CINEMA E ARQUITECTURA

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CICLO DE CINEMA CINEMA, CIDADE E AQRUITECTURA Biblioteca Pública e Arquivo Regional de ponta Delgada 28 março a 6 de junho de 2007

NOTAS DE UM CICLO

O ciclo de cinema “cinema, cidade e arquitectura” que, ao longo de 10 semanas, teve lugar no auditório da Biblioteca Pública de Ponta Delgada surgiu de um esforço conjunto dos arquitectos Sérgio Fazenda Rodrigues, Rita Cruz Dourado e da Muu – Produções Culturais, em parceria com a Direcção Regional da Cultura, na figura da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada. Para este esforço contribuiu também a preciosa ajuda da Delegação Regional da Ordem dos Arquitectos, da Universidade dos Açores e dos demais intervenientes que, sob a forma de apoios pontuais ou contínuos, na divulgação, nas intervenções directas (escritas e orais), ou no incansável apoio técnico, abraçaram igualmente esta iniciativa. A todos expressamos o nosso agradecimento.

28 março 4 abril 11 abril 18 abril 25 abril 2 maio 9 maio 16 maio 30 maio 6 junho

roma / roma - F. Fellini manhattan / manhattan - Woody Allen rear window / janela indiscreta - A. Hitchcock lost in translation / o amor é um lugar estranho - Sofia Copolla the belly of an architect / o ventre de um arquitecto - P. Greenaway mon oncle / o meu tio - Jacques Tati le mépris / o desprezo - Jean Luc Godard metropolis / metropolis - Fritz Lang professione: reporter / profissão repórter - M. Antonioni blade runner / perigo iminente - Ridley Scott

A ideia de fazer um ciclo sobre o cinema, a cidade e a arquitectura, partiu da vontade de dar a conhecer alguns dos filmes marcantes da história do cinema que, de alguma forma, tocassem a esfera do mundo urbano. Filmes que constituem registos explícitos de utopias e análises críticas centradas na ideia da urbanidade, ou por vezes da sua ausência. Da densidade histórica de cidades como Roma (“Roma”, “The Belly of an Architect”), à actualidade das grandes metrópoles como Nova Iorque (“Manhattan”) ou Tóquio (“Lost in Translation”), ou ainda à perspectiva futurista de um mundo mecânico (“Metropolis”) e cibernético (“Blade Runner”), pretendeu-se um olhar transversal ao tempo e ao local. Da visão do processo criativo (“Le Mépris“, “Professione: Reporter”) à perspectiva do espectador/utilizador (“Mon Oncle”), pretendeu-se um olhar transversal à autoria (de arquitecto ou de cineasta). Na realidade, mais do que falar sobre cinema ou sobre arquitectura, a vontade residiu em falar sobre o que é tangente e análogo a ambas as disciplinas.

Mais do que falar sobre a cidade, os edifícios, as suas gentes ou o seu olhar, o intuito foi perceber o que de comum as ligava. Como, pela expressão do movimento ou pelo raciocínio do autor, o cinema olha a cidade e a arquitectura, ou como a arquitectura e a cidade assumem por vezes uma visão cinematográfica. Longe do discurso académico ou especializado, o que se pretendeu foi trazer a discussão ao grande público, de forma abrangente e não exclusiva. Longe da ideia do entretenimento, o que se pretendeu foi alertar para a importância destas disciplinas, como veículos de expressão ou modos de comunicar e compreender a sociedade em que vivemos. Por isso, embora as relações entre o cinema, a cidade e a arquitectura sejam extensas e complexas e por si só constituam um vasto campo de estudo, o que se pretendeu foi, da forma possível, mas da maneira mais apaixonada, ensaiar o que Fellini em tempos disse: que, tal como a arquitectura – cremos nós, “o cinema é uma maneira de sonhar com os olhos abertos”. Sérgio Rodrigues, Rita Dourado, Vítor Marques


CICLO DE CINEMA CINEMA, CIDADE E AQRUITECTURA Biblioteca Pública e Arquivo Regional de ponta Delgada 28 março a 6 de junho de 2007

A missão institucional da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada é a de contribuir para o desenvolvimento do nível sociocultural da população, de modo a que estes acompanhem as rápidas mutações económicas, sociais e culturais, impostas pela Sociedade do Conhecimento e desenvolvam competências individuais que contribuam para uma maior autonomia e participação social. Para tal, a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada disponibiliza um conjunto diversificado de serviços e actividades na área da educação, da informação, da cultura e do lazer. São finalidades da BPARPD: · Possibilitar a plena integração social de todos os membros da comunidade, assumindo um papel de espaços pluralistas de encontro de pessoas e de ideias, de debate e de reflexão, de critica e de participação activa; · Promover a literacia como capacidade de compreender, interpretar e julgar os processos e os significados da envolvente comunicacional, acentuando a complementaridade entre suportes documentais (manuscritos, impressos, audiovisuais, multimédia); · Proporcionar as condições que possibilitem a auto-formação dos indivíduos, disponibilizando recursos para aprendizagem ao longo da vida, dando especial destaque à utilização das tecnologias de informação e comunicação; · Fornecer, a quem o solicitar, informações pertinentes e actualizadas, com rapidez e profundidade, recorrendo a todas as fontes de informação disponíveis a nível local, regional, nacional e internacional; · Assumir um papel de verdadeiro espaço cultural, promovendo uma maior fruição da cultura contemporânea, dando destaque à cultura portuguesa em geral e à produção açoriana em particular, nomeadamente, no que respeita à leitura e à escrita e intervenções a elas associadas.

