TFG - Atrás do Trio Elétrico [1/8]

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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Arquitetura Trabalho Final de Graduação

Adele Sá Martins Belitardo de Carvalho Trabalho Final de Graduação oferecido ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia, como requisito de obtenção do título de Arquiteta e Urbanista. Orientadoras: Junia Cambraia Mortimer Thaís Troncon Rosa

Salvador . Bahia 2019



Ao meu avô Sudário, por sempre ter me contado muitas histórias sobre as cidades por onde andou. Uma rua começa em Itabira, que vai dar em Salvador.



AGRADECIMENTOS


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À todas as pessoas que dedicaram seu tempo a me contarem um pouco sobre suas experiências carnavalescas, sobretudo: Sudário, Elisabeth, Maria Lúcia e Maria Cristina, Maria Luiza, José Eduardo, Iara, Paulo Ricardo e Andressa. A contribuição de vocês foi fundamental para o pensamento e reflexão sobre esses muitos carnavais de Salvador. À minha família, agradeço aos meus avós por sempre terem me contado tantas histórias e serem referência constante em minha caminhada. À minha mãe, pelo amor e suporte, por vencermos juntas os desafios e as batalhas da vida. Ao meu pai, agradeço pela alegria e amizade diária, por confiar em mim e acreditar nos meus sonhos, me incentivando a sempre dar o meu melhor no que me faça feliz. Ao meu irmão, pelo orgulho que me proporciona mesmo distante e por todas as diferenças que fazem com o que nos completemos nessa família. Aos meus tios e primos, sobretudo aos que compartilharam comigo seus carnavais, agradeço pelo carinho e acolhimento constante durante o processo. Aos meus grandes amigos e amigas, agradeço por todo apoio, carinho e todos os momentos de descontração e alegria durante essa jornada, fundamentais para que mantivesse a cabeça tranquila para a conclusão dos trabalhos. Agradeço em especial ao meu grande amigo e companheiro Vitor Piñeiro, por todo o amor e apoio, sendo um porto seguro e ponto de refúgio essencial nesse processo e nesses carnavais. À Universidade Federal da Bahia, sobretudo à Faculdade de Arquitetura, por ter me proporcionado ao longo desses sete anos um ensino de excelência dentro da Universidade pública, gratuita e de qualidade. Por todos os ensinamentos essenciais em minha formação como pessoa e agora como Arquiteta e Urbanista, por toda a balbúrdia e encontros incríveis que atravessaram a minha trajetória durante esse período:

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Aos meus colegas, companheiros dessa difícil e gostosa jornada de graduação em Arquitetura e Urbanismo. Aos meus amigos desde o Atelier I: Camila Novaes, João Caribé, Mariana Mariani, Sofia Costa e Vanessa Oliveira. Agradeço em especial à Mariana, minha grande dupla durante a graduação, pela amizade, companheirismo, cumplicidade e por deixar mais leves as muitas horas em que trabalhamos juntas. Ao Laboratório Urbano, coordenado pela Professora Paola Berenstein Jacques, agradeço por todo aprendizado que adquiri ao longo dos anos em que fiz parte do grupo, sobretudo no âmbito da pesquisa Cronologia do Pensamento Urbanístico, que muito me ensinou e contribuiu na minha formação. Agradeço imensamente e com muito carinho a todos os membros e amigos do grupo. À banca, por toda contribuição e por aceitarem fazer parte da avaliação desse trabalho. Ao Professor Joaquim Viana, agradeço pela interlocução importante com o IHAC e pelos ensinamentos enquanto fui aluna da disciplina Arte e Cidade, ainda explorando os primeiros carnavais. À Professora Gabriela Leandro, Gaia, além do meu agradecimento, destaco a minha profunda admiração por todo o trabalho que desempenha e representatividade que carrega, nas tentativas e lutas urgentes do des-embranquecimento das cidades. Ao Professor Dilton Lopes, agradeço pela especial interlocução no grupo Laboratório Urbano e na pesquisa da Cronologia, pelas críticas e aprendizados que me proporcionou em todo esse período. Agradeço à sorte do encontro com duas mulheres e professoras incríveis sem as quais esse trabalho, nessa conformação, certamente não seria possível. Às minhas orientadoras, que admiro tanto, agradeço por todos os ensinamentos, toda a contribuição, dedicação e empenho ao desbravarem comigo esses muitos carnavais em Salvador, acreditando no potencial da pesquisa. À Thaís Rosa, por ter aceitado me orientar e me acolhido em tantos 7


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momentos, por todo carinho e generosidade, pelas palavras de calma e pelos esforços constantes em tentar me guiar dentro das minhas próprias confusões. Por fim, não sei se alguma palavra - ou alguma imagem - seria suficiente para que eu expressasse o meu agradecimento à Junia Mortimer por tudo que significou ao longo da minha graduação. À Junia, agradeço por muitas descobertas e aprendizados e por me apresentar a tantos pensamentos possíveis dentro do campo da Arquitetura e do Urbanismo. Pelas orientações, conselhos e leituras críticas, e todos os incentivos durante a minha trajetória. Agradeço pelo encontro, pela amizade, pelos afetos e pelas imagens. Finalmente, gostaria de agradecer à minha cidade, Salvador, Cidade da Bahia, por todos os aprendizados e encantamentos que me oferta todos os dias. Suas ruas cheias de história me provocam e me lançam o desafio de contá-las, ainda que nunca dê conta da complexidade que exala de suas esquinas, ladeiras e praças: em outra cidade, esse trabalho não existiria. Salvador faz parte de quem eu sou onde quer que esteja e a saudade já é grande em deixá-la. A ela, deixo um muito obrigada e um até breve. Voltarei para vivermos juntas muitos outros carnavais.

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ABRE ALAS



As questões apresentadas em meu Trabalho Final de Graduação (TFG) me atravessam1 de inúmeras maneiras ao longo de minha trajetória, não somente enquanto estudante de Arquitetura e Urbanismo, mas também como baiana, nascida e criada em Salvador. O Carnaval consiste num acontecimento incontornável no cotidiano da cidade, sobretudo, mas não exclusivamente, durante alguns meses do ano, todos os anos, e algumas regiões da cidade têm seus espaços e dinâmicas diretamente afetados pelo contexto da festa. No final de 2016 cursei uma disciplina optativa na FAUFBA intitulada “ARQ141 - Tópicos de Arquitetura e Urbanismo: Cidades e Fotografia”, ministrada pela Prof. Junia Mortimer, na qual buscávamos pensar, discutir e tensionar o ambiente construído, da arquitetura e da cidade, através da imagem fotográfica. Para a avaliação final da disciplina deveríamos escolher uma questão urbana ou arquitetônica para problematizar, construindo uma narrativa por meio de imagens para tal. O período coincidiu com o momento imediatamente anterior ao carnaval de 2017, durante o processo de montagem das estruturas da festa. Num dia quente de janeiro, voltando para casa num engarrafamento estressante, um trajeto que usualmente concluiria em poucos minutos me custou quase trinta, devido aos inúmeros bloqueios e interrupções ao longo da Avenida Oceânica, sobretudo na região de Ondina, por consequência da instalação dos camarotes e do sistema de iluminação provisório do carnaval. Ali, faria uma escolha que caminharia comigo por um tempo maior do que a duração de uma disciplina, e do que eu poderia prever e imaginar naquele momento: problematizar a imposição de toda a conjuntura da cidade carnavalesca soteropolitana sobre sua cidade cotidiana2, as sucessivas tentativas de ordenamento dessa cidade para a festa, porém, sem deixar de me atentar ao que desvia, resiste e sobrevive à essa lógica, apesar de tudo. Os inúmeros atravessamentos 13



provocados por essas questões despertariam em mim o interesse por essa investigação de modo mais amplo e complexo, mas nunca completo ou esgotado, numa tentativa de tecer relações entre essa cidade, profunda e intrinsecamente marcada pelo carnaval, e essa festa que, sistematicamente, a profana e é profanada por ela. Nesse momento, tateava a minha aproximação com a fotografia3, ainda tão inicial, enquanto possibilidade de apreensão do espaço. Descobri nessa prática, e também nesse campo de estudos, uma possibilidade de fazer emergir outros modos de entendimento e reflexão, sobretudo acerca da cidade, que me mobilizam e me instigam, uma maneira de aguçar o meu olhar sobre determinadas questões, que me ajuda a entender os ambientes que me cercam, construindo as minhas próprias percepções. Ademais, as minhas imagens são também testemunhas da experiência do meu corpo naqueles espaços, como um certificado de presença (BARTHES, 2015, p. 73), de que eu estive ali e de que aquela imagem é o meu olhar sobre aquele espaço, naquele momento em que o vivenciei. Imagens da cidade É imprescindível discutir a relação de Salvador com o carnaval atrelada à criação de um “poder de identidade” (ARANTES, 2013, p.16), existindo o fortalecimento de um imaginário de massa atrelado à uma âncora identitária cultural citadina, a qual estaria inserida numa estratégia muito mais ampla, que busca explorar ao máximo o capital simbólico da cidade, e onde determinadas imagens desempenham papel fundamental, vinculadas à publicização e divulgação da cidade de maneira idealizada. Dentre outras ações típicas dessa política, destacam-se a promoção de grandes equipamentos e grandes eventos culturais, onde o carnaval soteropolitano estaria vinculado de maneira expressa. Para o historiador e crítico espanhol Joan Fontcuberta (2017), a grande quantidade de imagens acumuladas na era da pós15



fotografia4, pelo “Homus photographicus” (p. 31), sobretudo a partir das redes sociais, não estaria relacionada à uma maior diversidade de conteúdos veiculados, mas sim à reprodução de clichês e padrões massivamente repetidos, numa sociedade que não buscaria conhecer, e sim reconhecer, “preferindo a segurança do conhecido à vertigem do descobrimento”5 (FONTCUBERTA, 2017, p. 169, tradução nossa). Podemos ainda associarmos essas composições ficcionais sobre a cidade à construção de álbuns de fotografias, onde o mesmo autor irá nos alertar para o caráter idealizado e subjetivo desse tipo de narrativa, na qual o álbum funcionaria como “um repositório de sorrisos no qual não caberia espaço para o conflito nem a tragédia”6 (FONTCUBERTA, 2017, p. 205, tradução nossa). As imagens apresentadas no conjunto de quatro livretos fotográficos, “Vinte e Cinco Arquiteturas na Avenida Oceânica”, “Vinte e Dois Bloqueios na Avenida Oceânica”, “Trinta e Três Sinalizações na Avenida Oceânica” e “Vinte e Seis Veículos na Avenida Oceânica”, e a strip “Todos os Camarotes na Avenida Oceânica em Ondina” que compõem parte deste trabalho, são fotografias registradas por mim em momentos anteriores aos carnavais de 2017, para a disciplina optativa, e de 2019, já imersa no processo do TFG, compreendendo o período do processo de montagem da infraestrutura da festa, meses precedentes à mesma. Numa perspectiva onde as fotografias encontram-se cada vez mais desmaterializadas e apartadas de seu suporte físico, existindo enquanto espectros sem corporeidade, ou informações em estado puro (FONTCUBERTA, 2017, p.126), é relevante destacar a insistência por contemplá-las e manuseálas impressas em uma dimensão objetual, enquanto construções discursivamente autônomas, num movimento distinto da experiência de visualizá-las através das telas de computadores ou smarthphones, práticas comuns da era dita pós-fotográfica. As experiências em campo foram repletas de descobertas e 17



desafios, sobretudo pela presença da câmera fotográfica, que costumava chamar atenção e despertar a curiosidade (ou rechaço) de muitos. Em certos momentos não me senti segura ou confortável a fotografar determinadas cenas, principalmente enquanto mulher e estando muitas vezes sozinha naqueles locais. Eram constantes os “avisos”, notadamente de seguranças ou encarregados das obras dos camarotes, de que eu “não podia tirar foto ali não” ou que deveria “abaixar essa câmera aí”7. Por outro lado, algumas pessoas me abordavam para tentar me “proteger” do possível perigo relacionado aos avisos que recebia, me aconselhando a não tirar certas fotos, ir em certos lugares, ou para ter cuidado com o potencial risco do roubo da câmera. Muitos ainda achavam que eu era jornalista e me procuravam no intuito de denunciar problemáticas relacionadas à montagem das estruturas do carnaval, particularmente na região da praça e praia de Ondina, ou simplesmente para me pedirem uma foto8, sozinhos ou em grupo, imaginando que pudessem aparecer em algum veículo midiático, mesmo que eu insistisse de que não era o caso. Os possíveis estranhamentos disparados pelos registros e questões aqui apresentados, em relação à Salvador, estão relacionados à não-associação desse tipo de imagem, e também de espacialidade, às visualidades mais óbvias e representações mais emblemáticas da mesma, amplamente divulgadas9, tanto em seu cotidiano comum quanto em sua conjuntura carnavalesca e espetacularizada. Certamente, essas não seriam as imagens escolhidas para compor um possível “álbum de fotografias” hipotético, nem no que diz respeito à cidade e nem à festa. Os acontecimentos retratados, muitas vezes, são de conhecimento da população, principalmente da parcela que é mais afetada diretamente por essas dinâmicas, mas costumam passar despercebidas aos olhares de muitos, sobretudo por tratar-se de uma prática frequente naqueles territórios, repetida anualmente. 19



