AÇÃO, DESENHO, RESÍDUO

Page 1

FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ARTES PLÁSTICAS

AÇÃO, DESENHO, RESÍDUO

Yasmim Salim Flores Correa

São Paulo, junho de 2008


FICHA CATALOGRÁFICA FLORES, Yasmim, Salim . Ação, desenho, resíduo. Yasmim Salim Flores Correa Trabalho de Graduação Interdisciplinar – FAP/FAAP – São Paulo, 2008. PALAVRAS CHAVES: 1. Arte 2. Desenho 3. Performance 4. Linguagem gestual 5. Processo de criação


FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FACULDADE DE ARTES PLÁSTICAS CURSO DE BACHARELADO EM EDUCAÇÃO ARTÍSTICA HABILITAÇÃO EM ARTES PLÁSTICAS

AÇÃO, DESENHO, RESÍDUO

Trabalho de Graduação Interdisciplinar, vinculado à disciplina Desenvolvimento de Projeto Integrado II, apresentado como exigência parcial para obtenção de certificado de conclusão de curso.

Yasmim Salim Flores Correa Orientadora : Nancy Betts

São Paulo, junho de 2008



Para a família balão.



AGRADECIMENTOS À minha família por compartilhar comigo todos os sonhos e realizações durante a minha vida. À minha mãe, pelo companheirismo e a infinita paciência com o meu humor e por todas as vezes que sentamos juntas para ler e reler esta monografia. Ao meu pai que sempre me ajudou em todas as operações práticas, desde levar minhas telas na faculdade, como me ensinar a operar photoshop, edições de vídeos ,etc. À minha querida orientadora Nancy Betts, que com todo seu conhecimento me conduziu neste trabalho de pesquisa acadêmica, transmitindo clareza, objetividade e segurança. À Regina Johas, pela orientação inicial e por todo incentivo que me deu nas performances. A todos os professores da FAAP que contribuíram com seus ensinamentos, com a troca de diálogos e direcionamentos. A todos os funcionários e técnicos das oficinas de artes, pelo auxílio e simpatia. À Vera França, pelo lindo trabalho que fizemos juntas. Aos amigos, Juliana, Beatriz, Christina, Renata, Alexandre e minha irmã Jadde pela colaboração nas discussões do desenvolvimento desse trabalho. Ao Alex Salim pelas reproduções fotográficas das obras e minha amiga Adriana Ramalho pela diagramação. À Maria de Lourdes, Rodrigo, Cleia e Amália Tarallo por acompanharem toda essa minha trajetória. Ao Peter, pelas conversas diárias, compreensão e carinho. Às noites de terças feiras do Círculo (C.R.F.M.E.).



SUMÁRIO RESUMO INTRODUÇÃO SOBRE O DESENHO 1° FASE - EXERCÍCIO DE SOLTAR A MÃO E CAPTAÇÃO DA ESPONTANEIDADE DO MOVIMENTO 2° FASE - A DESCOBERTA DO CORPO POR MEIO DO ESTUDO DAS POSIÇÕES E DOS MOVIMENTOS 3° FASE - RECONHECER AS MARCAS - O GESTO DO CORPO 4° FASE – PERCEBER O CAMINHO E ELEMENTOS POÉTICOS ELEMENTOS POÉTICOS DOS DESENHOS AQUOSOS, 2008 RETORNO AO DESENHO DE GRANDE FORMATO

SOBRE A PERFORMANCE

11 12 14 14 18 24 28 30 32 36

WORKSHOP DE PERFORMANCE - 15° FESTIVAL VIDEOBRASIL

38

ROSAS BRANCAS PARA OS IDOSOS, 2005

39 40 44

CICLO VITAL I, 2005 CICLO VITAL II, 2005 VESTÍGIO DE BARRO II, 2006

47 48

LAMA NA FAAP, 2006

50

REFERÊNCIAS

52

RITO EM CÍRCULO, 2007 COLAR DE CONTOS, 2007

54 56

PARTO DE FLORES, 2007

58

VESTÍGIO DE BARRO I, 2006

A INTER-RELAÇÃO ENTRE O DESENHO E A PERFORMANCE BIBLIOGRAFIA

61 63



RESUMO

O fio condutor dessa pesquisa é o processo criativo nas linguagens de diferentes meios, como o Desenho, a Pintura e a Performance. Ao unir essas linguagens, estimula-se uma relação de diálogo e troca entre elas, que gerou descobertas e transformações por meio da vivência do processo criativo. Assim, relato na monografia os principais momentos do meu processo criativo, do início da faculdade até o momento atual. Fragmentei em fases de mudanças significativas do meu trabalho para melhor organização. O resgate de todos os antigos desenhos e documentações do processo de performances revelou cada passo dado e evidenciou a relação entre eles. Como transparecer a intensidade da ação em uma expressão gráfica? O interesse pela captação do movimento, mais precisamente do corpo em movimento, e, posteriormente, da inserção do próprio corpo no campo: ambiente de trabalho; a gestualidade; a corporalidade são questões que me interessavam pesquisar. A intenção de vivenciar a imersão num ambiente de trabalho se concretiza pela presença física de um corpo no espaço de tempo, que é real, naquele instante e depois da vivência, pois retrata a efemeridade da ação nos quais seus resíduos permanecem no gestual do desenho. A partir dessas questões, o trabalho realizado se torna resíduo da ação, é a tradução física das sensações para o papel. Ao aprofundar nessa busca por uma compreensão de uma linguagem própria, tentei apreender a indicação de uma possível identidade do trabalho.

