CLASSE #1

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ADUFF SSind Seção sindical do Andes Filiado à CONLUTAS

SUMÁRIO

Associação dos Docentes da UFF

"Cantamos porque chove sobre os sulcos... e somos militantes desta vida. E porque não podemos e nem queremos deixar que a canção se torne cinzas." (Mário Benedetti)

Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ. CEP: 24.210-590. Tels (21) 2622-2649 e 26201811. Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br. Este número foi organizado pela gestão CombatividadeAutonomia e Democracia. Presidente: Sonia Lucio. Diretoria de Comunicação: Marcelo Badaró Mattos e Ronaldo Rosas. Atual gestão: Autônoma, Democrática e de Luta. Presidente: Marina Barbosa. Diretoria de Comunicação: Larissa Dahmer Pereira e Heliane Lopard.

Editorial .............................................................................

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Contra Corrente Os lucros da guerra: entrevista com Naomi Klein ...................................

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Amauta Os 90 anos da Reforma Universitária de Córdoba .................................. pág. 10 Pública, Gratuita e de Qualidade O REUNI e o banco de professor-equivalente ....................................... pág. 16 Cinema e reflexão sobre América Latina na UFF ................................... pág. 22 Um teatro marxista para reafirmar a luta de classe: Brecht, ................................................... o Latão e Filhos da Mãe...terra Entrevista com Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. do Latão ................... Entrevista com Douglas Estevam, do MST ...................................... A coragem e a necessidade de se montar Brecht ................................

pág. 25 pág. 26 pág. 29 pag. 31

De Capa 68: Destinos. Passeata dos 100 Mil - Entrevista com Evandro Teixeira ........... pág. 33 A UFF na passeata dos 100 Mil pág.41 LUTARMADA: a arte com os oprimidos ............................................ pág. 43 A crítica política no humor da Cia Emergência Teatral ............................... pág. 46 Mídia e Política Lucro e controle no carnaval carioca ................................................ pág. 48 Filmes Le Couperet (O Corte) ............................................................... pág. 51 Nossa Resenha Lukács e a arquitetura ............................................................... pág. 55 História de Vidas Professora Aidyl de Carvalho Preis ................................................. pág. 56

EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo. PROJETO GRÁFICO: Claudio Camillo e Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Claudio Camillo. ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto da Silva Gaspar.

Poesia Ana Cruz ............................................................................ pág. 60

Colaboraram neste número: além de todos que assinam textos e fotos: André Feitosa e Robert Preis.

A vida e o trabalho tirados do mar ................................................... pág. 61

IMPRESSÃO: Gráfica Palavras Pintadas. Tiragem: 3000 exemplares.

Hiperfocal Evandro Teixeira .......................................................................... pág. 66

Diálogos com a Cidade


Classe Como todas as palavras, a palavra classe tem sua própria história. Até uns 250 anos atrás, falavase em classes de vegetais, em sentido biológico, mas não se aplicava a palavra para tratar de grupos humanos. Para que atribuíssemos à palavra classe o sentido que hoje atribuímos, foi preciso que surgisse uma classe de trabalhadores – assalariados, portanto explorados – que experimentou coletivamente a exploração de novo tipo a que estava submetida e em meio a essa experiência de exploração, identificandose pelos seus interesses comuns (e percebendo que a outra face da moeda era a existência de seus exploradores, com interesses opostos aos seus), desenvolveu sua consciência coletiva, percebendo-se como uma classe, palavra a que agora atribuíam um novo significado. É desse significado que parte esta revista. E se a classe emerge de um processo que é relacional e essencialmente conflitivo – a luta de classes –, ela precisa se organizar para defender seus interesses diante dos interesses opostos aos seus. A classe trabalhadora assim o fez, sendo o sindicato uma das formas de organização que criou. Provavelmente aquela mais próxima aos seus interesses imediatamente relacionados ao mundo do trabalho: os salários sem os quais não pode sobreviver sob o capitalismo; a jornada e o ritmo de trabalho; as condições desse trabalho e as garantias mínimas para diminuir os impactos nocivos da exploração, normalmente chamadas por nós de direitos. Ou seja, coisas básicas, materiais, atinentes à sobrevivência. Walter Benjamin, pensador alemão que morreu fugindo dos nazistas em 1940, registrou, em um de seus últimos escritos que “a luta de classes (...) é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais

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Foto: Stela Guedes

Editorial

O teatro como arte de transformação estará em nossas pautas

não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor.” No sindicato, lutamos por salários e direitos dos trabalhadores, mas temos também a obrigação de levar essa luta ao campo da informação, da análise da realidade, da formulação de outros projetos de futuro. Um jornal sindical é espaço para fazer circular as informações numa perspectiva de classe distinta daquela que encontramos nos veículos dos grandes monopólios da comunicação. Mas nem sempre garante espaço para a reflexão mais cuidadosa, para a divulgação das formas alternativas de entendimento do mundo em seus produtos estética ou culturalmente mais elaborados.

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Foto: Luiz Fernando Nabuco

A fotografia como intervenção social também

Por isso surge Classe. Porque embora envolvidos no cotidiano das lutas “brutas e materiais”, não estamos dispostos a entregar facilmente as “refinadas e espirituais” como despojo ao pensamento único das classes dominantes . Uma revista em que possamos analisar com mais apuro a barbárie capitalista contemporânea, as manifestações desse quadro no interior da Universidade, mas em que também possamos encontrar os ecos de respostas alternativas, de caminhos outros. Não apenas na forma dos projetos políticos de intervenção imediata, mas também nas leituras críticas e transformadoras do mundo que as formas artísticas e culturais politica-

mente comprometidas com a transformação social podem nos propiciar. Para tanto, nosso projeto para a Classe prevê algumas seções, dedicadas ao entendimento do capitalismo contemporâneo, ao conhecimento das realidades vizinhas dos países latino-americanos (seção batizada em referência ao socialista peruano José Carlos Mariátegui, editor da revista Amauta) ao exame mais apurado das políticas para a Universidade, à crítica literária, cinematográfica, musical e teatral que vá além da mesmice que reduz cultura a entretenimento e mercadoria. Sempre tentando abordar essas questões a partir do conhecimento produzido aqui na Universidade, por nós docentes universitários. Por isso, a revista pretende ter a cara do docente da UFF, ou uma das suas caras, a daqueles que no ensino, na pesquisa e na extensão garantem a qualidade de uma universidade pública comprometida com a mudança, comprometida com a classe trabalhadora. E em cada número de Classe uma temática ganhará mais destaque. Neste primeiro número, o tema enfatizado foi Arte e Política, abordado a partir, entre outros caminhos, da produção teatral brasileira referenciada em Bertolt Brecht, dos esforços para resgatar o cineclubismo, do rap produzido na periferia com forte tom de comprometimento político transformador e da capacidade de mobilização de energias no presente e de registro das lutas do passado que uma arte como a fotografia pode ter. Um passado que está vivo nos debates do presente, como é o caso da conjuntura de lutas de 1968, objeto de diferentes apropriações – sempre de classe – nesta passagem dos seus 40 anos. Assim como uma classe faz-se a si mesma tanto quanto é feita pelas condições sociais em que se faz, esta Classe espera fazer-se com o conjunto dos docentes da UFF, de outras universidades, estudantes, técnico-administrativos e trabalhadores em geral que possam ser seus leitores. Assim daremos – nós do sindicato, da universidade, que lemos, mas também escrevemos a revista, vida à classe.

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Contra Corrente Foto: Divulgação

Os lucros da Guerra Em “The Shock Doctrine”, escritora explica como o choque passou a ser o veículo para as políticas de “mercado livre” norte-americanas Entrevista com Naomi Klein

Cerca de uma semana antes da entrevis-

ta com a jornalista/escritora/cineasta/ativista Naomi Klein, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos revelou que um parecer jurídico de uma entidade privada, emitido pouco depois do juramento do procurador-geral da República Alberto Gonzáles, defendia o uso de tortura durante os interrogatórios. A opinião, favorável ao uso de “simulação de afogamento”, pancadas na cabeça e temperaturas gélidas como método de investigação, exemplifica a ascensão daquilo que Klein chama “Estado sombra” – em que é possível operar com total impunidade sob o radar público. O último livro da autora, “The Shock Doctrine” ( A Doutrina do Choque, editado pela Metropolitan Books, com 576 páginas e ainda sem edição

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em português), não traz apenas as últimas notícias do inferno – situa o pós 11 de Setembro num padrão histórico cujas raízes estão no insensível “laissez faire” do economista Milton Friedman, um homem cuja lógica deu origem aos mais repressivos regimes do mundo moderno. Klein explica pormenorizadamente como o choque econômico e militar passou a ser o veículo para as políticas de “mercado livre” de Friedman no pós-Segunda Guerra Mundial. O âmbito e a profundidade de sua descrição, que inclui Ásia, Europa, América, e o pré e o pós-Guerra Fria, são impressionantes. Mas mais importante é o fato de Klein contextualizar a ocupação do Iraque em um mundo corporatizado: o ponto forte do livro é a forma como encontra o sentido de uma guerra que não faz nenhum sentido.

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Quem foi Milton Friedman e o que implica sua terapia de choque? Naomi Klein – Milton Friedman foi o guru da fase de capitalismo radical e ilimitado em que vivemos desde Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Seu livro “Capitalismo e Liberdade”, escrito na década de 50, era um manifesto por um mundo onde as únicas funções aceitáveis para os governos eram assegurar o cumprimento dos contratos privados e policiar as fronteiras. Foi conselheiro econômico de Richard Nixon, do ditador chileno Augusto Pinochet e do governo chinês durante a transição do regime comunista para o corporativista. Aquilo que Friedman preconizava era, essencialmente, um mundo corporativo. Ele sabia que suas políticas não eram populares. Compreendia que, se se candidatasse em uma eleição dizendo: “Vou eliminar o correio, privatizar a água e acabar com o segurodesemprego”, não seria eleito. Viveu essa experiência em primeira mão quando Nixon, que havia estado ideologicamente em sintonia com Friedman, rumou na direção oposta em termos políticos e foi recompensado (com a reeleição). Por ter compreendido que suas políticas eram incompatíveis com a democracia, Friedman desenvolveu suas teorias até aquilo que eu chamo “doutrina de choque”. Num artigo de 1982, escreveu que: “Só uma crise real ou percebida, produz verdadeira mudança. Quando a crise acontece, as ações que se tomam dependem das idéias disponíveis”. O que ele quis dizer é que, para realizar essa “mudança”, é necessário fa-

zer tudo ao mesmo tempo... depois de ter havido um choque ou crise. No livro, provo que ele está certo. E ao fazer isso desafio a história que nos contam há tanto tempo: que o capitalismo radical triunfou por todo o mundo democraticamente, porque as pessoas queriam assim e porque é sinônimo de liberdade. Faço isso ao olhar para os principais laboratórios em que suas idéias foram adotadas... Sempre que houve uma grande crise que desorientou a população, foram lançadas as bases para a terapia econômica de choque. Demonstro como cada um desses regimes usou o poder da crise, quer tenha sido uma crise criada ou espontânea, para colocar em prática as políticas de Friedman. Também verifiquei que, quando as pessoas resistem, normalmente acabam por ser submetidas a um terceiro choque, que é choque do cacetete da polícia. Como isso foi feito no Iraque? Naomi Klein – No Iraque, a aplicação foi tão óbvia que qualquer um pode ver, até a própria guerra se chamou “Shock and Awe” vai ver que ele fala em atacar a sociedade em geral para criar um estado de desorientação e medo massivos. Imediatamente após a queda de Bagdá, Paul Bremer (nomeado à época chefe da administração civil do Iraque) foi enviado para lá. Paul Bremer continuou a aplicar a dose mais radical de terapia de choque econômica jamais vista em qualquer lugar. Primeiro, aniquilou o setor de serviço público. Esse processo envolveu

