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Cadernos de narrativas da cultura pernambucana / textos Chico Ludermir ... [et al.] ; organizadores Olívia Mindêlo e Chico Ludermir ; fotos Costa Neto ... [et al.] ; diretor de arte Adeildo Leite. – Recife : Secretaria de Cultura, 2013. 79p. : il. – (Série Carnaval-2012) 1. CARNAVAL – PERNAMBUCO – HISTÓRIA. 2. CULTURA – PERNAMBUCO. 3. MUNICÍPIOS – PERNAMBUCO – ASPECTOS CULTURAIS. 4. CARNAVAL – MUNICÍPIOS – PERNAMBUCO – HISTÓRIA. 5. DANÇAS FOLCLÓRICAS – PERNAMBUCO. 6. DANÇAS POPULARES E NACIONAIS – PERNAMBUCO. I. Ludermir, Chico. II. Mindêlo, Olívia. III. Costa Neto. IV. Leite, Adeildo. V. Série: Carnaval-2012. CDU 394.25 CDD 394.25
PeR – BPE 13-014
APRESENTAÇÃO Este caderno inaugura a série de narrativas especiais que a Secretaria de Cultura de Pernambuco (Secult/PE) e a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) pretendem publicar como parte de uma política pública comprometida com a memória e a divulgação da cultura pernambucana. O presente encarte, em particular, reúne 14 narrativas temáticas de Carnaval, produzidas para a seção Mergulhe do site oficial da folia do estado (www.carnavalpe2012.com.br), durante o mês de fevereiro de 2012. Para realizar os textos, as fotografias e os vídeos que estão no ar na citada página da internet (e em parte aqui), a equipe de Comunicação da Secult/PE e Fundarpe percorreu um trajeto narrativo por 11 cidades, entre as 20 selecionadas pelo Governo do Estado para compor a sua grade de Carnaval. Nas duas semanas que antecederam a grande festa e na própria folia de Momo, procuramos pôr os pés e os olhos por todas as regiões do estado – da Mata Norte, rica em sua tradição popular, ao Sertão, onde a grande festa é, em cidades como Triunfo e Salgueiro, uma manifestação autêntica de seu povo. Nazaré da Mata, Goiana, Timbaúba, Paudalho, Catende, Vitória de Santo Antão, Bezerros, Pesqueira, Águas Belas, Triunfo e Salgueiro foram os municípios escolhidos – pela sua beleza e pujança – para que pudéssemos fazer um mergulho nessa cultura tão genuína e contagiante chamada Carnaval. A mesma que fez Zé de Carro sonhar desde menino em ser brincante de maracatu e encorajou Fátima Dantas a se tornar a primeira mulher entre os caretas de Triunfo. Histórias assim, que às vezes passam batidas na poeira da folia, estão gravadas nas próximas páginas, convidando você a fazer também o seu mergulho por este universo que vai além da maré inebriante do Carnaval e das festas do Recife e Olinda. Secretaria de Cultura de Pernambuco Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco
foto | Priscilla Buhr
foto | Costa Neto
À esquerda, Caboclinho Sete Flexas, Sr. Nelson Cândido, mestre do caboclinho. À direita, carnaval do Paudalho
SUMÁRIO NAZARÉ DA MATA MARACATU, PALAVRA FEMININA ______________ 14
VITÓRIA DE SANTO ANTÃO A FOLIA DOS BICHOS _______________ 47
NAZARÉ DA MATA O CABOCLO ZÉ DE CARRO _____________________ 17
BEZERROS PAPANDO ANGU ___________________ 51
TIMBAÚBA BOIS, A SURPRESA E A ALEGRIA DA MATA NORTE _ 21
PESQUEIRA CARNAVAL PARA REVIVER UMA LENDA _ 54
GOIANA SEM DEIXAR A PRETINHA CAIR ________________ 26
ÁGUAS BELAS CARNAVAL DAS ETNIAS _____________ 59
GOIANA A HERDEIRA DAS PRETINHAS __________________ 30
TRIUNFO NO RASTRO DOS ESTALOS ___________ 63
PAUDALHO TRADIÇÃO ESCONDIDA ______________________ 35
SALGUEIRO CARNAVAL, FREVO E SANFONA _______ 68
CATENDE UMA USINA, UM CEMITÉRIO E UM BLOCO DE CARNAVAL _____________________________ 41
SALGUEIRO A BICHARADA DO MESTRE JAIME _____ 71
Nazaré da Mata
foto | Chico Ludermir
NAZARÉ DA MATA Conhecida como “A Terra do Maracatu”, Nazaré da Mata atrai um grande número de admiradores e foliões durante o Carnaval, devido à forte tradição dos caboclos de lança. Os grandes dias do Carnaval nazareno são a segunda e a terça-feiras, quando acontecem os encontros dos grupos de baque solto. O evento reúne 32 agremiações, com destaque para o Cambinda Brasileira – o mais antigo do mundo. Além dos maracatus, o Carnaval de Nazaré também apresenta manifestações populares como bois, blocos de ciranda e troças carnavalescas. De sábado a terça-feira, a cidade ainda conta com atrações de palco e trios elétricos do Clube Carnavalesco Jacaré em Folia, criado em 1956, arrastando cerca de 10 mil foliões. Nazaré da Mata está localizada na Zona da Mata Norte pernambucana, a 50Km do Recife e tem cerca de 30 mil habitantes. Na página à esq. • Caboclo de lança. Acima, em sentido horário • Caboclo de lança do Cambinda Brasileira • Maracatu Coração Nazareno • Mestra Gil, Maracatu Coração Nazareno Fotos | Chico Ludermir
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foto | Chico Ludermir
Integrante do grupo do Maracatu da Amunam
MARACATU, PALAVRA FEMININA MULHERES MUDAM HISTÓRIA DA MANIFESTAÇÃO MAIS FAMOSA DA ZONA DA MATA Por CHICO LUDERMIR (texto e fotos)
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Há sete anos Givanilda Maria da Silva mudou uma tradição e, num universo onde era vedada a participação de mulheres, virou mestra. Desde 2004, por acasos da vida, Mestra Gil está à frente do Coração Nazareno, único maracatu rural feminino de que se tem notícia até hoje. Por acasos da vida, porque tudo aconteceu muito tarde, quando nem mais ela mesma acreditava que seria possível. Aos 35 anos, depois de cinco filhos criados, ouviu falar de um maracatu, em criação, com caboclas de lança mulheres, o que pro imaginário da brincadeira chegava a ser revolucionário. “Então eu vou lá e vou brincar de cabocla, que era meu sonho”, disse ela. Mas, quando chegou lá não tinha mais vaga pra carregar o surrão (sinos) nas costas. Só tinha vaga para bandeirista. “Mas rapaz, que sina. Eu doida pra brincar de cabocla, vou brincar de bandeirista. Mas eu vou querer mesmo assim”, persistiu. Certo dia, a bandeirista chegou cansada na sede do maracatu e correu pro banho. Sem saber que estava sendo escutada, começou a cantar uma toada do mestre João Paulo, do Leão Misterioso, que dizia: “EM NAZARÉ, NA CULTURA NINGUÉM QUEBRA SEU TABU PORQUE JÁ É BATIZADA TERRA DO MARACATU” Mas acabou emendando uma versão: “E AMUNAM, NA CULTURA NINGUÉM QUEBRA SEU TABU QUE ELIANE RODRIGUES FEZ UM LINDO MARACATU” Aí todo mundo gostou! E foi um rebuliço. “Próximo ano é ela que vai ser a mestra. Ela sabe cantar”, diziam. Aí juntou o pessoal. Xoxa, Mariinha, Marinalva... “agitando” para Gil ser a mestra. 15
Nazaré da Mata
“Eu disse ‘eu não vou’, porque eu não sei cantar”, lembra de sua insegurança. Aí as meninas diziam: “Dá pra você cantar”. “Dá, não dou, dá não dou. Foi aquela cachorrada”, brinca, soltando uma gargalhada, repetida diversas vezes durante a narração. A Amunam que Mestra Gil cantou é a Associação de Mulheres de Nazaré da Mata, criada em 1988, por Eliane Rodrigues, para tratar de questões do gênero, como violência e educação sexual. Foi de lá que surgiu, há oito anos, a ideia de quebrar o tabu da participação da mulher no maracatu rural. O espaço destinado às mulheres no baque solto, tradicionalmente, era a cozinha. Mesmo as baianas, no começo, eram homens fantasiados. “Até a criação do Coração Nazareno, só sabemos de uma cabocla de lança. O maracatu de baque solto era um ambiente muito masculino e por isso é uma quebra de paradigma poder tirar a mulher deste lugar”, conta Rosângela Lima, 25 anos, educadora da Amunan. “As mulheres crescem ouvindo que mulher não pode isso, não pode aquilo, mas elas vieram para mostrar que podem, sim”, se orgulha. Marinalva Freitas, com 48 anos, é a cabocla mais velha do grupo. Com dois tios caboclos, nunca tinha tido oportunidade de brincar e conta que morreu de medo que o maracatu feminino fosse rejeitado. “Disse pro meu marido e ele nem acreditou”, lembra. “Tu vai aguentar?”, perguntou ele. Faz sete anos que ela dá a mesma resposta. No caso da Mestra Gil, o maracatu trouxe ainda outra novidade. Enquanto aprendia a fazer marcha, samba e galope (toques) com outros mestres, conheceu mestre Zé Duda, do Estrela de Ouro, com quem é casada há cinco anos. Além de companheiro, foi ele um dos poucos que deixou de lado o preconceito e aceitou passar o que sabia para as mulheres. Hoje em dia, a mestra tem reconhecimento Brasil afora. Já ganhou prêmio no Rio de Janeiro, foi aplaudida de pé em Brasília e, em Goiana, cidade vizinha, integrantes de outro maracatu se declaram seus fãs. “Não vou dizer que me orgulho, mas eu me sinto muito feliz. Represento as mulheres do Brasil. Represento minha mãe e outras mães”, conta com humildade. “Estou honrada em poder cantar maracatu e mostrar que mulher é capaz. Só me faltava um empurrãozinho para provar que podemos ser tudo, inclusive mestra de maracatu”, se alegra Gil. 16
foto | Chico Ludermir
Zé de Carro ao lado da fantasia de caboclo de lança
O CABOCLO ZÉ DE CARRO E O SENTIDO DESSA BRINCADEIRA CHAMADA MARACATU Por CHICO LUDERMIR (texto e fotos) Quando Zé de Carro começou a sambar maracatu, tinha só 15 anos. Mas já era um sonho antigo, que tinha sido diversas vezes tolhido pelo pai. Nascido e criado no Engenho Gambá, em Tracunhaém, na Zona da Mata Norte pernambucana, Zé via todos os homens da família brincando com uma ansiedade sem tamanho. Caboclo de lança experiente, o feitor do mato Mané de Carro sabia que a brincadeira era violenta demais para uma criança e segurou a vontade do filho até que ele virasse homem. “Logo mais chega a sua oportunidade”, dizia. 17
Nazaré da Mata
Meses antes do Carnaval de 1969, Zé começou a observar que seu pai estava criando alguns animais para vender. Com o dinheiro, pouco a pouco, ia comprando os acessórios de duas fantasias. Num certo dia, quando o menino já não segurava mais de curiosidade para saber se a segunda fantasia era dele ou do irmão mais velho, o pai disse: “Este ano tu vai brincar comigo.” O menino não se aguentou. Depois de ter colhido as rações dos animais, ficou tão contente que deu um abraço e um beijo no pai, bem durão. Era o que ele mais queria, brincar maracatu. Até chegar o Carnaval, Zé não largava o pé de Mané. Quando chegou a sexta-feira, o pai preparou o banho pro filho e pediu para que, depois da água limpa, se molhasse com a água “preparada” e não se enxugasse. Zé fez tudo precisamente como o pai mandou. Tomou banho e não se enxugou, colocou o “celorão” (meião que fica por baixo da roupa), a fofa (bermuda colorida com franja) e a camisa, que foi cuidadosamente abotoada pelo pai. Colocou também o surrão nas costas (os sinos) e depois, com a tinta vermelha da semente seca de azacão, teve o rosto pintado por Mané. O cravo, “preparado” por um pai de santo, foi trazido embrulhado em um lenço branco para que ficasse macio e verde até o fim da brincadeira. “Ele mandou que eu saísse primeiro. Disse pra eu colocar o pé direito na frente. Depois ele saiu, fez a exibição na frente de casa. Nos juntamos e ganhamos o mundo.” Zé lembra como se fosse hoje, mesmo depois dos 43 anos que se passaram. Naquele ano, assim como em vários outros que se sucederam, foi com o pai se apresentar nos engenhos vizinhos até a hora em que chegava o transporte do Maracatu Cambindinha. Três dias de brincadeira, como manda a tradição. Domingo, segunda, terça e voltar pra casa ainda batendo sino. Andou por muitos sítios respondendo às loas tiradas pelo mestre. O dinheiro, o povo botava na bandeira. Cinco mil réis, dez mil réis, que eram contados na frente de todos. De comida, uns peixinhos miúdos chamados cambindas, que eram comidos misturados com farinha e sal. “A gente comia e brincava satisfeito. Brincava por amor. E hoje, esse tempo todo depois, continuo brincando maracatu, com orgulho”, conta Zé. O tempo em que Zé virou caboclo de lança foi o mesmo em que o pai começou a mandálo pra palha da cana. Como o trabalho era muito pesado, arrumou suas malas 18
silenciosamente e fugiu pra Olinda. “Quando pai foi trabalhar, eu recolhi a ração, peguei uma bolsa e fui embora. Nem avisei. Naquela época era ‘couro’ mesmo. Aí eu saí escondido. Quando ele chegou em casa, teve uma grande surpresa. Porque eu só ia voltar pra fazer visita”, relembra. Em Olinda, Zé trabalhou como pedreiro no começo, depois em empresa de ônibus e, em seguida, numa firma de revestimentos, durante 17 anos. Mas não tinha um ano sequer que não ia pra Nazaré da Mata brincar Carnaval. Aos 58 anos, Zé se prepara para o seu 43º ano de surrão nas costas. Muita coisa mudou desde que o menino brincou pela primeira vez. O maracatu ganhou a cidade, ficou mais enfeitado. As mulheres passaram a participar e a tradição de violência deu lugar ao maracatu como expressão artística. Ele já é aposentado por motivo de saúde. Tem gastrite, úlcera, fez uma cirurgia de retirada do baço, tem diabetes e problema de fígado. “Eu sou impedido de fazer esforço. Mas o maracatu não é trabalho.” Hoje, ele também não precisa mais fugir da firma para brincar Carnaval, como fazia... Nesse cenário, Zé de Carro herdou de João de Padre, em 1991, o mais antigo maracatu de baque solto. “Fiz um trato com o dono de que levaria o maracatu até a morte. Antes de ele morrer, ele me confiou essa responsabilidade”. Fundado em 5 de janeiro de 1918, o Cambinda Brasileira é a maior paixão de Zé. Desde então, se esforça para manter o bloco erguido. Ao lado da mulher Lúcia, administra as fantasias, a banda e os brincantes, para que tudo corra perfeitamente. Já está quase tudo pronto para a abertura do Carnaval do Cambinda Brasileira, que há quase cem anos acontece no domingo de Momo, no Engenho Cumbe, zona rural de Nazaré da Mata. É lá onde Seu Zé espera todos os componentes chegarem. De lá, os 180 integrantes do grupo vão, em três ônibus e dois caminhões, se apresentar no Marco Zero, no Recife. E será mais um chance para Zé realizar seu maior sonho: ter seu maracatu como campeão do grupo especial do Carnaval. “Eu queria parar de brincar maracatu com esse prazer”, confessa. “Sentiria ainda mais orgulho por ser frenteiro da Cambinda.” 19
Timbaúba
TImBAÚBA Timbaúba, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, é considerada a Terra dos Bois, com cerca de 60 grupos. O tradicional encontro acontece nos domingos de Carnaval, reunindo os representantes da região, inclusive o mais antigo em atividade, o Boi do Trigo, fundado há mais de 40 anos. As agremiações típicas do município são formadas por estandarte, porta bandeira, a “Mulher da Mala”, os “toureiros” e os brincantes, em uma grande festa popular. Os bois desfilam em cortejo pelas ruas, a partir das 10h da manhã, chegando ao Centro da cidade por volta das 15h. A partir daí, os bois fazem a evolução para uma comissão que elege o vencedor do Carnaval de Timbaúba. A festa timbaubense conta ainda com blocos de frevo, caboclinhos, maracatus e escolas de samba. São cerca de 100 blocos e troças desfilando pelas ruas. A cidade fica a 98 km do Recife, e é também conhecida pela produção de redes e calçados.
