ESTE FOLHETO É PARTE INTEGRANTE DO ACERVO DO BEHETÇOHO EM FORMATO DIGITAL, SUA UTILIZAÇÃO É LIMITADA. DIREITOS AUTORAIS PROTEGIDOS.
INFORMAÇÕES SOBRE O PROJETO O Acervo Eletrônico de Cordéis do Behetçoho é uma iniciativa que pretende dar consequências ao conceito de (com)partilhamento dos artefatos artísticos do universo da oralidade, com o qual Behetçoho e Netlli estão profundamente comprometidos.
INFORMAÇÕES SOBRE A EQUIPE A equipe de trabalho que promoveu este primeiro momento de preparação e disponibilização do Acervo foi coordenada por Bilar Gregório e Ruan Kelvin Santos, sob supervisão de Edson Martins.
COMPOSIÇÃO DA EQUIPE Isabelle S. Parente, Fernanda Lima, Poliana Leandro, Joserlândio Costa, Luís André Araújo, Ayanny P. Costa, Manoel Sebastião Filho, Darlan Andrade e Felipe Xenofonte
SALETE MARIA
MEU PAI
Meu pai por ser um pedreiro, Dele muito me orgulho Sempre foi muito guerreiro Homem de muito barulho Seja mexendo o cimento Seja curando o tormento Ele desata o embrulho Sempre foi desenrolado Atento, astuto, sabido É homem pouco letrado PorÊm muito esclarecido Por isso nesse cordel Reconheço seu papel De pai teimoso e querido Nascido em 44 No nordeste brasileiro Um cearense de fato Um matuto, um roceiro
Arribou de Várzea Alegre Jovem, à sorte entregue Foi se arranchar no Granjeiro Chegou pela Cana-Brava Trabalhou, foi serviçal Arroz, feijão apanhava Cuidou também de animal Era um rapaz arrojado Nunca foi acomodado Era este um bom sinal Viveu nas casas alheias Longe do seu “habitat” Ia acanhado pra ceia Era comum se deitar Em qualquer canto do chão Porque não tinha um tostão Pra uma rede comprar
Porém como desejasse Melhorar a sua vida E muito se interessasse Em sair daquela lida Resolveu então partir Pra muito longe dali Onde lhe dessem guarida Sonhava em ir para o sul E arranjar um emprego Mirava o céu azul Como quem quer um brinquedo Mas um dia decidiu Da Cana-Brava partiu Foi enfrentar o seu medo Nesse tempo já gostava De quem hoje é minha mãe Que ficou na Cana-Brava Numa angústia sem “tamãe”
Foi lá pros anos 60 Que segundo ele comenta “Havia progresso e gãe” Fugindo do desemprego No tal êxodo rural Meu pai foi pedir arrêgo Na maior das capital E se vendo sem dinheiro De lavrador a pedreiro Subiu na vida, afinal O ofício era pesado Mas tinha de trabalhar Ficava admirado Com tantos prédios no ar: “São Paulo é feito das mão Dos nordestinos irmão Que não param de chegar"
Depois dum tempo in Sampa - tijolo, massa, cimentoViu um bem-te-vi que canta: “na cacunda d'um jumento” Era um quadro na parede "No lugar de botar rede Eles botam é monumento" Quando juntou uns tostão Veio para o Ceará Somente pedir a mão Desta que ficou por cá Em poucos dias casou E a esposa levou Pra no sul dele cuidar Cada ano que passava Um filho via nascer Em São Paulo um brotava No Ceará, outro ser
Ao todo tiveram seis Sou a segunda da vez Cá estou para escrever Por três décadas seguidas Meu pai ia e voltava Pontilhava nossas vidas Ou cá, ou lá ele estava Edificando a cidade E perdendo a mocidade Enquanto a gente estudava Tijolo sobre tijolo Ferro, massa, telha e cal Aniversário sem bolo São João, finados, Natal Onde era mato, um produto Igreja, escola, viaduto Shopping, motel e canal
Seguia a vida querendo Não fracassar, nem sofrer Algumas noites bebendo Outras no frio, a tremer Muitas agruras passou Até que o álcool deixou E nunca mais quis beber Fez muita casa aonde A vida parece bela E o arranha-céu esconde Os barracos da favela Deixou em cada azulejo Tatuado um desejo Que fosse aquilo novela Viu o progresso de perto E a miséria do lado Falava de peito aberto Com seu sotaque arrastado
“Eta sul fí d’uma égua Um dia dou uma trégua Vendo meus filho formado” Enfim comprou uma terra Nem míni nem latifúndio Teve que entrar noutra guerra Fazendo um corte profundo Depois duma cirurgia, Mudou o seu dia-a-dia E retornou pro seu mundo Voltou a viver no mato Conforme sempre gostou Mas não perdeu o contato Com o mundo exterior Agora rega o estrume Contempla o vaga-lume Colhe laranja e fulô
Deixou o prumo e a linha Pegou enxada e pá Tem lá a sua casinha E terra pra cultivar Merece a minha homenagem Porém não tenho coragem Desse verso recitar Hoje é homem da lida Do trabalho no roçado Retornou à velha vida Mesmo estando cansado Pois para se aposentar Teve ele que provar Que nunca ficou parado Mesmo assim ele é feliz Porque no mato nasceu Voltou a sua raiz (o pedreiro não morreu)
Ressurge o agricultor Com quem mamãe se casou E deu origem a eu Terminando esse poema É preciso relembrar Que o pedreiro foi tema Pra um poeta exemplar O grande Chico Buarque Traduziu na sua arte O seu valor singular Com os olhos embebidos Entre lágrima e cimento Mas quase nunca esquecidos Dessa vida de tormento Subindo o patamar Ou na roça a plantar Reconheço seu talento
Operário em construção Autoridade paterna Homem de convicção De atitude fraterna Meu pai, um grande herói A sua história constrói A idéia que nos governa! FIM