O acervo de criação
como um legado
catalisador
Adriana Teixeira da Costa 2017
"eu prefiro que a borboleta continue voando, mesmo que eu não possa pregá-la em um pedaço de cortiça para dizer que a borboleta "é" decididamente azul. Prefiro não ver completamente a borboleta, prefiro que ela continue viva." Georges Didi Huberman Que emoção ! Que emoção ?
Indice 1. Apresentação do projeto de pesquisa
2. O Giramundo - o acervo de criação e a passagem da liderança no grupo
3. O Instituto Brincante - a busca por um léxico da dança popular, um acervo em movimento
4. O Museu da Inocência - quando a ficção vira um acervo
5. Tópicos para uma primeira conversa
6. Referências pesquisadas
1. Apresentação do Projeto de Pesquisa
Este trabalho busca refletir sobre algumas características do processo de continuidade de um projeto artístico (uma matriz de tendências realizada e expressa em obras) e a importância do Acervo neste percurso. Entendo o Acervo de criação como um arquivo pulsante, que contém uma grande diversidade de documentos do processo criativo. Esta variedade de registros pode ser materializada em diferentes suportes : diários, projetos, croquis, roteiros, maquetes, "storyboards", rascunhos, ensaios, registros audiovisuais, fotografias, objetos, sites, etc. “O pensamento em criação se dá em um contínuo movimento tradutor de linguagens, como, por exemplo, palavras e imagens que se transformam em ação no corpo de um ator” 1 Cada obra produzida reflete um percurso de escolhas e de transformações sucessivas, que exigiu do artista ou grupo artístico, uma miríade de pesquisas, planos e experimentações. “ A criação como rede pode ser descrita como um processo contínuo de interconexões instáveis, gerando nós de interação, cuja variabilidade obedece a alguns tipos de princípios direcionadores. Essas interconexões envolvem a relação do artista com seu espaço e seu tempo, questões relativas à memória, à percepção, recursos criativos, assim como, os diferentes modos como se organizam as tramas do pensamento em criação” (www.redesdecriação.org.br) O arquivamento deste processo obra a obra é também uma escolha. A forma de criação, organização deste acervo e suas práticas comunicativas desvelam formas da relação com a memória do processo e narrativas do que se quer como lembrança.
1
Almeida, Cecília Salles - processos de criação em grupo diálogos - 2017 Editora Estação das letras e Cores p57
Cecília Salles sugere em seu livro sobre processos de criação em grupo 2 , um olhar para os arquivos sob três perspectivas : ambiente de interação, espaço de reflexão teórica e um campo em expansão. Seguindo esta pista busquei investigar grupos artísticos e artistas que valorizam o acervo de criação, estas lembranças materializadas3 como matéria prima para seus novos processos criativos. Esta dinâmica (re)criadora explicita tensões/fricções existentes entre o projeto poético, com seus princípios ordenadores estéticos e as inovações e experimentações procedimentais e suas práticas comunicativas. Existe uma luta pela memória. O que preservar ? O que abandonar ? Como lembrar ? Como esquecer ? “Toda cultura se cria como um modelo inerente à duração da própria existência, nos diz, e à continuidade da própria memória. Em tal sentido, todo texto contribui tanto para a memória como para o esquecimento. E um texto não é então a “realidade” mas os materiais para reconstruí -la. Já o esquecimento se realizaria também em sentido contrário.A cultura excluem continuação, no próprio âmbito, determinados textos, levando em conta todos os tipos de injunção” 4 Podemos ter este mesmo entendimento para qualquer documento do processo. O esquecimento está relacionado com a atenção. O que no processo transformativo da recriação deve ser mantido ? Quais são os critérios de seleção e fixação, as renitências do olhar, que revelam a continuidade do projeto poético ? Se entendemos a memória como uma continuidade que se dá no campo das interações5, como visualizar atratores ou linhas de consistência que mostram a adesão a este projeto comum ?
2
Almeida, Cecília Salles - processos de criação em grupo diálogos - 2017 Editora Estação das letras e Cores 3 4 5
Termo utilizado por Fausto Colombo (1991) sobre as anotações do processo. Ferreira, Jerusa Pires Armadilhas da memória e outros ensaios p78
“ Uma memória criadora em ação que também deve ser vista nesta perspectiva da mobilidade, não como um local de armazenamento de informações, mas um processo dinâmico que se modifica com o tempo” Salles, Cecília de Almeida. Redes da criação.Construção da obra de arte. p19
Assim como afirma Salles(2007), é preciso abrir espaço para as interpretações das relações que conectam esses dados, pois o fator relevante para um estudo de processo é entender como se dão as conexões, como elas surgem, como se modificam e como se expandem e não apenas descrever e recontar eventos. Os princípios gerais da criação podem ser os mesmos nas muitas linguagens artísticas, no entanto é na maneira em que se estabelecem as conexões que descobrimos as especificidades de um determinado processo. A crítica de processo verifica que os projetos são diferentes entre si, não apenas por seu objetivo, o propósito que o guia, mas sim pelas conexões estabelecidas entre os elementos da rede que impulsionam a realização do projeto. O que mantém este impulso no tempo, a longevidade do processo criativo adensando um legado catalisador ? A interatividade é uma das propriedades desta rede criativa e o acervo criado permite uma viagem no tempo nestas relações estabelecidas. Cada documento do processo contém uma potência realizada ou latente. Este material revisitado pode abrir uma nova relação, provocando novas associações criativas à partir do acervo conservado. Conforme afirma Lotman (1996) “a cultura não é um depósito de informações, é um mecanismo organizado, de modo extremamente complexo, que conserva as informações elaborando continuamente os procedimentos mais vantajosos e compatíveis. Recebe as coisas novas, codifica e decodifica mensagens, traduzindo-as para um outro sistema de signos”6 Neste sentido, o espaço da cultura preserva uma memória em comum, um lugar no qual alguns documentos de processo podem conservar -se e ser atualizados. 6
LOTMAN, Iuri M. La semiosfera: semiótica de la cultura y del texto.p74-5
“Às vezes, acho que temos duas culturas. Uma é a dos meios de comunicação, estabelecida, oficiosa [...]; outra é aquela produzida a partir de uma relação do homem com o seu meio, aquela cultura de testemunho. Uma é fácil de reconhecer e de localizar; outra você tem que garimpar, descobrir. Uma é a feita para o consumidor de cultura, a outra por necessidade daquela pessoa que faria aquele trabalho independente de qualquer coisa.” Álvaro Apocalypse
2. Giramundo : o acervo de criação e a passagem da liderança no grupo
O Giramundo foi fundado em 1970 por Álvaro Apocalypse, Terezinha Veloso e Maria do Carmo V. Martins. O grupo Giramundo gera uma produção significativa de espetáculos para o teatro de animação no país e também no exterior, além de uma relevante coleção de bonecos, exposta atualmente na sede do Museu Giramundo7 , em Belo Horizonte.
