurou por palavras cognatas, assistiu filmes no idioma, encontrou palavras em português que possuem raiz na língua alemã. Tem paixão pela língua, talvez esse seja o motivo por ter sido a sua primeira escolha ao falar. Anotou o que parecia interessante para o processo e levava para sala de ensaio o material recolhido. Durante o processo, também levava cenas, músicas, desenvolvia pequenos textos e reflexões em seu caderno de anotações, ao tempo que dialogava com seus companheiros de trabalho sobre os caminhos que o espetáculo tomava. Para colaborar com suas investigações e integrar em seu trabalho pessoal, realizou cursos externos a instituição, que tiveram como principal objetivo a investigação da palavra. Visitou escolas de samba no processo de criação da cena em que deveria representar uma rainha do carnaval brasileiro, entre outras ações, que considerava importante e complementar em seu trabalho.
A atriz sabe que o teatro só acontece quando as portas se abrem para o público entrar. Teatro é uma via de mão dupla e o trabalho dos artistas só estará finalizado quando as luzes se apagarem e o público esvaziar as arquibancadas. O ator é aquele sujeito que vai onde o espectador não se aventura, ainda que desejasse fazê-lo. Mas, estar frente a essa viagem do ator aos territórios temidos não se dá sem que possamos perceber uma dupla prática que compromete o pensar e o fazer. O espectador desde seu lugar de público “faz teatro” como o outro polo da cena. De maneira simultânea pensa a cena, pois, sua percepção a ação de recepção, são a elaboração de sentidos da cena. (CARREIRA, 2012, pp.8-9 ). O teatro se dá entre os artistas e os espectadores, é uma troca, uma ação compartilhada. E, especialmente neste trabalho, o público é mais do que fundamental, é agente ativo, pois só cabe a ele ler e encontrar os significados oferecidos pela dramaturgia.
Ficha técnica
Fotografia realizada após a estreia do espetáculo What the fuck is DIZ? no dia 23 de fevereiro de 2017. Da esquerda para direita: Paulo Soares (ator), Alan Cristian (iluminador), Gui Almeida (cenógrafo e figurinista), Fernando Vettore (diretor e dramaturgo), Lucas Mattana (técnico do teatro) e Keila Aquino (atriz e produtora). Ausentes no registro fotográfico: a orientadora do processo Natália Soldera e a fotógrafa Larissa de Lima.
Referências
ASLAN, Odette. O ator no século XX: evolução da técnica, problema da ética. Tradução de Rachel Araújo de Baptista Fuser, Fausto Fuser e J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2008. BOGART, Anne. A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro. Tradução de Anna Viana. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. BURNIER, Luís Otávio. A arte do ator: da técnica à representação. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. BRASIL, Ubiratan. Antunes Filho dirige a peça “Blanche” falada em língua imaginária. In: O Estadão. 16 mar 2016. Disponível em: <http://cultura.estadao.com. br/noticias/teatro-e-danca,antunes-filho-dirige-a-peca-blanche--falada-em-lingua-imaginaria,10000021457> Acesso em 13/03/17.
CARREIRA, André. Fazer teatro é pensar teatro. Conceição | Conception - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena, UNICAMP, V. 1, n. 1, Campinas: UNICAMP, 2012. Pp. 2-13. Disponível em: <http://www.publionline.iar. unicamp.br/index.php/ppgac/article/ view/47/77> Acesso em 19/03/2017. DINIZ, Liana Ferraz. O ator e o material criativo: possibilidades para transformação. Pitágoras 500 - Revista de Estudos Teatrais. Campinas: Departamento de Artes Cênicas, UNICAMP, 2012. Pp. 103-114. Disponível em: <http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:-OjN-L5oQ5kJ:periodicos. sbu.unicamp.br/ojs/index.php/pit500/ article/download/8634768/2687+&cd=1&hl=en&ct=clnk&gl=br> Acesso em 06/05/2016. FERRACINI, Renato. Ação Física: afeto e ética. Urdimento - Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Universidade do Estado de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Teatro, V. 1, n. 13, Florianópolis: UDESC/CEART, 2009. Pp. 123-134. Disponível em:<http://www.ceart.udesc. br/ppgt/urdimento/2009/index13. html> Acesso em 06/05/2016. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Positivo, 2006. FO, Dario. Manual mínimo do ator. Tradução de Lucas Baldovino e Carlos David Szlak. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Tradução de Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. Tradução e revisão de Ingrid Dormien Koudela e Eduardo José de Almeida Amos. São Paulo: Perspectiva, 2015.
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Crédito: Reprodução
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NEGROS & ALVOS Monahyr Campos1
Há aproximadamente dez anos recebi um convite que mudaria minha vida. E pra melhor, inegavelmente: Ricardo Barbosa, amigo de longa data, de quem estive meio distante por muitos anos, mas que nunca deixou de estar comigo, em pensamento, aprendizado e em ação, propôs que eu escrevesse um texto teatral falando do racismo. “Mas não a abordagem comum, que todo mundo está cansado de ver, queria um texto que fosse ácido, corrosivo mesmo; que fizesse as pessoas compreenderem realmente como nos sentimos a cada agressão racista, escancarada ou sutil!” É um convite irrecusável, daqueles que não abrem possibilidade de negação! Aceitei e a partir dali pusemos as mãos na massa! Passamos meses nos falando diariamente, trocando indicações de leitura, trocando ideias, trocando experiências. Assistimos a inúmeros filmes sobre o assunto. E eu virando as noites escrevendo, corrigindo, reescrevendo. E o Ricardo, meu parceiro, daqueles amigos-irmãos, com sua preciosa generosidade, elogiava, criticava, sugeria, acompanhando o nascimento de cada parágrafo, cada personagem (do que um dia foi idealizado como monólogo), de cada fala. O trabalho parecia improdutivo, era como se estivéssemos andando em círculos, voltando sempre ao mesmo ponto, até que surgiu a ideia de entrevistarmos pessoas para elencar
episódios que pudessem ilustrar o que tínhamos a dizer. E assim o fizemos. É importante ressaltar que não tínhamos um método acadêmico, não gravamos as entrevistas, não tabulamos os dados transpondo a realidade para números. Simplesmente estávamos coletando alimento pra nosso filho: a peça teatral Negros & Alvos. Como o destino sempre tem sido generoso comigo, outra grande amiga, Janaína Oliveira me confessa seu intento de fazer um espetáculo para homenagear uma grande personagem negra da história, Rosa Egipcíaca, com o intuito de elevar a autoestima da mulher brasileira. Era fim de ano e resolvemos passar uns dias na cidade de Bom Despacho, onde fica a comunidade da Tabatinga, um quilombo urbano localizado no bairro Ana Rosa, região Centro-Oeste de Minas. Não tínhamos essas informações, fomos com a cara e a coragem. Depois de vários dias procurando, finalmente conseguimos chegar até Dona Fiota, e depois, Dona Tiana Preta, patrimônios imemoriais da humanidade! Ali, tomei o café mais saboroso de minha vida, adoçado com histórias mil, enobrecedoras e encantadoras. Na volta, eu estava abastecido de material vasto para seguir em frente. Quando finalmente consideramos o texto com começo, meio e fim (santa ingenuidade), resolvemos pô-lo à prova. Foi a hora de agregar pessoas a nosso tão caro projeto. Convidei Pin Nogueira
para dirigir, em seguida convidamos algumas pessoas para compor o elenco, além de Reinaldo Rás, para cantar, e Camila Rodrigues para dançar! Essas pessoas entregaram-se com tanto amor ao projeto, que seria impossível não lhes render o crédito. Foram simplesmente fundamentais. Pin Nogueira, com aquela genialidade sóbria e humilde, simplesmente resolveu todos os possíveis problemas de realização cênica da peça. Rás e Camila uniram-se ao próprio Ricardo para dar corpo e movimento aos seres feitos de palavras, mais que isso, deram voz a todos os interlocutores possíveis em uma trama infinita, que vivemos todos os dias do ano, de preconceitos, discriminações e injúrias raciais. Havia um esboço de trilha sonora, no qual eu usaria canções populares, de artistas consagrados, mas a diretora achou melhor que eu compusesse uma trilha autoral, elaborada para a peça. Assim surgiu o repertório que compõe o show Negros & Alvos. A peça teatral ganhou vida própria, transitou por teatros, centros culturais, escolas públicas e universidades, mas o teatro é efêmero por natureza. Os envolvidos em sua realização seguem suas carreiras, seus projetos pessoais. A trilha sonora permanece. Ela se basta. Consigo a partir dela, com o acréscimo de dança afro e exposição iconográfica, compartilhar um pouco de toda a grandeza que a peça representou em minha carreira. E continuar semeando...
Monahyr Campos é artista independente, compositor, multi-instrumentista, cantor, escritor e professor. É autor de trilhas sonoras além de letras para canções populares. É marca peculiar de seu trabalho temas sociais e o combate a quaisquer formas de discriminação, Sua participação no grupo musical MalaCquias na Cozinha, no bloco afro Ilu Obá de Min, e seu trabalho com Dinho Nascimento e Cadernos Negros aguçou seu envolvimento com a música tradicional brasileira de inspiração afro, característica de suas composições. 1
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VOU-ME ATIRAR “REFLEXÕES PARA PODER RECOMEÇAR”
Humberto Gomes1
PERSONAGENS: OLÍVIA - a jovem transparente Olívia a menina que gosta de borboletas. Aos 14 anos ela saiu e nunca mais voltou. Vive no alto tentando enxergar as coisas de cima. Não sabe se quer viver o que ainda não viveu, pois vendo tudo que vivem tem um grande medo da vida. AUGUSTO – o homem cinza Augusto é bem sucedido e tem boa aparência, mas alguma coisa o trava, o impede de ser feliz. Na verdade, esse homem nunca sorriu nunca se divertiu e sempre mentiu para si mesmo. Bem resolvido aos olhos de todos e uma catástrofe por dentro. Família? Pra quê? Eles já o puseram no mundo e ele dá conta de tudo sozinho. Filhos? As crianças gostam muito dele, mesmo que nunca tenha feito nada para que gostassem. Doações em casas de caridade ele sempre faz, embora não conheça as crianças que vivem lá. AURORA – a mulher flutuante Aurora tem nome de princesa, afinal essa beldade nasceu para ser admirada! Sempre a primeira, a melhor, a mais bonita, a mais inteligente, a mais cobiçada e muitas vezes a mais podre! Fama, ssucesso, flashs, drogas, muitos homens, abortos e assédio. Quem mente pra si mesma? Uma mulher de 35 anos perde sua vitalidade, sua viçosidade, mas a vaidade nunca! Por isso existem as facas, os bisturis e até a morte! Ela pensa em se congelar agora para depois tentar fazer sentido para os outros? Que sentido será que faz para ela mesma?
CENA ÚNICA AUGUSTO: Quantos nós cabem dentro de nós? Alguém sabe me... Eu não sei. Se eu soubesse quantos nós, talvez não estivesse aqui. Quantos? Nós... AURORA: Desculpa, sei que não tenho nada a ver com isso, mas... Deixa pra lá. Silêncio. AURORA: Uma vez me deram uma novena “NOSSA SENHORA DESATORA DE NÓS”. Não posso garantir que ela tenha funcionado. Na verdade, não funcionou mesmo. É que você falou em nós e não tive como não lembrar. AUGUSTO: Impossível que sejam apenas nove. São muitos, mas muitos mesmo! AURORA: Não. A novena é de nove dias. Carreguei a minha na carteira até pouco tempo atrás. Joguei fora, senão eu deixaria com você. Tendo em vista que não precisaria mais dela. Não mesmo. AUGUSTO: Não adiantaria. Primeiro que eu não sei rezar e segundo que já é tarde para aprender. OLÍVIA:
Oração? O silêncio é uma oração que todo mundo faz por aqui. Normalmente não se falam e nem se intrometem no silêncio ou no discurso do outro. Mas já que começaram achei melhor tentar interagir. Muita gente passa, pouca gente fica.
AUGUSTO: Que horas são? Meu relógio parou. AURORA: Horas? OLÍVIA:
A hora é agora e o momento é esse. Estão na hora certa. É sempre nesse horário que as coisas acontecem. Pelo menos pra mim foi assim.
AUGUSTO: Eu preciso saber que horas são. Pela posição do sol a noite deve estar próxima. Às vezes a noite é dia e o dia é noite. Já pensou nisso? Agora, por exemplo, do outro lado do mundo o dia está nascendo e aqui morrendo. Que diferença isso faz pra você? AURORA: Nenhuma. Na verdade fez diferença quando estive em Tókio. Demorei muito para acostumar com o fuso. Se na Europa já foi difícil. Imagina no Japão!?
Humberto Gomes, Ator, diretor, produtor e dramaturgo. Pós-graduado em “Fundamentos do Ensino do Teatro” pela Faculdades de Arte do Paraná – FAP. Formado na Teatro Escola Macunaíma em São Paulo e graduado em Publicidade e Propaganda pela universidade de Sorocaba. Além dos trabalhos artísticos na área, foi coordenador do Núcleo de Teatro do Cultural Brasital em São Roque, entre outras atividades. Recebeu o troféu Gralha Azul 2010 como diretor de espetáculo infantil pela peça “A Fábula do Vento do Sul”. Ministra aulas de interpretação na Academia Cena Hum. 1
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AUGUSTO: Imagino! AURORA: Eu guardei muitas coisas das minhas viagens. Sempre gostei muito de viajar e conhecer lugares novos. Pessoas nem tanto, mas os lugares sim. Não consigo ficar sustentando muita coisa, sabe aquela sensação de estar fazendo tudo errado na hora errada com a pessoa errada? Enfim. Se a gente percebe que não cabe mais dentro de algumas coisas, seja por não se sentir suficientemente grande ou pequena, o que pode me dizer dos presentes que deixei dentro das caixas? Como será que eles se sentem? OLÍVIA:
Guardar presente? Presente a gente usa ou ele usa você.