11


INTRODUÇÃO Realizar um Trabalho de Graduação Interdisciplinar representa, para mim, obter uma compreensão da dimensão conceitual e poética do meu trabalho artístico. Esse entendimento resulta de uma reflexão sobre meu processo criativo durante esse período de formação escolar. Para falar dessas investigações de percurso, optei pela linguagem do desenho e da performance, para depois fazer uma relação entre elas. Daí a razão da conclusão deste trabalho ser uma síntese da união das duas linguagens escolhidas, para mostrar como, na criação, uma influencia a outra. No livro que a artista plástica Edith Derdyck coordenou, Disegno. Desenho. Desígnio, os artistas plásticos, designer, arquitetos, artistas multimídias, que escrevem, buscam, uns, dar uma definição ou especificidade do desenho, e outros, não encontrando palavras, criam um poema visual ou mesmo um desenho que represente, numa metalinguagem, o que o ato de desenhar significa para eles. Eu também busco compreender o que o desenho e a performance significam para mim. Compreendo serem os desenhos resíduos que revelam o percurso da ação da mão, do corpo e do espírito, isto é, a imersão no próprio ato de desenhar. São mapas que registram a trajetória entre o mundo real, físico, concreto e o mundo subjetivo. Gestos em expansão, em constante movimento de transformação. Já as performances são experiências que me proporcionaram a compreensão da presença do corpo em cena, no espaço. Em outras palavras, estar realmente imerso naquilo que se está vivendo - o momento da ação em tempo real. O objetivo desta reflexão é perceber, num primeiro momento, meu processo criativo, levando em consideração o desenvolvimento da linguagem do desenho e da performance e, num segundo momento, refletir a relação entre estas duas linguagens e o feedback que, como um eco, uma oferece a outra. O trabalho, então, convoca questões a respeito da gestualidade, do fluxo energético e da consciência no ato da produção artística, sob o ponto de vista da linguagem do corpo. Numa abordagem poética, proponho uma reflexão sobre o tempo, o efêmero, a vitalidade, questões que aparecem tanto no desenho quanto na performance. •Pode o desenho ser considerado uma expressão em tempo real? •Como trazer para o ambiente do desenho a imersão corpórea e energética que aparece na gestualidade expandida da ação performática ou mesmo da dança? A minha motivação ao buscar a resposta a essas questões é a tentativa de submergir no desconhecido, conectar com o sensível e experimentar o imprevisível. Viver uma experiência que me permita descobrir e sentir novas percepções e outras formas a partir da imprevisibilidade, para depois transformar essa experiência em elementos poéticos. A abordagem teórica que sustenta minha pesquisa são os textos dos livros: •Gesto inacabado: Processo de criação artística - Cecilia Almeida Salles •Disegno. Desenho. Desígnio - Edith Derdyck 12


•Performance como linguagem - Renato Cohen As idéias desenvolvidas nesta monografia são frutos da observação e da análise do meu processo criativo, pensando a sua estrutura de modo a reconhecer as diversas fases dos documentos de processo desse percurso acadêmico. “Os documentos de processo são, portanto, registros materiais do processo criador. São retratos temporais de uma gênese que agem como índices do percurso criativo”.1

Esta monografia está organizada da seguinte forma: Capítulo 1 – Sobre o desenho – Aborda as fases do meu processo Capítulo 2 – Sobre a performance – Relata as experiências vividas Conclusão – Reflete sobre como se deu o processo de inter-relação das duas linguagens. A relevância dessa pesquisa está na elaboração do meu percurso artístico na escola e de uma tentativa de perceber o trânsito/tradução entre linguagens. Pensar se acontece uma forma híbrida, como são os elementos constitutivos do desenho e da performance, e como esses elementos dialogam entre si. Neste sentido, busco uma experimentação aberta das relações que ocorrem em ato e que sejam da ordem da surpresa, do inesperado. A finalidade é “descobrir” as relações de pertinência entre os elementos para que eu possa perceber os traços reincidentes no trabalho e reintegrá-los no meu processo criativo como elementos plásticos que dão identidade ao meu trabalho. “O percurso da criação mostra-se como um emaranhado de ações que, em um olhar ao longo do tempo, deixam transparecer repetições significativas.” 2

1 2

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado. São Paulo, FAPESP, 2001, p. 17. Idem, p. 21.

13


SOBRE O DESENHO

“É importante destacar que o desenho, como reflexão visual, não está limitado à imagem figurativa, mas abarca formas de representação visual de um pensamento, isto é, estamos falando de diagramas, em termos bastante amplos, como desenhos de um pensamento, uma concepção visual ou um pensamento esboçado. Não é um mapa do que foi encontrado, mas um mapa confeccionado para encontrar alguma coisa. E os encontros, normalmente, acontecem em meio a buscas intensas. Os desenhos, desse modo, são formas de visualização de uma possível organização de idéias, pois guardam conexões, como, por exemplo, hierarquizações, subordinações, coordenações, deslocamentos, oposições e ações mútuas.”3

1º FASE - EXERCÍCIO DE SOLTAR A MÃO E CAPTAÇÃO DA ESPONTANEIDADE DO MOVIMENTO No período inicial, meus desenhos eram compostos por um interesse em observar atitudes vindas das situações do cotidiano. Buscava nos desenhos captar os movimentos dos gestuais das pessoas, como posicionamento de braços, pernas, postura da coluna, etc. Exercitava o gesto de desenhar em todos os lugares onde ocorria a inquietação em relação ao tempo de espera, como em fila de banco, correio, metrô, etc. Também em praças e parques me instigava poder captar em linhas, movimentos rápidos e espontâneos, fragmentos temporais em que crianças corriam e brincavam, pois o momento de cada ação é único e é isso que estimulava o meu traço.

3

14

SALLES, Cecília Almeida. “Desenhos de criação” In Disegno. Desenho. Desígnio. Edith Derdyk (org..). São Paulo, Editora SENAC/SP, 2007, p. 35.


Balanço das crianças, 2004 Lápis conté sobre papel 21 x 29,7 cm


A finalidade era criar um diálogo rápido entre o olho que captava a imagem e o papel, num vai e vem constante, rítmico, como numa brincadeira, numa prática de desenhar sem auto-censura. O processo cessava quando a pessoa observada se dava conta de que estava sendo desenhada e perdia a naturalidade. As reações eram bem distintas, a pessoa ou se incomodava mudando de lugar, ou, ao contrário, se aproximava para ver o que eu rabiscava. Muitas vezes me pediam para serem retratadas (algumas até posavam). Em quase todos os casos era inevitável uma aproximação entre mim e a pessoa observada, estabelecia-se uma interação, que começava através de conversas, de curiosidade mútua, entre nós.

Menino de olho, 2004 Grafite sobre papel 21 x 29,7 cm 16


Interação com as manchas, 2004 Lápis conté e guache sobre papel sulfite 21 x 22 cm O desenho a partir de “motivo” espontâneo também ocorreu posteriormente dessa primeira fase, num momento em que as manchas ocasionadas acidentalmente, por tintas e nanquim, eram incorporadas como elementos plásticos. Para reaproveitá-las, a estratégia usada era colar folhas de papel sobrepostas, para depois haver a intervenção com linhas nas manhas. O objetivo era que o desenho partisse de uma situação de acaso. 17


2° FASE - A DESCOBERTA DO CORPO POR MEIO DO ESTUDO DAS POSIÇÕES E DOS MOVIMENTOS Encontrei no universo da dança muita inspiração, em decorrência do interesse pelo movimento. Em aulas de dança contemporânea, era exercitado um trabalho de profunda percepção corporal que envolvia o constante mapeamento da auto imagem. Consistia em observar a alteração do corpo no solo após um movimento ser realizado.