Foto do Acervo Giramundo
Dois lados coexistem na criação dos espetáculos do Giramundo: um, tradicional, interessado nas formas históricas do teatro de animação, especificamente o boneco e suas particularidades estruturais e simbólicas; outro, no entanto, é mais experimental, orientado pela pesquisa das possibilidades de encenação, orientado por uma estética afirmativa da cultura popular brasileira e um rigoroso acabamento plástico/visual dos objetos/bonecos. 7
Encontra-se no museu uma das maiores coleções de marionetes da América com aproximadamente mil peças. Além dos bonecos, distribuídos estrategicamente de acordo com o espetáculo, o espaço proporciona estudos relativos às artes de cenografia e traje de cena referente ao teatro de formas animadas.
Nas últimas montagens, o grupo introduziu o recurso audiovisual, o que abriu alternativas de intercâmbio entre teatro de bonecos e a vídeo-animação. Segundo Malafaia (2004), o atual diretor geral do Giramundo, o alto nível técnico do trabalho de Álvaro Apocalypse funcionou como um parâmetro de conduta e comportamento interno do Giramundo. Seus diários foram adotados como principal ferramenta de análise e criação nos processos criativos do grupo. Seu acervo se distingue de outros similares por estar “vivo”, com grande parte dos espetáculos originais ainda em atividade. Esta dinâmica de reapresentação dos espetáculos, permite a utilização dos projetos de bonecos do acervo para a construção de réplicas dos mesmo. Exemplo : Boneco (Rei) de vara com movimento de boca criado em 1976 e reconstruído inteiramente à partir do projeto
A grande coleção de desenhos e projetos técnicos de Álvaro Apocalypse e coleção de fotografias históricas do Giramundo documenta a trajetória dos bonecos do grupo. Como um fator determinante no processo criativo do grupo, ganha destaque o uso regular do desenho como ferramenta direcionada nas montagens, sendo este um dos fatores da coerência organizacional identificada na produção do Giramundo. A longa prática do desenho marcou o pensamento gráfico de Álvaro Apocalypse, aproximandoo da linguagem da gravura, o desenho aplicado ao Giramundo adquiriu funções instrumentais como a previsão e a experimentação gráfica dos elementos e características que compõem o boneco e o traje de cena no Giramundo, como, por exemplo, forma e volume, escala, cores, mecanismos e estruturas internas. Em seu Memorial8, Memórias Recentes de Um Velho Doido Por Desenho, Apocalypse relata o que parece prever ao referir-se ao desenho a ausência de cor como procedimento adotado no espetáculo Giz (1979): “Sempre compreendi o desenho como minha linguagem, tanto que o considerava a verdadeira maneira de fazer arte, pela sua concisão, espiritualidade e falta de cor. O desenho é uma escrita, é o resultado de um gesto feito no espaço, numa superfície. 8
Memorial apresentado à Escola de Belas-Artes da UFMG, com o qual foi aprovado no concurso para professor titular da Universidade. (Sampaio, 2011, p. 58).
Esse gesto pode ser composto pelo deslocamento de um corpo inteiro, pelo deslocamento de parte do corpo, ou seja, do braço, pelo deslocamento da mão, ou apenas pelo deslocamento do pensamento” Cecilia Almeida Salles aponta para o fato de que cada artista está inserido num projeto poético pessoal. Afirma: “em toda prática criadora, há fios condutores relacionados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do artista [...] gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único “ 9 Marcos Malafaia um dos atuais diretores do grupo comenta no Documentário 10Ocupação Giramundo (2014) realizado pelo Instituto Itaú Cultural
“Este tipo de viés, do desenho planejado, do desenho que antecede a criação, e que é um legado típico dele. O espetáculo é visto antes num desenho. O espetáculo é planejado, é desenhado. Para isso é necessário que haja uma disciplina, se não há essa vigilância, esta força até coercitiva um pouco, pra impulsionar o desenho que antecede as coisas.naturalmente o processo segue por um caminho artesanal. Que é um caminho da produção mão na massa, pragmática.Eu pego e faço o boneco, eu pego e crio, vou modelando e seja o que Deus quiser, há um aspecto imprevisível.” Cartaz Ocupação Girando do Instituto Itaú Cultural - 2014
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Almeida Salles, Cecília - Gesto inacabado 2004, p. 41)
10
O Documentário faz parte de uma documentação mais vasta. Veja o site http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/giramundo-teatro-de-bonecos/a-exposicao/
“o desenho está entranhado no funcionamento do Giramundo” “O desenho entendido na década de 70 e 80 pelo Álvaro é o desenho dibujo com esta visão do desenho artístico. E o nosso desenho é design, desenho projeto, que estava contemplado no Alvaro.(…) A gente explodiu este desenho planejamento por conta do avanço tecnológico, digital, o desenho auxiliado por computador o CAD, o que o Alvaro fazia a mão. Esta idéia do desenho como um projeto total que vai do boneco, da cenografia, da embalagem, dos mecanismos, da identidade gráfica, da legenda, do manual de instrução do boneco, do plano de palco, do plano de luz, do figurino de todos os setores componentes desta obra teatral. O Alvaro criava com as limitações e expansões que um desenho a mão de um papel e um lápis 2b e hoje a gente faz com uma equipe”
Como aponta Cecília Salles . “A obra de arte é, com raras exceções, resultado de um trabalho que se caracteriza por transformação progressiva, que exige, por parte do artista, investimento de tempo, dedicação e disciplina. A obra é, portanto, precedida por um processo complexo feito de correções infinitas, pesquisas, esboços, planos. Estes rastros deixados pelo artista de seu percurso criador, que são a concretização de uma contínua metamorfose “11 Vemos na fala de Marcos Malafaia a continuidade desta metamorfose para além do artista, no processo do grupo recriando à partir do seu legado. Outra questão que me chama atenção, nesta perspectiva processual do grupo é a manipulação do boneco compartilhada. O manipulador do boneco pode variar de espetáculo para espetáculo, já que o repertório do Girando é reencenado. Como garantir uma coerência interpretativa com diferentes manipuladores do mesmo boneco ? “ Como é um grupo que trabalha com repertório tem peças que estão no repertório há muitos anos. Quando se muda o manipulador é lógico que as percepções mudam, então o boneco muda junto. O Pedro do Pedro e o Lobo é o boneco que eu mais trabalhei, eu me dou super bem com o Pedro. Eu vejo ele com outras pessoas eu acho diferente, não acho melhor ou pior, não é a questão.Daí quando eu vejo alguma coisa que eu não concordo em relação a cena, a composição cênica, aí eu falo. Agora se a pessoa está numa performance que condiz com o que a cena pede, pode mudar, faz o que quiser. Faço até questão que ela faça isso, porque a pessoa está ali pra ser interprete, não pra repetir o que eu fiz “12 Fala Ulysses Tavares
11
12
Salles, Cecilia A . Crítica Genética Uma (nova) introdução. São Paulo, Educ, 2000.