AURORA: Eu me senti usada muitas vezes e na verdade eu estou é desgastada. Parece que eu apliquei botox? AUGUSTO: O que? OLÍVIA:
Você é real?!
AURORA: É sério! Aqui ó, consegue ver? É bem sutil, mas apliquei. Você deveria aplicar. Deve ter por volta de 40 anos, acertei? Então, vai fazer bem para sua autoestima. OLÍVIA:
Opinião cada um tem a sua, mas não acho que ele tenha cara de velho. A imagem que a gente tem de nós mesmos é bem diferente do que os outros têm. É só comparar a nossa visão pelos olhos dos outros. Cada um é cada um.
AUGUSTO: Que engraçado. Não sei dizer se esses tais sentimentos como a felicidade e a nostalgia são engraçados ou complicados. Pare e pense: enquanto você está triste já imaginou a quantidade de pessoas que podem estar felizes, ou mais tristes que você? Enquanto você tá aplicando botox ou malhando e seja lá o que for, existem pessoas fazendo sexo, sendo assaltadas, assaltando. Sei lá. Cada um com seu ponto de vista. Eu me sinto bem assim e não vou aplicar nada em lugar nenhum. Eu cheguei ao meu limite nem sabendo direito que limite é esse. O que me levaria ao limite? Não sei. Esse é meu limite. São muitas transferências e conexões acontecendo ao mesmo tempo entre as pessoas! Isso tudo me deixa um pouco louco. Nem sei se quero perceber tudo que eu “acho” que percebo, nem viver tudo que já sei como é, nem pensar como pensei anteriormente. Ando meio paranóico. Nem calmante adianta mais. AURORA: Eu ia mesmo perguntar se você anda tomando alguma coisa. AUGUSTO: Previsível. Por isso respondi. Você não me é estranha. Vem cá como é seu nome? OLÍVIA:
Olívia. Muito prazer.
AURORA: Aurora. Deve ser de alguma festa. OLÍVIA:
Meu aniversário está chegando. As tardes ficam mornas perto dele.
AURORA: Essas festas são à noite e costumam varar a madrugada. A solidão vem sempre de manhã. À tarde eu costumo dormir. AUGUSTO: Não tenho tempo pra isso. Temperatura pra mim é ar condicionado. OLÍVIA:
Hoje pra você é um dia atípico?
AUGUSTO: Atípica essa tarde... OLÍVIA:
Você não disse o seu nome.
AUGUSTO: Ah, meu nome é Augusto. O ar condicionado me faz mal. Tenho muita amigdalite. AURORA: Ouvi falar de um xarope muito bom. Totalmente natural. Não tomei, soube que tem consequências. AUGUSTO: Não acredito nessas coisas. Logo tomo um antinflamatório. Demora, mas passa. Sempre passa.
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OLÍVIA:
Tudo passa mesmo que demore.
AUGUSTO: Bom, não dá pra querer ter controle de tudo que grita dentro de nós fazer o que, não é? Essas coisas de ciclos, repetições com figuras iguais ou mesmo diferentes me tiram um pouco o chão e acabam sendo as reticências que eu não gostaria de encarar. Eu queria ter um controle remoto, e não pense que é pra regredir, mas sim pausar e analisar em freinets o que daria pra ser diferente e mudar a pontuação! Bom, eu vim até aqui com um propósito: me atirar. Embora eu me faça de forte, desisitir é comigo mesmo, se é que me entende. OLÍVIA:
Quando a gente tenta muitas e muitas vezes morrer e não consegue, é por que precisamos de mais tempo. Talvez a desistência seja uma questão de tempo pra partir.
AURORA: Foram muitos comprimidos e nada, até que um dia tive uma falta de ar... Acordei no hospital e pensei que não ia mais respirar. Mas, se eu acordei devia existir algum motivo. Um par de olhos pretos me acordou. Ele tinha um sorriso iluminado e o cabelo mais lindo que um homem pode ter. Minhas mãos deslizavam facilmente por eles. E por eles estou aqui. Não posso admitir nem perceber o quanto de mim mesma existe dentro da minha alma. Preciso acabar com isso logo de uma vez antes que seja tarde. As coisas não tem um fim. Recomeçam no mesmo lugar. Chega. Também vou me atirar. OLÍVIA:
Meu pai dizia que a paranóia é uma doença que consome a cabeça de qualquer ser humano. Depois de se desculpar sempre dava esse texto lá em casa. Minha família é feita de desculpas. Desculpas por ontem, desculpas pelos dias que falaram de mais. “Filha, talvez você não tenha me entendido muito bem e”... Imagina pai, que eu ia pensar isso sobre você... Eu não sei nem o que pensar sobre mim mesma. Eu nem sei como vim parar aqui nesse buraco sem fundo. Agora eu fico aqui, enxergando tudo por cima, tudo de cima... Ver a vida e a evolução dos outros me faz crer um pouco que perdi oportunidades de ser alguma coisa, de me tornar alguém. Algumas pessoas vem aqui há anos: primeiro com os pais, depois com os namorados, os amigos e depois: Sozinhas. É engraçado perceber que quanto mais à gente espande e evolui, mais sozinho a gente fica. Existe uma lógica para isso?
AUGUSTO: Faz muito tempo que eu só assisto a vida dos outros. Desisti de ser protagonista. Eu não sinto vontade de rir. Sorrir. Ir por ir, fazer por fazer. Eu cumpro a função. Acredito que fui acumulando tanta coisa durante tanto tempo e agora eu não faço a menor idéia do que fazer com elas. Carro para dirigir, milhas para viajar, restaurante pra jantar, roupas para usar, planilha pra fazer, orçamento pra rever, familia pra visitar, wisky pra tomar, pessoas pra quê? Pra amar? Eu não sou suficientemente bacana pra poder fazer alguém feliz. Devo ser um ótimo partido a primeira vista e isso não deve durar mais do que um mês, no máximo, depois a náusea vem. De uma parte ou de outra, mas sempre vem. OLÍVIA:
Por isso que eu prefiro os dias de inverno e as noites de verão.
AUGUSTO: Em dias assim a gente nunca se sente só, os astros sempre estão ali para nos dar uma direção. Sim, eu vivo além do ar condicionado. Mas não adianta usar isso como desculpa para fugir da solidão, por que às vezes até as estrelas e o sol ficam encobertos pelas nuvens. Por isso eu preciso aproveitar o dia de hoje. E você? AURORA: Onde me atiraria? Nos braços... Nos seus braços? Posso? Por favor, você pode me dar um abraço? Tem dias que eu acordo e me sinto tão sozinha e abandonada que me dá medo de olhar no espelho. Eu estava num voo voltando pra casa e assisiti a uma matéria que falava da ausência de toque. Do auto toque. Se a gente não se tocar não vai se sentir a vontade pra deixar que o outro nos toque. Foi assim. É assim! Ele não deixava deslizar mais as minhas mãos pelos seus cabelos e nada mais podia ser feito e eu precisava apenas ser abraçada. Apenas isso, mas nem isso eu tinha. Eu sempre fui usada como um objeto. Crédito: Unsplash.com
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Um dia uma estranha me abraçou no elevador e me disse “como vai você, querida?” Essa mulher, que eu nunca mais vou ver, mudou o meu dia. Depois ela tocou meu ombro e disse “tenha uma boa tarde”. Ela não me desejou, ela não me queria como um objeto. Procuro milhares de toques e retoques para tentar entender as palavras que meu corpo quer dizer e me torno cada vez mais surda, mais burra e futilmente banal como muitos dizem por ai. Essa é minha fuga e uma simples estranha que levava dois grandes sacos de lixo fedorentos foi a única em anos que me enxergou com pureza. Por isso eu te peço: você pode tentar me abraçar com um pouco de pureza? Ou o vento pode fazer isso. Talvez nem ele queira. Olívia abraça Aurora que não demonstra nenhuma reação quanto a isso. OLÍVIA:
Nada abraça nada e ninguém quer abraçar ninguém. Existe a perspectiva: a janela sempre vai sentir a perspectiva de quem cai... Isso só ela vai saber, mas nunca vai poder dizer nada.
AURORA: Quem mente pra mim sou eu mesma? Uma mulher perde sua vitalidade, sua viçosidade, mas a vaidade nunca! Por isso existem as facas, os bisturis e não tenho problema algum em ser adepta deles. Será que vale a pena eu me congelar agora para depois fazer sentido para os outros? Que sentido eu faço pra mim? Será que eu poderia me apaixonar assim por um garoto mais novo sem me sentir culpada? Será que se eu me encontrasse com esse garoto daqui a 10 anos ele se interessaria por mim? Quem sabe se eu morrer eu consiga nascer de novo pra tentar alcançá-lo! OLÍVIA:
Acho que não. Os anos passam como furacões. Não só para você, mas pra todo mundo. Parar o tempo não garante que o tempo do outro fique parado. O furacão sempre passa e leva muitas coisas embora, só que traz outras. Ninguém sabe o que fazer com isso tudo, você escolhe como organizar.
AUGUSTO: Morte morrida, morrer de velhice. Morrer de tristeza, morrer de ausência. Quando eu estava vindo pra cá encontrei um mendigo que sorriu e me deu boa tarde. Ele estava sujo, como todo bom mendigo ele tinha: unhas grandes, pele oleosa, cheiro forte, barba e cabelo comprido. Me mostrou um monte de DVDs que havia ganhado. Eu me perguntei: “o que ele ia fazer com aquilo tudo?” Mas ele começou a me contar sobre os filmes. Não sei se ele assistiu. Não sei se ele resolveu sair pelo mundo e levar com ele as referencias cinematográficas que adquiriu durante a vida. Isso só ele vai saber. A verdade é de cada um. O problema é de cada um. O abraço é problema seu, a perspectiva é problema da janela e a mentira um problema meu! Comecei a me desfazer das coisas, dos bens que eu tinha. Até por que hoje em dia a vida pode ficar armazenada em coisinhas menores. O mundo está compacto. Os seres humanos também. Então resolvi doar meus filmes, alguns livros, CDs, fiz isso. Encontrei um homem na rua puxando um carrinho. Era um mendigo, cheio de quinquilharias. Ele estava sujo, como todo bom mendigo: unhas grandes, pele oleosa, cheiro forte, barbudo e cabeludo. Entreguei tudo pra ele. Parece que ficou bem feliz. E agora eu me pergunto: aquele homem lê? Ele tem aparelho de DVD? Som portátil? Computador? Smartphone? E eu te pergunto: qual das verdades é a verdade?
AURORA: Quem sabe? AUGUSTO: Eu. OLIVIA:
Quem escolheu estar aqui?
AURORA: Eu. AUGUSTO: Quem se acha melhor o suficiente? AURORA: Eu. OLIVIA:
Quem nunca se permitiu?
AURORA: Quem nunca admitiu? AUGUSTO: Quem nunca pensou nas consequências? OLIVIA:
Quem quis o que era do outro?
AURORA: Quem resolveu se vingar? OLIVIA:
Quem deixou de pensar na dor alheia?
AUGUSTO: Quem se sente inferior? AURORA: Quem faz milhares de perguntas e não ouve as repostas? AUGUSTO: Quem não dá atenção e se culpa depois? OLIVIA:
Quem fugiu do diálogo?
AURORA: Quem trapaceou? OLÍVIA:
Quem mentiu?
AURORA: Quem se sente infeliz? AUGUSTO: Quem resolveu pegar um atalho? AURORA: Quem roubou o dinheiro do cofre? AUGUSTO: Quem pagou o aborto da secretária? OLIVIA:
Quem teve um caso com o professor de matemática?
AUGUSTO: Quem teve um caso com a mulher do melhor amigo?
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OLIVIA:
Quem mentiu que foi seduzida?
AURORA: Quem foi abandonada no altar? AUGUSTO: Quem se acha uma merda e incapaz? AURORA: Quem perdeu a esperança de se sentir mulher de novo? OLIVIA:
Quem foi?
AUGUSTO: Quem mentiu ser quem não era? AURORA: Quem acreditou ser o que não era?
AUGUSTO: Eu procuro a perfeição nas situações, mas eu nunca encontrei uma situação que fosse perfeita, mas vivo na sombra de uma frustração. Com as mulheres também acontece a mesma coisa, ou melhor, não acontece. Dentes, roupas, sapatos, jeito de jogar o cabelo, alguma coisa dá errado. Frustra. Daí é inevitável não pensar na questão da idade. Acredito que se eu fosse jovem poderia ser menos exigente, sentir mais vigor, mais amor, menos rancor. OLÍVIA:
AUGUSTO: Quem não tem a menor vontade de ser gentil? AURORA: Quem tem inveja da vida dos outros? OLÍVIA:
TODOS:
Quem quis morrer e ficou presa num lugar tendo que esperar o tempo passar!? Você.