Nesse sentido, as fotografias causam estranhamento a quem não esteja habituado a confrontar-se com esse tipo de representação do carnaval de Salvador, visibilizam e fazem emergir uma série de questões que não ratificam o seu imaginário idealizado sobre essas situações. Os limiares e confrontos entre esses dois momentos da cidade, que para determinados contextos podem aparentar conviver em harmonia, são repletos de tensões e disputas que costumam ser silenciadas pelos discursos hegemônicos, inclusive o fotográfico, de cidade e de festa. Desta forma, entendemos existir nessas imagens uma pulsão espacial (MORTIMER, 2017, p.17) que, para além da visualidade, demandaria um entendimento próprio do campo da Arquitetura e do Urbanismo, na tentativa do cotejamento das questões ali engajadas. Mais do que somente registros fotográficos desses momentos e espaços, onde há a construção e instalação da cidade carnavalesca sobre a cidade cotidiana, essas imagens tentam empreender o desafio de “fazer aparecer não as visibilidades mais óbvias, mas a invisibilidade relutante de hábitos e modos de se relacionar com o espaço construído e com suas representações que tenham sido por ventura recalcadas por tradições dominantes” (MORTIMER, 2017, p. 17). Nesse sentido, entendemos as narrativas empreendidas nos livretos como capazes de desestabilizar construções hegemônicas, possibilitando outros desdobramentos e elaborações, muitas vezes invisíveis nos discursos dominantes da cidade e da festa. Para a elaboração, inclusive metodológica10, das narrativas imagéticas presentes no conjunto dos quatro livretos referenciados e da strip sanfonada “Todos os Camarotes na Avenida Oceânica em Ondina”11, me debrucei sobre o trabalho do fotógrafo norteamericano Edward Ruscha, especialmente sobre sua série de livros de fotografias publicados entre as décadas de 1960 e 1970, no contexto da Pop Art americana. Dentre as publicações, algumas problematizam, através de imagens, a temática do ambiente 21



construído12 nas cidades de urbanismo espraiado (urban sprawl) na costa oeste dos Estados Unidos13, suscitando outros modos de relação com essas paisagens, a partir de fragmentos e tipologias reproduzidas em séries ou, como em “Every Building on the Sunset Strip” (1966), na montagem sequencial de fotografias, dos dois lados de uma avenida (a Sunset Strip, em Los Angeles, Estados Unidos), que sugere a experiência de um percurso por aquele espaço. O trabalho de Ruscha também foi fundamental para o desenvolvimento da linguagem visual do livro “Aprendendo com Las Vegas”, de 1972, de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, onde os autores utilizam-se de metodologias empregadas pelo fotógrafo em diversas análises e estratégias14, insinuando a relação significativa desse tipo de construção imagética com determinadas correntes do pensamento crítico atuantes no campo da Arquitetura e do Urbanismo naquele momento. Venturi et al. argumentam sobre as relações de determinadas arquiteturas com símbolos de comunicação, como os letreiros publicitários na cidade de Las Vegas, onde as relações espaciais dessas arquiteturas seriam empreendidas mais por símbolos do que por formas, em que as mesmas seriam ofuscadas, tornando-se, por sua vez, mais um símbolo de comunicação naquele paisagem. O discurso em torno do conceito de “galpão decorado” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p.118), lançado por eles, onde símbolos seriam aplicados livremente à uma estrutura convencional de pouca complexidade arquitetônica, em muito se assemelha ao que eu observava ao longo da Avenida Oceânica, sobretudo após a construção e montagem da minha própria Strip. Através dos livretos podemos vislumbrar, de maneira mais direta, essas estruturas onde a espacialidade é profundamente subordinada à sua dimensão simbólica e publicitária, questão ironizada na própria utilização do termo “Arquiteturas” para tratar-se das mesmas. Vale 23



ressaltar que essa dimensão simbólica está associada às fachadas principais das estruturas, não existindo a mesma preocupação com as fachadas restantes, o que também pode ser vislumbrado nas imagens, sobretudo nos registros feitos na praia. Mesmo tratando-se de um contexto histórico distinto do atual, esses dois referenciais teóricos, as publicações de Ruscha e o livro “Aprendendo com Las Vegas”, foram importantes no desenvolvimento do meu pensamento crítico sobre as espacialidades da cidade carnavalesca soteropolitana. As discussões e questionamentos suscitados por ambos em muito se assemelhavam ao que eu observava e apreendia ao longo da Avenida Oceânica, especialmente após a construção da minha própria strip, num processo de montagem que não se encerra e se resume à sua contemplação total em caráter impresso e contínuo, ideia de completude que é ironicamente sugerida em seu título. Seu grande comprimento torna quase impossível uma visualização completa de maneira simultânea, e nesse sentido inúmeras são as possibilidades de leitura do objeto, como um jogo com aquele que a manuseia, permitindo que olhares mais atentos possam deter-se à detalhes possivelmente camuflados e sua conformação objetual sanfonada permite outras associações imaginadas e manipuladas pelo próprio leitor, proporcionando outras experiências e interpretações daquelas imagens e, consequentemente, daqueles espaços. As questões suscitadas pelos referenciais citados se detém, notoriamente, em considerações e discussões que emergem acerca do urbanismo rodoviarista que imperava naquele contexto e paisagem norte-americanos daquele momento (LEAL, 2015). A conformação sequencial das fotografias de Ruscha em “Every Building on the Sunset Strip” sugerem a experiência do percurso por aquele ambiente construído, sobretudo na escala do automóvel. A própria metodologia adotada pelo fotógrafo, “imitada” pelos 25



outros autores, estava articulada à essa dimensão, onde os registros foram feitos a partir de uma câmera acoplada ao fundo de sua caminhonete e configurada para fotografar serialmente em intervalos de tempo pré-determinado (QUICK, 2015, p.120). Após a montagem de “Todos os camarotes na Avenida Oceânica em Ondina”, me chamava atenção, além do impacto visual gerado pela visualização das fachadas de maneira frontal, o porte monumental de toda aquela conjuntura espacial carnavalesca, que ultrapassava em muito a escala do pedestre e também a de um automóvel comum. Pensando na experiência do percurso por aquela paisagem, que veículo daria conta de, de certa forma, corresponder-lhe dimensionalmente? Ou, a que tipo de veículo aquele espaço, naquela escala, estaria tentando adequar-se? Em que medida essa festa, em sua implantação sobre outras práticas habituais da cidade, tentaria profaná-la para atender à determinadas lógicas, mas também seria profanada por ela? Nesse sentido, a partir dos estudos empreendidos, que irão extrapolar as questões contemporâneas presentes nas minhas imagens, numa “necessidade de montagens temporais para toda reflexão consequente sobre o contemporâneo” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p.71), mobilizamos como atravessador do trabalho a figura do trio elétrico, entendendo existir um adensamento nessa figura de discussões consideradas fundamentais para pensar as relações, não somente espaciais, de Salvador com o carnaval. Através do entrecruzamento de fontes, no desafio de pensar por nebulosas (PEREIRA, 2018), entendemos que ao friccionar essas diferentes camadas numa malha de acontecimentos mais ampla e numa tentativa de aproximação e entendimento dos processos historicamente construídos e implicados nessas questões, entre festa e cidade. E, na tentativa de empreender o pensamento por imagens (MORTIMER, 2018), outros arquivos fotográficos, além do meu, também foram mobilizados, como os álbuns de família 27



do acervo particular da fotógrafa amadora Aracy Esteve Gomes15, a Fundação Pierre Verger, o Instituto Moreira Salles, onde me debrucei sobre as imagens dos fotógrafos Marcel Gautherot e Mário Cravo Neto, e a Fundação Gregório de Mattos, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Salvador, onde se localiza o Arquivo Histórico Municipal da cidade. Consideramos também essencial o levantamento de fontes primárias como fragmentos de jornais, letras de músicas e relatos orais de outros foliões, cuja experiência abarcava outros tempos e outros carnavais, numa periodicidade que extrapola a minha breve vivência carnavalesca, trazendo uma série de questões que muitas vezes não apareciam nos discursos oficiais sobre a festa. No contexto do carnaval, me interessava vislumbrar as relações empreendidas entre esses sujeitos e Salvador, e como essa festa foi se utilizando, de modos distintos, de diferentes espaços desta cidade, culminando em sua conformação e localidade atuais. Esses relatos de outros foliões estão apresentados no que chamei de “mapas psico.geo.carnavalescos”, numa referência aos mapas psicogeográficos dos Internacionais Situacionistas16 que, para além de representações formais do espaço, se utilizavam de outros parâmetros e relações de afetividade entre os sujeitos e a cidade (JACQUES, 2012). Ademais, para a construção dos mapas, além de trechos dos relatos, interpus uma série de outros elementos como jornais, letras de músicas, imagens de arquivos e fotografias pessoais dos foliões, complexificando essas narrativas e a construção empreendida no trabalho, friccionando-as com esses outros fragmentos. Para acessar e ouvir as músicas utilizadas ao longo deste trabalho, dimensão essencial à discussão sobre o carnaval, foi criada uma playlist no serviço de streaming Spotify, intitulada “Atrás do Trio Elétrico”, cujo código “QR” e tutorial de como acessá-la encontram-se a seguir em anexo. Ouvindo a música “Atrás do Trio Elétrico”, de Caetano Veloso, que 29





intitula esse trabalho, somos capazes de perceber a heterogeneidade de vozes e outros ruídos que atravessam à musicalidade da guitarra, numa multiplicidade de sons e acontecimentos que se dão no espaço da rua, num estado de rua (SCHVARSBERG, 2011) atrás do trio elétrico. Nesse sentido, a mobilização da figura do trio elétrico é crucial para pensarmos na relação entre rua e carnaval, em Salvador, entendendo o momento de sua criação, em 1951, como um ponto de inflexão importante que acarretará numa série de questões significativas para tratarmos cidade e festa, a partir desse momento, culminando em sua atual configuração. O trabalho propõe lançar luzes sobre as complexidades da relação festa e cidade, mais especificamente da relação carnaval e Salvador, fazendo emergir tanto as fissuras no predomínio de um urbanismo ordenador das cidades (JACQUES, 2011), como as fragilidades de uma festa que se pretende como inversora temporária da normalidade e cotidianidade da vida urbana (FERREIRA, 2004). Indo na contramão das sucessivas tentativas de ordenamento do carnaval soteropolitano, não existe ordem para a leitura desse trabalho. Para começar, o leitor pode escolher o caderno que mais lhe instigue, o que considere ter as imagens que mais lhe agradam (ou desagradam), o importante é manter o movimento e o diálogo entre eles - não pode ficar parado! - inclusive para criar suas próprias conexões e interpretações. Aqui é permitido se perder na brincadeira: é carnaval! Só não deixe de ir atrás do trio elétrico.