Documentário Giramundo - Ocupação Giramundo do Instituto Itaú cultural http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/giramundo-teatro-de-bonecos/
“Um boneco com vários marionetistas tem de ter um estudo muito grande uns dos outros, pra ele não mudar a personalidade de acordo com o marionietista. A gente tem caso do Exu, dos Orixás que várias pessoas manipulam, e a gente ficava de olho um no outro…. È uma observação em conjunto pro boneco ter uma personalidade só “ Fala Beatriz Apocalipse
Em 2003, o grupo teve que lidar com o falecimento de Alvaro Apocalypse. Este acontecimento inesperado acentuou no grupo o relacionamento com arquivos de criação do artista, como uma fonte de uma orientação poética. “A gente percebeu que não daria conta de fazer o que ele fazia…a gente resolveu dividir” Fala Beatriz Apocalipse
“Ninguém estava preparado para que ele não estivesse a frente do grupo.Foi muito difícil lidar com esta situação porque ninguém estava preparado sob aspecto algum, juridicamente foi difícil, artisticamente foi muito complicado, porque a gente sabia que todo mundo olharia pra gente falando assim…não é o Alvaro né “ Fala Ulisses Tavares
Cecília, O material de vídeos do Instituto Itaú cultural, traz , a partir das entrevistas, aspectos interessantes nesta passagem da liderança: Ulisses Tavares fala de uma liberação no uso da projeção de vídeo nos espetáculos e apresenta o quanto este recurso criou todo um setor novo no grupo. Beatriz fala de um processo mais coletivo de criação do roteiro do espetáculo e do uso do Acervo de desenhos para o restauro de bonecos e como contraponto no nascimento de novos personagens Marcos Malafaia explica em um vídeo específico sobre captação de recursos e gestão as mudanças nas práticas de contratação (profissionalização) e o retorno aos espetáculos de repertório em novos formatos. Penso que uma visita ao Acervo pode também enriquecer a percepção destas variações
3. O Instituto Brincante - a busca de um léxico da dança popular, um acervo de movimentos
“Quando comecei os estudos e aprendizados das danças, eu percebi que elas tinham alguma coisa em comum. Essa percepção me levou a constatar que havia na maneira dos dançarinos se movimentar um certo jeitão particular que se refletia em molejos, sacolejos, meneios, saracoteios, negaças, e comecei então a tentar descobrir o que estas palavras queria dizer, Ao longo dos anos, então observando e estudando mais cuidadosamente, fui percebendo que esses comportamentos eram reflexo da música que animavam essas danças. Ora, uma música, significativamente marcada pela presença de contratempos ou tempos fracos e sincopados, só podia levar aqueles trejeitos, aqueles tópicos ou peculiares comportamentos (…) A sincope é isso mesmo. É uma alteraçãozinha rítmica que foge a regularidade do tempo que a música Ocidental, pelo menos, está mais ligada. E a música nossa, principalmente, a nossa rítmica, está povoada de tempos sincopados” Antônio Nóbrega http://antonionobrega.com.br/
O Instituto Brincante13 é uma iniciativa cultural e educacional criada em 1992 por Rosane Almeida e Antônio Nóbrega. Brincante é como os artistas populares se denominam e o seu espetáculo sua brincadeira. São aqueles que participam dos brinquedos,. Brinquedo no Nordeste é sinônimo de canto e de dança. Empregado especialmente como nome genérico das danças dramáticas (Pastoris, Cheganças, Bois, Congos, Caboclinhos, etc.). Também se usa no mesmo sentido brincadeira, brincar. Esta visão lúdica do trabalho é o foco da visão do Instituto. O pressuposto é a reelaboração, e não a reprodução, dos materiais da cultura popular, por não ser possível uma abordagem “pura” ou “original”. Sobre o Instituto, a crítica e pesquisadora de dança Helena Katz, afirma: “E o laboratório foi criado com sua parceira, Rosane Almeida: o Instituto Brincante, no qual suas hipóteses podem ser14 testadas” Compreender um espaço pedagógico como um laboratório, um local de experimentação, onde toda proposição é vista como testes de um saber que ainda está para ser elaborado, talvez possa, de fato, ser uma atitude que, quando constante, qualifica-o como uma trajetória de pesquisadores
13A
proposta do Teatro Escola Brincante é servir como local de valorização e promoção da cultura brasileira. Criado em 1992, desde então oferece, além da apresentação de espetáculos, cursos e oficinas de dança, capoeira, teatro, percussão e formação de educadores brincantes, por exemplo, todos ministrados por diversos profissionais dessas áreas. O letrista Bráulio Tavares, um dos parceiros mais importantes de Nóbrega, já ministrou no local um curso sobre poética popular do Nordeste. Nóbrega ali estreou os espetáculos Brincante, Segundas histórias, Na pancada do ganzá e Madeira que cupim não rói. Também ali já apresentou muitas vezes sua aula-espetáculo. Com a notoriedade que conquistou, o seu teatro ficou pequeno para suas apresentações e não comporta o grande público que o artista atrai hoje. Devido à excelente receptividade da iniciativa, Nóbrega criou o Instituto Brincante, que por sua vez gerou o Centro Brasileiro de Estudos e Folganças, o qual – por meio de patrocínio e parcerias – oferece aulas gratuitas para comunidades, instituições sociais e jovens de baixa renda. 14KATZ,
Helena. Corpo, jogo e teoria. Pesquisa Fapesp, São Paulo, n. 191, p. 94-95, jan 2012. Disponível em: http://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/ 2012/01/094-095_Artes_191.pdf > Acesso em: 25 de outubro de 2017
Em 2004 foi realizada uma mesa de conversa15 entre Helena Katz e Antônio Nóbrega, onde ele busca esclarecer um pouco mais a sua busca. “ Hoje em dia, eu acho que estou caminhando para uma tentativa de interpretação do Brasil levando em conta a linha de tempo cultural popular.”