AURORA: Eu li uma vez que se você resolve morrer antes do tempo vai precisar esperar o tempo passar. AUGUSTO: Filosofias banais e espiritualidade barata. O que prova isso? Vou me atirar com inteligência. Pensei nisso com cuidado. Eu estudei em Oxford. Você acha que isso é pra qualquer um? Você é muito parecida com a maioria das mulheres que já saí pra jantar e transar. E sabe o que todas têm em comum?
AURORA: Plenitude? O que é isso? A busca de uma relação que pode ser frustrante? O pagamento de milhões de boletos para ter sossego e acumular outras contas? Eu não posso mais nada. Sempre que se alcança algo vislumbra-se outro algo. Isso não é ruim, pois os objetivos devem nos acompanhar ao longo da vida, mas pra quê? Eu não sei mais se quero enfrentar tantas coisas, já superei muitas, mas até onde isso vai? AUGUSTO: Alguém já te disse que suas palavras são inspiradoras? Pra quem começou falando de botox você está se saindo muito bem. AURORA: Alguém já te disse que você pode ser gentil com um pouco de esforço? OLIVIA:
AURORA: Vamos sair daqui e viver juntos? Eu posso tentar me tornar melhor e me adaptar ao seu modo. Eu não posso ficar sozinha eu não quero. AUGUSTO: Mesmo estando acompanhada a gente se sente muitas vezes sozinho, Sempre aquele bando de gente pra você ter que ficar procurando assunto, procurando se encaixar em um molde que combine. Cansei de procurar assunto. OLÍVIA:
No quesito “relações” o silêncio é importante, mas nem sempre respeitado. Meu professor sempre dizia isso. Eu me calei até onde pude. Depois me atirei. Não tive escolha.
AURORA: Uma vez eu conheci um cara e fiquei horas e horas em silêncio ao seu lado. Posso garantir que foi uma das únicas vezes que consegui fazer isso. Sentamos numa ponte e ficamos vendo os carros passarem. Era uma festa e fugimos de lá. Acredito que naquele dia comecei a me dar conta do que eu tinha por dentro: Silêncio. Ele não me cobrou por isso. Sempre fui cobrada pela falta de assuntos, ou pelo excesso. Embora eu já tenha me incomodado muito e procurado muitos assuntos percebi que eles não são a coisa mais importante.
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Retórica! A verdade é que os jovens querem ser adultos para sentir independência, os adultos querem ser jovens e os velhos querem ser ou viver qualquer coisa que os revigore para se sentirem vivos. Aí mora a pergunta por que tanto tempo ficamos sem tempo? Quando queremos tempo o tempo esgotou. Ninguém é feliz e completo o suficiente para se julgar pleno.
Alguém já disse pra vocês que dá pra enxergar o mundo com outra perspectiva. Um reencontro dentro de um encontro. Comigo foi assim. Mas foi assim depois que não dava mais tempo pra ser, de ser. As coisas sempre são do jeito que devem ser, mas a gente briga com elas por que quer que elas sejam como a gente quer que elas sejam. E no fundo o que cada um de nós quer?
AUGUSTO: Tem dias qua a única coisa que nos resta é ir embora. Querer ir embora. Eu vou. Não sei por qual saída, mas eu vou. E você? O que você quer? AURORA: Como nada de extraordinário tem acontecido comigo nos últimos tempos, nada é o que vou querer. Tá vendo a lua nascer? OLÍVIA:
Crescente!
AUGUSTO: A lua crescente é realmente incrível. Dizem que ela potencializa as vontades e os desejos. Tudo que você pedir, começar ou executar nessa fase tem grandes chances de se realizar. TUDO. AURORA: Pra quem não tem crença você tá se saindo muito bem. AUGUSTO: Histórias de quando eu era criança. Não acha que estamos cada vez mais descrentes das nossas próprias crenças? Que mundo é esse? Vergonha de expor de se expor de ter fé e esperança... todo mundo vive num eterno pessismismo buscando a redenção através de um sofrimento que não precisa existir e eu estou cansado é de saber disso e não conseguir fazer nada para mudar.
OLÍVA:
Triste é enxergar e achar que está cego.
AURORA: Eu não quero morrer sozinha. Eu não quero ficar sozinha. Eu não quero esperar sozinha. AUGUSTO: A perfeita esperando a perfeição. Vai ficar se aperfeiçoando para morrer ou vai ter coragem de ir? Vai primeiro ou quer que eu vá? Primeiro as damas, sou gentil. AURORA: E se você desistir? Vão acusar você da minha morte! E não existe nada nem ninguém que possa provar o contrário. AUGUSTO: Vai de um lado que eu vou do outro e vê se para de me atormentar que essa decisão toda tá sendo bem difícil para mim! OLÍVIA:
Vocês tem certeza? Por que mesmo tendo certeza nada é certo. Depois é sempre depois. Nunca ficamos sozinhos. Sempre tem alguém perto. Mesmo que você tenha que sair pra depois voltar.
AURORA: Eu lembro quando fui visitar minha prima no hospital. Ela tava morrendo. Leucemia. O pior não era ela. Ela tinha certeza. Os que não tinham sofriam mais. Minha tia que ficava lá viu muitas mortes no quarto, no corredor. Ela morreu muitas vezes naquele lugar. Depois da morte da minha prima, por incrível que pareça ela ficou feliz. Como alguém pode ficar feliz quando a filha morre? Isso é compensação, comigo será diferente, ou melhor: indiferente. Só manchete. Se você for, vão passar anos tentando entender qual a nossa ligação. OLÍVIA:
Companhia. Quem vai sou eu. Estou sentindo tudo diluir. Vocês ficam no meu lugar?
AUGUSTO: Fui com meu pai num velório uma vez. Era mulher do amigo dele. Não conhecia. Não fez diferença. A impressão é a mesma. Já vi bebê no caixão, tio que teve infarto, gente que morreu sorrindo, pais e mães de amigos e que eu não conhecia. A impressão sempre fica. Muda quando acontece com alguém próximo. Não gosto de ver gente morta, por isso vão lacrar. Vai ou não vai? OLIVIA:
Os fins sempre são tristes não adianta dizer que não por que sempre são. Sempre vão ser. Não é pelo choro nem pela angustia é simplesmente porque dói em saber que não vamos mais poder conviver carnalmente com determinadas situações. Fins e mortes e pontos finais sempre vão acontecer em vida, ou em morte. As almas transitam, os amores transitam. Quantas mortes e quantas vidas existem na vida? Quantas vidas existem na morte? Quanto tempo está parada esperando que alguma coisa possa ousar ser diferente? Todo mundo se recupera de um tombo seja ele qual for e da altura que for. Difícil é saber que lá na frente por algum motivo você cai de novo, vai perder, vai se perder, se machucar e até recuperar certas coisas.
Agora eu entendo quando me disseram “a gente sempre sabe o tempo de ir”. Alguns vão sozinhos, outros juntos. Outros passam pelo tempo de estarem juntos. Mais ir é necessário. AUGUSTO: Você sabe que horas fecha aqui? OLÍVIA:
Não fecha.
AURORA: Tem algum problema ficar por mais tempo? OLÍVIA:
Problema nenhum. Com licença, preciso ir.
AUGUSTO: Faz tempo que você está aqui?
CURITIBA, 31 DE DEZEMBRO DE 2011.
OLÍVIA:
Revisado em março de 2017.
O suficiente para saber que chegou a hora de partir.
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ENTREVISTA COM 1 BABAYA MORAIS ARGUMENTO: Quais são algumas de suas referências no modo como você trabalha a voz? Que pessoas, grupos e ideias influenciaram seu trabalho? BABAYA: Minha primeira referência é o Grupo Galpão, onde sou a preparadora vocal desde 1988, com a peça Corra Enquanto é Tempo dirigida pelo grande diretor belorizontino Eid Ribeiro, que também dirigiu várias peças do
Galpão. Logo depois conheci o diretor Gabriel Villela na montagem da peça Romeu e Julieta também com o Grupo Galpão em 1992 e estamos juntos até hoje! O Gabriel traz uma mistura do clássico e barroco com o moderno e contemporâneo que me instiga muito. Por ser o diretor com quem acumulei o maior número de montagens (32 até o momento) será sempre a minha grande referência o meu grande aprendizado.
Babaya é cantora, professora de canto, preparadora vocal e diretora musical. Iniciou a carreira na escola Música de Minas criada por Milton Nascimento em BH. Fundou em 1991 a “Babaya Casa de Canto” especializada no aprimoramento do Canto Popular. Já trabalhou com os diretores: Gabriel Villela, Márcio Aurélio, Aderbal Filho, Paulo José, Felipe Hirsch, Márcio Abreu, Daniel Filho, entre outros. Na Rede Globo trabalhou a prosódia das novelas “Liberdade Liberdade” e “Justiça”. No Cinema preparou atores nos filmes: “Chico Xavier”, “Pedro Malasarte”, “Os Nomes do Rosa”, “Eu Fico Loko”. Também preparou vários artistas renomados na música e no teatro e ministra oficinas de “Voz para Atores e Cantores” em diversas cidades do Brasil e exterior. Por 5 vezes recebeu Prêmio Shell, na categoria de “Melhor Direção Musical”.
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Crédito: Reprodução
Tenho como referência também, o diretor Márcio Abreu, de Curitiba, que na minha opinião é um dos grandes diretores da linguagem contemporânea. Fui apresentada à ele através do ator Luis Melo, na peça Daqui a 200 anos em 2005. Outra referência é o diretor Felipe Hirsch, também de Curitiba, é um diretor contemporâneo com outra linguagem que torna a minha visão muito ampla no conceito de voz para o teatro. Esses diretores citados e os demais com quem tenho trabalhado, sempre me fazem renovar, tanto na questão técnica quanto na interpretação. Eu tenho que estudar mais sobre voz e pensar o que posso trazer de novo para que o trabalho dê certo. Costumo falar que eu sou a ponte entre o diretor e o ator. E minha relação com cada diretor é muito diferente. O Gabriel me fala que tipo de voz e textura ele quer para a voz falada e cantada,
com muita antecedência. Quando ele começa uma peça ele já tem tudo pronto na cabeça. Sabe qual será a música, a maneira de cantar, etc. Durante os ensaios de música ele cria, insere outras, modifica formas e nos orienta como ele quer a música dentro de uma linguagem dramatúrgica. Ele é um grande diretor musical. O Márcio Abreu me pede outras investigações. Para o espetáculo Nós, do grupo de teatro Galpão, foi pedido uma “voz com o corpo presente”. Na verdade, o que ele quer, é que o ator conte a história de uma maneira mais simples, o que muitas vezes não é “tão simples” para o ator com mais experiência. De um modo geral, com este trabalho, o ator se sente “despido” de suas referências. Então, passo a passo vou conduzindo a voz do ator como um todo: corpo, voz, consciência, escuta interna e externa, inflexão, timbre, ritmo, intensidade, enfim, todos os elementos necessários para que o
ator consiga contar a história de forma expressiva e ao mesmo tempo simples e verdadeira. A: No espetáculo PROJETO bRASIL é possível ver isso principalmente nas falas do ator Rodrigo Bolzan. B: Isso! Em uma das cenas ele vai contando a história com recortes de palavras que estão no texto. Esta forma vai evoluindo, ganhando ritmo e no final da cena o público acompanha e entende o que ele está contando. Assim, ele conta a história naturalmente, consciente da sua voz e respeitando a dramaturgia proposta pela direção. Para o bom resultado do meu trabalho vocal é necessário, acima de tudo, que eu entenda onde o diretor quer chegar. A partir daí eu conto com a minha experiência para que isso funcione rapidamente e sem erros. Em geral é uma delícia trabalhar com esses diretores todos!
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Outra referência do meu trabalho é o grupo Ponto de Partida, que me representa com relação à resistência vocal e corporal. Isso significa dançar, cantar intensamente e interpretar por duas horas e meia de espetáculo e a voz terminar como começou, ou seja: saudável. É um trabalho que exige muito treino corporal e respiratório, para que eles mantenham o fôlego para cantar e falar e que a qualidade da voz e da interpretação sejam impecáveis. Também trabalhei no espetáculo Para Não Morrer com a Nena Inoue na Curitiba Mostra II, durante o Festival de Curitiba. Esse trabalho foi uma grande experiência para mim, porque a Nena resolveu que eu iria dirigir, mesmo eu não sendo diretora de espetáculo e sim de texto. Foi muito interessante porque ela me instigou a ter um olhar que é o da direção do espetáculo, afinal das contas. Antes eu tinha que atender às expectativas do diretor, e dessa vez eu e ela dirigíamos o trabalho juntas. Tudo foi acontecendo de maneira mágica e assustadoramente rápida, vinha de um lugar diferente do comum. Foi uma bruxaria mesmo (risos). A interpretação estava pronta, o corpo pronto. Eu não tive nem coragem de modificar a interpretação. Falei que era a primeira vez que eu não trabalhava texto com ela, não precisou. Mas, a articulação e projeção eu trabalhei para que ela pudesse falar com a boca torta e as pessoas entendessem tudo com clareza e emoção. A forma ficou maravilhosa apesar da estranheza física que ela apresenta. Foi um trabalho muito novo para mim. Depois dessa experiência eu tenho certeza que meu olhar artístico se modificou. O meu trabalho com o texto, eu desenvolvi (e continuo desenvolvendo), quando frequentei o ACT – Ateliê de Criação Teatral – em Curitiba, e onde tive a oportunidade de participar de muitos projetos de laboratórios artísticos. No início, eram práticas muito empíricas, muito intuitivas e depois meu trabalho foi baseado em experiências mais consolidadas onde desenvolvi um vasto estudo sobre os recursos expressivos que direcionam a voz falada e cantada com mais conhecimento e possibilidades interpretativas.
