No Title

Page 1

EDITORIAL

O

O uso deuso substâncias de substâncias psicoativas psicoativas seja com seja finalidades com finalidades curativas curativas ou com ou outros fins, com acompanha outros fins,o acompanha homem de formas o homem diversas de formas ao longo diversas da história ao longo da civilização, daadquirindo história da significados civilização, adquirindo muito distintos significados que espelham muito distintos a imensidão que das crenças espelham a imensidão e as tentativas das crenças de circunscrever e as tentativas fenômenos, de circunscrever tão elementares fenômequantotão nos, de elementares difícil elaboração quanto psíquica, de difícil como elaboração o adoecimento psíquica, e a morte. como o Esse número edoa Correio adoecimento morte. pretende fazer circular o importante debate que se coloca Esse atualmente número sobre do Correio as relações pretende existentes fazerentre circular o uso o importante de psicofármacos debate e suas que se conseqüências coloca atualmente na subjetividade sobre as relações moderna, existentes ou seja,entre os efeitos o usodas de articulações doediscurso psicofármacos suas conseqüências da ciência com na subjetividade o do capitalismo moderna, e quaisouasseja, possios bilidades efeitos das dearticulações intervençãodo dodiscurso discursoda dociência psicanalista. com o do capitalismo e quais Trata-se as possibilidades de um diálogo de intervenção essencial, do emdiscurso função da doextensão psicanalista. cada vez maior do uso e abuso Trata-se dede substâncias um diálogopsicoativas, essencial, em bemfunção como da evolução extensão crescente cada vez na produção maior do usoe e qualificação abuso de dos substâncias medicamentos psicoativas, que dispomos. bem como É uma da evolução temática densa e com crescente na muitas produção ramificações e qualificação que se dosexpressam, medicamentos no decorrer que dispomos. da leitura É dessetemática uma número,densa pela amplitude e com muitas dasramificações questões propostas que se expressam, pelos autores, no decorcomo porda rer exemplo, leitura desse os efeitos número, bioquímicos pela amplitude na organização das questões de idéias, propostas por questões pelos auclínicas tores, como como poros exemplo, cuidados os efeitos com a bioquímicos transferência na no organização ato de prescrever, de idéias, por ou ainda, pelas questões clínicas conseqüências como os cuidados do usocom de psicotrópicos a transferência nanoinfância. ato de prescrever, Porainda, ou estes pelas tópicos conseqüências relacionados,do fica uso evidente de psicotrópicos o interesse naem infância. nos aproximarmos um Por pouco estesmais tópicos do conhecimento relacionados, fica gerado evidente pelosoavanços interesseda empsiquiatria, nos aproda neurobiologia ximarmos um pouco e damais farmacologia, do conhecimento e a necessidade gerado pelos de produção avanços da de psiquinovas abordagens atria, da neurobiologia sobre os avanços e da farmacologia, científicos nessas e a necessidade áreas. de produção de novas Essesabordagens desdobramentos sobre e ossuas avanços conseqüências científicos nessas têm sido áreas. objeto de discussão em Esses diferentes desdobramentos âmbitos de nossa e suas associação. conseqüências A publicação têm sido dessa objeto seção de temática lança, discussão em diferentes então, alguns âmbitos elementos de nossapara associação. subsidiarAesse publicação debate,dessa cujo prosseguimento seção temática lança, está previsto então, alguns para ocorrer elementos no segundo para subsidiar semestre esse desse debate, ano em outros cujo prosseguimento espaços institucionais.Aproveitamos, está previsto para ocorrer no ainda, segundo para lembrar semestrea desse todos a proximidade ano em outros em espaços que nos institucionais. encontramos de mais uma jornada de conclusão de um Aproveitamos, Percurso e de ainda, sua importância para lembrar na renovação a todos a proximidade de nossas observações em que nos sobre os efeitos encontramos de singulares mais uma jornada de transmissão de conclusão da psicanálise. de um Percurso e de sua importância na renovação de nossas observações sobre os efeitos singulares de transmissão da psicanálise.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

1


NOTÍCIAS

NOTÍCIAS

CICLO DE DEBATES MACHADO DE ASSIS NA CULTURA PSICANÁLISE E LITERATURA O ciclo de debates mensal promovido pela APPOA, Instituto de Letras da UFRGS e Livraria Cultura prossegue sua trajetória neste mês de julho. Desta vez três palestrantes para iniciar as discussões tanto a partir da obra, como das condições e dos efeitos de sua produção. A psicanalista Marieta Madeira Rodrigues estará fazendo suas observações a partir do conto “Uns braços”, temática recorrente na obra machadiana esta que se refere aos detalhes do corpo e da sensualidade. O professor de literatura Alessandro Castro vai discorrer sobre sua pesquisa a respeito de “Machado de Assis funcionário público no Rio de Janeiro do sec. XIX”. O jornalista Rodrigo Breuning abordará “Machado de Assis e seus leitores”. A iniciativa prossegue até outubro, sempre na última quinta-feira de cada mês e já tem confirmadas as presenças de Ana Costa, Flavio Loureiro Chaves, Sergio Fischer e Abrão Slavutsky. Data: 28 de julho, quinta-feira Hora: 20 horas Local: Livraria Cultura de Porto Alegre Palestrantes: Marieta Madeira Rodrigues; Alessandro Castro e Rodrigo Breuning. Entrada Franca

2

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

SEMINARIO: “O DIVÃ E A TELA” O próximo “O divã e a tela” traz para a discussão “Saraband”, último trabalho de Ingmar Bergman, autor de belos filmes como “Fanny e Alexander”, “Morangos Silvestres”, “O Sétimo Selo” e tantos outros títulos que fazem parte da história das articulações da psicanálise com o cinema. Na película inédita entre nós, temos uma narrativa de corte clássico - quase princípio, meio e fim - que nos traz a velha problemática da novela familiar. São três gerações que são examinadas e o resultado é uma análise profunda e inquietante das transformações da subjetividade contemporânea. “Saraband” é um filme inédito no Brasil, será exibido com legendas em espanhol, exclusivamente para as discussões no seminário. Data: 13 de julho, quarta-feira às 19h30min. Local: Sede da APPOA Coordenação: Enéas de Souza e Robson Pereira

NÚCLEO PASSAGENS - SUJEITO E CULTURA Dando continuidade às atividades do Núcleo Passagens, estaremos recebendo, no próximo dia 06 de julho, o colega psicanalista Orlando Cruxên. Autor dos livros “A sublimação” (Jorge Zahar, Col. Passo-a-Passo, 2004) e do recém lançado Léonard de Vinci avec Le Caravage – hommage à la sublimation et à la création (Ed. L’harmattan, 2005 - disponível na biblioteca da APPOA). Orlando é membro do Corpo Freudiano de Fortaleza e Professor da Universidade Federal do Ceará. Neste encontro, que será realizado na sede da APPOA, às 21 h., ele abordará o tema da sublimação, desenvolvido em seus livros. Data: 06 de julho, quarta-feira, às 21h. Local: Sede da APPOA. Palestrante: Psic. Orlando Cruxên

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

3


NOTÍCIAS

NOTÍCIAS

ESTUDOS PSICANALITICOS SOBRE GRUPOS

HOMEPAGE – WWW.APPOA.COM.BR

Este grupo visa a criação de um espaço de estudo e reflexão para aqueles que desejem iniciar ou que já estejam envolvidos no trabalho com grupos e instituições. A periodicidade será mensal. A cada encontro haverá um texto base, sobre o qual o coordenador fará uma explanação. A seguir se trabalhará em grupo operativo, cuja tarefa será a discussão do texto, à luz da pratica de cada participante. Os encontros ocorrerão na sede da APPOA, a partir de agosto, no primeiro sábado de cada mês, das 10 às 12 horas. Textos de referência: Primeiro encontro: Zito Lema, V. Conversaciones con Enrique Pichon Rivière sobre el arte y la locura. Buenos Aires: Ediciones Cinco, 1986. Segundo encontro: Sartre, J.P.Cuestiones de Método. In Critica de la razón dialéctica. Tomo I. Buenos Aires: Editorial Losada, 1995. Terceiro encontro: Broide, J. Texto de qualificação para a tese de doutorado. A psicanálise nas situações sociais críticas. A violência que se abate sobre a juventude das perifierias. Programa de Psicologia Social da PUCSP. Núcleo de Psicanálise e Sociedade, 2004. Quarto encontro: Pichon Rivière, E. Tratamento de grupos familiares: psicoterapia coletiva. Transferencia e contratransferencia na situação grupal. In O Processo Grupal, São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000. Pichon Rivière, E. Picasso y el inconsciente. In el Proceso Creador. Del psicoanálisis a la psicología social. Tomo III. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1987. Quinto encontro: Fernández, A. M. El Campo Grupal. Notas para una genealogia. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 2002. Coordenação: Emília Broide e Jorge Broide

Nossa página vem se constituindo como uma janela cada vez mais visitada por diferentes pessoas que procuram informações sobre a psicanálise e sobre a APPOA. Entre nós, contudo, prevalece o e-mail, que, mesmo sendo ágil, lota nossas caixas de mensagem e é muito rapidamente “deletado”, não constituindo “memória”. Tanto a homepage como o e-mail tem funções específicas e diversas. Não se trata de escolher entre um ou outro, mas de podermos ocupar o espaço disponível na página para nossa interlocução e divulgação de nosso trabalho. Além de permitir a consulta pública e, portanto, o acolhimento de interessados na psicanálise, a homepage também permite registrar e guardar a informação, para posterior consulta. Queremos lembrar que a página da APPOA ainda tem espaço para que grupos, seminários e cartéis façam nele sua interlocução e seu arquivo de textos. Para fazer uso desse espaço, entre em contato com nossa secretaria. Marta Pedó

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

4

MUDANÇA DE ENDEREÇO Charles Lang e Ana Sílvia Lang informam o novo endereço de seu consultório: Rua Ramiro Barcelos, 1793/705, telefone 3333-2116.

5


SEÇÃO TEMÁTICA

SIBEMBERG, N. A Prescrição de Psicofármacos...