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Em sentido horário, • Boi do Trigo • Seu Dedé, pres. do Boi Surpresa • Boi do Trigo Fotos | Costa Neto • Boi Surpresa, preparação para o carnaval 2012 Foto reprodução | Costa Neto
BOIS, A SURPRESA E A ALEGRIA DA MATA NORTE O QUE FAZ TIMBAÚBA UM LUGAR TÃO ESPECIAL NO CARNAVAL Por JULYA VASCONCELOS fotos COSTA NETO “O senhor pode cantar uma loa pra gente ver como é?”, pergunto ao Seu Cruá, no canto de uma saleta no Alto do Cruzeiro, na cidade de Timbaúba, na Zona da Mata Norte pernambucana. O boi está na nossa frente, nos últimos preparativos, sendo remexido por um grupo de adolescentes. “Essa é do pai de santo, sente aí”, me diz apontando para uma cadeira branca de ferro, num gesto meio gentil, meio afobado. Sento. Pouco tempo depois, fico sabendo que o pai de santo era ele próprio, Pai Cruá, e que aquele espaço era a sede do Boi do Trigo e, ao mesmo tempo, nada mais, nada menos que o “Palácio de Xangô”. Ele faz uma pausa como que preparando a garganta, engole seco, respira fundo e começa, em uma cadência bonita, arrastada, cheia de sotaque: “VAQUEIRO PRA SER VAQUEIRO VAQUEIRO DO MEU SERTÃO DERRUBA GADO NO CHÃO A CULTURA DE TIMBAÚBA É UMA CULTURA ESPECIAL E SAINDO DOS TRÊS MORROS O BOI DE CARNAVAL” 21
Timbaúba
A loa é a toada, o improviso em versos, o canto que o mestre cria no meio da apresentação do boi. “Minha língua às vezes dobra, mas dá pra sair som”, diz, arrancando uma risada geral, ciente da sua língua presa, que lhe dá uma dicção por vezes incompreensível. Cruá é o apelido de Rosenildo José da Silva, de 42 anos, presidente do boi mais antigo em atividade da cidade de Timbaúba: o lendário Boi do Trigo, que existe desde 1968. O grupo foi fundado por Seu Elias, já falecido. Ele era padeiro da antiga Panificadora Paris. Juntou-se a mais dois companheiros, Cumpade Fulô (que era cirandeiro) e Biu Macena (tocador de caixa), e então eles começaram a sair no Carnaval. Levaram um boi vestido com aqueles sacos industriais de farinha de trigo que eram largados pelos cantos da padaria. Em 1989, Cruá conta que já fazia três anos que o boi do Trigo estava parado. “Eu perguntei pra Seu Elias, que já tava muito velho, se ele não queria me vender o boi. Ele disse que sim, aí eu comprei”. Comprar o boi significa, de certa maneira, comprar a sua tradição, seu nome e, claro, a batucada (os instrumentos). E foi assim, de um jeito tão simples, que Cruá se tornou o presidente do boi mais tradicional de Timbaúba.
foto | Costa Neto
Enquanto a gente conversa, a cidade está calma. As crianças, comportadas em uma varanda, em meio a máscaras carnavalescas. Há lá mais um grupo de meninos de uns 15 anos, que pintavam os cabelos com água oxigenada na frente da casa de Seu Cruá, fazendo um (quase) Carnaval particular. Mas por detrás de várias daquelas portas trancadas, eles me garantem que há um boi sendo enfeitado em segredo pro domingo de Carnaval, dia do tradicional Concurso Municipal de Bois, que já entra no seu 13º ano em 2012. Há mais de 50 grupos em Timbaúba, cada um com cerca de 70 integrantes.
Boi do TrigoTimbaúba Seu Cruá - Presidente do Boi do Trigo
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Pergunto se os meninos participam, se dão valor à tradição. “Oxe, e então! Com quatro ou cinco anos já começam a brincar, mas não é tudinho, não”, conta Seu Cruá, revelando que também muitos deles, quando crescem mais um pouco, só querem saber “de namoro e axé”. Ednaldo, de 17 anos, carrega o boi e diz que é “uma alegria poder brincar”. Emerson, Riquelme, César e Rosângela também participam da festa, e usam a mesma palavra pra descrever a emoção: “alegria”, que às vezes varia um pouco para “felicidade”. Não sei se ficam tímidos e repetem sempre a frase do amigo, mas a verdade é que falam com um sorriso sincero.
A maior parte dos meninos é de toureiro, o personagem que “fica toreando na frente do boi, com um pano vermelho”. Cruá conta que cada personagem do boi tem importância essencial para a beleza da apresentação. “É a batucada, com zabumbeiro, caixeiro, mineiro, gonguê e a buzina. Aí tem o boi, a burrica, o vaqueiro, a rainha e a contra-rainha, a caterina e a caixeira, a porta-estandarte, o mestre e o contra-mestre”, ensina. Em Timbaúba, os bois desfilam na Passarela de Eventos, que fica no Centro da cidade. São avaliados por um corpo de jurados que analisa evolução, toada, fantasia, e outros quesitos. Apresentam-se disputando um troféu, um prêmio em dinheiro e a glória de ser o boi mais bonito do Carnaval. Além de mover o município, isso faz com que exista muita rivalidade entre os bois e os morros dos seus integrantes: os altos de Santa Teresinha, do Cruzeiro e da Independência. “Existe muita provocação entre os bois, muita competição e rivalidade”, afirma Seu Cruá.
O BOI VENCEDOR
Na pacata Rua da Cruz, que fica no bairro de Timbaubinha, às margens do Alto do Cruzeiro, dá pra ver uma ponte pintada de verde, sob a qual passa o Rio Capibaribe Mirim. A poucos metros daí é a casa de Seu Dedé, presidente do Boi Surpresa, que venceu o Concurso de Bois de Timbaúba em 2011. Quando chegamos, quem nos atende é uma senhora alta e forte, Dona Maria José, esposa de Seu Dedé e caixeira do Boi (ou Mulher da Caixa, que arrecada as doações da população durante o cortejo e depois divide entre todos). Ela explica que ele teve que sair, mas que volta logo. “Vocês querem ir vendo o boi?.” Antes de qualquer resposta, já vai abrindo a portinha do muro azul reluzente ao lado da sua casa para revelar o segredo: o Boi Surpresa brilha quando o sol entra na sala escura de Dona Maria. Cheio de espelhinhos, brocal e lantejoulas, o boi parece luxuoso, lembrando aquelas alegorias de escola de samba. Enquanto admiramos o boi, Seu Dedé entra como um raio e senta perto da mulher. No começo fala pouco, uma palavra ou outra. Mas quando perguntado sobre seu sentimento, ele enche os olhos de lágrimas e dispara um demorado “Oooxe!”. “A alegria é grande demais, eu tenho prazer e só gosto de botar na avenida um boi bonito”. 23
Timbaúba
Seu Dedé e Dona Maria José fundaram o Surpresa há seis anos. Mas ele conta que brinca nos bois desde os 12 anos de idade. Ela diz que se apaixonou pela história por causa do marido. A paixão de Seu Dedé é tanta que além do incentivo financeiro da prefeitura, ele tira dinheiro das suas economias para comprar os materiais da melhor qualidade. “Tá vendo isso aqui? Isso é muito caro!”, exclama mostrando o tecido da roupa do mestre. “Eu fico agoniado, agoniado. Nem durmo direito”, diz ele. De dentro das caixas espalhadas pela casa, eles vão mostrando, uma a uma, as fantasias feitas para cada um dos quase 60 integrantes do boi. Botas, vestidos cor-de-rosa, camisas que tinham uma aplicação de brilho trazido diretamente do Rio de Janeiro, chapéus de palha coloridos... Depois de abrirem todas as caixas, satisfeitos, Seu Dedé questiona: “O bicho pega ou não?”, e ri de sua própria frase.
A BUZINA
No meio de qualquer conversa sobre bois de Carnaval em Timbaúba, alguém menciona, sempre em tom de orgulho, a existência da buzina. Seu Cruá toca o instrumento retorcido de metal, que mais parece um chifre que uma buzina, e espalha um som partido, insistente, meio grave. “No começo, os bois usavam chifres”, diz Aurineide Ferreira, sua filha. “Mas eram menores que aqueles de boiadeiro e nem sempre eram fáceis de achar, nem sempre dava pra ter o som que queriam”. Essa história chegou no ouvido de Seu Amaro, que resolveu criar um instrumento de lata de óleo e começou a trabalhar nas suas “dobraduras”, como diz Aurineide. Esse senhor, que tinha uma oficina de lanternagem e prazer por inventar objetos – além de um talento especial para afinar instrumentos – sabia achar o som perfeito que os mestres de boi buscavam. Aurineide diz que “ele sabia ler e escrever sem nunca ter estudado; afinava instrumentos sem saber tocar uma nota”. Parte integrante da batucada do boi, a buzina só existe na cidade pernambucana e era fabricada apenas pelo lanterneiro, falecido há dois anos. Dizem que Nildo, seu filho, é o único que domina a arte do pai. Este ano, o concurso homenageou Seu Amaro, ao som das buzinas e das toadas bonitas dos bois de Timbaúba. 24
Goiana
GOIANA Cidade mais populosa da Zona da Mata Norte pernambucana, com cerca de 75 mil habitantes, Goiana é reconhecida pela abundância de caboclinhos, uma das mais expressivas manifestações populares do Estado. A 62 km do Recife, o município se destaca também, pelas Pretinhas do Congo e, no universo do frevo, pelas duas bandas em atividade mais antigas da América Latina. Saboeira e Curica vão às ruas desde meados de 1800 e têm uma história de rivalidade antiga, que remonta aos tempos do Império. A cidade possui também, 92 grupos, entre blocos e troças, que desfilam durante o Carnaval.