Fragmento do diário de desenhos, 12 de maio de 2005 18


Ninho de Sonho, 2005 Nanquim sobre papel vegetal 16 x 17 cm

Esses trabalhos de percepção corporal influenciaram totalmente os desenhos, pois trouxeram o interesse em representar o corpo em suas diversas posições. Para isso, eu pensava no meu corpo como referência. Por exemplo: se eu fosse desenhar um corpo em rolamento no chão, tinha que imaginar primeiro todo o movimento, para depois pensar na posição da perna esquerda e do braço direito, a direção da cabeça, do olhar. Assim, imaginava-me na posição a ser representada para depois poder desenhar. 19


Se por um lado o contato que tive com o teatro, com a dança e nas artes plásticas com a performance abriram caminho para a expressão do movimento e amplitude dos gestos; o desenho, por outro lado, trouxe-me um momento de introspecção, de auto conhecimento, pois a relação desses desenhos com meu desenvolvimento pessoal era inerente a um processo de subjetivização que eu estava vivendo. Os desenhos eram auto- retratos. Doses Homeopáticas, 2005 Nanquim sobre papel 24 x 25 cm 20


Foi nessa fase que realizei a performance Ciclo vital I, compartilhada com a modelo artístico, Vera França. Criamos um vínculo de amizade que permanece até hoje. Ela posava nas aulas de pintura e de tanto observar as formas de seu corpo, elas permaneceram em minha memória.

De braços abertos para a vida, 2005 Nanquim sobre papel 21 x 29,7 cm


A partir desses desenhos de memória do corpo da Vera, realizei uma série de desenhos de senhoras dançando, refletindo a delicadeza, suavidade e interiorização de movimentos, retratando senhorinhas em posições que exigiam maior flexibilidade da coluna, como levar as mãos até os pés, transmitindo soltura. Para mim, a visão desse contexto mais liberto remete a uma introspecção e um olhar interno mais atento.

Série: Las abuelitas bailantes A dança, 2005

42 x 59,4 cm


SĂŠrie: Las abuelitas bailantes Colhendo Flores internas 23 x 24 cm 23


3° FASE - RECONHECER AS MARCAS - O GESTO DO CORPO A imersão no desenho iniciou após a assimilação de algumas experiências que tive com a performance “Vestígio de barro II” (2006), em que eu cobria meu corpo de argila para pintar com as mãos e pés. Ao observar os rastros no chão gerados pelo movimento corporal, identifiquei a semelhança entre os gestos do desenho e da pintura. Percebi, então, que poderia explorar a noção da presença corpórea se conseguisse alcançar um estado de consciência ao realizar uma ação. Esse despertar renovou os traços dos desenhos, proporcionando também um reconhecimento e entendimento dos gestos e das pinceladas em minha pintura . Foi como se a força do desenho submergisse do barro. Isso se intensificou após o retorno de uma intensa viagem que fiz para a Chapada dos Veadeiros, onde as longas caminhadas pelo o cerrado, cachoeiras e pedras de cristais renovaram e potencializaram o gesto, que de modo enérgico se ampliou no desenho. De lá, trouxe pedras de argila do rio para desenhar (lá elas são chamadas de tabatinga) e iniciei uma pesquisa em que unia as diferentes matérias primas como o barro, junto ao carvão, grafite e nanquim. Busquei ampliar a dimensão dos suportes para dar ao espaço os gestos e soltar todo o corpo, com maior liberdade ao movimento. Dessa maneira, produzia em fluxo, em grande quantidade e com agilidade, colocando vários papéis no chão da sala inteira. Surgiram desenhos abstratos, carregados de pinceladas e rabiscos em várias direções, sobrepostos, formando tramas e gestos repetitivos. Dedicava-me a alcançar a integração da presença corpórea e a consciência corporal no ato de cada desenho em que usava cada pincelada em sua potencialidade máxima, encarando o momento da produção como um ritual. Desejei expressar a subjetividade na tentativa de causar o desprendimento da racionalidade e permitir que a percepção sensorial e a intuição atuassem sem muito controle. Esta produção resultou em uma fase marcante no meu processo criativo, pois foi quando reconheci em meu trabalho uma força na expressão gráfica, que me fez optar por prosseguir nessa linguagem para o desenvolvimento do TGI.

24


Salve Jorge!, 2006 Carv達o, nanquim e pedra tabatinga sobre papel 80 x 100 cm


Circular, 2006 Técnica mista 80 x 100 cm

Nessa investigação do gestual, identifiquei a repetição da forma circular. Foi quando adotei o movimento espiral em vários desenhos como demarcação de um campo energético dinâmico e o surgimento de símbolos que começaram a ser constantes e foram incorporados no desenho. Passei um tempo nessa pesquisa simbólica, era (como) uma maneira de decifrar os resíduos da ação, em uma tentativa de compreender seu significado essencial. Qual é a essência da linha, do traço, do gesto? E qual é a mensagem subjetiva da união do corpo, do simbólico e do sentir? 26


Energia animal, 2006. Carv達o, pedra tabatinga e barbotina com pigmento 80 x 100 cm


4° FASE – PERCEBER O CAMINHO E ELEMENTOS POÉTICOS Nesse momento, ocorreu uma outra mudança gerada a partir de contradições deflagradas nessa trajetória. A começar pela simples constatação de que é impossível desenhar sem racionalizar. Mesmo dando vazão ao acaso e a imprevistos, sempre há um pensamento que o desenho materializa, seja pela noção de composição ou de já saber no fundo o que se quer alcançar, ou mesmo pelo o que não se deseja. Foi muito difícil se desprender totalmente de toda a assimilação estética absorvida até então. Desviei o caminho para respirar, mudando de técnica e dimensão de suporte. Voltei a trabalhar com as aguadas, em primeiro momento especificamente com a aquarela, retomando o universo das cores e tonalidades. Com ela, tive que lidar com a transparência e a sutileza do gesto em uma pincelada única. Resgatei os fluídos das manchas que tanto me agradavam por tornar possível lidar com os imprevistos. Logo após, integrei as linhas de caneta de nanquim com as manchas, compondo diálogos.