A PRESCRIÇÃO DE PSICOFÁRMACOS: UM ATO DE FALA EM TRANSFERÊNCIA

efeito da prescrição de um medicamento vai além do que no orgâ nico ele, como elemento bioquímico, pode causar. O ato de pres crever é o fechamento de uma cena que envolve médico e paciente, onde o primeiro escuta, observa e ausculta aquilo do que o segundo se queixa, decodificando o mal estar manifesto na fala e no corpo em algo que, segundo o conhecimento médico, possa ser remediado. Entre a abertura e o fechamento desta cena encontramos palavras dispostas em distintas séries significantes que causam encontros e desencontros, potenciando ou enfraquecendo os efeitos de um fármaco a ser tomado por um sujeito conforme as orientações do médico. O avanço recente da psicofarmacologia enquanto terapêutica do sofrimento psíquico impõe a nós, psicanalistas, uma reflexão que, sem menosprezo, vá além das críticas ao império da industria farmacêutica e sua influência na construção da nosografia psiquiátrica, bem como daquilo que o remédio opera como economia de um trabalho subjetivo. Os padres e xamãs, cuja experiência no trato com o sofrimento da alma/corpo não podemos negligenciar, souberam reconhecer que a ação das poções, para ter sua eficácia aumentada, deveria ser reforçada pela prática das palavras. A arte de curar estaria situada na arte da fala e sua eficácia simbólica sobreposta ao remédio. Assim, a relação de um sujeito com a droga prescrita pelo seu psiquiatra clínico não se resume aos efeitos da química sobre os neurotransmissores, mas depende da relação intersubjetiva que se impõe entre o paciente e seu clínico, sem deixar de lado as referências de ambos ao discurso social, à cultura. Derrida (1991), na leitura que fez de Fedra de Platão, nos coloca diante da bivalência semântica do pharmakon, entre o remédio e o veneno. O objeto que é exterior ao sujeito se desqualifica como substância, encontran-

do sua requalificação pela fala quando esta é formada do interior e atribui a si uma memória que não poderia repousar no artifício de uma exterioridade. Na língua portuguesa, encontramos este mesmo duplo sentido em um sinônimo de fármaco. A palavra droga tanto designa um remédio, algo que vem remediar de forma legítima uma dor, seja do corpo ou da existência, como indica uma substância usada de forma não legitimada no discurso social, porquanto produtora de um gozo outro, o gozo toxicômano. A mesma droga comprada legalmente nas drogarias pode ter seu uso deslocado da referência terapêutica para o paradigma da toxicomania. É o caso, por exemplo, dos benzodiazepínicos. Estes medicamentos utilizados como ansiolíticos e indutores do sono tem o poder de produzir dependência física. Seu consumo encontra-se disseminado nos lares, sendo usados, com grande freqüência, por adolescentes que os encontram nas mesas de cabeceira de seus pais. Outro exemplo é os inibidores do apetite que contém em sua fórmula a anfetamina, ou derivados, usados como tóxico por seus efeitos euforizantes. Isto sem falar na utilização de medicamentos para provocar intoxicações suicidas, os mesmos que são prescritos pelo médico ao sujeito com o objetivo de aplacar seu sofrimento, seja ele depressivo, paranóico, ou outro. Os médicos costumam se deparar com situações que fogem a lógica do discurso científico, como inexplicáveis resistências por parte de um paciente a determinada medicação, bem como do uso de prescrições por parte de cuidadores para outros fins. Um adulto esquizofrênico costumava solicitar que não lhe prescrevesse as “zinas”(levomepromazina, clorpromazina, prometazina) porque estas lhe causavam impotência. No entanto, tomava de bom grado o haloperidol, medicação neuroléptica que é, geralmente, motivo de resistência por grande parte dos pacientes em razão de seus efeitos extrapiramidais que causam sensações corporais muito desagradáveis, e que também podem produzir, entre outros efeitos colaterais, disfunções sexuais. Teria esta resistência alguma relação com o fato das três últimas letras do nome de sua mãe serem ina? Há também o caso de pais que resistem a retirada da prescrição de determinados medicamentos para seus filhos, como a Ritalina, receitada para o transtorno de déficit de atenção com

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

Nilson Sibemberg

O

6

7


SEÇÃO TEMÁTICA

SIBEMBERG, N. A Prescrição de Psicofármacos...

hiperatividade. Pais e mães que são ou já foram usuários de drogas podem vir a fazer uso das medicações prescritas a seus filhos seguindo a mesma lógica que ordena o consumo da substância tóxica, forçando uma identificação das crianças neste lugar. Em algumas situações há a agravante de que a droga é administrada de forma utilitária no filho para garantir o gozo dos pais. Há situações onde, sobre o objeto prescrito pelo terapeuta, o paciente sobrepõe fantasias que podem produzir efeitos indesejados. A prescrição da ingesta de uma medicação em uma paciente histérica precipitou o transbordamento de uma fantasia erótica oral, manifesta numa crise conversiva. Em outra ocasião relatei o caso de uma mãe que ficara presa a significação unívoca do significante “deficiência” quando o oftalmologista do filho designara o estrabismo da criança como um tipo de deficiência visual que requeria determinado tipo de intervenção oftalmológica. Tomada pelo excesso de significação dessa palavra, a mãe se negou a aceitar a indicação médica atribuindo a ela um valor agressivo contra seu filho. É comum que pacientes demandem ou recusem determinada medicação pelo significado imaginário colado ao objeto real, produto de metáforas que o discurso social produz. Pacientes psicóticos podem recusar o consumo de medicamentos antipsicóticos, porque o diagnóstico de que está “louco” vem junto com a prescrição do remédio. A loucura está associada, no discurso social, com a desrazão, sendo que a palavra do ‘louco” perde o seu valor de verdade, não apenas social, mas também de sua posição de sujeito. Assim, o uso de um medicamento anti-psicótico acarretaria numa desvalorização do sujeito, e não em um tratamento. Por outro lado, a sociedade do espetáculo, aquela que não suporta a tristeza, movida pelo imperativo da felicidade, provocou o incremento desmesurado da prescrição de antidepressivos. Não é sem razão que as peças publicitárias do Prozac, nome comercial da fluoxetina, o designaram como a droga da felicidade. Há pacientes que chegam na consulta psiquiátrica com seu auto diagnóstico já formado, depressão ou síndrome do pânico. Alguns, inclusive, só precisam do médico para anotar a prescrição no receituário especial e assinar o nome

com o número do registro profissional, já que eles sabem de antemão qual o remédio que devem tomar. Há situações em que um paciente não demanda a intervenção de um psiquiatra, porém vem à consulta trazido por um terceiro que se coloca como cuidador. A demanda, nestas situações, não é do sujeitado ao ato médico, mas daquele que se outorga a posição de responsável pelo primeiro. O clínico deve estar muito atento a estas montagens, já que, não raro, é situado transferencialmente pelo paciente como agente de controle e não de cuidado, gerando forte resistência a sua intervenção. As situações colocadas nos indicam que a resposta de um paciente diante de uma indicação terapêutica não é de ordem cognitiva, mas é subjetiva e depende do enlace transferencial que se produz na relação pacienteterapêuta. Um sujeito demanda uma consulta psiquiátrica porque há um saber que lhe escapa, o inconsciente. Mesmo que o pedido do paciente venha dirigido ao objeto fármaco, há um suposto de saber colocado sobre este objeto. Saber aplacar a dor da angústia, saber afastar os pensamentos indesejados que se impõe a mente do neurótico obsessivo, saber nomear e preencher aquilo de simbólico que faltou no investimento corporal no hipocondríaco, saber aplacar a dor da perda amorosa na histeria, saber manter o saber intocado no seu lugar de absoluto na não demanda psiquiátrica do paranóico. Sobre este suposto de saber projetado sobre o remédio é acrescentado um suposto saber sobre aquilo que ao sujeito falta e um saber manejar com o objeto que pode acalmar o sofrimento que se impõe. Este é dirigido ao médico. A maneira como o clínico vai se colocar diante deste suposto será determinante na construção do laço transferencial. O paciente vai escutar a palavra do médico não pelo sujeito gramatical, o do enunciado científico, mas movido por suas condições de enunciação. A tomada (oral, intramuscular ou significante) da palavra do psiquiatra vai se dar pelo paciente menos no lugar técnico-científico que move o raciocínio do clínico, e mais pela sua enunciação inconsciente que precipita a formulação da demanda. Assim, a mensagem do médico é recebida de forma invertida.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

8

9


SEÇÃO TEMÁTICA

A verdade do fármaco não diz respeito somente ao corpo biológico, mas também a do sujeito do inconsciente. Portanto, a prescrição e a tomada de um psicofármaco não se resume aos efeitos sobre a modulação neurotransmissora nas sinapses neuronais. Ao objeto real, que produz efeitos no real do organismo, se sobrepõe sentidos imaginários e representações simbólicas que, por sua vez, irão interferir fortalecendo ou enfraquecendo a eficácia da intervenção clínica. A transferência é um fenômeno que não se restringe a prática psicanalítica, devendo ser levada em conta também pelo psiquiatra clínico. A psiquiatria necessita resgatar a proximidade com a psicanálise, porém a psicanálise corre importantes riscos na mera oposição aos psicofármacos, significando-os perenemente do lado do veneno. Refletir sobre os modos reais, imaginários e simbólicos de ação destes medicamentos prescritos no contexto de uma relação transferencial pode permitir ao psicanalista melhor indicar o uso deles (através de uma consulta psiquiátrica) quando se faz necessário para o paciente, bem como melhor dispor das representações a eles atribuídas pelo analisando no transcurso de uma análise. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA: DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991. FEDIDA, P. A fala e o pharmakon. Em Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, ano I, número 1,março de 1998.