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a demissão em massa de centenas de milhares de funcionários públicos. Depois eliminou o Exército iraquiano e basicamente entregou a segurança à firma de segurança privada Blackwater USA. Fez do Iraque a zona com o mercado livre mais aberto do mundo, sem restrições aos bens que entram e saem. Permitiu que empresas estrangeiras entrassem e se apoderassem de 100% dos recursos do Iraque, ficando com 100% dos lucros. Os economistas chamaram-no de “Lista dos Desejos dos Investidores Estrangeiros”. Quando as pessoas começaram a se revoltar no Iraque, isso foi uma resposta direta a essas políticas econômicas, que foram vistas como uma pilhagem. Em resposta à revolta, surgiu o uso sistemático dessa terceira forma de choque, o choque da tortura. O governo iraquiano não foi feito para funcionar bem? Naomi Klein – Foi feito, certamente, para ser fraco. A principal razão que levou a que Saddam fosse derrubado foi o fato de ele ter deixado de ser tão cooperativo quanto costumava ser. Não há dúvidas que o objetivo era implantar um regime cooperativo. Isso ficou claro com essa espécie de “Plano A” de colocar o (ex-primeiro-ministro interino Ahmed) Chalabi. Os políticos iraquianos não têm controle sobre os serviços secretos no país; não têm controle nem sequer sobre os fundos de reconstrução. Não é um governo funcional_ na realidade, não é nem um governo. É interessante que uma das principais

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O Alcance da guerra ao terror não poderia ser mais extenso. Como estratégia militar, é impossível de ganhar. Como estratégia econômica, é imbatível.” metas (do governo iraquiano) seja a adoção de uma lei do petróleo. Essa lei é o exemplo mais descarado do que chamo de “capitalismo do desastre”. É aproveitar um momento de desintegração para fazer passar uma lei tão profundamente polêmica que nem mesmo Bremer teve coragem de levar adiante. Você poderia falar do “tratamento de choque” doméstico que considera ter sido o 11/9 nos EUA? Naomi Klein – Foi certamente um deles. Houve outros momentos, por exemplo a crise da dívida (nos anos 90)... Convém lembrar que a “reforma” da Previdência Social de Clinton foi realizada no contexto da crise da dívida. Para mim, a parte mais dramática da terapia de choque econômica aconteceu no pós-11 de Setembro, mas foi difícil de ver. Não foi um clássico programa de privatização como os que descrevo no livro. Não foi o que aconteceu, por

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exemplo, na América Central depois do furacão Mitch, quando os países foram forçados a, em troca de auxílio monetário, vender todos os seus bens: água, eletricidade, estradas e tudo o mais. A administração Bush fez as coisas de modo muito diferente_ não vendeu os bens do Estado já existentes; em vez disso, criou uma nova estrutura para um Estado muito mais vasto. Essa estrutura é a “guerra ao terror”, que aumenta imensamente o alcance, o poder e a jurisdição do Estado: permite vigiar, construir uma espécie de fortaleza continental, criar guerras preventivas no estrangeiro. Então temos essa guerra interminável contra o mal, em todo o lado. O alcance não poderia ser mais extenso. Como estratégia militar, é uma guerra impossível de ganhar. Mas, como defendo no meu livro, como proposta econômica é imbatível. Primeiro, expande-se o alcance do Estado de segurança... Depois faz-se a privatização e a terceirização de tudo isso. E assim a “guerra ao terror” se torna uma nova economia_ emergem centenas de novas empresas para alimentá-la. Fazem mineração de dados, interrogam prisioneiros, realizam vigilância privada, compilam listas de indivíduos proibidos de embarcar em aeronaves, constróem a fronteira virtual com veículos não tripulados e outros equipamentos. A “guerra ao terror” é uma nova economia, não uma guerra. Faz muito mais sentido como uma economia. Penso que seja uma evolução da terapia de choque_ mas como a admi-

Sempre que houve uma grande crise que desorientou a população, foram lançadas as bases para a terapia econômica de choque. nistração Bush fez tudo isso sob o disfarce da “guerra ao terror” e em nome da segurança, o aspecto da privatização é menos claro, menos visível. Você escreveu sobre o “complexo do capitalismo do desastre”. Como o desastre se tornou tão lucrativo? Naomi Klein – Empresas ligadas ao petróleo, é claro, não é? Qualquer desastre faz disparar o preço do petróleo... Quando se fala em setor da segurança interna, dá para ver como as nossas cidades estão se transformando, como estamos rodeados de muito mais segurança, embora não tenha havido mais ataques terroristas nos Estados Unidos.Mas a segurança interna já não está sendo vendida apenas para o governo_ as empresas a estão vendendo umas para as outras. A única ameaça a essa economia não é o risco; a única ame-

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FOTO: Ag. France Press

No Iraque, a aplicação foi tão óbvia que qualquer um pode ver, até a própria guerra se chamou “Shock and Awe” vai ver que ele fala em atacar a sociedade em geral para criar um estado de desorientação e medo massivos.

Bagdá destruída por bombardeios americanos

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A “guerra ao terror” é uma nova economia, não uma guerra. Faz muito mais sentido como uma economia. Penso que seja uma evolução da terapia de choque_ mas como a administração Bush fez tudo isso sob o disfarce da “guerra ao terror” e em nome da segurança, o aspecto da privatização é menos claro, menos visível. aça é uma alteração massiva de paradigma em relação ao que a segurança significa, àquilo que seria uma resposta adequada ao terrorismo. É por isso que muitas das principais empresas de segurança interna estão investindo em institutos de pesquisa e em comunicação social. Determinam os parâmetros dessa guerra ao terror e as premissas fundamentais em que se baseia. A idéia de que não se pode negociar (com terroristas) jamais é questionada. A idéia de que tudo que eles querem é a nossa aniquilação total não é questionada. Se algumas dessas idéias básicas fossem seriamente questionadas, esse passaria a ser um investimento de risco.

Naomi Klein – Significa um mundo de incluídos e excluídos, em que a sobrevivência é um item de luxo. Isso já acontece com o sistema de saúde americano: é um desastre em câmera lenta, e isso de que estou falando o fará passar a um desastre em “fast forward”. Quem tem possibilidade de escapar a uma mudança climática, a uma infra-estrutura que se desmorona? Vamos começar a ver emergir “zonas-bolha” que são altamente funcionais, mas privatizadas, guardadas por segurança privada. De fato, grande parte do Terceiro Mundo funciona assim. Num país como a Indonésia, por exemplo, nunca existiu realmente uma infra-estrutura funcional... O que existe são comunidades fechadas que vão se expandindo. Tudo é privatizado no interior desses portões, incluindo a água e a eletricidade. É assim que funciona a Zona Verde no Iraque. O que isso significa para os pobres é uma demarcação cada vez mais estruturada entre os que têm e os que não têm: mais proteção para os que têm, quer seja nas fronteiras dos países ou nas fronteiras dos bairros, mais cercas, mais muros, mais vigilância. Haverá cada vez mais controle dos chamados “ilegais” e será cada vez mais fácil ser sugado para o interior dessa infra-estrutura de segurança privada por qualquer pequena transgressão.

Para saber mais:www.naomiklein.org

* Esta entrevista foi publicada originalmente pela “Real

O que a ascensão desse “complexo” significa para os trabalhadores pobres pelo mundo?

Change News”, integrante da INSP. Street News Service:www.street-papers.org

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Amauta

Reforma Universitária de Córdoba, 90 Anos: Um Acontecimento Fundacional para a Universidade Latino-americanista Roberto Leher Professor da UFRJ

O movimento reformista não é um raio em céu azul que irrompeu no céu de Córdoba. A matriz civilizacional das grandes fortunas latino-americanas ilustradas – a Europa – estava desmoralizada por uma sangrenta guerra que transformava os jovens em buchas de canhão. Alternativamente, era o proletariado que forjava uma outra civilização com a Revolução de 1917. Internamente, na Argentina, uma nova onda de confrontos estava anunciada. O radicalismo havia chegado ao governo em 1916 e necessitava da universidade para levar adiante o seu projeto de desenvolvimento. Os setores oligárquicos e a igreja reacionária, por sua vez, recrudesceram o controle que já detinham sobre a universidade como uma espécie de cidadela para manter a ascendência sobre a formação das classes médias e dominantes. A crescente intransigência da oligarquia e da igreja acelerou os conflitos estudantis. Em 1918, os confrontos se agravaram a partir de maio com reitores destituídos, intervenções federais, golpes e contragolpes que inviabilizam os reclamos estudantis. Os estudantes da Universidade de Córdoba declaram uma Greve Geral estudantil. Rapidamente, o movimento ganha o apoio dos estudantes de todas

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as universidades argentinas (nas palavras da Federação Estudantil da Universidade de Buenos Aires, “estamos com vocês no espírito e no coração”). As idéias gestadas em Córdoba bradam em outros países que também conhecem insurreições, transtornando a moribunda calmaria de instituições universitárias hierarquizadas, conservadoras, autoritárias e pouco afeitas ao que Bachelard (1968) denominou, em outro contexto, de “espírito científico”. Foi nesse contexto que o Manifesto seminal1 foi redigido por Deodoro Roca em 21 de junho de 1918. O Manifesto é um texto vigoroso, ousado na defesa da insurreição estudantil e da luta heróica, dotado de pinceladas antiimperialistas, contundente na crítica à imobilidade e ao autoritarismo da hierarquia fossilizada da universidade, ácido na crítica ao espírito de rotina e de submissão da grande maioria dos professores que concebia a ousadia intelectual como um anátema. É um texto enfático no anticlericalismo e luminoso na concepção latino-americanista. A defesa da laicidade que atravessa todo o Manifesto é marcadamente política. A Igreja detinha o controle sobre a instituição e sobre as atividades docentes. Neste contexto, em Córdoba, o

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curso de Direito, ocultado pelo eufemismo “direito público eclesiástico” era balizado pelo direito canônico. O juramento profissional era realizado sobre os Santos Evangélicos. Os setores acadêmicos conservadores se mantinham no poder por normas por eles criadas para se perpetuarem em suas cátedras vitalícias e pela criação de confrarias (“Corda”) que agrupavam professores e forças políticas locais, como o então governador da Província, ministros, prefeitos. É também um texto que contém marcas egocêntricas. Em virtude da gênese estudantil do movimento, ainda não pôde enfrentar com objetividade a problemática que, em 1925, o cubano Julio Antonio Mella delineou com precisão: “Nada se resolve em fazer da universidade um centro tecnicamente perfeito, se a massa estudantil, que provém dos colégios religiosos ou dos colégios laicos privados, tem já formada uma mentalidade burguesa, e não científica da universidade”. Isso não quer dizer que as “revoluções estudantis” não tenham sido avaliadas por Mella como importantes, pois, em sua apreciação, acenderam um movimento de proporções latino-americanas e sinalizaram, na prática, a possibilidade de amplas transformações nas universidades marcadas pelo arcaísmo (Círia e Sanguinetti, 1968, p. 19). Córdoba foi mais do que um episódio radicalizado dos estudantes. Liberais, positivistas, socialistas, anarquistas, antiimperialistas de distintos matizes disputaram o caráter do movimento reformista. Mas a despeito de sua heterogeneidade, as lutas e os embates seguiram ao longo de todo o ano de 1918 (e a rigor, até os anos 1960 é possível encontrar ecos dessas lutas), produzindo avanços organizativos como a constituição das Federações Univer-

sitárias de Córdoba (FUC) e da Argentina (FUA). Tampouco foi um movimento protagonizado por pequenos grupos. Dois meses após o lançamento do Manifesto, os estudantes reuniram 20 mil pessoas em um ato, incluindo a Federação Operária. Embora ainda incipientes enquanto força política organizada, referências socialistas e antiimperialistas que lideraram o movimento trouxeram para a luta da juventude latino-americana a Revolução Russa de 1917 e, no processo de enfrentamento, afirmaram uma agenda antiimperialista que, ao recolocar a questão nacional e os sujeitos históricos da luta de classes em países capitalistas dependentes, provocaram reflexões originais, configurando um marxismo latino-americano, com Ingenieros, Ponce, Mella e Mariátegui. Essa combinação de perspectivas propiciou reflexões penetrantes sobre a educação popular, o caráter da universidade, incluindo problemas até então considerados incompatíveis com a educação superior, como: a presença dos proletários nas instituições; o governo compartilhado e a autonomia da universidade, e as perspectivas latino-americana e antiimperialista. Por isso, até os dias de hoje, os conservadores reagem indignados à particularidade das universidades latinoamericanas, consideradas desviantes do modelo europeu e, mais recentemente estadunidense. Diante das resistências ao projeto de conversão das universidades brasileiras ao modelo dos “community colleges” estadunidenses mitigado com o Acordo de Bolonha, uma das maiores conquistas da ofensiva neoliberal na Europa, um publicista do projeto Universidade Nova alertou para o risco de isolamento da universidade brasileira diante do modelo da universidade mundializada

