Das senzalas às prisões contemporâneas

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO INSTITUTO SAÚDE E SOCIEDADE


ADEILDO VILA NOVA

DAS SENZALAS ÀS PRISÕES CONTEMPORÂNEAS: A ESCRAVIZAÇÃO E O ENCARCERAMENTO EM MASSA DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL COMO ESTRATÉGIAS DE CONTENÇÃO E DE CONTROLE

SANTOS 2019


ADEILDO VILA NOVA

DAS SENZALAS ÀS PRISÕES CONTEMPORÂNEAS: A ESCRAVIZAÇÃO E O ENCARCERAMENTO EM MASSA DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL COMO ESTRATÉGIAS DE CONTENÇÃO E DE CONTROLE

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço Social e Políticas Sociais do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais (PPGSSPS) da Universidade Federal de São Paulo/Campus Baixada Santista (UNIFESP/BS). Linha de Pesquisa: Fundamentos do Serviço Social, Formação e Trabalho profissional. Orientação: Profa. Dra. Andrea Almeida Torres.

SANTOS 2019


Vila Nova, Adeildo. Das senzalas às prisões contemporâneas: a escravização e o encarceramento em massa da população negra no Brasil como estratégia de contenção e de controle. / Adeildo Vila Nova. Santos, 2019. 1 f. Dissertação de Mestrado em Serviço Social e Políticas Sociais – Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista (UNIFESP-BS), 2019. Orientação: Profª Dra. Andrea Almeida Torres. 1. Encarceramento. 2. Seletividade. 3. Racismo. I. Profª Drª Andrea Almeida Torres. II. Das senzalas às prisões contemporâneas: a escravização e o encarceramento em massa da população negra no Brasil como estratégia de contenção e de controle.


Adeildo Vila Nova Das senzalas às prisões contemporâneas: a escravização e o encarceramento em massa da população negra no Brasil como estratégias de contenção e de controle.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Serviço Social e Políticas Sociais do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Políticas Sociais (PPGSSPS) da Universidade Federal de São Paulo/Campus Baixada Santista (UNIFESP/BS) Linha de Pesquisa: Fundamentos do Serviço Social, Formação e Trabalho profissional.

Aprovação:

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Profa. Dra. Orientadora Andrea Almeida Torres Universidade Federal de São Paulo/Campus Baixada Santista (UNIFESP/BS)

Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Profa. Dra. Cíntia Aparecida da Silva Universidade Cidade de São Paulo (UNICID)

Prof. Dr. Bruno Shimizu Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DP-SP)

Prof. Dr. Ramatis Jacino Universidade Federal do ABC (UFABC)


Dedico este trabalho especialmente à minha mãe, Dona Carminha (in memoriam), uma mulher guerreira, nordestina, cabocla, que sempre batalhou muito para cuidar dos seus seis filhos e de suas três filhas. Que me deu o maior exemplo de amor que alguém poderia dar a alguma pessoa. Abriu mão de estar ao lado do filho, em nome do seu desenvolvimento social e profissional quando, aos 12 anos, me permitiu que fosse morar na cidade e em seguida vir pra São Paulo, pois morávamos num sítio à época, para que eu pudesse estudar e me disse: vai filho e seja alguém na vida, pois aqui não teremos condições de lhe dar o que você precisa. E eu vim e cresci, estudei e estudei. Nos seus maiores sonhos, e nos meus também, completar o Ensino Médio já significava uma vitória inalcançável, imagina se ela estivesse aqui pra ver o seu filho mestre?

Adeildo Vila Nova


AGRADECIMENTOS

Primeiramente quero agradecer às/aos minhas/meus familiares e amigas/os que tiveram compreensão e entenderam a importância da minha ausência nos momentos de reuniões e confraternizações familiares e que, direto ou indiretamente, contribuíram para que pudesse me dedicar às leituras e aos estudos e/ou me liberando de alguns afazeres domésticos e compromissos sociais. Agradeço às minhas amigas e amigos, às minhas colegas e meus colegas e a todas as pessoas que, na medida do possível, colaboraram e contribuíram para a realização das atividades profissionais e acadêmicas. Agradeço às companheiras e aos companheiros de classe, pela riquíssima experiência de compartilhar com todas, e todos, momentos de muita alegria, de muito aprendizado e de muita emoção a cada tarefa cumprida, a cada seminário apresentado, a cada prova realizada e a cada nota obtida. Agradeço, especialmente, a todas/os as/os nossas/os professores e professoras, nossas/os mestres e mestras, doutores e doutoras que nos acompanharam nestes dois anos e meio de estudos que, com muito afinco e dedicação, puderam socializar um pouco dos seus conhecimentos e aprendizados e que me ensinaram a importância de cuidarmos umas/uns das/os outras/os, escutarmos a/o outra/o e de despertar, nas/os outras/os e em nós mesmas/os, a consciência da nossa condição de trabalhadores e trabalhadoras, detentoras/es de direitos e de deveres, transformando-nos em protagonistas de nossas próprias histórias. Levarei comigo, um pedacinho de cada um e de cada uma de vocês. Vocês fazem parte da minha história e da minha vida. Agradeço a todas e todos membras/os do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Sociedade Punitiva, Justiça Criminal e Direitos Humanos (GEPEX-DH) pelo constante aprendizado e o compartilhamento de ideias, críticas e reflexões sempre tão produtivas. Mas quero agradecer especialmente ao Fábio Pereira Campos Mizael, à Giovanna Canêo e a Ivani Ribeiro pelas experiências vivenciadas nas produções e apresentações de trabalhos científicos nos diversos eventos acadêmicos que participamos levando um pouco das nossas discussões, pesquisas e reflexões provocadas pelo GEPEX-DH. Quero agradecer de forma muito especial e afetuosa à Andrea Almeida Torres, coordenadora do GEPEX-DH, minha orientadora, e agora amiga também, com quem tive a oportunidade de compartilhar, não apenas o conhecimento, mas também muitas experiências e vivências que jamais pensei em viver na minha vida. A experiência de poder realizar atividades nas unidades prisionais, uma das mais incríveis que já experienciei, me fez


perceber esses espaços como algo que transcende suas paredes de concreto e suas grades super reforçadas. Me fez enxergar a humanidade, no seu sentido mais literal, que emana daqueles corações, mentes e corpos aprisionados. Não posso deixar de agradecer também à equipe do Setor Técnico de Serviço Social e de Psicologia do Fórum da Comarca de Cubatão, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) que, durante esses mais de dois anos e meio, direto ou indiretamente, contribuíram para que eu pudesse me dedicar aos meus estudos e leituras, organizando e reorganizando as nossas agendas e nossos processos de trabalho. O apoio de vocês foi muito importante para a conclusão desse trabalho. Agradeço imensamente a toda diretoria da Associação das/os Assistentes Sociais e Psicólogas/os do Tribunal de Justiça de São Paulo (AASPTJ-SP), na pessoa da nossa querida presidenta Maricler Real, pela compreensão e apoio que me deram, durante esse período de realização do mestrado, entendendo a necessidade de dedicação máxima possível aos estudos e a necessidade de ausência em alguns momentos de extrema importância e de deliberações muito relevantes para a administração e o futuro da nossa Associação e para as nossas categorias de assistentes sociais e psicólogas/os, às quais representamos. Quero também agradecer ao professor Deivison Nkosi e a professora Renata Gonçalves, da Universidade Federal de São Paulo/Campus Baixada Santista (UNIFESP/BS), que participaram da Banca de Qualificação dessa pesquisa, pelas importantes contribuições que certamente aperfeiçoaram, de forma significativa, a apresentação desse trabalho final. Agradeço também as/aos professoras/es da Banca de Defesa do Mestrado, o Prof. Dr. José Fernando Siqueira da Silva, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), a Profa. Dra. Cíntia Aparecida da Silva, da Universidade Cidade de São Paulo (UNICID) e Analista de Promotoria I – Assistentes Social, do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e o Prof. Dr. Ramatis Jacino da Universidade Federal do ABC (UFABC), além do Defensor Público no Estado de São Paulo, o Dr. Bruno Shimizu, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DP-SP) que, gentilmente, aceitaram o convite e o desafio de avaliarem o produto final dessa pesquisa que refuto de extrema importância para repensarmos a forma que nossa sociedade está organizada, especialmente no que se refere às respostas dadas pelo Estado às consequências nefastas de um sistema econômico que empurra, cada vez mais, a classe trabalhadora para as margens, especialmente a população preta, pobre, jovem e periférica que, quando não prende, mata deliberadamente. Enfim, agradeço a todas as pessoas que, direto ou indiretamente, contribuíram para que estivesse aqui neste momento e pudesse, através dos meus estudos, pesquisas e reflexões,


contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde todas e todos nós possamos viver em condições de igualdade e com oportunidades iguais, com mais justiça social e respeito aos direitos humanos.


TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO

tudo começou quando a gente conversava naquela esquina alí de frente àquela praça veio os homens e nos pararam documento por favor então a gente apresentou mas eles não paravam qual é negão? Qual é negão? o que que tá pegando? qual é negão? Qual é negão? é mole de ver que em qualquer dura o tempo passa mais lento pro negão quem segurava com força a chibata agora usa farda engatilha a macaca escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista pra passar na revista todo camburão tem um pouco de navio negreiro todo camburão tem um pouco de navio negreiro

Trecho da música: Todo camburão tem um pouco de navio negreiro (1994). Autor: Marcelo Yuka


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AASPTJ-SP – Associação das/os Assistentes Sociais e Psicólogas/os do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento CDDPH – Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana CDP – Centro de Detenção Provisória CF – Constituição Federal CLT – Consolidação das leis Trabalhistas CNJ – Conselho Nacional de Justiça CP – Código Penal CPB – Código Penal Brasileiro CPC – Código de Processo Criminal CPP – Centros de Progressão Penitenciária CR – Centros de Ressocialização DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional DL – Decreto-Lei DP-SP – Defensoria Pública do Estado de São Paulo GEPEX-DH – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Sociedade Punitiva, Justiça Criminal e Direitos Humanos IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística INFOPEN – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias LCP – Lei de Contravenções Penais LEP – Lei de Execuções Penais LGBTQI+ – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer, Intersexuais e Outros MJ – Ministério da Justiça MP-SP – Ministério Público do Estado de São Paulo ONU – Organização das Nações Unidas PM-SP – Polícia Militar do Estado de São Paulo PNE – Plano Nacional de Educação RDD – Regime Disciplinar Diferenciado SAP – Secretaria de Administração Penitenciária SISNAD – Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas


STF – Supremo Tribunal Federal TJ-SP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo UFABC – Universidade Federal do ABC UNESP – Universidade Estadual Paulista UNICID – Universidade Cidade de São Paulo


RESUMO O caráter punitivo e de seletividade racial do sistema de justiça criminal brasileiro contribui para que, cada vez mais, negros, jovens e periféricos, sejam violentados no seu direito humano fundamental, o de ir e vir, e para que sejam reiteradas vezes abordados e levados para averiguações sem ao menos uma suspeita qualquer, senão o simples fato de ser negro e pobre. Faz-se urgente a transformação dessa sociedade que discrimina e criminaliza os seus integrantes apenas por serem negros e periféricos. Dados apontam que entre os anos 2000 e 2014, a população carcerária teve um aumento de mais de 167%, especialmente após a aprovação e aplicação da Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas. Esta Lei trata-se de mais uma das estratégias de contenção e de controle da população negra e de exclusão de um contingente populacional responsável, substancialmente, pelas riquezas do nosso país. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN/2017) registra que 64% da população carcerária é composta por negros e aponta o Brasil com a 3ª maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e a China e ficando a frente da Rússia. A partir de uma revisão bibliográfica-documental, com o levantamento de materiais publicados em quaisquer meios (editorial e midiático), sobre o tema proposto para coleta de dados para explicar e/ou desvelar o problema estudado, procuramos compreender o processo sócio histórico da integração do povo negro na sociedade brasileira reconhecidamente escravista e capitalista e como esta integração ainda dialoga com a contemporaneidade nos seus mais variados aspectos que vão desde a sobrerrepresentação da população negra nas camadas mais pobres do Brasil, a sua invisibilidade e sua relação com o racismo velado que temos na nossa sociedade, bem como as consequências nefastas dessa relação para o desenvolvimento e emancipação humana e política da população negra brasileira. Entendemos que se torna urgente que o Brasil busque estratégias realmente eficazes para conter o grande encarceramento provocado por uma política criminal cada vez mais excludente e seletiva, especialmente para a população negra, pobre e periférica. Precisamos combater as práticas punitivas, repressoras e coercitivas que são comuns no âmbito penal brasileiro e que só contribui para aumentar cada vez mais o contingente de pessoas presas e em sua maioria com um perfil socioeconômico e étnico-racial pré-determinado.

Palavras-chave: Encarceramento. Seletividade. Racismo.


ABSTRACT The punitive and racially selective nature of the Brazilian criminal justice system contributes to the increasingly black, the young and the peripheral, to be violated in their fundamental human right, to come and go, and to be repeatedly addressed and taken for inquiries without at least a suspicion whatsoever, but the mere fact of being black and poor. It is urgent to transform this society that discriminates and criminalizes its members only because they are black and peripheral. Data indicate that between 2000 and 2014, the prison population increased by more than 167%, especially after the approval and application of Law 11,343 / 2006, known as the Anti-Drug Law. This Law is another of the strategies of containment and control of the black population and exclusion of a population contingent responsible, substantially, for the riches of our country. The National Survey of Penitentiary Information (INFOPEN / 2017) reports that 64% of the prison population is made up of blacks and points to Brazil with the 3rd largest prison population in the world, losing only to the United States and China and being ahead of Russia . Based on a bibliographicaldocumentary review, with the survey of published materials in any media (editorial and media), on the proposed theme for data collection to explain and / or unveil the problem studied, we try to understand the socio-historical process of integration of the black people into the Brazilian society that is recognized as slave and capitalist and how this integration still dialogues with the contemporary in its most varied aspects ranging from the overrepresentation of the black population in the poorer strata of Brazil, its invisibility and its relation to veiled racism that we have in our society, as well as the harmful consequences of this relation for the development and emancipation human and political of the Brazilian black population. We understand that it is urgent that Brazil seek effective strategies to contain the great incarceration caused by an increasingly exclusive and selective criminal policy, especially for the black, poor and peripheral population. We need to combat the punitive, repressive and coercive practices that are common in the Brazilian criminal sphere and that only contributes to increasing the contingent of prisoners, and most of them with a predetermined socioeconomic and ethnic-racial profile.

Keywords: Encarceration. Selectivity. Racism.


SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15

CAPÍTULO I – DAS SENZALAS ÀS PRISÕES CONTEMPORÂNEAS: CONTROLE E CONTENÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL ............................................. 22 1.1 – O branqueamento como forma de apagamento e de exclusão do povo negro ....... 34 1.2 – Transição do trabalho escravo e forçado para o trabalho livre e remunerado..... 45 1.3 – Mais Estado policial e prisional e menos Estado econômico e social ..................... 59

CAPÍTULO II – A SELETIVIDADE RACIAL DO SISTEMA PRISIONAL: AS SENZALAS CONTEMPORÂNEAS .................................................................................... 67 2.1 – A exploração da mão de obra dos trabalhadores privados de liberdade ................. 72 2.2 – O encarceramento em massa da população negra como violação dos direitos humanos................................................................................................................................... 77 2.3 – A Lei antidrogas, a seletividade racial e a criminalização da população negra. ..... 86

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 91

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 94


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INTRODUÇÃO

Desde o período de escravização das/os negras/os que foram sequestradas/os da África para o nosso país, o Brasil tem se especializado nas estratégias de contenção e de controle da população negra brasileira. A forma contemporânea se traduz no encarceramento em massa de negros e negras, especialmente as/os jovens, pobres e periféricas/os. Como nos ilustra muito bem o cantor e compositor Marcelo Yuca (1994) na canção “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”, a forma contemporânea dessa vigilância ostensiva direcionada quase que exclusivamente aos negros e negras desse país. Diz a letra da música: “quem segurava com força a chibata agora usa farda”, ou seja, o policial é a figura contemporânea do feitor e o Estado a do senhor dos negros e das negras escravizadas/os. As prisões brasileiras são as figuras contemporâneas que nos remetem às senzalas do Brasil escravizador. A pesquisadora Cláudia Rosalina Adão (2018), em entrevista ao site de notícias Alma Preta, aponta essa semelhança entre o período escravista e a contemporaneidade quando diz que “as periferias do Brasil podem ser consideradas como as senzalas contemporâneas” e ainda acrescenta, ao falar sobre a forma como esses territórios são vistos: “os homicídios, a precária infraestrutura urbana, a escassez de equipamentos públicos e a violência policial podem ser considerados como mecanismos de controle e gestão da vida”. Quando Cláudia Rosalina Adão (2018) faz essa análise, ela localiza a população negra em um determinado território que tem suas características próprias, características estas que se relaciona com a forma que as políticas públicas, especialmente as de “segurança” são direcionadas excessivamente a esse segmento populacional, bem como a inexistência de políticas sociais para atender às necessidades básicas e fundamentais e garantir, minimamente, a sobrevivência desse mesmo grupo populacional. Nesse sentido, Raquel Rolnik (1989), nas suas análises sobre territórios, mostra-nos como se constitui a situação atual.

(...) a situação atual se constitui na continuação de um modelo de urbanização excludente, do qual pretos e pardos são ainda o grupo populacional mais preterido. Políticas sociais e culturais reparadoras e includentes são urgentes e necessárias – entretanto não é mais possível deixar intacto e incólume um modelo de crescimento e expansão urbana que não consegue sair do paradigma do gueto/senzala. (ROLNIK, 1989)

As formas de contenção e de controle do Estado sobre a população negra foram se metamorfoseando e se aperfeiçoando ao longo dos tempos, tendo sempre ao seu lado grandes aliados intelectuais que construíram narrativas de uma suposta democracia racial entre

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brancos, índios e negros, como as de Gilberto Freyre, que se consolidavam a partir da década de 1920, passando a imagem de um país com uma convivência pacífica e cordial entre essas três raças, ou seja, um país sem conflitos quando, na verdade, todos sabemos do histórico de lutas e resistências do provo negro a uma série violências e de violações às quais foram submetidos, e ainda os são, no processo, ainda em curso, de formação da sociedade brasileira, como muito bem nos ensina Clóvis Moura, Abdias do Nascimento e tantos outros intelectuais negros que sempre se opuseram a essa narrativa que tem como perspectiva o olhar do colonizador, trazendo à luz o olhar do colonizado. Se voltarmos mais um pouquinho no tempo podemos registrar a existência deliberada de discursos pseudocientíficos e médico-higiênicos para justificar a sua escravização e exploração, como é o caso do médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1894) que, de acordo com seus estudos, geneticamente, os negros eram mais propensos à criminalidade se comparados aos brancos. Diversos foram os discursos “científicos” de uma suposta inferioridade do negro brasileiro e sua inclinação para o crime, que tiveram eco nas instâncias de poder e, especialmente, nas de “segurança” e manutenção da ordem, levando ao estabelecimento de normas e regulamentos que tinham como foco principal a disciplina, a contenção e o controle da população negra recém “liberta”. Catoia (2018) analisa a relação estreita entre a instituição da escravidão e a emergência do direito penal no Brasil Império (1822-1889) apontando a contribuição do Direito para o racismo no Brasil, instituindo a inaptidão dos negros para o trabalho e, ao mesmo tempo, a sua aptidão para a criminalidade. A pesquisadora segue sua análise até a Primeira República (1889-1930) concluindo que a partir de discursos políticos, científicos e jurídicos a humanidade negra foi criminalizada, reconfigurando o direito penal como estratégia de controle e de interdição da cidadania da população negra e acrescenta: “mantendo-se, no aparato jurídico, a reprodução das assimetrias raciais e a construção da narrativa da branquitude como norma”. (CATOIA, 2018). De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, atualizadas em junho de 2016 e lançado no início de 2017 (INFOPEN/2017), do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), órgão ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ), a população prisional do Brasil, em junho de 2016, era de mais de 726 mil pessoas privadas de liberdade. Com esses dados, o Brasil ultrapassou a Rússia em número de presos, passando a ocupar a terceira posição no ranking dos países com o maior número de pessoas encarceradas no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e a China. O dado mais alarmante é que deste total de pessoas encarceradas, 64% são negros. Em números absolutos, em junho de

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2016, o Brasil tinha uma população prisional de 726.712 pessoas, incluindo além dos presos e presas do Sistema Penitenciário, composto pelos presídios estaduais e distrital; os/as das carceragens das delegacias e do Sistema Penitenciário Federal, composto pelos presídios federais de segurança máxima. Outro dado que chama muito a nossa atenção é de que 40% das pessoas presas sequer tiveram seus processos julgados ou foram condenadas. Os dados divulgados apenas confirmam o que os movimentos sociais organizados de defesa dos direitos humanos vêm afirmando há anos sobre a violência que se estabule nos espaços de privação de liberdade, principalmente, pelo encarceramento em massa e, consequentemente, a violação dos direitos humanos dessa população carcerária, composta especialmente por negros e negras, jovens, pobres e da periferia dos grandes centros do nosso país. Esses dados apontam que 55% da população prisional é composta por jovens de 18 a 29 anos de idade. Mais do que os dados apresentam, a preocupação maior é com o crescimento exponencial da população carcerária que vem, cada vez mais, crescendo de uma forma assustadora e estarrecedora. De acordo com o Diagnóstico do Sistema Prisional, estudo elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJ) e apresentado ao Jornal Estado de Minas (2018) pelo ministro extraordinário Raul Jungmann, a expectativa é de que, em 2020, a população carcerária brasileira seja de mais de 987 mil pessoas e que chegue a quase 1,5 milhão de pessoas privadas de liberdade em 2025. Na mesma entrevista, o ministro faz uma afirmação que só ratifica o que a maiorias das/os especialistas e lideranças dos movimentos sociais vêm afirmando há anos: “Exposta, vulnerável e com medo da violência, a saída (para a opinião pública) é prender. Quando não, infelizmente, matar. Esta não é a saída que tem que ter. O prende, prende e prende leva a isso (aumento da população carcerária)”. Essas são algumas das questões e inquietações que essa pesquisa procurou estabelecer como parâmetro de investigação e de elucidação. A escolha do tema se deu, primeiramente pelo meu envolvimento e compromisso com a defesa dos direitos humanos de uma forma geral e mais especificamente das questões raciais envolvendo a população negra do nosso país. A experiência de ativismo social no Movimento Negro organizado trouxe muitas inquietações para a minha vida acadêmica e profissional, o que tem sido a linha de pesquisa adotada desde a graduação em Serviço Social.

