O casamento do negrão

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ESTE FOLHETO É PARTE INTEGRANTE DO ACERVO DO BEHETÇOHO EM FORMATO DIGITAL, SUA UTILIZAÇÃO É LIMITADA. DIREITOS AUTORAIS PROTEGIDOS.


INFORMAÇÕES SOBRE O PROJETO O Acervo Eletrônico de Cordéis do Behetçoho é uma iniciativa que pretende dar consequências ao conceito de (com)partilhamento dos artefatos artísticos do universo da oralidade, com o qual Behetçoho e Netlli estão profundamente comprometidos.

INFORMAÇÕES SOBRE A EQUIPE A equipe de trabalho que promoveu este primeiro momento de preparação e disponibilização do Acervo foi coordenada por Bilar Gregório e Ruan Kelvin Santos, sob supervisão de Edson Martins.

COMPOSIÇÃO DA EQUIPE Isabelle S. Parente, Fernanda Lima, Poliana Leandro, Joserlândio Costa, Luís André Araújo, Ayanny P. Costa, Manoel Sebastião Filho, Darlan Andrade e Felipe Xenofonte


POETA POPULAR MANOEL CARDOSO E SILVA

O CASAMENTO DO NEGRテグ



Escrevi mais uma estória Só de cabra valentão Que procurava brigar Com cangaceiro e ladrão Matava por brincadeira Roubava por distração

Falo em João Canguçu Que no tempo atrás havia No sertão pernambucano Quando a lei não existia Naquele tempo atrazado Usava de valentia Eu ainda não sabia Quem era João Canguçu Mas me disseram que era Preto da cor de urubu Trajava calças de sola E camisa de couro cru


Usava óculos vermelho O cabelo aguaribado Manqueijava de uma perna Tinha um olho atravessado Era quase tartamudo Beiço grosso e revirado Era falso e desordeiro Infame e conspirador Ladrão de mulher alheia Pessimista e agressor Malvado de profissão Cretino e salteador

Só andava prevenido De armas e munição Tinha um punhal de 3 quinas Na frente do cinturão Um rifle papo-amarelo Muita bala e um facão


Era forte e destemido Não temia a cabroeira Brigava de todo jeito De cabeçada e rasteira De coice, bofete e faca De espada e de peixeira

Este monstro traiçoeiro No lugar onde passava Invadia a casa alheia Dava surra e desonrava Levava a mulher apulso Prendia o dono ou matava

Até parece que o diabo Na luta lhe protegia Quando caia num cerco Ligeiramente saia Ou se invultava num toco De formas que ninguém via


Quando caia num cerco Das forças policiais Travava um fogo cerrado Por dentro dos matagais Se virava em qualquer coisa E ninguém pegava mais Quando saia da luta Entrava no taboleiro Emboscava nas estradas Tangerindo e boiadeiro Tomava apulso e roubava Jóias, armas e dinheiro Ninguém contava mais As mortes que tinha feito Viúvas e moças donzelas Levava tudo de eito A que não se sujeitasse Morria não tinha jeito


Por isto pais de família De responsabilidade Só podiam criar filhas Se morassem na cidade Onde ele não pudesse Fazer desonestidade

A que morava no sítio Tinha que viver detida Proibida de ser vista Por gente desconhecida Até que chegasse o dia De ser casada escondida

Por que o negro dizia Cheio de atrevimento Que moça de sua terra Fazia o casamento Quando o pai dela primeiro Lhe desse o consentimento


Para que não sucedesse Como o bandido queria Quando casava uma moça Do povo da freguesia Nem os vizinhos sonhavam Nem o bandido sabia

Se houvesse um casamento Sem ordem nesse ribeira O negro entrava na festa Acabava a brincadeira Matava o noivo e levava A noiva prisioneira No dia 3 de outubro Arrumou o matulão E saiu de mundo a fora Nas fazendas do sertão Procurando moça rica Que tivesse posição


