Desertão

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DE SERTAO Fevereiro de 2016 Edição nº1

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Carta ao leitor A palavra sertão em sua raiz etimológica, vem da supressão dos fonemas iniciais do vocábulo desertão. Significa portanto, um imenso deserto que possui um arranjo singular de elementos e características como o clima, relevo e vegetação. De acordo com Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte” é marcado pela exuberância dos povos rurais e urbanos, morada do caboclo, do caipira e do sertanejo formando um território simbólico de cultura e tradição espetaculares. A revista Desertão foi idealizada a partir da busca da plurissignificação do conceito de sertão. Nesta publicação enveredamos nas diversas camadas culturais que são pilares do universo sertanejo. É provável que essa inquietação e o desejo de falar sobre o sertão, vá além da curiosidade de duas estudantes de jornalismo, podendo despertar o interesse do agricultor, da dona de casa, de pesquisadores e de qualquer um que busque compreender como se dá a vida no sertão. Foi frisando esses possíveis interesses que surgiu a ideia de uma publicação informativa, objetiva e que apresente assuntos distintos relacionados a essa temática. A primeira edição é sempre um desafio de escolha de pautas, fontes e ângulos temáticos. Selecionamos para você um conjunto de matérias que proporcionarão uma chegada mais profunda, nas extensões áridas e verdejantes do ambiente sertanejo. As pautas te levarão a descobrir o segredo das chuvas, a assombrar-se com os contos de alumbramento da região, a conhecer lugares que resistem ao tempo e sensibilizar-se com a fé do homem do campo. Por fim, a Desertão deseja a todos uma ótima leitura.

ADELINA LIMA Graduanda de Jornalismo pela Universidade Federal do Cariri

MELINA DUARTE Graduanda de Jornalismo pela Universidade Federal do Cariri

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Expediente A revista Desertão é uma publicação de caráter experimental produzida como trabalho de conclusão de curso, idealizada por Adelina Lima e Melina Duarte, concludentes do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri - UFCA. Orientação Juliana Lotif Araújo Edição de textos Adelina Lima Melina Duarte Priscila Luz Abraão Revisão de textos Priscila Luz Abraão Projeto Gráfico Adelina Lima Melina Duarte Diagramação Adelina Lima Melina Duarte Isaac Brito Fotos Adelina Lima Melina Duarte Paulo Henrique Ilustrações Adelina Lima Melina Duarte Tiragem 03 exemplares 4

CAPA

Foto: Paulo Henrique

DE SE RTAO


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06 Doces ruínas: ensaio fotográfico dos antigos engenhos da região do Cariri 14 O imaginário popular: lendas e mitos do folclore sertanejo 20 O saber do matuto que desafia a ciência 26 No batuque da zabumba 30 Heroína do sertão 5


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DOCES RUÍNAS Ensaio fotográfico de antigos engenhos da região do Cariri Fotografias: Adelina Lima Melina Duarte

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á quase 500 anos, os por tugueses introduziram o cultivo da cana-de-açúcar na agricultura brasileira, tornando o país o maior exportador mundial de açúcar – um negócio tão lucrativo que superou as minas de ouro do período colonial. A cultura açucareira penetrou no sertão e ainda hoje podemos encontrar ruínas de engenhos de diferentes épocas, que traçaram a história do Brasil e do homem sertanejo. Esse ensaio fotográfico percorreu parte da região do Cariri cearense para mostrar

8 Moenda de três rolos - Vale do Buriti

que, apesar da modernização das cidades do interior, os engenhos resistiriam por mais de cinco séculos. Algumas canas sob o maquinário e o silêncio no sopé do Vale do Buriti, em Santana do Cariri, formam o cenário icônico de um entre tantos engenhos que contribuíram com o desenvolvimento do país no início da colonização. Nas paredes que ainda continuam de pé, estão marcados o suor do trabalho árduo e o barulho do processamento da cana, sendo esmagada pela moenda de três rolos para obtenção do caldo. O engenho fabricava a rapadura preta, conhecida antigamente como rapadura de cachaça. Hoje a chamamos de

caldo de cana ou garapa de cana. Da primeira cana cortada, fazia-se a cana de planta. Segundo o linguajar dos lavradores: “Quando se corta a cana, a cana soca. A segunda soca, a terceira e assim por diante. A soca é uns fiozinhos que vão sendo soltos ao longo do processo. ”