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A: A primeira questão que queria trazer é sobre o texto de época, como por exemplo um texto de Shakespeare, que é mais rebuscado, e têm questões específicas a serem trabalhadas. Quais são os desafios de, mesmo com o rebuscamento da linguagem do texto de época, conseguir atingir uma forma orgânica? B: O Gabriel gosta muito dos textos épicos e já dirigiu e produziu várias montagens de Shakespeare. O considero um grande diretor de Shakespeare. Nas montagens ele não adota uma voz impostada ou de projeção muito exagerada. Entretanto, não se pode falar um texto épico com uma voz muito coloquial, muito informal. A voz deve ser bem articulada, ter boa projeção e ser mais potente, na maioria das vezes. O Gabriel conduz a voz no texto épico com delicadeza, como foi por exemplo, em A Tempestade, onde os atores cantavam muito suavemente em potes antigos e simulavam que estavam em um barco. Eram dez homens cantando no registro grave com o timbre levemente fechado. Assim, consegui um resultado delicado, sensível e épico. Claro que, conforme o contexto dramatúrgico, o ator pode falar mais forte, dar um grito, mas não é a forma que ele vai se expressar durante toda a peça.
A: Pensando no contexto contemporâneo, como você enxerga a preparação vocal para atrizes atores? B: Eu tenho trabalhado com muitos grupos, (como o Gabriel brinca), nesse “Brasil profundo”: Aracaju, Manaus, Porto Velho, Curitiba, Joinville, São José do Rio Preto, Uberlândia, Natal, Vitória. Observo que os atores estão mais preocupados com a qualidade e cuidados com voz. Hoje em dia temos mais conhecimentos para trabalharmos com a preparação vocal através de parcerias com profissionais especializados em voz como otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos e fisioterapeutas. Isto para todos nós, preparadores e artistas é maravilhoso.
Minha forma de trabalhar, durante a preparação, é: primeiro pensar na saúde da voz, para que eu consiga obter resultados importantes e depois cuido da expressividade e da interpretação. A: Além disso, me parece que também não é possível separar a voz do corpo. Você trabalha com técnicas de corpo que potencializam a produção vocal e vice-versa? B: Gosto muito de aquecer o corpo com alongamentos e dinâmicas de respiração antes dos exercícios vocais. Um corpo tonificado promove muitos benefícios e facilidades para o aquecimento da voz. Os exercícios vocais que adoto para trabalhar a voz estão sempre relacionados a uma consciência da escuta interna e externa, da sensação de leveza na produção da voz o que significa uma emissão sem sobrecargas e sem esforço muscular das pregas vocais. Com isto o rendimento vocal, a projeção, a tessitura e o apoio estão garantidamente seguros. Outra coisa importante é a emoção e como deve ser naturalmente transmitida. Muitas vezes ouvimos uma voz estereotipada, cheia de efeitos, mas que não nos emociona porque o efeito fica à frente da palavra, nos distanciando da compreensão do texto. O ideal é que a palavra seja clara e interpretada corretamente conforme a emoção. A: E como trabalhar tecnicamente a emoção? B: Primeiro o ator precisa entender a emoção. Então ele escolhe o timbre, a intensidade, o tom ideal, o aspecto psicológico do personagem, a personalidade, etc. É necessário expressar de forma correta, com a voz natural, sem precisar modificá-la. Caso o ator faça um personagem caricato, imitação, voz jocosa, voz gutural ou hipernasal, onomatopeias, ruídos, então ele vai utilizar os timbres característicos que são modificados no aparelho fonatório.
A: Quando você diz sobre fala jocosa, me vêm à cabeça regionalismo, sotaque. Queria saber o que você pensa sobre essa questão. B: Tenho um exemplo bem prático. Trabalhei a prosódia da Mini Série Liberdade Liberdade da Rede Globo – que se passou em Minas Gerais – com direção de Vinicius Coimbra. Fui chamada porque ele não queria que os atores falassem de forma excessivamente caipira. Essa forma de falar representa pessoas do meio rural que não falam da mesma forma que as pessoas que vivem nas regiões urbanas. A novela se passou no século XVII e não existiram registros em áudio dessa época, ninguém sabia como eles falavam exatamente e com certeza haviam influências de Índios, portugueses e africanos. Como não tínhamos referências, optamos por uma forma de falar. Então fizemos vários workshops com os atores usando a prosódia “mineirês”. Sou mineira e sugeri que eles imitassem meu sotaque com certo exagero para depois “limparmos” os excessos, deixando que a voz soasse de uma forma leve e natural. O mesmo aconteceu com a Mini Série Justiça também na Rede Globo, com direção de José Luiz Vilamarim. Ela se passou em Pernambuco. O diretor me pediu que o sotaque “pernambuquês” dos atores e que utilizassem o “di” “ti” e “tu” característico da região. Isso facilitou muito porque não existia uma tentativa artificial ou caricata de falar com o sotaque original. O resultado foi que eles falavam a prosódia de forma leve, inclusive os atores que já moravam em Pernambuco.
Isso tem sido uma preocupação principalmente da Globo, porque a imitação corre o risco de exagerar, e o exagero traz o riso. Às vezes o ator fala algo triste e as pessoas acham graça, porque está falando de uma maneira exagerada, caricata. O segredo para o ator não errar a medida da prosódia é não exagerar. Esse é o meu conselho. A: Sobre exageros, quando o teatro foi avançando para a contemporaneidade, surgiram outras possibilidades de usos da voz, incluindo gritos, grunhidos, gemidos, sons guturais. Existe uma maneira de trabalhar com esses elementos sem agredir a voz? B: Existem técnicas de gritar para não ferir a voz, mas poucos usam. Geralmente o ator que grita muito força as pregas vocais e só depois que fica rouco é começa a cuidar da voz. Existem técnicas de proteção sim e é necessário ter uma certa disciplina de preparar a laringe e conseguir gritar e emitir sons que não machuquem tanto. É importante ter um profissional da voz que oriente e ensine as técnicas que protegem a voz. A: Essa discussão também atinge uma questão moral. O grito, esteticamente, pode ser necessário, mas ao mesmo tempo ele agride... B: O ator que fala muito gritado esteticamente incomoda o ouvinte. Hoje em dia o grito é menos utilizado em função dos cuidados com a voz. A questão não é isentar o grito de uma interpretação. Muitas vezes é necessário gritar como forma de expressão e para isso é preciso preparo e proteção.
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Este artigo propõe o uso dos jogos teatrais na formação do acrobata circense. Primeiramente traz uma retrospectiva histórica do circo destacando suas correlações com o teatro e pontuando questões sobre a formação técnica do acrobata. Depois são feitas considerações sobre os jogos teatrais identificando-se a contribuição destes para o desenvolvimento da expressividade/presença de palco tanto do ator como do acrobata circense. Palavras-chave: Expressividade – Circo – Acrobata – Jogos Teatrais
O USO DOS JOGOS TEATRAIS NA FORMAÇÃO DO ACRÓBATA CIRCENSE Cristiane Soffiatti Zolet1
Orientador: Prof. Dr. Ismael Scheffler2
1. Introdução
Este artigo é requisito de avaliação parcial para a conclusão do curso de pós-graduação em Atividades Acrobáticas do Circo e da Ginástica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Nele serão apresentadas as contribuições que os jogos teatrais podem trazer para a formação do acrobata circense. Neste trabalho, o uso do termo acrobata faz referência às diversas variedades circenses que exijam o
treinamento de habilidades especificas, como equilibristas, malabaristas, contorcionistas, aerialistas, etc. O clown, por se tratar de uma modalidade que prescinde de outras habilidades e técnicas mais específicas e que tende mais para o lado teatral, não será abordado de forma aprofundada. Nas últimas décadas a maioria das pesquisas desenvolvidas em torno das acrobacias circenses são voltadas à mecânica dos movimentos, na área da Educação Física. Esta pesquisa, por sua
Cristiane Zolet, formada pela UP, pós-graduada em Atividades Acrobáticas do Circo pela PUC-PR e cursando atualmente Bacharelado e Licenciatura em Dança pela FAP (Unespar). Está envolvida no meio circense desde 2008 atuando hoje como professora de circo e como artista em espetáculos e eventos. Sua pesquisa prática e teórica está voltada especialmente às técnicas de acrobacias aéreas, equilíbrio sobre as mãos e duos acrobáticos, e ao desenvolvimentos de aspectos da expressividade corporal e teatralidade circense. 1
Professor na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Curitiba, Doutor em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. 2
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vez, pretende contribuir para a manutenção da essência artística do circo, trazendo aspectos da expressividade cênica que podem ser relevantes para o próprio artista e para os professores e diretores circenses. A escolha desse tema partiu de um interesse pessoal baseado na minha experiência como artista e professora circenses. Desde o inicio do meu envolvimento e posterior trabalho com as artes do circo venho pesquisando formas de desenvolver certas qualidades ex-
pressivas que tornam as apresentações mais orgânicas e atraentes para o espectador. Isso me levou a ampliar meus estudos para outras áreas artísticas, como o teatro e a dança, me colocando então em contato com os jogos teatrais, e é este tema que desenvolvo neste artigo. Inicialmente apresento uma retrospectiva histórica do circo desde o seu nascimento no século XVIII até os dias atuais, baseada em autores de referência sobre o assunto no Brasil como Mario Bolognesi e Erminia Silva, para perceber como o teatro dialogou com o circo ao longo dos anos e entender do que se trata o circo contemporâneo que surgiu nas ultimas décadas. Na segunda parte busquei, em artigos e livros da área teatral, conceitos de expressividade e presença de palco, assim como estudos que defendem a improvisação como essencial ao desenvolvimento de habilidades necessárias para que se possa ter vivacidade em cena.
O professor francês Charles Dullin, a pesquisadora norte-americana Viola Spolin e o ator e diretor curitibano Mauro Zanatta são alguns nomes nos quais referenciei minha pesquisa. A correlação entre teatro e circo que proponho neste trabalho é o uso dos jogos teatrais como parte do processo de desenvolvimento da expressividade do acrobata circense. Historicamente, tal artista tem como propósito a demonstração de habilidades sobre-humanas e virtuosísticas nos espetáculos de circo. O público contemporâneo, porém, parece já não se satisfazer com este tipo de espetáculo, visto as dificuldades que muitos circos tradicionais estão passando. O que se percebe, na área do teatro e da dança, e recentemente também no circo, é uma maior aproximação do artista com o seu público, valorizando a capacidade do artista estar presente e sensível a si, ao meio e ao outro (ator e público).
2. Breve contexto histórico do circo e a formação pela imitação tecnicista Para desenvolver esta pesquisa, acredito ser importante fazer uma breve retrospectiva histórica sobre as artes circenses. No Brasil, embora a bibliografia sobre o circo ainda seja muito restrita, dispomos dos estudos de Mario Bolognesi (2003) e Erminia Silva (2007), ambos advindos de famílias circenses e que vêm se dedicando à pesquisa acadêmica desta arte. Os autores apontam a origem do circo na Europa do final do século XVIII. Inicialmente, o espetáculo consolidado por Philip Astley em Londres, em 1769, era composto basicamente por números equestres, numa modalidade chamada volteio, que consistia na realização de acrobacias em cima de cavalos em uma pista circular. Após a ampliação de suas atividades para Paris, esse modelo de espetáculo foi incorporando alguns artistas de feiras locais e ciganos, tornando-se um espetáculo de variedades com números de malabarismo, acrobacias, funambulismo, animais adestrados, etc. Essa formação seria considerada a base do circo moderno, porém apenas em 1780 esse modelo de espetáculo apareceria com o nome “circo”, com o surgimento da companhia Royal Circus. 3
Segundo Silva (2003), os artistas que vieram a compor os espetáculos circenses já apresentavam habilidades múltiplas em suas apresentações nas feiras medievais: uniam teatralidade, destreza corporal, dança, música, mímica e a palavra. Faziam bastante uso da pantomima3 e adaptavam esquetes cômicas da commedia dell’arte para o clown. [...] Este tipo de espetáculo originado nas feiras […] não buscava uma forma pura, ao contrário, propunha a mistura de gêneros ou um gênero das misturas, de épocas, de tons, com audácia de linguagem, transgressão calculada, utilizando a irreverência cotidiana, as acrobacias, o jogo de palavras, a sátira, os sarcasmos, as ironias e piadas a granel. (SILVA, 2007, p.39)
Até 1864, em Paris, o uso da palavra em cena era privilégio apenas das peças teatrais. Os artistas circenses por sua vez, também “comportavam seu lado ‘teatral’, pois esquetes adaptadas dos roteiros da commedia dell’arte e dos teatros das feiras eram igualmente apresentados, sob a presença imperativa do clown mímico [...].” (BOLOGNESI, 2006, p.10) Os primeiros clowns tinham desempenho exclusivamente físico, parodiando as atrações do próprio espetáculo circense. A partir de 1864, quando Napoleão III pôs fim à política de privilégios, os circos começaram a utilizar também a intercena dialogada. Os clowns incorporaram a comicidade das palavras, solidificando uma dupla cômica: o branco, a encarnação do patrão, o intelectual, a pessoa cerebral; e o augusto, o bobo, o eterno perdedor, o emocional. O augusto aparece sempre sujeito ao domínio do branco, mas, normalmente, acaba superando-o fazendo triunfar a pureza sobre a malícia. Essa dupla veio a solidificar as máscaras cômicas da sociedade de classes, o branco como a voz da ordem e o augusto como o marginal. (BOLOGNESI, 2003) A comicidade produzida pelas intrigas das duplas, gerando situações ambíguas e confusões de identidade, já era utilizada com frequência pelos cômicos dell’arte desde o século XVI. Estes preservavam os tipos fixos de personalidades da sociedade da época, atuando com máscaras e grande destreza corporal. O público, que era em sua maioria pessoal de classes mais baixas, imediatamente reconheciam os personagens e se identificavam com a temática.