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pelos senhores do mundo2. Não é casual que a ofensiva neoliberal dos anos 1990 objetivou destruir todos os fundamentos dos reformistas: a gratuidade, o governo democrático e o pluralismo político, a autonomia, a liberdade de pensamento e de expressão, garantidas por cátedras paralelas e pelo ingresso por meio de concurso

público, o co-governo, o acesso universal, a natureza pública dos processos institucionais. O movimento que havia sido iniciado com uma agenda com inequívocas referências liberais, acabou propiciando um ambiente intelectual no qual se afirma um pensamento crítico original que torna a problemática da universidade latino-americana

“Triunfar ou servir de trincheira aos demais. Até depois de nossa morte somos úteis. Nada de nossa obra se perde” (Julio Mella)

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distinta das demais regiões. As idéias reformistas, ao serem apropriadas por estudantes socialistas, assumem cada vez mais um caráter antiimperialista, revolucionando as concepções até então vigentes de um marxismo que era assimilado como algo pronto para explicar a realidade latino-americana. Entre os mais destacados pensadores desta perspectiva é imprescindível mencionar: Deodoro Roca, já citado; Gabriel del Mazo, um dos principais ideólogos e historiadores do movimento; Manuel Ugarte, um dos líderes da FUA e Julio V. González que, embora presidente da Federação Estudantil de La Plata, viveu intensamente as lutas de Córdoba, notadamente como secretário do I Congresso Nacional de Estudantes que estabeleceu as bases “doutrinais” da Reforma acentuando o antiimperialismo. Imbuído de um ideal geracional proveniente de Ortega y Gasset (que visitara a Argentina em 1913), González chegou a criar um partido reformista de natureza estudantil, iniciativa que posteriormente reconheceu como equivocada. Também se engajaram nessa luta destacados intelectuais antiimperialistas, entre os quais, José Ingenieros (1877-1925) e seu discípulo Aníbal Norberto Ponce

(1898-1938), editores da Revista de Filosofia que Mariátegui reconhecia como uma das publicações que melhor defendia a Revolução Russa. Ingenieros foi considerado o “mestre” que impulsionava o movimento reformista. Embora eclético, conjugava positivismo, marxismo e evolucionismo, contribuiu para quebrar o silêncio que reinava no claustro universitário, acentuando que a reforma teria de se dar no bojo de uma luta antiimperialista, ampliando os termos do Manifesto de 1918, aproximando as lutas universitárias do socialismo (em especial da Revolução Russa) e do latino-americanismo. As iniciativas antiimperialistas de Ingenieros contribuíram para que, alguns anos depois, fossem criados duas construções políticas distintas: a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), que se consolidará no Peru com Haya de la Torre, outrora líder da federação de estudantes, e a União Latino-americana, à qual se somaram Ingenieros, Ponce, Mella e, mais tarde, Mariátegui. Para perplexidade dos conservadores e clérigos, Ingenieros associou a autonomia e o autogoverno universitários aos Soviets. Ponce escreveu no Prefácio de um livro de Julio Gonzáles: “As chamas que enrubescem o Oriente (a Rússia) incendiariam, com nós, a velha universidade” (Kohan, 2002, p.89). Certamente, o seu clássico livro “Educação e luta de classes” é fruto de seu engajamento nessas lutas. Não que Ponce avaliasse que o processo cordobense poderia alterar substantivamente a educação; ao contrário, como Mella, sustentava que a educação emancipatória depende da luta contra o capitalismo e, por isso, a defesa da luta de classes. Entretanto, inova ao propugnar que a revolução re-

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quer que se considere a educação parte da estratégia política, por isso o engajamento dos reformadores nas lutas antiimperialistas e, ao mesmo tempo, nas jornadas universitárias. Julio Mella (1905-1929) se aproximou do movimento de Córdoba por seu radical anticlericalismo, sendo fundador da liga anticlerical de Cuba (1922), da Federação de Estudantes de Cuba (1923), da liga antiimperialista das Américas e do partido comunista (1925). Por ter se destacado como excepcional militante, foi assassinado no exílio a mando do ditador Geraldo Machado. É importante destacar que Mella teve contato com as obras de vários reformadores argentinos, como Ingenieros (a quem conheceu pessoalmente em 1925), Dario e Ugarte. Quando a insurgência estudantil cubana declarou a universidade livre, cinco anos após Córdoba, Mella, então com vinte anos, assumiu o cargo de reitor interino da alta casa de estudos (Kohan, 2002, p. 105). Para ele, o cerne da reforma universitária passava por três eixos: a autonomia, pois a universidade era sufocada pelo governo corrupto; a representação, concretamente, o governo compartilhado, e a depuração do claustro. Em termos objetivos, a reforma teria de abarcar quatro núcleos: a) não ser uma fábrica de títulos; b) não ser uma escola de comércio “aonde se vai buscar tão somente um meio de ganhar a vida”; c) influir de maneira direta na vida social, e d) socializar o conhecimento. Esta última preocupação nada tinha de proclamatória. Junto com companheiros, Mella criou a Universidade Popular José Martí, dirigida pelos trabalhadores, com o objetivo de “destruir uma das tiranias da atual sociedade: o monopólio da cultura” (Mella, 1924, apud Kohan, 2002, p. 108).

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Mariátegui (1894-1930), em pleno calor dos acontecimentos, constatou a heterogeneidade do movimento e as tensões provocadas pelo Radicalismo que restringia a autonomia do movimento, bem como as limitações liberais vindas dos EUA. Contudo, reconheceu que, com o contato com o proletariado, as idéias foram se tornando mais claras e adquiriram um contorno mais revolucionário, abandonando a postura inicial romântica, geracional e messiânica (Bernhaim, 1997, p.15). Para levar adiante um ideário mais ligado às lutas populares, o Congresso Nacional de Estudantes criou, em 1920, a Universidade Popular Gonzáles Prada, cujo reitorado ficou a cargo de Haya de la Torre. Foi Mariátegui que introduziu os povos indígenas nos programas de formação política. Distintamente do marxismo eurocêntrico, o editor de Amauta sustentava em Sete ensaios de interpretação da realidade peruana que o marxismo latino-americano não poderia ser “nem decalque, nem cópia”. Com esta obra, ocorre uma latino-americanização das idéias socialistas e marxistas. Distintamente do presente em que não existem frações burguesas locais que tenham interesse na universidade pública, o movimento de Córdoba contou com o apoio de frações burguesas locais que chegaram ao poder com o Radicalismo. Em mais de uma circunstância o Presidente Yrigoyen se colocou ao lado dos reformistas, assim como o ex-governador da Província Juarez Celman, parlamentares, como Juan B. Justo, um socialista evolucionista (Kohan, 2002, p.43) e Alfredo Palácios, setores burgueses e pequeno-burgueses que enfrentavam as forças reacionárias da igreja que mantinham a universidade como sua fortaleza em um país que passava por ativa efervescência cul-

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tural e política. Essa universidade reprodutora e fossilizada não atendia aos anseios de desenvolvimento almejado pelo Radicalismo e, por isso, o apoio à luta estudantil, dentro de certos limites, desde que não afrontasse a ordem burguesa. Certamente, a aliança operário-estudantil era outra coisa, pois, afinal, o que essas pessoas “desprovidas de cultura, diplomas e formação acadêmica” tinham a ver com o espírito imaculado da ciência? Córdoba é parte do processo que o seu Manifesto Seminal denomina de um “momento latinoamericano”. Essas lutas contribuíram para deflagrar um vasto movimento de reforma universitária em grande parte da AL que, malgrado limites e contradições, tornaram a universidade latino-americana sui generis, diante de suas instituições irmãs na Europa e EUA, notadamente pela correta politização da educação, da ciência e do conhecimento. É inegável a presença de ecos de Córdoba no movimento de reforma universitária brasileiro que se amplia no início dos anos 1960, havendo referências explícitas a ele no I Seminário Nacional da Reforma Universitária, realizado pela UNE em 1961 em Salvador, Bahia. As idéias de Córdoba também estão presentes nas jornadas de 1968, notadamente no México, em que centenas de estudantes foram executados. Mas, no final do século XX, os “ventos do Norte” trouxeram a tempestade neoliberal que vem difundindo o capitalismo acadêmico, mercantilizando a educação e aprisionando a produção do conhecimento a epistemologias que bitolam o conhecimento no pensamento único. O que fica de Córdoba 90 anos depois? Para além dos fundamentos de uma universidade autônoma, co-governada, pública, gratuita e comprometida com os problemas nacionais, permanecem os

ensinamentos de que a universidade verdadeiramente universal, em que caibam todos os povos, requer a luta anticapitalista e antiimperialista. Isso somente será possível se a educação, enquanto estratégia política, for difundida por universidades populares que articulem a classe trabalhadora e os nichos de pensamento crítico que seguem existindo nas universidades públicas. A união operária, camponesa, estudantil, em todos os níveis, com os trabalhadores da educação, é o novo ponto de partida a que Florestan Fernandes fez referência no momento em que se anunciava um reascenso das lutas populares. A melhor homenagem que podemos fazer é levar adiante essa tarefa. Como disse Mella: “Triunfar ou servir de trincheira aos demais. Até depois de nossa morte somos úteis. Nada de nossa obra se perde” (apud Kohan, 2002). Nas comemorações dos 90 Anos, é importante que uma grande massa da juventude conheça esse extraordinário movimento. E celebrem a memória dos mortos com lutas que tornem vivas as suas obras!

*Bibliografia Bachelard, G. O novo espírito científico. RJ: Tempo Brasileiro, 1968. Bernhaim, C. T. La reforma universitária de Córdoba. México,D.F: ANUIES, 1997. Círia, A. e Sanguinetti, H. Los reformistas. Buenos Aires, Editorial Jorge Alvarez S.A., 1968 (Coleção Los Argentinos, 6). Kohan, N. Ni calco ni copia: ensayos sobre el marxismo argentino y latinoamericano. La Habana, 2002. 1.Disponível em http://www.unc.edu.ar/modules/news/ article.php?storyid=392 2. MONTEIRO, N. Razões para a reestruturação. In: Universidade Nova: uma nova arquitetura para um novo tempo, UFBA Revista, n.4, 2007.

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Pública, Gratuíta e de Qualidade

Foto: Luiz Fernando Nabuco

REUNI e Banco de professor-equivalente: a contra-reforma da educação superior nas universidades federais brasileiras Kátia Lima Professora da UFF - Serviço Social

O objetivo deste breve texto é apresentar algumas reflexões sobre o significado político e acadêmico das ações recentes do governo Lula da Silva para as universidades federais - o Programa REUNI e o Banco de professor-equivalente, indicando como essas ações da contra-reforma da educação superior constituem importantes estratégias para alteração das funções sociais da universidade pública brasileira.