Antônio Nóbrega reitera sua visão sobre arte popular já expressa em outras entrevistas e no seu site . “O que é um arte erudita ? Essa dicotomia entre arte popular e arte erudita, eu acho que ela não é muito exata. Popular é um conceito de extração sociológica. Um artista popular é um artista do povo, de um extrato socioeconômico sociocultural. Erudito, não, erudito não é uma palavra de extração sociológica. Erudito é um adjetivo. Então, são palavras que se contrapõe. Então não dá pra você dizer, diálogo disso com aquilo, porque
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O InteligênciaPontoCom procura aproximar do público os principais criadores e pensadores das artes e da cultura no cenário nacional. Seus convidados são nomes expressivos da literatura, música, cinema, teatro, dança, artes visuais, economia e comunicação que falam de seus trabalhos e descobertas, num bate-papo descontraído . Veja vídeo https://youtu.be/dlLm-4T-VUE
mesmo na arte popular eu posso ter uma arte erudita. Ou seja, uma arte que requer erudição para ser entendida. Por exemplo, para a maioria das pessoas dos cursos de Letras do Brasil, saber o que é um galope à beiramar requer muito mais erudição do que saber o que é um soneto. Todo aluno de universidade sabe o que é um soneto, mas duvido que algum saiba o que é um galope à beira-mar “16 Nóbrega critica o conceito de cultura como folclore, dando um tom nacionalista de determinados movimentos que tentam colocar num “estojo museológico” as manifestações populares que, do seu ponto de vista, não podem ser precisamente definidas, nem em suas ações, nem em suas influências, que mudam, se movimentam e assimilam constantemente uma diversidade de influências. São, portanto, híbridas e renováveis.
No ensaio “Notas sobre a desconstrução do ‘popular’”, Hall17 afirma que não existe uma “cultura popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de poder e de dominação culturais. “Creio que há uma luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de formas dominantes. Há pontos de resistência e também momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural.”
Em 2013 o Instituto Itaú Cultural realizou uma exposição denominada Ocupação Antônio Nóbrega , nesta realizou uma série de entrevistas com o artista e com estudiosos de sua obra. http://www.itaucultural.org.br/ocupacao/antonio-nobrega/
16
Texto retirado da página do artista http://antonionobrega.com.br/
17
HALL Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Em entrevista, Helena Katz explica:
“Essa noção de uma dança brasileira, que fosse popular e erudita, foi por aí que as coisas vieram começando em termos de dança na carreira dele. Mas à medida que o movimento foi acontecendo no corpo dele, eu tenho impressão também por conta do desenvolvimento do trabalho dele com a música, ele foi se interessando por uma coisa que se chama os grandes teatros do Mundo. Várias formulações clássicas em termos de teatralidade e movimentação. E desta situação brasileira ele foi ampliando para mesma situação do erudito com popular para outras culturas….E foi encontrando coincidências de movimentos , de posturas entre o Taiti e a dança de Recife..coisas que parecem inteiramente descoladas uma da outra , mas de repente não é tão descoladas assim, porque são parecidas… Tenho a impressão que isto foi amadurecendo e hoje é mais claro pra ele um certo vocabulário de similitudes do que tem na cultura popular e em outras culturas do mundo”18
18Ocupação
Antônio Nóbrega- Instituto Itaú cultural https://youtu.be/ciZON1Tk0cA
“Não é a mudança de temas, ou de imagens, que caracteriza as alterações estilísticas, mas sim as modificações nos procedimentos artísticos, que propõem novos modos de tornar estéticos os objetos. À medida que um determinado procedimento se torna automatizado, cai no uso habitual da percepção, outras soluções formais se fazem necessárias, em tensão com as anteriores, gerando outro efeito perceptivo, interrompendo um comportamento tornado usual na relação com os objetos artísticos, lançando o espectador em processo criativo” 19 A inquietação do pesquisador Antônio Nóbrega leva a novos processos de busca .Em 2004, em parceria com o cineasta Belisário Franca, ele realizou uma série de 10 programas denominado: Danças Brasileiras20, apresentada
inicialmente no canal Futura
19DESGRANGES,Flavio 20
.2012, p. 43
Série Danças Brasileira - foi reapresentada no Canal Curta com esta apresentação : série de seis programas "Danças Brasileiras" circula por todo o Brasil o conhecimento e apresentando o trabalho de pesquisa de Antônio Nóbrega e Rosane Almeida, junto a grupos regionais e folclóricos de dança. O projeto tem o desafio de pesquisar, criar e sistematizar uma linguagem de movimentos corporais, que pode ser chamada de "Dança Clássica Brasileira”.o programa tem a seguinte vinheta de abertura: "Viajando pelo Brasil, procurando conhecer e aprender os passos, gingados dos dançarinos populares, aprendemos que as danças circulam, e que o corpo informa sobre a vida de cada dançarino.”No processo o casal, Rosane e Antônio, tem uma perspectiva participativa apreendendo os passos com os grupos que pesquisa. Ou seja, trata-se da invenção e elaboração de um sistema coreográfico baseado nos gestos, gingados e manobras de nossos ritmos e danças populares. Um outro sistema “Clássico". http:// canalcurta.tv.br/pt/series/serie.aspx?serieId=417
Outro procedimento que surge, inspirado em seu mestre Ariano Suassuna é a Aula- espetáculo, a descrição das mesmas pode ser visualizada em seu site. 1) Mundo Mátria, uma linha de tempo cultural popular brasileira. Seu objetivo com essas palestras — são quatro, de três horas cada — é tentar aproximar as pessoas, sensorial e intelectualmente, da natureza cultural do Brasil em toda a sua amplitude. O primeiro encontro é dedicado à própria linha de tempo cultural popular brasileira. O segundo, à literatura e à poesia populares; o terceiro, ao imaginário corporal popular; e o quarto, à música. “Quem sabe um melhor conhecimento e entendimento desse universo cultural não enseje novas práticas, caminhos e perspectivas de atuação para enfrentamento da desafiadora dinâmica sociocultural de nossa época?“, pergunta Nóbrega. Tanto na forma quanto no conteúdo, as aulas-espetáculos procuram, portanto, harmonizar o discurso com a performance, a teoria com a emoção. 2) Com Passo Sincopado Por meio de performances, vídeos e falas, Nóbrega apresenta o seu pensamento sobre uma dança brasileira contemporânea sistematizada a partir do encontro de matrizes corporais populares – passos, giros, meneios,molejos, gingados,etc.– com princípios técnicos práticas procedimentos formais provenientes das várias linguagens de dança tanto do Ocidente quanto do Oriente. Tomando ainda a dança no Brasil como ponto de partida de estudo e reflexão, Nóbrega em Com passo Sincopado, esboça também uma interpretação da cultura brasileira levando em conta tanto a sua ascendência ocidental ou europeia – classe dominante, letrada – quanto a popular – marginal e de substrato oral.