A directora da BPARPD Celeste Freitas


28 de março, 2007

biblioteca pública e arquivo regional de ponta delgada

ROMA / ROMA - FEDERICO FELLINI (1972)

Apresentação: Sérgio Rodrigues (Arquitecto)

Realização: Federico Fellini Argumento: Federico Fellini e Bernardino Zapponi Intérpretes: Federico Fellini, Marcello Mastroianni, Gore Vidal, Anna Magnani, Alberto Sordi, Peter Gonzales, Fiona Florence, Pia DeDoses Música: Nino Rota Comédia / Drama Itália/França – 1972 128 Minutos M/16

Fellini é um “grande mentiroso”. O próprio assim o diz em inúmeras entrevistas, quando fala da “mentira como a alma do espectáculo, onde se descobre mais profundamente o sentido do real”. Ou melhor, da ilusão como processo de apreensão e representação do real. Mas se há em Fellini um lado encenado, ou uma construção fabricada do real, geralmente até burlesca, há também uma evidência ou clareza nas imagens que, de forma igualmente estranha, o torna bastante particular. As imagens dos seus filmes, ainda que por vezes procurem um segundo sentido, são quase sempre obvias em si mesmo. Uma conversa é uma conversa, uma discussão é uma discussão, uma luta é uma luta. Não é na natureza da imagem em si que o autor tem algo a dizer, mas sim na maneira ou na forma como o diz. Aliás, não se procura dizer nada de novo, procura-se sim é dizê-lo de uma outra maneira, por vezes peculiar, por vezes bizarra. Nesse sentido, Fellini é o contrário de Bergman, o grande introvertido do cinema que remete a imagem sempre mais e mais para dentro. Fellini, o grande extrovertido, remete o olhar, evidência sobre evidência, camada a camada, alegremente, mais e mais para fora. No cinema há cidades que pertencem a certos realizadores. Nova Iorque a Woody Allen, Paris a Truffaut, e Roma a Fellini. Em “Roma”, as personagens, o filme e a própria cidade confundem-se. Fellini é o protagonista dele próprio num registo ficcional, autobiográfico e ainda documental, onde a lógica do filme, ou a sua aparente ausência, espelha a visão nostálgica do realizador, mas também a lógica da própria cidade e a sua constante reinvenção. A estrutura do filme divide-se em 3 partes. Numa primeira parte surgem as cenas de infância, onde Roma aparece como a cidade mítica que encanta o pequeno Fellini e onde, também ele atravessa o Rubicão. Numa segunda parte vemos o jovem realizador na sua mudança para a cidade eterna. Somos então transportados à Roma dos anos 30, ao encontro com a cidade e com a sua característica vida urbana. Das ruas aos restaurantes, dos cafés aos bordéis, Roma apresenta-se-nos como a cidade densa e sedutora que nos esmaga com os prazeres do corpo e do espírito.

Em paralelo, numa terceira parte, tem-se um olhar subjectivo e por vezes onírico, das complexidades e contradições da Roma dos anos 70. Sem formar uma narrativa, mas intimamente ligada à história do autor, o filme constrói uma visão onde a própria cidade é protagonista. Uma visão onde Roma, a cidade eterna, é uma cidade de muitas cidades, de muitos tempos e muitas vontades. Da antiga cidade imperial, à cidade do Vaticano, ou à própria Cinecittá, Roma, como Gore Vidal conclui, é uma “cidade de ilusões”. Da ilusão do poder (imperial e religioso), da ilusão da carne (lasciva e sagrada) e da certeza da história, ilusoriamente apresentada. Roma, cidade de estratos, colagens e sobreposições, tal como Fellini e o seu barroco filme, traz à superfície o seu passado e forma um denso mosaico onde se desenha a sua natureza contraditória. O que em Roma é verdade ou ilusão, nem Fellini nem a própria cidade o sabem. Roma simplesmente perdura no ciclo da sua reinvenção, onde, como no filme, ou no seu autor, tudo é óbvio, mas nada é simples.

Sérgio Rodrigues


4 de abril, 2007

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MANHATAN / MANHATAN - WOODY ALLEN (1979)

Apresentação: Catarina Pereira (Arquitecta)

Realização: Woody Allen Argumento: Woody Allen e Marshall Brickman Intérpretes: Woody Allen, Diane Keaton, Michael Murphy, Mariel Hemingway, Meryl Streep Comédia / Drama / Romance EUA - 1979 96 Minutos M/12

Woody Allen é o realizador do filme desta noite. Filho de judeus de ascendência europeia, Allen iniciou-se nas artes do espectáculo como comediante. Produziu os seus primeiros textos de comédia ainda enquanto estudante e estreou-se em palco, em casas nocturnas, já perto dos seus 30 anos. Chegaria inclusive a escrever para programas televisivos de humor – um pormenor biográfico que se espelha no filme de hoje. O cineasta vem elegendo a sua condição humana como assunto suficiente para objecto da sua obra, assim marcada por fortes traços autobiográficos. Allen é um crítico de si mesmo, da sua época, da sua urbanidade, das suas raízes judias. O mote principal, por vezes repetido até à exaustão, é o homem urbano, intelectual, de classe média, consciente dos seus problemas, muitas vezes hipocondríaco, e preocupado com a morte. Um filme de Woody Allen é, pois, e necessariamente, um filme sobre Woody Allen. Manhattan não foge à regra. Revela-nos o fascinante mundo neurótico do realizador através de um dos seus objectos de eleição: a sua cidade. Manhattan é a cidade de Woody Allen e é dela, e nela, que o filme vive. Manhattan toma a forma narrativa de uma comédia romântica. A história centra-se em Isaac Davis (interpretado pelo realizador) e nas peripécias do seu relacionamento com duas namoradas. Isaac sente-se dividido quando tem de escolher entre a mulher madura, intelectual, sofisticada, que aparenta ser segura e ter uma opinião acerca de tudo (interpretada por Diane Keaton); e a jovem de 17 anos, menor e ainda estudante (interpretada por Mariel Hemingway), por quem nutre uma grande ternura e com quem goza uma relação feliz. Em questão na decisão do protagonista parece estar também uma tensão simbólica: a luta entre a inocência e a artificialidade nas relações humanas. A mulher mais velha, cerebral, que utiliza estereótipos eruditos e frases feitas, contrasta com a mulher jovem, de expressão espontânea e sentimentos genuínos. Esta dualidade desenvolve-se enquanto Isaac Davis procura promover a sua carreira de escritor no meio intelectual nova-iorquino. É aqui que a cidade toma claramente o centro do palco. O filme começa no momento em que Isaac procura as frases mais adequadas para iniciar o seu livro. Até então um escritor de comédias