PSICANÁLISE E PSICOFARMACOLOGIA: NOVAS QUESTÕES DE UM DEBATE ATUAL1 Mário Eduardo Costa Pereira 2

E

m outubro de 1995, a prestigiosa revista científica francesa La recherche publicou um número dedicado ao que chamou de “os me dicamentos do espírito”. Não se tratava de modo algum de iniciar um debate novo, mas certamente era uma contribuição valiosa para situar os termos de uma problemática contemporânea de uma antiga questão: a das relações entre a subjetividade e psicofarmacoterapia. Em psicanálise, este tema sempre foi tratado de uma forma apaixonada, seja por que implica o risco de uma redução objetivante do sofrimento psíquico, seja por que os psicanalistas se sentem francamente ameaçados por uma abordagem dos sintomas mentais que exclui a referência ao desejo e ao inconsciente e que se reclama de uma cientificidade experimentalmente validada. Além do mais, com a crescente melhora dos resultados terapêuticos obtidos pelos tratamentos medicamentosos, reduzindo drasticamente o tempo e os gastos econômicos necessários para se obter um alívio do sofrimento e das limitações impostas pela dor mental, a psicanálise passou a ver-se numa posição desconfortável quanto à justificativa de suas propostas clínicas, num mundo onde cada vez mais são valorizadas a eficiência, a rapidez e a garantia. Sem dúvida, os critérios de melhora dos métodos farmacológicos são definidos no interior de uma concepção psicopatológica e ética que considera a eliminação pura e simples dos sintomas como uma vantagem autoevidente, que justifica todos seus esforços e procedimentos. Isso, contudo, 1

Uma primeira versão do presente artigo foi publicada na Revista Pulsional, nº 99 em 1997. Em 2003 foi publicado com este formato no Informativo da Clínica de Psicologia da UNIJUÍ – “Falando Nisso”. Nº 11. Mar/abr de 2003. 2 Psiquiatra, psicanalista e professor do Depto de Psicologia médica e psiquiatria – UNICAMP. Doutor em Psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade Paris VII.

10

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

11


SEÇÃO TEMÁTICA

Pereira, M. E. C. Psicanálise e Psicofarmacologia...

não dispensa a psicanálise de realizar um esforço ainda maior no sentido de especificar suas próprias concepções, quanto às relações entre subjetividade, sintoma e proposta de cura. Ou seja, o problema coloca-se para a psicanálise em um plano essencialmente psicopatológico e de delimitação de suas pretensões clínicas. Por outro lado, pode-se perguntar se a psicanálise tem estado à altura de responder às novas questões colocadas pela psicofarmacologia de uma forma que vá além de certas generalizações já bem conhecidas, e de petições de princípio. Ou, ainda mais simplesmente: estão os psicanalistas suficientemente informados dos termos mesmos do debate contemporâneo nesse campo, de modo a que possam se situar de forma pertinente face às novas questões? Os artigos publicados em La recherche são suficientemente contundentes para que se reflita de uma forma mais precisa sobre os progressos atuais no campo do tratamento farmacológico dos sofrimentos psíquicos e com maior razão ainda quando se leva em conta que, entre os articulistas do número mencionado, estão alguns dos psicanalistas mais importantes do contexto atual. Daniel Widlöcher, por exemplo, sustenta que é necessário aceitar o fato de que um produto químico pode recriar um pensamento com conteúdos normais. Para ele, é preciso admitir que “estados patológicos indiscutivelmente provocados por causas morais são curados pro medicamentos”. Notese que sua afirmação vai bem além das habituais disputas sobre a preponderância ou não de fatores biológicos na causa e no desencadeamento de transtornos mentais. O que ele afirma é que os próprios distúrbios de causas morais são “curados” por medicamentos. Widlöcher coloca esta constatação como um desafio para a ciência moderna e, em particular, para a psicanálise. Na seqüência de seu argumento, o psicanalista e psiquiatra francês retoma a antiga tese do paralelismo psicofisiológico ao sustentar que a todo evento mental corresponde um evento fisiológico: “A um instante dado, o estado mental exprime um estado cerebral”. Segundo ele, o uso de psicotró-

picos modifica um estado cerebral, o que por sua vez tem a conseqüência clínica de alterar o estado mental psicopatológico. Contudo, ele alerta para o erro comum que cometem o neurobiólogo “reducionista” e o psicogeneticista “puro” ao esquecerem que a recíproca é verdadeira e que alterações no estado psíquico, sejam aquelas introduzidas pela psicanálise ou por uma psicoterapia, necessariamente devem alterar o estado material do sistema nervoso. Ainda segundo Widlöcher, deve-se distinguir a ação das psicoterapias, que modificam sistemas de pensamento produzidos por organizações nervosas complexas e a dos psicotrópicos modernos, que modificam as organizações neuronais reguladoras que agem sobre funções elementares e muito gerais da atividade mental. Quanto a isso, não é de se admirar que os efeitos constatados dos psicofármacos incidam, sobretudo, nos processos psíquicos gerais e não sobre operações mais delimitadas. Um grande debate sobre os modelos de interação cérebro-psíquicas, melhor adaptados aos conhecimentos atuais, está, portanto, em vias de se organizar. Sem subscrever inteiramente as idéias de Widlöcher, parece-nos adequado ainda assim procurar situar as grandes linhas organizadoras contemporâneas do diálogo entre psicofarmacologia e psicanálise, tentando apresentar o palco teórico-prático em que ele tem lugar na atualidade.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

12

PSICOFARMACOLOGIA E SISTEMAS OPERACIONAIS DE DIAGNÓSTICO Os progressos contemporãneos da psicofarmacologia são, sem dúvida, correlativos a uma crescente aceitação no plano psiquiátrico internacional de uma concepção operacional e pragmática da psicopatologia. Nesta perspectiva, o DSM-IV constitui o exemplo paradigmático. Não se trata mais, como nos tempos de Kraepelin, de fundamentar a precisão descritiva dos quadros psiquiátricos sobre uma larga experiência clínica do “psiquiatra experimentado”. Busca-se um valor supremo na abordagem nosográfica: a confiabilidade dos diagnósticos. Em outras palavras, um sistema de classi-

13


SEÇÃO TEMÁTICA

Pereira, M. E. C. Psicanálise e Psicofarmacologia...

ficação de transtornos mentais será tanto mais valorizado quanto maior for a coincidência dos diagnósticos atribuídos a um mesmo caso clínico por diferentes observadores. Trata-se de construir um “Manual” nosográfico que codifique de maneira extremamente clara os critérios tanto de “inclusão” quanto de “exclusão” de uma determinada situação clínica em uma de suas categorias diagnósticas. Estes critérios devem ser de natureza empírica, imediatamente observáveis, independentes da formação psicopatológica do observador e minuciosamente descritos e agrupados. Nota-se assim, o caráter extremamente “operacional” dessa forma de aproximação do sofrimento psíquico. Na definição de transtorno de pânico, por exemplo, o item A corresponde aos “critérios de inclusão” naquela categoria diagnóstica. Os demais são “critérios de exclusão”, ou seja, a presença de qualquer um deles impede que se estabeleça o diagnóstico. Apesar de fatores emocionais poderem ser facilmente depreendidos de uma situação psicopatológica que se caracteriza por aquilo que a angústia tem de mais “puro”, ou seja, seu caráter enigmático e de radical indeterminação, nenhuma palavra é dita nesse sentido. A eventual participação da subjetividade do paciente no surgimento de suas crises não é propriamente negada. Ela simplesmente não é levada em conta para fins de descrição operacional do quadro. É mais importante que o diagnóstico seja “confiável” do que sofisticado, do ponto de vista da elucidação dos elementos em jogo na constituição daquela condição psicopatológica específica. A outra característica dessas classificações é seu caráter necessariamente precário e aberto: embora o DSM-IV defina de uma maneira muito precisa cada um de seus transtornos, tais “constelações diagnósticas” são provisórias, uma vez que se aguarda o acúmulo de novos conhecimentos experimentalmente validados para que seja organizada uma nova edição que atualize as categorias diagnósticas ao estado atual dos conhecimentos. Tudo isso tem por pano de fundo um ideal de comunicação que diminua ao máximo as ambigüidades no campo do diagnóstico. Assim sendo, as ditas “teorias” ou “escolas” no campo da psicopatologia são vistas antes de tudo como um obstáculo no progresso da ciência. Elas introduzem uma

delimitação absolutamente irredutível de “objetos psicopatológicos”, que impedem um mínimo de entendimento nesse campo. Desse modo, num certo sentido, essas classificações operacionais se propõem a constituir uma base mínima de entendimento descritivo para pesquisadores e clínicos das mais diversas orientações teóricas. A classificação operacional ideal seria absolutamente ateórica e objetiva. Ela deveria, por isso mesmo, constituir a base de constituição de todo o pensamento psicopatológico, independentemente da escola. O caráter utópico de tal proposição salta aos olhos. Evidentemente, a idéia de “ateórico” implica uma teoria muito clara de validação do procedimento diagnóstico, ou seja, a de que ele deve estar submetido a critérios empírico-experimentais de validação. Aí, parece-nos, começam todos os problemas. Como exigir da psicanálise - mas também de outras disciplinas experimentais que se encontram no campo da psicopatologia - que defina seu objeto e seus procedimentos segundo critérios empíricos? Sem dúvida, já houve e continuam a existir tentativas dessa ordem, feitas a partir do próprio contexto psicanalítico. Contudo, os resultados obtidos, mesmo que por vezes extremamente interessantes, situam-se fora do referencial sustentável a partir da situação analítica – única fonte autêntica da experiência analítica. Essa questão pode conduzir a discussões mais apaixonadas (e apaixonantes) tais como a do interesse de se definir apenas de uma forma ampla e pragmática o termo “psicanálise” como se referindo a tudo aquilo que culturalmente possa evocar uma prática clínica habitualmente conhecida por psicanálise. Mas não será por este vértice que abordaremos aqui esta questão. Parece-nos mais urgente colocar a pergunta seguinte: “a quem serve organizar o campo da experiência do sofrimento psíquico segundo critérios empíricos e operacionais?” A tal pergunta, a resposta só pode ser às disciplinas cujos fundamentos são empíricoexperimentais, notadamente as neurociências, a epidemiologia e, naturalmente, a psicofarmacologia. A psicanálise está fora do âmbito das disciplinas que podem se beneficiar de tal tipo de abordagem.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

14

15


SEÇÃO TEMÁTICA

Pereira, M. E. C. Psicanálise e Psicofarmacologia...