Engenho velho e triste, inválido troféu,com paredões de pedra e travas colossais. Mastodonte de taipa, a dormir sob o céu, relembrando o Brasil dos tempos coloniais! (João Campos Filho)


9 Casar達o do engenho da Fazenda Tatajuba


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11 RuĂ­nas do CasarĂŁo do engenho da Fazenda Tatajuba em Nova Olnda-CE


Na década de 1940, a região do Cariri chegou a possuir mais de 300 engenhos, onde a maioria produzia rapadura e cachaça para o interior do Ceará. Propiciadas pela quantidade de nascentes d’água e riachos perenes, as plantações de canaviais foram responsáveis pelo povoamento dessa área, assim como pela sua economia. O engenho centenário da fazenda Tatajuba, em Nova Olinda, é um cenário de contraste entre o passado e o presente. A propriedade ainda guarda marcas históricas do período colonial desenvolvimentista em que foi gerado. Considerado um dos mais antigos da região do Cariri, nesse engenho a cana era moída por uma tração movida à água. Algumas peças do maquinário foram trazidas de fora do Brasil, como por exemplo, a moenda integrada a imensos barris que eram usados na produção de aguardente, num período que aspirava ao progresso. As caldeiras desativadas, os alicerces das construções coloniais e parte das engrenagens resistem ao tempo, dentro e fora do imponente sobrado que corta a paisagem da caatinga.

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Nas estradas de terra havia a movimentação de dezenas de burros, que transportavam a cana de açúcar até o engenho. Eram chamados de “cambiteiros” aqueles que cuidavam da carga trazida nos lombos dos animais e tratavam da entrega das encomendas das rapaduras. Ao longe já se podia avistar a fumaça saindo da chaminé, exalando um cheiro agridoce. Junto com os bois, as cabras puxavam a roda da bolandeira que fazia a moenda girar, além de levarem os fardos de cana até as fornaParte de trás do engenho da Fazenda Tatajuba

lhas acesas que queimavam o bagaço moído da cana. A rapadura era feita antigamente com as raspagens das camadas de açúcar, que grudavam no fundo dos tachos de garapa. Depois da sua fervura, ela era moldada e seca. Ainda hoje esse produto faz parte do cardápio do sertanejo, assim como os “alfenins” e “puxa-puxa”, também fabricados nos engenhos. Muitos deles moíam toneladas de cana todos os dias e os que não desapareceram

encontram-se

em ruínas. 13


14 Pedra da Batateira Crato-CE


O IMAGINÁRIO POPULAR Lendas e mitos do folclore sertanejo

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região do Cariri não é conhecida apenas pelas suas manifestações culturais e religiosas. Além da devoção ao Pe. Cícero, da reverência aos Irmãos Aniceto e do respeito às tradições do reisado, o folclore caririense também é uma característica histórica que percorre o sertão adentro. A maioria dos mitos e lendas busca dar sentido ao cotidiano de um determinado povo ou grupo social, provocando medo e curiosidade. Essas histórias atravessam gerações e fazem parte da tradição oral de um lugar. No Cariri, a Chapada do Araripe é o cenário descrito nos contos fantásticos que são transmitidos pelas crendices e superstições dos sertanejos, como a lenda da Pedra da Batateira, onde os índios que aqui habitavam, juraram vingança aos invasores da terra. A cratense, cordelista e membro da Academia Brasileira de Literatura em Cordel, Josenir Lacerda, conta a sua versão sobre essa lenda:

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“ O sopé da serra do Araripe foi povoado pelos índios Cariris, atraídos pela abundância de água e fertilidade da terra. As fontes de água doce e cascatas tornavam a região um paraíso natural bastante respeitado pelos povos indígenas. Então houve a interferência do homem branco que invadiu as terras e perseguiu os índios. Na época havia um aldeamento fundado pelo Frei Carlos Maria de Ferrara, com o intuito de civilizar e catequisar os índios Cariris. Sob ordens do ouvidor-geral José Costa Dias, foi feita a injusta expulsão dos índios dessa região. Com a guerra causada pela invasão, muitos nativos fugiram, porém, os bravos guerreiros que resistiram decidiram fechar o acesso às principais fontes, usando cera de abelha. Segundo a lenda, um Cacique valente colocou uma pedra gigante vigiada por uma enorme baleia, jurando voltar para destampar aquela fonte. Nesse dia o Cariri seria inundado e as águas encontrariam o mar, os índios voltariam a povoar a chapada e 16

viveriam em paz novamente.”. Diz o velho ditado ,“Quem conta um conto, aumenta um ponto” e é assim que esses mitos ganham diferentes variações como essa relatada pela professora juazeirense Graça Dias: “ Nós, moradores de Juazeiro, ficamos sempre apreensivos quando começa a chover, pois Pe. Cícero sempre dizia que nos fins dos tempos seria revelado o grande mistério que existe entre Juazeiro do Norte e Crato. Embaixo do altar-mor de Nossa Senhora da Penha, no Crato, há uma baleia adormecida que guarda uma pedra amarrada por cordas resistentes. Quando ela acordar, essa corda irá se romper e a imagem da Santa cairá em cima da pedra. Pe. Cícero também afirmava que o rio Salgadinho é um braço do mar, e este iria inundar o Crato no dia em que a Pedra da Batateira fosse parar em frente à igreja matriz, segundo ele quem morar nas imediações sofrerá com a grande inundação ”.


Tempo nublado Crato-CE 17


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Pontal da Santa Cruz Santana do Cariri-CE


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Lobisomens, almas-penadas e noites de escuridão são apenas alguns elementos das lendas que conferem um valor histórico e ilustram diversas formas de encarar os fatos inexplicáveis. No folclore de Santana do Cariri, há relatos de uma assombração muito temida pelos moradores, um diabo que aparecia numa gruta e assustava a população local. Antônio Alves da Silva, 78, residente no bairro de Inhumas conta que quando ainda era menino, ouvira seu pai falar sobre dois cães com línguas de fogo que viviam dentro da gruta espantando quem se aproximasse. O boato da aparição do diabo chegou aos ouvidos do Pe. Inácio Rufino de Moura, vigário da paróquia na época, e este tomado pela coragem convidou os paroquianos a rumarem até a colina do pontal. Chegando lá, eles fincaram um cruzeiro de pouco mais de meio metro, e daí em diante foram celebradas missas e novenas até que a assombração desapareceu. Desde então, o Pontal da Santa Cruz tornou-se um lugar sagrado, ganhando um novo significado cultural, sendo hoje uma das atrações turísticas mais visitadas da região do Cariri.

Mas ali tinha uma gruta falada em todo sertão onde o Diabo aparecia em forma de assombração. E o vento da meia noite nessa encosta dava açoite parecendo um furacão. O papa recomendou a toda comunidade para fincar um cruzeiro lá nos altos das cidades para marcar a passagem do século com boa imagem para acabar com as maldades (...) Então em 1900 todo povo festejou o fincamento da Cruz a Deus cantando louvor pra espantar o demônio pra deixar de ser medonho assim o tempo contou. (A cruz do século Poeta Maranhão)

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O SABER DO MATUTO que desafia a ciĂŞncia

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Sertanejo implorando chuvas


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s fontes mais comuns de previsão de chuva no Ceará são os chamados “profetas da chuva” e a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos – FUNCEME. Este órgão mostra as previsões científicas oficiais de acordo com estatísticas e dados atmosféricos e oceânicos. Já os profetas da chuva são pessoas mais velhas, que muitas vezes moram em zonas rurais e baseiam sua experiência de vida na lida com a terra. A sabedoria primitiva dos profetas desafia os meteorologistas e encoraja os agricultores a plantarem e a

cuidarem das roças, mesmo que a FUNCEME determine o contrário. Esse tipo de previsão do clima tem sido relacionado a mito, à superstição e à religião, porém as pessoas conferem mais credibilidade aos profetas da chuva do que aos métodos científicos do governo. A tradição da profecia da chuva não existe apenas no Brasil, estudos mostram que os povos indígenas das Américas, Ásia, África e Europa já consultavam a natureza para fazerem suas previsões do tempo e realizarem tarefas ligadas à agricultura.

s

SAIBA MAIS A Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos foi criada em 1972, em resposta aos frequentes períodos de seca que o Estado do Ceará atravessava. Ao longo dos anos a FUNCEME passou por diversas mudanças, hoje o departamento de meteorologia gera previsões climáticas para o período de fevereiro-maio e expressa o total de chuvas nas categorias: acima, na média ou abaixo da média.