Percebemos no processo criativo de Nóbrega a constante inquietude da pesquisa e o desejo de compartilhar as suas investigações com o público deixando claro o sentido de inacabamento em sua obra, como aponta Cecília Salles
“o inacabado tem um valor dinâmico, na medida em que gera esse processo aproximativo na construção de uma obra específica e gera outras obras em uma cadeia infinita” 21 Em meio a essas modificações, as obras vão gradualmente tomando forma, numa busca constante. Nessas ações, não há hierarquia ou ordenação entre pensamento e ação: os dois acontecem ao mesmo tempo. Salles observa que, ao longo desse percurso, o artista vai desenvolvendo seus próprios procedimentos criativos, e se apropriando de técnicas. A busca por esses recursos que possibilitem transformações na matéria obedecem ao projeto poético do artista, que procura formas de viabilizar suas intenções. Segundo ela, “é uma busca muito pessoal e indissociada de sua vida, de sua constituição como sujeito, de seu modo de pensar e existir.” E ainda: “o artista, ao longo de seu processo, procura a construção de uma sintaxe pessoal, a partir do diálogo com a tradição e seus contemporâneos”22 Em sua busca por fundamentar uma posição teórica, da existência de uma linha de tempo cultural popular ,Nóbrega vai adensando seus registros investigativos no corpo, em aulas espetáculos e em registros audio visuais (Série Dança Brasileira) e atualmente em uma o projeto contemplado pelo Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna 2014: http://bit.ly/PassoSincopado Nesta nova obra/pesquisa Nóbrega relata o processo de assimilação e estudo das danças e manifestações cênico-populares brasileiras, revelando a exuberância do léxico popular, suas características, seus procedimentos.
21SALLES,
1998, p. 78)
22SALLES,
2006, p. 85
Faz o registro filmico dos passos: Exemplo: Caboclinho https://www.facebook.com/AntonioCarlosNobrega/videos/ 1690304231000673/
Percebo no processo de criação e pesquisa de Nóbrega uma complexidade crescente, semelhante ao que Steve Johnson denominou de Intuição Lenta “A maioria das instituições que se transformam em inovações importantes se desdobra ao longo de intervalos de tempo muito mais longos. Elas começam com uma sensação vaga, difícil de descrever, de que há uma solução interessante para um problema que ainda não foi proposta, e persistem nas sombras da mente por vezes durante décadas, reunindo novas conexões e ganhando força. E então um dia se transformam em algo mais substancial, por vezes despertadas por um novo acúmulo de informações ou por outra intuição que perdura numa outra mente, ou por uma associação interna que finalmente completa o pensamento. Como precisam de muito tempo para se desenvolver, essas intuições lentas são criaturas frágeis que se perdem com facilidade em meio às necessidades mais prementes do dia a dia. Mas esse longo período de incubação é também a sua força, porque insights verdadeiros exigem que pensemos alguma coisa que ninguém pensou da mesma maneira antes” 23
23Jonhson,
Steve - De onde vem as boas idéias pp67
Cecília, Diferente do grupo Giramundo a sistematização do Acervo do Antonio Nóbrega não está concentrada no CEDOC que fica na sede do Instituto. Quero agendar um horário de visita lá, mas pelo que tive de referências tem mais os livros teóricos que baseiam as pesquisas do grupo e fotos. Existe muito material na internet, principalmente - Aula espetáculo e mesas de conversa com especialistas na área da Cultura Me instiga esta busca dele por um léxico da dança e penso que com o lançamento do livro financiado na FUNARTE, previsto para o ano que vem, terá referências mais sistematizadas do estado atual de sua investigação. Quanto aos procedimentos vejo dois destaques que merecem aprofundamento o uso da linguagem audio-visual : serie para TV e agora na filmagem dos passos coreografados e na Aula-espetáculo (uma estrutura inspirada em Ariano Suassuna, mas que Nóbrega dá aspectos novos)
“Sonhamos supondo que o sonho é real, essa é definição de sonho. Do mesmo modo ,lemos um romance supondo que ele é real - mas no fundo sabemos muito bem que não é assim.Esse paradoxo se deve à natureza do romance. Comecemos por enfatizar que a arte do romance conta com nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios” Orhan Pamuk24
24Pamuk,
Orhan -O romancista ingênuo e o sentimental. Pp10
4. O Museu da Inocência - quando a ficção vira um acervo Orhan Pamuk 25 nasceu em 1952, em Istambul. Principal romancista turco da atualidade, já foi traduzido para mais de quarenta idiomas e ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2006. Em seus romances percebemos a presença constante da cidade (Istanbul) e uma busca por uma narrativa aberta, multifocal, que lida com a incerteza da verdade ficcional. O romance, Museu da Inocência tem como protagonista Kemal, jovem turco de família rica e ocidentalizada que passa décadas a vagar por Istambul, colecionando coisas insignificantes que evocam sua paixão pela prima Füsun, com quem partilha as memórias da infância. Obcecado pelo amor e a cidade de sua juventude, Kemal começa a juntar cinzeiros cheios, xícaras sujas, a cama desfeita, toda e qualquer relíquia de Füsun no apartamento onde a encontrava quando jovem, faz dele sua casa-museu. No segundo momento, Pamuk preserva o passado em suas recorrentes listas de peças entulhadas nos apartamentos de edifícios com nomes de famílias, de expressões que usavam os velhos, de ritos e golpes políticos, de cenas da cidade, sentimentos da época, casos familiares, lembranças, costumes, sonhos, crenças, filmes, bairros, lojas, gírias, gestos, palavras. Depois da morte trágica da prima, Kemal visita museus pequenos e vazios do mundo, museus de grandes escritores, o museu Mario Praz e “o livro em que o grande autor contava a história de sua incrível coleção como um romance, sala por sala, objeto por objeto”. E aí Kemal pensa em expor sua vida — vida que todos julgavam jogada fora — em um local público e perene, no museu da inocência, lugar onde era possível conviver com os mortos. A narrativa do passado que move a trama do romance então se interrompe aqui e ali, em cortes para o presente, de onde o narrador conta sua história, apresenta sua exposição e diz como conseguiu cada um dos itens.