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NOTAS 1. O termo será utilizado ao longo do trabalho segundo o pensamento de Jacques e Pereira no texto “Modos de Pensar” (JACQUES, PEREIRA, 2018). 2. Carvalho (2013, p.51) chamará essa configuração de “cidade efêmera do carnaval”, onde, em seu entendimento, se estruturaria uma outra cidade sobre a cidade cotidiana. 3. Gostaria de agradecer, mais uma vez, à minha orientadora Junia Mortimer, que desempenhou (e desempenha) papel essencial e especial nessa descoberta e encontro, tão significativos e bonitos da minha trajetória, me encantando com o seu pensamento por imagens. 4. Segundo Fontcuberta (2017) “A pós-fotografia faz referência à fotografia que flui no espaço híbrido da sociabilidade digital e que é consequência da superabundância visual [...] A situação foi aguçada pela implantação da tecnologia digital, internet, a telefonia móvel e as redes sociais. Como se fossem impelidas pela tremenda energia de um acelerador de partículas, as imagens circulam pela rede à uma velocidade de vertigem”. No original: “La postfotografía hace referencia a la fotografía que fluye en el espacio híbrido de la sociabilidad digital y que es consecuencia de la superabundancia visual [...] La situación se ha visto agudizada por la implantación de la tecnología digital, internet, la telefonía móvil y las redes sociales. Como si fuesen impelidas por la tremenda energía de un acelerador de partículas, las imágenes circulan por la red a una velocidad de vértigo” (FONTCUBERTA, 2017, p.7, tradução nossa). 5. No original: “prefiriendo la seguridad de lo sabido al vértigo del descubrimiento” (FONTCUBERTA, 2017, p.169). 6. No original: “un repositorio de sonrisas en el que no había cabida 35



para el conflicto ni la tragedia” (FONTCUBERTA, 2017, p.205). 7. Questão que pode ser vislumbrada através de interrupções na própria strip, pois em determinados locais realmente não me senti segura, especialmente em frente aos camarotes de maior porte, sempre repletos de muito movimento e fiscais. 8. Tenho uma série de lindos retratos guardados dessas visitas, sobretudo dos vendedores ambulantes que já estavam instalados no circuito no período em que o fotografei. Como não portava nada além da câmera, infelizmente não pude anotar nenhum desses contatos para devolver-lhes a fotografia, e aos que passei o meu, não recebi resposta. Além dos que vinham a mim diretamente pedir uma foto, também existiram aqueles que, quando se viram diante da objetiva, sorriram ou acenaram, ou também os que escondiam o rosto para não aparecer. Muitas dessas situações podem ser observadas através de um olhar atento às imagens. 9. Destaca-se a intensa relação da gestão municipal atual de Salvador, do Prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto, com as redes socias, onde imagens da cidade são sistematicamente publicizadas, sobretudo as que concernem à novas obras, pontos turísticos e eventos culturais. Tanto o perfil pessoal do Prefeito quanto o da Prefeitura possuem milhares de “seguidores”, espectadores que consomem as inúmeras postagens - e imagens - publicadas todos os dias. 10. Antes das idas à campo com a câmera, realizei um breve estudo sobre o trabalho de Ruscha e suas práticas fotográficas, o que teve importância significativa no meu processo com as imagens, não somente para a montagem e construção posterior dos livretos, mas no que concerne à apreensão daqueles espaços e à dimensão técnica da fotografia, com a utilização, com certas adaptações, de algumas metodologias empreendidas pelo fotógrafo.

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11. Optei por acrescentar “em Ondina” no título desse livreto pois a montagem expõe os camarotes de maior escala construídos no bairro referenciado, existindo também outros camarotes na mesma Avenida, no bairro da Barra, de menor porte e impacto sobre o espaço público, construídos majoritariamente dentro ou sobre estruturas pré-existentes. 12. O próprio termo “ambiente construído” (built environment), segundo Mortimer (2017, p.22) se originaria no contexto estadunidense dessas décadas, numa tentativa de “constituir um campo multidisciplinar que envolvesse o estudo de questões políticas, sociais e culturais na construção de edificações e da paisagem urbana”. 13. Podem ser citados: “Twenty Six Gasoline Stations” (1963), “Some Los Angeles Apartments” (1965), “Every Building on the Sunset Strip” (1966), “Thirty Four Parking Lots in Los Angeles” (1967), “Nine Swimming Pools and a Broken Glass” (1968) e “Real State Opportunities” (1970). 14. Em nota de página, sobre determinada imagem apresentada na publicação, os autores escrevem: “Detalhe de uma elevação da Strip à maneira de Edward Ruscha. Fazem-se mapas do Canal Grande e do Reno mostrando a rota margeada por seus palácios. Ruscha fez um da Sunset Strip. Nós o imitamos, fazendo uma representação gráfica da Las Vegas Strip” (VENTURI, SCOTT BROWN, IZENOUR, 2003, p.64). 15. A pesquisa “Imaginários e Visibilidades: práticas urbanas em fotografias soteropolitanas (1950-1970)” propõe pesquisar o arquivo de Aracy Esteve Gomes, professora e fotógrafa amadora, no período de 1950 a 1970, em Salvador, Bahia, utilizando um determinado conjunto de documentos deste arquivo - entre imagens fotográficas, câmeras e cartas - como ponto de partida, “lugar de problematização”, para discutir espaço, sociedade e cultura, na 39



perspectiva da história da cidade e do urbanismo. O projeto se desenvolveu no âmbito do grupo Laboratório Urbano (PPGAU/ UFBA), desde 2017, sob a coordenação da Prof. Junia Cambraia Mortimer, da qual fui bolsista de Iniciação Científica. 16. Grupo francês da década de 1960, crítico ao pensamento urbanístico moderno, que além dos mapas citados, desenvolveu outras concepções como a deriva urbana e a errância pelas ruas (JACQUES, 2012). Dentre uma série de participantes, destaca-se Guy Debord, referência que também será utilizada no trabalho aqui apresentado.

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ATRÁS DO TRIO ELÉTRICO



A rua, para além de sua materialidade e questões projetuais urbanísticas, pode ser abordada enquanto espaço de socialização, de encontro, de afetos, de imprevistos, abrigando as mais heterogêneas atividades e apropriações. Schvarsberg (2011, p.17) chamará de estado de rua essa dimensão da experiência urbana, sujeita à “coexistência de práticas as mais heterogêneas e conflitantes”, ressaltando, no uso do termo estado, seu caráter dinâmico, momentâneo e sempre em movimento. A rua configurase como elemento comum na cidade, compartilhada de diferentes maneiras entre seus habitantes, em suas mais distintas práticas, usos e ocupações possíveis, o que acarreta em constantes disputas e conflitos. Deste modo, historicamente foi alvo de inúmeras tentativas de domesticação, ordenamento e pacificação, tanto no que concerne à sua dimensão física quanto à dimensão da experiência na cidade (JACQUES, 2012). Festas populares, como o carnaval, costumam estar intimamente relacionadas ao uso da rua e do espaço urbano de maneira distinta da habitual, de modo que a cidade pode ser apropriada e experimentada pela população, coletivavemente, em circunstâncias diferenciadas de suas práticas cotidianas. O sociólogo Roberto DaMatta (1997) irá colocar que: No carnaval, porém, embora exista um local especial para os desfiles das escolas de samba1, a “rua”, tomada em seu sentido mais genérico e categórico, e em oposição à “casa” (que representa o mundo privado e pessoal), é o local próprio do ritual. Assim, o universo espacial próprio do carnaval são as praças, as avenidas e, sobretudo, o “centro da cidade” que, no período do ritual, deixa de ser o local desumano das decisões impessoais para se tornar o ponto de encontro da população (DAMATTA, 1997, p.56).

Se para uma determinada vertente do pensamento urbanístico 45



moderno funcionalista, “a casa, a rua e a cidade são pontos de aplicação do trabalho humano e devem estar em ordem” (LE CORBUSIER, 2009, p.15), essa experiência festiva conjunta, na ambiência urbana, emerge como elemento de desequilíbrio possível, tensionadora do urbanismo em seu caráter disciplinador do espaço, o que, muitas vezes, implica tentativas de domesticação de festas e a higienização, ou até eliminação, de seus locais de ocorrência2 (SUDRÉ, 2010, p.10). Sendo considerado, em 2005, pelo livro dos recordes Guinness Book como “o maior carnaval de rua do mundo”, a relação do carnaval de Salvador com suas ruas é complexa, atravessada por uma série de disputas, histórica e espacialmente construídas sobre determinadas regiões, que culminaram em sua configuração atual. As ruas soteropolitanas têm importância essencial para o entendimento das transformações de seu carnaval, pois determinadas conformações espaciais da cidade foram determinantes para que alguns tipos de celebrações fossem possíveis, assim como certos tipos de manifestações foram fundamentais para se visionar uma série de modificações que foram realizadas nos espaços urbanos da cidade.

A festa e a cidade O que se conhece atualmente por “carnaval brasileiro” é fruto de diversos discursos, trocas, transformações e disputas empreendidas ao longo do tempo de sua existência. Em Salvador, assim como em outras cidades e regiões do país, o carnaval remonta ao período colonial, sendo proveniente do Entrudo3 de Portugal. É festejado nos dias anteriores ao que a religião católica denomina Quaresma, momento de grandes restrições e limitações aos fiéis, que consiste nos quarenta dias anteriores à Páscoa. Assim, os dias anteriores ao início desse período restritivo passaram a ser intensamente celebrados pela população, com grandes excessos 47



e exageros, como forma de compensar os dias de carência que estavam por vir (FERREIRA, 2004, p. 68). No Brasil, a celebração iria adquirir algumas características próprias, com a presença de outras culturas, como as africanas, a intensa participação dos diferentes estratos da sociedade e um caráter tipicamente urbano. Ferreira (2004, p. 80) destaca que era comum, durante o período, que grandes fazendeiros e pequenos lavradores deixassem suas habitações rurais e se dirigissem às vilas mais próximas para participarem das diversões. De finais do século XIX até meados do século XX, o carnaval incentivado pela elite soteropolitana será cada vez mais demarcado territorialmente, assim como a própria cidade de Salvador (PINHEIRO, 2011). Os grandes bailes da elite aconteciam desde meados do século XIX, realizados nos salões das mansões, em teatros importantes da cidade e nos grandes clubes (MIGUEZ, 1996, p.55), e em finais do mesmo século são criados seus primeiros clubes carnavalescos. Os locais escolhidos para os desfiles dos clubes, com ornamentados carros alegóricos e membros pomposamente fantasiados, se consolidavam como os mais valorizados comercialmente da cidade e muitos foram palco de importantes reformas urbanas4, sugerindo uma tentativa de afirmação de poder na presença dessa população em certas ruas soteropolitanas. A rua irá, paulatinamente, se converter num espaço privilegiado, palco de novidades, frequentado pela população mais abastada “recebendo a moda, o footing, a vida social” (SCHWARCZ, STARLING, 2018, p. 350). Uma dessas novidades muito significativa seriam os automóveis, sinônimos de modernidade, tecnologia e progresso dos novos tempos. A chegada dos automóveis movidos a motor em Salvador, no início do século XX (PINHEIRO, 2011, p. 201), e as subsequentes reformas urbanas de alargamento e construção de novas avenidas, que propiciavam 49



uma melhor fluidez de veículos, contribuíram para que uma forma de diversão carnavalesca se tornasse popular nesse período: o corso. A prática, amplamente aderida pelas classes mais abastadas, consistia no desfile de carros ricamente ornamentados onde as famílias desfilavam e se exibiam fantasiadas, atirando confetes e serpentinas durante o trajeto, de dentro do espaço privilegiado de seus automóveis. Era comum que famílias de menor poder aquisitivo alugassem carros para desfilar no carnaval, denunciando o status que era concedido a essa atividade (UZÊDA, 2006, p. 149). As elites, em geral, se afastavam da rua festejando nos espaços privados dos bailes, e, quando no espaço urbano, a participação dessa classe era caracterizada, geralmente, pela mediação de carros e pela separação espacial proporcionada pelo caráter de espetáculo dos desfiles (MIGUEZ, 1996), que garantia certo distanciamento entre os protagonistas e o público espectador. Salvador, nesse momento, passava por um processo de alterações urbanas que buscava modernizar suas fisionomias e hábitos. Em 1935 ocorre a “I Semana de Urbanismo” e em 1942 é criado o Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade de Salvador (EPUCS). Esses dois acontecimentos podem ser vistos como pontos de inflexão na forma de pensar a cidade, com o estabelecimento de ideais e pensamentos modernistas no campo da arquitetura e do urbanismo, que aos poucos, tentavam alterar as feições de Salvador. A partir de 1950, num contexto de redemocratização do país, após o fim do Estado Novo (1937-45) e da Segunda Guerra Mundial (193945), a Bahia e o Nordeste vão passar por um grande processo de industrialização5, que trará profundas repercussões nas cidades. A capital baiana passa de 417 mil habitantes, em 1950, para mais de 1 milhão em 1970 (SAMPAIO, 1999, p.118), aumento significativo de sua população, inclusive em termos de concentração populacional em relação ao estado e, consequentemente, da extensão de sua ocupação territorial urbana. Uma série de obras desse período sinalizavam os parâmetros modernos que começavam a operar 51