Caboclinho Sete Flexas se prepara para o carnaval Fotos | Costa Neto
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foto | Chico Ludermir
Mestre Val com sua família
SEM DEIXAR A PRETINHA CAIR BRINCANTES DA ZONA DA MATA RESISTEM COMO MEMÓRIA VIVA DE UMA TRADIÇÃO SECULAR Por CHICO LUDERMIR (texto e fotos) Depois de uma hora e meia de viagem, saindo do Recife, chegamos a Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco. Nos encaminhamos para o Baldo do Rio, um bairro de casas pequenas e ribeirinhas onde, conta-se, surgiram as Pretinhas do Congo, em 1936. À beira do Rio Goiana, encontramos o senhor de olhar um pouco baixo, mas que não demora em soltar seu primeiro de muitos sorrisos. É ele que lembra que, aos 10 anos, viu de dentro de sua casa sair, pela última vez, um grupo de moças vestidas de preto, branco e vermelho, dançando ao som de uma percussão africana, relembrando a escravidão que, na época, ainda era muito recente na história daqueles negros. 26
É verdade que as datas, os nomes e os lugares estão muito incertos nas lembranças de Edvaldo Ramos. Aos 74 anos, não é tão fácil precisar os fatos e, ao buscar na memória, Mestre Val sempre acaba se confundindo nas contas. Bem vivos na cabeça, no entanto, estão os resquícios de uma tradição popular, passada oralmente através de letras de músicas cantadas há quase um século. Depois da morte de Mané de Pirrixiu, antigo mestre do bloco, passaram-se anos. As pretinhas “caíram”, como conta Mestre Val, mas a saudade da brincadeira ficou. Perto dos 18 anos de idade, junto ao irmão Lenildo, Val “levantou” o bloco e assim estão até hoje. “No começo, tinha ano que eu tinha até que vender minha canoa de pesca pra comprar as roupas e os bombos. Eu me virava, mas as pretinhas saíam na rua todo ano”, lembra, escancarando o riso. “Se a gente faz pelas pretinhas, por amor, logo depois elas devolvem ainda melhor”. Na casa que ele divide com Pelada, sua atual companheira, fica clara a ligação com o candomblé, que ele também chama de jurema. Devoto do orixá dos trovões, Xangô, Mestre Val tem em sua sala uma coleção de imagens africanas, que se misturam com santos católicos, evidenciando o sincretismo religioso, comum nas nossas expressões populares. É lá que muitas vezes vão procurá-lo para que, com sua mão e sua fé, traga de volta a saúde dos doentes. Contando isso, ele me dá de presente um leite tirado, naquele dia, do peito de uma jumenta. “Este cura gastrite, úlcera, tuberculose. Só não pode tomar se tiver muito fraco, que cai duro no chão”, me diz, ao me oferecer um copo. “Até pro Hospital da Restauração mando esse leite”, se orgulha. Mas é na casa de Dona Iraci, sua primeira esposa, que sentamos pra conversar. No final de uma casa comprida, toda a família se reúne para compartilhar as vivências de um costume que é claramente passado de geração em geração. Atualmente, é a filha Rosa Maria dos Santos a presidente do bloco. Ela já foi bandeirista, escrava, baiana e pretinha na agremiação. Hoje é ela também que ajuda na confecção das fantasias e que comanda os ensaios dançados de uma brincadeira que pratica desde os 10 anos de idade. Quase meio século depois, ela garante que, quando seu pai se for, vai fazer de tudo pra perpetuar a dança das Pretinhas. 27
Goiana
Ao som de cachorros, gatos, patos e galinhas, criados no quintal, Rosa, Dona Iraci e Mestre Val explicam, tintim por tintim, os personagens da brincadeira. E lá vem a lista: rei, rainha, vassalos, senhor e senhora de engenho, mucama, capitão do mato, baianas, bandeirista, escravos e escravas, numa evocação ao que acontecia na época em que Pernambuco mantinha os pés bem fincados na vida em volta da cana-de-açúcar, protagonista no cenário da Zona da Mata do estado. Nenhum dos três aprendeu a ler. Viveram da pesca durante toda a vida. Fumando um cigarro enrolado na hora e um cachimbo, eles me contam, contudo, que a música não precisa ser escrita para que eles lembrem. “Quando eu penso que não, os espíritos dos escravos antigos cantam no meu ouvido. Aí no outro dia eu digo pros outros integrantes, que é pra eu não esquecer. A gente esquece uma e aparece outra tão diferente...”, conta Mestre Val, sem medo de ser desacreditado. E emenda logo cantando uma toada: “NO TEMPO DA ESCRAVIDÃO PRETO VELHO TAMBÉM TRABALHOU ASSENTADO NA SUA SENZALA SARAVÁ, OGUM E SARAVÁ, XANGÔ BATE NAGÔ E BATE MACUMBA SANTO ANTÔNIO É DE CONGO DANÇANDO MACUMBA AI SENHOR SENHORZINHO QUE AQUI ESTÁ A CORRENTE É PESADA NÃO POSSO ARRASTAR LHE PEÇO POR DEUS E POR NOSSA SENHORA LIVRAI-ME ESTA DOR QUE ESTÁ NESSA HORA” “Os escravos cantavam. Eles incorporavam e cantavam. Aí o povo aprendia”, explica o mestre. Na casa de Dona Iraci, os sete filhos foram criados com o dinheiro da pesca no Rio Goiana. Chilapo, choia, bagre, camarão, amoré, caranguejo e siri. Até hoje, a conselheira das Pretinhas do Congo sai no seu barquinho para pescar no “copo” feito de ripas de dendê. De sua família, quatro ainda saem na agremiação, entre filhos e netos. Verônica, de apenas 10 anos, já é a rainha. Pensou até em ser crente uma época, mas gostava tanto da brincadeira que acabou herdando o trono da tia, Popó, que deixou a coroa para casar. “A gente brinca, porque tem amor à brincadeira, à nossa cultura”, conta a pequena e logo a avó Iraci emenda: “Bem dizer, meu filho, é a família toda. Vai nascendo, vai crescendo e vai saindo (no bloco)”. 28
OXUM
O mesmo rio que sustenta a comunidade do Baldo levou, em 1961, casas inteiras feitas de palha. Foi a maior cheia da história da cidade. Foi justo no dia 14 de abril daquele ano que Iraci e Val se conheceram. “A cheia maior que teve trouxe meu amor”, brinca o mestre, logo retrucado com graça por Rosa. “E quantos corações o senhor tem pra amar tanta mulher? Dez é?”
foto | Chico Ludermir
A cheia do passado, apesar de maior, é bem mais leve nas lembranças da família do que outra mais recente. Em 2011, a sede das Pretinhas foi mais uma vez levada pela correnteza. Fantasias, instrumentos, tudo se foi com as águas do mês de julho. “A cheia foi grande, mas não destruiu a dignidade da gente”, se emociona Rosa. “A gente arranja força pra sair e brincar. A vontade de botar as Pretinhas na rua é tamanha que você não sente nem doença. Não vai dar pra sair do jeito que a gente queria, com carro alegórico, mas a gente tá muito feliz, porque estamos vivos”.
Mestre Val toca enquanto fuma.
É verdade que o corre-corre é grande. Fica todo mundo estressado, não consegue se alimentar direito, mas parece que existe algo maior que sustenta essa tradição. “Eu mesmo não sei nem explicar. Às vezes eu pensava: ‘Vou acabar, vou acabar’. Mas quando ia chegando perto ia me dando aquela quentura. Eu fazia seja lá o que fosse pra botar ela pra frente. Tomava dinheiro emprestado, vendia minhas coisas...”, conta o mestre. “As pretinhas fazem parte da nossa vida. Dos nossos antepassados. É nossa família. Se a gente sair dela, a gente morre. Se um dia meu pai morrer, eu vou tomar conta e não deixo ela cair”, anuncia Rosa, que este ano vai às ruas de Goiana, em meio aos famosos caboclinhos da cidade, no domingo de Carnaval. 29
foto | Chico Ludermir
A HERDEIRA DAS PRETINHAS DONA CARMINHA CONTA COMO LEVOU ADIANTE A BRINCADEIRA DO PAI POR CHICO LUDERMIR (texto e fotos) 30
É verdade que são pouquíssimos os meus anos de experiência. Tanto como jornalista, quanto como homem. Mas talvez tenha vindo mesmo daí a beleza do encontro com alguém tão dessemelhante. Chego a Carne de Vaca através de uma rodovia que desemboca numa ladeira. É de cima dessa ladeira que recebo do verde do mar as boas vindas. Ali, há 40 km da sede do município de Goiana, o lugar, em seu silêncio, parece pronto pra revelar. E, assim, adentro. Na cidade, na casa de Dona Carminha, ao mesmo tempo em que na história da herdeira das Pretinhas do Congo, manifestação popular carnavalesca. Aos 86 anos, 63 a mais do que eu, Maria do Carmo Monteiro da Silva me espera sentada na sua cadeira, no canto da sala, acompanhada de mais três gerações de sua família: filha, neta, bisneta. Com a voz já embargada pela idade, conta a história da sua vida, ao mesmo tempo em que reconstrói a tradição repassada pelo pai, Mané de Pirrixiu, desde os tempos de menina. “Vou-me embora pra Paraíba e tu fica brincando”, teria dito um certo Manuel de Miguel, criador das Pretinhas, pra Pirrixiu. “Fico”, teria respondido, sem titubear, o pai de Carminha, tornando-se, instantaneamente, o detentor da agremiação, em meados da década de 1930. Aí ele ficou. E nessa época, com 10 anos, Carminha queria era dançar, mas era muito pequena. O pai achava que ela não ia aguentar. “Fiquei calada, na vontade. E ele botando a brincadeira”. Mas pareceu que a fortuna sorriu pra Carminha, quando a moça que puxava o cordão disse a ela que ia se casar. “Ela me disse assim: ‘Carminha, se tu quiser brincar, tu brinca agora, que mulher casada não pode brincar, não’”. Quando eu disse a meu pai, ele ficou muito surpreso, mas como não tinha ninguém pra puxar, fui eu. Aí eu brinquei e fiquei até hoje. Ele morreu e eu continuei a brincadeira”. Engraçado é a naturalidade com que Carminha conta a história. Como se pra mim também fosse familiar tudo aquilo. E se eu não paro pra perguntar, me perco no vocabulário novo. “Colocar a brincadeira” é conduzir, como mestre, “puxar cordão” é dançar; “puíca” é cuíca. E assim ela me explica como se faz uma... 31
Goiana
Dessa forma, despretensiosa, acabo entendendo um pouco o repertório da brincadeira, a mesma que acontece na sede de Goiana, sob o comando de Mestre Val. Uma tradição que resgata o imaginário sofrido dos engenhos da cana-de-açúcar dos tempos da escravidão. Senhores e senhoras de engenho, vassalos e escravos, reis e rainhas negras que dançam ao som das toadas puxadas pela mestra. Só que para Dona Carminha, a coisa é menos religiosa e mais consuetudinária do que em Mestre Val. É uma paixão terrena que ela recebeu do pai e gostaria de passar para a filha. O pior é que ela mesma não acredita que ninguém, além dela, queira e saiba de verdade manter a tradição. “Só quem sabe cantar sou eu. Eu mesma não esqueço das letras, não. Mas quando eu for embora, eu levo as letras comigo”, diz ela, logo retrucada pela filha Iracema: “Ela diz que acaba, mas eu vou continuar”. Cema é única das filhas que sai com Carminha. É ela que comanda a resposta (o coro) do bloco, numa preparação para possivelmente liderar a brincadeira no futuro. A preocupação de Carminha não é descabida. Com longos anos de vida e algumas doenças acumuladas, Dona Carminha passou mal há três anos, enquanto puxava as Pretinhas. A pressão ficou só na “peinha”, de tão alta. Foi socorrida e teve que voltar pro casarão, de onde o bloco saiu. Mas, depois de descansar um pouco, não teve quem segurasse a danada, que voltou puxando mais uma jornada. “Quando melhorei um bocadinho, eu fui lá cantei”, diz ela numa prova de amor, como se precisasse. “E se não gostasse eu tava brincando até hoje? Eu brinco e tenho pena de acabar. Agora, chegando a morte, eu tenho que ir. E já tá chegando, que eu tou velha. Mas eu não tenho medo, não. Tenho lembrança”, fala em tom de nostalgia. Engraçado é que, depois de me contar tanta história bonita, Carminha ainda acha que não falou: -Mas tu não quer saber disso não, né? Tu quer a história das Pretinhas, né? -Mas essa história tá muito bonita! E a senhora é também a história das Pretinhas. -Eeeita (solta ela em tom bem agudo). E volta a contar do começo, do primeiro ano em que puxou cordão até quando o pai morreu, muito de repente e ela assumiu o comando. Acabou se mudando para Carne de Vaca, onde vive até hoje, numa casa, que antes era de tábua e hoje é de tijolo bem firme e que não alaga mais. 32
Perto de ir embora, me permito perguntar qual foi a maior alegria da vida de Carminha, num desejo de aprender mesmo com alguém que já viveu tanto. Meio sem jeito até pra se emocionar, ela conta: “Quando meu pai morreu, eu vivia de cachorro pra baixo dez graus. Não sabia nem quando eu ia comer. Foi quando eu tive alegria, quando achei um homem que me desse de comer”. Carminha descreve, com pesar, os três meses que passou vendo passar o dia, a noite e entrar outro dia e ela sem ter o que comer. Ficava num canto sentada, sentindo um buraco dentro do estômago. O sol quente, e ela sentada, sem ter o que fazer. Foi quando Jaime a viu e perguntou a uma irmã o que Carminha tinha. “Quando ele veio, eu disse: ‘É fome, já viu?’”. Nesse mesmo dia, ela já se casou com ele e, daí em diante, nunca mais teve fome. Acabo emendando outra pergunta, por não saber mesmo o que dizer dessa história de alegria: - E que a senhora pretende fazer de agora por diante? - Eu vou brincando até chegar o dia de morrer. Quando chegar o dia de morrer, eu morro e acabou-se a brincadeira, resume, depois de mais de duas horas de conversa. - Ele tá com vontade mesmo de chegar em casa de noite, né?, se impressiona com o meu interesse.