25
http://www.orhanpamuk.net/. página oficial do escritor
Orhan Pamuk em uma conferência realizada em Harvard em 2009 declarou : “Há muito tempo tento fundar um museu em Istanbul. Dez anos atrás, comprei um prédio abandonado em Çukurcuma, um bairro próximo ao estúdio onde escrevo, e com a ajuda de meus amigos arquitetos, pouco a pouco transformei a construção ,datada de 1897, num espaço museu que parecia moderno e refletia os meus gostos. Ao mesmo tempo, eu estava escrevendo um romance e frequentando brechós, mercados de pulga e as casas de conhecidos que gostavam de acumular coisas. Eu estava procurando objetos que poderiam ter sido usados pelas família fictícia que imaginei morando naquela casa velha entre 1975 e 1984 e que estava no centro do meu romance. Pouco a pouco, meu estúdio foi se enchendo de velhos frascos de remédio, sacos de botões, bilhetes da Loteria Nacional, baralhos, roupas, utensílios de cozinha. Eu pretendia usá-los no romance e estava imaginando situações, momentos e cenas adequadas a estes objetos, muitos dos quais (como um ralador de marmelo) eu comprava por impulso. Um vez, fuçando num brechó, encontrei um vestido de tecido claro com rosas alaranjadas e folhas verdes e decidi que era perfeito para Füsun a heroína do meu romance. Com o vestido estendido diante de mim, pus-me a escrever os detalhes de uma cena em que Füsun usando este exato vestido, está aprendendo a dirigir26
26
Pamuk, Orhan - O romancista ingênuo e o sentimental. Pp 88
Os capítulos do livro são como estágios de uma visita guiada pelo acervo: “hoje, anos mais tarde, depois de muito procurar, exibo aqui um menu ilustrado, um anúncio, uma caixa de fósforos e um guardanapo” de um restaurante de estilo francês, “aqui exponho os anúncios nos jornais, os comerciais e as garrafas dos refrigerantes”, aqui apresento aos “leitores e visitantes 4213 pontas de cigarro e os modos como Füsun os apagou.”
Instalação produzida por Orhan Pamuk e apresentada no Museu da Inocência
Perto do fim do livro, Kemal entende que seu museu precisa de um catálogo, imagina guardar sua coleção também em uma narrativa e procura “o estimado Orhan Pamuk, que narrou a história em meu nome e com minha aprovação”. Páginas depois, Pamuk assume a primeira pessoa e começa a contar o processo de escrita do livro, as entrevistas que fez com Kemal, o que dele ouviu e anotou: “Por favor, inclua isto também no seu livro. Não
vamos deixar de falar da maneira como foi escrito nem de como o trabalho foi organizado. Quando ficar pronto, faça o favor de me entregar todos os rascunhos e seus cadernos também, para podermos incluí-los na exposição”. O Museu, um edifício real, foi aberto em Istambul em 2012 e apresenta um conjunto de vitrines homônimas aos capítulos do romance. Está situado no exato local indicado pelo mapa que víramos no livro. O Museu da Inocência tem identidade visual, website oficial e páginas ativas em redes sociais.
http://en.masumiyetmuzesi.org/
O narrador então propõe, embora museus sejam em alguma medida uma invenção ocidental, que o seu museu resgatará algo de essencialmente turco. Ele comenta sobre a necessidade de não seguir certas tendências do Ocidente: “Tenho medo de que essa mania de museus no Ocidente vá inspirar os ricos incultos e inseguros deste país a criar pretensos museus de arte moderna com restaurantes anexos.