em sua produção arquitetônica e urbanística, os quais, mesmo figurando como exceções na paisagem, apontavam em direção à nova fisionomia desejada para a cidade. O automóvel começou a ter grande destaque nas práticas de cidade e também da festa nesse mesmo momento, sobretudo a partir da década de 1930 (UZÊDA, 2006). No carnaval, os espectadores se apertavam nas bordas das avenidas para vê-los passar e já se observam modificações no trânsito e nos horários/frequência dos transportes públicos durante os festejos, sugerindo a mobilização cada vez maior de determinados espaços da cidade para o carnaval. Normas disciplinares de conduta procuravam ordenar as práticas dos automóveis e dos pedestres, buscando a maior fluidez possível e, sobre os foliões, numa portaria da Secretaria de Segurança Pública, de 1943, lê-se que: “só poderão transitar pelo meio fio, conservando-se a direita de modo a não interromper o trânsito ou tráfego de veículos. Deverão transitar pelos passeios e meio fio observando igualmente, o sentido de mão e contra mão” (UZÊDA, 2006, p. 250). O trecho explicita não somente o protagonismo e maior importância dos automóveis nas ruas, mas também utiliza termos característicos desse contexto, como “mão e contra mão”, para referir-se aos transeuntes. Nesse contexto de protagonismo e popularização automobilística, após uma série de reformas urbanas que, em sua maioria, privilegiaram a escala do carro, e também do considerável aumento populacional que vinha experimentando a cidade, em 1951, um elemento “com dimensões de uma verdadeira revolução” (MIGUEZ, 1996, p. 87), surgirá em Salvador e irá transformar profundamente as bases do carnaval baiano: o trio elétrico. A façanha de entrar pelo meio do corso na Rua Chile6, à bordo de um veículo Ford “fobica” 1929 e tocando instrumentos musicais sonoramente amplificados (GÓES, 1982, p.18), da “Dupla Elétrica”7 Dodô e Osmar8, será abordada como evento (VEYNE, 1982) que provocará um momento 53



de inflexão fundamental no carnaval, principalmente em suas relações sócio-espaciais. Em entrevista concedida a Góes (1982), em 1979, Osmar Macedo narra que: Quando despontamos na avenida, acabamos com o corso, pois vinha atrás de nós uma massa compacta de gente que pulava e se divertia como nunca antes ocorrera na Bahia. Nossa emoção era enorme; mais de 200 metros de povo atrás da fobica. O dado pitoresco dessa história foi que quando subíamos a Rua Chile, ao passar da Praça Castro Alves, pedi ao motorista, um amigo nosso, que parasse o carro para tocarmos ali, onde o espaço é mais amplo [...] então ele respondeu que já havia tempo a fobica estava quebrada, havia queimado o disco de embreagem, estava sem freio e com o motor desligado. O carro andava empurrado pelo povo. Este fato ilustra bem como essa maneira de se brincar ao som do Trio Elétrico, de segui-lo, é coisa mesmo do povo, não foi ninguém que orientou ou disse como fazer (GÓES, 1982, p.19).

Através do relato de um de seus criadores é possível vislumbrar algumas questões essenciais, no sentido do entendimento da transformação da festa e suas espacialidades a partir desse momento. Como o automóvel, em relação a determinadas práticas urbanas, a figura do trio elétrico também tensionará uma série de práticas empreendidas durante o carnaval e sua relação com a cidade. É após uma série de mudanças urbanas em Salvador que o trio elétrico, um automóvel ornamentado que levava à bordo uma dupla de músicos e equipamentos amplificadores de som, vai circular. Uma cidade, em teoria, mais organizada, com novas e largas avenidas pensadas e projetadas para a melhor fluidez de veículos, que possibilitarão não somente a circulação do trio, mas da multidão que esse viria a “arrastar”. O trio, enquanto automóvel, 55



ao mesmo tempo em que se apropria do desenho urbano moderno, para sua circulação, profana-o, numa ressignificação temporária do espaço, durante a festa, onde há uma ocupação maciça, pelo povo, do espaço público e das ruas desenhadas e imaginadas na escala do carro. Nesse sentido, a figura do trio, desde sua criação, assim como a própria conjuntura do carnaval, podem ser abordados como desestabilizadores de lógicas dominantes no contexto dos fazeres da cidade e do urbanismo, sendo considerada como “um evento que se destaca sobre um fundo de uniformidade, é uma diferença” (VEYNE, 1982, p.12), um momento de inflexão que, em seus desdobramentos, provoca rupturas, tensões e instabilidades.

A festa na cidade A concentração de algumas comemorações carnavalescas soteropolitanas em determinadas regiões e ruas da cidade, como acontece na configuração dos circuitos atuais9, não é recente e esses locais também são fundamentais para entendermos quais dessas comemorações, praticadas de diferentes maneiras e em distintos espaços, historicamente foram consideradas como símbolo e expressão do que entende-se por “Carnaval de Salvador”. Desde o início do século XX, algumas dessas celebrações, como os desfiles dos préstitos e dos corsos, práticas desempenhadas normalmente pelas classes mais abastadas, aconteciam em territórios que se consolidavam como “áreas nobres” da cidade, e muitos foram palco de importantes reformas urbanas, como a Ladeira da Montanha, a Rua Chile, a Rua Carlos Gomes e a Avenida Sete de Setembro, ruas próximas ao Centro Histórico. Nesse sentido, essas regiões que foram mais apropriados pelas comemorações também sofreram, ao longo do tempo, sucessivas tentativas de ordenamento e organização de seus espaços, sobretudo após a criação do trio 57



elétrico. Subindo pela Ladeira da Montanha em direção à Rua Chile, em 1951, o trajeto do primeiro trio elétrico de Dodô e Osmar já insinua a aproximação dessa prática à esses territórios da cidade. Para Caetano Veloso, o trio elétrico “foi uma solução estética que o povo de Salvador encontrou para continuar se manifestando ativamente” (VELOSO, 1977, p.91). Nessa nova maneira de “pular carnaval”, de participar e dançar na rua seguindo o trio, tendo como parceiros possíveis a própria multidão (MIGUEZ, 1996, p.87), uma temporalidade distinta seria provocada pelo movimento dos corpos, musicalmente afetados, onde “a dança condensa a música e dilui a arquitetura. Transforma o espaço em movimento: temporaliza o espaço” (JACQUES, 2011, p.89). Se o corpo, através da dança, transforma o espaço, a experiência da multidão dançante que ocupa as ruas modernas de Salvador vai desestabilizar determinadas práticas de cidade e de festa, empreendidas no momento histórico referenciado. Na notícia intitulada “Perseguição aos trios elétricos?”, do jornal A Tarde, de 1958, lemos que: A polícia resolveu combater os “trios elétricos” impedindo a sua passagem pelo principal trecho da Avenida. Essa medida se prende, ao que se acredita, ao fato da Prefeitura ter contratado os serviços do principal desses trios e com ele fazer a propaganda do prefeito [...] Outras fontes alegam que essa perseguição da polícia visa única e exclusivamente diminuir a aglomeração na Avenida que os “trios” provocam, para que os carros com placas de polícia e tomados emprestados a todos os órgãos federais e autárquicos possam melhor se locomover, conduzindo foliões (PERSEGUIÇÃO…, 1958).

Através do trecho jornalístico é possível apreender que a participação dos trios elétricos e da massa que os acompanha, tensionam 59



uma ordem pré-estabelecida de cidade e de festa, em Salvador, nesse momento. A medida tomada pelo poder público denuncia uma tentativa de recomposição da disciplina desestabilizada por práticas desdobradas pela trajetória de uma série de trios. Durante o carnaval, a fim de preservar a transcorrência e fluidez de outras manifestações, sobretudo as empreendidas pelas classes mais abastadas e pela política, como o desfile do corso e de determinado trio elétrico “principal”, contratado à serviço da Prefeitura, preterese a prática coletiva dos foliões transeuntes, de maneira similar ao que ocorria, no período, em relação à determinadas ordens hegemônicas do planejamento urbano. A partir da década de 1960, a inventividade “artesanal” de Dodô e Osmar, que desde 1951 já fazia sucesso pelas ruas soteropolitanas, ganhará uma nova dimensão e proporção. Segundo Góes (1982), será Orlando Campos10 quem irá instituir o caráter empresarial dos trios elétricos e a fixação do fenômeno, vislumbrando seu potencial enquanto “negócio”, especialmente publicitário11, provocando profundas mudanças na relação do trio com a festa, e consequentemente, da festa com a cidade. O Trio Elétrico Tapajós revolucionou as dimensões e o aspecto alegórico dos trios, tendo patrocínio da empresa de refrigerantes Coca-Cola desde o primeiro ano em que desfilou no centro de Salvador, em 1962. Nesse mesmo ano, a Prefeitura promove e patrocina o primeiro concurso de trios elétricos (MIGUEZ, 1996), insinuando a popularidade da modalidade no carnaval da cidade. E foi o Trio Elétrico Tapajós, de Orlando Campos, que em 1969 foi ao Rio de Janeiro, junto à Caetano Veloso, para o lançamento de sua música “Atrás do Trio Elétrico”, lançada no mesmo ano, consolidando o fenômeno e sua visibilidade em escala nacional. Em um informe do jornal Diário de Notícias, em 7 de fevereiro de 1970, intitulado “Secretaria de Segurança já montou esquema do Carnaval”, lemos as medidas esquematizadas pelo poder público 61



para o policiamento urbano durante o período, contando com o auxílio das Forças Armadas, Polícia Militar e Corpo de Bombeiros. Nesse momento, o trio elétrico já ganhara bastante destaque no carnaval de Salvador, atraindo uma série de turistas nacionais e internacionais (GÓES, 1982). As regiões da cidade são divididas em “postos de policiamento de emergências”, “sub-postos” e “setores”, cada qual com a discriminação específica de ruas e bairros que estariam sob a responsabilidade das organizações citadas. Com base nas informações contidas no informe citado, foram elaborados os mapas12 1 e 213, na tentativa de vislumbrar quais seriam essas regiões mobilizadas pelo carnaval, em Salvador, no ano referenciado. Entendemos que essas regiões estariam associadas à comemorações de maior expressão e escala no contexto carnavalesco, o que acarretaria em ações do poder público sobre esses territórios. No entanto, a partir dessas questões, é possível perceber que apesar de uma concentração notável e atividade diferenciada e complexificada no centro, observa-se que anteriormente essa festa apresentou uma maior organicidade em relação à cidade, questão que aparece também na maioria dos relatos dos foliões de maior idade nos “mapas psico.geo. carnavalescos”, relatando a existência, com eventuais participações, de comemorações nos mais distintos bairros de Salvador, inclusive com a presença de trios elétricos, o que não aparece no relato dos foliões mais jovens. O mapa 3, realizado com base nas informações divulgadas em 2019 pela Transalvador (Superintendência de Trânsito de Salvador), refere-se ao zoneamento de trânsito planejado para o carnaval de 2020, cobrindo áreas notavelmente distintas do mapa de 1970. O acesso à determinadas regiões da cidade, através de veículos automotivos, é restrito durante os dias de festa, sendo permitida a circulação de moradores, em horários e locais definidos14, 63









através de cadastro prévio realizado no site do órgão referenciado. Os territórios definidos pelo zoneamento do mapa compreendem os circuitos de maior destaque e visibilidade dos carnavais mais recentes, sobretudo a partir dos anos 2000, e é notável a concentração desses esforços apenas nessas regiões. Além de compreenderem espacialidades distintas, as diretrizes também insinuam uma postura diferente em relação à Salvador. No mapa de 1970, os postos e setores são diferenciados e nomeados de acordo com as ruas, praças e bairros da cidade15, inclusive com a utilização de termos como “Prédio da ex-Sub-Delegacia” ou “Antigo Pronto Socorro”, remetendo à memória urbana dessa cidade, que seria de senso comum e entendimento da população. Porém, no mapa de 2020, a cidade é dividida em zonas classificadas por cores e números genéricos, com menções mais específicas à determinadas ruas de maior circulação, sobretudo avenidas de vale, como a Avenida Centenário e o Vale do Canela. Esse vínculo distinto em relação à cidade também é observado nos relatos dos foliões sobre suas experiências na festa. Os foliões de maior idade costumavam relatar com maiores detalhes os espaços que frequentavam, nome de ruas, praças, enquanto que os mais jovens normalmente se detém em referências mais genéricas como “Barra” e “Ondina”. Nas músicas, presentes ao longo dos “mapas psico.geo.carnavalescos”, também é observada uma mudança na ligação com a cidade. Uma série de letras como “Frevo Novo”, de Caetano Veloso, e “Depois que o Ilê passar”, do Ilê Aiyê, fazem referências diretas à locais como a Praça Castro Alves, a Avenida Sete de Setembro ou o Curuzu, no bairro da Liberdade. Através delas também podemos vislumbrar quais espaços da cidade estavam sendo mais mobilizados pela festa nesses momentos, e em músicas mais recentes, sobretudo a partir da década de 1990, outros locais, como o Farol da Barra, começam a aparecer, insinuando o engajamento desses espaços ao carnaval da cidade. 71