D. Carminha segurando o figurino das pretinhas
foto | Chico Ludermir
E eu, de cá, me impressionei também.
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Paudalho
PAUDALHO O Carnaval do Paudalho é um dos mais tradicionais de Pernambuco, a começar pela presença do Clube Lenhadores, um patrimônio cultural com mais de um século de história. A agremiação vermelha e preta faz as honras da folia local ao lado de dois outros clubes tradicionais: o Estrela do Paudalho, com 97 anos, e o Cruzeiro do Sul, com 60. Todos os anos, nas noites carnavalescas, eles desfilam pelas ruas da cidade. Afora os clubes, existem em Paudalho três blocos líricos, 58 blocos, 38 bois, três caboclinhos, sete maracatus e oito escolas de samba contabilizados pela prefeitura. O município do Paudalho está situado a cerca de 40 km do Recife, na Zona da Mata Norte pernambucana. A cidade tem 51 mil habitantes e, com sua forte religiosidade católica, é conhecida também como a Terra da Romaria, mais especificamente de São Severino dos Ramos. Em sentido horário, Público nos shows • Cortejo do Boi Jardim • Caboclinho Amambé • Cortejo do Boi Jardim Fotos | Priscilla Buhr
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foto | Olívia Mindêlo
João Artur com adereço do Clube Estrela do Paudalho
TRADIÇÃO ESCONDIDA CARNAVAL DO PAUDALHO TEM MAIS DE UM SÉCULO E CONTINUA VIVO Por OLÍVIA MINDÊLO (texto e fotos) Pelas contas de João Artur, são três clubes tradicionais, três blocos líricos, 58 blocos, 38 bois, três caboclinhos, sete maracatus e oito escolas de samba, sem contar outros grupos e troças. João Artur é artista plástico, carnavalesco, amante-pesquisador da cultura popular e agora também gerente de Turismo. Os números que ele lista podiam ser de um bairro de Olinda ou do Recife, mas não são; são do Paudalho, cidade da Zona da Mata Norte de Pernambuco que costuma ferver no período carnavalesco. 35
Goiana
João nasceu, cresceu e viveu muitos carnavais na terra da romaria, onde atualmente mora e trabalha. Mesmo assim, até hoje fica “besta com a cultura enraizada no local”. E não é preciso ele falar muito pra gente também ficar admirado. Paudalho tem um desses carnavais surpreendentes no estado, a questão é que “a imprensa não divulga muito”, como dizem por lá. Eu mesma, foliã desde o útero, nunca tinha sequer ido ao Paudalho nesta época e bastou eu pisar na cidade alguns segundos para ouvir os primeiros clarins de Momo. “Ah, o Carnaval do Paudalho já começou faz tempo”, me disse uma funcionária da prefeitura. Cheguei à cidade na sexta-feira de abertura oficial da folia pernambucana, junto à chuva que entoava seus primeiros sinais e anunciava, até então, lavar foliões ladeira abaixo, ladeira acima. No Paudalho, também tem subida e descida. E enquanto eu descia a avenida principal, os primeiros pingos escorriam na minha cabeça e na dos brincantes que seguiam um bloco uma esquina adiante. Apressei o passo para chegar mais perto e a chuva também apressou. Açougue, farmácia, padaria, loja, tudo parou pra ver a trocinha de funcionários públicos municipais. As fitinhas coloridas, penduradas de um poste a outro da rua, já sacudiam mais forte quando fui surpreendida por uma sombra-abrigo sobre minha cabeça. Era um guarda-chuva que um senhor, de bigode e chapéu, teve a gentileza de compartilhar comigo. - Opa, obrigada! - De nada (sorrindo) - E esse Carnaval do Paudalho é mesmo animado? (perguntei) - É, parece que esse ano tá bem animado mesmo! A senhora é daqui? - Não, sou do Recife. - Então aproveite, seja bem-vinda, minha filha. Segui meu percurso com alegria e tentei reparar mais na cidade, sabendo que não iria ficar no restante dos dias. Em meio àquele buruçu de comércio, carro, chuva, Carnaval, reparei numas casas antigas, com azulejo e janelas de estilo mouro. Paudalho é curiosa... 36
Fui à procura de João Artur e conversando com ele sobre a relação da cidade com o Carnaval, fiquei ainda mais curiosa. Ele me contou que Paudalho tem um tal de Banho de Frevo nos dias de folia. “Como assim?”, perguntei. “As pessoas ficam ali, logo embaixo, no Parque Beira Rio, tomando banho de água perfumada, enquanto ficam rolando os shows”. E me confessou que o nome é Banho de Frevo, porque Banho de Cheiro a cidade de Chã de Alegria, bem perto dali, já tinha e eles não podiam copiar. Quando o banho foi criado, em 2006, o Carnaval do Paudalho estava um pouco desanimado. A frevança na água perfumada veio para substituir a Manhã de Sol, um melamela que já não cabia nos clubes lotados. Hoje, o Banho de Frevo acontece a céu aberto, nas tardes do domingo, da segunda e da terça de Carnaval, ao som de atrações como o cantor Almir Rouche, por exemplo. Trio elétrico? Nem pensar, ele não passam por lá. Pela manhã, nos mesmos dias, desfilam bois, caboclinhos, maracatus, troças e outros grupos do Paudalho e de cidades vizinhas. À noite, é a vez dos desfiles mais esperados da cidade: o das escolas de samba e, principalmente, dos clubes carnavalescos, a maior marca do Carnaval paudalhense.
CLUBES
No Paudalho ninguém é simplesmente folião; é “vermelho e branco”, “vermelho e preto” ou “verde, vermelho e branco”. As cores não são de time de futebol, mas a paixão é bem semelhante, quando se trata de escolher de que “lado” se está no Carnaval da cidade: se no lado alvirrubro do Clube Estrela do Paudalho; se no rubro-negro do Clube Lenhadores do Paudalho; ou se no lado tricolor do Cruzeiro do Sul. O Lenhadores tem 105 anos. De acordo com a agremiação, é o segundo mais antigo, depois do Lenhadores do Recife. E o Estrela, o vermelho e branco, está prestes a completar 97 anos. Corri para conhecê-los, na companhia generosa de João Artur. No Paudalho, não tem Mangueira, Portela, Pitombeira ou Elefantes de Olinda. Rio de Janeiro ou Recife podiam nem existir. Só dá Lenhadores, Estrela e Cruzeiro do Sul. Estão no sangue dos paudalhenses. Tanto que além do apoio da prefeitura – que, em 2012, liberou uma verba de R$ 25 mil para cada um preparar seu desfile –, os clubes também recebem patrocínio espontâneo de seus seguidores, geralmente comerciantes, profissionais liberais e outros cidadãos mais abastados. Essas colaborações chegam a ser, inclusive, motivo de competição. 37
Goiana
“Interior é muito engraçado... Se o comerciante da rua tal deu tanto pro Lenhadores, então o outro comerciante tem que dar mais pro Estrela. É aquela rivalidade boa”, conta João. Como outros carnavalescos do Paudalho, ele diz que a disputa já viveu seus dias mais acirrados. A rivalidade já foi tanta que ninguém, além do presidente e do carnavalesco do clube, sabia o tema do desfile de cada clube antes da esperada noite de domingo de Carnaval. “Às vezes, o tema acabava vazando. Uma vez descobrimos que o Lenhadores ia desfilar em homenagem ao Japão, então a gente se vestiu com uma roupa japonesa e passou de carro, buzinando e debochando na frente do clube”. A lembrança é de Johnny Welisson Batista, presidente atual do Clube Estrela do Paudalho. Ele tem 27 anos e acredita muito no Carnaval da sua cidade, apesar de achar que está um pouco ameaçado. Ele não esconde o tema de 2012: os 200 anos do Paudalho. Foi de João Artur, inclusive, a ideia. E foi dele também toda a concepção das fantasias luxuosas que começavam a ganhar vida numa casa alugada só para isso. Lá me levando, mostrou as cabeças e outras peças que seu grupo preparava. A tradição católica, a história indígena da região e os azulejos (aqueles que reparei na cidade) foram algumas das referências exploradas por ele por meio de penas, pedras, miçangas e purpurina. No Lenhadores, a tradição do segredo ainda é mantida. “Olhe, vou lhe dizer, nem eu sei qual o tema desse ano”, desconversa Joubert Rosa de Oliveira, enquanto me mostra o memorial que construiu para o clube. Caubi, como Joubert é conhecido, já foi homem de farda e passou muito tempo longe do Paudalho. Desde que se entende por gente, no entanto, sua alma é mesmo vermelha e preta. Tanto que ele nem hesitou em tornar à casa em 2001 para, logo depois, virar presidente do clube. Sua mãe, Adenita Rosa, foi uma figura importante na trajetória do clube. Morreu quando o filho era criança, mas a história ficou na vida dele.
DIVISÃO
Como todo grupo, os clubes do Paudalho guardam marcas de distinções sociais. O Lenhadores, por exemplo, é conhecido por ser de elite, embora não haja mais lá muita pompa. Foi criado por quatro rapazes foliões, depois que voltaram do Carnaval do Recife, e hoje muitas senhoras paudalhenses procuram cuidar dele. 38
“Não tem julgamento oficial, com competição. Mas tem o do povo, né? Este é muito importante”. A fala é do carnavalesco e figurinista Carlos Barbosa, responsável, em 2012, pelas fantasias do Cruzeiro do Sul, nascido na periferia da cidade, em 1952. Ele conta que já trabalhou para os três clubes. Sabe bem como são essas diferenças. Ainda que a prefeitura dê a mesma quantia de dinheiro para os três clubes, o status muda de um pro outro. Mesmo admitindo ser vermelho e branco, admira a história do Cruzeiro. “É um clube humilde. Hoje está muito melhor, mas antes quase ninguém queria desfilar nele. Hoje já quer”, conta Carlos, enquanto me mostra as fantasias temáticas do Egito, a inspiração do Cruzeiro do Sul para o Carnaval 2012. Com sede no Alto de Dois Irmãos, todo ano o clube desce a ladeira para chegar à rua principal e desfilar. O percurso dura uns 40 minutos. Não é muito longe, mas o peso dá a medida do tempo. De cima ou de baixo, os três clubes seguem resistindo pela vontade dos foliões-torcedores de tantas gerações. À margem dos grandes holofotes midiáticos, o Carnaval paudalhense também segue seu percurso. João Artur acredita nisto: “A cultura do Paudalho sobrevive sem dinheiro. Se a prefeitura não der dinheiro, pode até cair o padrão dos desfiles e as fantasias serem menos luxuosas, mas não acaba a cultura. O pessoal faz rifa, arruma dinheiro, o que for, pra ir pra rua”.
foto | Olívia Mindêlo
Caubi ao lado do estandarte dos Lenhadores
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Catende
CATENDE Município localizado na Zona da Mata Sul do estado, a 142 km do Recife, Catende possui um dos blocos mais irreverentes do Carnaval pernambucano: A Mulher da Sombrinha. Com 28 anos de existência, o bloco é Patrimônio Imaterial do Estado e atrai cerca de 20 mil turistas para a cidade, sendo o maior bloco da Mata Sul de Pernambuco. Além da Mulher da Sombrinha, durante a semana de Carnaval, a cidade conta com programação. No sábado, por exemplo, o Bloco dos Operários da Usina sai de dentro da Usina Catende ao meio-dia, com os integrantes completamente sujos de carvão. No domingo, As Brilhosas e As Catraias saem inspiradas nas Virgens do Bairro Novo. Na terça-feira, o Bloco dos Porcos, já há 30 anos em atividade, vai às ruas, acompanhado por foliões que se melam de argila da cabeça aos pés. Preparativos do bloco a Mulher da Sombrinha. Fotos | Ricardo Moura
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UMA USINA, UM CEMITÉRIO E UM BLOCO DE CARNAVAL O TERROR (E A PERDIÇÃO) DOS FOLIÕES NOTÍVAGOS E SERESTEIROS DE CATENDE Por JULYA VASCONCELOS fotos RICARDO MOURA Ainda na estrada, uma visão já entrega o espírito do lugar que se aproxima: vemos ao longe a fumaça grossa e cinza-escura que a Usina Catende, cravada entre casas coloridas, joga acima da pequena cidade de mesmo nome, situada na Zona da Mata Sul pernambucana, a 142 km do Recife. Depois, com o carro já passeando pelas ruas, subidas e descidas íngremes revelam uma cidade ladeiriça, que acumula em varandas e calçadas uma poeira preta de carvão. “Tão gostando do carvão de Catende? Tem que varrer o dia inteiro, de dez vezes pra mais”, diz uma moça de vestido e óculos, empunhando uma vassoura e jogando as cinzas pra fora de casa.