Representação teatral em que a palavra é substituída por gestos e atitudes. (Dicio, 2016)
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O servo esfomeado e atrapalhado era representado como Arlequim; o velho, rico e tolo mercador aparecia como Pantaleão; Doutor era a personificação do pedantismo dos intelectuais; Capitão, o soldado que tentava, sem sucesso, conseguir a dama. A commedia dell’arte era baseada num roteiro, que servia apenas como suporte para que os atores improvisassem. “Com a repetição dessas estruturas de ações, os comediantes remontavam e associavam os elementos de seus próprios acervos artísticos, de acordo com o lugar e a ocasião, numa performance viva, que conferia espontaneidade e atualidade a cada apresentação.” (FREITAS, 2008, p.66-67) O que ocorre a partir do século XVIII, com os espetáculos de Astley, é o enquadramento dramatúrgico dos tipos cômicos para que fossem palatáveis à burguesia, classe social que ganhava força e começava a frequentar os teatros. Para tal efeito, “a dramaturgia [...] procurou estabelecer previamente aquilo que em sua manifestação original se fundamentava na improvisação e na habilidade do ator” (BOLOGNESI, 2006, p.16), resultando na formalização e estilização dos personagens da commedia dell'arte. A interpretação corporal foi cedendo posto à interpretação através do pensamento e da palavra. “As arlequinadas4, tão acrobáticas, são desqualificadas em uma sociedade que venera as boas maneiras.” (GÓIS, 2014, p.126). Entretanto, de acordo com Silva, “a introdução cada vez maior da representação e da fala contrariava alguns circenses do período, críticos, produtores e artistas teatrais.” (2007, p.42)
Pela itinerância que se estabeleceu dentre os grupos circenses, ao longo do século XIX os espetáculos proliferaram pelo mundo e foram incorporando artistas dos vários países por onde passavam, chegando ao Brasil por volta de 1830. Além de apresentações no convencional picadeiro, os números circenses também passaram a ser atração nos cafés e music-halls (casas de espetáculos de variedades). Com isso, houve uma significativa interação entre artistas circenses e artistas da área musical do país, estes participando, inclusive, dos espetáculos sob lona. “As relações entre circenses e artistas locais ampliaram as possibilidades técnicas e artísticas [...]. No mesmo sentido, as referências estéticas e tecnológicas se cruzavam e geravam experimentações cênicas e publicitárias.” (PIMENTA, 2006, p.33) O circo consolidava-se como um espaço de múltiplas linguagens artísticas, que pressupunha todo um conjunto de saberes definidores de novas formas de produção e organização de espetáculo: animais, mistura de nacionalidades, acrobacias, números aéreos, magia, shows de variedades, representações teatrais com pantomimas e entradas de palhaços com ou sem diálogos. Para os defensores do “circo puro”, era um espetáculo eclético demais [...]. (SILVA, 2007, p.51) A voz passa a ser, então, evidenciada nos espetáculos de circo, tanto em performances musicais como em representações teatrais, e, com isso, aparece a necessidade da frontalidade dos palcos italianos para melhor projeção. Surge neste momento uma nova modalidade de espetáculo: o circo-teatro. (PIMENTA, 2006) A primeira parte deste tipo de espetáculo consistia em uma apresentação dos números circenses, realizados no próprio picadeiro, e em uma segunda parte com a representação teatral, realizada sobre um palco que ficava ao fundo do picadeiro (DUARTE5 apud GÓIS, 2005, p.71). Uma das maiores transformações nos espetáculos teatrais circenses, além do âmbito estrutural, foi dramatúrgica. O público acompanhou a rápida transformação das grandes pantomimas, as quais mesclavam todos os elementos circenses para a representação muda dos episódios escolhidos e que, com a inclusão do canto e da fala, isto é, com a elaboração de diálogos como suporte para o desenvolvimento das tramas, exigiu que o trabalho dos artistas circenses se transformasse. A performance perdeu parte de seu apelo acrobático, corporal, e passou a apoiar-se também no desempenho vocal. (PIMENTA, 2006, p.33) O circo-teatro se desenvolveu e se consolidou até o final da década de 1920. “A mudança no perfil do repertório circense confluiu para a intensificação na abertura de outras inter-relações artísticas” (PIMENTA, 2006, p.35), que nas décadas seguintes foram repudiadas por alguns circenses defensores do circo purista. Estes consideravam o circo-teatro responsável pela distorção do que seria um verdadeiro espetáculo circense.
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Como eram conhecidas as truanices e palhaçadas de Arlequim. (Dicio, 2016)
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DUARTE, Regina Horta. Noites circenses – Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas, SP. Editora Unicamp, 1995, p.203.
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Surge aí, o modelo de espetáculo que hoje chamamos de “tradicional”, que “investiu e encontrou uma especificidade cênica: ele se depurou enquanto linguagem, aprofundando o fator acrobático e feérico6, a ponto de conseguir se desvencilhar, quase que totalmente, da dependência da cena teatral.” (BOLOGNESI, 2006, p.13) Mario Bolognesi (2006) considera o termo “tradicional” impróprio para designar o circo purista do final do século XX. Compartilho da mesma opinião, pois, visto seu contexto histórico, fica claro que desde seu nascedouro (sec. XVIII), “o circo se estrutura como acontecimento artístico variado e, como tal, sujeito à influência de múltiplas linguagens”, destaca Silva (2007, p.16). Portanto, o verdadeiro “tradicional” seria este circo híbrido, que volta a acontecer ao longo das décadas de 1970 e 1980. O “Novo Circo” ou “Circo Contemporâneo” traz novamente a fusão entre elementos do circo, do teatro e da dança, porém de forma mais orgânica e fluída, compondo um espetáculo que busca envolver o público não apenas pela destreza corporal dos acrobatas ou pelas piadas dos palhaços, mas pela presença sensível dos artistas no palco. Em entrevista para o programa televisivo Teatro e Circunstância: Territórios do imaginário (2014), Rodrigo Matheus, diretor da Cia Circo Mínimo, cita dois pontos principais para o surgimento do novo circo: o primeiro seria o surgimento das escolas de circo que permitiram que outros artistas e/ou pessoas com formações diversas tenham acesso às técnicas e aos conhecimentos circenses; o segundo é o circo ter ganho outros espaços de apresentação além da lona, surgindo assim, grupos estáveis (não itinerantes) nas grandes cidades. As escolas de circo aparecem a partir dos anos 1970, tanto no Brasil como em outros lugares do mundo. Na França, em 1972 é fundada a Ècole Nationale du Cirque e em 1974 o Centre de Formation des Arts et Techniques du Cirque et du Mime, ambas as escolas com aulas de dança, teatro e mímica além das técnicas acrobáticas.
Na Itália, em 1988 foi criada a Accademia d’Arte Circense e no Brasil, em 1982, nasce a Escola Nacional de Circo no Rio de Janeiro. Em 1985, com o objetivo de elevar o circo do espetáculo-esporte para a verdadeira criação artística, Bernar Turin abre, na França, o Centre National des Arts du Cirque. Turin7 defende que: Deve existir da mesma forma regularidade nos ensinamentos de base: dança, interpretação e acrobacia, nos ensinamentos artísticos e naqueles gerais. Os professores devem permitir aos alunos atingir as reservas necessárias para alimentar as suas reflexões, a sua criatividade e os seus conhecimentos gerais. (apud GÓIS, 2014, p.133) Ainda segundo Góis, “essas escolas, além de tantas outras, deram a possibilidade do povoamento dos circos, novos e tradicionais, com artistas preocupados em apresentar seus números com uma qualidade teatral e de dança.” (2005, p.75) Esta inter-relação de áreas, não apenas proporcionou mudanças na cena do picadeiro, como também levou espetáculos de circo a palcos normalmente utilizados apenas para espetáculos de teatro e dança. Além disso, levou a incorporação de práticas cênicas, bem como de vocabulário técnico, distintos do circo feérico mais tradicional, modificando os processos de criação artística circense. De acordo com Reg Bolton8 (apud GÓIS, 2005, p.72) o “Novo Circo” se diferencia do “Tradicional” (início do sec. XX) principalmente por: ser praticado por diversos artistas e não mais fechado numa comunidade de famílias do circo; ser aberto a inovações; seus espetáculos serem construídos em torno de uma temática e não mais como apenas uma sequência de números isolados; não conter animais; não serem necessariamente itinerantes. Diferentemente também do circo-teatro do século XIX, que consistia em dois atos separados, um de circo e outro de teatro, o circo novo une essas duas linguagens em uma coisa só, onde o virtuosismo (e o espetáculo como um todo) se presta a transmitir um conteúdo com uma forma narrativa, verbal ou
não, e uma poética, não se reduzindo ao exibicionismo, conforme afirma Luciano Draetta (NOVO CIRCO, 2014), diretor da Cia Circo Navegador. Marcus Góis complementa que o novo circo é “capaz de unir as artes cênicas através do corpo [...], devido à necessidade de concentração do acrobata e a não separação do ator-dançarino” (2014, p.135). O circo, desde os seus primórdios, carrega o virtuosismo como foco de seus espetáculos. Marco Vettore (NOVO CIRCO, 2014), diretor da companhia circense Nau de Ícaros, define a virtuose circense como sendo “as grandes dimensões”, movimentos sobre-humanos, feitos incríveis, que apenas uma minoria conseguiria realizar. Os palhaços, por exemplo, “impressionavam pela destreza, por sua habilidade de tocar seus instrumentos e cantar enquanto executavam acrobacias. O foco não estava nas sutilezas de interpretação, mas na comicidade das letras das paródias, no duplo sentido e até no timbre rústico e caricato das vozes.” (PIMENTA, 2006, p.32-33) Já o circo novo busca valorizar também as “pequenas dimensões”, as sutilezas do espetáculo, e por isso vai de encontro à dança e ao teatro. Para Vettore: São os pequenos movimentos, as pequenas alterações de eixo da realidade, que me possibilitam alterar a realidade de uma maneira que ainda tenho o expectador muito próximo, pra quando eu quiser usar a técnica mais refinada e me exibir, por querer chegar em uma situação ou sensação de grande impacto, eu me lanço ao grande voo. (NOVO CIRCO, 2014)
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Que faz parte de um mundo de fantasia; mágico; deslumbrante. (Dicio, 2016)
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TURIN, Bernard. Il circo e la scena – Forme dello spettacolo contemporâneo. Editora La Bienal di Venezia. Veneza, 2001, p.27.
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BOLTON, Reg. New Circus. Editora Calouste Gulbenkian Fundation. Londres, 1987, p.07.
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Algo que diversos artistas se interessam hoje em dia, não apenas no meio circense, mas no meio das artes cênicas em geral, é o desenvolvimento de uma comunicação com o público. Rodrigo Matheus (NOVO CIRCO, 2014) cita a influência da dança no novo circo, que, através do desenvolvimento do lado mais sensível do artista, permite o surgimento de linguagens que são mais próximas do ser humano comum. Mas como trabalhar essa identificação com o ser humano comum, porém sem deixar de lado as acrobacias, que são parte fundamental da arte circense? A acrobacia está diretamente ligada ao virtuosismo, “algo magnífico que dá a sensação de inalcançável.
Desafiar a lei da gravidade com movimentos totalmente extra cotidianos, de risco, como um salto mortal, é exemplo de tal característica.” (NASCIMENTO, 2014, p.17) A preparação física é extremamente necessária para que o “atleta-artista” seja capaz de realizar os movimentos, porém o treinamento exclusivamente atlético pode tornar suas apresentações mecânicas e demasiadamente técnicas. Além disso, o risco de morte iminente que acompanha o acrobata pode gerar um embate psicológico e frear seu desenvolvimento expressivo em cena. Uma das práticas que tem sido desenvolvidas ao longo do século XX no teatro é o uso de jogos como forma
de desenvolver certas habilidades dos atores. Com a aproximação do circo com o teatro, nas últimas décadas, esta prática pedagógica também tem sido incorporada na preparação do artista circense. Os jogos teatrais não substituem o treinamento técnico do acrobata, mas possibilitam o desenvolvimento da espontaneidade, necessária ao comportamento fluente e orgânico de palco, e também funcionam como preparação psicológica para que artista consiga melhorar seu desempenho técnico. O corpo acrobático já é um corpo por si só expressivo, porém quando se apropria dos recursos do teatro e da dança ele se expande e se abre para a comunicação com o mundo de modo mais amplo.