Profeta da chuva realizando previsão com ninho de João -de-barro

Outras informações www.funceme.br (85) 3101-1098

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Tempo chuvoso Nova Olinda-CE

Na região do Cariri as chuvas chegam normalmente em meados de dezembro e janeiro, e os profetas da chuva como Francisco Augusto da Silva, morador da cidade de Crato, começam a observar os sinais da natureza para definir como será o inverno. Diferente dos demais profetas populares da região, seu Augusto não fundamenta suas análises no comportamento de plantas e animais, “se chover forte no mês de setembro, o inverno vai ser fraco, se chover fino, a quadra invernosa será forte” afirma ele. Segundo o profeta, ele

faz suas consultas climáticas no “Lunário Perpétuo”, um livro-almanaque baseado na observação do sistema solar, que se tornou uma leitura muito popular no Brasil. Outra referência utilizada por ele é o Livro de São Cipriano, conhecido por tratar de rituais de ocultismo e magia com inúmeras finalidades, sendo a maioria cristãs. Antigamente os almanaques eram muito usados. De acordo com seu Augusto, eles eram editados por laboratórios farmacêuticos e distribuídos entre o povo, como

um brinde, um diário especial em que se anotavam os santos do dia, fases da lua, remédios caseiros, tempo de plantio e colheita, entre outros assuntos.

Almanaque Lunário Perpétuo 22


O homem do campo sofre muito quando a FUNCEME diz que não vai chover, mas Deus me mostrou através da ciência da natureza que não se pode perder a fé. (Augusto da Silva)

Esperando a chuva: previsões e indicadores Falar sobre previsões de chuva é falar sobre o homem do campo e suas tradições. No mês de outubro, os agricultores já conversam sobre o inverno e fazem especulações sobre a duração e intensidade. Isso marca um período de ansiedade coletiva do povo sertanejo que, devido aos sofrimentos trazidos pela seca, esperam desde muito cedo pela estação das chuvas. Profetas da natureza, das chuvas, das secas, profetas populares e reparadores do tempo, são reconhecidos por todos esses nomes e afirmam que o dom da observação foi dado por Deus, por isso o termo profeta. O trabalho dessas pessoas, segundo seu Augusto, é interpretar os sinais da natureza e trazer esperança para o caboclo do sertão, sem receber nenhum pagamento em troca das previsões. Alguns indicadores de chuva usados pelos profetas podem ser sinais meteorológicos (vento, manchas e nu-

vens ao redor da lua, posição do sol, etc) ou sinais naturais (plantas, animais, insetos, cobras, lagartos, peixes, aves e burros.) Há ditados que ilustram esses indicadores: — Se o João-de-barro construir seu ninho com a abertura voltada para o oeste é sinal de uma boa estação chuvosa; — Se o mandacaru florar no fim da estação seca, é sinal que a temporada de chuvas está chegando em breve. — Se não chover no dia de São José (Padroeiro do Ceará-19 de março), quer dizer que será um ano de seca e estiagem. Se é dom, experiência ou intuição, esse

conjunto de saberes de pessoas sem educação formal ou grau acadêmico, é suficiente para dar a motivação necessária aos sertanejos que acreditam e respeitam as previsões. Muitos profetas são considerados benfeitores, portadores de otimismo e de conhecimento divino, pois aconselham os agricultores a cultivar a terra, a se preparar para uma boa colheita e acima de tudo manter a fé. Eles não provocam a chuva, mas ajudam as pessoas a confiarem no alívio e na satisfação de um inverno proveitoso.