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Diante disso, com a minha inserção na Área Sociojurídica1, essas inquietações se tornaram ainda mais presentes diante da realidade da população negra brasileira. O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) tem evidenciado um número expressivo da população negra cumprindo penas de privação de liberdade. Os dados divulgados e atualizados em junho de 2016 demonstram que 64% da população carcerária é composta por negros (pretos e pardos), de acordo com definições do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto a população branca representa apenas 35%. (INFOPEN, 2017). Notadamente, a população negra tem muitos prejuízos no que se refere ao acesso à justiça quando comparada aos não negros, depreendendo-se um sistema de justiça criminal que é seletivo e estigmatizante, tendo o racismo, em suas mais variadas formas de expressão, como um importante promotor dessa seletividade e, consequentemente, do encarceramento em massa desse grupo populacional. Isto posto, este estudo pretende responder algumas indagações acerca do fato da maioria da população carcerária ser composta por negras e negros, na sua maioria jovens, pobres e periféricos. Propomos aqui uma reflexão com uma perspectiva crítica sobre o encarceramento em massa da população negra no que se refere à preferência deliberada do sistema de justiça criminal sobre a população preta, pobre e periférica, considerando também as dimensões de gênero, tendo em vista as especificidades do encarceramento feminino no sistema de justiça criminal. O enfoque dado ao encarceramento em massa dessa população será ampliado no sentido de se entender esse encarceramento como expressão da violação dos direitos humanos fundamentais dessa população encarcerada, inclusive inserindo o genocídio, a morte social, desse grupo populacional, bem como as formas de resistências encontradas e desenvolvidas contra essa perseguição que vem desde a formação dos quilombos até a contemporaneidade, perpassando pelas dimensões políticas, sociais e econômicas, a fim de analisar os fenômenos apresentados, problematizando-os com o processo histórico de exclusão e encarceramento em massa da população negra, dialogando com as variáveis intrínsecas à temática pesquisada. Pretendemos compreender o fenômeno da seletividade racial no sistema de justiça criminal no Brasil e a sua relação com o processo de encarceramento em massa da população negra na sociedade contemporânea e as estratégias de contenção e de controle desse grupo populacionais desde o período escravista, identificando as variáveis consideradas pelo sistema

Ver discussão importante realizada por BORGIANNI (2013) sobre o uso das expressões “campo sociojurídico” ou “área sociojurídica” no Serviço Social em artigo: Para entender o Serviço Social na área sociojurídica, publicada na Revista Serviço Social e Sociedade, n. 115, p. 407-442, jul./set. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n115/02.pdf. 1

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de justiça criminal brasileiro que possam explicar a escolha por este (os negros) e não por aqueles (os não negros) como suspeitos em potencial nas suas abordagens policiais e, consequentemente, o encaminhamento para as delegacias de polícia e seu posterior encarceramento, que atualmente tem alcançado proporções inadmissíveis. E ainda, compreender o processo sócio histórico da integração do povo negro na sociedade brasileira reconhecidamente escravista e capitalista e como esta integração ainda dialoga com a contemporaneidade nos seus mais variados aspectos que vão desde a sobrerrepresentação da população negra nas camadas mais pobres do Brasil, a sua invisibilidade e sua relação com o racismo velado que temos na nossa sociedade, bem como as consequências nefastas dessa relação para o desenvolvimento e emancipação humana e política da população negra brasileira. A presente pesquisa parte do pressuposto de que o sistema de justiça criminal brasileiro é seletivo racialmente e que essa seletividade está norteada pelo racismo estrutural e estruturante que mantém as desigualdades entre as classes e promovem a manutenção dos privilégios da branquitude2, classe dominante, a burguesia, utilizando-se do método materialismo histórico-dialético, da teoria social de Marx. Este estudo é de natureza descritiva, pois apresenta uma determinada situação e explicativa, na medida em que tenta elucidar o encarceramento em massa da população negra e analisar os fatores que contribuem e/ou favorecem essa predominância dos negros nos cárceres brasileiros. É uma pesquisa de revisão bibliográfica, com o levantamento de materiais publicados em quaisquer meios (editorial e midiático), sobre o tema proposto para coleta de dados a fim de explicar e/ou desvelar o problema estudado. Além da análise de dados estatísticos constantes de relatórios, anuários, entre outros, objetivando assim uma compreensão detalhada dos dados do sistema prisional e do levantamento da população carcerária no Brasil para o estabelecimento da relação entre população negra e não negra que estão em regime de privação de liberdade.

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Discussão trazida por alguns autores e autoras negras/os sobre o privilégio de ser branco na nossa sociedade, entre eles Lourenço Cardoso que, em seu livro Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil, elabora sua análise a partir do que representa ser branco e ser negro na nossa sociedade e o que isso corresponde na obtenção de privilégios aos brancos e prejuízos aos negros, tanto no campo material como simbólico. Para Cardoso (2018) podemos entender a branquitude “como o lugar mais elevado da hierarquia racial, um poder de classificar os outros como não brancos, que, dessa forma, significa ser menos do que ele. O ser-branco se expressa na corporeidade, a brancura. E vai além do fenótipo. Ser branco consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais”.

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Este trabalho está organizado em duas partes distintas e interdependentes (capítulos I e II) para uma melhor organização e assimilação do conteúdo pesquisado e apresentado nas páginas seguintes. No primeiro bloco (capítulo I) tentamos trazer uma introdução sócio histórica sobre a formação do Brasil e o período de transição do trabalho escravo para o trabalho “livre”. Discutimos a direção política tomada pelo Brasil no sentido de dispensar a mão-de-obra brasileira em detrimento da estrangeira, especialmente a europeia, conhecida historicamente

como

políticas

de

branqueamento

da

população

brasileira

e,

consequentemente, rebatendo na distribuição da força de trabalho nacional, empurrando os negros para as margens daquela sociedade “livre” que até então estava se formando, ou melhor dizendo, sendo produzida, às custas do suor e do sangue negro derramado. Como veremos, esse período de transição foi marcado pela exclusão sistemática da população negra das oportunidades que surgiam com o novo sistema de produção estabelecido e que exigiam o uso da força de trabalho local que agora seria vendida aos grandes meios de produção. O que parecia ser a grande solução para o desenvolvimento do país, se transformou numa verdadeira catástrofe para a população negra recém liberta. Se antes tinham ao menos um local para dormir e fazer suas refeições, agora se viram sem chão, sem teto e sem comida, tendo que se submeter a condições degradantes de sobrevivência. Não obstante, o Estado brasileiro institui uma série de legislações que tinham como foco principal a manutenção da ordem, ou em outras palavras, limpar as ruas com a retirada dos negros que, naquele momento, era a única coisa que lhes restava. Pois não lhes foram oferecidas nenhuma política social que atendesse às necessidades daquele povo recém-liberto, sem condições nenhuma de exercer a sua liberdade ou autonomia, pois só sabiam o que era viver em privação de liberdade e sem autonomia nenhuma. Aos negros recém-libertos apenas um caminho tortuoso e cheio de circunstâncias até então desconhecidas. Aos negros recém-libertos, uma vida cheia de muitas violências e de violações de direitos que se perpetuam até os dias atuais. Uma vida marcada por muita dor e sofrimento, mas também de muitas lutas, de resistências e de reexistências. Na segunda parte (capítulo II) deste trabalho, procuramos atualizar o debate sobre as questões raciais no Brasil, especialmente no que se refere às estratégias de controle e de contenção da população negra que se dá, especialmente por meio de políticas chamadas de “segurança pública”, por meio de legislações que, deliberadamente, tem um público específico, a população preta e pobre, tendo como consequência o hiperencarceramento dessas populações predominantemente periféricas, especialmente a população negra, público majoritário dessas regiões. Além de estabelecermos um paralelo entre o encarceramento em

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massa e a superexploração da força de trabalho das pessoas privadas de liberdade para o atendimento aos interesses financeiros de empresas que se valem dessa mão-de-obra subvalorizada para obtenção de lucros cada vez maiores. Trazemos também encarceramento em massa sob a perspectiva da violação dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade tendo em vista os altos índices de denúncias dessas violações por meio dos movimentos sociais organizados que lutam em suas defesas, além das denúncias das instituições responsáveis por apurar esses tipos de violações. Por fim, concluímos nossos estudos apresentando os resultados das reflexões realizadas a partir da análise da bibliografia consultada e dos dados estatísticos avaliados e procuramos apresentar algumas estratégias de diminuição ou mesmo de superação desse encarceramento em massa que tem sido defendido por alguns pesquisadores, movimentos sociais, institutos de pesquisa especializados em criminologia que, em linhas gerais, propõem uma nova forma de pensar sobre a criminalização dos mais pobres, o que é recorrente no Brasil, em sua maioria pretos, jovens e periféricos, deslocando a dinâmica dessa criminalização do indivíduo para a estrutura social, criminalização esta que tem atingido também os movimentos sociais organizados.

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CAPÍTULO I – DAS SENZALAS ÀS PRISÕES CONTEMPORÂNEAS: CONTROLE E CONTENÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL O controle e a contenção da população negra não é algo da sociedade contemporânea. Essas estratégias nos remontam ao período pós a falsa abolição de 1888. Não é novidade pra ninguém que a escravidão sempre foi uma forma de conter e de controlar a população negra no nosso país. Além, é claro, de ser a forma mais cruel e desumana de exploração da força de trabalho das pessoas, neste caso especificamente, dos negros e negras. As senzalas do período escravocrata e os trabalhos forçados e sem quaisquer remunerações foram os mecanismos de dominação e controle da população negra utilizados à época (e na contemporaneidade); guardadas as devidas proporções e particularidades, as unidades prisionais cumprem essa terrível função na contemporaneidade.

As medidas de controle social, sem analisarmos, por enquanto, o que foi no Parlamento a discussão dos racistas brasileiros contra a entrada de imigrantes não brancos, são uma permanente atitude das elites brancas. (MOURA, 1988)

Se atualizarmos essas discussões, poderíamos comparar as senzalas com as unidades prisionais da contemporaneidade e o arcabouço legal que fora instituído desde o pós-abolição, e mesmo as de antes, até a atualidade, como mecanismos para manutenção desse grupo populacional sob controle. Já que não era possível mais o controle por meio da escravização e suas diversas configurações, então foram utilizados instrumentos legais que pudessem dar conta dessa dominação. Na apresentação do livro Capitalismo e racismo, traduzido de Race and Class, Bookmarks, Londres, janeiro de 1993, de Alex Callinicos, o tradutor Rui Polly (2000) aponta que Callinicos, ao analisar as manifestações de racismo na realidade da Inglaterra e dos Estados Unidos, as diferencia das manifestações aqui no Brasil. Entende que nesses países uma legislação discriminatória, de essência religiosa, converteu-se numa legislação racista, servindo de justificativa para o cometimento de atos bárbaros tanto na metrópole quanto nas colônias ultramarinas. Apesar do racismo objetivamente não ser o tema central dessa discussão, entendemos que este é fundante das questões que trataremos no desenvolvimento do debate a que essa pesquisa se propõe. Tudo isso para dizer que, tanto lá como cá, um aparato legal foi utilizado para justificar as mais perversas atrocidades contra a população negra em nosso país, causando a perseguição permanente de pretos e pardos, especialmente os jovens e residentes

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nas comunidades e periferias pelo Brasil afora, contribuindo de forma significativa para o encarceramento em massa e o genocídio3 desse contingente populacional brasileiro. A geografia segregada das cidades, a impunidade que prevalece em homicídios cometidos por policiais e a política de segurança focada na guerra e no enfrentamento armado do tráfico suspendem na prática o estado de direito e instalam o estado de exceção em certas áreas das cidades, sinalizando com uma autorização tácita para a execução dos “elementos suspeitos”. Uma seletividade perversa que torna alguns sujeitos matáveis, sem que sintamos qualquer horror ou responsabilidade em relação a isso. (ROQUE, 2015)

Como o próprio movimento de luta contra o encarceramento em massa da população negra costuma dizer: a polícia quando não mata, prende. E para prender ou matar, há a necessidade de uma legislação que autorize os agentes do Estado a praticar esse tipo de procedimento. A “liberdade” dos trabalhadores negros escravizados foi precedida por muitas lutas e formas de resistências ao trabalho escravo. Uma das mais conhecidas foi o quilombismo4, conceito defendido pelo professor Abdias Nascimento (1980) em seu livro Quilombismo: um conceito científico emergente do processo histórico-cultural das massas afro-brasileiras. Para ele, o quilombismo se estruturava em formas associativas que iam além das áreas de florestas de difícil acesso, mas assumiam modelos de organizações com finalidades religiosas, esportivas, beneficentes, culturais ou de auxílio mútuo (NASCIMENTO, 1980). Se configurava numa forma de organização política do Brasil:

O quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI e em outros quilombos que existiram e que existem no país. (NASCIMENTO, 1980: 275)

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Para discussão sobre o genocídio, apresento neste trabalho duas definições retirados do livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, do professor Abdias do Nascimento, publicado em 1978 definindo o genocídio como (a) O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo. (Webster's Third New lnternational Dictionary of the English Language, Massachussetts, 1967) e (b) Genocídio s.m. (neol.) Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos. Ex.: perseguição hitlerista aos judeus, segregação racial, etc. (Dicionário Escolar do Professor. Organizado por Francisco da Silveira Bueno Ministério da Educação e Cultura, Brasilia, 1963, p. 580). 4 Para saber mais sobre o quilombismo, conheça alguns dos seus princípios e propósitos no livro O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. Petrópolis: Vozes, 1980. 245-241.

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O tema quilombos também foi muito bem estudado pela professora, historiadora, roteirista, poetisa e ativista pelos direitos humanos de negros e de mulheres, Beatriz Nascimento, uma importante referência para os estudos raciais no Brasil, especialmente nos meios acadêmicos. Para Nascimento (2006), os quilombos foram “formas de resistência que o negro manteve ou incorporou à luta árdua pela manutenção da identidade pessoal e histórica”. Ela atribui todas as formas de resistência do povo negro a sua própria história. No Brasil, poderemos citar uma lista desses movimentos que no âmbito social e político é o objetivo do nosso estudo. Trata-se do Quilombo (Kilombo), que representou, na história do nosso povo, um marco na sua capacidade de resistência e organização. Todas estas formas de resistência podem ser compreendidas como a história do negro no Brasil. (NASCIMENTO, 2006).

A professora e feminista Sueli Carneiro (2006) aponta a importância desses estudos no sentido de que Beatriz Nascimento “libertou a negritude do aprisionamento acadêmico ao passado escravista, atualizando signos e construindo novos conceitos e abordagens” desenvolvendo o conceito de quilombos urbanos. Carneiro (2006) acrescenta que ela “ressignifica o território/favela, como espaço de continuidade de uma experiência histórica que sobrepõe a escravidão à marginalização social, segregação e resistência dos negros no Brasil”. Seguindo a tônica dessas discussões e as lições deixadas pela professora Beatriz Nascimento e pelo professor Abdias Nascimento e considerando ainda a intenção de atualização do debate, a temática dos quilombos se coloca como imprescindível para entendermos os deslocamentos conceituais, trazendo-os para os debates contemporâneos no que se refere à formação de guetos e de espaços periféricos com a população majoritariamente preta e pobre, bem como tentar entender como se configuram os mecanismos de marginalização e criminalização desses espaços e consequentemente das pessoas que vivem o seu cotidiano nesses locais, levando ao seu controle e dominação por parte das forças policiais e repressoras do Estado. Nesse sentido, o professor Abdias Nascimento (1980) aponta que:

Tendo em vista a condição atual do negro à margem do emprego ou degradado no semi-emprego e subemprego; levando-se em conta a segregação residencial que lhe é imposta pelo duplo motivo de raça e pobreza, destinando-lhe como áreas de moradias ghetos de várias denominações: favelas, alagados, porões, mocambos, invasões, conjuntos populares ou “residenciais”; considerando-se a permanente brutalidade

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policial e as prisões arbitrárias motivadas pela cor da sua pele, compreendese por que todo negro consciente não tem a menor esperança de que uma mudança progressista possa ocorrer espontaneamente em benefício da comunidade afro-brasileira. (NASCIMENTO, 1980)

Guardadas as devidas proporções, peculiaridades e particularidades no que se refere às diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil, Loïc Wacquant (2002) nos apresenta algumas questões que nos permite fazer análises comparativas de algumas semelhanças com a sociedade brasileira. Wacquant (2002) indica que a escravidão e o encarceramento em massa estão genealogicamente ligados e que não é possível entender este último sem voltar à primeira como ponto de partida histórico e análogo funcional, apresentando duas características como pano de fundo da trajetória histórica da dominação racial: a desproporcionalidade e o crescente encarceramento, entendidos como resultado das funções extrapenais do sistema prisional. Para Wacquant: Não é o crime, mas a necessidade de sustentar uma clivagem de castas em erosão – além de reforçar o regime emergente de mão-de-obra assalariada e dessocializada ao qual estão fadados os negros, em sua maioria, por lhes faltar capital cultural comerciável e ao qual resistem os mais destituídos dentre eles refugiando-se na economia ilegal das ruas – que é o principal impulso por trás da expansão estupenda do estado penal dos Estados Unidos na época pós-keynesiana e de sua política de facto de “ação afirmativa carcerária” para com os afro-americanos. (WACQUANT, 2002)

No Brasil, alguns estudos também traçam uma relação entre o passado escravista e encarceramento em massa na contemporaneidade. Ávila (2015) analisa a escravidão, o sistema judiciário e o sistema prisional no Brasil relacionando dados educacionais, econômicos, de cor e etnia que embasam e corroboram a manutenção da violência contra esses mesmos grupos históricos. Neste estudo, o autor analisa uma série de leis que caracterizam a herança escravocrata do Brasil. São leis que vão desde as que proibiam o tráfico de escravos no Atlântico, passando por leis que regularizavam a escravidão até as leis que puniam, criminalmente, indo desde o açoitamento público e encarceramento até a pena de morte, os trabalhadores negros escravizados. Sim, oficialmente, nós tivemos pena de morte no Brasil, por mais absurdo que isso possa parecer. A pena de morte no Brasil era regulamentada pelo Artigo 1º da Lei nº 04/1835, que versava sobre o seguinte: Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a

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administrador, feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. (LEI Nº 4, de 1835).

São diversos os mecanismos legais que contribuíram para a escravização, criminalização, punição e encarceramento da população negra no Brasil desde o período escravista até a contemporaneidade. A escravidão, além de uma forma cruel e desumana de exploração da força de trabalho, também se configura como uma modalidade perversa de privação de liberdade, pois, além de privar os negros escravizados da sua liberdade, eram obrigados a realizar trabalhos forçados sem nenhum tipo de remuneração ou retribuição financeira, entre tantas outras violações dos direitos e da dignidade humana. As penas aos escravos que cometessem homicídio variavam entre açoites e ferro, galé perpétua, prisão com trabalho e pena de morte. Para os outros crimes, quando comprovados, açoites, ferro e prisão com trabalho. Todas as punições eram reguladas pelo Código Criminal de 1830 e pela Lei nº. 4, de 1935. (ÁVILA, 2015)

Nascimento (2006), nos seus importantes estudos sobre os quilombos no Brasil nos atualiza sobre a função policialesca das forças de segurança do Império sobre a população negra, especialmente quando essa população se rebela, resistindo e se organizando na luta contra as atrocidades cometidas pelos senhores de escravos. Resistências estas representadas pelas fugas para os quilombos, que “passa a ser uma instituição decorrente desta fragilidade colonial e integrante da ordem do quilombo”. Justificadas, muitas vezes, pelo afrouxamento dos laços entre os trabalhadores negros escravizados e seus senhores de escravos provocadas pela oscilação das atividades econômicas à época. Ainda de acordo com Nascimento (2006), “o saque, as razias, enfim, o banditismo social, são a tônica que define a sobrevivências desses aglomerados” e eram energicamente punidos com o rigor da lei, especialmente o Código Penal do Império de 1835. Neste ponto, Nascimento (2006) também nos informa sobre a instituição da pena de morte do Brasil e sua aplicação rigorosa contra os trabalhadores negros escravizados que integrassem quilombos espalhados pelo Brasil, sendo estes equiparados a quaisquer outras formas de insurreição popular contra o Império.

É assim que no Código de Processo Penal de 1835 o quilombo no sentido de valhacouto de bandidos se distingue de qualquer outra forma de contestação dos escravos. Mas se assemelha enquanto perigo à estabilidade e integridade do Império, sendo a pena para os seus integrantes correspondentes à mesma dos participantes de insurreições: ou seja, a degola. (NASCIMENTO, 2006)

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Como se pode observar, os mecanismos de contenção, controle e perseguição dos trabalhadores negros não é um fenômeno da contemporaneidade, mas tem suas raízes no período do Brasil colonial, ainda no século XVII, período em que, segundo Nascimento (2006), “ele está inserido no chamado „perigo negro‟, movimento que assim se denominam em função das guerras da Bahia e do Maranhão”. Mais uma vez, as práticas do passado se cruzam com as do presente, na medida em que há uma perseguição deliberada contra as populações negras do nosso país, especialmente contra os jovens negros e das regiões periféricas pelo Brasil afora. As “sindicâncias policiais” apontadas por Nascimento (2006) dialogam com as abordagens ostensivas e abusivas dos policiais, e das forças de segurança em geral, realizadas constantemente contra esse contingente populacional.

O desrespeito e a violência policial para com as pessoas pobres, em particular, para com a população jovem, negra, pobre e favelada é uma realidade difícil de acreditar, pelo fato de ser a polícia a instituição que deveria zelar pela segurança das pessoas. É inaceitável e desumana a forma como os sujeitos pobres e vulneráveis às mazelas sociais são tratados pelas polícias civil e militar. (ARAÚJO, 2014)

O que se percebe é uma total inversão de papéis, pois a instituição que, em tese, deveria proteger, em vez disso, é a que mais violenta e viola os direitos humanos. A questão é tão complicada que, em muitas comunidades, como muito bem apontaram os estudos do professor Ivair Augusto Alves dos Santos, na sua tese de doutorado defendida em 2009 e publicada posteriormente, que trata da violação dos direitos humanos e sua relação com o racismo, o medo da polícia entre a população é algo muito significativo. Na sua pesquisa, Santos (2013) afirma, baseado em várias pesquisas realizadas por institutos de pesquisa sérios, que “entre os negros, aliás, muitos revelaram ter mais medo da polícia que dos próprios bandidos”. O Código Penal dos Estados Unidos do Brazil foi promulgado pelo Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890 e dentre outras coisas tipificava os vários tipos de crime no território brasileiro. No seu Livro III, que trata das contravenções em espécie, no Capítulo XIII, cujo título trata dos Vadios e Capoeiras, no seu artigo 399 traz a seguinte redação:

Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes: Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias. (CP, 1890)

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Ora, qual o principal motivo da promulgação desse Código Penal após apenas 2 anos de decretado o fim da escravidão no Brasil senão para criar mecanismos e estratégias legais que justifiquem a continuação da captura dos negros, pois as únicas pessoas que provavelmente estivessem sem exercer alguma profissão ou formas de ganhar a vida, sem possuir meios de subsistência e domicílio seriam os negros. Não vislumbramos quaisquer outras pessoas senão os negros recém-libertos. Esse mesmo Código, no seu artigo 402, proíbe a prática da capoeira nas ruas e praças públicas. Vejamos:

Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal: Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. (CP, 1890)

Ora vejamos, se as pessoas não tem trabalho, não tem casa, onde mais elas poderiam ficar senão nas ruas. E o que fazer nas ruas senão ao menos praticar suas habilidades físicas e/ou culturais e até de defesas pessoais, adquiridas durante o processo de escravização. Todas essas proibições tinham público e endereços certos: os locais ocupados pelos negros recémlibertos. Criminalizando-os, segregandos-os e encarcerando-os para o bom proveito e explorações do Estado, garantindo assim sua contenção e controle, a fim de evitar quaisquer tipos de resistências às quais os negros pudessem oferecer. Mas as proibições não se restringiram apenas aos exercícios de agilidade e destreza corporal como a capoeira, mas se estenderam às atividades de cunho religioso, enquadradas nos crimes contra a saúde pública, especialmente nos capítulos 156, 157 e 158 do Código Penal de 1890. Nascimento (1978) nos apresenta uma poesia anônima, composta por negros, que nos dá uma dimensão sobre o tratamento dispensado pela polícia aos sacerdotes das religiões africanas.

Dá licença Pai Antônio, Eu não vim te visitá, eu estou muito doente, o que quero é me curá. Se a doença fôr feitiço me cura no seu Congá; Se a doença fôr de Deus ... Ah! Pai Antônio vai curá! Coitado de Pai Antônio, Prêto velho rezadô, Foi parar numa prisão, Ah! por não ter um defensô. Pai Antônio na Quimbanda ... É curadô! É pai de mesa, é rezadô! É pai de mesa, é rezadô! Pai Antônio da Quimbanda é curadô! Povo de Umbanda! Povo valente! Rei de Congo! Meu pai chegou!

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Seguindo a linha da ressignificação e atualização dos conceitos, o Decreto-Lei nº 3688, de 3 de outubro de 1941, a Lei das Contravenções Penais (LCP), no seu artigo 59, mantém a punição com pena de prisão por 15 dias a 3 meses pelo crime de entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita. (DL 3688, 1941). Importante que essa lei está vigente até hoje. A proibição da capoeira foi revogada com a promulgação deste Decreto-Lei. Para a professora Ana Flauzina (2008), o Código cuidou de regulamentar e qualificar como delito o ócio, mesmo o forçado, como é o caso dos negros desempregados e sem qualquer possibilidade de uma vida digna. Em termos práticos, a população negra ficou a mercê de uma legislação racista, que a tinha como seu público-alvo principal e majoritário. A população negra, portanto, ficou apartada de qualquer projeto de nação, e permaneceu igualmente à margem dos direitos os mais básicos (GONÇALVES e AMBAR, 2015). O professor Abdias Nascimento (1982) sintetiza com maestria essas circunstâncias às quais os negros foram submetidos. Para ele:

A população analfabeta, foi impedida de votar; sem trabalho, foi impelida ao delito da vadiagem e ficou à mercê da violência policial; suas expressões culturais foram julgadas criminosas; suas religiões de matriz africana foram reprimidas (NASCIMENTO, 1982).