Apesar de abrangerem diferentes aspectos e questões sobre organização e atuação dos poderes públicos em Salvador durante o carnaval, através dos mapas, e das fricções empreendidas entre eles, podemos vislumbrar como e quais locais estariam sendo mais ou menos mobilizados na cidade nesses dois momentos16. O mapa de 1970 envolve uma série de regiões, desde o Centro Histórico até bairros mais distantes do mesmo como Itapuã, não havendo nenhuma menção nem ao bairro da Barra, nem ao de Ondina. No entanto, cinquenta anos mais tarde, numa outra lógica e gestão da festa, o mapa de 2020 irá concentrar-se justamente nessas áreas, onde atualmente se localiza o circuito Dodô, de maior destaque e visibilidade no carnaval soteropolitano (SILVA, 2019). A mesma concentração é observada no mapa do cruzamento dos relatos dos foliões, nos “mapas psico.geo.carnavalescos”, onde as narrativas mais recentes costumam estar mais concentradas e relacionadas à essas regiões. Nesse sentido, os desdobramentos da festa, sobretudo em termos de escala, intimamente relacionados ao desenvolvimento em paralelo do trio elétrico, se relacionam à mobilização e maior concentração do carnaval soteropolitano em determinados espaços da cidade, na medida em que o mesmo se consolidava e atraía uma série de outros interesses, sobretudo mercadológicos, midiáticos e turísticos. E se por um lado, ou durante algum momento, o trio se destacou por ser uma experiência de maior caráter popular no carnaval, por outro silenciou expressões que não sobreviveriam à sua potência técnica, sonora e visual.

*** Uma série de outros acontecimentos, nesse mesmo contexto histórico, sobretudo no que diz respeito à dinâmicas urbanas de Salvador, são importantes para o entendimento das transformações 73



do carnaval e sua relação com a cidade no período. A migração paulatina das principais atividades administrativas, econômicas e comerciais para outras regiões de Salvador, com o surgimento de novos polos econômicos, já estava em curso no Centro Histórico, progressivamente ocupado por classes mais baixas (ALMEIDA, 2008, p. 39). Bairros outrora tradicionais da classe média soteropolitana, como o Barbalho e os Barris, vão perdendo o prestígio social, com a migração paulatina dessa população para localidades na direção sul da cidade17, como Campo Grande, Graça, Vitória e Barra (PINHEIRO, 2011). Em conjunto à esse momento de transformações urbanas e arquitetônicas em Salvador, o turismo começa a se sobressair como uma atividade importante para a economia, ganhando destaque inclusive em políticas públicas. Sob uma ótica mais ampla, em 1965 são criados pelo governo nacional a Embratur (Empresa Brasileira de Turismo) e o Conselho Nacional de Turismo, evidenciando a adoção dessas políticas de investimento na área, como um dos fatores importantes para impulsionar a economia da época. Essas políticas nacionais viriam a reverberar diretamente nas cidades, principalmente nas capitais. Nesse período, o turismo se constitui como uma atividade econômica central nas políticas soteropolitanas, sendo chamado de a “indústria-sem-chaminés” (SAMPAIO, 1999, p. 119). O asfaltamento da estrada Rio-Bahia (atual BR 116), em 1963, integrou o Estado às regiões a sul do Brasil e a popularização do uso do automóvel, dentro do contexto de expansão rodoviária e econômica do país, contribuíram no incremento da atividade turística que ocorreu no início de 1970. Esse incremento teria provocado, segundo Sampaio (1999), valorização do patrimônio artístico e cultural, reestruturações espaciais urbanas e inserção da cidade nos circuitos nacional e internacional. Na Bahia, em finais da década de 1960 houve a criação da Hotéis da Bahia S. A.18, 75



em 1968, para superar o déficit e fomentar o setor hoteleiro no Estado, e da Superintendência de Turismo do Salvador (SETURSA). A cidade acompanhará a construção de grandes hotéis, como o Grande Hotel da Barra e o Othon Palace Hotel, no bairro de Ondina. Se em 1969, a nave Apollo 11 aterrissou na Lua e o homem pisou em solo lunar pela primeira vez, em 1972, a Caetanave19 aterrisa nas ruas soteropolitanas, acompanhada por uma multidão trieletrizada. Ainda na década de 1960, Caetano Veloso escreve, em uma de suas músicas, que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”20, e também que “a Praça Castro Alves é do povo [...] todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão”21, insinuando a forte adesão da população à nova prática da festa e também os tensionamentos que ela gerou em relação à outras práticas carnavalescas empreendidas no momento, muitas das quais não sobreviveriam à sua potente criação. Numa notícia do jornal A Tarde, de 12 de fevereiro de 1975, intitulada “O Carnaval de hoje”, lemos que: “A Praça Castro Alves é do povo...” (Caetano Veloso), mas também a rua e a avenida. O trio-elétrico, criado há 25 anos, por Dodê e Osmar, tem sido, nos últimos tempos, o maior animador do carnaval baiano. Seus acordos atravessaram os limites da Avenida Sete de Setembro e as fronteiras da Bahia e foram mexer com paulistas, cariocas, mineiros, pernambucanos, paranaenses etc. atraindo-os a Salvador e levandoos de roldão na esteira sonora do trio-elétrico. “Atrás do trio-elétrico só não vai quem já morreu...” - é também Caetano quem diz e ninguém duvida. [...] O carnaval, nos últimos anos, tem se caracterizado pela participação maciça do povo nos folguedos de rua, se intensificando de ano para ano, envolvendo todas as camadas sociais. Mas o fato mais surpreendente é a

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participação cada vez maior da moçada da classe A no carnaval de rua [...] A classe A, por exemplo, já formou seus próprios blocos (O CARNAVAL…, 1975).

Nesse sentido, é importante pontuarmos a articulação entre a multiplicação do número de foliões no carnaval de Salvador, destacando a presença cada vez maior de turistas, o aumento da quantidade de blocos na rua, numa conformação distinta de sua inicial, o grande interesse da mídia e outras mudanças no contexto da cidade, que afetaram diretamente as configurações da festa. Com a alta popularidade e adesão cada vez maior da população local, das diversas camadas sociais, e também do crescente número de turistas, o trio elétrico vai aos poucos concentrando as atenções do carnaval soteropolitano, inclusive em termos espaciais. Segundo Góes (1982, p.47), o grande número de caminhões, assim como a quantidade de foliões que os acompanhava, começam a provocar verdadeiros engarrafamentos de trios elétricos nas ruas, onde muitos permaneciam, por vezes, parados por horas no mesmo lugar, o que inclusive leva o mesmo autor a criticar o não alargamento das ruas por onde eles desfilam. É notável a concentração das comemorações na região da Avenida Sete de Setembro e da Praça Castro Alves, com posterior inclusão da Rua Carlos Gomes nos percursos. A frequência e popularidade de outras comemorações, sobretudo as privadas nos clubes sociais da cidade, serão tensionadas pela presença cada vez maior no espaço da rua (MIGUEZ, 1996, p.115), que torna-se objeto de desejo e de disputa, das mais diferentes classes sociais. Nesse momento, muitos trios elétricos começaram a ser contratados para desfilarem dentro de blocos22, e em outras cidades do estado e do país23, o que ocasionou numa sistematização cada vez maior de percursos, horários e locais desses desfiles, por parte dos poderes públicos, numa tentativa de maior organização e centralização dos festejos. 79



No final da década de 1970 são criados blocos já com o objetivo de desfilarem com os trios elétricos, que circulariam espacialmente separados do restante do público, limitado por cordas e pelas vestimentas padronizadas dos foliões, inicialmente portando mortalhas e depois abadás. E para além das questões socialmente implicadas, as formações desses blocos insinuam algumas articulações espaciais importantes empreendidas por eles em determinados territórios da cidade, onde a maioria das sedes dos mesmos estará localizada em bairros como a Graça e a Barra24 (MIGUEZ, 1996). Em sua maioria, esses blocos pertenciam à jovens de classe média-alta, sobretudo estudantes de colégios particulares e moradores dos mesmos bairros25, que nesse momento eram ocupados principalmente por essas camadas sociais na cidade (ALMEIDA, 2008). Com a sobrecarga de trios a desfilarem na Avenida Sete de Setembro durante o carnaval, e a prioridade, principalmente no que diz respeito à horários, dada aos blocos mais antigos, muitos desses novos blocos começaram a migrar para outras regiões e a desfilar notadamente na Avenida Oceânica, sobretudo no trecho compreendido entre o Farol da Barra e o Morro do Cristo (MIGUEZ, 1996), culminando no estabelecimento desse circuito de maneira oficial no início da década de 1990. A partir desse momento, sobretudo com a popularização e desdobramentos relacionados aos blocos de trio, aliados à uma transformação do próprio trio elétrico, em termos de escala, porte e potência técnica e sonora, o carnaval de Salvador irá se reconfigurar numa outra lógica e também ocupar e consolidar-se em outros territórios da cidade. Se inicialmente o trio chamava atenção por seu público plural, com a presença de foliões de distintas idades e classes sociais, com sua popularidade, esse caráter será modificado por uma outra lógica. Nesse sentido, é importante tecer considerações sobre as diferentes características 81



espaciais desses outros territórios ocupados pela festa, em relação às ocupações mais tradicionais do carnaval, entendendo que nessas repercussões, determinadas espacialidades apresentaramse como mais propícias à algumas dessas questões. Nas imagens dos primeiros trios elétricos, sobretudo as fotografadas por Marcel Gautherot e Pierre Verger26, o trio, ainda enquanto automóvel de menor porte, aparece cercado e até “engolido” pelo público que o acompanha dançante. O próprio fotógrafo, muitas vezes, parece fazer parte da cena, ao fotografá-la de maneira tão próxima e em ângulos mais fechados, reunindo em seus registros uma série de detalhes como expressões, objetos e fantasias. No entanto, as imagens dos trios elétricos posteriores insinuam uma posição distante de quem por ventura a fotografou, provavelmente instalado em algum edifício próximo, registrando imagens em ângulos mais abertos, como se tentasse abranger o máximo de elementos e de pessoas possíveis, apresentando um momento de festa e aspecto fotográfico distinto das imagens anteriores. Essas imagens, em sua maioria, foram veiculadas em jornais da época e vão privilegiar o aspecto da massa urbana e sua ocupação na rua, ao mesmo tempo em que destacam e centralizam a figura do trio, esse já um automóvel de maior porte, que se impõe perante a multidão.