Seu Lôti descortina Mulher da Sombrinha • Detalhe da porta do cemitério Fotos | Ricardo Moura
São apenas oito e meia da manhã e o sol já reflete forte nas muitas antenas parabólicas e no asfalto das ladeiras de Catende. “Pra onde a gente vai?”, pergunta Seu Edvaldo, nosso motorista. “Pro cemitério”, respondemos arrancando-lhe um olhar incrédulo e um meio sorriso, daqueles de quem estranha. 41
Catende
A verdade é que Catende guarda uma lenda urbana que habita o imaginário dos seus pouco mais de 38 mil habitantes e acabou virando bloco de Carnaval. Absolutamente todos conhecem a história da famosa fantasma loira que seduzia operários, levava-os até o cemitério e aterrorizava-os. “O doceiro disse que viu, não foi?”, conta um morador em meio aos protestos de outro: “Isso não existe não, é lenda!”. “E uma moça, no ano passado, contou pra um jornalista que viu uma mulher de sombrinha passando por detrás no bloco”, alguém fala em meio à conversa coletiva. Cada um que conte a sua versão ou saiba de alguém que viu, mas é quase impossível conseguir encontrar pessoalmente com essas testemunhas oculares. O doceiro havia morrido, a moça ninguém sabe quem é ao certo. Há também alguns que são famosos por dizerem haver visto a tal mulher, como Seu Mariano. Mas não há jornalista, rede de televisão ou jornal que o faça falar. Sua memória é guardada a sete chaves. O primeiro registro dessa história é do ex-prefeito Renato Buarque de Macedo, que escreveu, nos anos 1940, sobre a aparição de uma mulher que assustou um ferreiro chamado José Leandro: “... lenda ou cousa que valha de uma certa visão que aparecia à noite no povoado, e que foi o terror dos notívagos e seresteiros, como ele José Leandro. Tratava-se de uma figura de mulher vestida de branco, cabelos soltos que, de preferência, andava na Rua do Craveiro, hoje 15 de Novembro”. O historiador catendense Eduardo Menezes conta também que os operários do último turno costumavam ficar nas imediações da Usina Catende, por volta da meia-noite e que então uma loira esplendorosa, com uma sombrinha na mão e uma vestimenta do século 18, passava por eles. Eles acabavam indo atrás dela até o cemitério, completamente seduzidos. Alguns dizem que eles amanheciam o dia sozinhos em cima de uma lápide. Outros, que ela desaparecia diante dos olhos deles na frente do cemitério. E há ainda quem diga que ela não passava, na realidade, de uma mulher que escolhera um cenário pouco usual e acima de qualquer suspeita para trair o marido. Fantasma ou traidora, a Mulher da Sombrinha mexe com a imaginação da cidade e faz muitos foliões aguardarem ansiosos no portão do cemitério pela sua saída – no caso, do bloco que leva seu nome. 42
E TUDO VIRA CARNAVAL...
Em frente ao grande portão de entrada do cemitério, no sábado de manhã, Seu Lôti Boca de Ponche (apelido de Alberto da Silva Costa) bebe cachaça e se prepara com os amigos, “os papudinhos”, desde as 5h para a saída do bloco da Mulher da Sombrinha, marcada para meia-noite do domingo (em 2012, do dia 11 para 12/2). “Somos os bêbados de Deus”, diz Seu Lôti soltando uma gargalhada e enxugando o suor do rosto. Conta, empolgado, que carregou a boneca gigante durante alguns anos. “Parei porque era muito peso e pouco dinheiro”. Frevos misturados ressoam ao fundo, vindos de dentro dos bares e das casas das pessoas. Este é um sábado anterior à semana pré-carnavalesca, mas a cidade já vive o clima de esbórnia. O curioso é que, arrematando todo o clima, os celulares passam o dia soando o hino do bloco – composto por Marcos Catende logo nos primeiros anos de existência da agremiação – e que vira o toque por excelência de quase todos os aparelhos dos catendenses. Seu Lôti pede licença aos companheiros de farra e nos ciceroneia até o local, próximo ao cemitério, onde está guardada a boneca gigante. Em um canto de uma sala úmida de azulejos, a Mulher da Sombrinha espera pela meia-noite coberta por um pano vermelho, com a roupa de dois anos atrás (todo ano a roupa nova é um segredo). Seu Lôti, com intimidade, tira o tecido e exclama: “Olha como ela é bonita!”. E nos revela uma boneca de pele, olhos e cabelos claros. Lábios cor-de-rosa, desenhados. Uma beleza europeia, bem distinta daquela das moças bonitas de pele queimada e cabelos escuros que passeiam pelas ruas de Catende. Uma moto com dois homens acelera na nossa frente. Dela descem um homem de cabelo grisalho e um rapaz moreno-forte-sorridente. Eles são Seu Tomires Cordeiro e Nêgo Amaral. O primeiro é um dos fundadores do bloco e homenageado do Carnaval catendense de 2012; o segundo, o atual carregador da boneca. “Amo mais ela do que a minha mulher!”, diz numa gaitada. Mas os fios dessa história são unidos é por Seu Tomires: a usina, o fantasma, o Carnaval, o cemitério e um grupo de amigos adoradores da folia. 43
Catende
Tudo começou quando Jorge Benjamim, cunhado de Tomires e dono da loja de móveis na qual ele trabalhava, teve que retirar a porta do estabelecimento durante uma reforma. Algum funcionário precisava, toda noite, dormir na loja. Na vez de Tomires, que morria de medo da lenda da mulher da sombrinha, ele pagou para Irmãozinho ficar em seu lugar. O medo de Tomires e a gozação incansável dos amigos acabaram por virar um improvável mote para a farra. Assim, em 1983, Tomires, Jorge Benjamim, Irmãozinho, Sílvio Romero Brito, Inácio Loyola e Bibiu criaram o excêntrico bloco da mulher-assombração; o bloco da Mulher da Sombrinha. “Era só nós seis, um pistón, um surdo e um tarol”, conta Tomires. “Vê que coisa tão linda que era”, diz em meio a uma risada irônica. Juntando-se ao sexteto, a Mulher da Sombrinha era feita de um cabo de vassoura, um vestido de pano de colchão e um mamão no lugar da cabeça com uma vela acesa por dentro. O sorriso assustador era de palito de fósforos. “A gente ainda botava um cigarro e um bico. E os braços, então! A gente catava papel no meio da rua, enchia um meião de futebol e ia dando lapada no povo na rua”. Quem carregou a fantasma no primeiro ano foi o próprio Tomires, apesar do medo que tinha da lenda. “Botaram só meu nome numa bolsinha e pediram pra um menino na rua sortear. Só deu eu na cabeça”.
Ao sairmos da cidade, Seu Lôti já estava com o rosto coberto de argila, recitando poesias de amor. O frevo tocava mais alto, as fitas coloridas caiam dançantes na frente das casas e os carros começavam, devagar, a tomar a Av. Presidente Vargas, que os moradores insistem em chamar pelo antigo nome: o de Rua da Saudade. 44
foto | arquivo
Hoje em dia, 28 anos depois, a Mulher da Sobrinha de Catende é Patrimônio Imaterial do Estado e atrai cerca de 20 mil turistas para a cidade, fazendo a maior festa da Mata Sul de Pernambuco.
Foto do inĂcio da Mulher da Sombrinha
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Vitória de Santo Antão
VITÓRIA DE SANTO ANTÃO A cidade, que fica a 53 km do Recife, na Zona da Mata Sul do estado, é conhecida pela “bicharada” que toma conta das ruas nos festejos de Momo, na segunda-feira. Camelos, girafas, leões, zebras e bois, se encontram no Carnaval de Vitória de Santo Antão, que conta com 150 agremiações, entre blocos, troças e clubes de alegorias. A referência aos animais é uma tradição e está presente nos adereços e fantasias dos foliões, que também brincam em meio a trios elétricos e carros alegóricos. O início dos festejos do Carnaval acontece sempre no sábado da semana pré, tendo como marco o Baile Municipal de Vitória, mas a abertura oficial acontece no Sábado de Zé Pereira. Nos anos 1990, todos esses grupos começaram a mudar o estilo, influenciados pelo Carnaval baiano e adotaram cordão de isolamento, abadá e tocam basicamente axé “music.”
Encontro dos bichos em Vitória de Santo Antão. Fotos | Costa Neto
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A FOLIA DOS BICHOS ONDE O CAMELO, A GIRAFA E O LEÃO SE ENCONTRAM PARA FREVAR Por CIRLENE LEITE fotos COSTA NETO O Encontro de Bichos foi a motivação para pegar, numa Segunda-feira de Carnaval, a BR-232 com destino a Vitória de Santo Antão, a 53 km do Recife. Localizada na Zona da Mata Sul, a cidade tem um Carnaval que se destaca, com tradição em blocos e troças normalmente representados por animais de todos os tipos, de todas as raças e também de terras distantes, que não se encontram por essas bandas, a não ser em zoológicos. A zebra, o camelo, a girafa, o leão e o urso convivem pacificamente com bois, bode, guiné, sapo, coelho, galo, cisne, morcego, águia e até, pasmem, ET e bicho papão. Tudo isso tem por lá. Talvez por esse motivo, o folião vitoriense seja fera em animação. Quase toda a cidade se envolve na brincadeira e cai no passo das orquestras de metais e seus frevos rasgados, ou mesmo dos trios elétricos que sobem e descem ladeiras no ritmo do axé baiano e dos sucessos bregas do momento. O bloco A Girafa é um desses; aliás, o maior e mais famoso deles. São dois trios elétricos arrastando mais de 3 mil pessoas nos dias de Momo, segundo seus organizadores. Tem meio século de existência e costumava desfilar com carros alegóricos, orquestras de chão e grupos fantasiados. Na década de 1990, rendeu-se à “novidade” dos trios elétricos dos carnavais fora de época exportados da Bahia e mudou o estilo, adotando o cordão de isolamento – dentro dele só vai quem tem a camisa amarela do bloco. 47
Vitória de Santo Antão
“A Girafa é 10!”, grita Terezinha Urbano, sem perder o ritmo na descida atrás do trio. “É o mais animado, saio nele há seis anos, virou um vício”, completa Marcicleide de Sena, outra foliã apressada. Quando pergunto, de longe, quanto pagaram pela camisa, o grupo, composto por mais outras quatro garotas, responde numa só voz: “Noventa reais!”. E então somem no meio da multidão. E para não “dar com os burros n’água”, já que não fiz nenhuma “vaquinha” pra comprar a camisa, tiro o “cavalinho da chuva” e saio de fininho em busca de outros animais, antes que o Encontro dos Bichos acabe e a “vaca vá pro brejo”. E é só o tempo de dobrar a esquina e pegar a Rua Imperial, para dar de cara com eles. Em cima de um carro alegórico, estão o Camelo, o Cisne, o Urso Preto e o Leão, o mais antigo de Vitória, com 110 anos de fundação, todos confeccionados pelas mãos do artista plástico Deusdete da Mata. Acompanham o cortejo pessoas usando cabeças caracterizadas com outros bichos, que seguem para a Praça da Matriz ao som do frevo. À bicharada se juntam os brincantes de bois e os bonecos gigantes de Pernambuco, arrastando o povo. “Eu só sei brincar assim, de graça, com orquestra no chão. Prefiro 100 mil vezes esse Carnaval”, enfatiza o servidor público José Eduardo Severiano dos Santos. O casal João e Avanice Lira é da mesma opinião: “Trio elétrico é horrível, não é adequado para Vitória. Aqui é Pernambuco, não é Bahia”, reclama.
O Carnaval de Vitória é assim, com diferentes públicos, todos contemplados pela diversidade de ritmos, de bichos, de palcos e polos de animação. Na prática, o que se vê em Vitória é um só Carnaval de alegria: participação e encontros de bichos, com gente fazendo a festa acontecer. 48
foto | Costa Neto
As troças são um capítulo à parte. E são muitas, uma atrás da outra. Consegui “frevar” na O Boi é Bom e na Pingunços, ambas muito animadas e concorridas. Foi nelas que conheci Mari Souza e a família: marido, irmãos, filhos e até a mãe dela, com mais de 70 anos, fazendo o passo. “É Carnaval para a família toda, tradição e tranquilidade”. E como idade não é mesmo documento, a troça O Tabaco da Véia faz a alegria dos foliões, levando um homem travestido de uma debochada e simpática senhora, sentada em uma cadeira de balanço em cima de um carro alegórico. Com um cachimbo apagado na boca e “fazendo irreverências mil”, a velhinha reforça o slogan da troça “...e o fumo entrando”. Brincadeiras que só são possíveis nesse frenético reinado de Momo.