A educação, como um direito fundamental básico, também foi deliberadamente negado aos trabalhadores negros escravizados5. O índice de escolaridade entre os negros são os mais baixos e o acesso à universidade se torna cada vez mais difícil, tendo em vista as recentes alterações do Plano Nacional de Educação (PNE), bem como as políticas e critérios para obtenção de bolsas nas universidades. A exclusão da população negra se dá também por meio da educação que, contraditoriamente, deveria incluir, integrar esse contingente populacional tão massacrado

Para compreender os processos de escolarização do negro, pesquisadores – negros e brancos – reuniram-se e dedicaram-se a analisar a trajetória institucional da educação dos descendentes de africanos no Brasil, buscando respostas para essa negação. Informação necessária, inclusive, para a compreensão da necessidade da Lei 10.639/03 e dos indicadores que apontam uma histórica de desigualdade entre as trajetórias escolares de negros e brancos no Brasil. Ver mais no livro: História da Educação do Negro e outras histórias, organizadopor Jeruse Romão, em 2005, pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, órgão do Ministério da Educação, em Brasília (2005). 5

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pela nossa sociedade e por um sistema que só reconhece o padrão eurocêntrico, ou seja, o homem, branco, hétero e de regiões abastadas. A política do estado escravista preconizava que somente os brasileiros poderiam ter acesso à educação. Africanos de nascimento, os trabalhadores escravizados não podiam ser escolarizados. Este direito também fora negado a seus filhos sob o discurso de que se o negro é uma raça inferior, incapaz para o trabalho, propensa ao vício, ao crime, inimiga da civilização e do progresso, a educação se tornaria um dispêndio desnecessário. (GONÇALVES e AMBAR, 2015).

A população negra continua ocupando majoritariamente as regiões periféricas dos grandes centros urbanos e sobrevivendo nas habitações mais precárias dessas regiões. Sua remuneração é mais baixa, constatadas pelos diversos institutos de pesquisa oficiais. Se considerarmos a questão de gênero, o problema se agrava ainda mais. Nos cárceres, a população negra representa mãos de 60% do contingente populacional privado de liberdade (INFOPEN/2017). São várias marcas sociais que vão se atribuindo a uma população que carrega a exploração da força de trabalho e a escravidão como marca indelével de um processo histórico vergonhoso ao qual o Brasil é tributário. Isso se resume na reflexão que Hasembalg (2005) nos propõe.

(...) a exploração de classe e a opressão racial se articulam como mecanismos de exploração do povo negro, alijando-o dos bens materiais e simbólicos. E as razões da marginalização do povo negro são encontradas nas práticas ditas “racistas” e discriminatórias subjacentes ao período posterior à escravidão. (HASEMBALG, 2005)

Nascimento (1984) já aponta essa relação conflituosa entre o Estado, por meio da polícia e os trabalhadores negros que, imediatamente o pós-abolição quando da elaboração da primeira constituição republicana, foram impedidos de votar, além de outros dispositivos legais mencionados anteriormente e denunciados pelo autor, como por exemplo, a preferência pelos negros como público alvo das suas ações.

Na prática, imediatamente cassaram o direito político do negro e o colocaram sob a tutela da polícia. Pois o vadio é este ser que não consegue emprego e está sempre aí, nas miras da polícia; ela pode prender, espancar, impunimente, à vontade, e está tudo bem. Pleiteiam agora estender esta mesma arbitrariedade a uma tal chamada prisão cautelar: a pessoa é presa por tempo indefinido sem que aja alguma razão. Um policial acha que tem que deve prender, prende e acabou. O direito do cidadão não é absolutamente resguardado. Desnecessário dizer que essa prisão cautelar vai desabar diretamente em cima da cabeça do negro. (NASCIMENTO, 1984)

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Percebe-se que a população mais ignorada, esquecida e negligenciada pelo Estado e, consequentemente pelas políticas públicas e sociais, que em tese, deveria garantir, minimamente, as condições básicas de sobrevivência, é a população negra e periférica. Ela só não é esquecida pelas forças de segurança e suas polícias truculentas e opressoras que se utilizam da força e até do extermínio para tentar resolver os conflitos sociais. Sabemos que o uso intransigente da força não resolve nada, ao contrário, só aumenta os índices de violência e de letalidade contra os trabalhadores e as trabalhadoras, especialmente negros e da periferia. Santos (2013) nos alerta que, diante desses conflitos, a população fica no meio do fogo cruzado e sofre as maiores consequências de uma política de segurança que não resolve os problemas da criminalidade e tem na repressão a resposta para todos os males da sociedade, deixando-a a mercê das forças do crime organizado por um lado e pelo outro da própria polícia. O povo humilde e pobre, na sua vasta maioria “preto e pardo”, vive “ensanduichado”. De um lado, têm-se os marginais que infestam não só os centros das cidades, mas também a periferia, e morros. E de outro, temos a própria polícia, que, como os marginais, está solta e armada pelas ruas. (SANTOS, 2013)

A legislação do período escravista não contribuiu em nada para a transformação das reais e objetivas condições subumanas de exploração da força de trabalho e de dominação da população negra. Não passaram de leis pra inglês ver, pois era exatamente essa ideia que deveria ser passada para os ingleses. Se considerarmos a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida popularmente como a Lei do Ventre Livre, vemos que esta lei não passa de um engodo, de uma falácia, pois, objetivamente nenhum ventre fica livre. Esta lei determinava que os filhos das mulheres escravizadas, que nascessem a partir da data da sua promulgação, seriam livres. Mas ao mesmo tempo, determinava que esses filhos ficariam sob o poder e autoridade dos donos das mães escravizadas. Assim versa o parágrafo 1º da referida lei: Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos. (LEI 2.040, 1871)

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O mesmo podemos verificar no que se refere à Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, mais conhecida como a Lei dos Sexagenários, que regula a extinção gradual do elemento servil. Entre outras coisas, esta lei isentava os negros escravizados de 60 a 65 anos, porém raramente algum homem escravizado passaria dessa idade. Estudo recentemente realizado pelo professor de História Luiz Fernando Veloso Nogueira (2011) analisa a mortalidade escrava em Lamim-MG, entre 1859 e 1888, priorizando as condições de morte e expectativa de vida dos escravos, visando contribuir com os estudos em torno da expectativa de vida e morte de escravos na segunda metade do século XIX. Nos seus estudos, Nogueira (2011) utilizou os estudos de SCHWARTZ (1988) mostrando que no Brasil do último quarto do século XIX a expectativa de vida dos escravos, as nascer, variava em torno de 19 anos. Este mesmo estudo revela que a expectativa de vida de um brasileiro não escravo era de 27 anos naquele período estudado. Mas os estudos do professor Nogueira (2011) revelaram que a expectativa de vida de um escravo é de 25 anos. No que se refere à mortalidade geral de escravos, com base na média de idade de falecimento obtida por meio dos registros de óbitos, concluímos que a expectativa de vida de um escravo, na Freguesia de Lamim, era de 25 anos, um pouco maior que a encontrada por Schwartz, que girava em torno de 19 anos. (NOGUEIRA, 2011)

O professor Ávila (2015) conclui seus estudos afirmando que os negros são os que sofrem a pena de morte cotidiana aplicada pela polícia, principalmente os mais jovens e que são eles que configuram a maioria das prisões abusivas e muitas vezes são julgados com penas desproporcionais e mandados para o cárcere. As conclusões do professor Ávila reafirmam o que os movimentos sociais de defesa dos direitos humanos e pelo fim do encarceramento em massa têm denunciado há muito tempo. Ou seja, de que há uma repressão excessiva por parte das instituições do Estado e que essa repressão está motivada principalmente pelo preconceito e pela discriminação racial, levando a reproduções históricas de comportamentos e ações que excluem, segregam, criminalizam, encarceram e matam, majoritariamente, os jovens pretos e periféricos pelo nosso país afora. Com o fim da escravidão, o Brasil passou a conviver com um importante desafio: o que fazer com o contingente de negros libertos oficialmente, pois essa liberdade não se concretizou em termos objetivos. Vários estudos nos mostram que os negros não faziam parte dos planos para a nova república. Como muito bem nos chama a atenção o rapper e ativista Gas-Pa (2014), do coletivo de hip hop Lutarmada: “definitivamente o povo preto estava descartado dos planos da república que nascia em 1889”, apenas um ano após a falsa abolição

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da escravidão. Muito pelo contrário, diversas foram as estratégias político-ideológicas e pseudocientíficas para sua sistemática eliminação. É imprescindível que façamos uma leitura crítica do todo o processo de escravização e exploração da força de trabalho às quais os trabalhadores negros foram submetidos por mais de três séculos. Precisamos fazer os deslocamentos necessários pra pensar sobre o que essa sociedade escravista deixou de legado para a sociedade contemporânea para entender os processos de exploração e de exclusão da atualidade. Certamente a contemporaneidade nos faz pensar sobre as atrocidades cometidas contra os trabalhadores negros no passado para que não cometamos os mesmos erros no presente e possamos construir uma nação verdadeiramente justa e com igualdade de oportunidades para todos e todas no futuro.

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1.1 – O branqueamento como forma de apagamento e de exclusão do povo negro

A ideologia do branqueamento e/ou embranquecimento, como alguns autores preferem chamar, talvez tenha sido, se não a pior, uma das piores formas e tentativas de apagamento e eliminação da população negra e de tudo que, de alguma forma, remetesse à cultura ou as formar de ser e de estar no mundo desse contingente populacional. Falar em branqueamento é falar em genocídio da população negra. O branqueamento da população brasileira era algo a ser seguido como o tipo ideal da nação brasileira, tornando-a “moderna”. Devia ser seguido a qualquer custo, tendo em vista o atendimento às exigências internacionais no sentido de que deveríamos nos aproximar o máximo possível dos padrões europeus, considerados como modelo de nação e de purificação das raças. A imagem do Brasil no exterior era “manchada” pelo excessivo número de negros. Tornava-se necessário “clarear” a nossa população. A recusa ao trabalho por parte dos negros, individual ou coletivamente, era vista como algo muito negativo pelos estrangeiros e também pelos brasileiros. Havia urgência de se acabar com o regime escravista e trocá-lo por um mais moderno.

Entendiam como modernidade, todavia, não apenas a eliminação do trabalho escravo, mas a eliminação de quem, mesmo livre, denunciava a existência recente da escravidão: o negro. O discurso de desqualificação do trabalhador nacional e supervalorização do estrangeiro, sinônimo de moderno, civilizado, puro, científico, era tão forte que teria sido incorporado até mesmo por lideranças abolicionistas negras que, por sua vez, cumpriram o papel de propagar o integralismo e promover o controle dos conflitos sociais. (JACINO, 2014)

Jacino (2014) assinala que as elites brasileiras, optando por extinguir a população negra da nação, passaram a buscar formas e estratégias de executar esse seu grande plano, elegendo como uma das principais, encontrar formas de “fazer desaparecer” a parte da população que se tornaria símbolo do tipo de sociedade monarquista e escravista que pretendia ver superada. Discriminar a cor do cidadão não fazia mais sentido diante do novo país que estavam construindo que, em tese todos deveriam ser iguais perante a lei e isso era explícito no discurso oficial, porém escondia outros interesses. O discurso oficial, entretanto, escondia um dos principais objetivos: “branquear” o país, condição básica para torna-lo moderno, capitalista e republicano. Os documentos oficiais teriam função de fazer com que sumissem todos os escravizados, apagando a presença de negros e mestiços,

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como se assim desaparecessem as diferenças sociais, econômicas e políticas. (JACINO, 2014)

Para o professor Abdias do Nascimento (1978), muito antes das políticas que promoviam o branqueamento da nossa população, esse processo de branqueamento se inicia já nas relações entre a casa grande e a senzala, por meio das violências sexuais dos senhores com as mulheres escravizadas, um dos recursos utilizados para a resolução do problema da “mancha negra” existente no Brasil. Por meio dos estupros constantes e consequentemente do nascimento desses filhos “bastardos” é que se inicia o processo de genocídio da população negra no nosso país. A partir daí, surgem os primeiros mestiços e/ou mulatos que vão permear o imaginário brasileiro como o início de um processo que iria, literalmente, mudar a cara da população brasileira. Para a solução deste grande problema – a ameaça da “mancha negra” – já vimos que um dos recursos utilizados foi o estupro da mulher negra pelos brancos da sociedade dominante, originando os produtos de sangue misto: o mulato, o pardo, o moreno, o pardo-vasco, o homem-de-cor, o fusco, mencionados anteriormente. O crime de violação cometido contra a mulher negra pelo homem branco continuou como prática normal através das gerações. (NASCIMENTO, 1978)

Essa ideologia do branqueamento teve forte aceitação e empenho de “cientistas” no que se refere a sua promoção e justificação para a solução dos problemas de identidade nacional brasileira. Para alguns cientistas, não era possível conviver em uma nação com um passado marcado pela escravização de povos, no caso do Brasil, de negros africanos. O branqueamento representava também, do ponto de vista ideológico, o rompimento ou pelo menos o mascaramento, do passado marcado pelo processo perverso de escravização de negros e negras arrancados do continente africano. Esse envolvimento da comunidade científica é retratado pelo professor Abdias do Nascimento (1978) em seu livro “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”. O conluio dos intelectuais e dos acadêmicos “cientistas” na formulação dessa política foi decisivo para a sua aceitação. Na década de 20, quando o Brasil estimulava através de leis a imigração de brancos europeus (celtas, raças nórdicas, iberos eslavos, germânicos, portugueses, austríacos, russos e italianos), “científicos” endossos a esta política e seus objetivos se encontravam amplamente disponíveis. (NASCIMENTO, 1978)

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Além do apagamento de uma população e consequentemente de sua cultura e demais características que a identificam, o branqueamento também trouxe sérios problemas no que se refere à integração dos trabalhadores negros no mercado de trabalho nacional que estava se formando, com o processo de transição do trabalho escravo e forçado, para o trabalho livre e remunerado. Para branquear a população brasileira, o trabalho também foi usado como estratégia desse branqueamento, haja vista as políticas de incentivo à imigração europeia, inclusive com o financiamento das passagens de vinda para o Brasil, a garantia de emprego e a cessão de terras para o plantio e cultivo e o número considerável de imigrantes que chegaram no Brasil. De acordo com dados apontados por Nascimento (1978), entre os anos de 1851 e 1900, entraram no Brasil mais de 2 milhões de imigrantes europeus, mais precisamente 2.092.847, destacando como o auge dessa imigração os anos de 1891 e 1900 que totalizam, somente nesse período, 1.129.315 imigrantes. Cabe destacar que esse período é justamente o período pós-abolição, apontado pelo autor como o apogeu da imigração europeia. O professor assinala que:

Em 1882 tínhamos nas províncias de São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Ceará e Rio de Janeiro para 1.443.170 trabalhadores livres e 656.540 escravos uma massa de desocupados de 2.822.583. Essa era a realidade no processo de decomposição do sistema escravista: tínhamos, portanto, uma população trabalhadora sem ocupação maior do que o total de imigrantes que chegaram ao Brasil de 1851 a 1900. Mas tudo isso era posto de lado, sob a alegação do “ócio” nacional. (NASCIMENTO, 1978)

Depreende-se que, apesar do número significativo de trabalhadores escravizados e trabalhadores livres constituírem uma grande massa de desocupados no Brasil em 1882, nada disso foi levado em conta, haja vista o número de imigrantes que entraram no país exatamente no período em que o uso da mão-de-obra nacional seria o suficiente para atender as demandas de um sistema econômico e de produção que estava surgindo. O Brasil, para atender aos interesses externos, preferiu importar a mão-de-obra estrangeira, especialmente a europeia, para ocupar os espaços de trabalho que, naturalmente, deveria ser destinada a essa grande massa de trabalhadores negros recém “libertos” e que necessitariam de colocação nesse mercado de trabalho incipiente que acabava de surgir oficialmente para atender às necessidades do mundo capitalista, ao qual o Brasil passaria a integrar. A opção pela mão-deobra estrangeira também foi um fato muito bem apontado pelos estudos do professor Ramatis Jacino (2014).

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O grande problema da época era o que fazer com os negros recém-libertos, onde alocá-los e como substituí-los na produção. Ao invés de uma solução para a alocação da massa de libertos, optou-se pela imigração europeia, com êxodo de grandes proporções, materializando, assim, a “ideologia do branqueamento”, resultado da transposição para a sociologia e antropologia das teorias de Charles Darwin. (JACINO, 2014)

A justificativa utilizada para a excessiva imigração europeia se dava na desqualificação da mão-de-obra interna, representada por trabalhadores negros recém-libertados e lançados no mercado e a supervalorização da mão-de-obra estrangeira, especialmente a europeia, pela sua suposta “disciplina social, saúde física e mental, capacidade de administração da sociedade com perspectiva evolucionista”, entre outros atributos positivos a essa massa de imigrantes que chegavam ao Brasil. É necessário destacar que a opção pelo branqueamento da população negra brasileira, em especial a opção pelo mercado de trabalho, não era uma questão isolada de determinados setores da elite brasileira, mas trata-se de um consenso entre as forças políticas e econômicas que se formavam naquele momento histórico de transição de um sistema econômico que se estenderia por todo o século XX e XXI, como assinala Jacino (2014).

Há que se destacar, por fim, que apesar das contradições entre os setores das elites, no que diz respeito às mudanças econômicas, sociais e políticas, havia consenso quanto à necessidade do branqueamento do país como estratégia de transição para um patamar superior de nação. (JACINO, 2014)

A questão do branqueamento apresenta-se como muito polêmica e contraditória, pois mesmo entre importantes abolicionistas como Joaquim Nabuco, a ideia de uma população “limpa” era tida como algo a ser perseguido e posto em prática. Fato muito bem explorado por Nascimento (1978), já que não é de se esperar que um importante e aguerrido defensor dos escravos pudesse ser defensor de medidas tão nefastas para a sobrevivência e da própria manutenção da vida desses homens até então cruelmente escravizados por seus senhores.

Esse admirável movimento imigratório não concorre apenas para aumentar rapidamente, em nosso país, o coeficiente da massa ariana pura: mas também, cruzando-se e recruzando-se com a população mestiça, contribui para elevar, com igual rapidez, om teor ariano do nosso sangue. (NABUCO, 1949 apud NASCIMENTO, 1978).

Como se vê, Joaquim Nabuco (1949) alimentava a esperança de que o Brasil se tornasse uma nação de sangue ariano, livre da mácula de um povo feio, como o Conde Arthur de

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Gobineau, citado nos estudos da professora Lilian Schwarcz (1994) sobre a miscigenação no Brasil, a concebia “uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia”. Nesses estudos, Schwarcz (1994) nos apresenta os discursos presentes no pensamento social no que se refere à miscigenação – entendida aqui como uma mistura biológica e cultural, apoiado numa definição do professor Kabengele Munanga (2004) como sendo uma das características da mestiçagem – e a contribuição desse pensamento para o processo de criminalização e marginalização dos

trabalhadores

negros por

meio de teorias

pseudocientíficas, biologicistas e higienistas, apontando inclusive a batalha pela hegemonia intelectual, tendo em vista a emergência de um saber médico no país.

Enquanto no interior da faculdade de medicina na Bahia percebe-se uma atenção especial aos temas da medicina criminal e toda uma batalha personificada por Nina Rodrigues nesse sentido; no Rio de Janeiro já será a pesquisa e atuação na área da higiene pública e da epidemiologia que congregarão o grosso dos esforços. (SCHWARCZ, 1994)

Verificam-se neste ponto duas linhas de pensamento, duas frentes, que passam, primeiramente, pela elaboração de teorias que vão justificar o recolhimento dos trabalhadores negros das ruas ou de suas residências em nome da saúde pública, por meio da “higienização” social e depois por concepções biológicas sobre a índole e propensão à criminalidade desses trabalhadores negros, contando também com as contribuições de Cesare Lombroso6 com seus estudos sobre a medicina legal. Tudo isso para justificar a superioridade da raça branca e a necessidade de branquear a nossa população a fim de obtermos o exemplar mais puro e naturalmente branco, atendendo finalmente aos padrões europeus tão almejados e estabelecidos à época. De acordo com o apontado pelo rapper e ativista Gas-Pa (2014), em 1911 o Brasil envia para o Congresso Universal das Raças, em Londres, o médico João Batista Lacerda que, preconizando uma superioridade da raça branca, previu a extinção do preto no Brasil até o ano

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Cesare Lombroso, médico psiquiatra, foi o principal fundador da Escola Positiva, ao lado de Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, responsáveis por inaugurar a etapa científica da criminologia no final do século XX. Essa Escola surge como uma crítica à Escola Clássica, oportunizando uma mudança radical na análise do delito. Lombroso marcou esse período devido às suas ideias a respeito da relação entre o delito e o criminoso. Preocupou-se em estudar o homem delinquente conferindo-lhe características morfológicas, influenciando uma série de estudiosos a realizarem pesquisas mais profundas acerca do coeficiente humano existente na ação delituosa. (FERNANDES, 2018).

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de 2012. Bem, pelo que pudemos verificar, sua teoria estava totalmente equivocada, pois, ao contrário de extinção, a população negra tem crescido substancialmente; de acordo com os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontou a população brasileira como sendo mais da metade da nossa população, composta por mais de 51% do contingente populacional total em 2010. Para explicar a sua teoria, o médico faz a seguinte declaração: A seleção sexual contínua aperfeiçoa sempre ao subjugar o atavismo e purga os descendentes de mestiços de todos os traços característicos do negro. Graças a este procedimento de redução étnica, é lógico supor que, no espaço de um novo século, os mestiços desaparecerão do Brasil, fato que coincidirá com a extinção paralela da raça negra entre nós. (LACERDA, 1911 apud GAS-PA, 2014).

A continuação da declaração desse médico a seguir já revela o andamento das políticas de incentivo à imigração europeia adotadas pelo Brasil no final do século XIX, como a maioria dos pesquisadores apontam. Sua declaração já aponta também para o genocídio7 da população negra já denunciado pelo professor Abdias Nascimento desde (1978). Um genocídio que vai muito além da morte física.

A população mista do Brasil deverá então ter, dentro de um século, um aspecto bem diferente do atual. As correntes de imigração europeia, que aumentam a cada dia e em maior grau o elemento branco desta população, terminarão, ao fim de certo tempo, por sufocar os elementos dentro dos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro. (LACERDA, 1911 apud GAS-PA, 2014).

Convencido de que a miscigenação por si só não daria conta dessa eliminação, o referido médico complementa a sua previsão discorrendo sobre outros aspectos que nos levaria à “purificação” racial no Brasil. Sua declaração é permeada por discriminações preconceitos, revelando a sua verdadeira face racista e eugenista.

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A definição do genocídio é expressa no artigo II da Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1946, da seguinte forma: entende-se por genocídio quaisquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como: (a) assassinato de membros do grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; (e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.

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Depois da abolição, o negro entregue a ele próprio começou por sair dos grandes centros civilizados, sem procurar melhorar, no entanto sua posição social, fugindo do movimento e do progresso ao qual não poderia se adaptar. Vivendo uma existência quase selvagem, sujeito a todas as causas de destruição, sem recursos suficientes para se manter, refratário a qualquer disciplina que seja, o negro se propaga pelas regiões pouco povoadas e tende a desaparecer de nosso território, como uma raça destinada à vida selvagem e rebelde à civilização. (LACERDA, 1911 apud GAS-PA, 2014).