Dizendo mais: ─ Só me caso Com filha de ‘’Tubarão’’ De engenheiro ou prefeito Para me dar posição Só quero moça bonita Que me dê estimação Ele soube por notícia De uma linda criatura Jovem de 18 anos O mimo da formosura Alva de cabelos loiros Que cobriam a cintura

Era filha do major Galdêncio da Cana-brava Tinha mais de cem capangas Que na fazenda morava Prontos para fazer tudo Quando seu patrão mandava


Na porteira da fazenda Estava escrito um letreiro Dizendo: ‘’Aqui não passa Sem dizer quem é primeiro Na vigilâncio ficava Um grupo de cangaceiro Se alguém ali chegasse E tivesse o atrevimento De passar nessa cancela Sem ter o consentimento Seria preso e queimado Naquele mesmo momento

Para isto tinha um forno Com dez metros de extensão E metro e meio de largura Por cima um alçapão Em baixo tinha a fornalha Onde queimava o carvão


O major Galdêncio era Pior do que caminana Quebrava dente por dente De quem chupassa uma cana No engenho ia queimado Na fornalha ‘’PIRAPAMA’’

Quando ele tinha raiva E com um se estoporava Jogava lenha no forno Quando a fornalha esquentava Mandava pegá-lo vivo Dentro do fogo jogava Um belo dia o major Com a filha conversava Sentados os dois na varanda Quando um carteiro chegava Foi lhe entregando uma carta Que Canguçu lhe mandava


Na carta dizia assim: ─ Digníssimo cidadão Para mim é uma honra De grande satisfação Vou casar com sua filha Quer ela queira quer não

Vá logo marcando o dia Para o nosso casamento Pretendo casar-me agora E cumprir meu juramento Sua filha me agrada Vai me dar contentamento Tenho fazendas de gado Espelhadas no sertão Cinco fábricas de tecido De fibras de algodão Cangaceiro em toda parte A minha disposição


O major não se descuide Nem vá duvidar do caso Pro senhor dar a resposta Só dou três dias de prazo Ou faz o que eu quizer Ou sua fazenda arraso

Com estas frases o major Todo corpo lhe tremeu Rasgou a roupa do corpo E de raiva se mordeu Deu três esturros tão grandes Que a casa estremeceu Saltou para o lado de fora Deu três tiros do terreiro Sendo um de bacamarte E os dois de granadeiro Com dez minutos chegaram Centenas de cangaceiro[s]


Os capangas perguntaram: ─ O que está acontecendo? Disse o major: ─ É o diabo Que está me escrevendo E perante a todos eles A dita carta foi lendo

Com quinze ou vinte minutos Era grande o movimento Os cangaceiros espelhados Por todo o acampamento Esperando o Canguçu Pra fazer o casamento O major fez outra carta Dizendo: ─ Negro enxerido Vá procurar seu lugar Ladrão, perverso, atrevido Eu não tenho a minha filha Para dar ela a um bandido


Sou um homem de coragem Para enfrentar o perigo Eu dar a filha a um negro Até parece castigo Você não casa com ela Seu casamento é comigo Procurou logo um capanga Que já tinha sido praça Quando entrava numa luta Acabava toda raça E o major neste dia Atirou-lhe na desgraça

O major lacrou a carta Deu a ele e disse: ─ Leve Diga ao negro que me mande A resposta dela breve Ele pegou a cartinha Dizendo: ─ Esta aqui me serve


Disse o major: ─ Leve 1 negro Servindo de companhia Para arrear seu cavalo No descanso ao meio dia E a noite enquanto dorme Ele servir de vigia O cabra disse: ─ Não senhor Ninguém comigo agora Chegando lá toco fogo Na fazenda e venho embora Montado em cima do negro Rasgando o bucho de espora

Disse isto e foi saindo Em busca do valentão Subindo serra e descendo No seu cavalo alazão Munido de armamento Muita bala e um facão