Série: Negritos, 2008 Nanquim sobre papel 11 x 26 cm

28


Raiz e gota, 2008 Aquarela e nanquim sobre papel 19 x 52,5 cm

Trabalhar com a aquarela é agradável e exige um equilíbrio interno, ou ela mesma proporciona esse equilíbrio. O material é prático e dá mobilidade podendo levar o estojinho com algumas cores, água e pincel para onde for. Com isso, também reduzi a dimensão dos papéis, cortando em diferentes formas. Estudei o percurso da formação da imagem nos desenhos aquosos, passo a passo. No início, passava o pincel encharcado de água no papel, fazendo uma forma imaginável, mas imprevisível. Em seguida, mergulhava a ponta do pincel no nanquim ou pigmento e a mancha se revelava. Daí poder alastrar suas ramificações e percorrer o papel até se unir com os traços da caneta. Cada mancha era única em sua fluidez e se expandia de formas diferentes.


ELEMENTOS POÉTICOS DOS DESENHOS AQUOSOS, 2008 Série: Negritos, 2008 2008 18,5 x 20,5 cm

30

Os desenhos são abstrações de um mundo interior, subjetivo. O interior de um corpo, seus órgãos e todas suas conexões internas, na união dos fluxos que corre nas veias, e pulsam a contensão e a expansão dos movimentos orgânicos que remetem as formas da natureza. Quando desenho e risco as primeiras linhas, sinto que as próximas vêm para equilibrar às outras, como um pêndulo e depois podem ser totalmente desorganizadas, por um excesso de linhas, informações e peso das manchas. Algumas aquarelas chegam aludir mundos fantasiosos e surreais que se desenvolvem por conta da imaginação do fruidor. No próprio processo de criação do desenho é reservado um futuro diálogo com o receptor. Com essa produção intensiva de aguadas, pude situar e tomar dimensão das formas que sempre gostei de desenhar, e de como as imagino e as concretizo. Compreendi que o meu trabalho se situa em um limiar entre o que é previsível e o imprevisível, em que opero o controle e o descontrole. Pude perceber como esse interesse pela a imprevisibilidade se relaciona também com as performances, e que pode ser uma característica fundamental na minha atitude artística.


Série: Negritos, 2008 Nanquim e aquarela sobre papel 18,8 x 20,5 cm

Por meio desta percepção, comecei a assumir a postura de deixar a obra em aberto, não determinando exatamente como um trabalho deve ser recebido. Mesmo porque, muitas vezes, pratiquei um desenho que pudesse ser observado por qualquer ângulo ou posição, pois rodava o suporte no momento em que desenhava, ou ainda, quando a dimensão era maior, circulava ao seu redor, compondo um desenho em 360°. Portanto, não me incomodava se a obra fosse vista por um diferente lado, era até muitas vezes proposital. Mas essa situação muda quando se tem que decidir como o trabalho vai ser exposto no espaço, e a relação do público com a obra.


RETORNO AO DESENHO DE GRANDE FORMATO Depois do entendimento sobre todo meu percurso, retomei aos desenhos de grande formato, integrado aos movimentos da dimensão corporal, para apresentá-los nessa etapa final do curso. Esses dois trabalhos foram iniciados em 2007, eles eram feitos apenas de resíduos de movimentos gestuais, com o grafite em bastão e o carvão. O seu inicio é simultâneo, à fase simbólica, pois foi o momento no qual me dediquei à compreensão das formas mais simples como o círculo, o quadrado e o triângulo. Este ano retomei o trabalho e optei por reutilizar esses desenhos como base e após a experiência vivida com a aquarela, dissolver a imagem do símbolo e transformá-lo em resíduo. Ou seja, uma memória interna do próprio desenho. Minha intenção é que as linhas continuem pulsando em seu ritmo próprio, conduzindo os olhares a dançar junto com o trajeto das linhas, manchas e tramas. Cada olhar que percorrer o desenho dançará de maneira única. O excesso de linhas em determinados desenhos, sugere muitas opções de percurso a se visualizar. Proponho proporcionar olhares dinâmicos e ativos, e também que o público caminhe e se movimente, diferentemente do usual, para olhar os desenhos pela a sala.

32


Triângulo dissolvido, 2007- 2008 Nanquim, grafite e carvão sobre papel 1,51 x 1,72 cm


“Os eventos que apareceram quando tudo começou eram suficientemente simples para terem surgido por acaso, e continuaram mudando, em um fluxo que nunca mais estancou. Cada uma dessas mudanças continuou sendo por acaso, e simples em relação à mudança que lhe antecedia. O que não acontece ao acaso, é a seqüência integral dos passos cumulativos dessas mudanças. Quando se sabe disso, um corpo dançando deixa muito evidente a sua semelhança com a maneira de como a evolução opera na natureza. Afinal, a dança se nutre dos ajustes do aleatório e cumulativo. A cada dia, por causa de todas as informações que vão transformando o corpo, ele é sempre um corpo único. Assim, qualquer corpo reúne uma certa coleção de informações na forma de um corpo ( que se encontra em transformação permanente, pois há muitos tipos de informação que não param de chegar), é esse corpo – do fluxo incessante de trocas de informação com ambientes por onde transita – que dança. Por isso, a sua dança não pode se repetir, pode apenas ser refeita. Se ele não permanece o mesmo, não pode fazer duas vezes a mesma coisa, simplesmente porque a coisa não pode ser a mesma. No corpo os eventos são únicos.”4

KATZ, Helena. “Corpo, design e evolução. In Disegno. Desenho. Disígnio. Edith Derdyk (org.). São Paulo. Editora SENAC/SP, 2007, p. 199. 4

34


Quando se alcança esse estado de envolvimento com o trabalho, pode-se entrar em contato com o momento presente da ação; é a ação que faz o elo entre o tempo e o desenho. Depois disso, o desenho se torna resíduo dessa ação, uma memória talvez.