A posição das várias correntes psicanalíticas em face dessa questão tem sido freqüentemente estereotipada e, como tal, culturalmente estéril. Ela resumia-se, no mais das vezes, a organizar de forma maniqueísta o campo do adversário “objetivante” como sendo aquele que visava, através dos saberes propiciados pela ciência, a ocultar a dimensão propriamente subjetiva expressa nos sintomas. A “medicina”, fundada no contexto contemporâneo sobre um discurso de maestria em relação à clivagem do sujeito, sustentaria a impostura de oferecer uma garantia cientificamente validada sobre o enigma colocado pelo sofrimento do sintoma. Ela contribuiria dessa forma para o recalque e o aprofundamento da distância entre o sujeito que sofre e o real de seu inconsciente. Essa estigmatização da abordagem psicofarmacológica vai junto com a atribuição de uma concepção biologizante às abordagens biológicas em psiquiatria. Tal postura, à força de tanto se repetir, parece que perdeu sua contundência. Além do mais, ela não parece ir ao fundo do problema. A psiquiatria biológica contemporânea, especialmente a psicofarmacologia, não tem mais necessidade de sustentar impreterivelmente uma concepção biológica da etiologia da doença mental. Trata-se fundamentalmente de abordar o fenômeno psicoapatológico por um vértice biológico. Uma coisa é demonstrar estatisticamente a correlação de um certo fenômeno psicopatológico entre gêmeos monozigóticos em uma freqüência muito maior do que em dizigóticos. Outra, completamente diferente, é concluir que daí infere-se necessariamente uma “causa” biológica, independente da subjetividade, para o fenômeno em questão. A própria postura “ateórica”, que sustenta suas delimitações diagnósticas dá mostras do caráter não-indispensável, e mesmo metafísico, de uma teoria etiológica biológica. Assim, a psiquiatria biológica pode perfeitamente bem dispensar o recurso a uma teoria biológica que explicaria completamente, e de forma absoluta, a instalação de todo e qualquer distúrbio psíquico. Tudo se passa como se a psiquiatria biológica de hoje, sobretudo a psicofarmacologia, colocasse assim a questão à psicanálise: “nós abordamos o fenômeno psicopatológico por seu vértice biológico. E não ne-

cessitamos, para tanto, sustentar uma teoria biológica da constituição da subjetividade. Contudo, por mais modesta que seja nossa abordagem, ela tem propiciado indiscutivelmente resultados positivos nos planos clínico e terapêutico. Além disso, conseguimos dar conta de nossos procedimentos segundo um modelo de ciência empírico-experimental. E vocês?”. O que se observa é que para disciplinas tais como a psicofarmacologia e a epidemiologia, a focalização de objetos empiricamente delimitados e a emancipação de certas noções psicanalíticas mal aplicadas ao contexto psiquiátrico constituíram, é preciso que se reconheça, um progresso significativo para essas disciplinas. A questão talvez não se coloque sob a forma de uma negação global dos objetivos e pressupostos dessas duas disciplinas mas, isto sim, de seus limites. A negação generalizada e indiscriminada por parte da psicanálise dos desenvolvimentos propiciados por estas duas disciplinas no contexto contemporâneo traz o risco de jogar a psicanálise em uma postura obscurantista e “fundamentalista”, insustentável pelo isolamento dialético que impõe. Édouard Zarifian, um dos maiores – e mais críticos – representantes da psiquiatria biológica francesa contemporânea, afirma em La recherche que os psicotrópicos visam aos sintomas e não as causas dos transtornos mentais. O título que ele dá a seu artigo é por si mesmo sugestivo de uma postura prudente de um psiquiatra biológico: “os limites de uma conquista”. Nele, o autor propõe estratégias modestas de pesquisa biológica, evitandose a tentação de conclusões excessivamente abrangentes e centrando-se em manifestações psicopatológicas onde a importância do determinismo biológico é provavelmente mais preponderante, como nas formas deficitárias de esquizofrenia e na psicose maníaco-depressiva. Mesmo assim, ele chama atenção de que entre colocar em evidência um fator de vulnerabilidade biológica em um determinado quadro mental e pretender ter encontrado a causa biológica desse transtorno, há um abismo intransponível. Permanece, contudo, a questão das relações entre os discursos contemporâneos sobre o sofrimento mental e a construção de estratégi-

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

16

17


SEÇÃO TEMÁTICA

as correlativas de abordagem clínico-terapêutica. O surgimento de novas categorias diagnósticas – que rapidamente difundem-se através da mídia para a cultura – e o surgimento de uma mentalidade social amplamente interessada nos progressos das ciências que tratam da mente estão profundamente relacionadas. Nesse contexto, a psicofarmacologia assume um papel preponderante pois ela surge como uma resposta positiva da ciência a este horizonte obscuro e pouco definível dos padecimentos próprios à alma.

Pereira, M. E. C. Psicanálise e Psicofarmacologia...

Uma posição cômoda – mas extremamente perigosa – para a psicanálise é a de omitir-se desse debate a título de possuir sua própria delimitação clínica e ética das relações entre sintoma, subjetividade e cura. Enclausurada em suas certezas, sem experimentar qualquer necessidade de se situar num nível mais amplo de discussão, a psicanálise corre o risco de ficar fora de construção cultural das relações mente-corpo de sua época. É muito fácil, também, sustentar o caráter superado de uma tal divisão “cartesiana” entre coisa extensa e espírito pensante, apoiando tal convicção numa postura renitente de “nada querer saber” das questões colocadas pela psicofarmacoterapia contemporânea. Esta é desqualificada como interlocutora e rotulada de agente do recalcamento e da acentuação da clivagem mente-corpo. O debate extingue-se antes mesmo de acontecer. Com isso, as versões cada vez mais cientificistas das novas descobertas chegam à cultura sem qualquer intervenção interessante da comunidade psicanalítica. Pierre Fédida, quando de sua última visita ao Brasil, expressou de forma sintética e em termos bem precisos o fundo desse problema, numa conferência no Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC de São Paulo. Disse o psicanalista francês: “A psicofarmacologia é algo importante demais para que nós nos demos ao luxo de deixar que os psicofarmacologistas a façam sozinhos.”

Na edição mencionada de La recherche, num artigo intitulado precisamente Le chimique et le psyche: um défi pour la psychanalyse, Fédida retoma esse problema de forma bastante clara. Ele sustenta que a impregnação cultural de um discurso que vê nos psicofármacos a resposta completa e absoluta para o sofrimento humano ameaça toda a prática clínica e pode levar ao esvaziamento da própria vocação clínica da psicanálise, que sobreviveria apenas como discurso sobre o sujeito e seu desejo. Ou seja, a psicanálise ganharia em não se esquivar de tal debate mas, ao contrário, deveria nele encontrar novas questões que revigorassem seu próprio discurso e reiterassem suas próprias exigências. Colocam-se novas questões que pertencem amplamente ao campo psicopatológico e, mais especificamente, ao próprio campo psicanalítico. Uma delas, preponderante, seria a de se questionar, desde um ponto de vista da experiência clínica, quais os efeitos subjetivos concretos, em uma pessoa que teve seu sofrimento psíquico alterado pela introdução de um agente farmacológico. A esta questão, poderíamos acrescentar outras, sobre as quais a psicanálise tem muito a dizer no diálogo com a psicofarmacologia: qual o papel e qual a estrutura transferencial própria aos efeitos “placebo”, tão amiúde encontrados no manejo clínico de drogas psicotrópicas; como abordar o problema contemporâneo de que o uso aumentado das drogas lícitas possa propiciar um incremento do abuso de drogas ilícitas; ou ainda, quais os limites de uma abordagem pragmática em psicopatologia quando se leva em conta que a dimensão propriamente subjetiva e única de cada ser humano impede uma generalização dos processos mentais ? Finalmente, um outro campo decisivo de pesquisa e incursão psicanalítica é o de interrogar o discurso psicofarmacológico e médico que acompanha a prescrição da droga. Evidentemente não se trata da mesma coisa receber um medicamento de seu médico acompanhado da explicação de que seu sofrimento psíquico tem raízes estritamente orgânicas e que não há qualquer implicação subjetiva a procurar em suas origens. Ou, então, dele ouvir a indicação de que o medicamento trará um alívio do ponto de vista

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

PSICANÁLISE E DISCURSO PSICOFARMACOLÓGICO

18

19


SEÇÃO TEMÁTICA

Pereira, M. E. C. Psicanálise e Psicofarmacologia...

sintomático daquele sofrimento psíquico, mas que o paciente deveria colocar-se a questão da significação da emergência daqueles sintomas naquele momento preciso de sua existência. Recoloca-se aqui o problema do Phármakon, introduzido por Platão e retomado por Derrida e por Fédida. O Phármakon é aquela substância que porta em si a capacidade de funcionar como remédio ou como veneno; como fator de cura ou como agente do esquecimento: tudo depende da palavra do médico que acompanha sua prescrição. Para concluir, deve-se refletir de maneira muito precisa sobre o papel contemporâneo da psicanálise na universidade e nos grupos de pesquisa multidisciplinar sobre os grandes temas de nosso tempo. Coloca-se em primeiro plano o risco de que, num esforço de integrar-se e fazer-se aceitar pela ciência regular, a psicanálise acabe por ceder em suas exigências próprias de rigor. Esse problema está longe de ser solucionado, mas pode-se apontar para duas questões nele implicadas: a de que a psicanálise terá tanto maiores chances de participar de um debate no campo aberto pelos progressos da psicofarmacologia quanto mais fiel ela se mantiver a sua própria delimitação de objeto teórico-clínico. A abertura ao conhecimento do campo da psicofarmacologia não deve significar uma capitulação a perspectivas alheias ao campo psicanalítico mas, pelo contrário, uma instigante fonte de esforço para re-situar seu próprio discurso. Por outro lado, a dita psicanálise extramuros e, sobretudo, a psicanálise na universidade não podem mais ser encaradas como uma espécie de filhos bastardos do movimento psicanalítico, mas devem ser reconhecidas como frentes passíveis de renovar o discurso psicanalítico e de inscrevê-lo de forma criativa na cultura. Tratam-se de espaços que têm sua própria especificidade, que não devem concorrer com as ditas “escolas” na formação clínica de psicanalistas, mas que, justamente por não representarem a nenhuma delas em especial, permitam uma problematização ampla das grandes questões do campo analítico e uma interlocução criativa com outras áreas da ciência e do saber. A psicofarmacologia no caso, tem as potencialidades de funcionar como um

Outro, que confronte a psicanálise a seus impasses e que a faça refletir, ela também, sobre a questão de seus próprios limites.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

20

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: WIDLÖCHER, D. Le cerveua e la vie mental. La recherche, nº 280, pp. 97-102, outubro 1995. ZAFIRIAN, E. Les limites d’une conquetê. La recherche, nº 280, pp. 74 -78, outubro 1995. FÉDIDA, P. Le chimique et le psychique: um défi pour la psycahanalyse. L a recherche, nº 280, pp. 95-97. outubro 1995. PLATÃO. Phèdre Paris. Flammarion, 1989. DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1991.