*** Os desdobramentos provocados pelo estabelecimento do circuito Barra-Ondina, ou Dodô, oficialmente na década de 1990, acarretarão em mudanças radicais no carnaval de Salvador. Esse outro momento de carnaval estará relacionado a outro tipo de planejamento de cidade e de festa, e será atravessado por uma série de outros fatores, como a ascensão do ritmo musical baiano Axé Music, a proliferação de patrocínios de empresas privadas 83



e a relação com os veículos midiáticos, inserindo-o numa outra lógica que irá reconfigurá-lo e re-ordená-lo27, entendendo a festa sobretudo em seu aspecto mercadológico, que movimenta cifras volumosas28 todos os anos, numa complexa relação entre economia e cultura (SILVA, 2019, p.40). Para discutir essa conformação e gestão da festa, operante até os dias atuais, é indispensável entendê-la no contexto de um planejamento dito estratégico29 (ARANTES, 2013), onde dentre outras ações, destaca-se a valorização do patrimônio cultural citadino30, a construção de novos ou reformas de equipamentos públicos existentes e a promoção de grandes eventos culturais, muitas vezes de escala internacional31. Essas políticas normalmente estão atreladas à uma forte ação midiática e marketeira, de grande alcance e divulgação, que costuma construir uma imagem idealizada da cidade em questão, numa concepção notadamente turística, vinculada às perspectivas econômicas desse tipo de ação. Arantes (2013, p. 40) chamará essa estratégia fatal32 de “culturalismo de mercado”, onde “a cultura tornara-se de tal maneira coextensiva à vida social em geral que o ‘cultural’ e o econômico’ teriam passado um no outro e já significavam a mesma coisa”. Ainda segundo a autora: Trocado em miúdos, esse é o verdadeiro “poder da identidade”. Daí a âncora identitária da nova urbanística. E como o planejamento estratégico é antes de tudo um empreendimento de comunicação e promoção, compreende-se que tal âncora identitária recaia de preferência na grande quermesse da chamada animação cultural. Inútil frisar nesta altura do debate quase um lugar-comum - que o que está assim em promoção é um produto inédito, a saber, a própria cidade, que não se vende, como disse, se não se fizer acompanhar por uma adequada política de image-

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making (ARANTES, 2013, p.17)

Nesse sentido, o carnaval soteropolitano dialogaria com essa lógica, como um megaevento de raízes culturais fortes e de projeção internacional, já acumulada ao longo de sua história, apreendido por essa política de divulgação da marca carnavalesca soteropolitana, idealizando a imagem não só do evento, mas principalmente de Salvador, numa tentativa de espetacularização de cidade e de festa. Ressalta-se ainda a criação recente, da “Casa do Carnaval”, no Centro Histórico da cidade, museu dedicado à festa e inaugurado no início de 2018, e a titulação recebida por Salvador de “Cidade da Música”, entrando para a “Rede de Cidades Criativas da UNESCO”33. O trio elétrico ganhará mudanças e aprimoramentos em sua dimensão técnica, com a incorporação de novas tecnologias de luzes e de som, e também o acréscimo de “carros de apoio”, que dispõem de serviços como bares, primeiros socorros e sanitários, para o atendimento ao folião durante os desfiles (MIGUEZ, 1996). Nesse mesmo contexto, um outro elemento irá marcar de maneira contundente a relação da festa com o espaço da cidade, sobretudo no que diz respeito à rua e sua utilização e apropriação antes, durante e depois dos festejos: o camarote. Desde finais da década de 1980, observa-se a construção de algumas arquibancadas, nas bordas das Avenidas, para que fosse possível assistir aos desfiles dos trios elétricos, de porte cada vez mais avantajado (SILVA, 2019). No entanto, a partir da década de 1990, essas estruturas irão se ressignificar34, sobretudo no novo circuito, perdendo o caráter de arquibancada para funcionarem como megaestruturas, que viriam a abarcar uma série de serviços durante o carnaval, incluindo shows próprios privados, e também comportar a maior parte da mídia televisiva. Essas construções provocarão uma série de tensionamentos, sociais, no que diz respeito à segregação, sobretudo econômica35, 87



dentro da festa, e também espaciais, em sua imposição de maneira invasiva no espaço urbano, gerando impactos para além dos dias de festa. Através dos fotolivros “Vinte e Cinco Arquiteturas na Avenida Oceânica”, “Vinte e Dois Bloqueios na Avenida Oceânica”, “Trinta e Três Sinalizações na Avenida Oceânica” e “Vinte e Seis Veículos na Avenida Oceânica”, pode-se vislumbrar algumas das questões e problemáticas geradas por esses equipamentos nos espaços públicos da cidade, ressaltando a maior concentração das mesmas, vislumbrada nas legendas de localização das imagens ao final de cada livreto, nas regiões ocupadas pelos camarotes de maior porte. Destaca-se a conjuntura técnica que essa festa mobiliza, meses antes de sua ocorrência, as pessoas que possibilitam com que a mesma se erga e opere, especialmente os operários das obras e vendedores ambulantes, e também os que são prejudicados todos os anos por essa instalação, sobretudo vendedores autônomos informais36. Em relação à utilização do termo “arquiteturas” para referir-se às construções apresentadas, é importante salientar que há, de um lado, uma dimensão irônica dessa associação e ao mesmo tempo pontuar que há, de outro, uma série de parâmetros normativos próprios do campo são utilizados no grande número de documentações solicitadas para a implantação dessas estruturas. Dentre elas podem ser citadas “Anotação de Responsabilidade técnica atuais (ART/CREA-BA) ou Registro de Responsabilidade Técnica (RRT/ CAU)”, “Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB)”, “Projeto arquitetônico em 02 (duas) vias, na escala 1:50 ou 1:100, contendo planta baixa, cortes e fachadas” e “Projeto Estrutural com memorial descritivo”, exigidas pela SEDUR (Secretaria de Desenvolvimento e Urbanismo) para a instalação de camarotes durante o carnaval. Além disso, a diferenciação de características territoriais e urbanas entre os locais que abrigam os circuitos Dodô e Osmar é fundamental para o entendimento do desenvolvimento de determinadas 89



estruturas em certas regiões, em detrimento de outras. No mapa 4, a quantidade de áreas não edificadas37 nas bordas da Avenida Oceânica, sobretudo pertencentes à hotéis privados, de grande número na região, são superiores às observadas na Avenida Sete de Setembro e Rua Carlos Gomes, se tratando de um tecido urbano mais antigo da cidade e de ocupação mais densa, onde as áreas não edificadas constituem principalmente a maior quantidade de praças da região. Esses áreas não edificadas costumam ser ocupadas por essas grandes estruturas de camarotes todos os anos. Ademais, no mapa 5, pode-se vislumbrar a maior complexidade em termos de vias de acesso do circuito Osmar, insinuando que o circuito Dodô, por ser mais isolado espacialmente, seria mais facilmente “controlado” em termos de acesso à festa, já que para ter acessálos, é preciso passar por revista em alguma das entradas e até a bebida alcoólica que pode ser comercializada nas ruas é de uma marca específica, patrocinadora da festa38. Dessa forma, a relação do carnaval com o espaço da cidade, na conformação atual, é profundamente alterada, e permeada por uma série de parâmetros e institucionalizações que intentam ordenar o carnaval soteropolitano. Durante a festa em Salvador, o folião não estaria mais localizado na Avenida Sete de Setembro ou Avenida Oceânica. Numa nova ordenação para esse outro momento da cidade, que poderia deixar os arquitetos modernistas orgulhosos, “regidos pela linha reta e pelo ângulo reto, para seu pensamento objetivo” (LE CORBUSIER, 2009, p.15), as ruas têm suas extensões seccionadas como num grid cartesiano e moderno, identificadas por números e letras que indicam: 208-E: você está aqui. Se em 1951 o trio elétrico, ainda um automóvel “Ford Fobica 1929” de Dodô e Osmar, se apropriou de novas e largas avenidas pensadas e projetadas para a melhor fluidez de veículos, que possibilitarão a circulação do mesmo e também da multidão que esse viria a “arrastar”; já em 2019, enquanto um caminhão de 91







grandes dimensões, que também provocou nos carnavais mais recentes a construção de monumentais camarotes, o espaço da cidade é modificado para dar conta e atender à toda essa conjuntura carnavalesca que se instala durante alguns meses todos os anos. Tanto a Avenida Oceânica quanto a Avenida Sete de Setembro, onde estão localizados os circuitos de maior porte da festa, Dodô e Osmar, passaram recentemente, ou estão passando atualmente, por reformas urbanísticas. A “Nova Orla da Barra”, trecho situado na Avenida Oceânica, próximo em Farol da Barra, foi entregue pelo atual prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto em 2014 e, desde o segundo semestre de 2019, estão ocorrendo outras reformas na avenida citada, no trecho do bairro de Ondina, e também na Avenida Sete de Setembro, incluindo a Praça Castro Alves. Destaca-se, dentre os parâmetros projetuais estabelecidos, a preferência por espaços fluidos e contínuos, sobretudo com a adoção de calçamentos compartilhados, mobiliário e vegetação de pequeno porte (quando existente)39, aspectos que insinuam uma possível relação entre os critérios escolhidos para as reformas referenciadas e a necessidade de locais que possam abrigar uma grande quantidade de pessoas ao mesmo tempo, assim como veículos de dimensões diferencialmente avantajadas. Através da emblemática figura do trio elétrico é possível tecer uma série de desdobramentos significativos no que concerne à relação da festa do carnaval com a cidade de Salvador. Não se pretende, com o trabalho, reiterar uma mitificação construída ao redor figura do trio, mas, em certa medida, profaná-la (AGAMBEN, 2007), e do mesmo modo, entender em que medida esse objeto, por outro lado, profanou, subverteu e se apropriou de determinadas ordens hegemônicas, sobretudo no que tange ao campo do urbanismo, para posteriormente tornar-se hegemônico ele mesmo, apreendido numa outra lógica que também invisibilizou uma série de outras expressões e concentrou a festa em determinados espaços da 97



cidade. A consolidação cada vez mais expressiva e hegemônica do trio elétrico no carnaval soteropolitano tensionou constantemente outras manifestações carnavalescas, inseridas em configurações distintas, sobretudo no que diz respeito ao vínculo com o território da cidade, e também provocou o surgimento de outras práticas empreendidas pelos foliões, na tentativa de apropriações e resistências possíveis na festa.

*** Especialmente a partir da década de 1970, ocorrerá o que alguns autores como Miguez (1996) e Risério (1981) chamarão de “reafricanização” do carnaval soteropolitano40, com o surgimento de uma série de entidades carnavalescas relacionadas à territórios de ocupação majoritariamente negra da cidade41, como o bairro da Liberdade, onde nasce o Ilê Aiyê (1974), o Pelourinho, onde nasce o Olodum (1979), e Periperi, onde nasce o AraKetu (1980). Nesse mesmo momento, o afoxé Filhos de Gandhy, criado em 1949, após quase desaparição também ganhará um novo fôlego, sobretudo através da atuação do artista Gilberto Gil, que volta do exílio em 1972 (MIGUEZ, 1996, p.103). A criação do Ilê Aiyê, que em sua conformação inicial e durante algum tempo só aceitava a associação de negros, foi polêmica, sendo chamado ironicamente de “bloco do racismo”. Numa notícia intitulada “Bloco racista, nota destoante”, do jornal A Tarde, de 12 de fevereiro de 1975, lê-se que: Conduzindo cartazes onde se liam inscrições tais como: “Mundo Negro”, “Black Power”, “Negros Para Você” etc, o bloco “Ilê Aiyê”, apelidado de “Bloco do Racismo” proporcionou um feio espetáculo nesse carnaval. Além da imprópria exploração do tema e da imitação norte-americana, revelando uma enorme falta de imaginação, uma vez que em nosso país existe 99



uma infinidade de motivos a serem explorados, os integrantes do “Ilê Aiyê” - todos de cor - chegaram até à gozação dos brancos e das demais pessoas que os observara do palanque oficial. Pela própria proibição existente no País contra o racismo, é de se esperar que os integrantes do “Ilê” voltem de outra maneira no próximo ano e usem em outra forma a natural liberação do instinto característico do Carnaval. Não temos felizmente problema racial. Esta é uma das grandes felicidades do povo brasileiro. (BLOCO… 1975)

Ao que Risério (1981), colocará que: Que preto pobre e periférico poderia se associar ao Iate Clube ou a um bloco branco “classe A”? Já o Ilê Aiyê não pode recorrer a essa triagem econômica. Sua alternativa é partir para a discriminação racial. E como foram os negromestiços que criaram o carnaval baiano, contra a vontade da elite branqueada, não creio que nenhum branco esteja no direito de censurar o Ilê Aiyê. Além disso, alguns blocos exclusivos de brancos já foram flagrados em práticas racistas e publicamente denunciados. E mais: é mentira dizer, como alguns brancos têm dito, que o Ilê Aiyê é discriminador por causa da influência perniciosa que sobre ele exerce um grupo de intelectuais negros do sul do país. Nada mais longe da verdade. A discriminação foi decidida ali mesmo no Curuzu, local desconhecido pela quase totalidade dos brancos da cidade (RISÉRIO, 1981, p.51).