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Estudantes protestam na porta do gabinete do Reitor da UFF

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A apreensão do significado político e acadêmico do Programa REUNI só pode ocorrer a partir da análise articulada de quatro importantes documentos: o Decreto Presidencial 6096/ 07 que institui o REUNI (Brasil/Presidência da República, 2007); o Documento intitulado “Diretrizes gerais do Decreto 6096 - REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais” (Brasil/MEC, 2007.) e as Portarias Interministeriais n. 22 e 224, todos divulgados em 2007 (Brasil, MEC/MPOG, 2007). Simultaneamente é importante conhecermos como este Programa foi aprovado nas várias universidades federais: do uso ostensivo da força policial (militar e/ou federal), até a transferência das reuniões dos conselhos superiores das universidades federais para quartéis ou prédios do Tribunal de Justiça, como ocorreu na UFF. O Programa REUNI foi divulgado pelo governo através de um Decreto Presidencial (6096/ 07) e apresenta os seguintes objetivos: aumentar o número de estudantes de graduação nas universidades federais; aumentar o número de alunos por professor em cada sala de aula da graduação; diversificar as modalidades dos cursos de graduação, através da flexibilização dos currículos, da criação dos cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissional) e da educação à distância, incentivando a criação de um novo sistema de títulos; elevar a taxa de conclusão dos cursos de graduação para 90% e estimular a mobilidade estudantil entre as instituições de ensino. Todos estes objetivos deverão ser alcançados no prazo de cinco anos. A leitura atenta dos documentos acima indicados demonstra que a “política nacional de ex-

pansão do acesso à educação superior” implementada pelo governo Lula da Silva expressa uma ampliação do acesso focalizada no ensino de graduação, quebrando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, reduzindo a função social da universidade ao treinamento de competências de nível técnico-operativo. Para cada universidade federal que aderir a este contrato de gestão com o MEC, pois se trata de um “termo de pactuação de metas”, o governo promete um acréscimo de recursos limitado a vinte por cento das despesas de custeio e pessoal. Entretanto, uma análise cuidadosa do parágrafo terceiro do artigo 3o. e do artigo 7º do Decreto Presidencial deixa claro em que termos ocorrerá esta “expansão”, pois “o atendimento aos planos é condicionado à capacidade orçamentária e operacional do MEC” e “as despesas decorrentes deste processo devem estar circunscritas às dotações orçamentárias consignadas anualmente ao MEC” (Brasil/Presidência da República, 2007). Para a compreensão exata do significado da expressão “condicionado à capacidade orçamentária do MEC” é importante conhecermos os valores alocados pelo governo federal para a área de educação. No Orçamento Geral da União no ano de 2006, os valores executados até 31 de dezembro daquele ano para a área de educação correspondiam a 2,27% , enquanto no ano de 2007, até 20/08/07, havia sido alocado o total de 2,14% do Orçamento Geral da União (AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA, 2007). Portanto, trata-se de uma ampliação de acesso sem a ampliação de financiamento público para o desenvolvimento de nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão, articuladas à graduação e à pós-graduação.

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Cartaz na Marcha do dia 24/10 de 2007, em Brasília

Para viabilizar esta “política nacional de expansão”, as Portarias Interministeriais números 22 e 224/07 (Brasil, MEC/MPOG, 2007) representam as primeiras medidas efetivas de implementação do Decreto presidencial, constituindo, em cada Universidade, “um instrumento de gestão administrativa de pessoal”: o banco de

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professores-equivalentes (art 1º). O “banco” será construído dando-se a cada docente em exercício em 31/12/06 um peso diferenciado, segundo a sua condição de trabalho. Na medida em que o Programa REUNI objetiva a expansão do ensino de graduação, fica evidente que ações do governo estimulam as universidades federais à contratação de professores substitutos ou professores em regime de 20 horas para o trabalho em sala de aula da graduação, esvaziando o sentido do regime de trabalho em dedicação exclusiva, base de realização da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A adesão das universidades federais ao REUNI implica diretamente dois níveis de precarização: a da formação profissional e do trabalho docente. A precarização dos processos de formação ocorre através do atendimento de um maior número de alunos por turma, da indicação de uma “aprovação automática” para garantia da elevação da taxa de alunos concluintes e da criação de cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissionalizante), representando uma qualificação aligeirada, superficial, desvinculada da pesquisa, com perspectivas polivalentes, conformadas às demandas do mercado. A implementação deste Programa resultará em uma Universidade desfigurada, descaracterizada enquanto tal, transformada em “escolão de 3º grau”, subtraída de suas funções sociais de produção e socialização do conhecimento científico, tecnológico e cultural. Considerando a necessidade do cumprimento das metas de “expansão” propostas no decreto, através do aumento do número de turmas, de cursos e da relação professor-aluno em sala de aula da graduação, e os limites orçamentários existentes,

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Foto: Stela Guedes

Atividade cultural durante ocupação da Reitoria da UFF

a dinâmica de contratação de professores nas universidades deverá pautar-se no “banco de professores-equivalentes”, precarizando ainda mais nossas condições de trabalho. A proposta de diversificação dos cursos de graduação apresentada pelo Programa REUNI não constitui, entretanto, nenhuma novidade. Trata-se da retomada das políticas elaboradas pelo Banco Mundial para os países da periferia

do capitalismo, expressas no documento La enseñanza superior. Las lecciones derivadas de la experiência (Banco Mundial, 1994), no qual são apresentadas estratégias para a reforma da educação superior na América Latina, Ásia e Caribe. Estas estratégias são reafirmadas nos documentos Higher education sector study (vol 1 e 2) (Banco Mundial, 2000) e Higher education in Brazil - challenges and options (Banco Mundial,

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2002) que expressam a concepção de educação para os países periféricos: adaptação e difusão de conhecimentos. Analisando as bases de fundamentação teórica e política do Programa REUNI, encontramos como referência a reformulação da educação superior européia denominada “processo de Bolonha”, que tem seu início em 1999 e prossegue no início do novo século com a finalidade de construir um espaço europeu de educação superior até o ano 2010, através das seguintes estratégias: adoção de sistema de graus comparáveis e facilmente inteligíveis; adoção de um sistema baseado, essencialmente, em ciclos e promoção da mobilidade de estudantes. Um processo que vem sofrendo duras críticas pela fragmentação da formação profissional que realiza e pelo indicativo de formação de um promissor mercado educacional europeu, facilitando a ação das empresas educacionais (Lima, 2007). Simultaneamente, o Programa REUNI é uma face do Projeto Universidade Nova (UFBA, 2007). Apesar do REUNI e do UniNova apresentarem as mesmas argumentações e a mesma proposta de elaboração de uma “nova arquitetura curricular” para as universidades públicas brasileiras, o UniNova, na medida em que centralizou sua proposta nesta “nova arquitetura curricular”, gerou um conjunto de críticas de reitores e demais administradores das universidades federais que reivindicavam financiamento público para a realização das metas de expansão e reestruturação destas instituições federais. O REUNI, portanto, é o UniNova com (pouco) financiamento público condicionado ao estabelecimento das metas expressas em um contrato de gestão.

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Considerações para os debates e as ações políticas Existe autonomia das universidades para estabelecerem suas próprias metas no processo de adesão ao REUNI? Não, não existe. O documento intitulado “Diretrizes Gerais do REUNI” apresenta as estratégias de controle e acompanhamento impostas pelo MEC e que condicionam a (possível/pouca) alocação de verbas: O processo de acompanhamento da execução das metas propostas pelas universidades integrantes do REUNI será realizado por meio da Plataforma PingIFES, cujo objetivo consiste na coleta de informações sobre a vida acadêmica das instituições federais de ensino superior. Seus dados são utilizados na distribuição dos recursos orçamentários das IFES, a partir de critérios acordados com os órgãos de representação das universidades [com base no] horizonte fixado pelas metas relativas à abertura de novas vagas, às taxas de conclusão dos cursos e ao aumento gradativo da relação entre o número de alunos e professor estabelecidas nos projetos de cada universidade aderente (...) Além disso, o processo de verificação das informações incorporará a extensa gama de dados coletados por diversos órgãos (INEP, CAPES),

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inserindo-se, ainda, no contexto do sistema de avaliação estabelecido pelo SINAES [e articulado ao] envio de analistas “in loco”, cuja análise deverá estar especialmente focada nos aspectos previstos no REUNI e consolidados na proposta da universidade (Brasil/MEC, 2007,). Desta forma, o Programa REUNI e o Banco de professor-equivalente, expressões atuais da contra-reforma da educação superior brasileira conduzida pelo governo Lula da Silva, tem como objetivos alterar substantivamente o sentido da universidade pública, transfigurando suas funções sociais, desqualificando tanto a formação profissional como o trabalho docente. O ANDES/Sindicato Na-

cional vem se posicionando contra este projeto de desqualificação da educação superior e construindo, de forma coletiva, um outro projeto para a universidade brasileira 2 . No mesmo sentido e direção política, o movimento estudantil tem organizado debates e manifestações contrárias à adesão das universidades federais ao Programa Reuni.A resposta das reitorias tem sido a mesma: a criminalização dos movimentos! Neste contexto de tantas lutas, reafirmar a defesa da educação pública e a valorização do trabalho docente, defendendo a expansão do acesso com qualidade e financiamento público são as tarefas políticas e acadêmicas que estão na ordem do dia.

Foto: Luiz Fernando Nabuco

REFERÊNCIAS AUDITORIA CIDADÃ DA DÍVIDA (2006). Boletins da Dívida. BANCO MUNDIAL (1994). La enseñanza superior - las lecciones derivadas de la experiencia. Washington, 1994. BANCO MUNDIAL (2000). Higher education sector study (vol 1 e 2). BANCO MUNDIAL (2002). Higher education in Brazil - challenges and options. BRASIL/Presidência da República (2007). Decreto 6096 de 24 de abril de 2007. Institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI. BRASIL/Ministério da Educação e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (2007). Portarias Interministeriais n. 22 e 224. Constitui em cada universidade federal um banco de professor-equivalente. BRASIL/Ministério da Educação (2007). Diretrizes gerais do Decreto 6096 - REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. LIMA, Kátia (2007). Contra-Reforma da Educação Superior: de FHC a Lula. SP: Xamã, 2007. Estudantes no CUV de 26/9, no Instituto de Geociências

UFBA (2007). Nova arquitetura curricular para um novo tempo.

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Cinema e reflexão sobre América O professor Antônio Carlos Amâncio (Tunico Amâncio para os íntimos) leciona na UFF desde 1981. As disciplinas que ministra no IACS são todas ligadas à área de cinema e audiovisual, ramo em que tem uma extensa e premiada trajetória. Para alguém com esse perfil, é motivo de grande comemoração o fato de que o curso de Cinema da universidade, que até hoje é uma habilitação dentro da Comunicação Social, a partir do próximo semestre finalmente ganhará o status de um curso independente. Isso exatamente no ano em que a habilitação completa 40 anos de existência na UFF, já que foi criada em 1968, paralelamente à fundação do Cine Arte UFF. Essa mudança de status do Cinema dentro da universidade certamente se deve ao destaque que o curso adquiriu na formação de profissionais da área, além da produção de projetos de pesquisa e extensão. É aí que entra o LIA, sigla que designa o Laboratório de Investigação Audiovisual. Localizado no IACS II (Rua Tiradentes, 148), esse núcleo produz projetos de pesquisa e extensão na área de audiovisual. De acordo com Tunico, o LIA é um grupo de pesquisadores que busca construir interfaces do cinema com as novas tecnologias.