21


SEÇÃO TEMÁTICA

Costa, A. L. L. Aspectos Críticos...

ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE PSICOFÁRMACOS Adão Luiz Lopes da Costa

É

inegável o crescente interesse pelos psicofármacos no tratamento dos transtornos mentais. Vem surgindo novos produtos e novos estu dos sobre suas aplicações. Isto gera, além de interesse, a necessidade dos profissionais estarem atualizados. São os avanços dos conhecimentos científicos, com seus benefícios e riscos. Cabe perguntar, por que estudar psicofármacos numa instituição psicanalítica? Porque o psicanalista precisa estar inserido na cultura, inserido naquilo que ocorre no mundo, e também naquilo que ocorre no chamado mundo científico. Tal inserção é o que lhe permite servir-se, criticar, abordar os aspectos claudicantes dos avanços e, além disso, alertar para os rumos que eles tomam no social. Desde Freud passando por Lacan os psicanalistas sabem que precisam lidar com muitas áreas do conhecimento. Então, que se leia! Porque quem não sabe o que procura não reconhece quando encontra. Um rápido comentário: “a vontade de tomar remédios é uma das principais características que distingue o homem dos animais”, proclamou de seu berço, aos 18 meses de idade, George Orson Welles, produtor, diretor e papel principal, em 1941, de Cidadão Kane. 2 Quando nos referimos aos remédios, temos também que falar em diagnóstico, em etiologias, isto é, num saber médico antecedente, gerador da expectativa de cura com tempo definido e também com o desejo das doenças terem uma causa única. O que se sabe cada vez mais, mesmo em medicina geral, é que as doenças têm relações multicausais . Outro ponto a

2

Revista Leia, jan. de 1988

22

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

considerar é o efeito da propaganda de remédios na mídia, onde alguns remédios são apresentados de maneira rejuvenescida3 e, outros, como envelhecidos e experimentadas. Mas , quando se trata de prescrição, são necessários critérios médicos específicos em cada caso para o uso de medicamentos. Ocorre que tem aparecido, ultimamente, uma certa tendência, diríamos mesmo, a predominância de determinados diagnósticos que não correspondem ao quadro clínico dos pacientes. Como escreve Elie Cheniaux 4: “...na CID-10 – assim como no DSM-IV- embora sejam listados os critérios diagnósticos para cada categoria nosológica, não há uma preocupação em se definir precisamente os sinais e sintomas nem em se explicar como eles devem ser reconhecidos na prática.” Como já dissemos, não há dúvidas que se avança nos conhecimentos científicos e cada vez temos fármacos mais ativos, específicos e com menores efeitos colaterais. Mas no caso da psicofarmacologia, precisa-se também avançar na clínica e nas especificidades dos diagnósticos, com detalhamento na descrição dos quadros clínicos. Perde-se muito da eficácia dos fármacos ao se confundir os diagnósticos. O que se constata é que a pesquisa psiquiátrica progride preferencialmente pela neurobiologia. Podemos melhorar a eficácia dos tratamentos acrescentando-se também o diagnóstico transferencial e a posição da qual o terapeuta é esperado responder. Sabe-se que a relação transferencial do médico para com o produto a ser prescrito também participa da eficácia do tratamento. Isto é bem conhecido e utilizado pelo marketing. Agora, em qualquer abordagem terapêutica dos transtornos mentais, se não houver algo relativo a queda do objeto a, fica-se, isto sim, no limite da “rocha da biologia” e com a possibilidade da perenizarão do uso de drogas. “Porque não é por ser biológico que é mais real. O real é outra coisa: o real é o que comanda toda a função da significância.”(Lacan, 1968). 3 Ricoeur P. A metáfora viva. Rés- Editora, Ltda. Portugal. 4 Cheniaux E. Síndrome de De Clèrambault: uma revisão bibliografica. Rev. Bras. de Psiq. ABP. V.27-n° 2- jun.2005, p.158.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

23


SEÇÃO TEMÁTICA

Para o estudo e auxílio na solução de questões que surgem na prática clínica cotidiana, um bom guia é o livro Psicofármacos consulta rápida, de A. Cordioli, Artmed, 2005. 5 Para os que quiserem avançar no estudo da Neuropsicofarmacologia um bom livro é Psychopharmacology the fourth generation of progress, de Floyd E. Bloom e David J. Kupfer, Raven Press6. Neste espaço vou ater-me, com relação a especificidade dos fármacos, aos antipsicóticos. Encontramos vários grupos. O aripiprazol7, o mais recente, é um antipsicótico atípico que produz estimulação sobre os receptores dopaminérgicos (D2 e D3), e sobre os receptores serotominérgicos (5HT1A), contudo o mecanismo de ação dessa medicação é desconhecido por enquanto. A clorpromazina, a flufenazina são antipsicóticos do grupo das fenotiazinas. Sua principal finalidade é o tratamento dos sintomas psicóticos, podendo também ser usado para evitar vômitos e mesmo como antihipertensivo quando administrado pela veia. O melleril, a tioridazina, a levomepromazina, a periciazina, a trifluoperazina, a periciazina são neurolépticos do grupo das fenotiazinas piperidínicas. Sua principal indicação é para o tratamento de sintomas psicóticos, podendo também ser usado para controlar problemas no comportamento com agitação, irritabilidade ou agressividade, em outros problemas psiquiátricos como a demência ou retardo mental, por exemplo. O zuclopentixol é um neuroléptico. Como todos desse grupo sua ação é controlar os sintomas psicóticos. A vantagem dessa medicação está na menor quantidade e intensidade dos efeitos colaterais quando comparado às medicações da mesma classe. A sulpirida é um neuroléptico do grupo das benzamidas. A utilização recomendada pode ser tanto para controlar sintomas psicóticos como para elevar os estado de humor do paciente deprimido. 5

Cordioli A. Psicofármacos consulta rápida. 3ª edição. Artmed, 2005. Bloom F. E e Kupfer D. J. Psychopharmacology the fourth generation of progress. Ed. Raven Press, 1995. 7 Psicosite. Psicofármacos. Antipsicóticos. 6

24

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

Costa, A. L. L. Aspectos Críticos...

A ziprazidona é um neuroléptico atípico que tem como finalidade controlar os sintomas que as demais medicações do grupo falharam em controlar. O haloperidol é um neuroléptico do grupo das butirofenonas. Além da indicação para tratamento dos sintomas psicóticos: pode ser usado também para evitar enjôos e vômitos de qualquer origem, para controlar agitação, agressividade devido a outras perturbações mentais, ou ainda para tratar o distúrbio de Gilles La Tourette. A pimozida é um neuroléptico do grupo das difenilbutiropiperidinas, tem como principal indicação o controle dos sintomas psicóticos. A clozapina é um neuroléptico do grupo dos dibenzodiazepínicos. Tem como uso mais comum o tratamento de pacientes com esquizofrenia refratária aos neurolépticos antigos. A pipotiazina é um neuroléptico do grupo das piperidinas. Sua principal indicação é o tratamento das psicoses. A risperidona é um neuroléptico do grupo benzisoxazol. Sua principal indicação é para o tratamento de sintomas psicóticos, especialmente os pacientes esquizofrênicos que não melhoraram com outras medicações antipsicóticas. O penfluridol é um neuroléptico do grupo das difenilbutiropiperidinas, tem como principal indicação o controle dos sintomas psicóticos. A quetiapina é um neuroléptico do grupo dibenzotiazepina. Sua principal indicação é para o tratamento das síndromes psicóticas, principalmente para os pacientes que não se beneficiaram com os antipsicóticos clássicos. A amisulprida é um neuroléptico do grupo das benzamidas. A utilização recomendada pode ser tanto para controlar sintomas psicóticos como para elevar os estado de humor do paciente deprimido. A olanzapina é um neuroléptico tienobenzodiazepínico. Sua principal indicação é o tratamento dos sintomas psicóticos. Para finalizar, podemos dizer que este tipo de conhecimento está disponível. O que dificulta e interessa é a clínica, a elaboração transferencial e a direção do tratamento.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

25


SEÇÃO TEMÁTICA

ENTREVISTA COM ALFREDO JERUSALINSKY

Jerusalinsky, A. Entrevista

Alfredo Jerusalinsky – A ciência tem permitido introduzir o sofrimento e a doença mental no terreno da racionalidade. No último século, a superação da separação entre o psiquismo e o organismo levou a inclinação de centrar cada vez mais no organismo a determinação desse sofrimento. Porém, o conjunto das pesquisas da última década indica que o organismo humano é especial e particularmente sensível às condições que a cultura, a simbolização e o conjunto das significações sustentadas no campo da linguagem provocam. A esse respeito, Lacan oferece uma metáfora muito interessante, no Seminário I, quando evoca o “Cid” - plebeu elevado à categoria de cavaleiro para comandar, pela sua habilidade na guerra, o enfrentamento contra os mouros. A infanta, ou seja, a princesa, depois de ter visto o Cid, pede a sua governanta que bote a mão junto a seu coração, para que desminta o que o coração denunciava com a aceleração de seu batimento. Ela declara que não ia permitir que seus sentimentos a traíssem até o ponto de obrigá-la a se entregar a alguém que não correspondia a sua dinastia social, rebaixando, então, sua condição e sua majestade. É claro que o coração ganhou e acabou se desenvolvendo um tórrido romance entre a infanta e o Cid. Mas, vejam só como o organismo, no aceleramento cardíaco, suporta e sofre as conseqüências, fica totalmente amarrado à condição simbólica. O único que pode decifrar a razão desse batimento acelerado é o âmbito do simbólico, que evidentemente não se decodifica ou não se decifra na bioquímica do excesso adrenalínico, já