Mulher desfila em cima de carro aleg贸rico
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Bezerros
BEZERROS A Terra do Papangu fica localizada na cidade de Bezerros, na região Agreste, a 107 Km da capital pernambucana. O município tem aproximadamente 60 mil habitantes, mas, no período de Carnaval, o número de pessoas que visita a cidade chega em média a 600 mil foliões. O dia mais agitado da festa é o domingo de Carnaval, quando há o desfile oficial dos personagens, mas durante a semana pré-carnavalesca e nos demais dias do reinado de Momo, papangus de todas as idades também invadem as ruas da cidade, acompanhando os diversos blocos da folia local. Além dos papangus, Bezerros tem uma quantidade expressiva de blocos que fazem a festa na rua: 40 agremiações que concentram em pontos diversos da cidade, com horários que variam das 10h às 22h, durante a folia. Em sentido horário, Solange mostra suas cinco máscaras • Fantasiados se divertem nas ruas de Bezerros Fotos | Ricardo Moura
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PAPANDO ANGU O CALOR E A LIBERDADE DE SER UM DOS MASCARADOS DE BEZERROS Por CHICO LUDERMIR (texto e disfarce) fotos RICARDO MOURA Nem bem amanhecia quando os primeiros papangus começaram a aparecer nas ruas de Bezerros, no Agreste. O dia de sol, depois de muita chuva, alimentava a disposição dos foliões que desfilavam suas máscaras e roupas. A 107 Km dali, eu acordava no Recife, pronto para virar também mais um desconhecido na multidão. Cobri meu corpo inteiro com a cafta, túnica usada pelos brincantes. No rosto, uma máscara feita da mistura de papel machê com grude. Com a fantasia completa, estava irreconhecível e misturado a tantos outros, que preservam essa tradição. Subi e desci várias vezes as ladeiras da cidade. Ao som do frevo, o sol, que antes havia sido motivo de comemoração, já começava a castigar. Por debaixo da máscara sentia o suor pingando. Arrisco sentir o vento no rosto, mas sou imediatamente repreendido por um semelhante. “Não pode tirar a máscara!”, falou um papangu com voz visivelmente disfarçada. Essa me pareceu ser a única regra da brincadeira: manter o disfarce. Há mais de 100 anos, na zona rural de Bezerros a regra era a mesma. Alguns amigos se juntaram para sair mascarados e não serem reconhecidos pela família e pelos amigos. Para se manter escondido, valia tudo. As máscaras eram feitas de cabaça ou de papel de pão. O corpo era coberto com paletós, saias, meias. A fala e o andar também mudavam para manter o sigilo da identidade do brincante. Acima, o repórter Chico Ludermir se mistura aos outros brincantes, abaixo, conversa com Solange Santos Fotos | Ricardo Moura
Nessa época, virou costume passar de casa em casa, onde eles comiam e bebiam de graça. Nos lares das famílias pobres, o que se servia era o angu acompanhado de carne de bode, boi ou galinha. Aos poucos, todos passaram a associar as visitas dos dias de Momo à comida de milho. “Chegaram os papa angu”, diziam as crianças. E assim foi ficando. 51
Bezerros
A tradição foi mantida e, ao lado da Igreja Matriz da cidade, encontro Mileide dos Santos Silva, de 45 anos, na Barraca do Angu. É ela que me explica como é feita a iguaria típica da festa: xerém, coco, leite de coco, manteiga e sal. “Fazer angu é uma tradição que eu aprendi desde pequena, com minha mãe e minha avó. Até hoje eles comem o angu para aguentar o rojão dos três dias de folia”. Como aquela papa e saio abastecido. Na subida da prefeitura até a Praça São Sebastião, arquibancadas lotadas esperam as passagens dos blocos e observam as fantasias. De mansinho, vinha Solange Santos, de 52 anos. Quase não conseguia subir, tamanho era o assédio. Com a alegoria “Tradição é assim: do início à atualidade, o papangu é só felicidade”, todo mundo queria tirar foto com ela.
foto | Ricardo Moura
Desde os 15 anos, Solange confecciona suas fantasias e já ganhou, inclusive, mais de dez concursos de melhor figurino. Este ano, as cinco máscaras que ela exibe penduradas representam a evolução da brincadeira. “No começo, era papel de pão. Depois, foi pro papel misturado com grude. A minha atual (que ela usa no rosto) é feita de couro”, explica, se despedindo para ir a mais um concurso de melhor traje.
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As ruas já estavam lotadas, quando vejo, de bengala, descer a ladeira, Luiz Gonzaga. Aos 64 anos, o senhor conhecido por Lula das Melindrosas brinca desde os sete. Junto com o filho, Fábio Brainer, de 36 e outros 15 amigos, está sempre presente e fantasiado nos carnavais da sua cidade. “A máscara faz você ficar escondido. A gente brinca e ninguém sabe quem somos. E assim a gente vai descendo e subindo...”. Lula é a prova viva da vontade de brincar Carnaval. Sem um dedo, por causa da diabetes e cego de um dos olhos, confessa: “Enquanto Deus me permitir andar, eu vou brincando”. A essas alturas, eu também já estava sendo fotografado. Me sentia com uma liberdade sem tamanho. Sem rosto, me entreguei e me permiti ser apenas mais um. Depois de dançar o tradicional forró dos papangus, ao lado da Igreja Matriz, achei que já podia voltar pro Recife. Suado e cansado, também voltava pra mim.
Pesqueira
PESQUEIRA Pensar no Carnaval de Pesqueira é lembrar dos famosos e intrigantes caiporas. Mas nem só deles é feita a festa dos foliões de Pesqueira. Durante os quatro dias de Momo, saem blocos, troças, cortejos e escolas de samba que tomam as ruas da cidade. São 165 blocos cadastrados pela prefeitura, entre os quais se destaca, por exemplo, a tradicional agremiação das Cambindas Velhas, fundada em 1907, e o Lira da Tarde, que arrasta mais de 30 mil foliões com orquestra de metais e muito frevo. Há ainda três escolas de samba que desfilam durante o Carnaval: Gigantes do Ororubá, Águia Dourada e a Escola de Samba Labariri. O município está localizado a 215 km do Recife, no Agreste pernambucano, e também é conhecido pela produção da renda renascença e por ser a cidade dos índios Xucurus, na Serra do Ororubá.
Em sentido horário • Boneco Caipora • Gogo (Mulher da Sombrinha) • Bloco Cambindas Velhas Fotos | Chico Ludermir
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Pesqueira
CARNAVAL PARA REVIVER UMA LENDA
FIGURAS MÍTICAS, CAIPORAS SAEM ÀS RUAS DE PESQUEIRA DIVERTINDO FOLIÕES E ASSUSTANDO CRIANCINHAS Por GABRIELA VALADARES fotos CHICO LUDERMIR
Minha infância foi sempre rodeada por mitos e lendas. Filha de amazonense, fui criada para respeitar a floresta e os animais, sendo o caipora um dos personagens folclóricos que mais esteve presente no meu imaginário infantil. Agora, mais de 20 anos depois, eis que me deparo com ele no município de Pesqueira, no Agreste de Pernambuco. Caipora vem do tupi “kaa porá”, que significa habitante do mato. Segundo o folclore brasileiro, pode ser representado por várias formas. Caboclo peludo, negro baixinho de um olho só, indiazinha ou indiozinho, o personagem aparece de acordo com quem o vê. Assume a forma mais assustadora para o inimigo. No meu imaginário infantil, o caipora assumia o aspecto de um curumim de cabelos verdes. Agora, em Pesqueira, lá vem ele, bem diferente das minhas fantasias, sob uma nova feição: a de brincante de bloco carnavalesco, vestido com paletó colorido e uma enorme cabeça de estopa. 54
Os personagens mitológicos e lendas do folclore brasileiro são personificados em versões distintas, que variam de acordo com a região do País. Os casos e mitos criados coletivamente pelo imaginário popular são passados oralmente, através de anedotas em prosa, poesia ou cantoria. Geralmente montado em um porco do mato, o protetor das florestas permite a entrada de caçadores em troca de oferendas – geralmente fumo e cachaça. Alguns usam a cachaça como armadilha. Acredita-se que embebedando o caipora ou um de seus caiporinhas (exército de pequenas criaturas que acompanham a entidade mitológica, podendo ser associados também a uma vara de porcos do mato), capturar o demônio da floresta seria uma tarefa fácil. No entanto, reza a lenda que ninguém jamais conseguiu tal façanha.
foto | Chico Ludermir
Ao permitir a entrada de caçadores mata adentro, em troca das oferendas, eles têm de respeitar algumas regras: não perseguir fêmeas grávidas ou filhotes, não caçar nas sextasfeiras, nos domingos, nos dias santos e nas noites de lua cheia. Minha mãe me contava que penas, esteiras e mantas eram ofertadas pelos índios ao guardião da floresta e dos animais, em vez de cachaça e fumo.
Caipora pelas ruas de Pesqueira
Andando pela cidade em busca da história dos caiporas, mais especificamente do Bloco Carnavalesco e Cultural Caiporas de Pesqueira, paro em uma praça onde vários senhores jogam damas. Me aproximo e começamos a conversar sobre os “causos” da cidade, principalmente os que dizem respeito ao Carnaval. Seu Geraldo, aparentemente o mais velho do grupo, me disse que a mata, supostamente protegida pelos caiporas, era a mesma onde viviam os índios da região. Sabe-se que o personagem é associado, segundo a lenda, ao fogo-fátuo nas regiões pantanosas. Acreditava-se que o fogo misterioso era provocado pelo guardião da mata para espantar os caçadores e, assim, evitar a entrada dos invasores. No caso de Pesqueira, segundo Seu Geraldo, o fogo avistado no meio da floresta era de rituais indígenas. 55
Pesqueira
Fui ao encontro de Dona Helena, cujo nome significava, na Grécia Antiga, fogo de Santelmo. Há quatro anos como guardiã do bloco, Dona Helena Rodrigues de Melo, 68 anos, viúva de um dos precursores dos Caiporas, conta que apesar do estresse dos preparativos carnavalescos, é um divertimento organizar e coordenar tudo. Depois de anos ajudando o marido, ela desenvolveu alergia a um dos materiais da fantasia (a estopa), o que a impede de confeccionar as cabeças do personagem. O lado bom, disse ela, é que os jovens a ajudam atualmente com as vestimentas e assim é mais seguro que a tradição permaneça quando ela se for.
foto | Chico Ludermir
Hoje, o bloco arrasta cerca de 80 brincantes, homens e mulheres, meninos e meninas, vestidos por Dona Helena e sua equipe. O que me fez lembrar o grupo dos caiporinhas que auxiliavam o protetor da floresta. Acompanhados por uma orquestra de frevo, os foliões se vestem com uma cabeça pintada em um grande saco de estopa, um paletó e uma gravata. Os ombros ficam na cintura, deixando à mostra pequenas pernas. E assim temos o ser mitológico, representado na fantasia, desfilando pelas ruas da cidade.
Dona Helena segura Boneco Caipora
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O bloco dos Caiporas de Pesqueira foi fundado em 1962 pelo jornalista Abcinéias e mais seis amigos. Alguns anos depois, foi extinto por ser cercado de superstições, entre elas a de que era amaldiçoado. Além de causar pavor às crianças da cidade, acreditava-se que a cada ano, um dos fundadores iria morrer, como realmente aconteceu no início do bloco. Os medos foram superados quando, nos anos 1970, um grupo de amigos, alguns filhos da primeira e segunda geração dos fundadores, resolveu reviver o bloco que, em 2012, comemora 50 anos de tradição. Apesar dos registros documentais e de manifestações culturais como o bloco carnavalesco de Pesqueira, personagens do folclore brasileiro como caipora, saci pererê, curupira, cumadre fulozinha, os guardiões da floresta parecem não ter mais a mesma força de antes no imaginário popular. Antigamente o mito causava medo e respeito à natureza. Hoje os Caiporas assustam as crianças de Pesqueira e divertem os foliões durante o desfile do bloco, que acontece no Domingo, na Segunda e na Terça de Carnaval.
fotos | Chico Ludermir
Rozânio, mestre do Cambinda Velha, e seu neto, David
OUTROS CARNAVAIS
fotos | Chico Ludermir
Na busca por informações, vou descobrindo que Pesqueira carrega outras tradições carnavalescas. Blocos como o Lira da Tarde, os Cangaceiros e as Catraias fazem parte da programação da cidade. Ali perto, na mesma praça onde garimpei a história dos Caiporas, trabalha uma das figuras mais conhecidas do Carnaval de Pesqueira. Auxiliar de serviços gerais em uma instituição bancária, Gogo é conhecido como a Mulher da Sombrinha. Desfila desde os 16 anos e há 35 sai vestido de mulher em todos os blocos da cidade, acompanhado pela sua sombrinha de frevo. Após economizar durante todo o ano para comprar vestidos e perucas, Gogo chega a trocar de roupa e peruca até seis vezes por dia durante o Carnaval. Após o período momesco, ele doa os vestidos antigos a pessoas carentes.
Gogo vestido de Mulher da Sombrinha
Segui pela cidade e encontrei outro grupo carnavalesco, o Cambindas Velhas, se apresentando em uma escola municipal. O bloco foi fundado em 1909 por Pedro Lopes. Comerciante, costumava observar os africanos descendentes de escravos que, após descarregar as mercadorias dos navios, dançavam. Depois de ter experimentado dançar com os negros, Pedro Lopes fundou o bloco carnavalesco que atualmente é composto por homens e meninos vestidos de baianas. Acompanhados pelo som da zabumba, do ganzá e do megafone, os “cambindeiros” seguem cantando, já em sua quinta geração, as músicas do fundador. O bloco, que costuma sair todos os dias de Carnaval, também tem quatro composições em homenagem ao cacique xucuru Chicão, assassinado em 1998 na reserva indígena de Pesqueira. 57
Águas Belas
ÁGUAS BELAS Em Águas Belas, a presença indígena resiste e marca o cenário da cidade, reconhecida por preservar os traços desses povos em sua cultura. Durante os festejos carnavalescos, eles também entram em cena, mostrando a sua força para a região. Alguns dos destaques são o Fethxa e a Banda Fulni-ô. Além destes, Águas Belas tem cadastrados sete blocos, que saem pelas ruas do Sábado até a Segunda de Carnaval. Bloco Beija-Flor, A Mulher do Menino, Zé do Rádio, O Zumbi, O Berrador, Sóbrios na Folia e Unidos da Folia são todos baseados em lendas ou histórias famosas da cidade. Indígenas, negros e brancos estão representados nos blocos, tornando a festa de Águas Belas conhecida como o “Carnaval das Etnias”. O município está localizada na região Agreste de Pernambuco, a 315 km do Recife.