Círculo de raios, 2007 – 2008 Nanquim e grafite sobre papel 1,50 x 1,70 cm

35


SOBRE A PERFORMANCE

“A performance está ontologicamente ligada a um movimento maior, uma maneira de se encarar a arte; A live art. A live art é a arte ao vivo e também a arte viva. É uma forma de se ver arte em que se procura uma aproximação direta com a vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento do elaborado, do ensaiado.”5

Meu primeiro contato com a performance nas artes visuais foi por meio do vídeo em trabalhos que realizei durante o primeiro ano da faculdade. Em 2004, participei da exposição Labor III, organizada por alunos da Faap e Fasm, em uma fábrica desativada na Mooca. No porão daquele antigo casarão, experimentei fazer um vídeo performance em que o vídeo-maker acompanhava meus movimentos com a câmera, como em uma vídeo dança. Não possuíamos roteiro, o que me norteava era a interação com o ambiente. Busquei expressar com a dança e efeitos da luz uma poética visual dramática, em conformidade com o aspecto decadente daquelas paredes e corredores abandonados, que nos cercavam. Gravamos o dia inteiro com a lente aberta para captar o máximo de luz, deixando a imagem “estourada”, avermelhada pela luz de uma única lâmpada pendurada e bem baixa, que tínhamos naquelas pequenas salas do porão. Havia ainda um bastão de fogo. Tanto o bastão, quanto a lâmpada, eu os manuseava em círculos giratórios para obter diversos efeitos. Quanto mais rápido e circulares eram os gestos, mais a definição da imagem se diluía, remetendo as próprias chamas de fogo em uma pintura de vídeo.

5

36

COEHN, Renato.Performance como linguagem. São Paulo, Perspectiva, 2007, p.38.


Frames de vĂ­deo


WORKSHOP DE PERFORMANCE - 15° FESTIVAL VIDEOBRASIL

Em 2005, ocorreu a 15ª edição do Festival Internacional de Arte Eletrônica Vídeobrasil, que teve a performance como tema central do festival. Através da FAAP, tive a oportunidade de participar do workshop de performance, coordenado por Marco Paulo Rolla e Marcos Hill, do Centro de Experimentação e Informação de Arte (CEIA), de Belo Horizonte -MG. A primeira parte do workshop foi dedicada ao estudo de referências bibliográficas e de exemplos históricos da performance, para depois partir para a elaboração e experimentação de ações propostas por nós, os participantes. Durante o festival, tivemos a oportunidade de participar como voluntários de performances propostas pela artista Norte Americana Coco Fusco (Bare Life Study #1) e do artista brasileiro Marco Paulo Rolla (Urgência Social). Além dos exercícios em grupo, durante o workshop, assisti apresentações de performances no teatro e os filmes antológicos da Marina Abramovic. O local da intervenção Bare Life Study #1, foi em frente ao consulado norte-americano em São Paulo. Éramos 40 voluntários vestidos com macacão laranja, idênticos aos usados pelos presos políticos e de guerra nos Estados Unidos, os quais representavam os mais baixos na hierarquia do país. Coco Fusco, vestida de militar, ordenava com um megafone para escovarmos com uma escova de dentes o chão da calçada da embaixada, de joelhos. A Performance criticava a militarização dos Estados Unidos. Também participei da performance Urgência Social do artista Marco Paulo Rolla, que ocorreu no coquetel de lançamento do livro “M.I.P - Manifestação Internacional de 38

Performance”, de Marcos Hill e Marco Paulo Rolla. A atividade consistia em programar os celulares dos participantes do trabalho para tocarem simultaneamente. Segurávamos ainda uma taça de vinho. Ao toque dos celulares, todos caíamos e permanecíamos deitados com os celulares empunhados, até sermos retirados do coquetel. Esta interação com artistas de diversos lugares do Brasil foram experiências coletivas muito envolventes. A dinâmica do grupo, estabelecida durante as reuniões, gerou troca de idéias e ações num retorno muito enriquecedor. A terceira semana do festival foi dedicada a apresentações dos alunos do workshop. Realizei duas ações pensando no público que freqüenta o Sesc Pompéia, pois não pude deixar de notar a enorme freqüência da terceira idade nas atividades oferecidas pelo o Sesc. Ao conversar com eles nas áreas de convivência, entre um intervalo e outro de nossas atividades, despertou em mim o interesse em homenagear aquela geração, também em lembrança da minha querida avó. Assim, questões que me tocavam muito no momento, por exemplo, a fragilidade do idoso, me motivou muito nesse trabalho. Daí os temas da descortesia, o desrespeito da sociedade e a transformação do corpo do indivíduo da terceira idade. No trabalho, optei por abordar essas questões em minhas primeiras experiências com a performance de maneira mais sutil. Por isso, propus uma reflexão sobre a passagem do tempo, também pelo fato de existir no histórico da performance um excesso do uso de imagens agressivas com o próprio corpo.


ROSAS BRANCAS PARA OS IDOSOS, 2005 A primeira ação, foi entregar rosas brancas aos idosos em uma homenagem ao Dia Nacional da Terceira Idade. Os conceitos que me interessavam trabalhar nesta performance foram: a interação e o estranhamento de uma ação fora do padrão aceito como norma. Em princípio não tinha certeza se essa data realmente existia, pois nem mesmo os idosos sabiam dela e ficavam surpresos com minha ação. Foi quando descobri que, no Brasil, o Dia Nacional do Idoso é comemorado dia 27 de setembro, e o Dia Internacional do Idoso é comemorado dia 1° de outubro. A experiência que tive durante a ação foi à relação de receptividade e o diálogo com cada pessoa que eu me aproximava para entregar a rosa. A maioria se alegrava em receber a rosa, outros questionavam sobre aquela atitude, e eu explicava que era só uma gentileza minha. Houve um senhor que se emocionou, pois nunca tinha sido homenageado na vida. Poucas pessoas não aceitaram as rosas. Por um lado, não estavam acostumados a um gesto fora da “normalidade”, ou seja, os homens não recebem flores, são eles que oferecem rosas às mulheres. Esse desvio da norma comportamental soava estranho para essa geração ainda acostumada a uma criação dentro de parâmetros mais tradicionais. Por outro lado, outros estranhavam, por não se considerarem idosos. No final, algumas senhoras, aproveitando da minha boa vontade, pegavam mais rosas da minha cesta para levar para suas casas e oferecer para Mãe Maria, Nossa Senhora de Fátima, Aparecida e todos demais santos cultuados por elas.