Tinha um tal de Cobra Preta De presença intolerante Beiçudo, de queixo grande Um monstro repugnante Da venta comprida e torta Como tromba de elefante

Disse o major: ─ Cobra Preta Você vá seguindo atrás Com muito cuidado e jeito Ligeiro, esperto e sagaz Fique de parte olhando Tudo quanto o Negrão faz Leve as armas que quizer Um revolver parabelo Muita bala na cintura Um rifle papo amarelo Um saco de munição Uma espada e um cutelo


Foi um seguindo na frente E o outro acompanhando Com dois dias de viagem Canguçu foram avistando Numa rede de varanda Duas moças o balançando O cangaceiro da frente Foi chegando no terreiro O negro disse: ─ Pare lá! Me diga quem é primeiro E o que anda procurando Na fazenda Taboleiro?

O Negrão se levantou Saltou Pro meio do terreiro Foi abrecando o capanga Dizendo: ─ Seu forasteiro Eu já tenho dado muito Na cara de cangaceiro


Nesta hora o capanga Trincou os dentes rangindo Travaram os dois uma luta O fumaceiro cobrindo As balas se encontravam Chegavam voltar zunindo Partiu pra João Canguçu Com toda força que tinha Botou para derretê-lo Com a raiva da murrinha Mas encontrou o Negrão Da grossura de uma linha

O Negrão disse: ─ Capanga É seu dia derradeiro Deu um coice americano No peito do cangaceiro Foi cair com quinze léguas Lá por detrás de um oiteiro


Sabemos que Cobra Preta Era um cabra valentão Que fazia a retaguarda A mandado do patrão Para trazer a notícia Entre o cabra e o Negrão

Quando Cobra Preta viu O coice que o Negrão deu E o cangaceiro subindo Pelas nuvens se escondeu Soltou o rifle no chão Se fez das pernas e correu

─ Venha cá seu Cobra Preta! Disse o Negrão se lambendo Cobra Preta disse: ─ ‘’Votê’’ Ganhou o mato correndo Gastou dois dias e meio Chegou em casa tremendo


Quando chegou na fazenda Caiu no chão desmaiado Quando tornou foi dizendo Olhando pra todo lado: ─ Aquele negro não é gente É o cão está provado O major teve a notícia Do que tinha se passado Que o portador do ofício Tinha sido confiscado Dizendo: ─ Agora perdi Um cangaceiro afamado Não terminou a palavra Começou o sururu Um cabra disse: ─ Major Olhe a tropa de urubu! Na frente da cabroeira Lá vinha João Canguçu


O montro vinha na frente Igual a um leão voraz No meio da cabroeira Parecia o satanás Rasgavam bofe de gente Nas pontas de seus punhais

Travou-se logo uma luta Bala vai e bala vem Se um atirava bom Outro atirava também No jogo do pau furado Não escapava ninguém

Naqueles gritos de avanço Aqueles dragões cruéis Quebravam galhos de pau Rolavam pedras nos pés Porém em vez de matá-lo Morriam de oito e dez


O cerco fez parafuso O fumaceiro cobria O negro se viu estreito Coberto na pontaria Quando procuravam o negro Ele desaparecia Saia fora do cerco Rinchava com jumento Tocava fogo na tropa Naquele mesmo momento Matava e bebia o sangue No lugar do ferimento

O Negrão se peneirou E apertou a cartucheira Brigou trinta e seis horas De punhal e de peixeira ─ O major não aguentou Danou-se em toda carreira


─ Mil e oitocentos cabras Na luta tinham morrido ─ Os amigos do Negrão Tinham desaparecido ─ E a filha do major Com outro tinha fugido

O Negrão ficou sozinho Pensando no que se deu ─ Fez uma cruz de madeira Para o povo que morreu ─ Montou-se no seu cavalo Dali desapareceu. FIM



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