As políticas de embranquecimento8 no Brasil configuram a excessiva entrada de imigrantes europeus no nosso país. Esse ingresso excessivo tinha objetivos, funções e endereços certos, tornar o Brasil mais aceitável aos olhos dos europeus. Para o rapper e ativista Gas-Pa (2014), “o embranquecimento do Brasil não era apenas uma teoria, mas sim um projeto de nação”. Hofbauer (2011) aponta que num período de menos de 25 anos (de 1890 a 1914) chegaram 2,5 milhões de europeus ao Brasil; quase um milhão deles (987.000) tinha suas viagens de navio financiadas pelo Estado. Dado também verificado por Clóvis Moura (1977) em entrevista concedida ao jornal Folha de São Paul, conforme citado por Abdias Nascimento (1978):

Entraram mais imigrantes italianos nos 30 anos depois da Lei Áurea do que escravos que foram beneficiados com a libertação. Com a Lei Áurea, a marginalização do negro estava instituída. (MOURA, 1977 apud NASCIMENTO, 1978)

As ações políticas mais conhecidas para promover o branqueamento da população brasileira foram, sem dúvida, o financiamento das viagens dos imigrantes para as terras brasileiras pelo Estado, mas não foram somente estas. Um conjunto de ações foram elaboradas para esse fim. Moura (1988) destaca que o auge da campanha do branqueamento do Brasil surge exatamente no momento em que o trabalho escravo (negro) é descartado e substituído pelo assalariado, sendo à época, tido como o único caminho para se modernizar e desenvolver o Brasil, ou seja, colocar no lugar do trabalhador negro, o imigrante. Para ele, o problema não era apenas importar mão-de-obra, mas sim membros de uma raça mais nobre, branca, europeia, superior. Moura (1988) nos informa que em 1920 foi realizada uma

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As políticas de embranquecimento e/ou branqueamento, como alguns autores costumam chamar, são uma série de ações que tinham como objetivo clarear a população brasileira. Entre tantas outras, uma das políticas mais notórias e significativas foi o incentivo e a promoção, por meio de aportes financeiros, para a vinda de imigrantes europeus para o Brasil. Teve como um dos seus principais expoentes o antropólogo e médico eugenista carioca João Baptista de Lacerda. (GAS-PA, 2014).

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pesquisa9 para saber se o imigrante negro seria benéfico ou não para o Brasil e as conclusões foram de que ele seria indesejável. Nesse sentido, a ideologia do embranquecimento também teve um importante papel na consolidação das bases do racismo no Brasil.

Por meio de mecanismos sociais e simbólicos, de dominação, a ideologia do branqueamento se cristalizou e consolidou as bases do racismo, transformando o branco no modelo superior e o negro na espécie inferior da escala de valores. (MOURA, 1988)

Assim, Moura (2008) nos insere no debate sobre o movimento chamado imigrantista10 de pensadores e políticos que antecederam a abolição e que depois estabeleceram os mecanismos seletivos ideológicos, econômicos e institucionais, para a entrada do imigrante trabalhador. Esse movimento foi muito bem estudado e explorado pela professora Célia Maria Marinho de Azevedo (1987) no seu livro: “Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX”, publicado no ano de 1987. Como esse não é o tema central desse estudo, recomendamos uma breve consulta neste livro citado acima para melhor entendimento e um maior aprofundamento da temática apresentada. Estatutos legais também foram criados para a eliminação, segregação e a criminalização do negro brasileiro. Parte dessas ações era justificada pela produção pseudocientífica de estereótipos raciais, tendo como seu principal ícone o médico legista Nina Rodrigues com a sua obra As raças humanas e a responsabilidade penal, publicada originalmente em 1894. Tal fato é apontado pela professora Renata Gonçalves (2015) e a bacharel em Serviço Social Gabrielle Âmbar (2015).

Dentro do projeto de branqueamento do Brasil, as elites passaram a criminalizar o negro brasileiro através da efetivação do Código Penal de 1890 que proibia as manifestações da cultura negra, como a capoeira, a feitiçaria, o curandeirismo etc., isto é, práticas criminais. (GONÇALVES e AMBAR, 2015).

Pesquisa realizada pela Sociedade Nacional de Agricultura – Imigração, Rio de Janeiro, 1920. Grupo de intelectuais, estudiosos e políticos responsáveis pela criação de projetos de incentivo à imigração europeia tendo como principais expoentes Tavares Bastos e Luís Pereira Batista. Esse movimento significava não só acabar com a escravidão e instituir um mercado de trabalho livre no país, mas sobretudo posicionar-se contra o negro e em favor do branco, sem apelo a subterfúgios humanitários. (AZEVEDO, 1987) 9

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As elaborações do médico Nina Rodrigues (2011) caíram como uma luva para as aspirações das elites brasileiras, que não aceitavam, de bom grado, a convivência com a população negra recém liberta pelos seus senhores. Encarregaram-se de criar mecanismos que as protegessem das “ameaças” vindas com a “abolição” da escravatura. Rodrigues (2011) concebia a civilização branca como uma civilização adiantada e que a total liberdade dos negros de proceder nessa sociedade destoa das demais, considerando-os como de natureza abrupta, retardatárias, que formam o grosso contingente do delito e do crime. Para ele, o negro não tem mau caráter, mas somente caráter instável como a criança, e como na criança. E acrescenta que as suas impulsividades são menos adaptáveis às condições de sua moralidade e do seu psíquico.

O negro crioulo conservou vivos os instintos brutais do africano: é rixoso, violento nas suas impulsões sexuais, muito dado à embriaguez e esse fundo de caráter imprime o seu cunho na criminalidade colonial atual. (RODRIGUES, 2011)

A presunção de liberdade, de acordo com Rodrigues (2011), deve ser diferenciada entre os negros, que a considerava como uma raça inferior, e as raças brancas civilizadas. Segundo ele, a presunção lógica, por conseguinte, é que a responsabilidade penal, fundada na liberdade do querer, das raças inferiores, não pode ser equiparada a das raças brancas civilizadas. Diante de tantas “evidências” científicas sobre a propensão da criminalidade entre os negros que, segundo Nina Rodrigues (2011), pertencem a uma raça inferior, a classe dominante tratou de buscar mecanismos e estratégias que garantissem a contenção e o controle da população negra após a abolição, especialmente no que se refere aos mecanismos legais, utilizando-se de uma estrutura previamente preparada por esses discursos pseudocientíficos e racistas da superioridade moral dos brancos sobre os negros.

A classe dominante não mediu esforços para se proteger daqueles que, uma vez libertos, engrossariam as fileiras de desocupados (as). Para a ordem vigente, era necessário fazer uso de uma polícia forte e de uma justiça severa para conter o que denominava os maus instintos dos negros. Egressos (as) das senzalas foram encurralados (as) nas áreas mais precárias para fincar suas moradias, constituindo as primeiras aglomerações de favelas. (GONÇALVES e AMBAR, 2015).

A partir de então, a população negra egressa das senzalas, as prisões à época, ficou exposta a um processo de exclusão nefasto e a mercê de uma série de interesses da elite brasileira. Suas principais preocupações, à época, eram então as de como manter a ordem

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diante de tanta “desordem” provocada pela “libertação” em massa dos trabalhadores negros escravizados que, a partir daquele momento, estariam aumentando gradativamente o exército de desocupados, ou seja, os excedentes da força de trabalho. Sim, pois a força de trabalho até então forçada, passou a ser livre, mas de acordo com Moura (1988), os negros egressos das senzalas não eram incorporados a esse proletariado nascente, por automatismo, mas iriam compor a franja marginal. O negro e outras camadas não brancas não foram, assim, incorporados a esse proletariado incipiente, mas foram compor a grande franja da marginalizados exigida pelo modelo do capitalismo dependente que substituiu o escravismo. (MOURA, 1988)

Para a elite brasileira não restou outra saída senão a força da lei, representada principalmente pela força policial, disfarçada de justiça, única capaz, segundo esta elite, de conter e dominar a impulsividade, a violência, a embriaguez e tantas outras mazelas atribuídas aos negros pelos discursos pseudocientíficos, racistas e eugenistas à época. É importante destacar que, como muito bem nos aponta o professor Ramatis Jacino (2008), que anos antes de proclamada a abolição da escravatura, muitos negros já estavam livres por meio de diversos mecanismos legais, da introdução de imigrantes europeus entre outros, ou seja, a utilização de mão-de-obra escrava já havia diminuído significativamente. De acordo com Jacino (2008), quando da publicação do Decreto 3.353, de 13 de maio de 1888, apenas 5% da população do Brasil era escravizada.

Um notável contingente de negros livres foi se formando ao longo do século XIX, principalmente na sua metade final, no bojo de um conjunto de alterações de ordem econômica, social, política e cultural que moldaram definitivamente o perfil do Brasil e da capital paulista. (JACINO, 2008).

Jacino (2008) nos chama a atenção para importância de uma compreensão da história que não seja simplista ou factual, levando-nos a reproduzir discursos de que a escravidão tenha gerado a cultura do ócio entre os escravizados, impedindo a sua inserção no mercado de trabalho ou ainda uma leitura equivocada do processo histórico que não reconhece o protagonismo do negro na resistência ao escravismo e no processo de construção de um novo modelo econômico. Não desconsiderando as demais formas de exclusão e de marginalização às quais os trabalhadores negros foram submetidos e considerando ainda a importância do trabalho para a formação do ser social, entendemos que a exclusão do mercado de trabalho no processo de

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transição do trabalho escravo e forçado para o trabalho livre e assalariado foi um dos maiores crimes cometidos contra os trabalhadores negros. Nesse processo cruel de exclusão e de marginalização social, esses trabalhadores foram privados de quaisquer formas de sobrevivência e de manutenção da sua própria vida. Além de ficar a mercê de todas as formas de controle e de contenção que o Estado passa a incidir sobre eles para a suposta manutenção da ordem pública.

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1.2 – Transição do trabalho escravo e forçado para o trabalho livre e remunerado A abolição da escravatura foi precedida por uma série de acontecimentos que contribuíram significativamente para a “libertação” do trabalhador escravizado, passando a trabalhador livre pra vender a sua força de trabalho. Foram processos políticos, econômicos e sociais, de muitas resistências, que marcaram esse período de transição que, gradativamente, trabalhadores escravizados, realizando trabalhos forçados, passaram a ser trabalhadores “livres”, ou seja, passaram a administrar a sua própria força de trabalho, não sendo mais propriedade de nenhum senhor de escravo. Jacino (2008) aponta que, o protagonismo negro foi fundamental para realização do processo de transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Embora naquele momento já houvesse vários trabalhadores negros livres por aqui. É o caso dos africanos que vieram após a promulgação da lei que proibia o tráfico de escravos em 1831 e mais efetivamente em 1850, quando perderam o seu “status” jurídico de escravos, passando muitas vezes, à tutela do Estado, da igreja, ou de um fiel depositário (JACINO, 2008). Os chamados “africanos livres” que não devem ser confundidos com os “negros livres”, como muito bem chama a nossa atenção o professor Jacino (2008). É necessário explicar que ao se tratar de “negro-livre”, referimo-nos a um conjunto bastante amplo de indivíduos que deixam de ser cativos, que não devem ser confundidos com aqueles que ficaram conhecidos como “africanos-livres”. (JACINO, 2008)

Mas, em que medida, a “liberdade” trouxe algum benefício para os trabalhadores negros, que agora estavam livres pra vender a sua força de trabalho. O que de fato mudou entre ser um trabalhador escravo e um trabalhador livre assalariado? Será que houve algum incentivo para a inserção do negro no trabalho livre durante o período da escravidão? Muito pelo contrário. Quais os mecanismos legais foram utilizados para a promoção e integração dessa massa de trabalhadores, agora disponíveis no mercado de trabalho? Quais foram as indenizações oferecidas a esses trabalhadores que trabalharam a vida inteira de graça para os grandes fazendeiros e senhores de engenho? Moura (1988) nos responde algumas dessas indagações alertando que:

(...) o que aconteceu foi uma visão apriorística de que a grande massa não apenas egressa das senzalas em 1888, mas aqueles que já compunham um contingente de mão-de-obra aproveitada que antecede à abolição deveriam

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ser marginalizados para se colocar, no seu lugar, um trabalhador de acordo com a nova dinâmica da economia. (MOURA, 1988)

No processo de abolição, os negros foram deliberadamente excluídos do mercado de trabalho e substituídos por mão-de-obra estrangeira, fosse por iniciativas legais, fosse por ações da administração pública ou empresariais (JACINO, 2008). O que houve, na verdade, foi um cerceamento do trabalho ao negro livre, por meio de mecanismos legais, políticos e ideológicos que empurraram os trabalhadores negros, cada vez mais, para as péssimas condições de vida e de sobrevivência, especialmente no que se refere à exportação da mão-deobra europeia e a desclassificação da grande massa de trabalhadores negros livres que necessitavam, urgentemente, buscar meios para sua sobrevivência. Moura (1988) já denunciava essa omissão e inércia por parte do governo:

Ao que se saiba, nenhum político, partido ou órgão do governo apresentou planos concretos e significativos e investiu neles no sentido de fixar e aproveitar essa mão-de-obra. Pelo contrário, todos os investimentos foram para o trabalhador estrangeiro. Com isso se afirmam, antecipadamente, que a mão-de-obra flutuante não prestava. (MOURA, 1988)

Nos estudos do professor Márcio Farias (2016), grande estudioso sobre a obra e o pensamento do sociólogo, jornalista e poeta Clóvis Moura, ele também aponta essas reflexões e percepções do sociólogo sobre a preferência da mão-de-obra estrangeira, especialmente dos imigrantes europeus, em detrimento da mão-de-obra nacional, a grande massa de trabalhadores negros que precisavam vender a sua força de trabalho para atender às suas necessidades prementes de sobrevivência e de inserção na nova ordem mundial, o sistema econômico e de produção capitalista. Além de perceber que, mesmo no regime de trabalho livre, os traços do regime de escravização e trabalho forçado dos negros se mantém, o professor Marcio Farias percebe que:

Com o fim da escravidão e inserido o trabalho assalariado, a situação se renova, mantendo traços do regime anterior. Todavia, Moura descreve o modo como, nesse processo “complexo e ao mesmo tempo contraditório da passagem da escravidão para o trabalho livre, o negro é logrado socialmente e apresentado, sistematicamente, como sendo incapaz de trabalhar como assalariado”. (FARIAS, 2016)

De acordo com os estudos apresentados por Jacino (2008), o trabalho exercido pelo negro livre era semelhante ao exercido pelo escravo, e ainda, que alguns trabalhos exercidos

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por escravos foram proibidos em período subsequente. Percebe-se aqui que, além do cerceamento do trabalho livre aos negros e da desqualificação da sua mão-de-obra e supervalorização da mão-de-obra imigrante, há esforços deliberados para a exclusão desses trabalhadores negros do mercado de trabalho. E o que é pior, mascarados por uma “legalidade” racista. Ou seja, mecanismos legais foram largamente utilizados para manter a grande massa de trabalhadores negros a margem de um novo sistema econômico que se instituía com a abolição da escravatura, em que a venda da força de trabalho se coloca como a mola propulsora deste sistema. Ao longo do século XIX, em particular na sua segunda metade, o Império brasileiro produziu uma legislação que teve como consequência a marginalização do negro no mercado de trabalho. À medida que o escravismo ia se exaurindo, a classe dominante lançava mão de medidas que mantinham o abismo social entre negros e brancos, secularmente materializado pela escravidão. (JACINO, 2008)

O professor Jacino (2014) nos apresenta um conjunto de leis e decretos imperiais que tiveram um papel importante no período de transição do trabalho escravo e forçado para o trabalho livre e assalariado, contribuindo significativamente para a promoção da marginalização construída ao longo do processo de desescravização, materializada, definitivamente, pela Lei Áurea, que não previa nenhum espaço a ser ocupado pelos negros na pirâmide social erguida pela nova sociedade capitalista. Entre as leis apresentadas podemos citar a primeira como sendo a de 7 de novembro de 1831, que proibia a importação de africanos escravizados e determinava uma série de sanções a quem a infringisse. Importante ressaltar que essa tentativa responde a forte pressão dos negros, que alertavam para a necessidade de pôr fim à escravidão. Mas o professor Jacino (2014) nos aponta o seguinte problema em relação a esta lei:

Além da moderação e grande tolerância para com embarcações de outros países que se utilizavam do tráfico e trabalho escravo, abria a possibilidade a diversas fraudes, como falsificar a nacionalidade da embarcação, ou ainda, permitir que aquelas promovessem o tráfico utilizando-se de outras bandeiras que não a brasileira. (JACINO, 2014)

O professor Jacino (2014) aponta ainda outra grande e importante questão sobre o tráfico de trabalhadores escravizados: a lei deixou de cumprir seu objetivo ao permitir uma série de facilidades para o exercício do tráfico. Ele, o professor, aponta que uma das principais fragilidades é o fato da lei não determinar os procedimentos que deveriam ser

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utilizados nos casos de tráfico ilegal dos africanos que chegariam ao Brasil a partir de então, causando uma série de problemas, pois se formou uma população significativa de africanos no Brasil, já que estes não eram considerados escravos e, apesar de serem livres, acabaram, na prática, também sendo escravizados ou trabalhando em condições análogas à escravidão para o Estado ou seus prepostos, pois não podia ceder seus serviços a particulares, apenas e exclusivamente para o governo, tendo como única diferença de que o seu senhor, de acordo com a referida Lei, seria o estado e não um ente privado.

Sua principal fragilidade, no entanto, foi não explicitar como seriam tratados os africanos importados ilegalmente, permitindo que imenso contingente populacional conhecido como “africanos livres” passassem décadas sem definição do seu “status jurídico”, obrigados a prestar serviços ao Estado, ou a seus prepostos, em condições análogas à escravidão. (JACINO, 2014)

A resolução desse problema viria quase duas décadas depois com a promulgação da Lei 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei Euzébio de Queiroz11, que aprofundava as punições sobre o tráfico ilegal de africanos e explicava melhor seus artigos. O artigo sexto dessa Lei é apontado pelo professor Jacino (2014) como um dos principais responsáveis pela perpetuação do “africano livre” na condição de escravizado e acrescenta que:

No texto não se admitia a hipótese de aquele africano ficar no Império na condição de livre, se quisesse, assumindo a cidadania brasileira. Seria reexportado imediatamente para “o lugar de onde veio ou para qualquer outro ponto fora do império...”. (JACINO, 2014)

Outro dispositivo legal que também contribuiu significativamente para o processo nefasto de marginalização e exclusão do negro do mercado de trabalho assalariado, apresentado pelo professor Jacino (2014) é a famosa Lei de Terras, de 18 de setembro de 1850, apenas 14 dias após a promulgação da lei que proibia o tráfico de escravos africanos e normatizava o uso da terra no Império. Para o professor Jacino (2014), a diferença de apenas 14 dias entre uma lei e outra “não seria simples coincidência, e sim dois pilares de um novo modelo econômico que estava sendo introduzido no país”. De fato, não há mesmo nenhuma coincidência na promulgação, em tão curto espaço de tempo, de duas leis assim tão importantes e estruturantes para economia nacional. O que chama ainda mais a atenção é o fato de que elas se complementam em seus termos, se encaixam perfeitamente.

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Conselheiro e ministro de Estado dos Negócios da Justiça, no Império.

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O que chama mais a atenção é para a diferença de tratamento que é dado ao imigrante, os colonos livres, em detrimento aos africanos traficados ilegalmente. O artigo 18 revela muito bem essa disparidade entre uns e outros, pois, se aos colonos livres foi oferecido terra, emprego e até financiamento de sua viagem para o Império, aos trabalhadores negros africanos, traficados ilegalmente, sequer lhe foi concedida a cidadania brasileira. A estes restou apenas, mais uma vez, a escravização, apesar do artigo primeiro da Lei de 7 de novembro de 1831 declarar “livres” todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ou a sua reexportação, não para os seus países de origem, mas para qualquer ponto fora do império, como vimos anteriormente. O artigo 18 preconiza que:

O governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do tesouro certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agrícolas, nos trabalhos dirigidos pela Administração Pública, ou na formação de colônias nos lugares em que estas mais convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais colonos achem emprego logo que desembarcarem. (LEI DE TERRAS, 1850).

A quarta lei citada pelo professor é a Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como a Lei Rio Branco e mais popularmente como a Lei do Ventre Livre, apesar de tratar de várias outras questões relacionadas à escravidão e seu término lento e gradual. Para o professor Jacino (2014), foi a primeira lei que tratou de forma tão completa a questão da escravidão e a transição para o trabalho livre (JACINO, 2014). Esta lei apresenta diversas contradições pois, contribui para o aumento de negros formalmente livres, mas na prática, vivendo como escravizados, como é caso da situação do filho da mulher escravizada, nasce livre mas vive como escravizado, já que tem que ficar com a mãe, pois depende integralmente dos seus cuidados, em síntese, uma falsa liberdade. Para Jacino (2014), do ponto de vista do filho, isso gera uma “dívida moral” com o senhor da sua mãe, pressionando-o a continuar lhe servindo. Jacino (2014) aponta ainda como uma das estratégias dos senhores de se colocarem como “tutores” ou pais “adotivos”, especialmente das meninas, para que, na prática, continuassem lhe servindo sem remuneração e indefinidamente. Esta é a primeira contradição apresentada pelo professor.

A primeira contradição é o fato de que aquela criança não poderia exercer sua liberdade enquanto não tivesse independência da mãe que, por sua vez, permanecia escravizada, obrigada, assim, a todos os papéis destinados a uma criança cativa. (JACINO, 2014)

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Jacino (2014) aponta também uma grande preocupação com essa Lei e a sua relação com a desagregação da família negra, pois, de acordo com o primeiro parágrafo do artigo primeiro, até os oito anos, o filho da mulher escravizada, nascido livre, ficaria sob o poder do senhor da mãe, quando poderia optar por uma indenização do governo, que se responsabilizaria pela criança até seus 21 anos. Outro parágrafo da referida Lei, o parágrafo sétimo, garantia aos sucessores o mesmo direito, considerando esse filho como parte da herança. De acordo com o professor Jacino:

A lei desprezava, em absoluto, a figura do pai e qualquer decisão cabia unicamente ao senhor da mãe, que se preferisse receber a indenização quando a criança atingisse oito anos, bastaria entrega-la aos cuidados do governo.

(JACINO, 2014)

Depreende-se do parágrafo anterior que a mulher escravizada, mãe de um filho que, em tese, estaria livre, não tem nenhuma autonomia pelo filho senão até seus oito anos de idade. Após esse período, a criança “livre”, a priori, ficava a mercê do senhor da mãe, para que ele fizesse o que quiser com ela, podendo escolher entre receber uma indenização ou escraviza-lo até seus 21 anos, ou seja, a “liberdade” era relativa, tendo em vista que se o senhor resolvesse se utilizar dos seus serviços até os 21 anos de idade, isso não seria nenhum problema. Objetivamente, o ventre se torna “livre” somente após seus 21 anos. No parágrafo quarto, do artigo sexto, que trata dos negros escravizados que eram abandonados pelos seus senhores, na sua maioria eram deficientes físicos e/ou mentais, alcoolistas, idosos e crianças com poucas expectativas de vida produtiva entre outros. Até então, esses negros eram responsabilidades dos seus senhores, mas, estrategicamente, estes os libertavam, atirando-os às ruas, assim se eximiam de quaisquer responsabilidades, dando origem a um enorme exército de pessoas negras vivendo da mendicância. (JACINO, 2014). Sobre aquela sociedade, Jacino (2014) percebe algumas certezas:

O negro não era confiável como elemento livre e precisava ser tutelado para que não vivesse “vadio”. A liberdade, segundo esse pensamento, além de dádiva, não fazia justiça àquele indivíduo que, sem a escravidão ou um regime disciplinador rígido, por natureza se entregaria à vagabundagem. (JACINO, 2014)

No seu oitavo artigo, a Lei se preocupou com as formas de conter e de controlar os seus cativos, tendo como principal objetivo a organização do Estado e da Nação, mas pra isso era necessário mensurar a quantidade de homens negros e escravizados, exigindo o máximo de

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empenho dos legisladores. Jacino (2014) nos aponta que no artigo oitavo “os seus diversos parágrafos normatizavam o controle de cativos existentes e exigiam das autoridades, leigas e religiosas, o controle mais rígido". A Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885, também chamada de Lei Saraiva/Cotegipe, mas mais conhecida popularmente como Lei do Sexagenário, apesar do seu nome popular, esta Lei ia além da “libertação” de trabalhadores negros escravizados com mais de 60 anos de idade. Sua principal intenção era organizar a escravidão e sua transição para o trabalho livre. Era uma lei pra beneficiar os senhores de escravos com isenções de impostos, indenizações e gratificações pecuniárias para os senhores que tivessem libertado algum trabalhador escravizado ou mesmo os fazendeiros que quisessem converter suas lavouras de escravistas para trabalho livre, bem com subvencionar a colonização por meio do pagamento de transporte e de meios de subsistir. De certa forma, significava uma ampliação da Lei Rio Branco, estudada anteriormente. O que nos chama a atenção em alguns parágrafos desta lei é o caráter de contenção e controle encontrado nos seus termos. Algo que só reitera as nossas análises no sentido de que a contenção e o controle da população negra não é algo novo, recente ou da forma de organização da sociedade contemporânea, mas tem origem no período escravista. Desde lá, os trabalhadores negros sofrem com a opressão e o controle ostensivo por parte das forças do Estado, especialmente as forças de segurança, mas não somente.