Fotos: Associação Cultural Videobrasil / Isabella Matheus


CICLO VITAL I, 2005. Para realizar a segunda ação, procurei uma mulher mais vivida do que eu, para fazer comigo uma performance em que questionássemos a natureza da mulher, natureza esta que muitas vezes é banalizada e aniquilada pelos esteriótipos criados pela sociedade. Para isso algumas questões se faziam presentes: Como se posiciona a mulher na sociedade atual? Qual é o reflexo das gerações anteriores sobre a nova geração? Qual será a atitude tomada pela minha geração? Mesmo já tendo estabelecido um vínculo de comunicação com as senhoras que freqüentavam o Sesc, nenhuma aceitou meu convite de realizar uma performance comigo no Festival Videobrasil. Se expor ao público? Ainda mais semi-nua? Minha proposta, para elas, era bem ousada. Com as negativas das senhoras, já estava quase desistindo e pensando em mudar de idéia, quando na aula de pintura, conheci a Vera França, modelo artístico de 66 anos, (trabalhou como modelo sua vida inteira, posando há mais de 40 anos). Essa profissão assegurou-lhe naturalidade e aceitação de seu próprio corpo às transformações geradas pela passagem do tempo. Vera, com sua experiência, transmitiu-me segurança de enfrentar uma exposição em público. Do seu comportamento, aprendi o que significa ter o domínio e o controle sobre a vivência de uma situação. Desconectar-se do julgamento estético sobre a beleza do corpo e focar a atenção e a concentração na experiência da relação interativa que, por ser em ato, requer sensibilidade e percepção nas sutilezas necessárias para o diálogo performático a ser estabelecido. Na performance Ciclo Vital I, nos posicionamos uma em frente à outra, para podermos nos olhar e refletir sobre as fases e os ciclos da mulher - A passagem do tempo, a juventude, o envelhecimento e a maturidade. Em outras palavras, a memória registrada no corpo de cada uma, o olhar como espelho de reconhecimento do tempo – passado, presente e futuro. 40


Para mim, essa ação foi reconhecer ao vivo o desenho das fases da vida e, portanto, era uma maneira de me ver, conhecer e reconhecer.

Fotos: Associação Cultural Videobrasil / Isabella Matheus


Fotos: MaraĂ­ Senkevicks


“Em contraste com toda a história da representação do corpo feminino pelos os homens,“no momento em que as mulheres usam o seu próprio corpo na arte, estão usando na verdade o seu próprio ser, fator psicológico da maior relevância, pois assim convertem o seu rosto e seu corpo de objeto a sujeito.” 6

Nós fizemos a performance Ciclo Vital I, no vão livre do Sesc Pompéia, (lugar de passagem de todo o público freqüentador do Sesc e do festival), pessoas de todas as idades e de diferentes classes sociais. Fazer uma performance fora de uma instituição de arte é, realmente, muito surpreendente, pois a reação do público é imprevisível e corre –se um certo risco. O Sesc é uma instituição voltada para um público mais amplo e nem sempre acostumado com uma linguagem de arte que não as tradicionais. Por isso, foi explícito o “choque” dessas pessoas ao se depararem com a nossa semi-nudez. Muitos demonstraram preconceito, e acharam um absurdo uma senhora mostrar os seios caídos. As crianças ficaram eufóricas e gritavam em uma tremenda agitação ao nosso redor. Mas também tiveram mulheres que se emocionaram, lembrando da mãe, da avó, da filha, da neta. Essas duas experiências, que tive no Vídeobrasil, trouxeram-me o entendimento de abertura para uma eventual interação com o espectador, ou ainda, para possíveis manifestações do acaso. Na Ação das rosas brancas, todos faziam parte da performance, eles compunham a obra. Na segunda, eu e a Vera éramos a obra. Os dois trabalhos foram compartilhados, eu propunha e dava espaço a livre manifestação da pessoa na qual eu interagia, numa relação verdadeira, não teatral. Até hoje quando participo de criações coletivas, confirmo o quanto é importante à comunicação aberta entre os membros, seja ela qual for: através da percepção, intuição, do olhar, da fala, mas tem que existir para poder ocorrer à troca e a realização de uma ação coletiva.

LIPPARD, Lucy. “The Pains and Pleasures of Rebirth: Woman´s Body Art. Art in America.”. Apud_ BUTH Guy. I.N Caderno o1, Videobrasil, 2005, p. 26. 6

43


CICLO VITAL II, 2005

No mesmo ano, tive a oportunidade de realizar novamente essa Performance, no salão da XXXVII Anual de Arte da Faap. Numa escola de arte a atitude do espectador foi outra, totalmente oposta. Foi impressionante, pois minha preocupação inicial era de como iria fazer para chamar a atenção do público em uma vernissage. Mas ocorreu mais simples do que eu imaginava, pois foi só eu entrar com uma cadeira e sentar no centro do salão, com a postura firme e inerte que causou um impacto imediato no público, pois logo se formou um circulo enorme e distante ao meu redor. Todos na expectativa de que algo acontecesse. Eu esperava a Vera descer, depois de uns 2 ou 3 minutos, como havíamos combinado. Mas ela demorou um pouco mais do que 5, 7, 10 minutos, e foram os 10 minutos mais longos que já vivi sob a pressão de olhares e expectativas. Já ouvia burburinhos que o trabalho seria aquilo mesmo, eu sentada numa cadeira, no meio do salão. Foi notável o incômodo e a impaciência de todos que estavam aguardando que algo extraordinário acontecesse. Já estava aflita pensando o que eu iria fazer caso a Vera não aparecesse, mas ela surgiu, linda, cheia de vigor, entrando na roda onde eu estava. Compreendi o tempo da espera e que a noção de tempo é muito relativa e diferente para cada um. Percebi que cada ação realizada em diferentes locais e momentos são únicos, e mesmo com a “pressão” externa de ter que corresponder a uma expectativa alheia, nos demos muito bem e mais uma vez tive que acompanhar o tempo dela, e não perder a sintonia para saber o momento de encerrar. Essa vez, não foi tão natural quanto à primeira, por mais que já nos conhecêssemos. Acredito que tenha sido por motivos simples: por eu ser aluna e ela funcionária da Fundação e haver muitos flashes de fotógrafos ao nosso redor; e ainda, a relação com o público distante e silencioso. Eram espectadores passivos, que já assimilavam uma Performance facilmente.

44


Fotos: MaraĂ­ Senkevicks



Frames de vídeo

VESTÍGIO DE BARRO I, 2006 Nesta performance, a primeira ação foi cobrir meu corpo com barro (argila reciclada). Em seguida, com um punhado dessa argila nas mãos, caminho lentamente em direção ao local determinado, em movimentos lentos, circulares e expansivos. O caminhar compôs o desenho de rastros dos pés, traçados aleatoriamente, mas com o foco da percepção interna, nas direções que procurava seguir intuitivamente. Essa performance com o barro teve vários desdobramentos, pois foi experimentada de diferentes formas. A primeira vez que me vesti de argila foi na Faap, no corredor dos ateliês de artes, com a ajuda do ceramista João (Juca, ex- funcionário da Faap). Com um punhado de barro nas mãos, fiz uma caminhada com as pernas flexionadas, um pé de cada vez, um na frente do outro, (um exercício simples de Butoh7 para concentração, que aprendi na aula de dança e quis aplicar). 7

Dança performance que surgiu no Japão pós-guerra criada por Tatsumi Hijikata e Kazuo Ohno.