Projetos de sucesso Atualmente o laboratório desenvolve três projetos: o “TECAL” (Trocas Econômicas e Simbólicas

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Antônio Carlos Amânsio, no Cine

no Cinema da América Latina), o “Sala Escura” e o “França Antártica”. O primeiro se dedica a uma reflexão sistemática sobre o cinema latino-americano na universidade. Dentro dessa perspectiva, tem prioridade o tratamento da produção cinematográfica em longa metragem dos países do MERCOSUL vis-

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Latina na UFF

ma da UFF,

Foto: Stela Guedes

ta em relação ao cinema brasileiro feito a partir dos anos 90. O segundo realiza dois cineclubes: um no MAM, que utiliza o acervo clássico da cinemateca do museu e acontece uma vez por mês, e um no Cine Arte UFF, que acontece sempre na última sexta-feira do mês e exibe filmes latino-americanos ainda não lançados. O terceiro projeto consiste no desenvolvimento de um jogo para adolescentes cujo roteiro se baseia nos fatos históricos ligados à invasão promovida pela esquadra do francês Villegaignon à Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, no ano de 1565. Este último projeto ainda está em fase de preparação, enquanto os dois outros já estão funcionando a pleno vapor. Para Tuem noite de Cineclube nico, o cineclube tem contribuído para dar maior visibilidade ao cinema latino-americano dentro da UFF, o que é bastante positivo. Só para se ter uma idéia da dimensão do sucesso dessa iniciativa, já houve sessões no Cine Arte UFF com público de aproximadamente 400 pessoas. O cineclube do MAM também faz bastante sucesso, com um detalhe: depois de cada filme aconte-

ce o “Tragos y Sonidos”, ou seja, os espectadores debatem o filme exibido em meio a uma confraternização regada a cuba-libre, no melhor estilo latinoamericano.

Problemas e perspectivas Hoje, há cerca de 10 alunos que trabalham no projeto Sala Escura, dos quais apenas um é bolsista. Aliás, a escassez de bolsas é um problema, mas nem isso é capaz de desanimar os estudantes que acabam trabalhando voluntariamente no projeto. “Nossos cineclubes oferecem alternativas inteligentes, as pessoas querem isso. A gente já não precisa mais nem fazer discurso. Apenas oferecemos boas opções cinematográficas que estão fora do circuitão do cinema hollywoodiano”, diz Amâncio. Apesar da falta de recursos que afeta as universidades públicas, o balanço da atuação do laboratório consegue ser muito positivo para Tunico, mas o que acaba acontecendo é que o professor se vê forçado a fazer uma espécie de “parceria financeira” com o projeto, bancando coisas do seu próprio bolso. Ainda assim, afirma, o resultado é muito gratificante. Em 2008, além dos projetos que já estão em andamento, existe a perspectiva de ampliar os cineclubes com sessões nas instalações do próprio IACS II e na ASPIUFF. A programação dos cineclubes e informações sobre os projetos e atividades desenvolvidos pelo LIA podem ser acessados em www.uff.br/lia .

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80 anos de cineclubismo no Brasil

A insatisfação com os modelos rígidos e etnocêntricos, com a sujeição aos estúdios e com a censura da indústria cinematográfica, além da preocupação com a afirmação de cinemas nacionais levou muita gente, em todo o mundo, a procurar alternativas já na segunda década do século passado. Mas foi na França, onde o próprio cinema havia começado, que essas insatisfações encontraram suas primeiras formas de

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expressão. Em 1920, o cineasta e crítico Louis Delluc cria o nome cineclube e lança, em 14 de janeiro, o semanário Le Jounal du Ciné-Club, ou simplesmente Ciné-Club. Por aqui, a estréia acontece no dia 13 de junho de 1928, com a fundação, no Rio de Janeiro, do Chaplin Club. Nas décadas de 40 e 50 os cineclubes se espalharam pelo país, mas também este movimento sofreria com a Ditadura Militar que o perseguiu duramente. Calcula-se que existissem cerca de 300 cineclubes em 1968 e, um ano depois, haveria no máximo uma dúzia de cineclubes em funcionamento. Na década de 70 foi criada a Distribuidora Nacional de Filmes para Cineclubes (DINAFILME). Seu acervo contava com documentários brasileiros e produções não submetidas à censura. Esses filmes documenta-

vam a vida e as lutas dos setores populares, marcada nesse momento pela retomada dos movimentos grevistas. Em 1977, a Polícia Federal invade sua sede e apreende seus filmes. A inflação crescente, o aumento nos custos de frete e a sensível diminuição das atividades de instituições federais como a EMBRAFILME dificultam a vida dos cineclubes menos organizados a partir dos anos 90. O cineclubismo brasileiro entra num período de grande desarticulação, que, de certo modo, vigora até hoje. O governo federal deixou completamente de apoiar o movimento cineclubista que não encontra alternativas de sustentação autônoma como movimento nacional integrado. Apesar do cenário de desarticulação, ainda hoje surgem diversas iniciativas pelo país.

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Um teatro marxista para reafirmar a luta de classe: Brecht, o Latão e os Filhos da Mãe terra A peça “A Comédia do Trabalho”, a mais popular da Cia do Latão, estreou em agosto de 2000, no Sesc Anchieta, em SP, após uma série de pré-estréias pelo interior do estado e no Assentamento Ireno Alves, no Paraná, em julho do mesmo ano (FOTO). O “Latão” é um grupo de teatro paulista que, desde 1997, trabalha para se opor ao modelo hegemônico de teatro no capitalismo. Dos ensaios à relação com o público, o coletivo se empenha para superar a divisão do trabalho material e intelectual, suprimir as hierarquias entre os artistas, desmistificar a imagem artística e transformar os homens e mulheres do palco e da platéia, em “companheiros de jornada simbólica”, como afirma Sérgio de Carvalho, diretor da Cia. Para ele, no mundo da mercadoria, a produção artística é levada a alienar sua utilidade em favor da pura circulação, cuja lógica impregna os produtores de arte com o marquetismo, o personalismo, o agradismo hedonista. O Latão acredita que a cultura deve servir a processos coletivos podendo buscar, para isso, associações de espectadores, contatos com movimentos sociais e intercâmbios entre grupos. Para fazer seu teatro materialista-dialético, o caminho do grupo reúne três princípios: anticapitalismo, pesquisa estética e revolução. A jovem Cia Filhos da Mãe...terra vem seguindo a mesma trilha. O chão em que se ergue tudo isso: Bertolt Brecht. Foto: Stela Guedes

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Entrevista com Sérgio de Carvalho, diretor da Cia do Latão Foto: Stela Guedes

Heitor Goldflus, Maria Tendlau, Alessandra Fernandez, Adriana Mendonça e Ney Piacentini: elenco original da peça “A Comédia do Trabalho”, na estréia, em 2000, no Sesc Anchieta, SP.

“É um trabalho difícil, quase impraticável, existir no mundo da mercadoria sem pertencer a ele” 26

O trabalho da Companhia do Latão inclui a construção e encenação de espetáculos, a edição da revista Vintém e vários experimentos teatrais e musicais. O grupo surgiu entre 1997 e 1998, em São Paulo e, desde então, vem se constituindo a partir do estudo da obra de Bertolt Brecht, como um modelo para o teatro épico-dialético no Brasil. Sua dramaturgia é própria, interessada na realidade histórica do país, bem como na crítica política das formas estéticas de representação. Suas montagens são “peças-processo” sobre movimentos contraditórios de uma sociedade imersa no capitalismo mundial. Atualmente, com uma sede de trabalho em São Paulo, o Estúdio do Latão, a Cia desenvolve pesquisa artística e pedagógica e pretende, este ano, publicar suas peças e alguns estudos teóricos, além de desenvolver seu núcleo audiovisual. Serão também divulgados os primeiros vídeo-documentários e exercícios ficcionais do núcleo. Recentemente, o Latão apresentou a peça O Círculo de Giz Caucasiano, em Havana, e a continuação da colaboração com o teatro de Cuba também está nos planos do grupo. Seu próximo projeto se chama Ópera dos Vivos. Será um conjunto de peças articuladas em torno do tema dos “produtores da cultura”.

MAIO/JUNHO/JULHO/2008––Revista Revistada daAssociação Associaçãodos dosDocentes Docentes da da UFF UFF––CLASSE CLASSE MAIO/JUNHO/JULHO/2008


Classe – Nos anos 30, diante dos ataques dos críticos contra seus primeiros trabalhos, Brecht escrevia: “É preciso defender o teatro épico contra qualquer suspeita de se tratar de um teatro deselegante, tristonho e fatigante”. Os ataques continuam até hoje. Como vocês atendem ao apelo do dramaturgo alemão? Sérgio – Tentando fazer um trabalho artístico inventivo, vivo e conseqüente do ponto de vista crítico. Brecht fazia referência ao “coturno estético”. Sabia que o sentido de contramão política de uma obra na contramão do imaginário dominante traz a necessidade de um acabamento artisticamente impecável. Ainda que isso seja difícil nas condições de produção do teatro nãocomercial no Brasil, trabalhamos muito, nos desdobramos em várias funções, na tentativa de que essa almejada “qualidade indiscutível” desloque o olhar para o que interessa mais, para as contradições dos processos históricos materializadas na forma da cena. De uma certa forma, como todo grande teatro moderno, o de Brecht expõe o despreparo de uma crítica serviçal do consumo artístico, daqueles juízes do gosto que escrevem para clientes e consumidores. É um teatro que realiza na forma sua própria crítica. E que, nesse movimento, tenta dar ferramentas a que o espectador exerça uma crítica histórica com base na matéria do palco. Classe – Brecht definiu seu método como “dialética materialista a serviço do teatro”. Como isso acontece em sua dramaturgia e em que peças ele é mais bem sucedido? Sérgio – Desde Um Homem é um Homem, o olhar materialista se instaura na dramaturgia de Brecht. Seus experimentos com a dialética se iniciam nessa época, e se desenvolvem de modo experimental no conjunto de sua obra. Toda a armação das peças segue o movimento das contradições. As personagens se movem enquanto são movidas. Sua subjetividade está implicada nas tensões sociais e históricas, as cenas se acumulam e sofrem mudanças qualitativas de acordo com causalidades múltiplas, o esquema aparente, as leis do movimento, servem à sua subversão pelos aspectos vivos e múltiplos; os processos mostrados no palco estão em interação dialética

Foto: Stela Guedes

Sérgio de Carvalho em debate promovido pela ADUFF

com o trabalho do espectador nas condições do pensamento dominante atual. É no trânsito entre palco e platéia que se dá a operação dialética, sempre em aberto. A dramaturgia de Brecht apresenta uma infinidade de experimentos sobre o que se poderia chamar de uma dialética dos sentidos e da representação. Ela se utiliza de modo livre do pensamento de Marx, Engels, Lênin, Korsch, entre tantos. E o faz de maneira inventiva, segundo as necessidades da luta prática no campo estético. É um grande repertório de caminhos novos para a reflexão dialética e para a “demolição da ideologia”. Classe - O teatro da Cia do Latão é um teatro de oposição à da ideologia de consumo e da mercantilização das pessoas e da vida. Como enfrentar a tão poderosa ideologia cultural?

