Manuel António Pina

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Exposição de Ilustração | Homenagem Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português

MANUEL ANTÓNIO PINA Oficinas de S. José | Associação Educativa


A poesia é uma porta para reconhecer que não há porta nenhuma


Manuel António Pina 1943-2012 O Poeta Manuel António Pina faleceu recentemente e, por ocasião, da Semana do Português, foi realizada uma pequena homenagem. Manuel António Pina foi um dos mais conceituados poetas da Língua Portuguesa. Foi além de poeta, autor de literatura infanto-juvenil e de contos, romancista, dramaturgo, jornalista e cronista. Manuel António Pina foi agraciado com vários prémios, como por exemplo, o Prémio Literário da Casa da Imprensa, em 1978, o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens e a Menção do Júri do Prémio Europeu Pier Paolo Vergerio da Universidade de Pádua, em 1988, o Prémio do Centro Português de Teatro para a Infância e Juventude no mesmo ano, o Prémio Nacional de Crónica Press/Clube de Jornalistas, em 1993, o Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários, em 2001, o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava e o Grande Prémio de Poesia da APE/CTT, em 2005, e o Prémio Camões, em 2011. A sua obra encontra-se traduzida em vários países, França, Estados Unidos, Espanha e Alemanha entre outros. Para a exposição de homenagem foi pedido aos alunos do 12º ano do Curso de Artes Visuais que escolhessem, interpretassem e ilustrassem um poema de Manuel António Pina. O resultado final do trabalho dos alunos ficou patente na Biblioteca da nossa escola. Nesta publicação, damos então a conhecer os poemas e as ilustrações realizadas pelos nossos alunos.



COMO SE DESENHA UMA CASA

Primeiro abre-se a porta por dentro sobre a tela imatura onde previamente se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente, a mãe para sempre morta. Anoiteceu, apagamos a luz e, depois, como uma foto que se guarda na carteira, iluminam-se no quintal as flores da macieira e, no papel de parede, agitam-se as recordações. Protege-te delas, das recordações, dos seus ócios, das suas conspirações; usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos: o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos. Uma casa é as ruínas de uma casa, uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra; desenha-a como quem embala um remorso, com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

Ilustração | Francisco Paulo Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



ARTE POÉTICA

Vai pois, poema, procura a voz literal que desocultamente fala sob tanta literatura. Se a escutares, porém, tapa os ouvidos, porque pela primeira vez estás sozinho. Regressa então, se puderes, pelo caminho das interpretações e dos sentidos. Mas não olhes para trás, não olhes para trás, ou jamais te perderás; e teu canto, insensato, será feito só de melancolia e de despeito. E de discórdia. E todavia sob tanto passado insepulto o que encontraste senão tumulto, senão de novo ressentimento e ironia?

Ilustração | Miguel Lourenço Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



O LADO DE FORA

Eu não procuro nada em ti, nem a mim próprio, é algo em ti que procura algo em ti no labirinto dos meus pensamentos. Eu estou entre ti e ti, a minha vida, os meus sentidos (principalmente os meus sentidos) toldam de sombras o teu rosto. O meu rosto não reflecte a tua imagem, o meu silêncio não te deixa falar, o meu corpo não deixa que se juntem as partes dispersas de ti em mim. Eu sou talvez aquele que procuras, e as minhas dúvidas a tua voz chamando do fundo do meu coração.

Ilustração | Carolina Albuquerque Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



A UM JOVEM POETA

Procura a rosa. Onde ela estiver estás tu fora de ti. Procura-a em prosa, pode ser que em prosa ela floresça ainda, sob tanta metáfora; pode ser, e que quando nela te vires te reconheças como diante de uma infância inicial não embaciada de nenhuma palavra e nenhuma lembrança. Talvez possas então escrever sem porquê, evidência de novo da Razão e passagem para o que não se vê.

Ilustração | Rita Mota Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



NA BIBLIOTECA

O que não pode ser dito guarda um silêncio feito de primeiras palavras diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde, quando já a incerteza e o medo se consomem em metros alexandrinos. Na biblioteca, em cada livro, em cada página sobre si recolhida, às horas mortas em que a casa se recolheu também virada para o lado de dentro, as palavras dormem talvez, sílaba a sílaba, o sono cego que dormiram as coisas antes da chegada dos deuses. Aí, onde não alcançam nem o poeta nem a leitura, o poema está só. 'E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.