O parágrafo décimo explicitava a convicção dos legisladores acerca da falta de preparo do negro para o trabalho livre, sua inerente periculosidade e necessidade de mantê-lo sob controle. Determinava que o ex-escravizado seria obrigado a manter-se no mesmo domicílio por, pelo menos, cinco anos e considerava a sua inobservância como caracterização de vagabundagem, sujeitando-o à prisão para “ser empregado em trabalhos públicos ou colônias agrícolas”. O 17 reforçava que qualquer liberto encontrado sem ocupação seria obrigado a empregar-se ou a contratar serviços no prazo que lhe fosse marcado pela polícia. Nas Disposições Gerais, o parágrafo quinto do artigo quarto determinava a “criação de colônias agrícolas, com disciplina militar, para enviar os libertos sem ocupação”. (JACINO, 2014)

Este trecho acima nos dá a dimensão do caráter coercitivo, opressor e racista dos institutos legas à época, assim como os são na atualidade. O conteúdo de controle e de contenção desta lei é de alguma forma, a representação do que a elite brasileira do Império pensava sobre os negros “livres”, mas não só isso. Essa percepção sobre a população negra à época se reproduzia nas elaborações de todo o aparato legal que se veio a construir pelos legisladores nos anos seguintes. O que não é diferente na contemporaneidade se formos

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pensar sobre as legislações atuais que têm como certo um público-alvo específico, qual seja os populações pobres, pretas e periféricas das grandes cidades pelo país afora. A legislação antidrogas, a criminalização dos pobres e dos movimentos sociais, as unidades de polícias pacificadoras (UPP‟s), o policiamento ostensivo nas periferias, o armamento das guardas civis entre tantas outras expressões dessa realidade de violência institucional constante, configuram as formas contemporâneas de contenção e de controle da população negra do nosso país que resultam, cada vez mais, no encarceramento em massa e no genocídio desse contingente populacional que corresponde a mais de 51% da população brasileira, de acordo com o último censo demográfico do Brasil realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/2010). No Brasil, em visita para uma série de atividades dos movimentos sociais, a ativista do movimento negro americano Deborah Small (2016) alerta o Brasil que “a guerra às drogas facilita a criminalização de pobres e negros” e acrescenta que “o principal propósito da guerra às drogas é prolongar o sistema de controle político e de exploração econômica das comunidades negras”.

As atividades policiais atuais nos bairros pobres e negros refletem as práticas e políticas impostas sobre os afrodescendentes durante a escravidão e o subsequente sistema legal de segregação. Há uma continuidade de propósito e de efeito entre as políticas de justiça criminal de outrora, cujos alvos principais eram os negros, e as leis criminais de drogas atuais, que, de maneira parecida, punem os negros desproporcionalmente. (SMALL, 2016)

Em sua visita ao Brasil, a ativista dos direitos civis e feminista Ângela Davis (2017) chama a atenção para o perigo do uso da violência pelo Estado para resolver os problemas de forma punitiva, pois, segundo ela, isso dissemina a mensagem de que a violência pode ser uma solução para problemas domésticos também. Os estudos da professora Raquel Rolnik (1989) sobre territórios negros nas cidades brasileiras nos ajuda a pensar em como o passado e presente se encontram e como os deslocamentos de significados para a contemporaneidade nos ajuda a repensar e entender o processo histórico que vivenciamos cotidianamente e sua relação com as instituições públicas de saúde e das forças de segurança, especialmente pela repressão policial.

A história da comunidade negra é marcada pela estigmatização de seus territórios na cidade: se, no mundo escravocrata, devir negro era sinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho livre, negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partir de um discurso etnocêntrico e de uma prática repressiva; do olhar vigilante do senhor na

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senzala ao pânico do sanitarista em visita ao cortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violência das viaturas policiais nas vilas e favelas. (ROLNIK, 1989)

Finalmente, o Decreto Imperial nº 3.353 de 13 de maio de 1888, mais conhecido como a Lei Áurea e teve como propósito “dar resposta política a uma situação de fato na economia, que em sua ampla maioria já não mais dependia do trabalho escravo” (JACINO, 2014). Com apenas dois artigos: no primeiro diz que é declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil e no segundo que se revogam as disposições em contrário, esta lei não acrescentou nenhum benefício prático para a vida objetiva dos trabalhadores negros escravizados, senão a mudança de status de homem escravizado para homem “livre”. O fato é que no dia seguinte, 14 de maio, os negros, que ainda eram mantidos escravizados, se viram sem trabalho, sem casa e sem comida. Agora estavam “livres” e com a “liberdade” deveria começar tudo do zero, sim, do zero mesmo, literalmente. A Lei não veio acompanhada e não apresentou nenhuma alternativa para os ex-escravizados, trabalhadores negros, sobreviverem, ao contrário, empurrou-os a própria sorte e a toda sorte de privações para tentar sobreviver. Do ponto de vista dos negros, a Lei Aurea representou o coroamento da sua exclusão, pois sepultou qualquer possibilidade de indenização, perspectiva de trabalho, acesso à terra e, consequentemente, sua inserção social (JACINO, 2014).

A marginalização construída ao longo do processo de desescravização, materializada, em definitivo, pela lei Áurea, não previa nenhum espaço a ser ocupado pelos negros na pirâmide social erigida pela nova sociedade capitalista. (JACINO, 2014)

O negro não interessava como trabalhador livre, devendo ser mantido à margem. Mas o negro não aceitou passivamente essa exclusão, pois necessitava, urgentemente, buscar meios para sua sobrevivência e não aceitava a condição de subalternidade a qual estava submetido novamente. Diante desse contexto de resistência às opressões dessa nova sociedade capitalista, a classe dominante, novamente, logo tratou de buscar meios de contenção e controle dessa população, sempre em nome da manutenção da ordem. A saída encontrada foi por meio de institutos legais, definidas pelo Estado, criando leis específicas que dessem conta de conter os ânimos dos negros mais rebeldes. Um dos exemplos dessas estratégias de manutenção da ordem foi a promulgação da famosa lei da vadiagem, que tinha público e endereço certos, ou seja, os negros recém “libertos” que tentassem atrapalhar ou obstruir os interesses das elites brasileiras.

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O ócio, para o pobre, era crime como adverte o artigo 189, que rezava: toda a pessoa de qualquer sexo ou idade que for encontrada sem ocupação, em estado de vagabundagem, será mandada se apresentar à autoridade policial, para assinar o termo que trata o Código do Processo Criminal. (JACINO, 2014)

Como se percebe, essa lei tinha um público e endereço certo, pois, quem eram os pobres e ociosos à época senão os negros escravizados que estavam em processo de desescravização apontados pelo professor Jacino? Pelo conteúdo desse artigo percebe-se, nitidamente, a intenção deliberada das elites brasileiras em manter os negros marginalizados a qualquer custo, retirando-lhes todas e quaisquer possibilidades de lazer ou de entretenimento. Deliberadamente, a classe dominante, por meios dos seus aparatos legais, encontrou na legislação – assim não assumia o seu racismo explicitamente – uma forma de justificar seus preconceitos e racismos, promovendo a exclusão cada vez mais acentuada dos negros pobres do nosso país. Ou seja, sou racista sem, necessariamente, assumir e dizer que sou racista. Instituindo uma estrutura que, na sua configuração, tem o racismo como o grande pano de fundo, mas sem explicitá-lo. As mesmas táticas e estratégias de controle e contenção da população negra são mantidas no século XX e XXI, com novos dispositivos legais, revisitados, reelaborados, com uma nova “roupagem”, mas com os mesmos objetivos da segunda metade do século XIX. Notícias publicadas em jornais de grande circulação à época dão conta dessas violações e desses abusos das autoridades policiais, por meio de violações e apreensões arbitrárias, sem justificativas convincentes senão o fato de serem negros. Notícias dão conta de que “homens que voltavam de um enterro foram vítimas de repressão policial que não comporta outra justificativa se não o fato de serem negros” (JACINO, 2014). Fica evidente que o caráter discriminatório, preconceituoso e racista do Estado, representado pelas forças de segurança, permeia as ações e reações desses agentes do Estado, confirmando a convicção da polícia da existência de um suspeito padrão.

Repercutindo notícia veiculada em O Estado de São Paulo, o Jornal Bandeirantes, dirigido à população negra, em abril de 1919 denuncia que após enterrarem um membro da comunidade que “morreu à míngua”, quatro homens pretos foram detidos pela polícia, sem que lhes tivesse sido imputada qualquer ação criminosa em uma demonstração da convicção das forças de segurança do “potencial criminoso” da população descendente de escravizados. (JACINO, 2014)

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Notícia semelhante foi veiculada na imprensa nacional, em pleno séc. XXI, sobre o fato de uma juíza de Direito, na cidade de Campinas, interior de São Paulo declarar que “o réu não parece com bandido por ser branco”. E isso não se configura como fatos isolados ou malentendidos, haja vista que na mesma cidade desta juíza, as orientações da Ordem de Serviço do Comando da Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP) eram de que as abordagens fossem focadas em “transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente, indivíduos de cor parda e negra, com idade entre 18 e 25 anos, os quais sempre estão em grupos de 3 a 5 indivíduos, na prática de roubo a residência daquela localidade” (SCHIAVONI, 2013). Fatos como estes só ratificam as discussões e reflexões trazidas nesta pesquisa. Definitivamente, o racismo perpassa as estruturas do nosso Estado de direito, tornandose a grande chaga da nossa sociedade que teima em se manter firme, inclusive para a manutenção desse sistema econômico que se retroalimenta do racismo e das demais formas de opressão que assola a sociedade brasileira. Oprimir também é uma forma de capitalizar. A opressão, nas suas mais diversas configurações, serve ao capitalismo, pois propaga o medo e incentiva as individualidades e o individualismo. No livro A nova segregação: racismo e encarceramento em massa, de Michelle Alexsander (2017), traduzido por Pedro Davoglio, em tom de denúncia, a autora nos mostra o quanto esse artifício legal vem sendo utilizado pela Corte norte-americana para promover a segregação racial nos Estados Unidos, onde a legislação, no seu interior, tem como foco principal manter os negros segregados, mas sem deixar isso explicito nos seus termos. Para ela, substituiu-se a palavra raça – pois não é mais socialmente permissível usá-la explicitamente como justificativa para a discriminação, a exclusão e o desprezo social – pela palavra criminoso, assim é possível justificar todas as mazelas atribuídas aos negros naquele país.

Em vez de nos servirmos de raça, usamos nosso sistema de justiça criminal para pregar nas pessoas não brancas o rótulo “criminoso” e, com isso, nos permitimos prosseguir com as mesmas práticas que supostamente teríamos deixado para trás. Hoje é perfeitamente lícito discriminar criminosos nos mesmos termos que antes era lícito discriminar afro-americanos. (ALEXANDER, 2017)

Guardadas as devidas proporções e considerando as particularidades e especificidades da sociedade brasileira, não fica difícil traçar esse paralelo entre as duas sociedades, pois o racismo brasileiro, além de ser estruturante, ele é estrutural, pois ao mesmo tempo em que permeia as nossas relações sociais e institucionais, baseia e fundamenta uma série de

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mecanismos políticos ideológicos da classe dominante. Ou seja, ele reproduz as condições de desigualdades e o abismo social existente entre negros e brancos na sociedade contemporânea. Apesar de não ficar explícito, o racismo permeia as relações sociais e institucionais e serve como base para o estabelecimento de normas e regras para as instituições públicas representada nas três esferas de poder, o Executivo, Legislativo e Judiciário.

O racismo é um elemento que faz parte do próprio modo com que historicamente se estruturam as relações sociais no Brasil. Não se compreende o Brasil, em seus aspectos políticos, econômicos e até mesmo jurídicos, sem a análise do racismo. Por este motivo não é surpresa que as instituições, dentre as quais a polícia, “funcionem” a partir da clivagem racial. A polícia como parte do aparelho repressivo do Estado, por óbvio, coloca-se como ponto de lança do processo de violência que ao fim e ao cabo servirá para manter a estratificação social que se funda em diferenças de classe e de raça. (ALMEIDA, 2014)

O instituto legal Postura Municipal, de 6 de outubro de 1886, da cidade de São Paulo, é apontado pelo professor Jacino (2014) como a que preparou com maior amplidão a cidade para o seu futuro de metrópole e importante centro de formação política, considerando-a como “uma das leis que, explicitamente contribuíram para a marginalização econômica e geográfica dos negros em São Paulo. O texto desse instituto legal deixava nítido o quanto os legisladores estavam preocupados em acabar com a imagem de uma sociedade ultrapassada e queria a todo custo superar esse atraso”. Atraso este atribuído aos negros recém “libertos”, tidos como problema tanto antes como depois da falsa libertação.

O texto daquela Postura Municipal evidenciava que os negros estavam entre as principais preocupações dos legisladores, pois representavam a síntese de tudo que se queria superar. Como escravizados, exemplificavam a estrutura social ultrapassada, uma vez livres transformavam-se em incômodo; no fenótipo, na cultura, no comportamento social. (JACINO, 2014)

Os negros e os pobres em geral não cabiam nos planos de uma cidade que tinha como horizonte seu enquadramento e modelo padrão buscado no tipo europeu, tido como o moderno, avançado, assim como ainda é buscado na contemporaneidade. Da mesma forma a cultura, as formas e tipos de lazer que praticavam, as questões de saúde, o tipo e o espaço que ocupavam no trabalho e até mesmo a forma de moradia, tudo isso era perseguido e alvo das ações da elite brasileira no sentido de eliminar, apagar, para não “manchar” a imagem da sociedade brasileira que almejava uma população e uma sociedade baseada nos padrões europeus. Especialmente no que se refere às questões de moradia, os termos da Postura

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Municipal de 1886 proibia “construir dentro da cidade e em outras povoações do município e mesmo no interior dos quintais, casas de meia água, ranchos ou „puxadas‟, cobertos de capim, palha ou sapé... (JACINO, 2014)”. Como se já não bastasse as atrocidades vividas e vivenciadas pelos trabalhadores negros escravizados durante o período da escravidão, o pré e o pós-abolição foi marcado pela manutenção das formas de exploração e de exclusão do povo negro, agora sob a toga da justiça, disfarçada de legalidade. A elite brasileira foi mestre em estabelecer normas e regras que, na prática, tinham o principal objetivo de eliminar os incômodos trazidos pela abolição da escravatura, qual seja, a presença maciça de negros e negras nas ruas, em “liberdade”, agora “convivendo socialmente” com a elite branca, algo inaceitável pela classe dominante. Percebe-se, nesse sentido, a intenção de ir minando, constantemente, as iniciativas e resistências dos negros libertos até que sucumbissem nas suas formas de viver e nas suas estratégias de sobrevivência. O artigo 265 da referida Postura Municipal de 1886 determinava que os empregados domésticos deveriam ser registrados no livro da polícia. E quem eram esses empregados domésticos? Majoritariamente eram os negros e negras que ocupavam esses espações ocupacionais naquele período. O artigo 278 afirmava ser causa de demissão “manifestação de gravidez em criada solteira, ou na casada, cujo marido estiver ausente”. Para ter acesso a determinados trabalhos domésticos, cabia ao não branco provar a condição de livre, além de se submeter às rígidas regras estabelecidas (JACINO, 2014). O artigo 120 desse mesmo instituto legal privilegiava uma determinada ocupação pouco exercida por negros em detrimento de outras frequentemente exercidas por estes.

Apenas os farmacêuticos formados e licenciados pela junta de higiene pública poderiam abrir botica, segundo o artigo 120, que jogava negros e brancos muito pobres, herbalistas, sangradores, “barbeiros” e “dentistas”, que historicamente se ocupavam da saúde na cidade (...). (JACINO, 2014)

No meio de toda essa construção social sobre a incapacidade, inadaptabilidade entre outros aspectos negativos sobre a mão-de-obra dos negros que permeavam o pensamento social da classe dominante e da elite brasileira, a preferência pela mão-de-obra branca, especialmente de imigrantes europeus, em detrimento da mão-de-obra nacional, ou seja, a da massa de trabalhadores negros disponíveis para vender a sua força de trabalho, também era explicitada nos anúncios de jornais, contribuindo para a exclusão de homens e mulheres negras do mercado de trabalho que estava se estabelecendo naquele novo sistema econômico de produção, de trabalho assalariado.

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Outra documentação que explicita a criação de impedimentos a que homens e mulheres negros exercessem diversas ocupações são os anúncios de jornais, pesquisados no Diário Popular e O Estado de São Paulo, de janeiro de 1912 a dezembro de 1920, em que são encontradas manifestações explícitas de preferência por estrangeiros, brasileiros brancos ou informando a recusa em contratação de “pretos”. (JACINO, 2014)

Notadamente, na contemporaneidade, os negros e as negras ainda continuam sendo preteridos nos espaços de trabalho com maiores remunerações e melhores condições de trabalho. Estudo, realizado pelo Instituto Ethos (2016), em cooperação com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), mapeou nas grandes companhias baseadas no Brasil a quantidade de pessoas pertencentes a grupos comumente discriminados na sociedade e no mercado de trabalho. Os resultados mostram que pessoas negras ocupam apenas 6,3% de cargos na gerência e 4,7% no quadro executivo, embora representem mais da metade da população brasileira. Neste contexto, a presença de mulheres negras, em comparação aos homens, é ainda mais desfavorável: elas preenchem apenas 1,6% das posições na gerência e 0,4% no quadro executivo. De acordo com o levantamento de dados realizado pelo Movimento Black Money (2018) “em uma seara de escassez ainda nos deparamos em como esse problema atinge de forma mais brutal a população negra. 63.7% da população desempregada no país é preta ou parda, ou seja: de cada 3 desempregados no Brasil 2 são negros”. De acordo com estes mesmos levantamentos, atualmente, no mercado de trabalho, hierarquicamente e em termos salariais, os homens brancos ocupam os melhores postos de trabalho e salários, seguidos das mulheres brancas, em seguida os homens negros e por último, as mulheres negras. Ou seja, de lá pra cá, poucas coisas foram altaradas. As bases da discriminação continuam as mesmas, as condições de desigualdade entre brancos e negros ainda são uma constante na nossa sociedade contemporânea. Os negros e negras, especialmente os jovens e periféricos continuam sendo alvos preferenciais e majoritários das forças de “segurança” que agem de forma ostensiva, truculenta e opressora sobre essa parcela majoritária da população brasileira.

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1.3 – Mais Estado policial e prisional e menos Estado econômico e social Na tentativa de tentar entender e explicar o fenômeno do encarceramento em massa da população negra recorremos agora aos estudos e análises de Loïc Wacquant (2001) em sua obra Prisões da miséria, onde ele trata sobre o mais Estado policial e penitenciário e o menos Estado econômico e social que o autor apresenta como sendo a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países. Apesar do objeto de análise do autor não ser a sociedade brasileira, pois ele se debruça especialmente sobre a realidade dos sistemas prisionais dos Estados Unidos e da Europa, lançando luz sobre os aspectos que caracterizam e que “justificam” a progressão dos investimentos no sistema policial e penitenciário e a regressão dos investimentos nas políticas sociais e econômicas, o autor nos apresenta elementos semelhantes que nos permitem utilizar os seus estudos para analisar a nossa sociedade. Tal fato é explicitado logo no início da sua publicação, na Nota aos leitores brasileiros intitulado pelo seguinte questionamento: rumo a uma ditadura sobre os pobres? (...) a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos – ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de solidariedade – e seu tratamento penal – que visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru. (WACQUANT, 2001)

O autor enumera alguns fatores pelos quais se estabelecem essas semelhanças com o Brasil: em primeiro lugar por um conjunto de razões que estão ligadas diretamente à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais que, segundo ele, trata-se de uma estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de “globalização” e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização. Wacquant (2001) acrescenta que a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. Em segundo lugar assegura que a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem citando algumas ações que caracterizam esse agravamento tais como o uso rotineiro da violência letal

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pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil, as execuções sumárias e os “desaparecimentos” inexplicados, o que geram, segundo o autor, um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado. Para ele: Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a “subversão interna” se disfarçou em repressão aos delinquentes. (WACQUANT, 2001)

O terceiro fator que complica gravemente o problema apontado pelo autor é o recorte da hierarquia de classes e de estratificação etnicorracial e a discriminação baseada na cor, endêmicas nas burocracias policial e judiciária. Esse terceiro fator apontado pelo autor confirma o que os movimentos em defesa dos direitos humanos e os de luta contra o encarceramento em massa e o genocídio da população negra, especialmente dos jovens negros e periféricos, têm gritado aos quatro cantos, que o Estado brasileiro, representados pelas forças de segurança e do judiciário é racista e genocida. Há anos, esses movimentos vêm denunciando o abuso da autoridade policial e seu caráter genocida que “justifica” seus atos por meio dos famigerados autos de resistência12, constatando que quando a policial não mata, ela prende, mas prende um determinado público, residentes em determinados locais e regiões, ou seja, o povo preto e periférico. Para Wacquant: (...) os indiciados de cor “se beneficiam” de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso à ajuda jurídica e, por crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção mais duras e sofrem as violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui “tornar invisível” o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado. (WACQUANT, 2001)

O termo “auto de resistência” não existe penalmente. Trata-se de uma ficção administrativa criada durante a ditadura militar (1964-1985) para impedir que policiais fossem presos em flagrante por homicídio. O objetivo era transmitir a ideia de que houve resistência, ou seja, de que a morte foi em legítima defesa do policial. A ocorrência é registrada como “auto de resistência” e as testemunhas são os próprios policiais que participavam da ação. O crime quase nunca será investigado. Em termos práticos, isso significa que a Justiça quase sempre acredita na versão da polícia, mesmo quando evidências mostram o contrário. 12

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Loïc Wacquant (2001) entende que o que desinteresse flagrante e a incapacidade patente dos tribunais em fazer respeitar a lei encorajam todos aqueles que podem buscar soluções privadas para o problema da insegurança, tendo como principal efeito propagar e intensificar a violência. Para ele, apesar do retorno à democracia, o Brasil nem sempre construiu um Estado de direito digno do nome. Atribui a marginalidade urbana e a violência no Brasil a uma cultura política que permanece marcada pelo selo do autoritarismo, pois as duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades coletivas e nos faz o seguinte alerta sobre essas circunstâncias e condições que caracterizam o Estado brasileiro, apontando para os perigos de retrocedermos nas nossas conquistas e estabelecermos mecanismos ainda mais sofisticados de punição aos pobres que compõem a grande franja da nossa sociedade.

Em tais condições, desenvolver o estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (re)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres. (WACQUANT, 2001).

Em sua construção acadêmica, Wacquant (2001) denuncia o estado das prisões do país afirmando que parecem mais com campos de concentração de pobres ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica. Para ele, o sistema prisional brasileiro acumula, com efeito, as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levada a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público.

O aparelho carcerário brasileiro só serve para agravar a instabilidade e a pobreza das famílias cujos membros ele sequestra e para alimentar a criminalidade pelo desprezo escandaloso da lei, pela cultura da desconfiança dos outros e da recusa das autoridades que ele promove. (WACQUANT, 2001)

Nenhuma ação, por mais “modernizadora” que seja, será capaz de exercer algum efeito sobre a criminalidade, pois, segundo Wacquant (2001), há uma incapacidade congênita que impede a prisão desse atributo e que, segundo ele, para o Brasil bem como para a maioria dos países, o urgente é lutar contra a pobreza e a insegurança social que impele ao crime e

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normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência e não contra os criminosos. Wacquant (2001) nos chama a atenção para o perigo da adoção das medidas norteamericanas, como também nos alerta a ativista dos direitos humanos Debora Small (2016), quando em visita ao Brasil, de limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado sob pena de agravar ainda mais os males de que já sofre a sociedade brasileira em seu difícil caminho rumo ao estabelecimento de uma democracia que não seja somente de fachada e que atenda, de fato, aos anseios da população que, objetivamente, forma e transforma a nossa sociedade com suas lutas e resistências sob as mais diferentes perspectivas no que se refere à defesa dos direitos humanos e na luta contra quaisquer formas de preconceito e de discriminação. A forma de ser e de estar no mundo dos trabalhadores e trabalhadoras negras/os em “liberdade” passa a ser vista como crime, como algo indesejável e intolerável pela elite branca dominante.