Em sentido horário, cortejo de grupos de cultura popular • Carnaval de rua • Bloco Sambão do Bamba com os bonecos feitos pelo mestre La Bamba. Fotos | Beto Figueiroa
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Banda Fulni-ô se apresenta no carnaval de Águas Belas
CARNAVAL DAS ETNIAS BLOCO BEIJA-FLOR, FORMADO POR ÍNDIOS E BRANCOS, É MARCA DA FESTA DE ÁGUAS BELAS Por MICHELLE DE ASSUMPÇÃO fotos | JOÃO BALTAR FREIRE Os povos indígenas Tupiniquins e Carajós já fizeram do lugar onde hoje está localizado o município de Águas Belas, no Agreste pernambucano, palco de algumas batalhas por território. Atualmente, como espaço da matriz indígena, a cidade abre alas para a evolução artística da sua cultura. Em Águas Belas, na reserva da aldeia de índios Fulni-ô, há pelo menos três importantes grupos que fazem do Carnaval sua principal vitrine: as bandas Fethxá e Fulni-ô, e o Bloco Beija-Flor, que fazem um som diverso e imprevisível. Os integrantes do Fethxá ultrapassaram barreiras étnicas – que tendem a delimitar a área de atuação de um grupo pertencente à determinada comunidade – e penetraram, por exemplo, em festivais de música pop do estado. 59
A diversidade cultural pernambucana, que acostumou o ouvido das plateias a rock’n’roll misturado a ciranda ou hip hop, também permitiu que o toré – denominação abrangente para designar conjunto de batidas percussivas feita por alguns grupos indígenas – fosse difundido como um gênero da música tradicional nordestina. O toré dos Fethxá assemelha-se a um samba de coco. Tem batida no chão feita com os pés do povo aliada ao chacoalhar de suas percussões. Conduzido por pelo menos 15 integrantes da tribo, tem suas loas cantadas na língua mãe, o yaathé. Os índios Fulni-ô chegam à cidade de Águas Belas, todo o Carnaval, como brincantes do Bloco Beija-Flor. O nome é inspirado numa lenda indígena, que conta como esse pássaro levou o fogo para os índios. Ano a ano, o cortejo se repete. Praticamente todos os índios da aldeia saem às ruas pintados, fumando a xanduca (fumo típico, consumido num cachimbo rústico, numa espécie de ritual), com todos seus instrumentos percussivos. No percurso, cantam em yaathé e em português. O bloco carrega a miscigenação das culturas indígena e branca; é profano, mas também religioso. Durante sua evolução, o cortejo realiza uma homenagem à Santa Yassaklane (associada a Nossa Senhora da Conceição, no sincretismo indígena). 60
Ninguém talvez tenha se surpreendido, mas se divertiu muito quando, na língua mãe e também em português, os índios do bloco Beija-Flor entoaram, no Carnaval 2012 de Águas Belas, o hit de massa que tomou de assalto todos os equipamentos de som, de norte a sul do País: a música “Ai, se eu te pego”, do cantor Michel Teló. “O Carnaval de Águas Belas é diferenciado em relação aos demais do interior de Pernambuco, porque a população é formada a partir de três etnias: índia, negra e cabocla. Na comunidade negra, temos os quilombolas. Dela também participam os assentados da reforma agrária. Estes interagem no Carnaval, sobretudo, em encontros do Beija-Flor, com o bloco Zumbi, em homenagem ao líder negro. Eles tocam samba de roda e, no encontro com os índios, fazem a mistura com o ritmo do toré”, explica o professor Tié, secretário de Cultura de Águas Belas. Aos poucos, outro grupo formado pelos Fulni-ô começa a fazer um relativo sucesso na região, sobretudo entre os mais jovens. A banda Fulni-ô toca reggae e realiza shows esporádicos nos palcos da região. Somando-se a exemplos assim, a cena carnavalesca de Águas Belas se fortalece ainda com os blocos “Mulher do Menino”, “Zé do Rádio” e “Berrador”, que saem pelas ruas executando marchinhas e frevos rurais. Uma festa surpreendente para os olhos e os ouvidos. 61
Triunfo
TRIUNFO Na cidade de Triunfo, o Carnaval é marcado pela presença dos caretas que, há quase um século, desfilam todos os dias da festa de Momo. A Segunda-feira de Carnaval, dia que acontece o concurso do melhor figurino, é o momento no qual todos os caretas se encontram na Rua Manoel Pereira Lima. Além das trecas, o Carnaval de Triunfo oferece atrações desde cortejos, passando por blocos carnavalescos e orquestras de frevo, até bailes e shows. A cidade está localizada no Sertão do Pajéu, a aproximadamente 402 km da capital pernambucana, Recife. Conhecida pelo clima ameno e pelas construções históricas, a cidade atrai os turistas principalmente durante o inverno, quando acontecem a Festa do Estudante e o Festival Pernambuco Nação Cultural, em julho, e o Festival de Cinema de Triunfo, no mês de agosto. Em sentido horário, Caretas brincando • Confecção das fantasias • Treca na rua. Fotos | Ricardo Moura
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NO RASTRO DOS ESTALOS TRIUNFENSES REVELAM RICO MISTÉRIO QUE RONDA A FIGURA DOS CARETAS Por RAQUEL HOLANDA fotos RICARDO MOURA As ruas de paralelepípedo de Triunfo, cercadas por casarios antigos e históricos, são a trilha de muitos caretas durante os dias de Carnaval. O chão sofre com pisadas, pulos e estalos dos relhos, mas com a folia carnavalesca e a alegria dos foliões, caretas e apreciadores desta festa genuinamente triunfense quase não conseguem ver a pavimentação histórica que percorre Triunfo. Localizada no Sertão de Pernambuco, a cidade possui apenas 15 mil habitantes, mas esta população multiplica-se de tal maneira que durante os quatro dias de Momo, mais de 100 mil pessoas circulam pelo município, encantando-se com a Terra dos Caretas.
foto | Ricardo Moura
O careta é essa figura colorida de chapéu estruturado, de onde saem longas fitas de cetim. Acompanhada sempre por um relho (chicote) na mão, o personagem é cheio de mistérios, a começar pela sua indumentária.
Seu quadrado fazendo estalo
Primeiro o relho, acessório indispensável ao mascarado. Para entendermos um pouco da história desse instrumento, conversamos com Seu Quadrado, ou Arnaldo Antônio da Silva, de 63 anos. Há mais de 30 ele confecciona relhos. “Eu gosto dos caretas porque é uma animação. É uma tradição que a gente tem aqui todos os anos e se não tiver o relho pra eles, não tem nada. Se sair o camarada mascarado e não tiver o relho para dar um estalo, não tem careta”, comenta o artesão. Mesmo diante da deficiência visual que veio logo cedo, desde criança, ele não encontra obstáculos para fazer seus chicotes. 63
Triunfo
“Desde pequeno eu faço esse trabalho e quando eu fazia, era para brincar. Depois eu levei a sério, comecei a fazer relhos em corda de agave. Aí apareceu o relho de couro e depois passamos a fazer com corda de cera”, descreve Seu Quadrado. Mas quando indagado se ele se contentou apenas em fazer relhos, o mestre falou que por muitos anos, também saiu de careta pelas ladeiras de Triunfo. Uma das boas lembranças que tem desta época são as brincadeiras. “Quando eu brincava, a gente chateava os outros, chamando eles de perna manca, essas coisas. E não dava noutra, eles corriam atrás da gente dando lapada com seus relhos e a gente subia nas escadarias das casas por aí com tudo”, fala Seu Quadrado, entre risos constantes.
foto | Ricardo Moura
Seu Quadrado confeccionando relhos
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A alegria com que Seu Quadrado faz os relhos e as tabuletas – plaquinhas que também compõem a fantasia com dizeres populares criados por eles – é contagiante. Percebe-se claramente que a cultura dos caretas é forte e vive intimamente no cotidiano dele e de sua família. Assim como Seu Quadrado, outros moradores de Triunfo também trabalham para que a cultura popular não se desgaste com o tempo e as mudanças culturais. O careta (e artesão) Nino Abraão, 40 anos, é um deles. Há dez anos ele mantém uma oficina e é responsável pela Treca Alto Astral. “A gente, desde o início, tem o trabalho de base com crianças e não existe outro modo de manter a cultura viva, porque estas crianças vão ser o que vai nos substituir e dar continuidade a esta história”, enfatiza Nino. Como manda o costume, as trecas se reúnem todos os anos para confeccionar suas indumentárias, colaborando para que cada um dos integrantes possa ajudar o outro e, o principal, manter acesa a chama do mistério que circunda a figura do careta. “Os caretas usam essa indumentária colorida, com calça, camisa, máscara, chapéu, botas e luvas, para se esconder durante a brincadeira. Até a voz o careta disfarça para que ninguém o reconheça, porque se a identidade do careta for relevada, perdeu-se o carnaval”, fala o careta Nino Abraão.
AS MULHERES
Uma brincadeira que exige fôlego do brincante, além de força para poder relhar ladeiras abaixo de Triunfo, soa como uma tradição apenas masculina, mas não é. Em 1975, Fátima Dantas quebrou o reinado dos homens, ainda criança, e abriu caminho para as mulheres participarem da brincadeira. “Meus irmãos sempre foram caretas, é uma tradição de família que eu sempre quis participar, mas que me era negada, porque diziam ser uma brincadeira só de homens. Foi aí que, outro dia, um deles da treca faltou e eu fui. Aproveitei o traje, inclusive a tabuleta, e me vesti. Meus irmãos ainda queriam me proibir de sair, mas outros integrantes da treca os convenceram a me deixar entrar”, disse a careta, que mesmo ainda não sabendo relhar, foi pra rua e continua indo até hoje, durante o Carnaval. A mãe de Fátima, Dona Expedita, foi, aliás, a primeira e única mulher a fazer máscaras para os caretas. Devido ao Mal de Parkinson, suas mãos tiveram que abandonar o ofício. 65
Triunfo
Sua técnica era diferente, com molde de madeira. Ela fazia as máscaras e o marido pintava. “Os caretas de antes saíam sempre com a pior roupa que tinham. Hoje, não. Os caretas de Triunfo são lordes”, compara Dona Expedita, de 86 anos. A participação das mulheres no Carnaval de Triunfo não fica por aí. Maria da Penha é um exemplo desta tradição familiar, que coloca os caretas como seu grande legado. “Meu pai, Mestre Zuza, foi um dos fundadores do bloco e foi por conta disso que desde meus 14 anos aprendi com minha mãe a costurar as roupas dos caretas. Antes era só uma brincadeira da família, mas hoje virou meu ganha-pão. Além de gostar do que faço, virou meu meio de vida”, fala a costureira, que costuma ter sua sala cheia de panos coloridos, linha e paetês, enquanto exerce uma das atividades que mais lhe dá prazer na vida. Durante a viagem que fizemos a Triunfo para mergulhar um pouco neste universo que circunda os caretas, também conhecemos o ex-brincante Ednaldo Magalhães, de 74 anos. E foi ao som dos estalos dos relhos da Treca Alto Astral que descia a ladeira da igreja da cidade que Ednaldo falou dos tempos em que brincava: “Fui careta até não aguentar mais, gostava muito de me vestir e sair com o grupo do Alto da Boa Vista a estalar relhos por aí. Lembro-me que marcávamos para, no Carnaval, nos encontrarmos com o grupo da Borborema, para trocar relhadas.”, acrescenta Ednaldo, ao revelar que antigamente as trecas mantinham a tradição de se confrontarem.
A HISTÓRIA
Toda a magia que vela a história dos caretas se deve à sua origem no reisado, com a figura do Mateus. O careta Nino Abraão conta o caso popular que marca o nascimento dessa figura: “Certa vez tinha uma apresentação na rua durante o reisado e Mateus estava muito empolgado. Já na prévia ele começou a encher a cara. Aí então quando chegou na rua, ele já não tinha condições. Acabou sendo expulso e saiu brincando sozinho. Foi então que ele pegou um chicote de mangalheiro (usado para conduzir os animais) e continuou a andar brincando pelas ruas, tomando umas e outras. Aí os jovens da época tiveram a ideia de se fantasiar deste personagem durante o Carnaval”. Pelos ditos populares, foi assim que nasceu o careta, essa figura típica do Carnaval triunfense cuja própria história, imersa entre o sagrado e o profano, ainda guarda muitos mistérios. 66
Salgueiro
SALGUEIRO A cidade de Salgueiro possui um dos mais tradicionais Carnavais de rua de Pernambuco. A grande atração da sua festa é o Bloco A Bicharada, comandando por Mestre Jaime. Criado em 1946, desde então leva aos foliões salgueirenses irreverência e alegria através dos bonecos de bichos. As principais ruas de Salgueiro recebem os desfiles deste e dos demais blocos da cidade, que tem como apogeu o encontro de todas as agremiações na Praça da Bomba. O Carnaval se encerra, há sete anos, com o Bloco Bacalhau dos Insetos, que sai nas Quartas feiras de Cinzas, fazendo analogia ao bloco olindense Bacalhau do Batata. O município situa-se no Sertão Central do estado, a aproximadamente 518 km do Recife, e tem uma população de cerca de 55 mil habitantes.