47


VESTÍGIO DE BARRO II, 2006 Em setembro de 2006, participei da exposição DermacAções, em que tive a oportunidade de me apresentar na Casa do Lago, que se situa dentro da Unicamp. Lá tive liberdade de poder usar o centro do salão da exposição para fazer a performance. Tive que lidar com alguns imprevistos. Por exemplo, a falta de assistência, som, ruídos musicais do ambiente e o frio, coisas que ainda não estava acostumada a pensar. Mas consegui me concentrar e me adaptar a esses contratempos. Para me locomover, deslizava os pés lentamente, e quando o barro secava o atrito impossibilitava à continuidade à fluidez da dança. Intensificava os gestos das minhas mãos e braços, para o barro gotejar de maneira aleatória no chão, a proposta era seguir um novo movimento. Outro fato interessante é que o barro seca facilmente com o calor do corpo, sendo o rosto o primeiro à craquelar. Lá na Unicamp, ninguém me conhecia, e o barro, respingando, afastava os expectadores mais próximos que temiam se sujar. A exposição se chamava DermacAções, por esse viés, minha performance pode ter sido interpretada como uma demarcação de território. Mesmo não sendo essa a intenção do meu gesto, eu assimilei posteriormente essa atitude, mais consciente da forte imagem causada pelo barro. Em contraste à rusticidade do barro, os movimentos que compuseram o desenho eram firmes, leves e fluidos. A relevância desta vivência foi o enorme desenho de rastro de barro que havia no chão do salão. Será que irá permanecer até o final da exposição? Será que as pessoas iriam passar por cima? Queria acompanhar a transformação do desenho.

48


Pés que deslizavam, compondo no chão um desenho com pegadas de barro. O corpo de lama dançava e desenhava no espaço. Yasmim


LAMA NA FAAP, 2006 Entusiasmada com a idéia de poder desenhar no ambiente com vários membros do corpo, realizei outra experiência em sala de aula: usei apenas uma Bacia de argila (barbotina), em um canto da sala, com um projetor (emprestado) numa iluminação improvisada para ser diferente da luz cotidiana da sala de aula. Posicionei a bacia no chão e mergulhei minhas mãos no barro, a sensação foi grande, levei as mãos ao rosto, fazendo uma máscara, e permaneci de olhos fechados. Mergulhei um pé na bacia, depois o outro, alterando a estabilidade dos meus sentidos físicos e sensoriais. Ainda de olhos fechados, desenhava com os pés e mãos, até encostar com as costas na parede, abri os braços e levei as mãos sujas de barro na parede e as escorri até descer agachada. Essa ação em sala de aula foi outro tipo de demarcação, mais experimental e destemida. Não considerei um ato de vandalismo, “sujar”com barro as paredes brancas e um pedaço do chão do ateliê da Faap, talvez um gesto um pouco eloqüente, mas com o propósito de concretizar mais um trabalho com a terra.

50



REFERÊNCIAS Quando ampliei o suporte e levei a lona para o chão do ateliê, gostava de denominar essas experiências de pinturas de ação. A intenção em estudar a amplitude do movimento e a coreografia gestual do corpo no desenho e na pintura, tinha, para mim, a referência imediata e inevitável da Action Painting de Jackson Pollock. Renato Coehn define a Action Painting, como ‘pintura instantânea’, realizada na frente de uma audiência, como um espetáculo. Por esse ponto de vista, posso considerar minhas ações com o barro, pinturas de ação, pois sempre havia uma platéia, a diferença era que eu “me pintava”. Outra referência que as pessoas faziam do trabalho Vestígios de barro eram as performances Anthropométries do artista Yves Klein, com suas “pinceaux vivants” em L ´Epoque Bleue, 1960. Pode haver alguma semelhança ou identificação no sentido dessas imagens e ações realizadas por Yves Klein serem tão significantes no percurso da arte, mas confesso que não me referi a esses trabalhos quando passei a argila no corpo. A pesquisa trouxe novas referências: 1) A cubana Ana Mendieta, em Arbol de la vida - Tree of Life (from Silueta), (1976), em que ela está coberta de lama em um tronco de uma grande árvore; 2) O artista japonês integrante do grupo Gutai, Kazuo Shiraga no trabalho em que realizou uma ação onde ele mergulhava na lama: Kampf mit der Erde,( 1955) e em suas pinturas a óleo em que pintava com os pés.

Ana Mendieta, Kazuo Shiraga “Arbol de la vida - Tree of Life (from Silueta)”, (1976) 52


“Cobri meu corpo de barro e fui. Entrei no bojo do escuro, ventre da terra. O tempo perdeu o sentido de tempo. Cheguei ao amorfo. Posso ter sido mineral, animal, vegetal. Não sei o que fui. Não sei onde estava. Espaço. A história não existia mais. Sons ressoavam. Saíam de mim. Dor. Não sei por onde andei. O escuro, os sons, a dor, se confundiam. Transmutação. O espaço encolheu. Saí. Voltei.” Celeida Tostes, 1979

Fotos: Hery Stahl Celeida Tostes Passagem, 1979

3) A artista brasileira Celeida Tostes foi a primeira inspiração e referencial que tive para desenvolver a performance com o barro.Tive o primeiro contato com a sua obra na aula de cerâmica em 2005, aquelas imagens de sua performance “Passagem” de 1979, ficaram armazenados em meu subconsciente, até eu vir a vivenciar a experiência com o barro um ano depois. Minha admiração por essa grande artista e educadora cresceu sobremaneira depois de pesquisar mais sobre sua carreira artística. Celeida, depois de cobrir seu corpo nu com argila líquida, entrou em uma grande bola de barro cru em forma de útero, e duas assistentes fecharam completamente a bola de argila. Celeida permaneceu por algum tempo imersa em seu interior, para depois romper a argila e sair do útero, caindo como se estivesse nascendo outra vez. 53