Ilustração | Beatriz Santa-Rita Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



O QUARTO

Quem te pôs a mão no ombro, a faca que te atravessou o coração, são feridas alheias, talvez algo que leste; entretanto partiste para lugares menos iluminados e corações menos vulneráveis, pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui se já cá não estás. A hora havia de chegar em que nos perderíamos um do outro. E acabaríamos necessariamente assim, mortos inventariando mortos. Morrer, porém, não é fácil, ficam sombras nem sequer as nossas, e a nossa voz fala-nos numa língua estrangeira. Apaga a luz e vira-te para o outro lado e acorda amanhã como novo, barba impecavelmente feita, o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

Ilustração | Joana Casimiro Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



UMA SOMBRA

Ouves os meus passos nas escadas? Quando eu bater à porta não me reconheceremos. Voltarei de um dia de trabalho, subirei as escadas e perder-me-ei para sempre em qualquer sítio fora de qualquer sítio. Não foi o caminho de casa que eu perdi? Não ficou alguém em qualquer sítio, uma sombra passando diante de nós, e principalmente fora de nós? Agora que sente isso fora de mim, quem é este Ausente?

Ilustração | Mariana Sousa Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



A POESIA VAI ACABAR

A poesia vai acabar, os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis. Por exemplo, observadores de pássaros (enquanto os pássaros não acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao entrar numa repartição pública. Um senhor míope atendia devagar ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum poeta por este senhor?» E a pergunta afligiu-me tanto por dentro e por fora da cabeça que tive que voltar a ler toda a poesia desde o princípio do mundo. Uma pergunta numa cabeça. — Como uma coroa de espinhos: estão todos a ver onde o autor quer chegar? —

Ilustração | Francisca Abreu Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



COMPLETAS

A meu favor tenho o teu olhar testemunhando por mim perante juízes terríveis: a morte, os amigos, os inimigos. E aqueles que me assaltam à noite na solidão do quarto refugiam-se em fundos sítios dentro de mim quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto. Protege-me com ele, com o teu olhar, dos demónios da noite e das aflições do dia, fala em voz alta, não deixes que adormeça, afasta de mim o pecado da infelicidade.

Ilustração | Marta Agrela Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



A VIDA REAL

Imperecível de cristal, é a vida real António Franco Alexandre Se existisses, serias tu, talvez um pouco menos exacta, mas a mesma existência, o mesmo nome, a mesma morada. Atrás de ti haveria as mesmas palmeiras, e eu estaria sentado a teu lado como numa fotografia. Entretanto dobrar-se-ia o mundo (o teu mundo: o teu destino, a tua idade) entre ser e possibilidade, e eu permaneceria acordado e em prosa, habitando-te como uma casa ou uma memória.

Ilustração | Luísa Petiz Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



MORADA

Sozinho na grande cama, perdido nos seus frios corredores, ouço , de quartos interiores, a tua voz que me chama. Do fundo da noite enorme onde pouso a cabeça por fora a tua voz de alguém acorda-me como num sono insone. Como se a tua voz agora antigamente me chamasse e tudo, menos a tua voz, faltasse fora da minha memória.

Ilustração | Inês Zenha Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



ATROPELAMENTO E FUGA Era preciso mais do que silêncio, era preciso pelo menos uma grande gritaria, uma crise de nervos, um incêndio, portas a bater, correrias. Mas ficaste calada, apetecia-te chorar mas primeiro tinhas que arranjar o cabelo, perguntaste-me as horas, eram 3 da tarde, já não me lembro de que dia, talvez de um dia em que era eu quem morria, um dia que começara mal, tinha deixado as chaves na fechadura do lado de dentro da porta, e agora ali estavas tu, morta(morta como se estivesses morta!),olhando-me em silêncio estendida no asfalto, e ninguém perguntava nada e ninguém falava alto!

Ilustração | Matilde Jalles Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



SAUDADE DA PROSA

Poesia, saudade da prosa; escrevia «tu», escrevia «rosa»; mas nada me pertencia, nem o mundo lá fora nem a memória, o que ignorava ou o que sabia. E se regressava pelo mesmo caminho não encontrava senão palavras e lugares vazios: símbolos, metáforas, o rio não era o rio nem corria e a própria morte era um problema de estilo. Onde é que eu já lera o que sentia, até a minha alheia melancolia?

Ilustração | Benedita Leitão Curso de Artes Visuais | Biblioteca OSJ Semana do Português



Uma casa é as ruínas de uma casa, uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra


Ilustrações de:

Carolina Albuquerque Beatriz Santa-Rita Benedita Leitão Francisca Abreu Francisco Paulo Inês Zenha Joana Casimiro Luísa Petiz Mariana Sousa Marta Agrela Matilde Jalles Miguel Lourenço Rita Mota

Oficinas de S. José | Associação Educativa


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