televisivas, mero proletário intelectual, Isaac decide escrever uma novela sobre a sua cidade, Manhattan. Neste preâmbulo, o realizador vai intercalando as frases introdutórias do livro sobre Manhattan com diversos planos gerais sobre a ilha, em tom turístico, mas acompanhados pelo som de Gershwin e a impressão a preto e branco, a cargo de Gordon Willis, que permanecerão durante o filme. Este primeiro momento termina em apoteose com fogo de artifício sobre a cidade, já de noite. A opção pela filmagem a preto e branco e as composições de Gershwin conferem à obra o carácter de ‘clássico’, como se, através desses efeitos, Allen pretendesse desde logo adicionar à película a magia de uma aura estética, que imortalizasse o próprio filme. De seguida, a câmara desce às ruas da Big Apple, para mergulhar nas relações humanas. Troca os planos gerais para focar de perto as pessoas, o seu dia-a-dia. Somos então conduzidos a acompanhar um grupo de intelectuais nova-iorquinos de classe média, que – conforme Allen satiriza nas cenas finais – “constantemente criam problemas reais, desnecessários e neuróticos porque as impedem de pensar nos problemas insolúveis e aterradores do universo”. A cidade, a cada passo, está presente, não apenas para situar a narrativa, mas para dar sentido e unidade ora aos dramas intimistas das relações humanas (restaurantes, cafés de esquina…), ora à experiência colectiva partilhada pelo grupo e centrada no consumo cultural. Com efeito, no desenrolar do filme, as personagens saltitam entre museus, concertos, cinemas, exposições, livrarias e teatros, desse modo oferecendo à audiência a oportunidade de visitar alguns lugares emblemáticos da cidade, como o Central Park, o MoMA, o Planetário, ou o Museu Guggenheim de Frank Lloyd Wright.

Catarina Pereira


11 de abril, 2007

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REAR WINDOW / JANELA INDISCRETA - ALFRED HITCHCOCK (1954)

Apresentação: Maria José Cavaco (Artista Plástica)

UMA PERNA ENGESSADA, UM ORIFÍCIO E UMA FONTE DE LUZ

Realização: Alfred Hitchcock Argumento: John Michael Hayes Intérpretes: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr Música: Franz Waxman Mistério/ Romance EUA - 1954 112 Minutos M/12

Sir Alfred Hitchcock morreu em Los Angeles, em 1980, com 80 anos de idade. As suas palavras expressam melhor do que quaisquer outras o rigor, emoção e humanismo latentes nos seus filmes: “Man does not live by murder alone – he needs affection, encouragement and – every now and then – a drink”. Apresentar Rear Window. Esboçam-se três questões: Porquê apresentar Rear Window? Tratar-se-á, de facto, de uma janela? E porque é que ela se situa nas traseiras, por detrás das fachadas? Do meu ponto de vista, as respostas a estas questões envolvem um raciocínio gráfico – ou não fosse este o mais visual, multiplamente vectorial, dos filmes de Hitchcock. Mas comecemos pelo princípio. Apresentar Rear Window porque, provavelmente, aquilo que vamos ver a seguir será muito mais do que aquilo que observaremos de facto. As respostas à segunda e terceira questões relacionam-se mutuamente e são mais complexas, envolvendo uma geometria projectiva intrincada, tecida em sucessivas sobreposições de metáforas. Deixá-las-emos para o fim. Pensemos, então, nas duas categorias do visível. Um fotógrafo, com uma perna engessada, num espaço exíguo, junto a uma janela sobranceira a um pátio rodeado de paredes em que se abrem outras janelas ocupadas por personagens minúsculas que se movimentam. É isto que observamos. No fim do filme, porém, acreditaremos ter visto manifestamente mais do que isto. No desenrolar da manipulação projectiva cinematográfica, acreditaremos ver um observador quase obsessivo, seduzido pelo próprio acto de observar ou, melhor dizendo, espreitar; um voo rasante, transversal, quase devastador sobre todas as etapas da instituição casamento; um homicídio que (não é excessivo reforçar, pois parece ser em torno dele que se constrói a trama do filme), em verdade, nunca observamos; angústias, alegrias, dramas, esperanças, expectativas, egoísmos, enredos; um quarto, uma kitchenette, um corredor nas nossas costas, uma rua movimentada fronteira a um bloco de apartamentos, as portas fronteiras dos edifícios e, finalmente, vários apartamentos com uma perfeita articulação entre os seus vários espaços e os corredores de ligação. Tudo isto se consubstancia na nossa fantasia, como é próprio da construção da realidade cinematográfica, através dos olhos de L.B. Jeffries, que serão também os nossos, durante cerca de 100 minutos. É a expressão do seu olhar que nos faz ver esta complicada articulação de espaços e de vidas mas, curiosamente, essa mesma expressão não varia significativamente ao longo de todo o filme. O que varia é o modo como Hitchcock a manipula, ampliando o observável e entrosando, credibilizando-a, a nossa percepção do visível.