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Sérgio – Pela prática. Tentando fornecer exemplos atuais de uma atuação simbólica igualitária, animada, livre das determinações ideológicas do capitalismo totalitário, sem desconsiderar, ao mesmo tempo, a onipresença da lógica mercantil no conjunto da sociedade. É um trabalho difícil, quase impraticável, existir no mundo da mercadoria sem pertencer a ele, sem se deixar pautar por ele, sem sucumbir à lógica da circulação. Mas é justamente essa impraticabilidade que é exposta em nosso trabalho, em seus temas e em suas formas que se contrapõem ao modelo do “produto de entretenimento agradável”. O espectador vai se entreter sim, e manter uma relação ativa com processos não só artísticos, mas pedagógicos, históricos,etc. Processos nos quais se vê também o esforço de não nos confinarmos ao mundo de compra e venda da arte na medida em que revelamos suas estruturas de classe e nos aproximamos de outros grupos que desconfiam do sucesso do capitalismo. Classe – O Latão é um grupo de teatro anticapitalista não só na sua interpretação do mundo, mas na sua própria prática de trabalho. Como isso acontece? Sérgio – Em muitas instâncias, mas, sobretudo, nas relações da sala de ensaio. São diversos os esforços: combater o idealismo das representações pela coletivização da invenção artística, eliminar a separação hierárquica entre trabalho físico e trabalho intelectual, valorizar igualitariamente os chamados “técnicos” e os chamados “artistas” etc. O papel do diretor passa a ser o de disseminar sua própria função. A improvisação dos atores na sala de ensaio, mediada pelo esclarecimento coletivo dos percalços e destinos do processo tem sido nossa principal ferramenta de escrita de cenas teatrais. Num método aberto, baseado na “tentativa e erro”, é fundamental que os critérios dialéticos e o estágio atual da pesquisa se tornem claros para todos. Classe – O efeito do distanciamento, para Brecht, devia fornecer ao espectador uma atitude examinadora e crítica dos acontecimentos. Como podemos nos situar, a partir do distanciamento, no atual momento da luta de classes? Sérgio – O efeito de distanciamento (ou estranhamento) é um conceito teórico de Brecht para definir o tipo de trânsi-

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to crítico em que o público – ao vivenciar, experenciar, imaginar alternativas e refletir sobre a cena – tem a possibilidade de projetar uma causalidade histórica sobre o que vê, sobre o que ouve e imagina. Não é propriamente uma técnica teatral narrativa ou metalingüística, como feita em tantos grupos que dizem fazer “teatro épico”. Sua atualidade depende da capacidade do teatro em desmontar a leitura ideológica dominante, em “alienar a alienação”, em estimular no espectador uma atividade crítica e interpretativa, de caráter negativo, sobre os processos da cena. Na medida em que isso é também uma ativação simbólica da luta de classes, as formas do estranhamento atual devem considerar o estágio atual da luta de classes, sem falsificá-lo e sem desconsiderar que o sistema das artes, como lugar de produção do imaginário coletivo, é também um campo da luta. Classe – Que conseqüências a Ditadura Militar, particularmente do AI-5, que completa 40 anos esse ano, trouxe para o campo da encenação crítica brasileira? Sérgio – Tenho a impressão de que o grande estrago causado pela ditadura e pelos anos seguintes da globalização capitalista foi o arrasamento da memória coletiva, a descontinuidade dos processos. Os artistas do passado, presos na rede da violência do Estado, presos à necessidade de sobrevivência, tendo dificuldade em constituir campos alternativos a uma nascente indústria cultural que os absorvia e sugava suas energias de invenção, não conseguiram transmitir os avanços estéticos dos anos anteriores, quando se iniciaram os experimentos de uma arte politizada importante no país. São raros aqueles que seguiram o trabalho de contramão com visibilidade suficiente para influenciar os mais novos. Boal é o mais importante de todos, ainda que tenha se afastado da encenação. Mas é sintomático que seu reconhecimento internacional seja muito maior do que o nacional. Classe – Como o teatro crítico pode contribuir para a disputa da hegemonia na sociedade? Sérgio – Aproximando-se das forças sociais mais avançadas na capacidade de contestar o capitalismo. Mas, sempre, fazendo grande arte.

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Entrevista com Douglas Estevam

Foto: Stela Guedes

O teatro do Filhos da Mãe...terra Em agosto de 2006 tivemos o prazer e a honra de recebê-los em evento organizado pela ADUFF marcando os 50 anos da morte de Bertolt Brecht. A peça Posseiros e Fazendeiros, a primeira do grupo Filhos da Mãe... terra tem como base o texto Horácios e Curiácios, de Brecht, e fala da disputa de terras e do conflito entre agronegócio e trabalhadores rurais no Brasil. Douglas Estevam, do Coletivo Nacional de Cultura do MST e diretor do espetáculo, explicou porque a peça está inacabada. “Quem sabe quando fizermos a Reforma Agrária, terminamos a peça”. A encenação contou com o apoio da Cia do Latão, parceira do grupo desde que este foi fundado em 2003, no assentamento Carlos Lamarca, em Sarapuí (SP). O grupo do MST também fez o prólogo de O Círculo de Giz Caucasiano, espetáculo de Brecht, montado pelo Latão. O grupo Filhos da Mãe... terra conta hoje com 12 integrantes, com idades entre 13 e 36 anos. Nesta entrevista, concedida da França, Douglas fala sobre a importância do teatro para o MST, principalmente, para sua juventude.

Douglas Estevam em debate na ADUFF

Classe - Como funciona hoje o Coletivo Nacional de Cultura do MST? Douglas – Ele é composto de várias frentes como teatro, poesia e literatura, artes plásticas, música, audio-visual e diversidade cultural com autonomia na produção, desenvolvimento e coordenação de suas atividades específicas, mas em consonância com o projeto estratégico do movimento e do setor. Também tem a responsabilidade de desenvolver programas de formação para o conjunto dos militantes e a organização das tarefas de nível nacional no aspecto cultural. Classe – Você pode falar um pouco da história do Assentamento Carlos Lamarca? Douglas – É uma história com as complicações frequentes dos acampamentos, principalmente no período em que se constituiu o assentamento, há dez anos. Foram vários despejos e um longo período de moradia na beira da estrada. Por outro lado, a necessidade coletiva da organização do acampamento, para garantia da sobrevivência em condições tão precárias, possibilitou o de-

senvolvimento de uma vivência coletiva muito importante e formativa. Neste contexto se constituiram as bases do que viria a ser o grupo Filhos da Mãe. Classe – Já que você começou.. e o grupo de teatro Filhos da Mãe...Terra? Douglas – O grupo se formou durante o acampamento. Havia um grupo de jovens que se reunia frequentemente para desenvolver atividades culturais, de estudo, de trabalho. Depois que o assentamento foi regularizado, por uma série de motivos, foi efetivado um modelo de assentamento que manteve as famílias muito afastadas umas das outras, o que dificulta muito a plena realização de atividades mais coletivas. Uma das idéias para alterar este problema foi a criação de um grupo de teatro, pois esta atividade gerava muita empatia por parte dos jovens já no acampamento. Classe – Como o teatro vem contribuindo para a formação político-cultural do grupo? Douglas – Desde o começo nos colocamos como processo

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de trabalho, de estudo continuado, tanto de temas ligados diretamente ao teatro, como estudos sobre política e economia. A relação entre os dois campos de trabalho sempre teve por meta construir uma intervenção cênica a partir deste estudo e da experiência de vida dos militantes. A necessidade de reelaboração cênica dos materiais de trabalho, como jornais, livros, filmes, entrevistas, e da própria história de vida, proporcionava uma maneira diferenciada de olhar estes materiais e experiências, o que implicava uma análise aprofundada da experiência de vida e histórica. Este estudo, digamos que mais teórico, mais interno ao grupo, se efetivava plenamente nas apresentações, sempre seguidas de debates, o que exigia um posicionamento muito efetivo, uma tomada de posição política, através do teatro, sobre uma realidade, sobre a própria história de vida das pessoas e da organização a qual integramos. Classe – O que vem sendo mais difícil no trabalho com o teatro? Douglas – Um dos aspectos mais difíceis vem sendo conjugar o trabalho do teatro com o conjunto das outras atividades no assentamento e na organização como um todo. Algumas pessoas estão em estudos longos, em cursos que duram até 50 dias. Depois tem uma grande quantidade de trabalhos no assentamento com o desenvolvimento da produção. Uma série de fatos de organização do assentamento e do movimento colocam dificuldades para organização da agenda de trabalho com o teatro. Mas isto sempre foi parte do trabalho do grupo, sempre soubemos que nao iríamos nos separar da vida no assentamento nem da vida da militância política do movimento, pelo contrário. Esta dificuldade sempre fez parte do trabalho porque nunca assumimos, nunca tivemos vontade de nos separar das outras necessidades de organização da vida no MST. Não nos constituímos numa estrutura teatral onde o teatro seja a atividade exclusiva das pessoas. Classe – Como é a relação do MST com o trabalho do grupo?

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Douglas – A relação é extremamente produtiva, motivadora. Como nos constituímos em coletivos e o funcionamento destes coletivos não é algo burocrático, formal somente, mas que possui vida ativa própria, a inserção no conjunto do movimento é extremamente potencializadora dos trabalhos do grupo. Temos possibilidade de entrar em contato com outros grupos de teatro, participamos de outros cursos de formação, estabelecemos relação com outros setores do movimento, a apresentação em atividades programadas da organização, existe a publicaçao de materiais, etc. Um conjunto estrutural que permite uma potencialização do trabalho que é feito em nível local. Classe – Como a política de cultura do MST, particularmente do grupo de vocês, ajuda na disputa ideológica entre as classes em nossa sociedade? Douglas – Esta também foi uma experiência que fomos tomando consciência no decorrer da nossa ação. Começamos a descobrir o pontencial político do teatro que estamos fazendo de uma maneira muito específica. Muitas pessoas tomaram contato mais próximo com o MST a partir da peça que viram. Os debates também revelavam, principalmente para um público mais distante, a realidade do movimento de uma maneira muito diferente da qual eles viam na TV. Inúmeras vezes pessoas falaram da necessidade de desenvolver trabalhos assim em outras comunidades, mesmo urbanas, em escolas das cidades. Podemos pensar nisto como um sinal da percepção do teatro com um potencial político que extrapolaria os limites do MST, partindo da nossa experiência. Os debates começavam pela nossa ação, pela nossa especificidade de um grupo de assentados, mas logo entravam na estrutura política e de desigualdades sociais do país, para além dos problemas só dos camponeses e sem-terras. Chegamos a visitar uma escola num bairro da periferia de São Paulo onde um grupo de 250 crianças estava montando uma peça sobre a história da favela onde eles moravam. Fomos apresentar e depois conversamos sobre o processo de montagem, aspectos políticos, etc. O significado político do teatro assume um aspecto menos geral e ganha um caráter muito específico de intervenção e formação política.

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A coragem e a necessidade de se montar Brecht Marcelo Badaró

- Professor da UFF

e Stela Guedes Caputo

- Jornalista

Foto: Divulgação Foto: Divulgação

No teatro dramático o espectador é levado a identificar-se facilmente com o herói. Sua principal função é a catarse, a purgação das emoções. É esse, em geral, o teatro que agrada. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 -1956), contudo, foi contrário a este teatro e construiu um outro, o teatro épico, materialista-dialético e anticapitalista. Já esse, nem sempre agrada aos gostos fáceis, em geral o chamam de chato, ultrapassado, e, por fim, de ideológico e político, como se o outro, aquele criado pela burguesia, não fosse. Dizia nosso dramaturgo que o público do “velho teatro” pendurava o cérebro na sala de entrada, junto com o casaco. O novo teatro que Brecht propunha exigia um novo conteúdo, uma nova forma e um novo público, Louise Cardoso interpreta Anna Fierling, a Mãe Coragem, de Brecht um espectador que não deveria ser levado flutuante ao nhia de Teatro, dirigido por Paulo de Moraes, que tammundo da arte, mas ao contrário, deveria ser introduzi- bém está comemorando 20 anos de existência. do em seu próprio mundo real para criticá-lo. Por essas ‘Mãe Coragem e seus filhos’ é a guerra. Foi cone outras, montar Brecht nunca foi fácil e não o é hoje. cluída por Brecht quando a Segunda Guerra Mundial Quanto mais porque, fazê-lo, não garante a um grupo começava e sua história se desenvolve durante a Guerrealizar um espetáculo brechtiniano. Em geral, vemos ra dos Trinta Anos (1618-1648) que destruiu a Alemaelementos desse teatro “salpicados” na encenação. Tal- nha. “Me chamam de Coragem, sargento, porque uma vez a figura do narrador ou algum ator mais consciente vez, para escapar da falência, eu atravessei o fogo da do efeito de distanciamento. Raras companhias conse- artilharia de Riga, com 50 pães na carroça; eles já guem a encenação brechtiana mais completa, que, como estavam dando bolor, não havia tempo a perder, e eu disse Sergio de Carvalho, envolve, além do palco, a rela- não tinha outro jeito”, explica a personagem Anna ção entre os membros do grupo nesse fazer teatral. As- Fierling, mãe de três filhos (Katrin, que é muda, Eilif sim, o fato da atriz Louise Cardoso ter escolhido montar e Queijinho). Ela arrasta uma carroça (nesta montao texto Mãe Coragem e seus filhos, de Brecht, em come- gem representada por uma carcaça de um avião da I moração de seus 30 anos de carreira, foi realmente um Guerra), vendendo mercadorias para soldados e endesafio. Para enfrentá-lo, chamou o Armazém Compa- volvidos de qualquer lado. A fala logo revela: Fierling