3. O jogo teatral como recurso pedagógico O ensino tradicional do circo, assim como o do teatro, era essencialmente técnico e baseado no mimetismo, ou seja, o aluno imitava o professor ou o mestre, e acabava por se construir artificialmente. Viola Spolin (1979) e Mauro Zanatta (apud SCHEFFLER, 2010) se referem às técnicas teatrais como acervos de truques que engessam o ator quando este se restringe a elas. Porém no vocabulário circenses utiliza-se exatamente a palavra “truque” para designar os movimentos codificados por determinada modalidade. Por exemplo, para o tecido acrobático existe um acervo de truques pré-definidos para serem utilizados pelo artista quando este deseja montar um número. O que acontece, porém, é que as apresentações correm o risco de ficarem limitadas e repetitivas. Por volta de 1920, no área do teatro, muitos professores preocupados com a formação do ator passaram a buscar novos métodos que valorizassem a autoexpressão, as subjetividades e aspectos inerentes ao indivíduo. (SCHEFFLER, 2013) Um deles foi o professor francês Charles Dullin
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(1946), que em seu livro Souvenirs et notes de travail d’un acteur [Lembranças e notas de trabalho de um ator] propõe a improvisação (ou jogo dramático) como forma a favorecer o autoconhecimento e o desenvolvimento da personalidade própria de cada aluno, por colocá-lo numa posição ativa investigativa. (apud SCHEFFLER, 2013) O meio circense, mais recentemente, também vem sofrendo transformações neste sentido, como foi apresentado na primeira parte deste artigo. A improvisação é base do trabalho de Mauro Zanatta, ator, diretor e professor na Escola do Ator Cômico (atual Espaço Excêntrico Mauro Zanatta) em Curitiba. Em entrevista concedida ao pesquisador Ismael Scheffler (2010), Zanatta explica que em suas aulas para atores e não-atores ele utiliza o jogo para trabalhar questões como a exposição diante do olhar do público, o risco de errar, a capacidade de estar concentrado no desempenho da cena sem perder a percepção do exterior (o parceiro de cena e o público), bem como a manutenção da espontaneidade mesmo em situações ensaiadas previamente.
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Além disso, também permite que o aluno reconheça sua estrutura pessoal e social e seja capaz de encontrar seus próprios meios de expressão. Para Jean-Marie Conty9 (apud SCHEFFLER, 2013), os exercícios de improvisação ou jogos dramáticos não se constituem em si espetáculos, mas ajudam o ser humano a tomar consciência, despertar e controlar seus sentimentos, e assim compartilha-los com a plateia. Zanatta (apud SCHEFFLER, 2010) reconhece o jogo e a improvisação como fundamentais a todas as linguagens artísticas e até mesmo para não-artistas, pois potencializam a capacidade do individuo de se relacionar e de estar pleno em suas ações cotidianas. A norte-americana Viola Spolin destaca que o prazer que os jogos proporcionam faz com que a pessoa esteja aberta a receber novos estímulos. No exato momento em que a pessoa está 9
jogando e divertindo-se ao máximo “a liberdade pessoal é liberada, e a pessoa como um todo é física, intelectual e intuitivamente despertada”. (1979, p.05) Para o acrobata, que segue um treino rígido e desgastante fisicamente, os jogos podem contribuir para liberar tensões que o impedem de estender seus limites. Além disso, a rotina de exercícios pode se tornar mais interessante ao permitir que o acrobata encontre outros meios de execução dos mesmos. A tensão e a incerteza desempenhada no jogo também tem papel fundamental neste processo, pois “implica no esforço dos jogadores para chegar até o desenlace e a improvisação espontânea de ações, para vencer o imprevisto” (1992, p.48), explica Ingrid Koudela, professora e tradutora de Viola Spolin no Brasil. A habilidade para resolver imprevistos, no caso do acrobata, é mais do que apenas evitar
um erro em cena, é evitar um acidente e até a morte. Sonia Machado de Azevedo ao se referir aos jogos teatrais destaca as vantagens destes em relação às pedagogias tecnicistas afirmando que “a capacidade individual de suportar a ausência de uma resposta rápida e pronta (definitiva), aliada à capacidade de livremente experimentar (sem padrões rígidos de acerto e erro, sem autocrítica acirrada) permitem ao intérprete a vitalidade criativa” (2009, p.188), tão importante ao seu desempenho no palco e, no caso do circenses, essencial para a criação de números mais ousados e com novas dinâmicas. Zanatta (apud SCHEFFLER, 2010), assim como Spolin (1979), acredita que os jogos, por tornarem o jogador mais espontâneo, fazem com que o ser humano agilize seu pensamento, se torne mais intuitivo e comece a usar outros elementos do seu corpo para se expressar.
CONTY, Jean-Marie. Inventer son corps: l’athéte, l’acteur et l,expression corporalle. Circulair Intérieure. CID - Culture par l‘Initiation Dramatique. nº1, 1º dec. 1944. [sem paginação].
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Essas habilidades não são possíveis de se desenvolver com um trabalho exclusivamente técnico. Spolin afirma que quando se separa as técnicas da experiência direta do ser humano a arte se torna estática, “o crescimento tanto do indivíduo como da forma sofrem [...] e é invariavelmente refletida em seu desempenho”. (1979, p.1213) Os jogos não substituem o domínio técnico necessário ao acrobata, mas podem acrescentar outras virtudes, tornando-o mais expressivo em cena. Spolin acredita que a infinita potencialidade do ser humano está diretamente ligada à sua capacidade de experienciar e de envolver-se organicamente com o ambiente ao seu redor. Para Dullin10, o princípio para a formação do ator era conduzir o aluno à percepção do mundo exterior por meio dos cinco sentidos, o que ele denominou de a voz do mundo. O contato com a voz do mundo iria fazer surgir a voz que vem do interior do indivíduo, a qual chamou de a voz de si mesmo, e deste encontro então nasceria a expressão. (apud SCHEFFLER, 2013) Sendo o risco e a reação da plateia fundamentais pro número acrobático pelos vínculos que se estabelecem, desenvolver a capacidade de perceber o público e o ambiente mantendo a concentração em si mesmo e em seu parceiro de cena (no caso de duos ou trios acrobáticos) são habilidades necessárias ao acrobata para que suas apresentações não se tornem mecânicas e inexpressivas. Quando essa conexão entre as dimensões interior e exterior do ator pode ser sentida e vivenciada também pelo espectador, tal “ressonância” faz com que a atenção do espectador mantenha-se ativa e, de um observador silencioso, passe a ser um membro do grupo com o qual o artista está compartilhando estados emocionais. (SPOLIN, 1979) Quando se fala em presença cênica, estamos querendo dizer, literalmente, estar presente; estar no presente; estar aqui e agora. (SPOLIN, 2001) O acrobata, mais do que qualquer outro artista, necessita estar verdadeiramente presente, não só para ser mais expressivo em cena mas também para realizar os elementos acrobáticos de forma segura. Sonia Azevedo defende que: Não é o movimento em cena que causa a intensidade da presença; muitas vezes, um ator imóvel num canto do espaço capta e centraliza toda nossa atenção. [...] Quando um ator está realmente presente, concentrado no que faz, seu corpo ilumina-se. Toda a sua energia está voltada, todo o tempo, para os objetivos a que se propôs: uma grande integração entre seu corpo, seus afetos e sua mente manifesta-se num tipo especial de brilho. É esse brilho o resultado de sua energia vital corretamente direcionada; esse estado de inteireza garante ao ator uma marcante presença [...] e define a cada momento a qualidade sensível de suas ações, tornando-se críveis e, portanto, verdadeiras. (2009, p.178-180) Para atingir essa qualidade cênica não existe uma receita pronta que se possa repassar para o aluno. Porém, ela pode ser desenvolvida através de trabalhos que liberem a espontaneidade do individuo, que, no conceito de Spolin, é “um momento de liberdade pessoal quando [...] as nossas mínimas partes funcionam como um todo orgânico”. (1979, p.04) Complementa ainda que a espontaneidade faz com que sejamos re-formados em nós mesmos, libertando-nos de antigos padrões que vão nos bloqueando ao longo do tempo e nos impedindo de agir de forma natural e fluída. Através do uso dos jogos, o acrobata-artista, que já dispõe de um corpo fisicamente habilidoso, poderá desenvolver também sua potencialidade interna, levando um corpo dilatado e expressivo para a cena. “Aqui, heroísmo e desejo de ultrapassagem, se chamam poesia”. (CONTY apud SCHEFFLER, 2013)
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DULLIN, Charles. Souvenirs et notes de travail d’um acteur. Paris, Odette Lieutier, 1946, p.112.
4. Considerações finais
Ao concluir este estudo percebi que os jogos teatrais têm muito a contribuir para o artista circense, seja ele acrobata, equilibrista, contorcionista, malabarista, etc. Os jogos ajudam no desenvolvimento de habilidades individuais que um treinamento exclusivamente técnico, da mecânica do movimento, não é capaz de desenvolver. Ao unir a destreza corporal do circense com a presença de palco dos atores, se abrem infinitas possibilidades de espetáculos e números que sejam também capazes de oferecer ao público um conteúdo e uma poética. Como nas últimas décadas a maioria das pesquisas que têm sido desenvolvidas sobre o circo têm sido especialmente voltadas à mecânica dos movimentos, na área da Educação Física, meu objetivo com este trabalho foi contribuir com a retomada da essência artística do circo através da pesquisa de elementos que auxiliem o acrobata em sua capacidade expressiva. Com a retrospectiva histórica pude melhor compreender a origem da arte circense e a diferença entre os ditos “circo tradicional” e “circo novo”, e ressaltar a aproximação deste último com o teatro. Em seguida busquei entender os conceitos de expressividade cênica na atualidade, sua importância para o artista e como os jogos teatrais podem colaborar para aprimorá-la. Fiquei particularmente satisfeita com esta pesquisa por me ajudar a organizar ideias dispersas com as quais me deparei ao longo dos anos no meu desenvolvimento como artista, e mais recentemente como professora. Espero que este artigo possa incentivar outros artistas e professores circenses a desenvolverem, em si e em seus alunos, as qualidades expressivas, bem como fomentar outras pesquisas nesta área.
5. Referências
AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo. Perspectiva, 2009. BOLOGNESI, Mario Fernando. Circo e teatro: aproximações e conflitos. Revista Sala Preta, São Paulo, v.6, p. 9-19, 2006. BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo. UNESP, 2003. Dicio: dicionário on-line de português. Acesso em: 15/03/2016. Disponível em: http://www.dicio.com.br/ FREITAS, Nanci de. A commedia dell’arte: máscaras, duplicidade e o riso do arlequim. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.5, n.1, p. 65-74, 2008. GÓIS, Marcus Villa. Estrada dos sonhos: uma contribuição circense na formação do ator. Salvador. UFBA, 2005. GÓIS, Marcus Villa. O corpo virtuoso: recorrências entre o teatro e o circo. Revista Diálogos Possíveis, 2014. KOUDELA, Ingrid Dormien. Jogos Teatrais. São Paulo. 3ª edição. Perspectiva, 1992. NASCIMENTO, Vinícius P. S.. Reflexões de um corpo drag-acrobático para a educação. Brasília. UnB, 2014. NOVO CIRCO, O. Teatro e circunstancia: territórios do imaginário. São Paulo. SescTV. Acesso em: 10/01/2016 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_gCoah9Tlhc PIMENTA, Daniela. A conformação do circo-teatro brasileiro: permeabilidade a apropriação. Revista Sala Preta, São Paulo, v.6, p. 30-39, 2006. SCHEFFLER, Ismael. A formação do ator na Escola do Ator Cômico. Revista Cena. UFRGS, v.8, p. 30-66, 2010. SCHEFFLER, Ismael. O laboratório de estudo do movimento e o percurso de formação de Jacques Lecoq – Vol. 2. Florianópolis, 2013. SILVA, Erminia. Circo-teatro: Benjamin de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo. Altana, 2007. SPOLIN, Viola. Improvisação para teatro. São Paulo. Perspectiva, 1979.
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CrĂŠdito: Diego Bresani
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UMA CARTA DE FIO A FIO Janaína Moraes1
Édi Oliveira e Giselle Rodrigues, Eu me chamo Janaína e, a convite de meu amigo e crítico Danilo Castro, me arrisco a escrever minha primeira crítica em Dança. Escolhi o formato de carta-crítica2 por acreditar nessa genuína proposta em que o afeto passa a ser o ponto de partida para uma crítica em arte. Como uma carta, nada mais apropriado do que enfatizar meu particular prévio respeito pelo trabalho e história da dança em Brasília que vocês representam. Ontem, ao assistir o espetáculo Fio a fio no Prêmio Sesc do Teatro Candango, via suscitar em mim sensações e imagens atreladas de memórias (talvez estas memórias mais inventadas do que de fato vividas, mas nem por isso menos reais) de um envelhecimento presente. Os dois corpos mostrados entre o ato de vestir-se e despir-se, junto aos encontros que permitiam nascer danças sutis alcançou-me com extrema sensibilidade. Perguntei-me, por algumas vezes, sobre as escolhas das repetições no espaço, entre as ações de sentar o outro à cadeira e deitar-se ao chão, que esboçavam uma transformação do movimento que, a meu ver, não chegou a acontecer tal qual a expectativa que por ora me havia gerado. Nessa carta, então, aproveito para voltar a pergunta a vocês: havia, de fato, a escolha em permanecer em uma dinâmica linear da repetição? Reforço que minha pergunta se faz numa tentativa de compartilhar das impressões de uma jovem coreógrafa cujo trabalho de dois coreógrafos que compõem minha lista de referências me fez repensar questões sobre tempo e espaço. Ainda, me destino particularmente à Giselle em relação a sua presença neste específico trabalho que, em contraponto à presença de Édi, me dava a impressão de um leve apagamento do estado de presença feminino. Digo isto por reconhecer a potência de seus trabalhos e, claro, levando em consideração que os signos e símbolos da dança sempre produzem textos “a partir de”. Nesta ocasião, os contextos culturais e sociais não me permitem ignorar que a presença de um corpo feminino e um corpo masculino em cena me levarão diretamente a diversas questões de gênero. Assim, ao me deparar com a mulher sempre sendo carregada, ou lançada aos pés, ou com a fala cortada, mais esquecida ou, talvez, “acuada”, me leva a questionar os estados de presença propostos durante o espetáculo. Para finalizar, deixo mais uma vez minha admiração pelos profissionais e espero ter sido clara nesse desafio que é a escrita crítica no seu sentido de “fazer pensar”, Fio a fio ao invés do senso comum atribuído à palavra crítica, associando-a a “achar problemas ou julgar”. Ainda, aproveito para agradecer ao Danilo pela oportunidade de me despertar novas maneiras de atuar artisticamente, no pensar e fazer que é a Dança. Com respeito e carinho, Janaína Moraes.