Tentarei responder agora à segunda e terceira questões colocadas. Imaginemos um olho, um orifício e uma fonte de luz dirigida para além do olho. É tudo de que necessitamos para que possamos ver o que não deve ser visto, o que se resguarda para lá das paredes e das fachadas, no domínio do que não deve ser público. O que deve e não deve ser introduz-nos o problema da moralidade do ver, relativamente ao que é visto. Ampliemos, porém, o exercício de suposição. Imaginemos, por hipótese, que o olho é o de um fotógrafo, o orifício tem a morfologia e extensão de uma janela e a fonte de luz projecta outros múltiplos orifícios, de igual morfologia e menor escala - a questão complexificou-se. Estes são os principais vectores no mapa vectorial conceptual, com uma forte componente gráfica, do filme. Mas uma magnificação do olhar sobre estes vectores revela ainda que eles se enformam sobre uma intrincada rede, entrelaçada por metáforas. No centro dessa rede está uma janela desmesuradamente grande, que não ilumina, que mantém na sombra um quarto, que é de trás e que se abre sobre outras janelas de trás. De facto, neste filme, espacialmente tão delimitado, tudo parece ter lugar nos bastidores. Para a prossecução do raciocínio, recorreríamos ao título português – tenho dúvidas de que se trate, de facto, de uma janela, tratar-se-á de um olho e, necessariamente, de um olhar; por ventura esse olhar é que será indiscreto: é o olhar do voyeur, que espreita encoberto pela sombra, imobilizado, as janelas de trás, que não devem ser espreitadas. Para este olhar indiscreto, de moralidade duvidosa, o orifício não é mais do que um ecrã de cinema observado sob o anonimato que a escuridão confere e legitima. Uma história policial e de suspense; uma reflexão sobre a instituição casamento; uma reflexão sobre a geometria e moralidade do voyeurismo; uma reflexão sobre o cinema, centrada no próprio espectador cinematográfico. Mas isto Hitchcock diz-nos, como um meticuloso estratega, logo depois de apagada a luz, nos escassos primeiros minutos de projecção de luz.

Maria José Cavaco


18 de abril, 2007

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LOST IN TRANSLATION / O AMOR É UM LUGAR ESTRANHO - SOFIA COPOLLA (2003)

Apresentação: Igor França (Arquitecto)

Realização: Sofia Copolla Argumento: Sofia Copolla Intérpretes: Bill Murray, Scarlett Johansson, Giovanni Ribisi, Anna Faris, Fumihiro Hayashi Música: Kevin Shields Drama | Comédia EUA – 2003 102 Minutos M/12

Em “Lost in Translation” Sofia Copolla aborda de forma divertida, mas séria e profunda, o tema da solidão que caracteriza a sociedade crescentemente globalizada em que vivemos. Nunca, como hoje, fomos tantos e dispusemos de tanto, mas também nunca, antes, vivemos tão desligados do próximo como o fazemos no presente. O cenário desta história é a Tóquio contemporânea, e essa cidade que nos é revelada não é a capital do país que, até 1945, se regeu pelo código Bushido. É a capital dum Japão, que acatando o pungente apelo do imperador Hirohito “aceitou o inaceitável”, metamorfoseou-se e enquanto incaracterística mega-urbe presta contributo à globalizada cultura pretensamente ocidental. Povoada de desfiladeiros de aço e vidro, recobertos de anúncios luminosos, a que os caracteres japoneses reforçam o carácter alienígena, a cidade fervilhante de escravas obreiras, personifica a velocidade da vida moderna, e a impessoalidade das relações numa sociedade que, quotidianamente, imola no altar da produtividade a réstia de humanidade. O “oásis” neste deserto é o Park Hyatt Tokyo Hotel, onde Charlotte e Bob, personagens interpretadas por Scarlett Johansson e Bill Murray, se hospedam, ela acompanhando o marido que vem ao Japão em trabalho, ele que se encontra em Tóquio a gravar um anúncio publicitário. Não obstante o fosso geracional que os separa, e a impessoalidade do Hotel, ele próprio um espaço fruto da globalização, é no seu interior, mais precisamente no New York Bar, onde músicos norte-americanos cantam em inglês, a língua “universal”, que Charlotte e Bob estabelecem uma relação emocional. Ambos têm em comum casamentos pouco gratificantes. O marido de Charlotte absorvido no trabalho permanece ausente, mesmo quando presente, o que justifica a sua confissão, “não sei com quem casei”. Bob, que aponta como uma das razões para se encontrar no Japão o “descanso da minha mulher”, está mais do que metaforicamente dela separado pela imensidão do Pacífico. Ambos partilham o distanciamento face ao contexto. Alheia à velocidade estonteante dos laboriosos peões Charlotte explora a cidade, e, numa perspectiva pós-moderna, desloca-se ao templo do distrito de Shinjuku, procurando um sítio onde se mantém o carácter local e a dimensão humana. Esse distanciamento é acentuado

com o ridículo a que Bob se sujeita quer quando filma o anúncio publicitário, quer quando recebe o “presente” no quarto, quer ainda quando é entrevistado pela versão japonesa do Herman José, sempre interpelado em inglês ajaponesado, situações que consubstanciam uma crítica à sociedade de consumo, à amoralidade, e à indústria cultural e internacionalista. Até mesmo o Hotel não está imune à estranheza desse mundo do karaoke de música anglófona, das contorcionistas semi-nuas, ou dos japoneses louros vestidos à ocidental, como afirma a “ameaçadora” chegada da actriz americana, arquétipo da “loura tonta”, que parece estabelecer um paralelismo com factos recentes da vida pessoal de Sofia Copolla. Todos estes aspectos reforçam a singularidade dos protagonistas, humanizamnos e, simultaneamente, estabelecem a universalidade da sua solidão reforçando a nossa empatia com eles. Num dos mais poéticos momentos do filme Bob descreve a Charlotte a profunda transformação porque passa o ser humano quando nasce o seu primeiro filho. A cumplicidade que os une, patente nessa conversa, e na partilha, casta, do leito, não pode ser imputada ao facto de ambos utilizarem a mesma língua materna, pois é nos seus silêncios que de forma mais evidente se afirma a sua proximidade e, paralelamente, a sua recusa da alienação envolvente. É nesse contexto que o segredo sussurrado por Bob no final do filme, que exerce um imediato efeito positivo no estado de espírito de Charlotte, dá a cada espectador a oportunidade de seguir o seu percurso, de sugerir um desfecho para a história, um desfecho que Brian Ferry, no mais intimista e confessional momento de “Lost in Translation”, parece prenunciar cantando: “More than this, there is nothing…”.