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é uma comerciante que, para não ter prejuízo, arrisca qualquer coisa, inclusive, a vida e não só a sua. Para não restar dúvidas disso, quando seu filho do meio, o Queijinho, é capturado e torturado pelas tropas inimigas, ela regateia o valor de sua liberdade, não quer se desfazer de sua única propriedade, a carroça. Quando, enfim se decide, o filho já foi executado. Na cena seguinte, soldados do regimento católico mostram o corpo do filho e ela nega conhecê-lo, mesmo sabendo que ele será jogado numa vala comum, como foi. O Armazém não é um grupo brechtiniano, mas Louise Cardoso interpreta com honestidade sua Anna Fierling, tem consciência que representa a contradição, ainda que vacile nos momentos em que Fierling é egoísta, fria, calculista. Parece, ela própria, desejar amenizar as características de uma personagem que, afinal de contas, é uma mãe. Mas aqui, trata-se da primeira peça que Brecht encenou quando voltou para a Alemanha, depois da II Guerra Mundial. Neste texto, a Mãe é a Alemanha, uma metáfora da relação entre o nazismo e o povo alemão. Os atores do teatro dramático estão acostumados às empatias. Nós, o público também. Queremos isso, a empatia, o agrado. Talvez fiquemos com dó de Fierling e enxerguemos nas suas circunstâncias apenas um drama familiar e não os interesses do Capital em movimento. O próprio Brecht, que analisava a todo instante seu trabalho, dizia que a responsabilidade era sua quando não conseguia fazer com que os personagens provocassem o estranhamento necessário ao público. Mãe Coragem, Galileu, a Grusha do Círculo de Giz são exemplos que ele cita em alguns de seus textos. Pode ser que aconteça o seguinte: se Anna Fierling não nos conforta, corremos os olhos desesperados para quem o faça e julgamos encontrar em Katrin, a filha muda, desfigurada pela guerra, interpretada por Patrícia Selonk. Talvez este seja ainda um personagem mais arriscado. Podíamos apenas nos comover com o sofrimento humano de Ka-

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trin. Mas é justamente ela quem nos aponta o jogo brechtiano, um jogo que não apresenta apenas relações inter-humanas e sim, as condições sociais que as movem. É Katrin que, mesmo na sua impossibilidade de comunicação, tenta alertar aos que busca proteger. Ao fazê-lo, também nós, o público, somos alertados e olhamos na direção do conflito social. Seu sacrifício final, não é alienado, mas uma atitude consciente da qual também participamos. Em meio ao conjunto de atrocidades que a guerra impõe, Brecht nos leva a refletir sobre até onde homens e mulheres são capazes de ir, não apenas se adaptando, mas alimentando a barbárie ou tentando interrompê-la. Ao contrário do que dizem, este dramaturgo não era avesso ao envolvimento emotivo. Nos envolvemos com Katrin. O que ele odiava no drama burguês era sua intenção de enganar e alienar atores e público. Por isso, nosso envolvimento aqui, não consegue ser o mesmo como no drama burguês. Brecht não aceitava uma dramaturgia que mostrasse os fatos da vida como naturais, porque esse era o modo de aceitar como natural que tudo permaneça imutável. Anna Fierling aceita, Katrin, não. O teatro de Brecht é um desafio para qualquer grupo de atores e, mesmo quando montado por um grupo que não tenha tradição brechtiniana, nós, o público, saímos ganhando porque somos também desafiados nos elementos que constroem nossa forma de perceber o mundo. O envolvimento acontece, mas ele é crítico e questionamos as atitudes dos que estão no palco e a nossa, na platéia. Por fim, em um colóquio sobre teatro, Brecht respondeu à pergunta que servia como guia dos debates - “O mundo atual pode ser reproduzido pelo teatro?” – da seguinte forma: “O mundo atual só pode ser reproduzido para os homens do presente se for descrito como um mundo em transformação”. Como não achamos que as guerras e as desigualdades sociais são naturais e nem imutáveis, não há dúvida de que Brecht precisa ser montado e a coragem dos grupos que o fazem, sem tentar esvaziá-lo, aplaudida.

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De Capa

Entrevista: Evandro Teixeira

“A fotografia precisa mostrar o que há de errado no mundo” Fotos: Luiz Fernando Nabuco

Stela Guedes Caputo

Ele nos recebeu, a mim e ao fotógrafo Luiz Nabuco, no dia 7 de março de 2008, uma tarde ensolarada de sexta-feira, num jardinzinho de uma Igreja no Rio Comprido, onde está funcionando hoje o Jornal do Brasil. Quem já conversou com ele deve concordar comigo, tudo em Evandro Teixeira ri: os olhos, o sorriso, as mãos, a voz, numa expansão de generosidade. Com alegria de corpo inteiro ele começa a contar histórias, muitas, e, quando a gente percebe, atravessamos com ele na vereda de luz e sombra aberta pela fotografia. Contaminado por essa paixão desde criança, em Irajuba, no interior da Bahia, onde nasceu, Evandro se transformou na principal referência do fotojornalismo brasileiro. Suas imagens, a maioria em preto-e-bran-

co, eternizaram episódios políticos do Brasil desde a década de 60. Pelo mundo, registrou momentos de guerra ou de glória, em especial, cobrindo as olimpíadas. Evandro, que é editor de fotografia do Jornal do Brasil, acaba de lançar mais um livro “68: Destinos. Passeata dos 100 Mil”. O que partilha conosco desta vez é a famosa e histórica foto feita por ele no dia 26 de junho de 1968. Uma geração reunida na Cinelândia ia às ruas protestar contra a Ditadura Militar brasileira. O livro, de 120 páginas, conta a vida de 100 pessoas que estiveram no protesto e foram captadas por sua lente na passeata. 40 anos depois, as 100 pessoas selecionadas foram fotografadas novamente por Evandro. Elas lembram o que as levou à Passeata dos Cem Mil e falam um pouco sobre os caminhos que tomaram de lá para cá. Nessa travessia, Evandro ganhou muitos prêmios, publicou vários livros e suas fotos estão em museus do Brasil e do exterior. No entanto, ouso dizer que sua principal conquista tenha sido conseguir fazer o que nos pede o poeta Manoel de Barros: “se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. Evandro nos ensina a reparar.

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68: Destinos. Pass Classe - Queria falar primeiro do livro. O que significou e significa para você fazer esse livro? Evandro – O mais importante é que, como nos meus outros livros, este também não é apenas um livro de fotografia, é um livro de história porque fala dos anos de chumbo no Brasil, especialmente sobre o Movimento Estudantil. Em 1968, este movimento teve papel importante na França e em muitos países e não foi diferente aqui. Acompanhei a trajetória dos estudantes, Edson Luiz morto e... nesse dia específico, acompanhei a passeata dos 100 mil. Por incrível que pareça, o jornal não publicou essa foto no dia seguinte. Só quando publiquei o livro “Fotojornalismo”, em 1983 (a segunda edição foi publicada em 1989) é que a Elayne Fernandes, a designer que trabalhava no livro, se encontrou na foto e também achou o marido. Eles estavam na passeata, mas não se conheciam ainda. Assim nasceu a idéia desse projeto. Fizemos um site “68 destinos” e continuamos divulgando. A coisa foi crescendo, encontramos várias pessoas que ali estavam e em 2007 com o patrocínio da Petrobrás finalizamos o projeto com a publicação do livro. Classe - Voltando 40 anos: no dia 26 de junho de 68 ao sair da redação do JB, sua tarefa era acompanhar o Vladimir Palmeira na passeata. De repente você estava no que ficaria conhecido como “A Passeata dos 100 mil”. O que você sentiu?

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seata dos 100 Mil Foto: Evandro Teixeira

Evandro – A gente vivia sob pressão. O JB era na Rio Branco e o ponto de encontro dos estudantes também. Toda manifestação estudantil se concentrava ali antes porque o JB se posicionava contra a Ditadura. Como acompanhei toda trajetória estudantil, desde 64, desde a tomada do forte de Copacabana, já que fui o único do jornal a chegar ao forte, eu vinha acompanhando o corre-corre, a pauleira toda. Como não podia deixar de ser, no dia 26 de junho de 68 eu também estava ali com eles. Todo dia tinha quebra-quebra. Já tinha acontecido a morte do Edson Luiz. Na sua missa de sétimo dia, por exemplo, a polícia arrebentou sete costelas do Alberto Jacob, fotógrafo do JB e tomaram o equipamento dele. Era isso, em toda manifestação também “o pau comia”. As pessoas apanhavam muito, os jornalistas eram arrebentados, o JB chegou a ser fechado à bala. Nesse dia já saímos preparados para levar porrada esperando sangue e mortes, mas por incrível que pareça, foi o dia mais tranqüilo no Rio de Janeiro. Eu tinha de estar de olho do Vladimir porque havia um boato de que ele seria preso nesse dia. Minha obrigação era estar com ele desde a manhã até o final, quando a passeata acabou no Palácio Tiradentes e ele entrou no seu fusquinha azul e foi embora. Mas, naturalmente, além de não desgrudar do Vladimir, fiquei de olho em todos os fatos. Além do que, na passeata estavam figuras muito importantes de vários setores, Clarice Lispector, Chico Buarque, Caetano, era uma multi-

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dão e eu de olho em tudo. Classe – A censura fazia com que os jornais saíssem com várias páginas em branco. Como os fotógrafos conseguiam burlar a censura e publicar essas imagens? Evandro – A gente fazia um contato especial, escuro. E os censores perguntavam o que tinha neles, a gente despistava falando “são os malucos dos estudantes”. No dia seguinte saía a matéria com nossas fotos, o pau comia e a gente sumia uns dias, depois voltava. Os caras entravam bufando nas redações, rasgavam os textos, empurravam os jornalistas. Mas eles não sabiam ler as imagens direito e a gente conseguia enganar os militares. Isso fez com que, em alguns momentos, pudéssemos superar a censura, o que vocês não conseguiam com os textos. Classe – No livro, você diz que desde quando flagrou a tomada do Forte de Copacabana, na madrugada de 1º de abril de 64, decidiu que sua câmera fotográfica seria sua arma contra a Ditadura. Qual era sua visão do fotógrafo antes dessa tomada de lado, de decisão política? Evandro – A fotografia tanto pode mostrar as belezas do mundo como as atrocidades do mundo. Para o fotojornalismo, a fotografia precisa mostrar o que há de errado no mundo. No meu caso, sempre preferi fotografar nosso cotidiano, a miséria da nossa gente, e acabei concluindo que a fotografia é uma arma de denúncia. Eu acompanhei todos os militares ditadores no Brasil e não posso dizer que tive o prazer de enterrá-los, mas digamos que testemunhei quando foram enterrados, vamos deixar assim. Em 83, o Fi-

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Eva

predile

gueiredo ficou sabendo que eu tinha lançado “Fotojornalismo” e pediu um exemplar. Dei o livro a ele que ficou criticando dizendo que se o Brasil tinha tanta beleza por que eu só mostrava miséria e ridicularizava os soldados? Eu disse a ele que o papel de mostrar as belezas brasileiras não era meu, era dele e do ministro de turismo dele. Disse que eu era fotojornalista e minha função era retratar a realidade do meu país. E, que na verdade, o Brasil é o país mais belo do mundo sim, mas há mais miséria que beleza, por isso eu mostrava a miséria e as atrocidades. Não podia dizer as “suas atrocidades”, se não ia levar porrada e iria em cana, mas,

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Foto:Luiz Fernando Nabuco

para um bom entendedor... Classe - O que foi mais difícil na construção desse livro?

