Achel Tinoco
Um jardim para Leonel
Foto: Dani-Maria
O poeta e escritor Achel Tinoco nasceu na pequena São Domingos do Capim (Pará). Foi criado na Bahia, na fazenda Vila Ferreira, município de Ibirataia, sul do Estado, a 370 km da Capital. Hoje mora em Salvador, onde fez os cursos de Letras e Administração de Empresas. Do mesmo autor: Outra parte de mim, Okavango, Retrato sobre tela, Vilarejo dos anjos, Até parece que foi sonho, As nudezas secretas de Eleonora, Perdendo a metade de mim e Batalha de Mestre. acheltinoco@outlook.com
"A morte é uma quietude que vai chegar, invariavelmente, para nos apartar das flores, estabelecer o vazio e determinar a distância que há de existir; a vida é uma explosão que já aconteceu para restabelecer essa distância, reavivar as chamas e descerrar o horizonte que existe em cada um de nós."
Um jardim para
Leonel
Achel Tinoco Achel Tinoco
O pai o enxotou para fora de casa, aos 12 anos de idade. O menino caminhou pelas matas, subiu serras, desceu vales, e chegou a algum lugar: uma vila adormecida no meio do nada. Ali, começou a trabalhar numa venda, aprendeu a ler e a escrever atrás do balcão, comprou uma tropa de doze burros, foi a pé até a Lapa, casou, teve um filho, enviuvou, casou com a sobrinha da primeira mulher, teve mais onze filhos, vivenciou tragédias, prosperou, enriqueceu. "Os filhos são como os dedos das mãos. De longe assim até parece que são todos iguais, mas são completamente diferentes: o temperamento, a natureza, os ideais, os sonhos, os problemas. A vida de cada um corre por caminhos distintos; é como um rio que nasce pequenino, frágil, dependente, mas logo vai se avolumando com o decorrer do tempo e do espaço, e não sabemos ainda aonde vai desaguar." Um jardim para Leonel é uma homenagem a esse homem simples, porém muito sábio, que, embora não tenha frequentado a escola, acreditava na educação e gostava tanto do mar.
Um jardim para
Leonel
Achel Tinoco
Um jardim para
Leonel
Salvador-Bahia 2013
Copyright © Achel Tinoco, 2013 Todos os direitos reservados Título Um Jardim para Leonel Capa Caroline Dias Diagramação Paulo Ribeiro Preparação Elaine Cristina Santos Revisão Visão de Águia – Produção Editorial & Divulgação Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasil) ______________________________________________ Tinoco, Achel Um Jardim para Leonel / Achel Tinoco São Paulo : Garimpo Editorial, 2013 ISBN 978-85-62877-31-5 1. Literatura brasileira 11-05620 CDD-869 ______________________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira 869 Garimpo Editorial Rua Fausto, 357, Conj. 21 Moinho Velho – São Paulo – SP CEP 04285-080
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PREFÁCIO
C
onheci Leonel quando eu era criança, na fazenda do Bom Sem Farinha. Tia Amália, de quem guardo uma nítida lembrança de sua fisionomia, uma mulher esguia, por que não dizer magra, pele alva, cabelos claros, de semblante fino, bonita mesmo, era muito carinhosa, não só com o filho Belmiro como também com o primo visitante. Após a morte de tia Amália, Leonel casou-se com Deth, minha prima carnal, afilhada dos meus pais, e que passara muito tempo em nossa casa, em Ipiaú, para estudar. Circunstância que me aproximou mais de Leonel. Durante todo o meu viver, desde jovem, na Tesouras (hoje Ibirataia), na Rua dos Artistas, onde invariavelmente passávamos as férias de São João e de fim do ano, com Belmiro, participando juntos das fuzarcas da adolescência, permitindo desta forma um contato permanente com o homenageado. Deth conseguiu completar inteiramente a vida de Leonel. Aprendi a admirar Leonel desde então, como pai extremoso e bom chefe de família. Como bom observador, desde muito cedo, identifiquei em Leonel o seu avançado tino comercial, empresário nato, de visão ampla, haja vista as suas atividades múltiplas — cacauicultor, pecuarista, escritório de compra e venda de cacau, postos de combustíveis e casas comerciais. Começara a vida no balcão como empregado e posteriormente no próprio negócio. Não era homem de letras. Aprendera a ler e a escrever no dia a dia de vendedor. Fora inclusive tropeiro. 7