Igor França


25 de abril, 2007

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THE BELLY OF AN ARCHITET / O VENTRE DE UM ARQUITECTO - PETER GREENAWAY (1987)

Apresentação: Isabel Albergaria (Historiadora)

Realização: Peter Greenaway Argumento: Peter Greenaway Intérpretes: Brian Dennehy, Chloe Webb, Sergio Fantoni, Stefania Casini, Vanni Corbellini, Alfredo Varelli. Música: Wim Mertens Drama Reino Unido – 1987 118 Minutos M/12

Um arquitecto americano – Kracklite – representado por Brian Dennehy no único grande desempenho do filme, chega a Roma, acompanhado pela mulher, grávida, para comissariar uma grande exposição/homenagem a Étienne-Louis Boullée, de quem é admirador confessado. O fantasma de Boullée a quem Kracklite dirige cartas imaginárias paira como uma sombra, transformando-se numa espécie de duplo de Kracklite, atingindo o triunfo final e apoteótico sobre a derrota trágica deste último. Boullée, o arquitecto visionário que tal como o seu admirador pouca obra construída produziu (Kracklite como revela Louise a sua mulher infiel, não terá projectado senão seis edifícios e meio em toda a sua carreira) representa os valores da imaginação e do sonho e «é o arquitecto ideal para o seu marido o inventar», segundo afirma ainda Louise. Kracklite por seu turno tem a vantagem – e desvantagem – de não ser uma invenção; tem um corpo, uma mulher que está grávida dele e um ventre doloroso. É por este ventre que Kracklite encontra neste jogo de espelhos um outro duplo-sombra, também ele vitima de um suposto crime de envenenamento por parte da mulher, o do imperador Augusto, materializado na estátua do Augusto Prima Porta e revisitado no tumulo... O filme de Greenaway realizado em 87 numa época profícua para a sua filmografia – imediatamente anterior aos conhecidos «Maridos à Agua» (1988) e sobretudo «O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante dela (1989)» que lhe granjearam a fama, aborda os temas preferidos do seu léxico pessoal: o corpo e as suas funções: a comida e o sexo; a arquitectura, o crime e a morte. A materialidade dos edifícios de Roma, cidade da melhor «arquitectura carnívora», dirá ele, habitada por sombras e luzes voláteis, voos de Ícaro e sonho de vida eterna; Roma e os seus personagens, presentes e passados, as suas histórias de crime, traição e morte que convivem na Cidade Eterna. Temas que desenvolve numa narrativa elíptica desprovida de intensidade dramática – embora trágica – mais centrada nas significações simbólicas e no detalhe visual do que na narrativa e nas suas cargas emotivas.

Greenaway procura explorar o signo fílmico a partir das potencialidades da imagem, cuja génese está muito directamente ligada à linguagem da pintura, de forma a afastar o cinema do texto ilustrado. «O cinema é demasiado rico para ser deixado nas mãos de contadores de histórias» dirá ele numa entrevista. De facto, a natureza das emoções neste ventre de arquitecto nada deve às concepções românticas da emoção enquanto expressão psicológica; pertence antes a uma outra ordem da representação de tipo retórico, em que os elementos de ordem simbólica são aplicados segundo e sua codificação própria. É à cor e aos seus códigos, assim como à luz e à sombra; ou aos enquadramentos e composições estudados, directamente inspirados na historia da pintura, que Greenaway recorre. Apoiado no trabalho de Sacha Vierney, o seu director de fotografia de eleição, as cenas filmadas privilegiam os enquadramentos simétricos, os planos estáticos, os pontos de fuga centrados… a sua linguagem filmica não reconhece a imagem-movimento, no sentido em que a definiu Gilles Deleuze (l´Image-Mouvement, 1983), ou seja, a ideia da imagem como parte de um movimento de progressão e sequencia que modifica o objecto, ao invés de cortes temporais como sucessão de instantes. Pelo contrário, o tratamento da imagem confere a cada cena um sentido iconográfico. Exemplo disso é a forma como filma os edifícios, verdadeiros cartões-postal, imagens iconizadas de si próprias. Assumindo uma abordagem parcelar e fragmentada este Ventre de um Arquitecto é verdadeiramente um filme pós-moderno e nesse sentido uma obra datada, porventura mais propicia ao comentário e ao exercício especulativo do que a suscitar a emoção autêntica.

Isabel Albergaria


2 de maio, 2007

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MON ONCLE / O MEU TIO – JACQUES TATI (1958)

Apresentação: João Maia Macedo (Arquitecto)

Realização: Jacques Tati Argumento: Jacques Tati , Jacques Lagrange, Jean L’Hôte Intérpretes: Jacques Tati, Jean-Pierre Zola, Adrienne Servantie, Lucien Frégis, Betty Schneider Música: Franck Barcellini, Alain Romans Comédia França – 1958 118 Minutos M/6

Mon Oncle (1958) é um dos cinco grandes filmes que Jacques Tati realizou, nos quais, o personagem principal é o Sr. Hulot, (alter-ego de Tati). Os encontros entre o Sr. Hulot e o seu sobrinho Gérard servem de pretexto para a apresentação de algumas das características mais marcantes do modernismo na arquitectura às plateias cinematográficas, evidenciando o contraste entre o mundo moderno e o tradicional. O Sr. Hulot vive num desordenado bairro residencial parisiense, Saint Maur, num romântico apartamento especialmente concebido para o filme, num conjunto habitacional cheio de adições, segmentos de escadas que unem os novos acrescentos de forma aparentemente desordenada e espontânea. Saint Maur resiste ainda às transformações da modernidade, tem tudo o que é típico numa comunidade tradicional, tem mercearias, vendedores ambulantes, pessoas que conversam na rua, crianças a brincar, carroças e cafés de bairro mas sobretudo numa dimensão humana. Num contraste radical, Tati introduz-nos ao arquétipo do que seria uma casa moderna, onde moram a irmã, o cunhado e o sobrinho de Hulot. A villa Arpel situa-se num bairro de classe média alta, é cercada por um jardim geométrico com um lago e uma fonte em forma de peixe, no limiar do ridículo, tem uma cozinha que está altamente equipada com toda a tecnologia que pudesse existir à época, é rigorosamente higiénica, racionalmente organizada, planeada, silenciosa, funcional, numa fiel representação do que deveria ser a tão sonhada ordem moderna. Estes dois mundos estão claramente separados no filme, através do uso da cor e do som. Enquanto que em Saint Maur tudo tem cores mornas e temos os ruídos de bairro, na Villa Arpel, a cor é mais vibrante e todos os sons são insistentemente mecânicos. Hulot oscila entre os dois mundos e, sempre que vai visitar o sobrinho Gérard, atravessa as ruínas de um muro que divide a cidade tradicional do novo mundo, ou seja, que separa o ambiente onde ele vive, da modernidade, da qual a Villa Arpel é sua legítima representação. O Sr. Arpel, cunhado de Hulot e dono de uma fábrica de plásticos, tenta em vão encontrar-lhe um emprego, para que este possa ter um objectivo e corresponder aos padrões de um estilo de vida moderno, como o deles.