que o excesso adrenalínico não continha, ele mesmo, as razões, as causas dessa aceleração. O ser humano é um tipo de ser no qual o âmbito do simbólico define com toda a eficácia a condição orgânica de seu funcionamento. É isso que Lacan propõe na década de cinqüenta e que Freud tinha antecipado em seu “Projeto para uma psicologia para neurologistas”, de 1895, no qual arquiteta uma analogia estrutural entre a matriz simbólica e a matriz neuronal, a matriz nervosa, suposição que permitiria o funcionamento unívoco que a clínica demonstrava. Isso vem se verificar, justamente, nas últimas pesquisas em ciências básicas em neurobiologia que dão pleno suporte a essa analogia estrutural, já que o amadurecimento vem ocorrer após o nascimento, moldado em função da neuroplasticidade pela matriz simbólica para ordenar o funcionamento cerebral. A tese de supor que às alterações psíquicas correspondem analogamente alterações bioquímicas é uma tese completamente razoável aliás, verificável em alguma medida. Agora, colocar a causalidade do lado da bioquímica é controverter o que a evolução da espécie humana veio demonstrar. Um autor inglês, chamado Terrance Deacon, escreveu um livro intitulado “The symbolic species”. Recebeu um prêmio por isso. Esse livro é a síntese de uma longa pesquisa em que ele sustenta a tese, que tenta demonstrar nessa pesquisa e que aparece suficientemente demonstrada no seu texto, que a espécie humana sobreviveu graças ao simbólico, à ordem simbólica que está contida na linguagem. Essa é a arma fundamental da espécie humana, já que padece de instrumentos para a sobrevivência, a não ser a linguagem, que permite a coordenação de um trabalho coletivo. Não se trata de um instinto gregário, mas de uma disposição simbólica que permite unificar os esforços ou pelo menos coordená-los. Na segunda parte desse livro, ele vem demonstrar também como a evolução da calota humana contém os vestígios da evolução das circunvoluções cerebrais, correlativa a evolução dos instrumentos que o homem foi fabricando, sendo que os que mais correlação têm são os lobos ligados ao campo da linguagem. Dessa forma, esse autor, sem mencionar um ponto ou uma letra sequer de psicanálise, vem dar suporte, na teoria da evolu-

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

Nesta entrevista, foram propostas duas questões a respeito da temática desse número do Correio. Correio da APPOA: Como podemos situar a utilização dos psicofármacos no contexto da modernidade e o lugar da psicanálise em relação a essa questão.

26

27


SEÇÃO TEMÁTICA

Jerusalinsky, A. Entrevista

ção da espécie humana, à importância da linguagem como comando tanto na maturação quanto na evolução. Desprezar o campo da linguagem é o que está na contramão do que a ciência demonstra e do que cem anos de psicanálise, na clínica, vieram demonstrar. Não é a evolução dos recursos medicamentosos que está na contramão, pelo contrário, eles são convergentes e estão na mesma vertente do que a psicanálise pretende curar. Mas, quando colocado como pivô causal unívoco da questão é que se situa o equívoco e o erro metodológico. O medicamento não pode nem deve ser condenado como um fruto da modernidade. É no efeito que certas crenças próprias da modernidade provocaram sobre esta descoberta e no modo de utilização dessas descobertas e invenções farmacológicas que está o problema. A que crenças próprias da modernidade me refiro? Especialmente a duas. A primeira é o suposto de que é possível transformar todo o saber em conhecimento. Há uma diferença entre saber e conhecimento. O saber pressupõe o estabelecimento, a arquitetura de um modo de gozar compatível com a cultura. Nisso consiste, sinteticamente, a constituição de um saber. Ele não responde necessariamente à lógica positiva, já que ele responde muito mais à lógica da significação das coisas para o sujeito. Quer dizer, esse saber se encontra na ordem da subjetividade. Os conhecimentos, ao contrário, precisam aquilatar ou demonstrar a sua verdade. Quer dizer, uma verdade que já não consiste na eficácia da sustentação do gozo no marco do laço social, senão uma verdade de outra ordem, que consiste na repetição no campo do real das conseqüências de uma operação determinada. A ciência é fundamentalmente cartesiana, ou seja, cogito ergo sum: a verdade está no que se pensa. Ela passou a ser regida pela lógica positiva, o que implica a demonstração da verdade na repetição dos efeitos no campo do real. Mas, a modernidade a erige como única detentora da verdade e começa um trabalho de devastação de toda forma de saber que não corresponda a essa extensão lógica. É assim que a ciência se opõe inicialmente à

religião, ao charlatanismo e a qualquer forma de sugestão ou de curas sugestivas. Mas, eis que a psicanálise surge, no fim do século XIX e início do século XX, como uma ciência conjectural, precursora justamente de outras formas científicas que na atualidade tem pleno vigor. A astrofísica também é uma ciência conjectural. A matemática, embora sua pretensão de exatidão, na sua borda de pesquisa, também está no campo da conjectura. O que é uma ciência conjectural? É uma ciência que sustenta o valor de verdade alicerçado na eficácia da interpretação. Quer dizer, um fenômeno, cujo fundamento e cuja causa não se conhecem, é interpretado em função do tecido de acontecimentos que oferece. Essa interpretação demonstra-se como verdadeira quando um ato derivado dela guarda coerência e mantém a consistência do sistema que se interpreta, do tecido que se interpreta. Isto pode acontecer com os corpos siderais ou pode acontecer no campo da linguagem, no qual as relações são de deslocamento, proximidade, contigüidade, descontigüidade e não de causalidade termo a termo. Quer dizer que não há nenhuma biunivocidade nesses sistemas e por isso os sistemas da lógica positiva biunívoca não funcionam. Essa crença da modernidade empurra a ciência no campo da medicina e no campo da doença mental a encontrar causas unívocas e causas positivas, ou seja, materiais. Mas, materiais no terreno da eficácia físicoquímica e não no da significação. Quer dizer, tendem a tomar o fenômeno bioquímico, reduzido a sua expressão puramente bioquímica, como causante da idéia. Isto é como se nós estivéssemos vendo um conjunto de neurônios, coisa que hoje é possível ver pelo sistema de transparências, por exemplo, no spect - estudo de transparências por concentração de pósitrons - é possível ver um cérebro funcionando. Então, quando eu visse alguns neurônios, eu diria “estou vendo o pensamento” - esta afirmação é delirante, não tem fundamento nenhum. O que estou vendo são neurônios funcionando. Que o pensamento se apóia nesses neurônios funcionando, sim. E se não fossem esses neurônios funcionando o pensamento não existiria, sim. Mas a identidade entre o intercâmbio bioquímico e o pensamento não há. Pode haver

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

28

29


SEÇÃO TEMÁTICA

Jerusalinsky, A. Entrevista

analogia ou homologia estrutural. Ou seja, a repetição de lugares e sistema de transformação. Mas, eles obedecem a ordens de coisas bem diferentes. O que não implica o retorno ao dualismo mente e corpo, ou espírito ou alma e corpo. A forma científica seria mente e corpo. Trata-se de reconhecer estatutos diferentes para esses fenômenos, embora haja uma absoluta correlação de interdependência entre esses fenômenos e a impossibilidade de reduzir um ao outro. Quer dizer, eu não posso reduzir uma palavra a seu fenômeno bioquímico, nem ver no fenômeno bioquímico a ordem da palavra. Esta é uma das crenças da modernidade: a idéia de que é possível transformar todo o saber em conhecimento. Evidentemente, no campo da linguagem alastra-se uma herança da ordem do saber, ou seja, saber reduzir o gozo sustentando o laço social; ou, ainda, manter uma forma de gozo, mantendo o laço social. Assim, podemos dizer que a ordem do saber é um tipo de herança. A herança genética evidentemente deve guardar alguma correlação com este processo, segundo Terrance Deacon o demonstra. Esta analogia e esta correspondência analógica de funcionamento, de articulação de uma ordem e outra de fenômenos, permite pensar que é possível incidir no campo bioquímico para favorecer o reordenamento no campo das significações. Mas o reordenamento no campo das significações requer um trabalho insubstituível, que não pode ser substituído pelo ordenamento bioquímico. Tanto é assim que a maior parte da psiquiatria reconhece que, correlativa a intervenção medicamentosa, tem que haver algum tipo de psicoterapia que reordene a vida do paciente. Que eles considerem, com maior freqüência, que a forma psicoterapêutica adequada é a cognitiva é porque esta corresponde muito mais a essa crença da modernidade de que é possível transformar todo o saber em conhecimento. Esta é uma crença tão mística quanto a religião, porque a realidade mostra que é impossível reduzir o saber ao conhecimento. Em que consiste o amor? Em que consiste o desejo? Em que consistem os laços sociais? Por que eles se desfazem e se refazem? Em que consiste a criminalidade? Esta última não é produzida na maior parte por psicóticos, mas por neuróticos, ou seja, pelas pessoas “sãs”. Quer dizer, os cárceres estão cheios de pessoas normais, desde o ponto de vista

psíquico. Então, em que consistem esses laços sociais? Em que consiste a violência? Acreditar que é possível reduzir a uma monocausalidade, uma causalidade unívoca no campo material positivo, leva a um curso reconhecidamente excessivo de medicamentos da ordem dos psicotrópicos, dos ansiolíticos. Toda a bateria de medicação aplicável ao campo do mental tende a ser usada sem levar em conta sua incidência no campo das significações e dos efeitos que têm para o sujeito que suporta as conseqüências dessa medicação. É por isso que o uso desse tipo de medicação beira a hipocondria – se é que não está no campo de uma hipocondria generalizada, um dos sintomas da modernidade. Uma paciente, recentemente, veio à consulta dizendo que vinha a um analista que sabia que não lhe daria medicação. Sua conduta habitual demonstrava que era dependente de certos tipos de psicotrópicos, ansiolíticos e antidepressivos. Ela tinha cinco psiquiatras (uma mulher abastada, já que podia pagar a conta) que os visitava todas as semanas, para que cada um lhe desse a receita que lhe permitria comprar a medicação. Nenhum desses psiquiatras sabia da existência dos outros, o que lhe permitia ter uma grande quantidade de medicação, adequada a sua adição. Então, ela vinha a um psicanalista falar e eu lhe disse “a senhora sabe que não vou lhe dar nenhuma medicação”. Então, diz: “Mas, precisamente por isso”. Digo: “mas, então, o que a senhora quer fazer?” “Eu não quero é morrer. Porque se eu continuar assim sei que vou morrer. Venho aqui para não morrer”. Claro, esta é uma circunstância extrema, demonstrativa desse sintoma social generalizado que é o uso hipocondríaco da medicação e que acaba em uma espécie de toxicomania secundária. O recurso para reordenar a vida do paciente, quando a medicação não é eficaz, é aumentar a dose. Até que ponto? O problema é que a medicação não muda a significação da vida e dos acontecimentos da vida do paciente. Nós somos, queiramos ou não, escravos da palavra. Por isso uma palavra a mais ou uma palavra a menos, dita pelo nosso amante ou por nosso parceiro profissional, pode ser decisiva para nosso destino. Como não me disseste tal coisa? Ou, por que me disseste