Contudo, a sua visão de negócios o transformou em empresário de sucesso. Homem rico. Este é um livro em sua homenagem, pelas comemorações dos 100 anos de sua data natalícia. É mais do que um livro biográfico. Feliz a escolha de Achel Tinoco para escrevê-lo. Conseguiu o autor fazer uma completa interação da vida do homenageado, de toda sua família, dos amigos e parceiros comerciais, com o desenvolvimento da região do Algodão, Ibirataia e Ipiaú. Escreveu de uma maneira inteligente, com uma linguagem fácil e despretensiosa, somando os conhecimentos profundos dessa região, pois sendo filho de Ibirataia, sabe de perto os seus costumes, tradições, evolução histórica e progresso. É um livro justíssimo e de agradável leitura, em ritmo de contos, em capítulos, destacando com grande sensibilidade os fatos reais que marcaram profundamente a pessoa de Leonel, no seio da família, entre os amigos e da própria sociedade de Ipiaú. Acreditamos que este livro servirá também como fonte de dados, na pesquisa dos fatos históricos que marcaram o desenvolvimento de Ipiaú, desde a sua fundação e emancipação como cidade, tornando-se uma das mais prósperas regiões econômicas do estado da Bahia. Obrigado a todos os membros da família de Leonel Jardim de Almeida pela honra do convite para escrever o prefácio deste livro. “Um jardim para Leonel”, nada mais justo. Hélio Andrade Lessa
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“Quando sua velhice é graciosa e sábia e repleta de luz e alegria, preenchimento, uma bênção... quando flores desabrocham e há uma fragrância da eternidade, então com certeza você viveu. ...Juventude contém uma maturidade, mas ela não é sábia; existe demasiada tolice nela: ela é amadorística. A velhice dá os últimos toques na pintura de sua própria vida. E quando os últimos toques são dados, está-se pronto para morrer com alegria, com um espírito dançante. Está-se pronto para dar as boas-vindas à morte.” Osho
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PRÓLOGO
O
menino entrou no escritório do avô e disse: — Vô, me dá dinheiro pra eu comprar um picolé!
O avô era representante de uma firma de compra e venda de cacau chamada Manoel Joaquim de Carvalho. — Peraí — foi o que efetivamente ele respondeu, como se não tivesse prestado atenção ao pedido do neto de sete anos. Mexeu nuns papéis sobre a mesa, anotou alguma coisa numa caderneta, depois o olhou de relance e disse: — Tá vendo aqueles saquinhos plásticos ali sobre a prateleira? — Hã, hã! — Por favor, pegue um deles e cate aqueles caroços de cacau que caíram de cima do caminhão — apontando para a rua onde estava estacionado o caminhão, à frente da firma. O menino pegou um dos saquinhos e correu porta afora. Os ajudantes descarregavam uma carga de cacau e não raro algumas amêndoas ficavam espalhadas pelo chão. O menino agachou-se e começou a catá-las. O trabalho não durou mais que alguns minutos. Encheu o saquinho e o trouxe de volta para o avô, dizendo: — Pronto, vovô, aqui está. O homem o observou por cima dos óculos e disse com uma voz branda: 11
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— Agora, peça àquele moço, junto à balança, que pese o saquinho. O menino prontamente o atendeu e correu para cumprir a tarefa. Voltou em seguida com o saquinho na mão e com um pedacinho de papel em que estava escrito o peso do saco — 460 gramas. — Que faço agora? — Leve o saquinho com o cacau ao caixa, entregue o papel à moça, e receba o dinheiro equivalente... — Está bem, já vou. E lá se foi o menino, pacientemente, vender o punhadinho de cacau. Voltou com o dinheiro na mão, na verdade, algumas moedas de cruzeiro. — Aqui está, vô. Agora me dá o dinheiro do picolé — disse já um tanto agastado. Ele sorriu, esparramou os cabelos loiros do neto, depositou as moedas na mão do menino e disse: — Este dinheiro é seu, Leonel Neto, porque você trabalhou para ganhá-lo. Vá comprar o seu picolé! “E eu nunca mais esqueci essa lição.”