Com a popularização da série de entidades que surgiu no período, na tentativa de “domesticar preventivamente o fenômeno afrocarnavalesco, a partir de sua regulamentação [...] adquirindo um certo controle sobre ele, forçando os blocos afro a estabelecerem 101



um vínculo com ela [Bahiatursa]” (RISÉRIO, 1981, p.121), foi criada a categoria “bloco afro” pela Bahiatursa, numa reunião que, segundo relatos dos membros, a diretoria das entidades não foi convidada (RISÉRIO, 1981). Atualmente é o termo mais utilizado para referir-se a essas associações, e que desde sua concepção, demonstra mais uma vez tentativas de ordenamento dessa festa e de suas manifestações no território da cidade, por parte do poder público E, se por um lado, o trio elétrico empreendia relações cada vez mais segregadoras na cidade, se concentrando em regiões e circuitos determinados; para além da atuação e desfile durante o carnaval, essas entidades são caracterizadas por projetos sociais que atuam diretamente nos bairros onde foram criadas (RISÉRIO, 1981), durante todo o ano, lógica muito distinta do que ocorria com os blocos de trio. Ademais, o vínculo com os territórios é diferenciado, onde muitas delas não abdicam de seus percursos e trajetos tradicionais na cidade, como o caso da saída do Ilê Aiyê, do bairro da Liberdade. Essa resistência, mais uma vez, será tensionada pela criação, pela Prefeitura de Salvador, em 2019, do circuito “Mãe Hilda de Jitolu”42, oficializando o percurso pelo Curuzu, região que passará por uma grande reforma urbana, assinada pelo atual prefeito Antônio Carlos Magalhães Neto, um mês antes da criação do circuito. Por meio de muitos relatos presentes nos mapas psico.geo. carnavalescos, também ficam evidentes as tensões sociais e discriminações étnico-raciais que atravessam o carnaval soteropolitano, assim como no cotidiano da cidade. A população negra e suas manifestações foram, e ainda são, constantemente silenciadas e invisibilizadas por determinadas lógicas hegemônicas, e por outro lado, têm uma série de características culturais apropriadas pela mesma festa e pela mesma cidade. Ironicamente, “abadá” é uma palavra iorubá, que se refere a um tipo de túnica ou 103



vestimenta branca, utilizada inclusive em rituais religiosos.

*** Nesse contexto de disputas e tentativas de ordenamento, sobretudo do espaço e da experiência da rua, inerente à festa e cidade, Jacques (2011, p.163) chamará atenção para os inúmeros esforços de pacificação do espaço público pelo espetáculo, através da criação de falsos consensos que buscariam encobrir a expressiva complexidade de tensões inerentes à eles. Ao longo do período apresentado, pode-se vislumbrar uma série de questões e tensionamentos empreendidos pelo carnaval em relação à cidade, sobretudo a partir da criação do trio elétrico, e as sucessivas tentativas de domesticação e ordenação dos mesmos. A criação do trio vai proporcionar uma nova maneira de brincar o carnaval em Salvador, se utilizando de determinadas espacialidades da cidade, relação que será modificada ao longo do tempo, sobretudo pela apreensão da prática numa outra lógica, provocando uma nova relação entre festa e cidade, que inclui, de certa forma, a adaptação de determinados espaços da mesma para abarcar a conjuntura complexa de estruturas da festa, especialmente em seu modelo mais recente. No entanto, a mesma autora irá chamar atenção para o fato de que “a experiência urbana nunca é totalmente destruída” (JACQUES, 2011, p.164), resistindo, imaginando e criando outras formas de sobrevivências possíveis na cidade e, nesse caso, na festa. Nesse sentido, mesmo com as sucessivas tentativas de domesticação e ordenamento da experiência do carnaval, nota-se a apropriação e a profanação (AGAMBEN, 2007) de suas lógicas pré-estabelecidas por parte dos que desviam e resistem à elas. Se em determinados momentos e contextos, como o dos blocos de trio, levantam-se cordas, os foliões-pipoca promovem uma maneira outra de ir 105



atrás do trio elétrico, numa experiência distinta da instituída, que posteriormente, também sofrerá tentativas de ser capturada pelo sistema que provocou a sua (r)existência, o que pode ser vislumbrado nos carnavais recentes. Algumas ações promovidas por determinados blocos e cantores, como por exemplo a banda BaianaSystem, de desfilarem sem cordas nas avenidas, e também de outras iniciativas populares como a criação do Bloco De Hoje a Oito, inicialmente numa escala de bairro no Santo Antônio Além do Carmo43, insinuam outras práticas empreendidas na festa, que tensionam sua lógica, até então, hegemônica, inclusive no que diz respeito à outros territórios da cidade. No entanto, percebe-se que à medida em que se popularizam, essas mesmas práticas, que anteriormente consistiam em desvios no cenário padrão dominante do carnaval em Salvador, sofrerão sucessivas tentativas de apreensão por essa mesma lógica. Sob um discurso de “maior democratização” do carnaval, e até de apropriação do espaço da rua durante a festa, nota-se, sobretudo no discurso do poder público, uma mudança significativa de práticas e postura em relação à festa44, com o incentivo aos blocos sem corda, muitos dos quais patrocinados pela própria Prefeitura ou Governo do estado, e até da dimensão dos carnavais nos bairros45. Em 2014 é criado o Furdunço, evento que marca um outro momento de carnaval e de relação com a cidade, com o desfile de trios elétricos de menor porte do que os convencionais que operam nos circuitos oficiais, e músicos de visibilidade em escala local. Ironicamente, o circuito por onde desfilará o Furdunço, no sentido contrário do circuito Dodô, Ondina-Barra, será nomeado “Orlando Tapajós”, figura decisiva justamente no que diz respeito ao desenvolvimento e amplificação do trio elétrico. Nesse sentido, historicamente o carnaval de Salvador e suas relações com determinadas espacialidades foram construídas e 107



estão relacionadas a uma malha de acontecimentos mais ampla, onde questões e características urbanísticas são fundamentais para entender a relação dessa festa com a cidade, quando e onde essas celebrações estariam ocorrendo, e quais se tornaram hegemônicas no contexto da festa. Ademais, a série de disputas inerentes ao processo demonstra que o que foi e é considerado hegemônico no carnaval é mutável e fluido, onde muitas manifestações que iniciaram como desvios ou resistências, muitas vezes foram apreendidas pela mesma lógica da qual desviavam. Para o filósofo e crítico de arte francês Didi-Huberman (2014, p.118), “deve ser chamado imagem, no que diz respeito a algo que se revela capaz de transpor o horizonte das construções totalitárias”. Sendo assim, as imagens e as questões aqui apresentadas propõem fazer emergir lampejos e questões menos iluminadas, mas não por isso menos luminosas, sobre as relações citadas entre festa e cidade, assumindo, de antemão, sua incompletude e inabilidade de contemplar toda a complexidade tanto do carnaval quando da cidade de Salvador. No entanto, reconhecemos a pertinência de discutilas, inclusive no reconhecimento de resistências e sobrevivências, onde: Uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim, totalmente como o sonharam - o projetam, o programam e querem no-lo impor - nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço - seja ele intersticial, intermitente, nômade,

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situado no improvĂĄvel - das aberturas, dos possĂ­veis, dos lampejos, dos apesar de tudo (DIDI-HUBERMAN, 2014, p.42)

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NOTAS 1. O autor, enquanto carioca, irá pontuar especificamente esse tipo de comemoração carnavalesca, no entanto abordamos a colocação em sentido mais amplo, entendendo que a relação com o carnaval de Salvador, sobretudo no que diz respeito aos circuitos oficiais, também seria possível. 2. É interessante pontuar, nesse contexto carnavalesco, a construção do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, projeto do arquiteto moderno Oscar Niemeyer, no Rio de Janeiro, em 1984, onde a festa é ordenada e deslocada do espaço público da cidade, onde eventualmente outras participações e conformações seriam possíveis. 3. O Entrudo era celebrado em muitas regiões de Portugal, sendo uma festa de origem e características européias que viria a encontrar grande receptividade no Brasil colonial. Sua organização era apoiada nas relações de vizinhança e nos laços familiares. Eram realizados desfiles, banquetes, bailes e brincadeiras entre os habitantes. (MIGUEZ, 1996). 4. Dentre elas destacam-se a construção da Avenida Sete de Setembro (1912-1916) e o alargamento das ruas Chile (19121916) e Carlos Gomes (1939-1941), intervenções marcantes à época, inseridas no contexto do “urbanismo demolidor” e da melhor adequação da cidade ao fluxo de automóveis (PINHEIRO, 2011, p.217). Essas ruas eram dotadas de infraestrutura diferenciada, como melhor iluminação e passeios, por elas passavam linhas de bondes elétricos e eram os destinos preferidos das classes mais abastadas em suas comemorações carnavalescas. 5. Esse processo de industrialização, aliado ao momento de políticas desenvolvimentistas do país, tem notoriedade no período entre 1950-1970, destacando a criação da SUDENE (Superintendência 113



do Desenvolvimento do Nordeste), em 1959, e a implantação do CIA (Centro Industrial de Aratu), na Região Metropolitana de Salvador, em 1967 (SAMPAIO, 1999). 6. A Rua Chile era considerada o “ponto chique” da cidade, como uma vitrine social e cultural, onde estavam localizadas lojas de luxo de decoração, de artefatos femininos e masculinos, restaurantes, hotéis, dentre outros tipos de serviço consumidos pela elite baiana da época (UZÊDA, 2006, p. 127). 7. Osmar Macedo era técnico e dono de uma oficina mecânica e Adolfo Nascimento (Dodô), era especialista em eletrônica. A dupla era música nas horas vagas, conhecida como a “Dupla Elétrica”, pela inventividade nos sons que incluía instrumentos artesanalmente fabricados, como o “pau elétrico”, precursor da guitarra baiana, o que demonstra que além da inventividade musical, a dupla tinha poderio e domínio de uma dimensão técnica para as transformações que implantou. Com a inclusão, no ano posterior, de mais um músico para os desfiles carnavalescos, a dupla adotou o título de “Trio Elétrico”, expressão que se consagraria como sinônimo do veículo (GÓES, 1982). 8. É importante destacar uma recente descoberta nas minhas pesquisas que questiona o ineditismo da dupla Dodô e Osmar na criação do trio elétrico. Segundo Tôrres (2014) existiria em Salvador, no bairro de Periperi, um conjunto composto por 5 irmãos que desfilava pelas ruas à bordo de um automóvel tocando instrumentos musicais. A autora afirma que o trio teria sido criado por eles em Periperi antes da “Dupla Elétrica”, no entanto não é precisa nas informações e nas datas, colocando a criação dos 5 irmãos no ano de 1951, ano do primeiro desfile de Dodô e Osmar, e postergando a data da dupla. Pretendo dar continuidade a essa investigação num momento posterior desta pesquisa, em nível de mestrado, o que não foi possível durante o processo do TFG.