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

30

31


SEÇÃO TEMÁTICA

Jerusalinsky, A. Entrevista

tal outra? Eu venho vivendo meus últimos vinte anos em função do que tu não falaste ou então em função do que tu falaste. O segundo elemento ou crença da modernidade é que é possível encontrar a razão de tudo, a causa de tudo. Se não encontramos é porque ainda não pesquisamos o suficiente. Quer dizer, a extensão dos conhecimentos é ilimitada. Não há nenhuma fronteira que se oponha a nosso conhecimento. Isto significa supor que nós podemos esgotar o Real, que em algum momento o Real será totalmente capturado. Corresponde também a uma crença suplementar de que os meus conhecimentos são suficientes para controlar o mundo em que eu vivo. É verdade que, no mundo em que eu vivo, meus conhecimentos podem controlá-lo. O problema é que o mundo em que eu vivo é uma minúscula extensão no campo do Real. Então, o Real vai incidir no mundo em que eu vivo de um modo aleatório, que escapa a qualquer razão e a qualquer causalidade que eu possa conhecer. Quer dizer, qualquer causalidade está sujeitada a essa aleatoriedade do Real que excede o mundo que eu conheço. Então, essa arrogância cientificista é contrária ao campo da verdade e empurra o homem a produzir dispositivos que o iludem quanto ao controle absoluto desse mundo, inclusive de si mesmo. A medicação é usada como sistema de controle, não como resolução de um sofrimento; como controle das circunstâncias que, se controladas, supostamente vão parar o sofrimento. Ou seja, controla-se o sintoma, mas o sofrimento não pára. Quando alguém doente psiquicamente tem seus sintomas controlados, mas seu sofrimento não, ele não tem como responder a esse sofrimento. Por que, justamente, os sintomas são fabricados para responder ao sofrimento, para poder suportá-lo. Quando ele se vê privado desses elementos sintomáticos que têm a finalidade de permitir suportar, se defender contra o sofrimento que seu fantasma lhe causa, ele não sabe o que fazer com seu fantasma. Por isso, há tanta gente desorientada, apesar da medicação. Não é que a medicação não deva ser usada. Estou fazendo a análise crítica de um uso indevido e inadequado. Controlar os sintomas ao serviço de uma nova significação para esse fantasma, isto pode ser muito interessante.

Correio da APPOA: Como pensar a medicação na infância e o uso, muitas vezes abusivo, que é feito da mesma?

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

32

Alfredo Jerusalinsky - É curioso como a medicação é usada para controlar sintomas mentais. A invenção de novas síndromes ou a criação de novas nomenclaturas fenomenológico nosográficas parece estar a serviço de ordenar sofrimentos de acordo com o tipo de medicamento que é possível oferecer. Por exemplo, o Transtorno de déficit de atenção e hipercinesia, que segundo a maior parte das pesquisas feitas a respeito dessa síndrome, não pode ser diagnosticada antes dos sete anos. Curiosamente, a maior parte das crianças medicadas em função de um diagnóstico de TDAH tem menos de sete anos. Além disso, antes do ano de 1992, essa nomenclatura de TDAH foi precedida pela DCM, Disfunção cerebral mínima. A incidência da Disfunção cerebral mínima era minúscula em relação à população. Era uma em dezenas, em milhares. A partir do ano de 1994, se estabeleceu uma espécie de convicção generalizada a partir de algumas pesquisas guiadas pelos laboratórios, para os laboratórios, publicadas pelos laboratórios e controladas pelos laboratórios. Não foram publicadas todas as pesquisas, mas unicamente as que tendiam a demonstrar que o uso da “Ritalina” curava a síndrome de TDAH. Este resultado fazia esperar que, a partir do ano de 1994, a quantidade de crianças que padeciam de TDAH reduzisse: se há um remédio que cura, então deviam ser menos, progressivamente. Qual é a surpresa? Nos últimos dez anos, as crianças que padecem de TDAH passaram a ser três a cinco por cento da população em idade escolar. Depois que se descobriu o medicamento que cura a doença, a doença aumentou. O que seria de nós se as vacinas seguissem a mesma trajetória estatística? Isto demonstra o absurdo da proposição. Outro exemplo é o uso dos antidepressivos. Desde que se descobriram antidepressivos específicos como o carbolítio, a carbamazepina ou a fluoxetina, a população diagnosticada com quadro depressivo ou bipolar se multiplicou por seis. Que fenômeno é esse? Quando um medicamento se cria, se inventa a partir de certas descobertas, o diagnóstico cresce enorme-

33


SEÇÃO TEMÁTICA

Jerusalinsky, A. Entrevista

mente, de modo absurdo. Ou o diagnóstico anterior era errado ou o diagnóstico atual é errado. Quer dizer, criam categorias que condensam uma série de quadros que permitem uma multiplicação estatística desse diagnóstico, o que o torna inespecífico: abrange uma variedade de manifestações que antes não se incluíam nesse quadro e agora se incluem, por que se multiplicaram os indicadores que permitem esse diagnóstico. Ou cresceu a abrangência sintomática, semiológica desse quadro nosográfico ou cresceu a população que padece dessa doença. Tudo parece indicar que se trata da primeira alternativa, que se trata de um crescimento inusitado da quantidade de signos que se tomam como indicadores desses quadros nosográficos. Então, a possibilidade de diagnosticar depressão se amplia enormemente. O espectro da população que entre nessa categoria passa a ser muito maior. Para que? Por que? Evidentemente, o diagnóstico se torna inespecífico. Quanto mais inespecífico, menos específica é a indicação do medicamento. Por isso, há uma grande quantidade de pessoas que tomam esse medicamento sem o efeito desejado, previsto, adequado, suposto, etc. Ninguém é contra o uso específico desses medicamentos, circunscrito à população diagnosticada com um grau de especificidade que toda a pesquisa psiquiátrica dos últimos duzentos anos, incluída a pesquisa psicanalítica dos últimos cem, permite diagnosticar com muita precisão. Trata-se de uma curiosa expansão, dilatação do guarda-chuva sob o qual insolitamente cabem pessoas que não padecem desse tipo de problema. Então, por estarem incluídas nesse grande guarda-chuva, tornam-se aptas para a indicação desse grande consumo - agora sim podemos dizer: consumo medicamentoso. Este é um dos fenômenos curiosos: como se forçam os quadros nosográficos para tornarem-se abrangentes. O mesmo acontece com TDAH e com a Síndrome de Asperger. Nesta última, faz-se uso de medicação, sem comprovação de eficácia nenhuma nem sequer do ponto de vista estatístico, que supre ácidos nucléicos e aminoácidos, supostamente associados à produção de proteínas que por razões genéticas essas crianças não produziriam. Estas razões genéticas permanecem não-demonstradas. Não há ne-

nhum estudo laboratorial, nenhuma prova, nenhuma demonstração, nenhum vestígio que indique o caráter genético da Síndrome de Asperger, embora, no DSM IV, seja afirmado que se trata de uma síndrome genética. É curioso, porque o Dr. Asperger, em 1944, criou essa síndrome que, durante cinqüenta anos, até 1994, foi tão rara, mas tão rara, que quase não se usava como diagnóstico. Os casos comunicados no mundo, durante esses cinqüenta anos, não passaram de vinte. De repente, essa categoria passa a substituir a categoria de psicoses infantis, que desaparece no DSM IV. Agora, a incidência de “Asperger”, segundo diferentes estatísticas, é de três por mil ou de seis em cinco mil, o que quer dizer entre 1 e 1,2 por mil, que é a incidência das psicoses infantis, anterior a “Asperger”. Psicoses infantis - é plural exatamente por que constituía uma categoria que abrangia uma pluralidade de quadros, cuja especificidade se estuda de um modo muito minucioso em cada uma de suas modificações – psicoses infantis de caráter depressivo, de caráter esquizofrênico, de caráter paranóico, as psicoses indecididas na infância, que não têm uma forma específica mas têm características delirantes, em ato, e alucinatórias, as psicoses que têm a ver com a não entrada das crianças no campo da linguagem, ou entrada no campo da linguagem sob a forma da forclusão da função simbólica. Há uma variedade de manifestações psicóticas da infância ligadas à incidência da fantasmática parental na sua produção, que pode se combinar ou não com dificuldades orgânicas, algumas demonstráveis, outras indemonstráveis, outras decididamente inexistentes. Muito bem, este complexo panorama que começou a ser elucidado, estudado, diferenciado, a partir do fim do século XIX e início do século XX, demandou um enorme trabalho no campo da psiquiatria, no campo da psicanálise, no campo da psicologia. Esse enorme e minucioso trabalho - que por outro lado rendeu enormes frutos na terapêutica dessas psicoses, indicando o que fazer com cada tipo específico de situação - se apaga, e reúne-se tudo sob o grande guarda-chuva de “Asperger”, com uma única causa não demonstrada. A Síndrome de Asperger se transforma num enorme guarda-chuva, com uma semiologia extremamente inespecífica, que pode abranger qualquer tipo de manifestação.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