Os

aglomerados

e

cortiços

ocupados

majoritariamente

por

essas/es

trabalhadoras/es negros integram a imagem da criminalidade e da marginalidade criada por essa elite branca e privilegiada. Essa forma de ser e de viver contrastava com a organização da casa burguesa e era tomado como uma ameaça aos bons costumes e padrões europeus de uma nação civilizada. Nas palavras da professora Raquel Rolnik (1989), o quilombo é uma presença africana que não pode ser tolerada.

(...) a marginalidade é associada a um conjunto de gestos, um jeito de corpo. Se, para a comunidade negra, a linguagem do corpo é elemento de ligação e sustentação do código coletivo que institui a comunidade, para a classe dominante branca e cristã, a frequência com que se dança, umbiga, requebra e abraça publicamente desafia os padrões morais. A presença dos terreiros e práticas religiosas africanas completa o estigma: candomblé é marginal porque é “crendice”, é “religião primitiva”, que afronta a religião oficial. (ROLNIK, 1989)

Essa intolerância e repulsa a tudo que se refere aos/as trabalhadoras/es negros são expressas no Código de Posturas de 1866 que proibia essas práticas de manifestações culturais existentes na dinâmica social desses trabalhadores e dessas trabalhadoras. Estas práticas funcionavam como uma espécie de estratégia de luta e de resistência, objetivando a garantia da manutenção e preservação de uma cultura trazida do continente africano, as suas próprias raízes, não diferente do que fizeram os colonos europeus, especialmente no sul do país, transformando as suas colônias em verdadeiros focos de resistência de sua cultura. Mas estes, os europeus, não tiveram a sua cultura criminalizada, muito pelo contrário, essas

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culturas foram super valorizadas, assim como tudo que vinha da Europa, em detrimento de tudo que se referia ao continente africano, tido como bárbaro, arcaico e que não interessava à sociedade que estava se formando. A desqualificação deliberada dos trabalhadores negros escravizados, mesmo que a cor não fosse citada, e uma legislação que favorecesse ainda mais os imigrantes sempre foi apoiada e incentivada, inclusive com maiores investimentos para chamar mais imigrantes. Assim, segundo Seyferth (1989), “dará ao país cidadãos exemplares e ao imperador, súditos fiéis”.

O capital investido no tráfico poderia ser usado positivamente, para chamar a imigração branca livre e industriosa, que dará ao país cidadãos exemplares, e ao Imperador súditos fiéis. Sem qualquer referência à cor, os escravos são desqualificados como “trabalhadores estúpidos”, “brutos” e “precários”; a escravidão, e o que se chama de “falta absoluta de medidas permanentes e dignas de confiança” (isto é, uma legislação favorável ao imigrante) são apresentadas como os verdadeiros impedimentos ao progresso da imigração. (SEYFERTH, 1989)

Percebe-se que o Estado brasileiro, desde o período escravagista tem uma opção e uma preferência declarada oficialmente pelo elemento branco na formação da nossa sociedade e sendo assim, não envidou nenhum esforço para as garantias mínimas de sobrevivência aos trabalhadores negros que foram excluídos do mercado de trabalho assalariado no pósabolição. Nenhuma medida de apoio, indenização, legislação ou política social foi estabelecida para que esses negros pudessem recomeçar sua vida, agora em “liberdade”. Contrariamente, foram usados dispositivos legais, os mais diversos para oprimir e reprimir cada vez mais esses trabalhadores, objetivando o seu controle e contenção para a manutenção da “ordem”. Nos estudos sobre territórios negros nas cidades brasileira da professora Raquel Rolnik (1989), ela também faz uma comparação da sociedade norte-americana com a sociedade brasileira no que se refere aos guetos de lá e as favelas de cá. Para ela:

O gueto norte-americano sintetiza a imagem de discriminação racial aberta e da dominação branca. No polo oposto estaria o Brasil, onde pretos e brancos pobres compartilham o espaço das vilas e favelas, numa espécie de promiscuidade racial sustentada pelo laço comum da miséria e da opressão econômica. (ROLNIK, 1989)

Além de dá suporte às afirmações sobre as características dos guetos norte-americanos e as favelas em terras tupiniquins, esta citação nos remete a outra grande questão que interfere diretamente nas relações da nossa sociedade, além de causar algumas polêmicas sobre a

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afirmação de termos uma questão racial ou social, já que muitos brancos também são pobres e vivem nas periferias e que vem sendo discutida por alguns intelectuais há algum tempo. É claro que não queremos descaracterizar ou minimizar quaisquer tipos de opressões sofridas cotidianamente pelos brancos pobres, mas é preciso enfatizar que foram processos de exclusão muito distintos, como o próprio professor Abdias Nascimento pontua:

Há também brancos pobres, dizem, há também brancos oprimidos. Estamos de acordo que isto exista, mas não pelas mesmas razões. Nenhum outro segmento daqueles que constituem o povo brasileiro, a não ser o índio, sofreu o tipo de escravização, de destituição da sua condição de ser humano, como ocorreu com o negro. Nós estivemos mais de 300 anos nessa condição e isso não aconteceu com outros segmentos étnicos da nossa população. (NASCIMENTO, 1984)

Como se vê, a dinâmica social e política que se estabelece não tem lugar para os trabalhadores negros. Melhor dizendo, tem um lugar sim, um lugar pré-determinado, que são os grandes aglomerados populacionais, os cortiços, as favelas, especialmente no Rio de Janeiro que, de acordo com ROLNIK (1989), “a grande expulsão do Centro resultou na ocupação dos morros, produzindo as favelas” e acrescenta:

(...) para que a cidade pudesse realmente assumir a imagem de bela, próspera e civilizada capital do país – o espaço urbano central foi completamente remodelado, embelezado, ajardinado e europeizado, desenhado para uso e convívio das “pessoas de bem”. (ROLNIK, 1989)

No importante estudo de Gonzalez e Carlos Hasenbalg (1982) sobre as desigualdades raciais no Brasil, o autor e a autora fazem um “raio x” da situação dos negros à época, passando pelo golpe de 64, os estudos das relações raciais nos Estados Unidos e no Brasil até a atuação dos movimentos negros brasileiros para estabelecer, delinear os entendimentos sobre o lugar do negro e consequentemente o seu oposto, o lugar do branco nesta sociedade marcada por um passado escravagista, de dominação física e econômica de uma massa de trabalhadores e trabalhadoras negras que tiveram a sua existência marcada por experiências e vivências constantes de exploração, violência e violação dos seus direitos humanos mais básicos, o direito a uma vida digna. Para o autor e a autora:

Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os

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antigos feitores, capitães do mato, capangas etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. (GONZALEZ e HASENBALG, 1982).

E acrescentam:

Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço. (GONZALEZ e HASENBALG, 1982).

Magistralmente, Gonzalez e Hasenbalg (1982) fazem o deslocamento do período colonial para a atualidade em que o os estudos foram realizados, o que não difere em nada se trouxermos essas reflexões para a contemporaneidade. Os critérios de divisão racial dos espaços continuam os mesmo, haja vista o contingente populacional e o perfil demográfico das pessoas que residem nas favelas, nos morros e nos grandes aglomerados das periferias pelo Brasil afora. Esses espaços são constituídos majoritariamente pelo povo preto e pobre do nosso país. Em contrapartida, os bairros mais abastados são majoritariamente ocupados pelos chamados homens e mulheres de bem. Como se pode ver, nada mudou em terras tupiniquins. Melhor dizendo, mudou sim e pra pior, mas apenas no que se refere às condições de vida do povo preto e periférico que, cada vez mais tem seus direitos e sua vida extremamente violados e ceifados pelo Estado que, como antes, faz questão de mantê-los nos seus devidos lugares por meio da repressão e das forças policiais que desferem seu poder arbitrário, a sua mão opressora sobre as cabeças dos nossos e nossas jovens pretas e pretos que lutam cotidianamente pela sua subsistência, formando focos e espaços de resistências nas suas mais diversas configurações. O Estado policial sempre foi a forma encontrada para a contenção e controle dos trabalhadores e trabalhadoras negras e negros que, de alguma forma ameaçassem a manutenção do status quo estabelecido e promovesse a “desordem”, desde os tempos coloniais. A condição de classe dominada, fundamentalmente, favorecia esse tipo de ações policialescas, repressoras e opressoras, sem que fossem necessárias maiores justificativas, a condição de serem negros já se justificava por si só. A religião era uma das formas e estratégias mais utilizadas para “justificar” a perseguição sofrida pelos negros e negras à época.

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Desta realidade surgiram os elementos que foram criados para que se justificassem as técnicas de repressão, tanto ao escravo, que não se conformava e não se sujeitava à sua situação, assumindo a postura de rebeldia, como às suas religiões, que eram o aparelho ideológico fundamental do oprimido naquelas circunstâncias. (MOURA, 1988)

O Brasil é mestre em criar mecanismos de exclusão para as populações “indesejáveis” e facilitar a vida daqueles tidos como exemplar da raça pura, quais sejam, os brancos e mais abastados do nosso país. A forma de funcionamento e a estrutura política, econômica e cultural estão programadas para atender aos interesses dessa elite branca dominante e privilegiada e não aos interesses das/os trabalhadoras/es, especialmente os trabalhadores e trabalhadoras negros e negras. Não é à toa que os investimentos mais robustos são aplicados em políticas que atendam às necessidades dessa população branca e detentora dos meios de produção em detrimento da força de trabalho cada vez mais prejudicada pelas constantes reformas, melhor dizendo, contrarreformas do estado das áreas do trabalho, educação, saúde e previdência. Além, é claro, dos investimentos consideráveis na segurança pública, especialmente no sistema penitenciário que prende cada vez mais a população preta, pobre e periférica, especialmente a população mais jovem do nosso país.

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CAPÍTULO II – A SELETIVIDADE RACIAL DO SISTEMA PRISIONAL: AS SENZALAS CONTEMPORÂNEAS O Estado brasileiro ocupa a terceira posição no ranking dos países com as maiores populações carcerárias do mundo. Está abaixo apenas dos Estados Unidos e da China. A Rússia ocupa a quarta posição em número de pessoas privadas de liberdade. Mais de um terço dessa população brasileira privada de liberdade refere-se aos presos sem condenação, os chamados provisórios13. Essa pequena amostragem do caos que se instalou no sistema prisional, expõe as fragilidades de um sistema de justiça e uma política criminal que prende demasiadamente sem oferecer a estrutura necessária para atender essa população carcerária. Os presos provisórios geralmente ficam anos e anos aguardando o seu julgamento, tendo o seu direito humano à liberdade violada, sem ao menos ter sido julgado. Em muitos casos, a morosidade da justiça é tanta que, quando da ocasião do julgamento, recebe uma pena que já foi integralmente cumprida, ou seja, ficou mais tempo preso do que a sua sentença determinou. Isso sem falar na anomalia desse sistema que prende as pessoas antes mesmo delas serem julgadas e condenadas. Os estudos de Baird e Pollachi (2014), que se debruçaram sobre uma pesquisa que tinha como objeto o problema da prisão provisória e o impacto da Lei das Cautelares na cidade de São Paulo, apontaram o seguinte:

Esses números causam enorme perplexidade por diversos motivos. Em primeiro lugar, de um ponto de vista estritamente legal, trata-se de uma afronta a princípios constitucionais como a presunção de inocência e o devido processo legal. Da mesma forma, diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário vão na mesma linha, definindo que a privação de liberdade durante o processo deve ser a exceção, e não a regra. (BAIRD; POLLACHI, 2014)

De acordo com dados recolhidos no dia 21 de agosto de 2018, no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o último censo demográfico registrou uma população de 190.755.799 pessoas, com uma população estimada para o ano de 2018 de 208.723.827 pessoas. Desse total de brasileiros, o Brasil apresenta uma população prisional de 726.712 pessoas, pelo menos até o mês de junho de 2016, conforme os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN (2017), divulgado no mês

A categoria “presos sem condenação” compreende as pessoas privadas de liberdade que não foram julgadas e não receberam decisão condenatória. Os dados apresentados no gráfico compreendem as pessoas em carceragens de delegacias e os presos provisórios em estabelecimentos do sistema prisional. 13

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de dezembro de 2018. Esses dados também apontam que entre os anos 2000 e 2014, a população carcerária teve um aumento de mais de 167%, especialmente após a aprovação e aplicação da Lei 11.343/2006, conhecida como Lei Antidrogas (INFOPEN, 2017). Certamente o número de pessoas privadas de liberdade já deve ter aumentado sensivelmente, pois já se passaram mais de dois anos, desde que os últimos dados foram coletados. Declarações como as do governador do Paraná, Beto Richa (2018), dão a dimensão do crescimento assustador do número de presos no Brasil, além de deixar nítida a preferência pela criação de novas vagas, ou seja, a construção de novas unidades penitenciárias em detrimento de políticas públicas efetivas que diminuam a criminalidade e consequentemente o número de presos. Tendência também seguida pelo Departamento Penitenciário do Paraná que vê na construção de novas unidades prisionais a solução para o grande problema do encarceramento em massa naquele estado, anunciando a construção de mais 14 unidades e ampliação das já existentes que, segundo este Departamento, geraria mais de 7 mil novas vagas no sistema carcerário do Paraná. O que, objetivamente, não resolveria o problema, já que ele próprio declarou uma média de 200 prisões por dia. “Nós já tiramos mais de 7 mil desta condição. Temos hoje 10 mil custodiados em delegacias e cadeias públicas. No ano passado nós tivemos uma média diária de 200 prisões. Era 160, foi pra 200. Prendemos mais e tem que colocar em algum lugar. Esperamos a conclusão destas obras para dar conta de zerar esta situação de algumas delegacias lotadas ainda”, comentou Richa. (WURMEISTER, 2018)

Cabe ressaltar que dos 726.712 da população prisional, 689.510 referem-se ao Sistema Penitenciário; 36.765 referem-se à Secretaria de Segurança/Carceragem de delegacias e mais 437 pessoas estão presas no Sistema Penitenciário Federal. De acordo com os dados do INFOPEN (2017), existem 368.049 vagas, o que equivale dizer que há um déficit de vagas de 358.663, sendo que 78% dos estabelecimentos penais comportam mais presos do que o número de vagas disponíveis. Se compararmos os dados de dezembro de 2014 com os desse último relatório, verificamos um crescimento do déficit de vagas de 250.318 para 336.491 vagas no Brasil. A taxa de ocupação registrada é de 197,4% e a de aprisionamento é de 352,6. É importante ressaltar que para o cálculo da população prisional, foram desconsideradas as pessoas em prisão domiciliar, por não se encontrarem em estabelecimentos penais diretamente administrados pelo Poder Executivo. Muito embora, o INFOPEN (2014) registrou uma população de 147.937 pessoas no regime de prisão domiciliar. Se considerarmos o aumento da taxa de crescimento de 157% no Brasil entre os anos de 2000 e

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2016, teremos a dimensão de que o número de pessoas presas que cumprem pena no regime de prisão domiciliar deve ter aumentado sensivelmente desde 2014. Também foram desconsideradas neste levantamento as centrais de monitoração eletrônica, inserida no âmbito de sua política de penas e medidas alternativas à prisão. Provavelmente, essas informações constarão dos próximos levantamentos, tendo em vista que essas modalidades de monitoramento eletrônico, as chamadas tornozeleiras eletrônicas, são relativamente novas no sistema prisional brasileiro. Modalidade esta que carece de muitas discussões e debates, mas não é esse o foco das reflexões desta pesquisa. Comparando o Brasil com outros países do mundo e baseada nessas informações e outras fontes, o Ministério da Justiça – MJ (2018) elaborou uma lista com os sete países campeões em encarceramento de suas populações, estabelecendo a seguinte configuração: os Estados Unidos lideram a lista com uma população de 2.145.100 pessoas presas, em seguida a China com 1.649.804, Brasil aparece em terceiro lugar com 698.618, o quarto lugar ficou com a Rússia com uma população carcerária de 646.085 pessoas, a Índia aparece na quinta colocação com 419.623 presos, a Tailândia com 300.868 e o México que aparece em último com 233.469 mil pessoas privadas de liberdade. Considerando esses dados trazidos pelo Ministério da Justiça (MJ) podemos afirmar que na América Latina, o Brasil, sendo o único pais latino-americano a figurar entre os sete maiores do mundo, automaticamente ele ocupa a primeira colocação entre os países que mais encarcera sua população. Uma triste constatação para um país que se diz democrático e líder político natural de toda América Latina, mas aprisiona parcela significativa da sua população, especialmente sua população preta, pobre e periférica. Concretamente, a única liderança que o Brasil exerce na América Latina é a de pessoas privadas de liberdade, conquistado há menos de cinco anos, quando ocupava a quinta posição. Segundo dados do World Prison Brief, divulgados pelo Ministério da Justiça (2018), “a situação não é muito diferente em outros países da América Latina. Segundo informações o continente tem um total de 1.545.264 de pessoas presas”.

Com o aceleramento da política de encarceramento nos últimos cinco anos, o país pulou quatro posições e passou Chile, Guiana Francesa, Guiana e Uruguai. Dos quatro países que estavam à frente do Brasil, apenas o Uruguai cresceu o percentual de presos em relação à população. Os demais apresentaram redução. (MADEIRO, 2017)

Quando separamos os dados por raça/cor/etnia, percebe-se uma porcentagem de pessoas presas majoritariamente negras. Nos dados apresentados neste último relatório é a

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sobrerrepresentação da população negra em relação à população total que é de 53%, e entre as pessoas privadas de liberdade, totalizando 493.145 pessoas, esse porcentagem equivale a 64% do total de pessoas presas, que nos chama mais a nossa atenção. O maior percentual de negros entre a população presa é verificado nos estados do Acre (95%), do Amapá (91%) e da Bahia (89%). Do total de pessoas privadas de liberdade, 55% referem-se aos jovens de 18 a 29 anos de idade. Os dados do Mapa do Encarceramento: os jovens do Brasil (2015) indicam que a população negra, especialmente a população jovem, é mais vulnerável à violência urbana, sendo vítima de homicídios com mais intensidade do que a população branca e apresentam duas desvantagens que são acumuladas pelos jovens, especialmente os jovens negros, diante das políticas de segurança pública em curso. (...) os dados sobre encarceramento indicam que a população negra e jovem – que deve ser o objetivo principal de uma política de segurança para garantia prioritária da vida – não apenas não é vista pelos gestores e executores da segurança como vítimas prioritárias a serem protegidas, como são os alvos do policiamento ostensivo que procura condutas delitivas nas ruas – espaço onde as atividades delitivas mais visíveis são as dos jovens e negros. Significa que a população jovem negra acumula duas desvantagens diante das políticas de segurança em curso. (BRASIL, 2015)

Outro recorte que deve ser considerado é o de gênero. De acordo com os dados do INFOPEN Mulheres (2018), havia 42.355 mulheres privadas de liberdade no Brasil. Desse total, 41.087 referem-se às presas do Sistema Penitenciário e 1.268 equivale ao número de presas da Secretaria de Segurança/Carceragens de delegacias. Assim como no caso dos homens, nas prisões também há um déficit de 15.326 vagas para 27.029 de vagas disponíveis para pessoas do sexo feminino. Ainda de acordo com os dados desse último relatório das mulheres privadas de liberdade no Brasil, a taxa de ocupação é de 156,7% e registra uma taxa de aprisionamento de 40,6. Entre as mulheres privadas de liberdade, as mulheres negras também estão sobrerrepresentadas, equivalendo a 62% do total de mulheres presas, sendo 50% delas composta por jovens de 18 a 29 anos. Quando o foco passa para a escolaridade das pessoas privadas de liberdade no Brasil, os dados do INFOPEN (2017) dão conta de que 75% da população carcerária no Brasil é composta por pessoas com grau de instrução divididos da seguinte forma: analfabetos (4%), alfabetizados (6%), com Ensino Fundamental incompleto (51%) e com Ensino Fundamental completo (14%). Percebe-se que o grande ponto de concentração se apresenta no bloco dos presos que, sequer, concluíram o Ensino Fundamental. Uma realidade que nos faz pensar

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sobre quais as reais circunstâncias que levam ao encarceramento expressivo desse público, especificamente, com pouquíssima instrução e/ou escolaridade. Não foi possível verificar tanto no relatório geral como no específico para mulheres, quaisquer menções à população prisional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer, Intersexuais e Outros (LGBTQI+) nessas unidades prisionais. A única separação que é explicitada é a de gênero, mas limitada ao sistema binário, ou seja, do sexo masculino ou feminino. O que denota a invisibilidade desse segmento populacional nas estatísticas oficiais do Ministério da Justiça (MJ), órgão responsável pelo levantamento e monitoramento dessas informações. O fato é que essa temática da população LGBTQI+ ainda é pouquíssimo, ou quase nada, discutida nos meios acadêmicos, especialmente no que se refere ao seu encarceramento. Como o foco desse trabalho não é a população LGBTT+, não vamos ficar aqui fazendo considerações sob o risco de cometer equívocos contribuindo para a desinformação e a generalização de um tema tão caro para a nossa sociedade. Porém, queremos indicar o estudo etnográfico do pesquisador Marcio Zamboni (2016) sobre como a população LGBTT+ vivencia a experiência nas prisões, analisando a relação entre as dinâmicas de organização do espaço prisional e as formas de identificação e diferenciação entre presos em termos de gênero e sexualidade a desconstrução de um sujeito de direito. De acordo com dados coletados no site do governo do estado de São Paulo, a estrutura da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) é composta de 170 unidades prisionais, além de outras 13 unidades em construção, espalhadas ao longo de todo o estado. As unidades prisionais estão distribuídas da seguinte forma: 86 penitenciárias, 43 Centros de Detenção Provisória (CDPs), 15 Centros de Progressão Penitenciária (CPPs), 22 Centros de Ressocialização (CRs), 1 Unidade de Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) e 3 hospitais. Das 13 unidades que estão em construção, 12 são Centros de Detenção Provisória (CDPs) e 1 penitenciária feminina. Por gênero (categoria binário), a configuração das unidades prisionais se apresenta da seguinte forma: 151 masculinas e 22 femininas. Administrativamente são divididas em 7 coordenadorias, sendo 5 delas divididas regionalmente entre as regiões Metropolitanas de São Paulo, do Vale do Paraiba e Litoral, Noroeste, Central e Oeste, além das outras 2 que estão divididas por áreas, de Saúde e de Reintegração Social e Cidadania. Em números absolutos, o estado de São Paulo registra a maior população carcerária do Brasil. Embora, se for considerada a taxa de ocupação dessas unidades prisionais, o estado do Amazonas lidera o ranking nacional, chegando a 484% a sua taxa de ocupação.