Janaína Moraes é dançarina e emergente coreógrafa-diretora. Pós-graduanda em Estudos Contemporâneos em Dança - lato sensu (UFBA) e Licenciada em Dança pelo Instituto Federal de Brasília (20102014). Na Austrália (2014-2016), desenvolveu os trabalhos: Waiting Room (Fringe World Festival/ Perth Centre for Photography), Encounters (Short Cuts/STRUT Dance) e A Picnic (The Kiss Club/CIA Studios). Fundou o Coletivo e o Escambau (20142015) onde realizou as obras “Sala de Espera”, “Imagens do Não Visto”, e “Quanto de Mim Ainda me Resta?”. Percorre o campo da improvisação na dança contemporânea, com interesse nas relações entre criadores, cena e espectadores. 1
As cartas-críticas são uma proposta de crítica defendida pelo artista e jornalista Danilo Castro, em pesquisa atualmente em desenvolvimento no Mestrado em Artes Cênicas do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília/UnB. 2
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CRIAÇÃO COLETIVA DE FIGURINO NO GRUPO TEATRO DO CANTO Luisa Wolff1
O grupo Teatro do Canto possui processos criativos muito interessantes e enriquecedores, que serão explorados a fundo nesta pesquisa. Um dos principais pontos relevantes observados neste grupo teatral é a questão de trazerem o envolvimento pessoal da comunidade entre si, para adentrar cada indivíduo nas atividades do Teatro, através de reuniões abertas a quem quisesse participar. Isso é aplicado através do conceito de festas, elucidado por Amaral, ao que cita Durkheim como: Durkheim diz [que], com o tempo, a consciência coletiva tende a perder suas forças. Logo, são imprescindíveis tanto as cerimônias festivas quanto os rituais religiosos para reavivar os ‘laços sociais’ que correm, sempre, o risco de se desfazerem. Neste sentido, poderíamos imaginar que, quanto mais festas um dado grupo ou sociedade realizam, maiores seriam as forças na direção do rompimento social às quais elas resistem. As festas seriam uma força no sentido contrário ao da dissolução social. (DURKHEIM, apud AMARAL, 1998, sem paginação). Dessa forma, as reuniões eram descontraídas e envolventes, com todos os membros. Homens, mulheres, crianças cumprimentavam-se saudosos, como se acabassem de chegar a um evento festivo, contando causos da semana, trazendo novidades. Isso fornecia a sensação de mais do que mero pertencimento ao grupo, mas de participação na construção do evento em si. Nas palavras de Tavares (2007), a festa é uma experiência que faz emergir tanto as diferenças quanto as semelhanças, sendo possível a todas as pessoas, tem como função principal a socialização, a agregação. A festa torna-se então uma forma de integrar diferentes pessoas e vivencias, de forma comprometedora e enriquecedora. A respeito disso, Tavares cita Ann Celico (1987), que escreveu sobre os benefícios de seu trabalho teatral feito com não-atores, pessoas de comunidades rurais do interior da Inglaterra. Ao ressaltar a importância de vínculos de confiança dentro do trabalho em comunidade, Jellicoe diz: Eu descobri que [...] as pessoas são muito cautelosas para se comprometerem até que estejam certas de que elas não parecerão tolas; que as pessoas irão começar hesitantemente a se doar de alguma maneira; que uma vez que as pessoas estejam seguras, elas darão e dividirão generosamente seu tempo, energia, talentos, habilidades e entusiasmo, e, quando fizerem isto, tornar-se-ão mais a vontade e amigáveis com os outros [...]. (JELLICOE, apud TAVARES, p. 53, 2007)
Luísa Wolff é formada em Design de Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina e atua como figurinista de Cinema e Teatro em Curitiba. Atualmente trabalha como Figurinista na Cia Babel, Assistente de Figurino na Vigor Mortis e Designer de Moda no Cena Hum Academia de Artes Cênicas. Tem no currículo trabalhos em videoclipe, série, curta-metragem e espetáculos teatrais. 1
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Durante essa festa que é o ensaio do grupo, as atividades de interpretação são desenvolvidas por meio dos jogos teatrais, que tem na ação coletiva uma de suas características principais (TAVARES, 2007). O jogo, mais do que divertir, é o método de integração mais forte e eficaz presente na festa. Segundo Johan Hiuzinga (1990): A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a qualquer concepção de universo. Todo ser pensante é capaz de entender à primeira vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua um termo geral capaz de defini-lo. (HIUZINGA apud TAVARES, 2007, p. 43) Como método que é, o jogo foi sistematizado para tornar-se um meio apropriado de ensino da arte teatral. Dentre as várias possibilidades de sistematização, a americana Viola Spolin elaborou um método ligado à proposta contemporânea de teatro, tendo como princípio o trabalho coletivo, o envolvimento de todo o grupo na pesquisa teatral, valorizando a criação coletiva. Seu livro é o primeiro manual no gênero sobre a construção de processos teatrais com base em jogos improvisados (TAVARES, 2007). Qualquer indivíduo pode exercitar o teatro através das experiências proporcionadas pelos jogos e, por tal, é o método aplicado no desenvolvimento do grupo em estudo. Tavares explica o método Spoliniano, que é basicamente a divisão de técnicas teatrais complexas em três segmentos, onde, quem e o que: [...] Três elementos da linguagem teatral são selecionados vez a vez como foco de investigação: a percepção espacial e cenográfica, o espaço ficcional (ONDE), a construção do personagem (QUEM) e elementos do desenvolvimento da ação dramática (O QUE). (TAVARES, 2007, p. 45) No grupo de estudo, pode-se correlacionar da seguinte forma: ONDE – Canto da Lagoa; QUEM – Camarões que simbolizam de forma lúdica a comunidade; O QUE – a influência da especulação imobiliária na vida da comunidade. No desenvolvimento desse aprendizado, é constante a intervenção de um professor-diretor, para relembrar ao grupo o “foco” de investigação através do qual os problemas e suas soluções serão propostos. Juliano Borba, Doutorando em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina, detém o papel de professor-diretor dentro do grupo. Mas esse professor não é um ditador, que manda e desmanda nas atividades do grupo e sim alguém que reúne seus conhecimentos técnicos e profissionais e repassa-os ao restante do grupo de forma didática, organizando os ensaios de forma que todos cresçam e o espetáculo se desenvolva da melhor maneira possível. No grupo, não há apenas a relação professor-alunos, pois todos possuem funções de acordo com o que podem e querem contribuir para a peça. A divisão sobre cada aspecto a ser trabalhado no espetáculo ocorre por comissões: dramaturgia (que envolve o texto e métodos de aprimorar o espetáculo), produção (que envolve iluminação, cenário e figurino), financeiro (que envolve compras, investimentos e custos do grupo no geral) são as principais. Qualquer pessoa pode participar de qualquer comissão, basta ter iniciativa e afinidade com o tema. Quem pode contribuir com conhecimentos técnicos para tal área dispõe-se a trabalhar junto a quem talvez não possua os conhecimentos técnicos, mas está disposto a aprender e trazer seus próprios conhecimentos para enriquecer tal área. No que diz respeito à construção da linguagem estética e teatral do grupo, Borba utiliza-se dos aprendizados relatados a partir da análise dos grupos de Buenos Aires, em seus três artigos publicados a respeito. Segundo Borba, esta linguagem é desenvolvida considerando alguns problemas vividos no grupo como o treinamento e incorporação contínua de novos membros (BORBA, 2012). Como solução, evitam-se conflitos psicológicos para que a construção dramatúrgica possa dar conta, ao mesmo tempo, de dar espaço para um grande número
de atores, cantores e músicas, e de envolver as histórias locais na construção das cenas e do espetáculo (BORBA, 2012). Assim, são trabalhadas imagens e situações episódicas geradas a partir de personagens alegóricos e canções cantadas em coro que se relacionam entre si a partir da temática principal, ao invés de toda a história ser composta de forma linear a partir de complexidades psicológicas individualizadas. Sobre isso, Borba argumenta que: Tal perspectiva estética surge dessas necessidades específicas desse teatro inclusivo e realizado por um grupo com muitos integrantes. Música e personagens-tipo bem desenhados facilitam construção de um espetáculo base- ado na imagem e no som, em que o texto literal proposto nas letras das músicas ajuda a uma composição visual caricatural e grotesca. (BORBA, 2012, sem paginação). Em entrevista cedida a pesquisadora, Borba observou que o teatro comunitário se diferencia dos grupos universitários e dos grandes grupos de teatro comercial, através da utilização do espaço público para a integração da comunidade e a produção de arte. (BORBA in APÊNDICE C, 2015, p. 4142). Os grandes grupos até chegam a apresentarem-se à comunidade como forma de democratização da arte, mas, ao mostrarem grandes espetáculos, realizados com pesado investimento e técnicas profissionais, causam admiração utópica e distanciada nos espectadores, causando o pensamento de “nossa, nunca na comunidade nós conseguiríamos criar algo tão elaborado, tão grandioso.” (BORBA in APÊNDICE C, 2015, p. 42). Já o teatro comunitário, quando é apresentado em espaços públicos e retrata temas referentes ao cotidiano de cada um que ali habita causa a reflexão “Eu poderia estar ali. Na próxima semana eu posso ir ao encontro e participar. Nós que aqui moramos podemos sim produzir algo maravilhoso e eu posso fazer parte desse crescimento.” (BORBA in APÊNDICE C, 2015, p. 42).
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A peça E se fôssemos camarões?
O grupo foi um dos selecionados na edição 2015 do Prêmio Elisabete Anderle2, e pretende, com este recurso, investir no novo espetáculo teatral e musical E se fôssemos camarões?. E foi a partir desta ideologia de comunidade e métodos Spolinianos que o Teatro do Canto iniciou o processo de elaboração da peça E se fôssemos camarões?. Estabelecido como tema principal a comunidade do Canto da Lagoa, o plano de fundo da peça é a própria Lagoa da Conceição, que é tranquilamente usufruída por um coro de camarões. O conflito tem início quando Valtentin, um tubarão, propõe um projeto de progresso imobiliário danoso à comunidade e obriga os camarões a ingressar nele. A comunidade começa a se mobilizar para tentar resolver o problema e, após muitos desafios, conseguem expulsar Valentin dali. Apesar do tema da peça tratar questões como a especulação imobiliária, tudo é construído de forma lúdica e suave, com romance, piadas leves e, principalmente, uma caracterização grotesca (no sentido de exagerada e irreal) do bem versus o mal: camarões versus tubarões (animal que não habita a Lagoa da Conceição, mas carrega uma imagem forte de poder e brutalidade).
Figurino O figurino é o conjunto de elementos concretos, acessórios e roupas usadas pelo ator em cena. De acordo com Girard e Ouellet (1980), A indumentária abrange todos os objetos, para além da máscara e do penteado, com que o ator se reveste para se apresentar em ‘cena’: fato, joias e até alguns adereços que, num determinado código cultural, fazem parte do equipamento banal (a espada, por exemplo), adereços que se integram na indumentária na medida em que, na representação, são utilizados por si próprios. (GIRARD E OUELLET, 1980, p.69)
O figurino, também chamado de traje de cena, é muito mais do que apenas indumentária, pois ele faz parte da concretização visual do personagem. Conforme o artigo de Renata Perito e Sandra Rech (2012) o figurino é tido como uma segunda pele que, ao revestir o ator, possuir como função exprimir certas características que devem ser compreendidas, me maneira clara ou subjetiva, pelo espectador. Desta forma, o figurino é tido como um símbolo ou instrumento essencial da narração. Este elemento faz mais do que apenas permitir a ligação entre figura dramática e espetáculo: é parte fundamental da própria construção do personagem (RECH; PERITO, 2012).
Jean Jacques Roubine (1982), referência a respeito do figurino, enfatiza a sua contribuição para a elaboração do personagem pelo ator e também a necessidade de integração entre espetáculo e figurino, uma vez que é um conjunto de cores e formas que interfere no espaço cênico. Antes do início desta pesquisa, o grupo Teatro do Canto já utilizava uma parte do figurino: um acessório de cabeça. A partir do momento em que se definiu os camarões como o animal que representaria a comunidade e, logo, seria ele o personagem principal, foi confeccionado um adereço de cabeça em forma de rabo de camarão, observada na figura 1.