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Capítulo 1
E
u estava num leilão, na Costa do Sauípe, quando recebi a notícia de que o estado de saúde do meu avô havia piorado sobremaneira. Ele estava internado, havia alguns dias, numa clínica de Ipiaú com problemas respiratórios. Minha mãe telefonou-me aflita. Ele sofria do Mal de Alzheimer. Nos últimos meses já sabíamos que o quadro era irreversível, ainda assim resta sempre aquela esperança de que o paciente melhore e volte ao convívio normal com os familiares. Voltei imediatamente a Salvador. À noite, recebi a confirmação de sua morte. Não posso dizer que foi um choque porque, de alguma forma, já o sabia: ele não resistiria muito tempo por causa de sua enfermidade e de sua idade avançada. Contudo, há a surpresa da notícia, e as lágrimas desatam-se invariavelmente, ainda mais por alguém tão amado e querido. Só tive tempo de descansar um pouco, às quatro da manhã viajei para o interior. Cheguei a Ipiaú — 380 km da capital — por volta das nove horas. A manhã estava nublada e a casa cheia de gente. Aliás, como sempre esteve durante toda a vida de seu Leonel Jardim. Ele gostava da casa cheia, e com tantos filhos, sobrinhos, netos, bisnetos, evidentemente a casa andava sempre cheia. Agora estava abarrotada. E havia uma multidão do lado de fora. Desde que a sua morte foi anunciada, ontem à noite, centenas de amigos e conhecidos fizeram vigília à frente da casa, 13
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no bairro da Conceição. Essas manifestações de carinho e amizade decerto reconfortam e nos dão orgulho, afora o orgulho gigantesco que eu sentia pelo meu avô. As lembranças começaram a pular dentro da minha cabeça: da minha infância feliz, da predileção especial que ele tinha por mim, das brincadeiras, dos passeios ao seu escritório para pedir-lhe o dinheiro do picolé; do carro dele que eu, então com 12 para 13 anos, pegava para passear. Este feito, nem os filhos conseguiam, porque ele não deixava. Evidentemente, gerava alguns conflitos de interesse e algum ciúme desse seu neto primeiro que, além do nome, até a natureza herdara daquele avô. Era mais do que o meu pai o era, sem desmerecê-lo, fique claro, uma vez que o meu pai vivia mais ausente: nas fazendas, nos negócios e nos hospitais, ainda por causa das sequelas de um acidente que sofrera na juventude. Meu avô esteve presente em todos os momentos. Lembrei-me, sem por que, de uma vez em que eu fui ligar o carro de um tio, um bugre, e esqueci-me de pôr o pé na embreagem: o carro deu um pulo e bateu no da frente, um Del Rey Scala novinho, sem placa, que o meu pai acabara de comprar. Corri para contar a meu avô. — Vô, bati na chave e não alcancei o pedal da embreagem... — Vamos ver. Ora, ele não mediu esforços: levamos o carro a uma oficina que ficava ao lado do barracão da firma Barreto de Araújo, próximo à casa dele. O dono da oficina surpreendeu-se ao vê-lo chegar acompanhado pelo neto: — Seu Leonel, o senhor por aqui!... Ele foi sucinto: — É. E é para resolver o problema do meu neto — mos14
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trou-lhe o para-choque batido e disse-lhe imperativamente. — E é para resolver hoje. O homem coçou a cabeça: — Mas, seu Leonel, estou cheio de serviço... — Não tem “mas” nem mais, dê seu jeito. Eu ao lado, orgulhoso, importante, observando o desenrolar da história. No outro dia, quando o meu pai chegou da fazenda, o carro dele estava no mesmo lugar: impecável, novo, sem nenhum arranhão. Logicamente, eu contei a ele o ocorrido, como sempre me instruíra o meu avô a fazer nessas horas. Mentir nunca seria uma boa solução. “A mentira”, ele dizia-me, “é coisa