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2.1 – A exploração da mão-de-obra dos trabalhadores privados de liberdade

As transformações do mundo do trabalho no decorrer do processo histórico são compostas por várias nuances que vão se adequando e se adaptando de acordo com as necessidades humanas e os recursos que a sociedade contemporânea oferece. Desde sua origem, o trabalho existe para atender às necessidades de nós seres humanos e foi historicamente construído e reconstruído para acompanhas as transformações do mundo atual. E não devemos esquecer que, na atualidade, o trabalho é utilizado como mercadoria, já que vendemos a nossa força de trabalho para que possamos adquirir bens de consumo que garantam, minimamente, a nossa sobrevivência. Na sociedade atual, o trabalho é o elemento fundamental para sua organização, pois é a partir dele que o trabalhador tenta obter o seu sustento e ao mesmo tempo, sua atividade laborativa, oportuniza o desenvolvimento de suas aptidões, aprimorando seus conhecimentos e exprimindo as suas subjetividades. Na atual conjuntura em que vivemos, a trabalho exerce uma função fundamental, a de inserção social e visibilidade. O trabalho hoje, de certa forma, é um elemento que projeta um certo status aos trabalhadores. Quem não trabalha é tratado como uma pessoa de segunda classe, que não “merece” o respeito e a dignidade de qualquer ser humano. O que traz sérios desdobramentos para a vida das pessoas. Os trabalhos realizados com trabalhadores privados de liberdade que, por uma série de questões, foram levados, independentemente de quais foram as circunstâncias, a cometer alguns delitos e foram excluídos, literalmente, recolhidos, proibidos do convívio com a sociedade, configura-se como uma dessas transformações do mundo do trabalho. Ou seja, esse trabalhador não mais vende a sua força de trabalho pelo capital necessário para sua sobrevivência. Agora esse trabalho é utilizado como mecanismos de punição ou ainda como uma forma de diminuição da sua pena, o que por si só já é muito contraditório. Uma superexploração da mão de obra dos trabalhadores presos, privados da sua liberdade, um direito humano fundamental para a vida digna de qualquer pessoa. A Organização das Nações Unidas (ONU), nas suas Regras Mínimas (2015), reconhece em seu item 71.2, o trabalho como um dever do preso, desde que respeitadas as suas aptidões física e mental. No Brasil, a Lei de Execução Penal (LEP), de 1984, em seu artigo 28 estipula que “o trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá a finalidade educativa e produtiva”, e em seu artigo 31 que “o condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade”. De acordo com juristas, entre eles o procurador do Trabalho Gláucio Araújo de Oliveira (2017), “(...) o

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trabalho somente pode ser exigido quando forem respeitados todos os princípios agasalhados pelas Regras Mínimas da ONU e pela LEP, caso contrário, está caracterizada a figura do trabalho forçado”. As Regras Mínimas da ONU (2015) também estabelece, no seu item 76.1, que os trabalhos realizados pelos trabalhadores presos devem ser equitativamente remunerados. No seu artigo 41, inciso II, a LEP estabelece atribuição de trabalho e sua remuneração como um direito do preso, igualmente o faz o artigo 39 do Código Penal Brasileiro (CPB), determinando que o trabalho do preso sempre seja remunerado. Já no seu artigo 29 da referida LEP, define que: “Art. 29”. O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior à 3/4 (três quartos) do salário mínimo. § 1º O produto da remuneração pelo trabalho deverá atender: a) À indenização dos danos causados pelo crime, desde que determinados judicialmente e não reparados por outros meios; b) À assistência à família; c) À pequenas despesas pessoais; d) Ao ressarcimento ao Estado das despesas realizadas com a manutenção do condenado, em proporção a ser fixada e sem prejuízo da destinação previstas nas letras anteriores. § “2º Ressalvadas outras aplicações legais, será depositada a parte restante para constituição do pecúlio, em Caderneta de Poupança, que será entregue ao condenado quando posto em liberdade.”.

Toda pessoa, sem quaisquer distinções, tem direito a igual remuneração por igual trabalho, assim preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. A Constituição Federal (CF) no seu artigo 7º, inciso IV, consolidou o direito que possui o trabalhador a não receber menos que um salário mínimo pelos seus serviços. Nesse sentido, as legislações LEP e CF se confrontam, pois a LEP estabelece um valor, enquanto que a CF garante outro, portanto inconstitucional, como defende o jurista Cândido Furtado Maia Neto (2008), na sua análise da lei de execução penal (Lei nº 7.210/84). Assim nos alerta também a bacharel em Direito Daniela Arce Gomez:

A diferenciação e discriminação praticadas pela LEP com relação ao preso, no tocante aos direitos do trabalhador, além de propiciar a exploração por empresas privadas, não coaduna com o caráter pretensamente ressocializante do trabalho carcerário. (GOMEZ, 2013, p. 45)

A possibilidade de remição da pena pelo trabalho ou pelo estudo também é conferida ao preso pelo artigo 126 da LEP, na proporção de um dia para cada 3 dias de trabalho e no seu

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artigo 33 limita o número de horas de trabalho que deve ser respeitado, sendo limitada ao mínimo de 6 horas e o máximo de 8 horas por dia, de segunda a sexta feira. Note que a legislação que rege o trabalho executado pelos trabalhadores privados de sua liberdade é a LEP e não a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), ou seja, não tem as mesmas características do trabalhador livre e isso está registrado no artigo 28, inciso II da LEP que diz que “o tratamento do preso não está sujeito à Consolidação das Leis do Trabalho”. Em outras palavras, o trabalhador preso não tem direito às férias, carteira assinada, décimo terceiro, entre outros direitos trabalhistas, caracterizando a superexploração e extrema precarização da força de trabalho dos trabalhadores em regime de privação da liberdade. O ditado popular “mente vazia é oficina do diabo” nunca foi tão apropriado para justificar a exploração, as atrocidades e as injustiças praticadas pelos grandes capitalistas, donos dos meios de produção, contra a classe trabalhadora, especialmente os trabalhadores privados de liberdade, totalmente descobertos dos seus direitos sociais e trabalhistas. Seguindo essa lógica nefasta, o trabalho aplicado aos presos é o “remédio eficaz” para aqueles que violaram as leis e as ordens no nosso ordenamento social. Dito de outra forma, mais popular, juntou a fome com a vontade de comer. Nesse sentido, se estabelece uma lógica perversa, apoiada em grande parte pela própria sociedade, de que se se tornaram criminosos pela violação da força de trabalho, é pelo trabalho que serão reabilitados. O sistema prisional levou isso ao pé da letra e justifica a exploração entendendo que os presos se tornariam pacificados, ressocializados, reeducados e estimulado a uma vida cheia de virtudes por meio de atividades laborativas, do trabalho. Ou seja, o trabalho seria um excelente remédio pra ocupar o tempo livre e curar o ócio e os vícios. Assim observa o professor Roberto de Paula: “(...) o sistema prisional é a mecânica pedagógica a moldar movimentos, atitudes, corpos, espíritos e consciências complacentes ao sistema de produção capitalista. Trata-se de uma prática pedagógica de dominação, submissão e exploração.” (PAULA, 2010).

Por trás de tudo isso está expresso o caráter punitivo da nossa sociedade, que deseja ver os presos trabalharem duramente em regime forçado de penitenciárias agrícolas ou industriais. Há ainda quem defenda que os presos deveriam trabalhar sem comer e sem receber nenhum centavo pelo trabalho realizado. O trabalho dos presos nas prisões tem uma função explícita e fundamental, a de produzir e garantir uma maior obediência às regras e fortalecer a disciplina nas prisões.

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Importante ressaltar que teoricamente a prisão foi criada como uma forma de punir todas as pessoas que cometessem algum delito de forma igual sobre todos os sujeitos, o que se percebe é que se voltou especialmente para os pobres, pretos e periféricos, com uma acentuada prevalência para os mais jovens, entre 18 e 24 anos de idade. Ela não surgiu com um propósito humanitário de substituição às

antigas penas

de suplício como

esquartejamentos, torturas e execuções sumárias, mas para disciplinar setores marginalizados do sistema capitalista que surgia e precisava dar respostas aos donos dos grandes capitais. Surgiu para segregar e combater os que contrariavam os interesses e as leis desse sistema, considerando esse movimento de resistência como ilegalidades que precisavam ser combatidas, conforme Foucault sugere: “(...) foi contra o novo regime de exploração legal do trabalho que se desenvolveram as ilegalidades operárias no começo do século XIX: desde os mais violentos, como as quebras de máquinas, ou os mais duráveis, como a constituição de associações (...). Uma série de ilegalidades surge em lutas onde (sic) sabemos que se defrontam ao mesmo tempo a lei e a classe que a impôs.” (FOUCAULT, 2004).

As prisões são a expressão, a exteriorização do conflito de classes, haja vista o perfil das pessoas que estão nesses presídios. Basta uma aproximação com a realidade social do contingente da população carcerária que veremos uma população extremamente marginalizada, pobre, jovens e negros. Há que se observar ainda, as questões acerca dos crimes cometidos por esse contingente de trabalhadores privados do seu direito humano fundamental, que é a sua liberdade. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2013), elaborado e publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, informa que o crescimento da população carcerária brasileira entre 1999 e 2014 foi de 213,1%. O estudo aponta ainda que, mantido esse ritmo, em 2030 o Brasil terá alcançado uma população prisional de quase 2 milhões de presos adultos, num país que, segundo o Anuário Brasileiro (2013) tem 1424 unidades prisionais. O trabalho no interior dos presídios é um direito-dever dos trabalhadores privados da sua liberdade, garantidos na Constituição Federal, na Lei de Execuções Penais, na Declaração dos Direitos Humanos e nas Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU). São esses dispositivos legais e signatários que regem o trabalho penitenciário no Brasil. Estes dispositivos têm o objetivo de “ressocializar” e “reinserir” os trabalhadores presos na sociedade, mas o Estado tem falhado nessa sua atribuição legal, já que não dispõe de estrutura suficiente e adequada e nem vontade política para cumprir o seu papel.

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O trabalho na prisão deve atuar de forma que promova a autonomia dos trabalhadores privados de liberdade. É importante ressaltar que não se pode aceitar justificativas dos grandes donos do capital de que, por meio de sua iniciativa, estão contribuindo com a “reabilitação” desses trabalhadores, já que o aspecto econômico-financeiro é o que move essas pretensas “boas ações” desses grandes donos dos meios de produção. É necessário que se evidencie e que se denuncie a exploração da força de trabalho desses trabalhadores privados de liberdade. Isso indica a forma como o grande capital se apropria de uma questão social para obter vantagens cada vez mais lucrativas, sem que haja nenhum tipo de preocupação com a coletividade. É preciso ficar atentos e cobrar dos órgãos competentes maior e melhor fiscalização das condições de trabalho nas prisões. Assim tentaremos garantir que seu verdadeiro objetivo se cumpra.

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2.2 – O encarceramento em massa da população negra como violação dos direitos humanos Falar sobre direitos humanos no Brasil é falar pela perspectiva da sua violação e não da sua efetivação. A sociedade brasileira é mestra nesta arte, a de violar os direitos humanos, especialmente e quase que exclusivamente, das pessoas pobres, da classe social menos abastada e exposta aos desmandos de governos racistas, machistas e genocidas. Nossa sociedade também carrega um estigma punitivista, onde quaisquer “desvios” devem ser tratados por medidas de punição que, muitas vezes, ultrapassam os limites da razão. Quanto mais punição melhor, pois se acredita que punindo os “desviantes”, estes serão “corrigidos”. Isso quando não se clama pela eliminação desses sujeitos que, por sua condição social ou mesmo racial, são eleitos como os matáveis. São numerosos os exemplos de violação de direitos humanos, especialmente entre negros e pobres, dentro ou fora das cadeias, como torturas psicológicas e espancamentos frequentemente denunciados pelos movimentos sociais organizados, além da falta de condições mínimas de higiene e saúde, configurando-se como o racismo estrutural e institucional presentes nas instituições que compõem a estrutura social e política no nosso país. Estas suas condições reais e objetivas “autorizam” as forças de segurança a realizar procedimentos que, se não os matam, os expõem a circunstâncias extremamente violentas e de violações dos direitos humanos. Ao se referir a casos de extrema violência das forças policiais em São Paulo contra moradores da periferia e supostamente envolvidos com o crime, Mallart e Godoi (2017) identificam esse mecanismo como “tecnologias de produção da morte”. Os autores ainda elencam os critérios dessa produção, entre eles: a passagem pela prisão e as tatuagens monocromáticas, como sendo os “traços que operam como identificação dos futuros cadáveres” e que legitimam as execuções nos autos de resistência, comumente usados nos registros de ocorrências criminais que envolvem o assassinato desses corpos matáveis, indesejados e perigosos. Este perfil é facilmente identificado, como nos mostra um trecho do relatório do Ministério da Justiça/Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) sobre o massacre na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru.

Como a pobreza no Brasil é muito facilmente identificável, seja pelo vocabulário, pelas roupas ou ainda pelo seu porte físico e cor do indivíduo, a polícia reconhece quase com precisão quais são e quais não são cidadãos “agredíveis” e “torturáveis”. (MACHADO; MARQUES, 2017)

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Quaisquer semelhanças com os extermínios ocorridos durante o mês de maio de 2006 em algumas regiões metropolitanas de São Paulo e na capital, onde foram mortos dezenas de pessoas, na sua maioria jovens negros e periféricos, conhecidos como os crimes de maio, dando origem ao movimento das mães de maio, organizado por mães que perderam seus filhos durante este extermínio cruel e vergonhoso para a história do nosso país, não terá sido mera coincidência, como costumam salientar as obras de ficção no final de suas exibições públicas. Exemplos de casos de extermínio pelo Brasil afora não faltam e não é novidade pra ninguém, especialmente nos presídios, haja vista o massacre do Carandiru, com 111 mortes oficialmente registradas, sendo que 84 destas pessoas não tinham condenação, embora relatos deem conta de que o número de mortos é muito superior ao divulgado oficialmente. O relato de um dos sobreviventes do massacre no Carandiru, Sidney Francisco Sales (2012), é enfático ao fazer essa afirmação.

O dia 2 de outubro de 1992 foi o pior dia que já existiu na minha vida. Foi aquele massacre ao qual oficialmente noticiado a morte de 111 presos, mas creio eu que morreu aproximadamente 255 presos. Porque eu era encarregado da faxina naquela ocasião, distribuía alimentação, distribuía o café da manhã e eu pude, mais ou menos, ter essa base de cálculo do número de pessoas que desapareceram do pavilhão. (SALES, 2012)

Essa fixação pela punição tem público-alvo específico e previamente definido, inclusive no arcabouço legal que constitui a organização da nossa sociedade. Ao mesmo tempo em que esse arcabouço legal aponta quem são os indesejados e perigosos, funciona, também para um publico alvo específico, como uma espécie de escudo de proteção aos operadores desse sistema de manutenção da ordem, ou seja, os agentes policiais e seus comandos. Como podemos destacar que, nenhum dos envolvidos neste massacre foi responsabilizado pela morte dessas pessoas, inclusive com a negação da ocorrência do massacre, justificando a ação repressiva e homicida do Estado como uma “contenção necessária”. A sociedade brasileira está representada na população prisional em todas as suas configurações e a violação dos direitos humanos é uma dessas, ou seja, presas ou em liberdade, as pessoas são cotidianamente violentadas, especialmente a população preta, pobre e periférica. A violação dos direito humanos na sociedade brasileira tem sido uma constante, especialmente no que se refere às pessoas privadas de liberdade. O sistema prisional se coloca como um dos grandes laboratórios para as diversas formas de violação desses direitos. Configura-se como um dispositivo de produção de vidas com autorização para matar, como

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indica Mallart e Godoi (2017) afirmando que “constata-se – em carne e sangue – uma dimensão de produtividade do dispositivo carcerário contemporâneo: a produção de vidas matáveis”. Falar sobre violação dos direitos humanos nas prisões é redundante, pois a violação desses direitos, nas condições em que as prisões são cotidianamente identificadas pelos organismos e movimentos sociais organizados de defesa dos direitos humanos, passa a ser parte constitutiva do sistema carcerário e/ou prisional no nosso país. As denúncias de violação de direitos humanos contra o estado são frequentes e representam um retrato da nossa sociedade que, cada vez mais, revela o seu caráter punitivista, racista, sexista e genocida. Relatos do Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corredor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC João Marcos Buch, em seu artigo no site de notícias Justificando (2017), sobre a sua atuação em processos de denúncias contra a violação dos direitos humanos em presídios nos dão a dimensão do quanto o Brasil se distancia do efetivo respeito aos direitos humanos, especialmente no que se refere ao sistema carcerário.

Quando leio decisões como essas, o sentimento que tenho é que estamos nós, no Brasil, muito longe, mas muito longe mesmo de compreender e respeitas os direitos humanos. O Estado está em falta nesse quesito. Não conseguimos ainda disseminar e fazer entender que os direitos humanos, resultado do processo histórico evolutivo, protegem a todos, indistintamente, e devem servir como barreira contra governos que insistem em manipular regulamentos e leis para poder violar a integridade da célula humana. E quando o assunto é sistema carcerário, então sim, parece que todos os dias somos estapeados por essa vergonhosa e cruel violação. (BUCH, 2017).

E acrescenta as suas impressões sobre as condições das prisões brasileiras na ocasião em que visitou uma boa parte delas pelo Brasil afora.

(...) estamos tratando de ausência de trabalho e estudo para detentos, falta de colchões para dormir, com os existentes dispostos num chão úmido e sujo, onde saneamento básico não há, trabalhamos com complexos prisionais que recebem pessoas que ficam nuas em celas, sem acesso a banheiro ou por vezes permanecem algemados em corredores dias e dias na espera de destinação a uma galeria faccionada ou não. (BUCH, 2017).

Em outro relato, também durante suas visitas aos presídios, só que agora no exterior, onde as condições destes eram bem melhores que as do Brasil, Buch (2017) denuncia, enquanto lembrava que, no sistema brasileiro, diversas são as violações de direitos humanos nos presídios e em várias regiões do Brasil.

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(...) no Presídio Central de Porto Alegre, com seus 5.000 presos, não havia saneamento e que o esgoto escorria aberto pelos umbrais de um prédio que não era reformado fazia mais de 20 anos. Não relatava que em Pedrinhas/MA um detento podia simplesmente desaparecer dentro da unidade, sendo morto e tendo o corpo desfeito. Não contava que em Campo Grande/MS, a chamada “Máxima” possuía 2.500 detentos em celas contendo 25 presos para 4 a 6 vagas e com os recursos humanos restringindo-se a 10 agentes penitenciários por plantão, em processo de adoecimento diante das agruras insuperáveis do trabalho. Tampouco mencionava o sistema prisional catarinense, com idênticos e graves problemas e violações humanas, da superlotação à falta de fornecimento de kit de higiene e vestuário. (BUCH, 2017).

Casos como o do Rafael Braga, um rapaz negro, pobre e em situação de rua, preso em junho de 2013, durante manifestações públicas e rapidamente condenado sob a alegação de que portava material explosivo, mesmo após o resultado do laudo pericial comprovando que o material que levava consigo não tinha nenhum caráter explosivo, retratam bem as peculiaridades e particularidades do nosso sistema de justiça. Este caso revela a face seletiva, repressiva, higienista e estigmatizante do nosso sistema penal/prisional, bem como o seu caráter punitivo e de contenção e controle social, especialmente da população preta, pobre e periférica. De acordo com os noticiários à época da sua prisão, Rafael foi encontrado pelos advogados algemado pelos pés, como um negro no pelourinho, cena que nos remete ao Brasil escravocrata, onde os trabalhadores escravizados eram punidos em público e para que isso servisse de “lição” para que nenhum outro se atrevesse a cometer as mesmas coisas. Denotase assim que o Rafael Braga foi vítima da seletividade racial do sistema penal brasileiro, tendo em vista que foi o único condenado dentre as pessoas que foram presas naquelas manifestações. Comparações da nossa sociedade contemporânea com o período escravocrata não faltam e veem dos mais diversos campos do saber, desde juristas e ativistas dos direitos civis e do movimento negro até lideranças religiosas e cantores, só para citar alguns exemplos. De fato a nossa sociedade contemporânea guarda diversas semelhanças com o período escravocrata, especialmente no que se refere ao tratamento aos nossos povos pretos, pobres e periféricos, além dos nossos indígenas, que veem sendo dizimados no decorrer do nosso processo histórico de opressão e de repressão a estes povos tradicionais. Em recente entrevista concedida ao site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a ministra Carmen Lúcia, então presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ, fez a seguinte declaração: “a lei do Ventre Livre é de 1871 e nós continuamos a ter brasileirinhos nascendo em penitenciárias sem ter feito nada” e acrescenta: “a minha preocupação é que eles nasçam e permaneçam em uma penitenciária, porque eles não têm o que pagar”.

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A ativista do movimento negro organizado e feminista Beatriz Nascimento (2006) definiu as favelas como os quilombos urbanos na sociedade atual. Ângela Davis (2017) defende que “a escravidão jamais foi abolida no „país da liberdade‟ e as prisões são o sucedâneo „moderno‟ do modelo de escravização que os Estados Unidos supostamente aboliram em 1860” e o Brasil em 1888. Ângela Davis (2017) avalia a sociedade estadunidense nos seus estudos, mas podemos deslocar suas análises para a sociedade brasileira tendo em vista os processos semelhantes de escravização dos povos africanos. Em sua visita recente ao Brasil, ao comparar o nosso país com os Estados Unidos, Davis (2017) chama a atenção para o fato de que “o Brasil e os EUA fracassaram em abolir a escravidão. O padre Valdir Silveira (2014), ativista da Pastoral Carcerária, em entrevista à Revista Carta Capital, aponta o sistema carcerário como um grande violador dos direitos fundamentais e acrescenta que “no Brasil podemos comparar os presídio às senzalas” advertindo que “há um perfil bem definido das pessoas que estão lá dentro”. Em sua crítica severa, o líder religioso assevera que “o presídio é um palanque de tortura como eram as senzalas, mas hoje das periferias e dos pobres” e nos chama a atenção para a seletividade dessa instituição chamada prisão afirmando que “se houvesse outro público lá dentro, podíamos não pensar nisso, mas não tem como, é algo seletivo”. Ao definir uma das características do crime, o padre aponta que:

O crime nunca é individual, é sempre social. Portanto, a pessoa que foi atingida terá atingida também suas gerações. Por isso a família, vizinhos e lideranças trabalham em conjunto. Hoje, no sistema penal, a pessoa que cometeu o delito é jogada para o presídio de forma isolada. (SILVEIRA, 2014).

Como podemos perceber, as mesmas representações de opressão, de controle e de contenção da população negra se reafirmam, se reconfiguram e se realocam de acordo com as necessidades, o tempo e o lugar, como acontece nas metamorfoses engendradas pelo capitalismo que assola a nossa sociedade. Nesse sentido, o encarceramento em massa da população negra se traduz numa das mais sofisticadas técnicas de contenção, de controle e de eliminação desse segmento populacional, elevando o nosso sistema de “segurança e justiça” ao patamar de um dos sistemas que mais mata no Brasil, especialmente em confrontos entre as forças de segurança e as pessoas privadas de liberdade. Dados do Relatório do Ministério da Justiça/ Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) apontam algumas das grandes rebeliões em presídios

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brasileiros e seus respectivos números de mortes registrados oficialmente, embora saibamos que os números oficiais não convergem com os números reais, como já visto no caso do massacre no Carandiru. Seguem os dados: Carandiru, em São Paulo, Capital (1992) – 111 mortos; Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia (2002) – 27 mortos; Benfica, no Rio de Janeiro, Capital (2004) – 31 mortos; Pedrinhas, no Maranhão, São Luís (2010) – 18 mortos; Anísio Jobim, no Amazonas, Manaus (Dezembro /2016-Janeiro/2017) – 60 mortos; Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, Boa Vista (Janeiro/2017) – 33 mortos e na Penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, Natal (Janeiro/2017) – 26 mortos. Apenas para se ter uma ideia da magnitude do número de mortes no sistema prisional paulista, em 2014, 482 homens e mulheres faleceram em unidades prisionais do estado, efeito da própria mecânica de operação da máquina carcerária em sua configuração contemporânea. (MALLART e GODOI, 2017).

Dados como estes revelam o grau de insegurança em que as pessoas privadas de liberdade estão expostas, além do risco de morte, em ambientes que, teoricamente, deveriam zelar pela sua integridade física e mental. Mostram a fragilidade de um sistema penal fadado ao colapso total, se considerarmos a superlotação e a falta de políticas públicas e criminais que, de fato, possam proteger as pessoas presas e iniciar um processo de desencarceramento, especialmente das pessoas que estão presas sem ao menos serem julgadas e terem as suas penas decretadas. E nós sabemos muito bem quem são os principais prejudicados nesse sistema, pois a sua funcionalidade está pautada na criminalização e encarceramento da classe trabalhadora empobrecida e periférica, especialmente a população negra, segmento majoritário entre população que apresenta tais características, além da já confirmada maioria da população negra nas prisões brasileiras. Na atual conjuntura, esse quadro tende a se agudizar, especialmente no que se refere aos rumos que a nossa política criminal deve seguir. Preocupações também trazidas pelos estudiosos Rafael Godoi e Fábio Mallart quando sugerem que:

Em tempos de incerteza, de instabilidade institucional, do desmanche que vem sendo imposto à pesquisa científica, de “novos-velhos” massacres em presídios e de investidas, cada vez mais mortíferas, contra o povo pobre, negro e periférico, e tudo isso na esteira do recente golpe parlamentar, não basta se limitar à lógica do “mal menor”. (MALLART e GODOI, 2017).