Figura 1 – Adereço de rabo de camarão.
Fonte: Imagem alterada pela autora a partir de foto cedida por Juliano Borba.
O Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura do Estado de Santa Catarina é um programa de seleção pública de projetos artísticos e culturais promovido pela Secretaria de Estado de Turismo, Cultura e Esporte, e executado pela Fundação Catarinense de Cultura. 2
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A participação e trabalho manual de todos os integrantes do grupo no feitio do figurino pelos integrantes do grupo foi fundamental na construção dos personagens para a peça. A partir da subsequente utilização dessa parte de figurino pelo grupo, figurino este que ainda estava incompleto, pois as roupas e sapatos não estavam ainda estabelecidos, o caráter performático do grupo como um todo evoluiu. A identificação dos atores com o elemento cênico rabo-de-camarão foi imediata e a construção e desenvolvimento de cada personagem enriqueceu-se doravante. Logo, nota-se na prática como o elemento figurino é fundamental não apenas na construção visual do espetáculo na apresentação, mas também desde o início de sua elaboração, na construção de cada personagem. Sendo assim, deve ser confeccionado da forma mais eficaz possível, por profissionais competentes que compreendam sua importância na obra cênica e assim busquem o melhor método A participação multidisciplinar é o ponto-chave da criação dentro do Teatro Comunitário em foco nesta pesquisa. Não apenas ocorrida como mera convivência e encontro de múltiplas áreas de conhecimento, esta forma de parceria incentiva o contato entre todos os indivíduos do grupo em alguma das artes que envolvam a concepção do teatro. Esse encontro entre pessoas distintas é enriquecedor para o desenvolvimento de cada indivíduo que participa da peça, sendo assim fundamental para o desenvolvimento do espetáculo como um todo. Assim como no Teatro Comunitário, a multidisciplinariedade é fundamental e incentivada dentro e fora da criação do espetáculo, ela é geradora também do enriquecimento de todos os integrantes do grupo teatral como indivíduos e, consequentemente, da peça como obra de arte. Sendo assim, visualiza-se a possibilidade de se trabalhar o figurino dentro dos métodos aplicados pelo grupo Teatro do Canto.
O processo de desenvolvimento do figurino da peça
A metodologia para o desenvolvimento do figurino, como importante ferramenta para a construção e representação de significados de uma peça, torna-se mais rico ao adequar-se à metodologia de criação da peça. Conforme reforça Fausto Viana: O bom traje de cena é aquele que respeita as regras de encenação propostas. Interage com o resto do espetáculo, não sendo peça alheia à sua realidade em todos os sentidos, desde o econômico até as opções estéticas a serem seguidas. (VIANA, 2014, p.29) Especificamente no Teatro do Canto, objeto foco da pesquisa, essa metodologia visualiza-se por meio de reuniões e decisões em grupo, sem restrição quanto à participação. E assim é feita a construção do figurino: pela comunidade, para a comunidade. Nesse projeto específico, cada pessoa contribui com o que pode trazer para o teatro, como linhas, máquinas de costura, tecidos, agulhas, ideias e, principalmente conhecimentos e técnicas. Neste trabalho, tem sido dada uma importância muito grande aos profissionais de moda, cenografia e teatro, e diversas são as áreas estudadas pelos participantes. Inclusive, durante o processo de desenvolvimento da peça, muitas são as vezes em que alguém aponta um ou outro curso ou oficina, públicos, todos voltados para o enriquecimento da peça e dos atores, de forma que, mesmo que apenas um integrante possa ir ao curso ou oficina, o conteúdo do curso realizado é repassado com seus conhecimentos para o resto. Assim, os participantes dos cursos não são líderes individualistas daquela área específica, e sim, mais um contribuinte para a formação de todo o espetáculo. As técnicas e experiências trazidas de fora são utilizadas de modo enriquecedor para todos, como forma de lapidar e tornar possíveis as ideias construídas em conjunto, do que para impor métodos “certos e errados” de se concretizarem as ideias. Assim, no papel de construtora de um figurino para uma peça de teatro comunitário, junto com aproximadamente vinte pessoas das mais diversas áreas e experiências de vida, a realizadora deste trabalho viu-se encaminhada a fracionar cada processo de produção. Dessa forma, para o grupo pareceu mais simples e dinâmico, confeccionar cada parte do trabalho, envolvendo a todos. Foi então dividido o processo de criação. Segundo Montanheiro (2015), o início da criação se dá na pesquisa relacionada à proposta do encenador, ao tema, ao texto, aos personagens e ao tipo de encenação em que se está trabalhando. A pesquisa possibilita conhecer qual o tipo do trabalho a ser produzido, as características deste grupo ou companhia teatral, as características físicas e posturais dos atores e então, após a observação destes aspectos, o figurinista terá embasamento e coerência para seu trabalho. Ressalta-se aqui a importância de pesquisas históricas também, em busca de uma maior investigação a respeito do tema proposto. Rosane Muniz (2004) observa que é necessário um amplo trabalho de pesquisa a cada espetáculo e durante toda a sua formação para que o figurinista tenha consciência plena do universo no qual pode estar inserida sua criação.
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No caso em estudo, a pesquisa acerca dos trabalhos já realizados pelo grupo, tal como o histórico dos integrantes e tipo de encenação proposta, é necessária e foi realizada por meio de conversas informais com os membros presentes. É através dela que se torna conhecido o fato de que, no teatro comunitário, há um grande fluxo de membros, pelo fato de que toda a comunidade está sempre convidada a ingressar espontaneamente dos ensaios e reuniões. Este fluxo reflete no figurino de forma a direcionar a confecção das indumentárias para um coro de pessoas, que independerá diretamente de quem está ali. O diretor do espetáculo, Borba (2012) justifica a escolha da perspectiva estética a partir das necessidades específicas do teatro comunitário, que é um grupo inclusivo e que conta com muitos integrantes, mantendo uma rotatividade constante de ingresso e afastamento de atores. Desta forma, o figurino principal da peça foi padronizado, tornando sua estética igual para todos. O que vai personalizar ou diferenciar cada personagem-coro na peça será o investimento em maquiagem, que é um instrumento volátil ao ator e extremamente expressivo. Após definida a padronização do figurino principal, começa-se a pensar na estética a ser representada. Para tal, reuniu-se o grupo presente na oficina de criação de figurinos, para conversar a respeito da proposta da peça. Assim, os três representantes do grupo teatral ali presentes – Juliano, Penélope e Almir, iniciaram a explicação sobre os conceitos da peça, elaborando resumos e mostrando as intenções pretendidas no espetáculo. Através da reunião de imagens, fotografias de ensaios, desenhos ilustrativos e representações pesquisadas na própria internet, deu-se a pesquisa imagética. Houve então um início de consenso a respeito da estética a ser atingida: o personagem principal como um camarão. Para entender como poderia ser representado esse conceito, precisa-se compreender quem irá assimilá-lo exteriormente. E assim iniciou-se a pesquisa a respeito do público-alvo da peça, os espectadores. Reunindo informações a respeito das apresentações já realizadas, em Florianópolis e outras cidades do estado de Santa Catarina. Compreendeu-se que o público alvo consistia em sua grande maioria de famílias, composto de senhoras à crianças da comunidade, assim como o próprio grupo.
Desta forma, para causar com leveza a identificação com o espectador da peça, são apresentados os pontos dramáticos do texto com tons de ironia e comédia, beirando um teatro Clown – o que possibilita a exploração de um figurino mais lúdico e menos apegado à realidade, permitindo brincadeiras nas formas e volumes. A partir de então, os dados coletados passaram a ser esboçados, gerando a fase dos croquis. Para acelerar o processo, foi realizado pela pesquisadora um croqui base, visto na figura 2, levando em consideração dois pontos vistos no grupo. O primeiro foi ter a maioria dos integrantes como mulheres, fazendo-se necessário a elaboração do croqui feminino para maior clareza. E o segundo foi a adição do elemento chapéu-rabo-de-camarão, que já é utilizado no grupo durante as apresentações, como ponto de partida para a harmonia do figurino como um todo.
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Figura 2 – Croqui-base.
Fonte: elaborado pela autora, 2015.
Brincou-se então com a anatomia do animal camarão, transportando e duplicando membros, gerando diversas formas de representá-lo através da indumentária. Após longa exploração das formas, chegou-se ao questionamento da possibilidade de materialização daquelas formas, como descreve Montanheiro, “a continuidade do trabalho do figurinista refere-se ao estudo das modelagens e volumes relacionados à espacialidade dos figurinos”.
Neste momento, inicia-se a fase de exploração de materiais que possibilitariam a concretização das alternativas de croquis. Assim, filtram-se as possibilidades, captando o melhor de cada esboço e buscando soluções materiais que estejam de acordo com questões técnicas como prováveis custos e a mão de obra necessária para a confecção dos cerca de 30 figurinos. Tendo em vista já esses parâmetros, esboçou-se na oficina um croqui que reuniu as melhores conclusões, visto na figura 3.
Figura 3 – Esboço inicial do figurino principal da peça E se fossemos camarões?
Fonte: elaborado pela autora, 2015.
Para testar se as formas geradas poderiam ser aplicadas aos atores, e se as ideias concebidas seriam aceitas, foi necessário o contato integral com o grupo. Nesta reunião, após contato entre todos os membros antigos e novos, como de costume ao início de cada ensaio, foram reunidos todos os participantes em roda de debate, sentados em cadeiras dentro de uma sala de aula. Foi então refeito o esboço inicial que melhor havia compreendido as necessidades vistas na pesquisa e exploração de materiais, e exposto na reunião na Escola, como visto na figura 4.
Figura 4 – Esboço do figurino principal da peça E se fôssemos camarões? em quadro branco.
Fonte: fotografia cedida por Juliano Borba, 2015.
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Em dois croquis, frente e costas, as propostas foram apresentadas e debatidas entre todos, onde cada qual complementou e contestou diversos aspectos do figurino. Foram eles: problemas de mobilidade com as patinhas dos camarões, calor proporcionado pelo provável material interno do figurino, necessidade de ter duas cabeças de camarão, comprimento do fraque nas costas,
possíveis cores e até formas de costurar cada parte. Após rica discussão, todos os pontos foram reanalisados em conjunto, dentre cerca de 25 pessoas que ali estavam presentes, cada um ressaltando algum aspecto de longe ou vindo até o quadro e desenhando por cima, de forma a elucidar a todos o que queria dizer. Chegou-se então ao que possivelmente será o modelo final, visto na figura 5.
Figura 5 – Ilustração final do figurino principal da peça E se fôssemos camarões?
Referências
AMARAL, R.. Festa à brasileira: sentidos do festejar no país que “não é sério”. São Paulo/ USP, 1998. Disponível em: www.aguaforte.com/antropologia/festaabrasileira/festa.htm > Acesso em 17 de outubro de 2015. BORBA, J. Teatro comunitário e dramaturgia do espaço público. Urdimento, Santa Catarina, n18, p. 129 – 137, março. 2012. GHISLERI, J. M. Como entender a importância do figurino no espetáculo? Florianópolis, 2001. Monografia (Graduação), UDESC, Centro de Artes. Disponível em: http://artes.com/sys/ sections.php?op=view&artid=15&npage=3 Último acesso em: 01 de outubro de 2015. GIRARD, G; OUELLET, R. O Universo do Teatro. Coimbra: Livraria Almedina, 1980. LIMA JÚNIOR, G. C. Pele do ator, pele da personagem: entre design de moda e figurino. Reflexões para a Cena Contemporânea. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2012.
Fonte: elaborado pela autora, 2015.
Assim concluiu-se o processo de elaboração do figurino principal da peça, de forma conjunta, respeitando todas as necessidades e opiniões dos envolvidos.
Considerações finais
A partir do projeto de figurino do grupo Teatro do Canto foi possível compreender os processos criativos vivenciados no Teatro Comunitário. Mais do que a pesquisa através de livros e métodos, essa foi uma pesquisa vivenciada em um processo vivo que se renovou a cada encontro com o grupo. Os integrantes apresentaram-se à autora como indivíduos dispostos a compreender o outro sem julgamentos por suas diferenças, debatendo ideias e inovações em prol do bem comum do grupo, em busca de crescimento. A vivência com o grupo, mesmo que por um curto período de tempo de cerca de três meses, fora fundamental para a compreensão e registro destes diálogos. Talvez mais tempo com o grupo revelasse outras questões a serem abordadas, cabendo esse aprofundamento a outros estudos futuros.
MONTANHEIRO, A. M. Jum nakao: A transversalidade entre a moda e o teatro na criação de trajes de cena 2015.124 f. Dissertação (Mestrado) – UDESC, Centro de Artes. RECH, S. R; PERITO, R. Z. A criação do figurino no teatro. In: COLOQUIO DE MODA, 2012, Florianópolis, Anais Eletrônicos. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com. br/anais/anais/8-Coloquio-de-Moda_2012/GT09/POSTER/102328_A_ Criacao_do_Figurino_no_Teatro.pdf Último acesso em: 13 de outubro de 2015. ROUBINE, J. J. A Linguagem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1998. TAVARES, J. P. O teatro na relação escola-comunidade. Florianópolis, 2007. Dissertação (Mestrado), UDESC, Centro de Artes. VIANA, F.. Traje de cena, traje de folguedo. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014. ______. Figurino teatral e as renovações do século XX. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
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