Mandacaru florando - indicador de chuvas

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Previsão do tempo para 2016 Conforme seu Augusto, o ano de 2016 é bissexto (366 dias), e é regido pela estrela sol. O inverno será forte e áspero, também marcado por chuvas regulares; a primavera terá uma atmosfera temperada; o verão quente e o outono bastante ventoso. O tempo será com chuvas boas e bem distribuídas. Muitas nuvens carregadas no inverno e no tempo quente, a safra será boa de trigo, vinho, azeite, castanha, cevada, mel, frutas, e demais grãos. Sadio aos animais pequenos por causa do calor, ano bom a todos que trabalham com a terra na lavoura e na pecuária. O Sol e Vênus trazem prenúncios de grandes êxitos em todos os empreendimentos.

Profeta apontando para o céu nublado

Ninho do pássaro João-de-barro 25


NO BATUQUE

da zabumba

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O

som peculiar dos grupos cabaçais do interior do sertão caririense fazem parte do imaginário de muita gente. Quem cresceu nessa região, certamente reconhece de longe o som do pífano e da zabumba característicos desses grupos. O batuque, a vestimenta, os passos improvisados, o chapéu de couro e a marca do sol sob a pele são os elementos marcantes e inconfundíveis dos homens que fazem parte das bandas cabaçais da região do Cariri cearense. Sua origem conta com algumas versões, como a de que nasceu em meio aos escravos africanos, mas que se desenvolveu e adquiriu suas peculiaridades sob influência dos povos indígenas. E outra,

a de que nasceu como manifestação do homem do campo, que buscava expressar sua cultura através da música e da dança, inspirando-se na vida rural. O nome cabaçal vem de cabaça, instrumento utilizado pelos índios para confeccionar os instrumentos típicos desse grupo, como a zabumba que é originalmente feita a partir da pele de bode ou de carneiro esticada sobre a cabaças secas. Quanto ao cortejo, tradicionalmente, a banda saía em caminhada pelas ruas da localidade e a comunidade a acompanhava até a Paróquia onde ocorriam as celebrações do Santo do lugar. Ela entrava pela porta da frente da igreja ainda tocando, e depois de

executada a música dava-se início à celebração pelo padre local. Na maioria dos lugares pequenos (sítios e distritos) ainda acontece assim. Como há de se imaginar, a maioria dos integrantes desses grupos possui forte relação com a igreja católica. Atualmente, as bandas cabaçais também fazem apresentações ao ar livre, em praças, feiras e festas culturais, renovações e até mesmo em centro culturais e teatros; geralmente mediante o pagamento de “cachês”. Segundo Heloiza Duarte, a tradição da zabumba faz parte da sua vida desde a infância.

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No batuque da memória família junto aos “zabumbei- vez convidado a jantar na

Quando pequena, lembro que na época dos festejos da padroeira do distrito que meus avós moravam, eu, minhas irmãs e primos éramos acordados em meio ao batuque da zabumba e sopros dos pífanos, e corríamos até a sala de estar da casa onde encontrávamos o restante da 28

ros” (era como eu os chamava) dançando e rindo. Depois de algumas músicas íamos todos tomar café como uma grande família. Era uma tradição e continua sendo. Ano passado nessa mesma época, o grupo cabaçal que estava acompanhando os cortejos da padroeira foi mais uma

casa de minha avó, em Santana do Cariri. E é assim todos os dias. Alguma família os oferece o café-da-manhã, outra oferece o almoço, outra o jantar, e alguma outra um lugar onde dormir. Faz parte do legado cultural do povo, das memórias infantis, da herança familiar.


Banda cabaçal dos Irmãos Aniceto

Irmãos Aniceto A banda cabaçal Irmãos Aniceto surgiu no século XIX, tendo como fundador José Lourenço da Silva, o “véi Aniceto”. Homem da terra, sendo agricultor e descendente de índios do Cariri, começou a banda junto com parentes e

amigos. Logo depois ensinou o que sabia para os seus filhos e sobrinhos, passando essa a ser mais uma atividade familiar, além do trabalho agrícola. Hoje, mais de 200 anos depois da sua fundação, a banda dos Irmãos Aniceto da cidade de Crato, já na sua quarta formação - e tendo até uma banda-mirim