Isso apesar de não termos cultura, bom gosto ou talento na arte da pintura. O que os turcos deviam ver em seus museus não são essas imitações ruins da arte ocidental, mas suas próprias vidas. Em vez de exibir as fantasias ocidentalistas dos nossos ricos, nossos museus deviam nos mostrar nossas próprias vidas.” Em seu discurso institucional, o museu se apresenta a todo o tempo como atrelado ao romance de Pamuk, tendo ambos — romance e museu — sido concebidos em paralelo, segundo informações do site oficial e do catálogo da instituição. Este catálogo é a terceira e última peça do projeto. Intitulado The Innocence of Objects, o catálogo foi publicado ainda em 2012, mesmo ano de abertura do museu. Diferentemente de outros catálogos institucionais, em que a autoria está geralmente restrita à ficha técnica ou a textos específicos, este apresenta na capa, em mais destaque do que o título, o nome de seu autor: Orhan Pamuk. O livro é composto por uma introdução dividida em sete pequenos textos , capítulos homônimos aos do romance apresentando as diversas vitrines do museu e um breve texto sobre o edifício, sua história e arquitetura. Além de ter sido escrito por um romancista e não conter as informações técnicas das peças do acervo, como se esperaria de um catálogo de museu, “The Innocence of Objects” retrata a quase todo o tempo personagens ficcionais como se fossem pessoas reais. Não só se fazem passar por reais elementos fictícios, mas também se coloca em questão a ideia de realidade em si — e uma outra ainda mais cara aos
museus, a ideia de autenticidade. Se Kemal é apenas personagem de um romance, o que diferenciaria sua carteira de motorista “original” de uma “réplica”? O que dizer do aviso — visualmente disposto de maneira tímida na página, quase um rodapé — que nos informa que todos os objetos do museu são reais? No catálogo, os processos de composição tanto do museu quanto do romance são abertamente comentados por um Orhan Pamuk que narra em primeira pessoa, incluindo até mesmo fotografias da mesa de trabalho do autor e dos lugares por onde ele teria passado e que o teriam inspirado durante a escrita do romance e criação do museu. Encontramos também no catálogo um Manifesto moderno para os Museus27 no qual, Orhan Pamuk declara seu amor aos Museus e sugere um novo caminho para o setor. Ele declara que não necessitamos mais de museus que buscam construir narrativas históricas da sociedade, comunidade, estados, nações porque sabemos que indivíduos são mais ricos, mais humanos.Cria uma lista com 11 itens e o último é. “O futuro dos museus está dentro das nossas casas “ Termina com a seguinte lista:
27
Pamuk, Orhan The Innocence of Objects. Nova York: Abrams, 2012.
Pamuk defende que os romances são ricos arquivos de sentimentos humanos e experiências cotidianas. “Quando estamos diante de um objeto ou de uma pintura num museu, só podemos supor, com a ajuda do catálogo, como a obra se encaixava na vida , na história e na visão de mundo das pessoas - enquanto no romance as imagens, objetos ,conversas, cheiros, histórias, crenças ,sensações são descritos e preservados como parte integrante da vida cotidiana da época. Essa condição de arquivo, essa capacidade do romance de preservar costumes e atitudes e estilos de vida é especialmente relevante quando se trata de registrar o discurso informal, cotidiano” 28 Julgo instigante esta expressão condição de arquivo. Ela parece retratar um modo de ser temporário e condicionado ao contexto, onde ser memória deslocase da linguagem artística: literatura, pintura, fotografia e passa a ser um modo da relação estabelecida. “A obra de arte está sempre na iminência de nos revelar algo. Assim é a ação do efeito estético” 29 Podemos entender que ao criar um Romance e um Museu simultaneamente o escritor queria gerar este efeito estético memorialista.
28
Pamuk, Orhan - O romancista ingênuo e o sentimental pp 94,95
29SALLES,
Cecília Almeida. Arte e Conhecimento, in Revista Manuscrítica, no4, p.109.
Em que medida esta obra: Museu da Inocência (com toda a sua complexidade ) é uma retomada poética de seu livro de 2003, Istambul - Memória e Cidade ? “Conrad, Nabokov, Naipaul - eis três escritores conhecidos por terem conseguido migrar entre línguas, culturas, países, continentes, até mesmo civilizações. Suas imaginações se alimentavam do exílio, um alimento que tragavam não através das raízes, mas da falta delas. Minha imaginação, porém exige que eu permaneça na mesma cidade, na mesma rua, na mesma casa, contemplando o mesmo panorama. O destino de Istambul é o meu destino. Estou ligado a esta cidade porque foi ela quem fez de mim quem sou” 30 Qual é a tendência criativa que se repete no percurso destas obras ? “A criação como um processo de inferências mostra que os elementos
aparentemente dispersos estão interligados; já a ação transformadora mostra um modo como um elemento inferido é atado a outro. Pode-se perceber, ao longo do processo criador, dois momentos transformadores especiais: a percepção e a seleção de recursos artísticos” 31 Os objetos ou ambientes como casa-museu já estavam na escrita de Istambul: “Mas não eram só os pianos que não eram tocados por ninguém; em cada apartamento também havia uma cristaleira trancada exibindo porcelanas chinesas, xícaras de chá, baixela de prata, açucareiros, caixas de rapé, taças de cristal, ânforas para águas de rosas, travessas e incensários que ninguém jamais tocara, embora no meio eles eu às vezes encontrasse esconderijos para os meus carrinhos em miniatura” “Ninguém imaginava as salas como um lugar onde você pudesse se instalar com conforto; elas eram pequenos museus destinados a demonstrar a um visitante hipotético o quanto os donos da casa eram ocidentalizados” 32
30
Pamuk, Orhan - Istambul pp14
31
SALLES, 2011, p. 95
32
Pamuk, Orhan p18 e 19
Cecília, Ainda estou tateando as obras de Pamuk. Recebi na semana passada o catálogo que tem um material rico sobre o processo de constituição do Museu A própria escolha artística de Pamuk, das estantes expositivas como “readymades”, dá uma prosa e tanto. Duchamp tem uma influência imensa nas concepções museológicas. Fiz uma entrevista com Martin Grossman (IEA/ USP) naquela pesquisa sobre Museu em Mutação que retrata bem esta provocação https://youtu.be/2ATkSrogGis
5. Tópicos para uma primeira conversa
Ambiente de interação
“No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”33
Existe uma tendência de musealização dos acervos de criação ? No grupo Giramundo e de Orhan Pamuk esta escolha é explícita. Mas o que esta musealização implica? O museu tem, com a Biblioteca e o Arquivo, algumas características em comum: são eles os depositários da memória coletiva, o que não se resume apenas à manutenção e conservação das coleções. Envolve também a exposição desse acervo para as pessoas de forma a prover o rápido acesso e recuperação dos objetos ou informações desejados, o que leva à necessidade de um trabalho interno de identificação, catalogação e de classificação, seja uma coleção de livros, de quadros ou de filmes, … Entretanto, mais do que a organização dos objetos, livros ou obras, é a motivação de seu agrupamento o aspecto que mais me interessa; a ordem que está por trás das exposições, aquela que norteia a montagem dos acervos, os agrupamentos das peças, sua seqüência, distribuição e formas de exposição. Estas escolhas revelam aspectos da matriz cultural de uma época. As reflexões sobre o museu no século XX são intensas e variadas. Walter Benjamin detecta a emergência de uma nova percepção que substitui o valor de culto pelo valor de exposição. Nesse período são criadas associações, como o ICOM, e inúmeros pensadores lançam novos desafios e questionamentos aos museus. André Malraux lança a idéia do Museu Imaginário e a Nova Museologia, em suas vertentes inglesa e francesa, questionam o museu em sua concepção, atividades e propósitos.