Na casa moderna o carro tem o lugar mais importante, e a aquisição de um portão automático de garagem é motivo de celebração. A própria casa é, na verdade, um espaço mais para ser mostrado às visitas, do que para ser vivido, pelo o que lhe falta a intimidade e a poesia do habitar a que assistimos em Saint Maur. É claro que a ridicularização da casa moderna é mais uma crítica contundente à nova burguesia ascendente, e é o próprio Jacques Tati que confessa em entrevista que a escolha de outro tipo de personagens como habitantes daquela casa fariam um filme completamente diferente.

Rita Dourado


9 de maio, 2007

biblioteca pública e arquivo regional de ponta delgada

Apresentação: Rita Dourado (Arquitecta)

Realização: Jean Luc Godard Argumento: Alberto Moravia Intérpretes: Brigitte Bardot, Michel Piccoli, Giorgia Moll, Jack Palance, Fritz Lang, Linda Veras Música: Georges Delerue e Piero Piccioni Drama França – 1963 103 Minutos M/12

LE MÉPRIS / O DESPREZO – JEAN-LUC GODARD (1963) Perante a impossibilidade de conseguir resumir ou explicar «O Desprezo», realizado por Jean-Luc Godard em 1963, contento-me aqui com a revelação de alguns indícios que apenas sugerem caminhos de leitura e que podem servir de ponto de partida para a descoberta de um filme que marca o período de glória da Nouvelle Vague. Adaptação livre do romance homónimo de Alberto Morávia, «O Desprezo», muito para além da narrativa, reflecte explicitamente as condições da sua própria produção. Aqui, a narrativa não é mais que um pretexto para reflectir sobre a ética da criação, para homenagear pessoalmente Fritz Lang e, sobretudo, para utilizar o cinema como processo de experimentação criativa. Numa magistral distanciação, é o próprio Godard que nos lê o texto do genérico e nos torna por instantes parte do elenco, ao voltar a câmara para o espectador. A adaptação de Godard estrutura-se em dois pilares narrativos interrelacionados. Por um lado, a crise conjugal do casal Paul (Michel Piccoli) e Camille (Brigitte Bardot) que começa quando Paul decide aceitar a oferta do produtor americano, Jeremy Prokosch (Jack Palance), para realizar o guião de uma grande produção sobre «A Odisseia». Por outro lado, coloca-se a questão do conflito artístico de Paul, que deixa de lado a sua vocação literária como dramaturgo e se vê envolvido no confronto que surge entre a interpretação comercial que Prokosch pretende e a profunda relação existencial que o realizador alemão Fritz Lang (que no filme faz dele mesmo), aspira a realizar. Neste duplo contexto, o filme mostra a transformação que se produz no sentimento de Camille por Paul, que evolui de amor, sublinhado na cena que abre o filme, à indiferença e desencanto, ao fim do amor, culminando em desprezo. Do ponto de vista formal, o filme estrutura-se em três actos, tal como na tragédia clássica. Uma primeira parte desenrola-se na Cinecittà, marcada pela dúvida de Paul em aceitar a realização do guião. Uma segunda parte, no novo apartamento de Roma de Paul e Camille, onde assistimos ao desencontro entre ambos. Finalmente, o desenlace em Capri, na casa Malaparte (também protagonista neste filme) onde ambos presenciam a realização de parte da adaptação de «A Odisseia». Não é por acaso que o filme que Lang está a realizar é «A Odisseia», não é por acaso que as imagens dos deuses intercalam com as imagens dos homens, que Bardot nada nua no mesmo oceano onde Penélope nada no filme de Lang, no mesmo mar e nas mesmas rochas onde as sereias seduziam os marinheiros de Ulisses. É como se a sua tragédia fosse uma e a mesma, como se nos fosse dada a visão dos deuses juntamente com a incapacidade de acção dos humanos. Paul, Camille e Prokosch evocam no filme Ulisses, Penélope e Poseídon, e a reflexão profunda em torno dos temas da obra épica de Homero, como o amor conjugal, a história do herói grego e as suas circunstâncias face ao mundo.