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9. Frisamos que “concentração” refere-se ao maior adensamento da festa em determinados locais, o que não elimina outras manifestações possíveis em outros territórios da cidade. 10. Orlando Campos era morador e presidente do Clube Flamenguinho de Periperi, e sua relação com o carnaval se inicia na escala do bairro. Em entrevista à Góes (1982, p.60), ele narra a existência do trio elétrico dos “5 irmãos” em Periperi, desde a década de 1950, e por uma desavença com um dos membros do grupo decide criar seu próprio trio elétrico, no final da mesma década, que desfila inicialmente pelo bairro para depois migrar para o centro da cidade. 11. Em entrevista à Góes (1982, p.63), Campos narra que: “o trio elétrico, essa loucura inventada por Dodô e Osmar, estabelece uma relação direta com o público, é um contato sem intermediário, consequentemente um meio de publicidade sem igual pois quem não ouve, vê, e quem não vê, ouve, de forma que, queira ou não queira, atinge a todas as pessoas por onde passa. [...] Quando criei a nova carroceria tinha a ideia de transformar o trio num veículo promocional. Criei espaços para letreiros, para textos comerciais. Introduzi o microfone para fazer anúncios, dar notas das prefeituras e fazer comunicados de achados e perdidos” 12. A autora é ciente do anacronismo de utilizar uma base cartográfica atual para discutir a cidade de Salvador em 1970, no entanto, interessa ao trabalho a comparação das regiões mobilizadas pela festa na cidade em momentos distintos. 13. Pela grande quantidade de informações e detalhes referentes ao centro da cidade, optamos por apresentar essa região em destaque separadamente, no mapa 1. 14. A depender da região de domicílio, o morador é cadastrado em uma das 12 zonas de acesso, podendo transitar apenas pela zona 117



em questão. 15. Algumas ruas referenciadas no informe do jornal não existem mais com os mesmos nomes e para localizá-las, além da pesquisa realizada em referenciais históricos da cidade, contei com a ajuda da memória do meu avô de 93 anos, que residiu e trabalhou na região nesse período e soube identificá-las no mapa. 16. Certamente um mapa que mostrasse a articulação e atuação do poder público na cidade em carnavais recentes compreenderia outras regiões, mas essas informações são confidenciais e não são divulgadas pelos órgãos responsáveis. 17. Ressalta-se, em relação aos foliões entrevistados, a mudança de domicílio de Sudário, (pai de Paulo e Maria Luiza), de uma casa na Cidade Baixa para um apartamento no bairro da Graça; assim como a foliã Maria Lúcia que, no final da década de 1970, irá se mudar de um sobrado nos Barris para um apartamento na Barra. 18. A Hotéis da Bahia S. A. sofreria uma reorganização estrutural em 1973, se tornando a Empresa de Turismo da Bahia S.A. – Bahiatursa. Em 2014, se tornou Superintendência de Fomento ao Turismo do Estado da Bahia. 19. A Caetanave foi criada por Orlando Campos em homenagem à volta do exílio de Caetano Veloso (GÓES, 1982, p.77). Ressalta-se também a profunda relação entre o carnaval baiano e o movimento Tropicalista no país, onde Miguez (1996, p.114) coloca que esse seria “um movimento cuja estética se relaciona intensamente com a trama carnavalesca baiana”. 20. Caetano Veloso - Atrás do Trio Elétrico (1969) 21. Caetano Veloso - Frevo Novo (1977) 22. Os blocos já existiam no contexto do carnaval de Salvador 119



antes dos trios elétricos. Os cordões, existentes desde a primeira metade do século XX, eram compostos por grupos de foliões, majoritariamente negros e moradores das regiões mais populares, que desfilavam fantasiados e ao som de batucadas, utilizando um cordão para delimitar o espaço dos participantes. Num período posterior, foram criados outros blocos, dos quais alguns eram pertencentes aos grandes clubes da cidade, que desfilavam nas avenidas com bandas e instrumentos de sopro (MIGUEZ, 1996). 23. Góes (1982, p.62) relata que o próprio Orlando Campos negociou, junto ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, as dimensões e especificações necessárias exigidas aos trios para que pudessem transitar pelas rodovias do país. 24. Alguns dos blocos criados no período, citados em certos relatos dos “mapas psico.geo.carnavalescos”, e localização de suas respectivas sedes, segundo anexo elaborado por Miguez (1996, p.118): Camaleão (1978) - Graça; Eva (1980) - Barra; Pinel (1981) - Barra 25. Observa-se no relato da foliã Maria Luiza suas colocações sobre a relação dos blocos com os colégios particulares frequentados pela classe média e alta no período, assim como a própria localização de seu domicílio. 26. Pude me debruçar sobre as imagens dos fotógrafos referenciados no âmbito do Instituto Moreira Salles, em São Paulo, e da Fundação Pierre Verger, em Salvador, respectivamente, sendo um importante momento de pesquisa para o trabalho. 27. Dentre uma série de instituições e associações que surgem, relacionadas ao carnaval, destacam-se: Associação dos Blocos de Trio (1988); Conselho Municipal do Carnaval (1990); Casa do Carnaval (1993), órgão técnico administrado pela EMTURSA; e posteriormente Associação Baiana dos Camarotes (2006) (SILVA, 121



2019). 28. Segundo Miguez (1996), as cifras arrecadadas pelos blocos de trio seriam um mistério no carnaval soteropolitano, já que as associações não divulgavam seu arrecadamento. A grande movimentação financeira chegou chamar à atenção da Receita Federal brasileira, onde “a Receita Federal está investigando as contas de nove entidades carnavalescas, sem fins lucrativos, mas de grande rentabilidade. “Recebemos denúncias contra dirigentes que estão aumentando o patrimônio pessoal, descaracterizando o caráter filantrópico das entidades”, explica o Delegado da Receita Federal (...) Outra forma (de sonegação) é o patrocínio não declarado ou parcialmente declarado, que navega invisível aos olhos da Receita, mas que explode em publicidade aos olhos do público.” (Bahia Hoje, 25-4-1994, apud MIGUEZ, 1996, p.124) 29. Não só dito pois realmente existe uma série de documentos da Prefeitura de Salvador que carrega o termo, como o “Planejamento Estratégico 2017-2020. Salvador: uma nova cidade para um novo tempo”, onde são descritos os parâmetros e metas propostos para o desenvolvimento da cidade durante a gestão referenciada. 30. Em 2015-2016 pude residir por um ano em San Sebastián (País Basco, Espanha), através do programa Ciências Sem Fronteiras, justamente no período em que a mesma foi escolhida como “Capital da Cultura Européia” (2016). Era notável a grande quantidade de obras na cidade, destacando a criação de museus, centros culturais e grandes reformas em equipamentos públicos já existentes, assim como o alto número de turistas. Ressalta-se também a proximidade, inclusive política, de San Sebastián com Bilbao, cidade basca que vivenciou processo semelhante após a construção do Museu Guggenheim, projetado pelo arquiteto Frank Gehry, em 1997. 31. No contexto brasileiro aponta-se ainda os acontecimentos da 123



Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. 32. Em referência ao título do texto referenciado, “Uma estratégia fatal: A cultura nas novas gestões urbanas” 33. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, criada em 1946. Choay (2011) colocará que a política patrimonial impulsionada pela organização referenciada, sobretudo após a “Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural”, em 1972, irá “marcar simbolicamente o acontecimento, à escala do globo terrestre dessa vez, de uma nova revolução cultural” (CHOAY, 2011, p.28) 34. Destaca-se o primeiro “mega-camarote” organizado por Daniela Mercury, na Barra, em 1996, e a criação do “Expresso 2222”, do artista Gilberto Gil, em 1999, e o “Camarote Salvador” em 2000. Essas estruturas foram fundamentais para a consolidação e desenvolvimento do circuito Dodô, atraindo sobretudo personalidades da mídia. Segundo Silva (2019, p.75), em 2000 o camarote da cantora citada chegou a receber o rei e da rainha da Suécia, Gustavo e Silvia. 35. O valor cobrado para frequentar um dia de camarote é alto, em alguns casos ultrapassam até um ou dois salários mínimos. Para usufruir por uma noite da estrutura do Camarote Salvador em 2020 (os ingressos costumam ser disponibilizados à venda muito antes do início do carnaval), por exemplo, o folião precisará desembolsar um valor médio de R$2.250,00, e o “passaporte” para os seis dias de festa, na tarifa masculina, já que existe diferenciação de gênero nas tarifas de compra, o valor chega a R$ 10.190,00. Fonte: https:// www.camarotesalvador.com.br/ingressos/. Vale destacar que o empreendimento é de propriedade de familiares do atual prefeito da cidade.

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36. Ao longo das minhas idas à campo pude conversar com alguns vendedores informais, notadamente vendedores de côco e de praia. Muitos se aproximavam para fazer denúncias, acreditando que trataria-se de uma jornalista pela presença da câmera, e me relatavam uma série de problemáticas que sofriam todos os anos pela instalação do carnaval, sobretudo dos camarotes na região de Ondina, que invadiam os espaços públicos das praças e praias, lhes tomando o local de trabalho e também afugentando os costumeiros clientes. 37. Essas áreas compreendem tanto espaços públicos da cidade, como praças e largos, quanto áreas livres em loteamento privados, entendendo que a festa se apropria de ambos para a instalação de suas estruturas, sobretudo os camarotes, onde está abrigada grande parte da mídia. 38. A relação entre o carnaval de Salvador com a indústria de bebidas, sobretudo alcoólicas, foi historicamente construída desde o início dos trios elétricos. Após o primeiro desfile de Dodô e Osmar, no ano seguinte, em 1952, o mesmo já contou com o patrocínio da empresa de refrigerantes “Fratelli Vita”. Nos anos seguintes, muitas outras marcas patrocinaram ou criaram seus próprios trios elétricos, o que pode ser vislumbrado nas imagens do livreto “Muitos Carnavais”, onde alguns trios chegavam a ter o próprio formato da bebida em questão, como o “Saborosa”. 39. Ressalta-se ainda a grande diferença entre as imagens do projeto divulgado para a “Nova Orla da Barra”, com medidas de paisagismo e mobiliário muito distintas do que foi construído de fato. E sobre a obra em Ondina, nota-se que os equipamentos de maior porte como quadras e banheiros públicos, foram alocados numa região posterior ao fim do circuito Dodô. 40. Os autores irão associar essas criações à uma malha de acontecimentos mais ampla, sobretudo no que diz respeito 127



ao movimento negro. Sobre a criação do Ilê Aiyê, um de seus fundadores, Antônio Carlos dos Santos, o “Vovô”, relata que “tava na época daquele negócio de poder negro, black power… Então a gente pensou em fazer um bloco só de negros, com motivos africanos. Foi também quando as coisas começaram a acontecer na África. Quando a gente começou a receber, aqui, as notícias das coisas que estavam acontecendo na África” (Antônio Carlos dos Santos apud RISÉRIO, 1981, p.38) 41. A autora enfatiza a grande relevância desse aspecto do carnaval soteropolitano e não dispensa citá-lo, ainda que admita que o trabalho apresentado não dá conta nem pretende aprofundar-se na complexidade e importância da questão apresentada, por construir e tecer relações sobre o carnaval por outra perspectiva. 42. Em homenagem à ialorixá Hilda Dias dos Santos, mãe de Antônio Carlos dos Santos “Vovô”, presidente fundador do Bloco Ilê Aiyê. 43. A grande popularização e comparecimento de muitos foliões no bloco tem gerado questões no que diz respeito à sua relação com o bairro que o abriga, e o mesmo quase não saiu às ruas no ano de 2019. Além disso, atraiu uma série de outros interesses para a região, numa lógica distinta do que prega o bloco, onde em 2019 uma associação vinculada ao bloco de trio “Harém”, tentou promover no mesmo bairro uma festa à fantasia privada com posterior desfile ao estilo “carnaval de rua”, intitulada “Santo Antônio Harém do Carmo”. Sofrendo várias críticas, sobretudo por parte dos foliões do Bloco De Hoje a Oito, apenas a festa privada foi mantida e o desfile pelas ruas, cancelado. 44. O tema do carnaval de Salvador em 2016 foi “Vem pra Rua”, que marcou uma ruptura significativa em relação aos temas anteriores, que costumavam promover homenagens como “Homenagem à Axé Music” (2015), “Homenagem aos blocos Afro” (2014), 129



“Homenagem à guitarra baiana” (2013). 45. Podem-se citar carnavais promovidos nos bairros de: Cajazeiras, Periperi, Itapuã, Liberdade, Boca do Rio, Piatã, Pelourinho, Pau da Lima, Plataforma. A localização desses bairros, distantes dos circuitos considerados oficiais da festa, insinua uma possível relação entre essa implantação com o movimento de “abaixar as cordas”.

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REFERÊNCIAS



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