RITO EM CÍRCULO, 2007

Dando continuidade aos desenhos como resíduos da ação e mapeamento de um trajeto do corpo, aprofundei em um estudo de ícones simbólicos. Desenhava buscando encontrar uma síntese do movimento do gesto. Quis expressar os símbolos corporalmente, de maneira natural. Referências do Kung Fu, da Yoga e dos Movimentos Sagrados8 somados à dança comtemporânea, possibilitaram-me fazer estudos de movimentos orgânicos e reversíveis, que fossem realizados com domínio, clareza e sem o uso da força, em um trabalho de percepção da auto imagem. Há ainda, as danças de origem afro-brasileiras e folclóricas da nossa cultura popular que sempre tive interesse. Estas práticas foram aplicadas na performance Rito em círculo, realizada na Casa do Lago, Unicamp, em 2007. O trabalho uniu o ritual performático e o desenho para comunicar através de símbolos. No trabalho, moldei o círculo de terra úmida e coletada, momentos antes da ação. Posicionei o circulo de terra em frente aos desenhos residuais de movimentação corporal de grande formato. Os símbolos dos desenhos ao fundo, foram incorporados à coreografia gestual. Queria recriar simbologias.

Os movimentos sagrados foi resgatado por Gurdjeff importante mestre espiritual do século XX , durante seu aprendizado em comunidades místicas do Oriente Médio. Estas danças foram criadas para desenvolver uma unidade entre mente, corpo e emoção. Esta unidade produz um estado superior de consciência, onde é possível a conexão de estados de disciplina interior, atenção, receptividade, fluidez, relaxamento e silêncio. 8

54



COLAR DE CONTOS, 2007

Essa performance compartilhada com a Renata Egreja, teve um caráter simbólico e ritualístico. Resultou em um encontro em que modelamos contas de argila, durante longas conversas sobre vida e arte. Após produzirmos uma quantidade de peças suficiente, escolhemos um local amplo no parque do Ibirapuera e fizemos um círculo de folhas secas para circundar nossa ação. Fizemos a silhueta uma da outra, colocando peça por peça ao redor do corpo deitado na grama. Depois de fazer as silhuetas, unimos as peças em um cordão compondo um colar, que fez o elo entre nós duas ao entrarmos dentro deles. Consideramos essa ação como um ritual de união e troca energética.

56


Fotos: Bruno Sandini


PARTO DE FLORES, 2007

Esta foto performance se relaciona com o início das pinturas de aquarelas coloridas, de formas arredondadas similares a embriões, células e flores. Parto de flores, representou o nascimento de uma nova fase do trabalho.

Fotos: Maraí Senkevicks 58


Primavera, 2007 Aquarela, carv達o e caneta nanquim 75 x 100,5 cm 59



A INTER-RELAÇÃO ENTRE O DESENHO E A PERFORMANCE

A inter-relação entre o desenho, a performance e a reflexão da trajetória são o jogo de associações que se revela no processo de criação. A busca é exatamente encontrar a relação entre os elementos que dão identidade ao trabalho, para que a repetição gere novas formas. Perceber o rastro, o acaso, as manchas, as linhas, as cores e as texturas que sobram do ato de desenhar e performar, e que se repetem em decorrência de uma maneira própria de sentir e fazer, são os elementos que identifico como os meus traços de percurso e, por isso, se constituem para mim como documentos de processo. Dessa percepção, eu reutilizo os elementos e incorporo-os como elementos compositivos em novos trabalhos, resignificando-os. Os vestígios são fragmentos de ações. Fragmentos de pensamento. São repetições significantes que dão a identidade ao trabalho. Os modos de criar são transformados em singularidades do meu processo criativo. O gesto no desenho é incorporado em desenhos com o corpo - a gestualidade do corpo que performa. Assim, penso que se pode desenhar com o corpo em tempo real. A qualidade é outra, não a do registro, mas é uma experiência da vivência e do sensível em ato. “Tudo isso nos leva ao tempo da construção da obra. Um tempo que tem um clima próprio e que envolve o artista por inteiro. O processo mostra-se assim, como um ato permanente. Não é vinculado ao tempo do relógio, nem a espaços determinados. A criação é resultado de um estado de total adesão.”9

O desenho como produto e a performance como processualidade são duas instâncias de temporalidade diferentes. Busquei refletir sobre uma tradução ou um diálogo que aproximasse as duas. O diálogo entre o desenho e a performance é o que me interessa investigar, pois ocorre como risco e como imprevisível. São investigações de como lidar com o que não é pré-meditado na zona de risco. Como diz Cecília Salles, “O processo de criação é o lento clarear da tendência, que por sua vagueza está aberta a alterações.” Assim enxergo minha pesquisa artística, em processo, aberta a alterações e transformações .

9

SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado. São Paulo, FASP, 2001, p.31 SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado. São Paulo, FASP, 2001, p.31

10

61



BIBLIOGRAFIA

CARMO, Paulo Sérgio do. Merleau-Ponty:uma introdução. São Paulo :EDUC,2000. COHEN, Renato. Performance como linguagem. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. DERDYK, Edith (org.). Disegno. Desenho. Designo. São Paulo:Senac, 2006. ESTÉS, Pinkola, Clarissa. Mulheres que correm com os lobos: Mitos e hitórias do arquétipo da mulher selvagem. [Trad. Waldéa Barcellos]. 12. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FERREIRA Glória e COTRIM Cecília [orgs.]. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. FREIRE, Cristina. Arte Conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. GLUSBERG, Jorge. A arte da performance.[Trad. Renato Cohen]. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: Do Futurismo ao presente. [Trad. Jefferson Luiz Camargo]. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SALLES, Cecília, Almeida. Gesto inacabado: Processo de Criação Artística. 2.ed. São Paulo: FAPASP: Annablume, 2004. VIANNA, Klauss e CARVALHO, M. Antonio. A dança. 2. ed. São Paulo: Siciliano, 1991. TESES OU MESTRADOS: BOUSSO, Vitória, Daniela. Metacorpos: A trajetória da subjetividade ao longo de um século. Tese de Doutoramento. Pontifícia universidade. São Paulo, 2006. WEB SITE: SILVA, Raquel, Martins. O Relicário de Celeida Tostes. Tese de Mestrado. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 2006. http://www.cpdoc.fgv.br/cursos/bensculturais/teses/CPDOC2006RaquelMartinsSilva.pdf http://www.butoh.net/define.html CATÁLOGOS DE EXPOSIÇÃO ( leitura de textos): - Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil 15°. São Paulo, 2005. - Caderno Videobrasil 01 – Performance - Texto: Única energia – Guy Brett - Metacorpos, Paço das Artes. São Paulo, 2003. 63


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.