«O Desprezo» é também um filme auto-reflexivo de Godard, num particular momento de inquietude de si mesmo face ao amor, ao cinema e ao dinheiro. Paul surge-nos à semelhança de Godard e usa mesmo o seu chapéu, tal como Bardot usa uma peruca, assemelhando-se à sua companheira Anna Karina e, simultaneamente a Penélope. Godard inclui no processo de rodagem de «A Odisseia», os seus violentos desencontros com o produtor americano do filme que submeteu o próprio Godard a várias alterações de guião, incluindo a cena inicial de Bardot. Os lugares de rodagem acompanham o desenrolar dramático dos sentimentos das personagens. Durante a longa sequência que se desenrola no interior do apartamento de Paul e Camille, Godard usa lentos travellings laterais que fazem desviar a atenção do espectador para o espaço que envolve e separa as personagens. Já em Capri, a paisagem e a arquitectura alcançam uma presença tal que participam directamente na acção, nos encontros e desencontros das personagens. No interior da Casa Malaparte, Prokosch, Camille e Fritz Lang assistem ao desespero de Paul, que caminha em círculos, contendo a sua ira, atenuada perante uma vista aberta para o Mediterrâneo. Dentro da casa não é possível o diálogo sem que este seja quebrado pela visão das rochas e do mar, qualquer que seja o estado de espírito em que cada um se encontre. Os vãos não são janelas, mas antes molduras que fixam momentos da paisagem que insiste em habitar a casa, uma espécie de murais “vivos”. Ancorada na falésia e entre pinheiros mansos, a Casa Malaparte constitui uma memória arquitectónica do séc. XX, feita de prismas e de terraços mediterrânicos, reconhecível pela famosa escadaria trapezoidal de acesso à cobertura. Durante muito tempo atribuída ao arquitecto italiano Adalberto Libera, a casa Malaparte celebrizou-se através do olhar de Godard que, cerca de vinte anos depois da sua construção, a elegeu para cenário do desenlace da intriga de «O Desprezo». Nenhum sinal revela a sua função e é através da indiferença total às necessidades do uso quotidiano que a arquitectura adquire a tonalidade mítica que o filme e o próprio lugar impõem. Já no final, sem a existência de Prokosch, Lang e a sua equipa, com o próprio Godard como assistente, podem finalmente entregar-se ao processo livre de criação cinematográfica. O último plano do filme, um travelling onde a câmara de Godard, enquanto realizador do «O Desprezo», para além da ficção, se junta à de Fritz Lang que filma o Mediterrâneo e o céu para a cena da chegada de Ulisses a Ítaca.

Rita Dourado


16 de maio, 2007

biblioteca pública e arquivo regional de ponta delgada

METROPOLIS / METROPOLIS – FRITZ LANG (1927)

Apresentação: Jorge Kol de Carvalho (Arquitecto)

METRÓPOLIS, PEQUENA SÚMULA 80 ANOS DEPOIS

Realização: Fritz Lang Argumento: Thea von Harbou e Fritz Lang Intérpretes: Alfred Abel, Gustav Fröhlich, Fritz Rasp, Rudolf Klein-Rogge, Heinrich George, Theodor Loos, Brigitte Helm Música: Gottfried Huppertz Acção, Drama, Ficção Científica, Romance Alemanha - 1927 118 Minutos M/6

Metrópolis, é realizado por Fritz Lang sob argumento escrito pela sua mulher, após visita a Nova York, realizada em 1924. O Filme estreia em 1927, tendo ultrapassado todas as previsões de custo e de prazo. Fritz Lang, filho de arquitecto, deslumbra-se com a cidade de Nova York, com a sua imagem, com as suas arquitecturas verticais e com a organização enquanto cidade, elementos chave do filme. A constante presença do desenho da cidade e das suas diversas arquitecturas que ela encerra, impõem-se ao argumento, a que certamente a ausência de diálogos não será estranha. O desfilar de arquitecturas passa pelo escritório Art Deco, pelo estádio, pelos jardins, pela igreja neogótica, pela casa do cientista de contornos rurais, pelas casas dos trabalhadores escavadas na rocha, e obviamente pelos arranha céus, à luz da Torre de Babel, todos habilmente desenhados. A par da arquitectura, Lang traz-nos também a obsessão da maquinaria, tão comum a tantos arquitectos. Esta maquinaria, alimenta a cidade e no seu pulsar reflecte a condição humana. A consciencialização dessa condição, conduz à revolta da máquina humana, à destruição da mecânica, impondo o colapso das infraestruturas da cidade. A ficção do seu tempo transporta-nos à realidade do nosso.

Jorge Kol de Carvalho


30 de maio, 2007

biblioteca pública e arquivo regional de ponta delgada

PROFESSIONE: REPORTER / PROFISSÃO REPÓRTER – MICHELANGELO ANTONIONI (1975)

Apresentação: Rui Jorge Cabral (Jornalista)

SOBRE A IDENTIDADE OU A PRÓPRIA REALIDADE

Realização: Michelangelo Antonioni Argumento: Mark Peploe, Michelangelo Antonioni, Peter Wollen Intérpretes: Jack Nicholson, Maria Schneider, Jenny Runacre, Ian Hendry, Steven Berkoff Música: Ivan Vandor Drama Itália – 1975 126 Minutos M/12

David Locke é um repórter sem fronteiras, um fiel espelho da realidade política e social dos países que atravessa. Um dia, perdido no deserto, a meio de um trabalho perigoso, ensaia libertar-se da realidade, assumindo a personalidade de um desconhecido acabado de morrer. Como num eterno retorno, David Locke passa de sujeito a objecto da notícia, terminando a sua aventura ainda mais prisioneiro da realidade. Tudo isso parecerá pouco “real”. Mas esse é um dos pontos essenciais do cinema de Antonioni, para quem existirão eventualmente três dimensões do real: uma realidadeessência, um estado bruto anárquico, imperceptível ao entendimento humano; uma realidade visível, o real tal como o entendemos, reflexo da civilização e da sociedade e uma realidade subjectiva, fruto de um olhar artístico sobre o mundo. Há quem use essa realidade artística para aproximações positivas ou negativas à sociedade, mas Antonioni vai no sentido contrário: usa a mediação do cinema para uma aproximação ao real-essência, esse mundo anárquico de potencialidades infinitas. E não deixa de nos revelar a sua própria ideia de sociedade, onde a arquitectura desempenha um papel fundamental. A arquitectura para Antonioni é a marca mais perene da humanidade sobre a Natureza. A imagem no cinema funciona como o edifício. Mas como não se habitam casas só com chão, paredes e cobertura, há que recheá-las, torná-las confortáveis. Esse “recheio” no cinema é a narrativa, que torna habitável, leia-se compreensível, a realidade que nos é revelada pelas imagens. Tal como na arquitectura, as pessoas tendem a viver no recheio, mais do que no edifício. E têm mesmo dificuldade em entender o edifício como elemento global de conforto. Por isso, abusa-se da luz ou da climatização artificial. Também no cinema, é à narrativa que o espectador comum se agarra, para entender as imagens que, por si só, não consegue compreender.