33
Benjamim, Walter. A obra de arte e sua reprodutibilidade técnica.
O que há de comum entre todos eles é uma tentativa de propor um novo museu, mais voltado para o público do que para as coleções. Mais do que isto, algumas idéias colocam em xeque a exclusividade do museu institucional como o único formato e solução possível do expor. As idéias da Nova Museologia encontram campo fértil nos Ecomuseus, nascidos na mesma época destas discussões (década de 1970), que propõem que a comunidade seja “responsável pelo patrimônio cultural que pertence aos seus membros, mesmo que eles estejam guardados nos seus domicílios”34. Visão mais radical é apresentada por Stanislas K. Adotevi, um consultor da UNESCO de origem africana, para quem : “o objeto desfuncionalizado, banalizado, no interior do museu, não passa muitas vezes do produto de desvios intelectuais de elementos estranhos à sua cultura: uma consciência alheia agarrada a uma condição real (...) um museu em si não é nada. Em si, o museu não significa nada. (...) Torna-se claro que o museu, lugar de um discurso enganador da museologia européia, deve desaparecer, retirado de cena por uma ruptura que impõe uma prática museográfica alimentada pela experiência desses milhares de homens que continuam a ser ignorados e que, cada vez mais, sabem possuir outros modelos a propor que não somente os legados pela Grécia clássica e pelo Renascimento. A consciência desta realidade é explosiva. Ela obrigará a museografia a manifestar-se em sua função crítica cultural, a sua função verdadeira de saber, por uma adequação à realidade quotidiana, a adesão a uma história experimental. (...) A nova prática museográfica deve preparar para o aparecimento de uma cultura verdadeiramente responsável. Ela só o poderá fazer agarrando as coisas pela sua raiz (...) A museografia será, portanto, radical ou não o será” (Citado por DESVALLÉES: 2001)
34
DESVALLÉES: 2001, 3
Em 2016 Orhan Pamuk participou da Conferência Internacional de Museus ICOM na Itália e com o seu Manifesto provocou novas questões sobre o relacionamento ente Museu e Literatura.
Vídeo - Entrevista Ohmar Pamuk no ICOM. https://youtu.be/BCdwSBepnSU
Orhan Pamuk fala da qualidade “museologizante” dos seus romances : “Assim como famílias que vão a um museu no domingo, achando que ele preserva algo de seu próprio passado e tendo prazer com essa idéia, os leitores também tem grande prazer em descobrir que um romance incorpora facetas de sua vida real - a parada do ônibus no fim da sua rua, o jornal que eles leem, o filme que eles amam, o sol poente que contemplam de sua janela, o chá que eles tomam, os cartazes e anúncios que veem, as ruelas, as avenidas e praças pelas quais transitam 35 Os museus para ele, são lugares onde o tempo se transforma em espaço e continua com as analogias :
35Pamuk,
Orhan - O romancista ingênuo e o sentimental pp 98
“Assim com o museu preserva objetos, o romance, preserva as nuanças, os tons e as cores da linguagem, expressando em termos coloquiais pensamentos comuns das pessoas e amaneira aleatório como a mente salta de um tópico ao outro.O romance não só preserva palavras, formulas verbais e expressões idiomáticas mas também registra o modo como são usadas nos diálogos cotidianos”36 A preservação está diretamente relacionada com este aspecto museologizante, que pode ser compreendido também, como explica Cecília Salles, de uma escolha comunicativa : “processo de criação mostra-se, também, como uma tendência para o outro e que a criação é um ato comunicativo complexo. O projeto de cada artista insere-se na frisa do tempo da arte, da ciência e da sociedade, em geral. Ao discutir o projeto poético, vimos como este ambiente afeta o artista e, aqui, estamos observando o artista inserindo-se e afetando esse contexto. É o diálogo de uma obra com a tradição, com o presente e com o futuro” Podemos entender a escolha do Museu como um índice do pensamento em criação de Orhan Pamuk, um nó numa rede tecida ao longo das narrativas antecedentes ? O Museu Giramundo, é um arquivo vivo e em constante mutação da produção do grupo. Nele estão reunidas as experiências da história do Giramundo, na forma de bonecos, composições cenográficas, fotografias, projetos e desenhos originais, documentos, filmes, áudios e arte gráfica. Aberto em 2001, preserva um acervo de mais de mil bonecos, ……………………………………
36
Pamuk, Orhan - O romancista ingênuo e o sentimental pp96
“Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações do artista com a cultura, na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca” 37 Outra dimensão dos registros é a de reflexão teórica e por vezes a defesa na obra de um posicionamento artístico. político e/ou filosófico Fora da idéia positivista e simplista de que a obra é apenas fruto de um tempo e espaço. Sim, a criação contém as marcas de seu lugar de origem e tempo histórico, porém traz consigo, sobretudo, a relação geradora de novos significados que um artista estabelece com seu meio, sua tradição, sua memória pessoal. Quando Antônio Nóbrega realiza sua aula-espetáculo ele está em um diálogo com a sua cultura e articula contrapontos com as teorias culturais, sociológicas e históricas vigentes no Brasil hoje. Ao abrir espaço no Instituto Brincante para um Seminário com o nome: Fazer e Pensar o Brasil38 o artista se reconhece como um produtor cultural e promove um diálogo sobre a cultura popular
37
Salles, Cecília Almeida - Redes da criação - a construção da obra de arte
38Trata-se
de uma parceria entre o Instituto Brincante, a Princeton University e o Núcleo de Estudos Comparados e Pensamento Social da UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Saiba mais: https://goo.gl/ybPhJr
Referências pesquisadas
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