34

35


SEÇÃO DEBATES

SEÇÃO DEBATES

OS FILHOS DE ADOLF E MAGDA Diana Corso Gosto de imaginar que se tivesse vivido no tempo da Segunda Guerra Mundial, teria sido da Resistência, ou que estaria entre os que lutaram no Gueto de Varsóvia. Mas e se eu ou você fossemos cidadãos alemães, amargando a derrota moral e econômica da I Guerra, os tempos duros que propiciaram a ascensão de Hitler, teríamos sabido discernir? Teríamos percebido a monstruosidade de sua proposta? É com essa inquietação que saí do filme “A Queda – Os últimos dias de Hitler”, de Oliver Hirschbiegel. Narrado na perspectiva de uma jovem comum, uma das secretárias pessoais do Fürer, que o acompanhou de 1942 até o suicídio no Bunker, o filme nos deixa na estranha posição de pensar os fatos desde o ponto de vista mais incômodo: o da relação afetiva dos alemães com esse déspota messiânico, que envolveu uma nação em seu delírio de grandeza. Cada alemão que aderiu ou serviu o nazismo sentiu-se adotado por esse projeto, membro de um povo eleito para sobreviver ao dilúvio da perdição, representada pela democracia, os judeus e os comunistas. O filme apresenta o privado e o público reproduzindo-se um no outro. Em larga escala, vemos Hitler punindo seu povo por não ter sabido realizar seu sonho. Despacha ordens absurdas, ordena massacres, nada fazendo para poupar vidas ou esperanças para uma gente cujo destino para ele nada valia. Na intimidade encontramos a sua versão feminina. Trata-se de Magda Goebbels, esposa do Ministro da Propaganda nazista, que antes de se suicidar envenena seus seis filhos, cujo futuro não lhe interessava se não fosse ocorrer no mundo que ela projetou para eles. Ambos, Hitler e a Sra. Goebbels ofereceram a seus súditos e descendentes um sonho de mão única: você poderá viver apenas se couber, física e espiritualmente, na exata medida do meu ideal. Aos olhos da população alemã, representada pela secretária jovem e medíocre, essa pareceu uma proposta aceitável, capaz de embotarlhes os sentidos sobre as atrocidades cometidas. Mesmo por que nem os

36

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

meu ideal. Aos olhos da população alemã, representada pela secretária jovem e medíocre, essa pareceu uma proposta aceitável, capaz de embotarlhes os sentidos sobre as atrocidades cometidas. Mesmo por que nem os adeptos estavam livres delas, já que o regime se revelava inclemente com qualquer tipo de oposição ou fraqueza. Sendo assim, a simples sobrevivência de um cidadão já lhe garantia um lugar entre os eleitos. É incrível que depois de um delírio coletivo desses, promovido por uma nação européia, achemos estranha a conduta dos homens-bomba muçulmanos e sua visão de mundo primitiva. As promessas messiânicas são perigosas porque são engolfantes e, por isso mesmo, podem ser calmantes. Livre de todas as dúvidas, da própria consciência, o povo alemão que aderiu ao nazismo viveu sua paixão fundamentalista. O lado negro da força é perigoso porque é hipnótico, a alienação que propõe é infantilizante, obedeça e isso basta. Adoraria não notar o quanto essas propostas totalitárias podem ser atraentes e que ainda não encontramos uma vacina eficaz. Talvez a saída passe pela dúvida, como sugeriu recentemente Calligaris, os humanos sem certezas absolutas são menos daninhos aos seus próximos e a si mesmos.

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

37


RESENHA

RESENHA

QUEM FALA NA LÍNGUA? SOBRE AS PSICOPATOLOGIAS DA FALA VORCARO, Ângela. (Org.) Quem fala na língua? Sobre as psicopatologias da fala. Salvador: Ágalma, 2005. 301p. Foi recentemente lançado pela editora Ágalma o livro “Quem fala na língua? Sobre as psicopatologias da fala”. Tal publicação, organizada pela psicanalista Ângela Vorcaro, é composta por capítulos de diversos autores que vêm problematizar os modos de operação entre linguagem, discurso, fala, escrita e constituição psíquica na infância. O livro conta, como ponto de partida, com alguns dos seminários ministrados pelo psicanalista Alfredo Jerusalinsky na DERDIC/PUC-SP, com o debate estabelecido durante tais encontros, assim como com a produção dos diferentes integrantes da atividade implicados nessa interlocução. Enriquecendo a discussão, conta ainda com a participação dos textos de autores convidados. Autores que, desde outras atividades, pesquisas e instituições, também vêm produzindo e interrogando a clínica com crianças a partir da intersecção entre psicanálise, fonoaudiologia, foniatria e lingüística. Como nos apresenta a organizadora, os seminários de Alfredo Jerusalinsky trazem a debate alguns aspectos fundamentais de tal intersecção: o jogo lúdico-motor da criança e seu comparecimento enquanto ato do sujeito; a diferença de como a língua é concebida e implicada na prática psicanalítica e fonoaudiológica; a relação entre língua, “alíngua”, lei e metáfora paterna na constituição do sujeito; o modo como na ortografia comparece o sujeito por meio das formações do inconsciente; a implicação entre a linguagem e a constituição de bordas.

38

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

O texto de Gabriel Balbó considera a diferenciação entre autismo e psicose a partir da integração do visto, escutado e falado. Jean Bergès considera a relação entre bilingüismo e recalcamento. Nina Leite faz uma abordagem de tal problemática a partir do termo “Corpolinguagem”. Viviane Veras debate a relação entre o chiste e o ingênuo nos dizeres de crianças. Ângela Vorcaro e Lia Navegantes interrogam a produção aparentemente ecolálica da fala de uma criança autista para considerar o viés de sua resposta enquanto sujeito. O aspecto levantado por meu texto centra-se na necessidade lógica de considerar o engajamento entre a prosódia e o ato de enunciação na clínica com bebês e pequenas crianças. Sandra Pavone parte da relação estabelecida por Freud entre o fantasiar e o brincar no ato de criação, trilhando o percurso na direção inversa, ou seja, interrogando o brincar por meio do fantasiar. Maria Cristina Solé traz uma sistematização dos estudos psicanalíticos sobre a surdez. Yone Rafaeli coloca em debate a relação entre surdo-ouvinte a partir da posição do estrangeiro. Somente por meio de uma prática transdisciplinar torna-se possível levantar questões e formular hipóteses acerca de como opera o engajamento entre as patologias da fala e o sofrimento psíquico, assim como o modo em que a constituição do sujeito psíquico pode ser testemunhada na fala e produções de linguagem das crianças. Aqueles que estão se aventurando em tal direção certamente encontrarão nessa publicação uma possibilidade de compartilhar e continuar a ampliar esse rico debate, com efeitos decisivos para a clínica. Julieta Jerusalinsky

C. da APPOA, Porto Alegre, n. 137, jul. 2005

39


AGENDA

Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events in the last decade. London, Hogarth, 1992.) Criação da capa: Flávio Wild - Macchina

JULHO – 2005 Dia Hora 07, 14, 19h30min 21 e 28 11 e 25 20h30min 07 21h 01 e 15 8h30min 08 e 22 15h30min 04 e 18 20h30min 21 21h

Data

Local Sede da APPOA

Atividade Reunião da Comissão de Eventos

Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA Sede da APPOA

Reunião da Comissão do Correio da APPOA Reunião da Mesa Diretiva Reunião da Comissão de Aperiódicos Reunião da Comissão da Revista da APPOA Reunião do Serviço de Atendimento Clínico Reunião da Mesa Diretiva aberta aos Membros da APPOA

Sede da APPOA

Horário

Local

Evento

02/07/2005 09/07/2005 01 e 02/10/05

9h às 18h 10h às12h 9h às 18h

Sede da APPOA Sede da APPOA Plaza São Rafael

Jornada do Percurso Oficina de Topologia Jornadas Clínicas

Mensal última quinta

20h às 22h

Livraria Cultura

Núcleo Passagens

Mensal último sábado

10h às 12h

Sede da APPOA

Núcleo Toxicomanias

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE GESTÃO 2003/2004 Presidência: Lucia serrano Pereira a 1 Vice-Presidência: Ana Maria Medeiros da Costa 2a Vice-Presidência: Lúcia Alves Mees 1a Secretária: Marieta Madeira Rodrigues 2a Secretária: Ana Laura Giongo 1a Tesoureira: Maria Lúcia Müller Stein 2a Tesoureira: Ester Trevisan MESA DIRETIVA Alfredo Néstor Jerusalinsky, Ângela Lângaro Becker, Carmen Backes, Edson Luiz André de Sousa, Ieda Prates da Silva, Ligia Gomes Víctora, Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Maria Ângela Cardaci Brasil, Maria Beatriz de Alencastro Kallfelz, Maria Cristina Poli, Nilson Sibemberg, Otávio Augusto Winck Nunes, Robson de Freitas Pereira e Siloé Rey

EXPEDIENTE

Órgão informativo da APPOA -Associação Psicanalítica de Porto Alegre Mensal segunda-feira

20h30min

Sede da APPOA

Núcleo das Psicoses

PRÓXIMO NÚMERO

A TOPOLOGIA E A LÓGIGA DO FANTASMA C. da APPOA, Porto Alegre, n.137, jul. 2005

Rua Faria Santos, 258 CEP 90670-150 Porto Alegre - RS Tel: (51) 3333 2140 - Fax: (51) 3333 7922 e-mail: appoa@appoa.com.br - home-page: www.appoa.com.br Jornalista responsável: Jussara Porto - Reg. n0 3956 Impressão: Metrópole Indústria Gráfica Ltda. Av. Eng. Ludolfo Boehl, 729 CEP 91720-150 Porto Alegre - RS - Tel: (51) 3318 6355 Comissão do Correio Coordenação: Gerson Smiech Pinho e Márcia Helena de Menezes Ribeiro Integrantes: Ana Laura Giongo, Fernanda Breda, Henriete Karam, Liz Nunes Ramos, Maria Cristina Poli, Maria Lúcia Müller Stein, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior, Robson de Freitas Pereira e Rosane Palacci Santos


S

U

M

Á

R

I

O

EDITORIAL

1

NOTÍCIAS

2

SEÇÃO TEMÁTICA 6 A PRESCRIÇÃO DE PSICOFÁRMACOS: UM ATO DE FALA EM TRANSFERÊNCIA Nilson Sibemberg 6 PSICANÁLISE E PSICOFARMACOLOGIA: NOVAS QUESTÕES DE UM DEBATE ATUAL Mário Eduardo Costa Pereira 11 ASPECTOS CRÍTICOS SOBRE PSICOFÁRMACOS Adão Luiz Lopes da Costa 22 ENTREVISTA COM ALFREDO JERUSALINSKY 26 SEÇÃO DEBATES 35 OS FILHOS DE ADOLF E MAGDA Diana Corso 36 RESENHA 37 QUEM FALA NA LÍNGUA? 38 SOBRE AS PSICOPATOLOGIAS DA FALA AGENDA 40

N° 137 – ANO XI

JULHO – 2005

PSICANÁLISE E FARMACOLOGIA


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.