que conta com os netos e sobrinhos do seu fundador - mantem ainda a tradição de se apresentarem nas mais variadas localidades do sertão cearense. Sendo parte importante do folclore brasileiro que ainda resiste ao tempo, o grupo já se apresentou em boa parte do Brasil e até mesmo em Portugal e na França. O que diferencia os Irmãos Aniceto das demais bandas cabaçais da região é justamente o seu caráter familiar e originalidade, pois mesmo não havendo tempo para ensaios elaborados, visto que a maioria dos integrantes ainda trabalha no campo, eles são capazes de improvisar músicas durante suas apresentações, bem como passos de dança. Além disso, outra característica peculiar é o fato de que as suas músicas são reflexos da observação dos sons da natureza, como a imitação do choro de um cão feito no pífano. Além de que, ainda hoje eles próprios confeccionam seus instrumentos de trabalho – zabumba, caixa e pífanos – com exceção dos pratos feitos de metal que foram introduzidos recentemente. A banda possui quatro álbuns, o primeiro de 1978, patrocinado pelo Ministério da Educação e Cultura; um de 1999, parte do projeto Memória do Povo Cearense; outro de 2005, com o nome de “Forró no Cariri”; e o último de 2013, intitulado “Sou tronco, sou raiz”. 29


Romaria de Benigna Santana do Cariri-CE

HEROÍNA DO SERTÃO A nova representação da fé no cenário católico do Cariri

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E

ra o fim de mais uma tarde de sol extremamente ardente na última cidade do sul do Ceará. A temperatura média estava em 36°C quando os aproximadamente 20 mil devotos da Mártir Benigna se dirigiam do pacato bairro de Inhumas, local do martírio da jovem considerada Santa, até a Igreja Matriz de Senhora Sant’Ana, há cerca de 2 km de distância, em Santana do Cariri. O calor era intenso, a poeira da estrada de terra dificultava ainda mais o percurso, as tantas horas de pé celebrando as várias missas que aconteciam desde a manhã colaboravam para o cansaço. Mas ao contrário do que se esperava, os devotos da ‘Menina Santa de Santana’ não se compadeciam, permaneciam todos de pé ou ajoelhados rezando, cantando e se espremendo na minúscula capela construída pelos fieis como local de devoção à Benigna, ou do lado de fora dela, deixando passagem para os que ainda não haviam adentrado. Munidos de chapéus, garrafas de água e abanadores (adereços típicos dos romeiros), estendia-se uma mul-

tidão logo atrás da imagem Ilustração Benigna da Heroína da Castidade. Debaixo do sol escaldante, alguns até descalços sob a terra quente, mas todos providos de fé e devoção. Essa imagem pode ser considerada comum por essas bandas. Quem já não ouviu falar do Padre Cícero Romão Batista, ou como chamam os mais chegados, o Padim Ciço, cuja imagem glorificada no alto da colina do Horto em Juazeiro do Norte atrai milhares de romeiros todos os anos. A menina Benigna não tem ainda tamanha notoriedade quanto o Padim, mas aos poucos vem sendo reconhecida pelos católicos da região do seu entorno, bem como das demais regiões brasileiras. Os milagres associados ao seu nome vêm crescendo consideravelmente nos últimos anos, o que atrai cada vez mais fiéis de todo o Brasil e até de outros países da América Latina e Europa. Imagem essa que é claramente refletida nos milhares de devotos que acompanham todos os anos a procissão em sua homenagem. E nesse cenário desventurado, cujas adversidades fazem parte do cotidiano da maioria das pessoas, nasce uma nova imagem de fé para o católico sertanejo, que, acostumado a todo tipo de adversidade, busca na fé cristã uma válvula de escape para a vida muitas vezes sofrida que leva. 31


Biografia Benigna Cardoso da Silva, de acordo com relatos, fora uma menina simples e trabalhadora, vinda de uma família modesta, que logo nos primeiros anos de vida perdera os pais e fora adotada pela família para qual seu falecido pai trabalhava. Desde muito pequena acostumou-se ao trabalho doméstico como forma de ajudar a família que lhe acolhera. Diz-se que muito dedicada aos estudos e à fé em Deus, sempre participava das atividades da Igreja. Já aos doze anos de idade começou a ser assediada por um jovem chamado Raul, quatro anos mais velho que ela, que frequentava a mesma e escola e morava próximo à sua casa. O rapaz investia em Benigna e ela não correspondia. Indignado com o seu desprezo, certo dia Raul a seguiu até o poço em que ela ia buscar água para insistir mais uma vez nas suas investidas, e como mais uma vez Benigna o recusou, Raul a golpeou seguidas vezes com um facão, levando-a à morte. Era a tarde de 24 de outubro de 1941. Toda a população santanense ficara indignada com a brutalidade da sua morte, bem como admirada por seu comportamento tido como modelo de conduta humana e cristã,