A maior parte do cinema que nos chega, com as mais variadas origens, é um cinema do recheio, um cinema narrativo. Antonioni, pelo contrário, é um cineasta do edifício, da imagem, que usa nos limites tecnológicos do cinema para fazer aproximações arriscadas a esse real-essência que tanto o fascina. Nos seus filmes mais conhecidos – e “Profissão Repórter” não foge à regra – a narrativa é reduzida ao mínimo denominador comum (por vezes nem a isso), para que a imagem se expresse na sua máxima força. Não é possível entender qualquer personagem de Antonioni sem um mergulho na paisagem. Seja no deserto africano ou na aridez da Andaluzia espanhola, esse é o estado de espírito com que David Locke começa e termina a sua inadaptada existência de duas horas. Pelo meio, assistimos a sucessivas tentativas de uma metamorfose impossível, que a arquitectura de Gaudí tão bem cristaliza. Quando no topo de “La Pedrera”, David Locke tenta fugir à inevitabilidade de ser desmascarado, são as máscaras de Gaudí que o envolvem e que o transportam para um real-essência do qual ele desejaria nunca mais sair, como se não houvesse sonho sem despertar, ou filme sem final.

Rui Jorge Cabral


6 de junho, 2007

biblioteca pública e arquivo regional de ponta delgada

BLADE RUNNER / PERIGO IMINENTE - RIDLEY SCOTT (1982)

Apresentação: Manuela Braga (Arquitecta)

Realização: Ridley Scott Argumento: Philip K. Dick Intérpretes: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, M. Emmet Walsh Música: Vangelis Drama, Ficção Científica E.U.A. – 1982 117 Minutos M/12

É um filme de Ficção Científica realizado por Sir Ridley Scott e editado em 1982 em pleno movimento pós – modernista. A associação nostálgica da “imagem”,“música”,“atmosfera urbana pesada - 2019 em Los Angeles”, ”tensão psicológica com múltiplas leituras filosóficas e religiosas” fazem deste filme um filme de culto - tipo filme negro. A proposta de cidade contemporânea, em Blade Runner, é caótica. Sente-se a mescla de raças e culturas, a ocupação da rua a todas as horas, a decadência humana retratada em todo o seu esplendor. Os interiores transmitem-nos a nostalgia e a força da memória do passado - como se o presente já não existisse. É um filme apocalíptico, cheio de referências ao barroco, ao romântico, carregado de imagens que todos já vimos em livros de história e de arquitectura. O apartamento de J.F.Sebastian é uma história de encantar, referida à infância (os seus melhores amigos são os bonecos) onde Pris participa em cenário de fundo, disfarçada de boneca, no meio de centenas de silhuetas “Dejá Vu”. A história é transportada de dentro da tela para fora, todos fazemos parte do mundo que já não é ficção mas é a realidade de hoje. Um filme onde a fotografia e a memória são manipuladas entre a realidade e a ficção, tudo o que vemos é real. É esta a cidade do futuro? Já é esta a cidade em que vivemos. Um filme pós – modernista céptico: é a idade da fragmentação, da desintegração dos parâmetros morais e do caos social, das sirenes da polícia, da presença constante do crime. O excesso de população, o genocídio, o desenvolvimento de uma economia desajustada, a diferença (a torre de Tyrrel, o criador da nova espécie, em que a sua casa está ao nível das nuvens e do Sol). O homem comum vive na rua onde não há Sol, a luz que se vê é artificial, o álcool e as drogas e os entretenimentos perversos (a cena de ZhoraA- a multiplicação da imagem através dos vidros, espelhos, as montras sucessivas, o estilhaçar de milhares de partículas de vidros como reflexos de vida, a gabardina transparente com o corpo nu como uma boneca) a aura da cidade cheia de publicidade e out-doors (aura de inebriamento). Deckard diz após a morte de Roy (“Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?”).

Esta frase é o título de uma tela de Gauguin numa fase suicida da sua vida. Ridley Scott consegue transmitir as suas preocupações e tocar o espectador através da imagem da cidade (o tempo, o espaço, a arquitectura, o homem) A presença obsessiva do olho que aparece no início do filme com o reflexo da cidade como sua testemunha, a dilatação da pupila que denuncia o Andróide. O olho reduzido a objecto físico. O olho como testemunha da vida.: No fim do filme Roy diz”…. Eu vi coisas, que vocês não acreditariam. Ataque de naves em fogo ao largo de Orion. Todos estes momentos serão perdidos no tempo como lágrimas à chuva, tempo de morrer…” Este é o motivo central do filme “ not even seeing is believing” As únicas personagens que realmente vêem coisas novas e têm experiências originais são elas mesmas máquinas. O avanço da tecnologia a linha estreita entre o homem e a máquina, o natural e o simulado a realidade e a ficção. O fingimento de uma nova realidade. O conceito de realidade foi sempre uma invenção do ser humano. O que é a realidade? O que é a ficção? Hoje em dia experimentamos esta dicotomia: nas relações humanas, na noção do tempo, no espaço de vida, na cidade, na Net com os amigos imaginários que se podem tornar reais. A Identidade pode ser definida, como nos vemos a nós próprios, ou como os outros nos vêem a nós. As duas verdades não pertencem necessariamente à mesma realidade. Faço o convite a ver este filme mais do que uma vez. Talvez as diferentes versões: de realizador, do produtor, da distribuidora.

Manuela Braga


organização: Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada programação e coordenação: Sérgio Rodrigues, Rita Dourado, Vitor Marques apresentações: Sérgio Rodrigues, Catarina Pereira, Maria José Cavaco, Igor França, Isabel Albergaria, João Maia macedo, Rita Dourado, Kol de Carvalho, Rui cabral e Manuela Braga agradecimentos: Celeste Freitas, Iva Matos, Catarina Teixeira, Jorge Kol de Carvalho e a todo o público que nos acompanhou ao longo destas 10 semanas



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