Em sentido horário, Bloco dos Sanfoneiros • Mestre Jaime. Fotos | Ricardo Moura
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Salgueiro
CARNAVAL, FREVO E SANFONA BLOCO DOS SANFONEIROS SOLTA SEU FOLE RASGADO, TOCANDO PÉ-DE-SERRA EM RITMO DE FREVO Por RAQUEL HOLANDA fotos RICARDO MOURA Pernambuco é um estado rico em manifestações culturais e populares. No período do Carnaval, o território pernambucano inspira música e ritmos os mais diversos, do Recife a Petrolina. Além de frevo, maracatu e caboclinho, o forró também tem seu espaço na folia de Momo. Na cidade de Salgueiro, no Sertão, foi criado, há quatro anos, o Bloco dos Sanfoneiros, sob o comando de Pedro Ribeiro Queiroz Filho. Nas vésperas do Carnaval, Pedro Filho e os demais integrantes do Bloco dos Sanfoneiros gravam um CD, com cerca de dez músicas, para acompanhá-los durante o desfile, que, este ano, aconteceu na Segunda-feira de Carnaval. “Eu faço o CD no estúdio, passo para o carro de som e aí nós começamos a tocar e a seguir pelas ruas”, conta o sanfoneiro. Ele diz que o bloco recebeu o carinho dos habitantes de Salgueiro e o ritmo já adorado na cidade, o forró, não fica em falta durante o Carnaval. Músicas de sucesso no forró pé-de-serra, como “A dança da moda”, “Boiadeiro”, “Asa branca” e “o xote das meninas”, ganham arranjos em frevo e levam os foliões salgueirenses pelas ruas a frevar (ou a forrozar), acompanhando o Bloco dos Sanfoneiros.
HOMENAGEM A LUIZ GONZAGA
No ano do centenário de Luiz Gonzaga, para quem Pernambuco preparou uma grande festa na cidade do Exu, em dezembro, as homenagens ao Rei do Baião já começaram. O Bloco dos Sanfoneiros saiu no Carnaval de 2012 fazendo referência a seu grande mestre. “A gente não fala neste povo nordestino se não tem forró. E não podemos cantar em forró sem tocar Luiz Gonzaga”, fala o fundador do bloco. 68
No repertório do Bloco dos Sanfoneiros sucessos de Luiz Gonzaga como “Riacho do navio”, “Respeita Januário” e “Asa branca”. Para Pedro Filho, esta é uma oportunidade que os sanfoneiros têm de incentivar o gosto pelo pé-de-serra, mesmo que seja tocando grandes sucessos do forró no ritmo de frevo.
VIDA DE SANFONEIRO
Sanfoneiro é quem gosta do autêntico pé-de-serra. “Porque sanfoneiros eu conheço muito, mas têm aqueles de banda, e sanfoneiro mesmo é aquele que toca o pé-de-serra”, ensina o sanfoneiro Pedro Filho.
foto | Ricardo Moura
“Eu fui inspirado em Luiz Gonzaga. Desde criança meu pai tocava sanfona e eu pelejava, mas nunca tinha tido a chance de tocar”. Foi então que Pedro Filho começou a trabalhar e a juntar um dinheirinho, na adolescência. Depois de um tempo, finalmente ele conseguiu comprar sua primeira sanfona. “E tem cinco anos que eu já tenho o Grupo Irmão Nordestino, onde eu comecei mesmo a tocar e a fazer minhas apresentações”, enfatiza.
Pedro Filho integrante do Bloco dos Sanfoneiros
Apesar de gostar muito da sanfona, Pedro Filho não conseguiu se dedicar a ela com exclusividade. Já foi pedreiro, vaqueiro e, em São Paulo, chegou a trabalhar em fábricas. Nas horas vagas, sempre estava com o instrumento e bastava aparecer uma brecha que começava a tocar. “Eu sou apaixonado pelo forró pé-de-serra. Onde for possível eu estou tocando e quase sempre chorando, porque certas músicas me deixam sensível”, comenta. Após uma pausa na conversa – ou na prosa, como se diz – os sanfoneiros assumiram seus respectivos postos no palco do Bar Sertanejo e o difícil foi tirá-los de lá. Pedro Filho e seus companheiros não davam trégua para a sanfona, a zabumba e o triângulo. E foi com a sanfona nos braços, um sorriso constante e os olhos cheios de lágrimas que nos despedimos de Pedro Filho e de seus amigos sanfoneiros, enquanto tocavam num ensaio improvisado. 69
Salgueiro
HISTÓRIA DO BLOCO
O nosso amigo sanfoneiro conta um pouco da história do seu bloco: “A gente sempre tocou forró pé-de-serra e um amigo, então secretário de Cultura João Bria, foi quem incentivou, dizendo: ‘Seu Pedro, pega a sanfona hoje e toca. Não tem dinheiro, mas se você gostar, pega a sanfona e sai’”. Este foi o nascimento do Bloco dos Sanfoneiros de Salgueiro. Em 2009, no seu primeiro Carnaval, a agremiação sertaneja começou tímida, saindo da casa do seu fundador com apenas três integrantes. No andar do corso, foi agregando foliões e curiosos dos demais blocos da cidade, como A Bicharada do Mestre Jaime, Os Insetos, A Tabacaria etc. “Aí gostei da ideia e resolvi continuar a sair no Carnaval com meu grupo Irmão Nordestino e com o Bloco dos Sanfoneiros”, relata Pedro Filho. Composto por 15 sanfoneiros, sete trianguistas, sete zabumbeiros e sete pandeiristas, o desfile dos sanfoneiros no Carnaval salgueirense tem largada da sua sede, ao lado do santuário da cidade, na Segunda-feira de Carnaval, às 14h, com a primeira parada oficial no palco principal da cidade. Depois daí, retorna para a sede, totalizando um percurso de mais de duas horas, quando Salgueiro se enche de frevo tocado com sanfona. Com apoio do poder público, o bloco foi se estruturando e ganhando corpo. Em 2010, Pedro Filho organizou uma camisa para os integrantes do bloco, que não deu para quem quis. “Eu tinha feito 50 camisas, mas acabaram num instante”, comentou o sanfoneiro, que no ano seguinte já dobrou o número de camisas para os amantes do forró. Para 2012, foram confeccionadas 180 camisas em homenagem ao rei do baião, Luiz Gonzaga. “A sede do bloco é lá em casa mesmo, eu recebo os sanfoneiros todos os anos lá com um mungunzá, caipirinha e cervejinha para animar e depois saímos no Carnaval”, conta Pedro Filho sobre os preparativos que acontecem todos os anos, antes da troça dos sanfoneiros sair com seu fole rasgado pelas ruas de Salgueiro. 70
foto | Ricardo Moura
Mestre Jaime ao lado da bicharada
A BICHARADA DO MESTRE JAIME BLOCO CARNAVALESCO DE SALGUEIRO MANTÉM VIVA A TRADIÇÃO DO CARNAVAL DE RUA Por RAQUEL HOLANDA fotos RICARDO MOURA 71
Salgueiro
Eram quase quatro da tarde da terça-feira da semana pré-carnavalesca quando cheguei ao ateliê de Mestre Jaime, em Salgueiro, no Sertão. Fui recebida pelo seu genro Wilson, pois Mestre Jaime precisava de tempo para se vestir adequadamente, a fim de receber seus convidados. Eis que chega ele, vestido impecavelmente com seu terno roxo listrado de cinza, sem esquecer ainda o chapéu e os óculos – sem lentes, apenas uma armação grande e dourada. Devidamente acomodados em cadeiras de “macarrão”, na calçada do ateliê do artesão, começamos uma agradável conversa. O cenário era uma rua de pedra, transversal da avenida principal da cidade de Salgueiro. Na nossa frente, estavam dispostos cerca de dez bonecos do bloco A Bicharada do Mestre Jaime, além de dois bonecos gigantes do personagem que dá nome à troça. Embora o famoso personagem de Salgueiro já tenha uma idade avançada, seus 90 anos não o impendem de descrever minunciosamente momentos memoráveis de sua festa predileta, o Carnaval. Relembrando a história deste bloco, que já percorre as ruas de Salgueiro há mais de 60 anos, Mestre Jaime contou que foi em 1946, quando a cidade brincava o Carnaval nos moldes tradicionais, com blocos de ruas e troças formadas por moradores da cidade, que ele e alguns amigos decidiram se fantasiar de bichos para brincar nos dias da folia de Momo. “Eu admiro muito a natureza, se eu olhar para o mar, quero ver o tubarão; se olhar para a África, quero ver o leão, e assim inventei de trazer todos os bichos para cá”, revelou o mestre carnavalesco, que teve seu bloco batizado de A Bicharada do Mestre Jaime, pelos próprios brincantes da agremiação. Durante a conversa, o artesão contava e cantava a história do bloco, narrando fatos que se confundem, em muitos momentos, com sua própria história de vida. Um dos versos entoados por Mestre Jaime foi a marchinha que animava os foliões de A Bicharada, criada quando o bloco ainda era composto por mascarados. “Olha a cobra, olha o jacaré, olha o homem do espaço atrás de mulher/ No calça frouxa tudo é legal, tem Mestre Jaime que é o maioral/ E a Bicharada que brinca o Carnaval”, cantou o mestre. 72
foto | Ricardo Moura
Mestre Jaime ao lado do boneco gigante feito em sua homenagem
Segundo Mestre Jaime, os anos se passaram e em Salgueiro o Carnaval seguia bem, com troças pelas ruas e pessoas brincando ao som de frevo, correndo atrás de blocos tradicionais. Mas o mestre contou, com ressentimento, que nos anos 1980, o Carnaval da cidade se deparou com sua primeira barreira: “Quando o trio elétrico apareceu, desgraçou tudo. Fiquei magoado”. Falando sobre o assunto, o carnavalesco aproveitou para cantar a música que fez para desabafar o momento em que vivia: “Carnaval fora de época para mim não vale,/ veio de uma geração louca e alucinada/ Botei a trave na janela, fechei a porta principal/ Fiz de conta que não vi, desapareci pelo fundo do quintal (…) Trio elétrico, invenção do satanás/ acabou com o sentimento dos velhos carnavais/ aquele que escrevia a bela melodia não volta nunca mais...” 73
foto | Ricardo Moura
Salgueiro
Foi nesta época que, para driblar esse obstáculo, Mestre Jaime resolveu ampliar sua bicharada e, em vez de máscaras, o seu bloco passou a desfilar com bonecos pelas ruas de Salgueiro, levando a alegria dos bichos para a festa da cidade. Com A Bicharada do Mestre Jaime, o Carnaval de Salgueiro ganhou espaço e destaque na cultura pernambucana. Ao longo dos anos, o número de bonecos foi crescendo e hoje são cerca de 100, que saem da fauna para movimentar a festa momesca na cidade. De acordo com Mestre Jaime, foram os próprios brincantes que fizeram com que o bloco fosse crescendo. “Os meninos que querem carregar os bonecos foram aumentando a cada ano. Sempre chegava um na hora que o bloco ia sair querendo brincar. Por isso, eu tenho esses bonecos todos, para sempre atender aos bonequeiros”, comenta Mestre Jaime. Como reconhecimento a este trabalho, o bloco recebeu três homenagens: a agremiação foi presenteada com dois bonecos gigantes com o rosto do seu patriarca, e também a Pitu estampou a bicharada e seu criador na sua lata. Para o mestre, o Carnaval está prestes a chegar ao fim. Mas, segundo ele, enquanto A Bicharada existir, “sobrevive o Carnaval de Salgueiro”. Todo ano A Bicharada do Mestre Jaime desfile nas ruas de Salgueiro. No carnaval de 2012, a agremiação saiu no sábado e domingo. Os 100 bonecos do bloco levaram cores e alegria para os foliões salgueirenses. 74
foto | Costa Neto
Caboclinho sete flexas em preparação para o carnaval 2012
foto | Costa Neto
Caboclinho sete flexas em preparação para o carnaval 2012
ORGANIZAÇÃO Olívia Mindêlo e Chico Ludermir TEXTOS Chico Ludermir, Cirlene Leite, Gabriela Valadares, Julya Vasconcelos, Michelle de Assumpção, Olívia Mindêlo e Raquel de Holanda, FOTOS Costa Neto, Chico Ludermir, Ricardo Moura, Olívia Mindêlo, Beto Figueiroa Priscila Buhr e João Baltar Freire DIRETOR DE ARTE Adeildo Leite COLABORARAM Gilberto Tenório, Tiago Montenegro, Mariana Melo, Fernanda Cristina e Alexandre Majero.
Bezerros carnaval 2012 EXPEDIENTE Governador Vice-governador Secretário Casa Civil
Eduardo Campos João Lyra Neto Marcelo Canuto SECRETARIA DE CULTURA
Secretário Secretário Executivo Diretores Executivos Coordenador de Articulação Institucional Diretor de Formação Coordenador de Economia Criativa Diretor de Gestão Diretora de Planejamento Diretor de Políticas Culturais Coordenadora de Artes Cênicas Assessora de Artes Circenses Assessora de Dança Coordenador de Artes Visuais Assessora de Design e Moda Assessor de Fotografia Coordenadora de Audiovisual Coordenadora de Cultura Popular Assessor de Artesanato Coordenador de Literatura Coordenador de Música Coordenadora para Populações Rurais e Povos Tradicionais Coordenador do Festival Pernambuco Nação Cultural Gestoras de Comunicação
Fernando Duarte Beto Silva Vinícius Carvalho e Beto Rezende Claudemir Souza Félix Aureliano Luciano Gonçalo José Mário Duarte Coelho Amara Cunha Carlos Carvalho Tereza Amaral Aronildes Gomes Marília Rameh Félix Farfan Cecília Pessoa Jarbas Araújo Carla Francine Alexandra Lima Breno Nascimento Wellington de Melo Rafael Cortes Erika Nascimento Leo Antunes Michelle de Assumpção e Olívia Mindêlo
foto | Ricardo Moura
FUNDAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE PERNAMBUCO (FUNDARPE) Presidente Diretora de Gestão Diretor de Gestão do Funcultura Diretor de Gestão de Equipamentos Culturais Diretora de Preservação Cultural Diretor de Produção
Severino Pessoa Sandra Simone dos Santos Bruno Emanuel Soares de Lima Célio Pontes Célia Campos Fernando Augusto