pois acredita-se que Benigna tenha preferido morrer a pecar contra a castidade. Já alguns dias após a sua morte, começou-se a ouvir testemunhos de graças alcançadas por intercessão de Benigna. Os fiéis iam ao lugar do seu martírio, ao cemitério onde fora enterrada e acendiam velas e faziam orações, tornando esses, lugares de peregrinação. Em 24 de outubro de 2004 ouve a primeira peregrinação oficial, dando início à tradição anual da procissão e missa em seu louvor. A sua fama então se espalhou não só no Ceará, mas também em vários outros estados do Brasil, e aos poucos em outros países. O seu processo de beatificação foi oficialmente aberto em 16 de março de 2013 junto à Diocese de Crato.

Milagreira Luciana Neres Vidal, 30 anos, residente no distrito de Dom Leme, em Santana do Cariri, sofrera um aborto espontâneo a pouco mais de um ano, e desde então ficara preocupada sobre uma futura gestação. Em consequência desse trauma se apegou ainda mais à imagem da jovem tida por ela como santa. “Quando eu perdi meu primeiro bebê, fiquei com medo de ter outro, daí quando descobri que estava grávida de novo, resolvi me apegar a Santinha, então

32 Antigo túmulo da Martír Benigna


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Família de Ana Layla Benigna. Foto: Melina Duarte

sempre que eu ia fazer consulta ou ultrassonografia, eu ficava segurando um tercinho e pedindo a ela que me ajudasse com o meu bebê. Minha filha nasceu forte e saudável, e acredito que Benigna tenha me ajudado, então resolvi fazer uma homenagem a ela e coloquei o nome da minha filha de Ana Layla Benigna. Até já vou mandar fazer um vestidinho vermelho de bolinhas brancas pra na próxima procissão eu vestir ela pra agradecer pela bênção que eu recebi. Não é promessa, é só pra agradecer mesmo. Eu tenho muita fé nela”. Tarcísio Linard, 49 anos, atualmente residente no bairro Inhumas, em Santana do

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Cariri, conta que na época em que morava em São Paulo sofrera um grave acidente, em que perdera parte da pele e osso do pulso, deixando sua mão suspensa e segura apenas por uma pedaço de tecido epitelial, que posteriormente viria a gangrenar, fazendo assim com que a saída mais viável pelos médicos fosse a amputação. “Passei três dias no hospital sem poder sair de lá. Foi então que eu lembrei de Benigna, que eu sempre ouvi falarem dela na época que eu era criança e morava na Inhumas. Daí eu pedi a ela que desse uma luz aos médicos, pra que um deles resolvesse o problema da minha mão. No fim do terceiro dia, apareceu um médico japonês de nome

Paulo, e ele disse que tinha jeito, mas era uma cirurgia nova e muito cara e que ele nunca tinha feito, mas que se eu consentisse, ele faria. Então eu consenti. E mais uma vez, a noite eu rezei por Benigna, pedi a ela que auxiliasse os médicos, que não desse nada errado. Eu não queria que minha mão ficasse perfeita, eu só queria que desse pra segurar a minha câmera. Era só o que eu queria. Aconteceu que no outro dia as 9 horas da manhã fui pra mesa de cirurgia e o médico fez todo o seu trabalho, e graças a Deus fiquei com minha mão perfeita, só com uma cicatriz. Restou o que eu iria fazer pra agradecer a Benigna. Então pedi minha aposentadoria da empresa que trabalhava lá e vim de volta para cá. O meu sogro tinha doado essas terras pra fazer a capelinha de Benigna, então quando ele soube da minha promessa, me doou as terras atrás da capela pra que eu fizesse minha casa. Então hoje eu sou um divulgador, um propagador das benfeitorias que a Benigna fez na minha vida e na de tantas outras pessoas”.


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