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A ativista de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos Ângela Davis (2018), estudiosa sobre as prisões naquele país e defensora do abolicionismo penal contribui para essa discussão sobre a função ideológica da prisão, especialmente no que se refere à forma de como esse mecanismo atinge diretamente a população negra. Guardadas as devidas proporções, pois a autora está ancorada nos estudos da sociedade estadunidense, podemos considerar que privação de liberdade é igual em qualquer parte do mundo, e nesse sentido, as prisões brasileiras guardam semelhanças importantes com as dos Estados Unidos, especialmente o seu caráter seletivo, racista e sexista, como estão os números para confirmar essas características já apresentados nessa pesquisa. Davis (2018) nos convida a refletir sobre as nossas próprias certezas em relação às funções e as necessidades das prisões na sociedade e nos estimula a fazer discussões similares sobre a instituição do encarceramento, especialmente o encarceramento da população negra, já que esse tipo de punição tem trazido tantos prejuízos à nossa população, haja vista o grande número de mortes, epidemias de doenças, entre outras questões que estão diretamente relacionadas com a vida na prisão. Problemas estes que não atingem exclusivamente a população carcerária, mas também suas famílias, sua comunidade, a sua maneira de ser e de estar no mundo. Ela, Davis (2018), nos lança alguns questionamentos sobre a presunção de que aprisionar cada vez mais as pessoas ajudaria aqueles que vivem em liberdade a se sentirem mais seguros e mais protegidos e ainda sobre o fato de que as prisões tendem a fazer com que as pessoas pensem que seus próprios direitos de liberdade estão mais protegidos do que estaria se elas [as prisões] não existissem. Devido ao poder persistente do racismo, “criminosos” e “malfeitores” são, no imaginário coletivo, idealizados como pessoas de cor. A prisão, dessa forma, funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais. Esse é o trabalho ideológico que a prisão realiza – ela nos livra da responsabilidade de nos envolver seriamente com os problemas de nossa sociedade, especialmente com aqueles produzidos pelo racismo e, cada vez mais, pelo capitalismo global. (DAVIS, 2018).

É com muita cautela e preocupação que constatamos os rumos que a nossa sociedade tem demonstrado seguir, especialmente no que se refere às políticas de segurança pública que, de acordo com as propostas apresentadas pelo candidato eleito à presidente da República, ultraconservador, tendem a ser cada vez mais duras e, consequentemente, como já sabemos,

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de criminalização dos pobres, especialmente os pretos, e dos movimentos sociais organizados que lutam por uma agenda progressista, onde os direitos básicos para a preservação da vida sejam respeitados em sua essência e importância. A defesa pelos direitos humanos se torna cada vez mais importante diante desse novo quadro em que o Brasil está inserido. O sistema prisional, que deveria dar a segurança das necessidades básicas dos presos, na verdade os tornam cada vez mais vulneráveis e suscetíveis a acidentes, doenças, exposições desnecessárias a riscos de morte e de violências nas suas mais diversas configurações. Um lugar que deveria garantir os direitos humanos fundamentais dos presos acaba sendo o local onde estes direitos são ainda mais violados. A violação dos direitos humanos também é uma constante na vida dos egressos prisionais. É importante pensarmos também que a violência institucional ultrapassa os muros das prisões quando a pessoa privada de liberdade sai dela. Egressos prisionais continuam com seus direitos violados a partir do momento em que põem os pés na rua novamente. Desse momento em diante, ele recebe da sociedade essa marca, essa identidade de egresso prisional, a qual carregará pelo resto da sua vida. A história dele se resumirá ao período em que esteve em privação de liberdade. Sua vida se divide, literalmente, entre antes e depois da experiência da prisão, especialmente no que se refere ao trabalho, direito básico para a manutenção da nossa própria vida e as constantes investidas policiais que, nas suas abordagens a primeira pergunta que fazem é se a pessoas já tem passagem pelo sistema prisional, o que por si só, já é um critério para sua recondução para averiguações. Criam-se todas as condições favoráveis para que esse sujeito seja estigmatizado como “criminoso”, esse mesmo trabalhador será rejeitado de qualquer oferta de trabalho, porque não basta ele ser capacitado para a vaga que se candidata, pois por trás de sua bagagem profissional existirá uma marca de ex-presidiário, o que fechará as portas para as oportunidades que ele poderia acessar em condições de igualdade com os outros trabalhadores se ele não carregasse essa condição quase como uma tatuagem. A passagem pela prisão deixa marcas físicas e psicológicas que a pessoa privada de liberdade levará para o resto da sua vida. Marcas estas que ultrapassam a barreira pessoal e rebate nas relações sociais, econômico-financeiras e trabalhistas, pois há no senso comum da sociedade em geral uma desconfiança no caráter dos egressos prisionais, como se estes já não tivessem pago a sua pena enquanto estava preso, ainda têm que pagar enquanto está em liberdade. Fazendo com que, cada vez mais, as pessoas não consigam a sua recolocação profissional e acabem por reincidir nas suas infrações, sendo presos novamente. Para conseguir um trabalho, mesmo informal, o egresso prisional precisa, necessariamente, de

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alguém que faça sua indicação, caso contrário, não terá como buscar outras estratégias de sobrevivência. Não há nenhum trabalho efetivo que garanta que as pessoas aos saírem dos estabelecimentos prisionais sejam encaminhadas para serviços públicos que garantam a sua dignidade física e mental após a experiência tão traumática, que é a privação de liberdade. Sequer há um trabalho que garanta, efetivamente, a inclusão dos egressos no mercado de trabalho formal, garantindo-lhe minimamente os seus direitos sociais e previdenciários. Precisamos entender por que os programas de “reintegração” social não conseguem atender a demanda dessas pessoas que na vida em liberdade não tem o apoio necessário para viver sem a constante ameaça de reincidir, simplesmente porque precisam sobreviver. Na realidade concreta dessas pessoas, quais são as respostas das políticas públicas para que estas não reincidam, o que é cada vez mais frequente. Estabelecendo assim uma relação de controle da classe trabalhadora que um dia passou pela prisão, que quando não estão acessando os postos de trabalhos mais precarizados, estão em situação de rua ou serão encaminhados para o cárcere novamente. É possível identificarmos ainda que a lógica do encarceramento em massa tortura todo aquele que se mantêm próximo às pessoas presas, que suas violências e violações ultrapassam seus muros e grades. A exemplo disso temos a continuidade da revista vexatória, mesmo com a implementação da Lei Nº 15.552, de 12 de agosto de 2014, que proíbe a revista íntima dos visitantes nos estabelecimentos prisionais, o que denota a capacidade do sistema capitalista em reconfigurar a perversidade de suas práticas. A revista vexatória se constitui no exercício de constranger a pessoa visitante, obrigando-a a ficar nua, agachar-se, a abrir as pernas e ser tocada em suas partes íntimas. Todo esse processo de humilhação é “justificado” a partir da ideia de garantia da segurança interna do presídio. As formas de violências e de violações dos direitos humanos no encarceramento em massa vão ganhando contornos que repercutem nos familiares que, fisicamente estão livres, mas objetivamente também estão presos, pois são obrigados a vivenciar as mesmas experiências dos familiares que estão privados de liberdade.

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2.3 – A Lei antidrogas, a seletividade racial e a criminalização da população negra.

A promulgação da Lei Federal nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD) e prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social dos usuários e dependentes de drogas e ainda, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, definindo também crimes, dá outras providências e trouxe algumas consequências para a população pobre em geral e mais especificamente para a população negra, principal vítima das constantes investidas do sistema punitivo, que tem na população negra e periférica, o seu alvo predileto. No ano de 2006, ano em que a Lei foi instituída, 15% das pessoas que eram presas no Brasil respondiam por crimes relacionados às drogas. Crimes estes, basicamente caracterizados como tráfico, porém essa definição é muito subjetiva, tendo em vista a subjetividade do policial que apreendeu a droga e a fragilidade da lei que imputa a responsabilidade pela determinação e qualificação do crime ao Juiz, tendo como única testemunha o próprio policial responsável pela Ação, de acordo com o § 2º do Artigo 28 da referida Lei. Em 2014 este número saltou para 28%, de acordo com o Levantamento Nacional de Informações penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (INFOPEN/2014). De 2006 a 2016, houve um aumento de mais de 160%, de acordo com estudos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas. Segundo dados divulgados pela Rede Justiça Criminal, de 2000 a 2014 a população do sistema prisional brasileiro cresceu de 167,32%, superando, em muito, o crescimento populacional e a distribuição de presos por tipo de crime era a seguinte: 46% de crimes contra o patrimônio, 28% referentes à Lei de drogas, 13% de crimes contra a pessoa e 13% referemse a outros tipos de crimes. O mais alarmante é que quase metade dessas pessoas presas, cerca de 40%, aguarda por um primeiro julgamento, ou seja, parte expressiva delas pode ser absolvida. No Brasil, último país no mundo a “abolir” a escravidão, as discussões sobre criminalidade não podem estar deslocadas das discussões sócio históricas desse passado cruel e desumano, marca indelével do nosso país, haja vista a relação estreita que existe entre esse passado escravocrata e a sociedade contemporânea e as consequências sociais, econômicas, educacionais, políticas e criminais.

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Esse passado escravocrata deixou marcas e estigmas que se expressam das mais diversas maneiras na sociedade contemporânea. Além desse histórico de escravização e de violência contra a população negra à época, várias teorias bioantropológicas na estigmatização dos negros como delinquentes que deu sustentação ao racismo científico tão bem discutido pela professora de Direito da Universidade Federal do Piauí, Doutoranda em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco Deborah Dettmam Matos (2010), contribuíram para que a população negra fosse estigmatiza, excluída e privada de seus direitos fundamentas e sociais, e consequentemente, seus direitos humanos. Wacquant (2002), estudando a população estadunidense identificou várias instituições peculiares que agiram sucessivamente para definir, confinar e controlar os afro-americanos, sequenciando-as como sendo a escravidão a primeira que se constituiu como uma matriz inceptiva da divisão racial desde a época colonial até a Guerra Civil. Seguindo-se à escravidão ainda vieram o sistema Jim Crow de discriminação e segregação impostas por lei (18651965), o Gueto (1915-68) corresponde à urbanização e proletarização conjuntas dos afros americanos desde a Grande Migração de 1914-30 até a década de 1960 e Hipergueto e prisão (1968), complexo institucional formado pelos remanescentes do gueto negro e pelo aparelho carcerário. A relação dos negros brasileiros com a “legalidade” da justiça inicia-se antes mesmo da abolição da escravatura. Eram leis que, em tese, seriam para proteger os negros escravizados, vítimas dos traficantes ilegais. A Lei 581, de 04 de setembro de 1850 estabelecia medidas para a repressão do tráfico ilegal de negros e consistia na apreensão das embarcações e punição para todos que eram flagrados nessas embarcações. As pessoas escravizadas eram apreendidas e reenviadas para seus portos de origem. Passados 21 anos, surge a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como a Lei do Ventre Livre, que declarava livre os filhos de escravas nascidos a partir dessa data, contudo a guarda/tutela era determinada ao Senhor de sua mãe, que tinha que criar a criança até os seus 8 anos de idade e depois desse período entregá-lo. Exatos 14 anos após, o Império promulga a Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885, conhecida como a Lei dos Sexagenários, permitindo aos negros escravizados, maiores de 60 anos, não mais exercer trabalhos forçados. O fato é que aos 60 anos de idade, dada as péssimas condições de trabalho e a exploração excessiva da força de trabalho escravo, a maioria morria muito antes dessa idade.

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Enfim, chega a Lei Áurea, Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888, que declarava extinta a escravidão no Brasil. Mas para onde iam os negros escravizados e agora “livres”, haja vista que antes da “abolição” da escravatura, ao menos tinham um teto, a senzala, para se abrigar, e os restos de comida dos seus senhores, com os quais faziam a feijoada. Com a promulgação da Lei Áurea, os negros passaram a vagar sem destino certo e passaram a ocupar espaços de difícil acesso, como os morros. A Lei Federal nº 11.343 de 23 de agosto de 2006, conhecida como Lei de Drogas, está completando uma década de sua implantação e, desde então, o número de pessoas presas aumentou significativamente em relação aos anos anteriores à sua aplicação, especialmente o número de negros e negras. Esta lei, que substituiu a Lei 6.368 de 21 de outubro de 1976, instituiu o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas no Brasil, trazendo como novidade a diferenciação entre usuários e traficantes, já que a anterior não trazia esta diferenciação, mas alguns de seus dispositivos legais são questionados por reproduzirem um modelo ineficaz de “guerra ás drogas”. A grande questão que se coloca pela legislação atual, especialmente no seu artigo 28, parágrafo 2º, é sobre como diferenciar um usuário de um traficante, pois a referida lei aponta critérios subjetivos que, na prática, atribui a cada juiz decidir quem é enquadrado e em qual categoria, se de usuário ou traficante. Para determinar isso, o juiz considerará a natureza e a quantidade da droga apreendida, o local e as condições em que a ação foi desenvolvida, as circunstâncias sociais e pessoais, além da conduta e os antecedentes criminais da pessoa apreendida. Art. 28 – Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, será submetido às seguintes penas: §2º - Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

O usuário não pode ser preso em flagrante, como ocorria antes, e sua pena é alternativa: advertência, prestação de serviços à comunidade ou obrigação de cumprir medidas educativas. O objetivo é deslocar essas pessoas do âmbito penal para o âmbito da saúde pública. O usuário também deve assinar um termo circunstanciado, uma espécie de boletim de ocorrência para crimes de menor gravidade, perante um juiz ou, na ausência deste, diante da autoridade policial no local da abordagem.

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Já o considerado traficante é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos. Importar, exportar e guardar drogas e cultivar matéria-prima para o tráfico acarreta a mesma penalidade. Dispositivos anteriores à Lei de Drogas, como a Constituição e a Lei de Crimes Hediondos, estabelecem que os condenados por tráfico não podem ser beneficiados com a extinção de suas penas (anistia, graça ou indulto). A aprovação da Lei Antidrogas inaugurou, no Brasil, uma estratégia de “guerra às drogas”, copiando o modelo dos Estados Unidos, guerra esta que tinha alvo e endereço certo: a população negra das periferias pelo Brasil afora. Mas como muito bem observou a ativista negra americana Deborah Small (2016), “a guerra às drogas americana não funcionou para o Brasil, pois em vez de reduzir o consumo e o abuso no uso das drogas, a erradicação do cultivo, a interdição de laboratórios de produção e outras abordagens pela via da oferta, levaram a mais violência, sofrimento, miséria e morte”. Essa “guerra” tem como principal objetivo a exclusão da população negra, confinando-a cada vez mais longe dos grandes centros, com caráter higienista e a manutenção do racismo na nossa sociedade, criminalizando de forma cada vez mais ostensiva a população pobre, negra e periférica. A professora Beatriz Abramides (2010), em Editoral da Revista PUCVIVA nº 39, já alertava que “por trás da retórica da guerra, há uma estratégia de criminalização dos pobres pela limpeza étnicorracial e de contenção social”. Um dos aspectos mais nefastos dessa lei é a relação entre o sistema econômico e a política criminal que, como nos lembra muito bem o professor Abramovay (2010), na introdução do livro Depois do Grande Encarceramento, organizado por ele e pela professora Vera Malaguti Batista, de que esta relação, a do sistema econômico com a política criminal, é tão profunda que não se pode olhá-las de forma separada. Com o crescimento da população carcerária há a necessidade de construção de mais presídios, o que justifica a contratação de entidades privadas, atendendo aos interesses do capital, com as privatizações das unidades penitenciárias. Torna-se urgente que o Brasil busque estratégias realmente eficazes para conter o grande encarceramento provocado por uma política criminal cada vez mais excludente e seletiva, especialmente para a população negra, pobre e periférica. Precisamos combater as praticas punitivas, repressoras e coercitivas que são comuns no âmbito penal brasileiro e que só contribui para aumentar cada vez mais o contingente de pessoas presas e em sua maioria com um perfil socioeconômico e étnico-racial pré-determinado como já mencionado no corpo deste capítulo.

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Precisamos rever a política criminal vigente e pensarmos numa política pública efetiva que reduza a população carcerária, especialmente no que se refere à política sobre drogas, incentivo à política de alternativas penais e às audiências de custódia, bem como a Agenda pelo Desencarceramento (2017), defendida pela Pastoral Carcerária, com diversas ações que vão desde a suspensão de investimentos para construção de novas unidades prisionais à limitação das prisões cautelares, redução de penas e descriminalização de condutas, em especial aquelas relacionadas à política de drogas, a fim de apurar a legalidade da prisão e evitar a prática de abusos e torturas, garantindo a dignidade e o respeito à pessoa humana, seja qual for a sua raça/cor, religião, origem, gênero ou orientação sexual. Historicamente, a população negra brasileira sempre sofreu vários processos de criminalização que se arrastam desde o período escravocrata até os dias atuais, seja pela sua religião, música, dança, origem ou condição socioeconômica. Mas esta população sempre resistiu e resiste às estratégias de opressão e dominação engendradas pelo Estado para sua exclusão e posterior eliminação. O caráter punitivo e seletivo do sistema penal brasileiro contribui para que, cada vez mais, negros, jovens e periféricos, sejam violentados no seu direito humano fundamental, o de ir e vir, e para que sejam reiteradas vezes abordados e levados para averiguações sem ao menos uma suspeita qualquer, senão o simples fato de ser negro e pobre. Faz-se urgente a transformação dessa sociedade que discrimina e criminaliza os seus integrantes apenas por serem negros e periféricos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A situação caótica dos presídios na América Latina, em particular os brasileiros, de violências e descaso com os direitos, não é novidade. Presídios extremamente lotados, sem assistência aos detentos é uma realidade, reconhecida pelas autoridades, responsáveis pela política de execução penal. Na maioria dos estados não há investimento, o que nos leva a um sistema prisional sem condições mínimas de habitabilidade e sobrevivência. O que vemos nesta política pública é a precariedade; o velho calabouço revestido de modernidade, sob o argumento dos recursos públicos insuficientes, que vem fundamentando as privatizações, ou seja, prisões como um “novo negócio”. O recrudescimento penal e o poder encarceratório do Poder Judiciário há décadas vêm construindo uma sociedade do superencarceramento, que atinge também crianças e adolescentes. A proposta pública é cada vez mais punir, em detrimento de políticas sociais para os trabalhadores empobrecidos, com pouquíssimas oportunidades sociais. Mesmo que amplamente se veicule que a prisão não combate criminalidade e não evita reincidência. A situação caótica dos presídios brasileiros é violenta e de descaso com os direitos. Para a elite brasileira, “bandido bom é bandido morto”. As prisões brasileiras não incomodam as classes dominantes, muito pelo contrário: representam o lugar de vingança e sofrimento desejado. Neste momento, no Brasil, qual seria o resultado de um plebiscito sobre a “oficialização” da pena de morte ou prisão perpétua? Já temos tido vários linchamentos, prisões e justiça pelas próprias mãos. Para a maioria da população, o sistema prisional deve ser sinônimo de sofrimento, uma espécie de vingança que não respeita os direitos fundamentais de cada indivíduo condenado e/ou tutelado pelo Estado no cumprimento de suas penas. As barbáries cometidas no sistema carcerário, de violação dos direitos humanos, tornam-se o “cadinho das expiações” das chamadas “classes perigosas” - aqueles que “não deram certo” aos olhos dos padrões dominantes da sociedade burguesa capitalista. E a existência das prisões cumpre um exímio papel nessa sociedade, pois, o que acontece dentro de muros e grades é a punição que o senso comum espera como vingança e não como justiça. Segundo Faustino (2010) além da máquina infernal de aprisionar, o Estado penal persegue sistematicamente os pobres e amplia o sistema penal, intensificando os preconceitos, sua criminalização, ampliando a repressão, buscando enquadrar essa classe, no perfil desejado das classes dominantes. Para isso, o uso do Estado policial. Assim o Estado pune para conter

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os efeitos de sua omissão e desresponsabilização. Um Estado (ainda que democrático e de direitos) que não pode prescindir da violência. A criminalização dos pobres, responsáveis por sua condição ou situação de pobreza; a violência estatal contra pretos e pobres que ameaçam a harmonia e hegemonia da branquitude social, ameaça o controle capitalista da ordem burguesa sob a chamada “classe perigosa” ou a classe dos criminosos em potencial: uma classe/massa de desassistidos, desempregados, destituídos da capacidade de consumo; os chamados “vagabundos” inúteis, sobrantes, dispendiosos para o Estado: os “matáveis”, negros, negras, pelo racismo estrutural e institucional, ameaçadores dos “cidadãos de bem”. Essas características sociais, econômicas e morais-conservadoras e higienistas, vem justificando as ações violentas do Estado nas ruas, nas prisões, nas políticas públicas (ou melhor, o desmonte delas). Para Davis (2015), A prisão acaba por ser um “efeito magia”, ou melhor, as pessoas que defendem a prisão e tacitamente parecem favoráveis a uma rede de proliferação de prisões e cadeias, são levadas a acreditarem na magia do aprisionamento. Mas nas prisões não desaparecem os problemas, elas desaparecem com os seres humanos. E a prática de desaparecer um grande número de pessoas pobres, imigrantes e comunidades racialmente marginalizadas, literalmente se tornou um grande negócio. A magia das prisões cria uma ausência de esforço para compreender os problemas sociais, escondendo assim, a realidade por trás do encarceramento em massa. As prisões desaparecem com os seres humanos a fim de transmitir a ilusão e resolver os problemas sociais. Infraestruturas penais devem ser criadas para acomodar uma população em rápido crescimento para serem criadas em gaiolas.

A questão do tratamento penal-prisional, como responsabilidade do poder público, enquanto tutor desta realidade nos âmbitos federal e estadual tem desafiado a sociedade brasileira sobre as mudanças mais do que urgentes do sistema e não apenas ações reformadoras (ou ampliadoras da penalização) do que já existe, mas sim, de inovações e superações dessa lógica. Iniciamos o século XXI, no olho do furacão do crescimento do Estado Penal e de uma sociedade que apoia o Estado punitivo e encarceratório, cada vez mais rígido, em detrimento das políticas neoliberais, neoconservadoras, do Estado social cada vez mais desmontado, da desproteção, da “inseguridade” aos trabalhadores (TORRES, 2007). Como bem afirma Carvalho (2003), o aparato de controle penal-penitenciário, na atuação da ordem e segurança, vem assumindo cada vez mais seus papéis punitivo-repressivos para os “não cidadãos”, excluídos da ordem social econômica e destituídos de seus direitos. A

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penalização da miséria via o encarceramento dos pobres do qual fala Wacquant (2001) são características crescentes dos governos neoliberais e da atuação do Estado social mínimo, penal e encarceratório. O estado caótico do cumprimento de pena privativa de liberdade hoje no Brasil pode ser também caracterizado, além de vários outros fatores, como parte de uma “desassistência”. generalizada. É possível identificar a não correspondência entre o que está disposto na Lei de Execução Penal vigente (LEP) e o que é praticado nos estabelecimentos prisionais; e mesmo que cumprida, por sua desatualização, a LEP não contempla uma política de seguridade social garantidora de direitos sociais/cidadania, para quem está preso. Por fim, a garantia de uma política social de âmbito transnacional para a instituição prisão deve ser a prioridade em matéria de reformulações. Uma política pública que garanta a participação da sociedade civil, na fiscalização e controle social. Para uma possível superação desta realidade se faz necessário minimamente investir numa mudança cultural-institucional, a partir dos profissionais, para que se proponha uma nova práxis nessas instituições. Concordamos com Conde (apud Torres, 2007), em suas reflexões críticas sobre as prisões na atualidade e a possibilidade de uma sociedade sem prisões: que devemos seguir lutando por mudanças no sistema prisional, principalmente na barbárie de suas condições de violação de direitos (ainda que isso se apresente como uma grande contradição, pelas funções precípuas da prisão). Dificilmente esta transformação ocorrerá no sistema capitalista e na produção das desigualdades sociais, mas podemos seguir construindo transições. Porém uma luta é de hoje e urgente: que aqueles que passam pelas prisões, quando libertados, depois de cumprirem sua condenação, não saiam em piores condições humanas para seguirem a vida em liberdade.

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