de gente sem caráter, sem moral e sem vergonha”. Outra vez, ele chamou-me para ir à feira dirigindo o seu Chevrolet Veraneio, ainda com o plástico nos bancos. Eu ponderei, inocentemente: — Mas, vô, eu não tenho carteira. E se um guarda me pegar? Ele foi enfático, e muito espirituoso: — Eu tiro a farda do guarda. — Quê? — Vamos. E quando eu fiz 18 anos, num almoço de domingo, a mesa cheia, meu avô disse--me em alto e bom tom: — Escolha o carro que você quiser, meu neto. Quase pulei da cadeira de tanta alegria! Meus olhos confundiram-se com o céu brilhoso daquele dia. Mas a alegria durou pouco. Meu pai, ao lado, ponderou: — Não, pai. Ele vai comprar o carro dele quando tiver o 15
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próprio dinheiro. Por enquanto, usará um carro meu. — Mas eu quero dar, meu filho — insistiu seu Leonel Jardim. Então Belmiro, o meu pai, usou um argumento incontestável: — O senhor tem outros netos... Não seria justo dar um carro a um e não dar aos outros, não é mesmo? Um balde de água fria na minha cabeça imaginativa e sonhadora. Meus olhos desbotaram-se. Evidentemente, fiquei muito chateado com o meu pai, mas, ao mesmo tempo, isso me estimulou a procurar uma fórmula de eu comprar o carro com o meu trabalho, com o meu suor. E foi assim que sucedeu: comprei o meu primeiro carro com a corretagem de um apartamento que vendi. Devido à crise do cacau que se instalou definitivamente, no início dos anos 1990, na nossa região, o meu pai foi obrigado a vender um apartamento que possuíamos em Salvador. Logo me apresentei para fazer a negociação. Vendi-o, depois de um mês, e com a corretagem que recebi comprei meu primeiro carro. Meu pai não deixou de me dar uma ajudinha, claro que não! Outra lição para eu não me esquecer, depois daquela das amêndoas de cacau caídas no chão que o meu avô fez-me catar, pesar e vender para eu comprar um picolé. Depois que fui estudar na capital, quando a saudade apertava, o meu avô mandava me buscar para passar o fim de semana com ele em Ipiaú, na fazenda ou na sua casa de praia.
O meu primo, Dr. Hélio Lessa, tomou a palavra das mãos de toda a gente ali a vagar e fez um relato emocionado sobre a vida, a obra e a importância daquele homem para a sociedade ipiauense: “Como Manoel Chaves e Mamede Paes Mendonça”, ele disse, “Leonel era um empresário muito hábil, inteligente e de visão. Acima de tudo, perseverante e de muito boa paz, que 16
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tinha como lema ‘respeitar para ser respeitado’. Um homem simples e sem soberbia, porém muito sábio, que, embora não tenha frequentado a escola, acreditava na educação, nos bons modos e nos bons costumes; que, embora tenha viajado pouco e não tenha visto outras terras, gostava tanto do mar”. Às 17 horas daquela tarde de segunda-feira, 20 de março — dia do meu aniversário —, Leonel Jardim de Almeida foi enterrado no cemitério Jardim da Saudade, de Ipiaú, na presença dos filhos, netos e amigos. O seu tempo encerrou-se, embora sempre achemos que nunca é o momento de morrer. Haja os tropeços, mas nunca o fim. Como o Rio das Contas, que hoje já não corre, passa lentamente, suas águas poucas, infectas, estagnadas pelo progresso, mas continuamos a acreditar que ele nunca vai morrer. Contemplamos o céu como se lá já o víssemos a despedir-se de nós, definitivamente. E voltamos para casa conformados, mas em casa era como se nunca tivéssemos terminado de nos despedir dele. Talvez eu não conseguisse voltar a essa cidade com a mesma assiduidade de antes. Alguém disse: “Só morre aquele que não tem passado”. O meu avô tinha um passado e tanto!
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