Evandro – No começo, eu achei que seria muito difícil encontrar toda essa gente. A idéia inicial era “68 Destinos”, para fazermos alusão ao ano. Ao ir para o site, as pessoas foram aparecendo, algumas moravam em outro país, mas foram aparecendo. Levamos 5 anos e eu cheguei a pensar que não iria conseguir encontrar 68 pessoas. Como em outros projetos, nesse também eu financiei a parte ndro Teixeira mostra uma de suas fotos favoritas do seu livro, mas a inicial, mas esse foi bem mais eta mesmo é a que publicamos na trabalhoso que “Canudos”, capa de nossa revista por exemplo. Depois que a Petrobrás resolveu patrocinar, foram publicadas matérias em vários jornais e, por causa dessa divulgação, nós, que procurávamos 68 pessoas, concluímos essa primeira edição do livro com 100 participantes e hoje já temos 170 catalogados. Resolvemos parar nas 100 pessoas porque continuava sendo uma referência aos 100 mil que estiveram na passeata. Fechamos o livro, mas, quem sabe, na próxima edição, ampliamos. Até hoje, tem gente que liga ou escreve querendo estar no livro, mas ele já está pronto.

das lutas, dos sonhos? Li alguns depoimentos e tive a impressão que a maioria associa àquele tempo de lutas a um “certo romantismo”, como se lutar com mais radicalidade fosse apenas uma característica da juventude e, pior, uma juventude de um passado superado, esquecido... Envadro – Acho que tudo mudou, o mundo mudou é claro. Acredito que diante dos acontecimentos de hoje as pessoas estão mais acomodadas. Naquela época se lutava mais, se corria mais atrás, se buscava mais e havia mais esperança de se mudar tudo. Observo um conformismo muito grande, inclusive na nossa profissão. Mesmo com aquele regime ditatorial, tínhamos muita esperança, porém nem tudo aconteceu como pensávamos. Classe – Você acompanhou o presidente Lula na campanha, acompanhou as caravanas, se tornou amigo dele. Está decepcionado com ele? Evandro – Antes eu não gostava do Lula, mas eu tinha de acompanhá-lo pelo jornal e o projeto dele mudou minha cabeça. Passei a ter muita esperança com o Lula, acompanhei todas as caravanas e viajei com ele. Navegar pelo “Velho Chico” foi uma experiência maravilhosa, para nós jornalistas e para ele também. Votei nele e cheguei a imaginar que esse “cabra” seria o Fidel Castro que idealizávamos para o Brasil. Acho que ele faz um governo razoável, a vida da classe média mudou, mas não é o que pensávamos, imaginava uma mudança radical para o país que não aconteceu.

Classe – Você falou com 100 pessoas que estiveram na Cinelândia naquele dia. O que foi feito

Classe - O país mudou, as pessoas mudaram. E você, como se transformou nesses 40 anos? CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – MAIO/JUNHO/JULHO/2008

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Evandro – Eu continuo buscando realidades, novos projetos e novas idéias. Acompanho os avanços tecnológicos. De certo, há quarenta anos eu tinha mais energia, era mais novo. Mas continuo buscando ideais, esperançoso de que esse nosso país mude, já que essa é uma nação rica onde não deveria haver tanta miséria. A minha luta continua. Classe - E a fotografia? Como é ter vivido a experiência de revelar filmes em cubículos apertados e improvisados, fazer malabarismos para “enviar o filme” de onde quer que estivesse até à redação e viver hoje a era digital e virtual? Evandro – Eu tenho as minhas Leicas, não vendi nenhuma e continuo usando. Mas fotografo com as digitais sempre. Naquela época era um sofrimento, já fui expulso de vários hotéis no mundo porque se fazia uma sujeira muito grande nos banheiros dos quartos que transformávamos em laboratórios. Levávamos um pano preto para vedar a luz do banheiro, os produtos químicos, ampliador, papel fotográfico, álcool para secar o filme correndo... era uma desgraça e sempre com pressa porque trabalhávamos com fuso horário diferente. Hoje, com esse tipo de material, com essa onde de terrorismo, seria impossível entrar em qualquer país do mundo, principalmente nos EUA. Imagina entrar com iposulfito, certamente iam pensar que era cocaína. Para entrar com a transmissora nova e com um lap top já é um problema! Classe – Lembra algum episódio específico? Evandro - Em 1986, estava em Budapeste para

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cobrir uma viagem da seleção brasileira e fiz uma tremenda sujeira no banheiro. O jogo foi à noite e tínhamos de mandar logo a foto para a edição que estava fechando. Nunca tinha como fazer provas ou revelar com cuidado, por causa da correria. Jogávamos tudo no banheiro. Nesse dia esqueci de limpar, a química secou e grudou tudo. O banheiro ficou imundo e a arrumadeira chamou o gerente. Fui expulso aos gritos de “seu porco!” “seu imundo!” Depois veio a era da fotografia digital, porém em 2000 uma máquina digital custava 20 mil dólares. As olimpíadas, onde há a maior concentração de fotógrafos no mundo, é um bom exemplo. Em Sidney, 2000, cerca de 90% dos fotógrafos ainda usavam analógicas. No Brasil só havia uma digital, na Folha de São Paulo. Para se ter uma idéia, na competição do Torben Grael, saíamos do Press Center (onde ficam concentrados os jornalistas) até o Iate Clube e, de carro, era uma hora. Do Iate clube até o mar aberto eram mais duas horas de lancha, contando a volta, cerca de 4 ou 5 horas. Centenas de fotógrafos queriam revelar filmes e a Kodak não dava vazão ao volume de filmes, esperávamos cerca de 4 horas. Ou seja, umas 9 horas todo o processo. Fora que tínhamos de scanear, jogar no computador e mandar. Já em 2004, na Grécia, na mesma competição, o Grael repetiu a medalha de ouro e, quando ele levantou a bandeira, todo mundo clicou e da própria lancha as fotos foram transmitidas através de laptop, tudo enviado em 10 minutos, graças à tecnologia digital. A qualidade é excepcional e para o jornalismo, de um modo geral, foi uma mão na roda absurda. Nesse sentido foi maravilhoso. Mas eu uso os dois. As galerias e museus ainda não aceitam as digitais. Apesar da

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qualidade das digitais, as diferenças ainda são grandes. A foto feita com analógicas tem textura diferente, contrastes diferentes. Classe - Conhecemos suas maravilhosas fotos, sua ousadia em conseguí-las, mas e os erros? Você já perdeu alguma foto? Evandro – É o cotidiano das ruas que ensina, o dia-a-dia. E esse cotidiano nunca deixa a gente voltar de mãos vazias para o jornal. Os erros acontecem, mas sempre nos ensinam, surpreendem e a foto acontece. Nunca disse que não dava, e estou sempre tentando superar os erros na vida e no trabalho.

Eu fico revoltado quando vou fazer uma matéria e mandam somente o fotógrafo. Pelo amor de Deus!

Classe - Como você avalia o fotojornalismo de hoje? Evandro – De maneira geral, o jornalismo mudou muito. Os jornalistas estão mais acomodados, não possuem a dinâmica de antes. Não sei se é o baixo salário, infra-estrutura ou a falta de brilho e paixão das gerações atuais. Antes, jamais saíamos para uma matéria importante sem termos quatro ou cinco dias para pesquisar sobre o assunto. Hoje tudo é para agora, correndo. Hoje tem releases para tudo, as assessorias mandam tudo, o que gera mais acomodação entre os jornalistas. Eu fico revoltado quando vou fazer uma matéria e mandam somente o fotógrafo. Pelo amor de Deus! O jornalista precisa estar presente, como é que vai escrever sem sentir e ver o que está acontecendo? Muitas vezes é o fotógrafo que precisa apurar a matéria e contá-la ao repórter. Ima-

gina quantos problemas isso gera? Sem contar que a matéria fica fria quando se faz por telefone ou release. Como é que se faz uma matéria sobre um desabamento sem estar no local conversando com as pessoas? E mais, antes havia uma equipe formada pelo repórter, fotógrafo e motorista, aliás, muito importante na sugestão de pautas que rendiam muitos furos de reportagens. Hoje, nossa profissão está decadente. Mas não é só com jornalistas não, todas as profissões vivem um momento de grande decadência. A acomodação contribui para isso. Classe - Sua câmera foi uma arma contra a Ditadura. E hoje, contra o que ela luta? Evandro – Minha câmera continua lutando contra tudo. Se estou numa passeata, num tiroteio, nunca penso que vou deixar de fazer meu trabalho

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porque estarei incomodando à polícia ou aos políticos. Estou aqui para fazer meu trabalho e meu trabalho é denunciar o que está errado e o que está errado é a injustiça. Esse é meu ponto de vista. Classe – Como é cobrir a violência no Rio hoje? O que você viu mudar no que se refere à relação da reportagem policial? Evandro – Certamente antes nós tínhamos mais facilidade para entrar em favela, o que não acontece hoje. Nos dias atuais, a imprensa não é bem vista e muitas vezes retaliada. Acho que o que mudou é que antes nós servíamos de apoio para a comunidade e hoje não. Muitas vezes subi a favela da Mangueira, naquela época, com amigos estrangeiros para beber um chopinho no alto da comunidade. Hoje isso é impossível. Classe - Você diz que o livro é uma homenagem aos fotojornalistas que viveram essa época no JB e cita especialmente alguns. O grupo é masculino. De lá para cá, a mulher conquistou muito espaço no fotojornalismo. Como foi acompanhar isso? Evandro – É uma homenagem a esses grandes fotógrafos que trabalharam comigo. A maioria está morta. Mas a mulher conquistou espaço em todos os lugares. A primeira vez que uma mulher entrou no gramado do Maracanã, ela foi vaiada e teve que sair. Hoje as mulheres são radialistas, são fotógrafas dentro do gramado, são policiais e temos grandes fotógrafas. A Cíntia Brito foi uma das primeiras e um grande nome do fotojornalismo. Hoje temos a Miríam Fichtner, a Marcia Folleto, mulher corajosa e arretada. Foi maravilhoso ver isso na fotografia e no

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texto, eu diria que uma mudança radical, porque cerca de 70% das redações é composta por mulheres. Classe - E o JB, uma vida inteira dedicada a este jornal e vendo-o passar por tantas mudanças, o que você pode dizer sobre isso? Evandro – O JB ainda é um jornal respeitado no Brasil. Claro que não é mais aquela grandiosidade. Tínhamos 52 funcionários só no departamento de fotografia e hoje temos 12, tudo precarizado. As mudanças foram radicais em todos os sentidos. Mas o jornal continua tentando chegar cada vez mais perto do que foi um dia. Classe – Desde que a primeira fotografia foi produzida em 1825, pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, ela estaria envolvida no debate entre técnica e arte. Naquela época, para se reproduzir uma imagem foram necessárias oito horas de exposição à luz solar. Hoje, as digitais calculam tudo e, quanto mais avanços tecnológicos, mais polêmicas. A fotografia é arte? Evandro - Como escreveu Otto Lara Resende no prefácio do meu primeiro livro: “estas fotos são mais que simples flagrantes, captam uma imagem, sua luz, sua sombra, seu volume e seu vazio. Mas captam igualmente o tempo, um certo tempo e o espaço, um certo espaço. Daí a densidade deste documentário, que fala do nosso mundo e fala de quem o viu, de quem o fixou... quer-me parecer que é a isto que se chama arte”. Ou o poeta Carlos Drummond de Andrade: “A fotografia - é o codinome da mais aguda percepção que a nós mesmos nos vai mostrando e da evanescência de tudo edifica uma permanência, cristal do tempo no papel”, é arte... só pode ser.

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A UFF na passeata dos 100 Mil

Foto: Stela Guedes

Entre as 100 pessoas selecionadas para o livro de Evandro Teixeira, três tinham ou têm ligação com a UFF. Em 68, Arnaldo Snaiderman e Gilberto Brasil estudavam engenharia na UFF. Mucio Continentino cursava Física na PUC-Rio e hoje é professor da Federal Fluminense. Muitos que lecionam ou lecionaram na UFF participaram da importante manifestação e também não foram mencionados no livro. Das quatro professoras que soubemos que estiveram no ato, apenas Maria Lidia se reconhece e se localiza na foto, as outras não encontram sua imagem, mas estiveram lá, no instante flagrado, exatamente onde deviam estar.

“Naquela época, eu estava no 1° ano do Serviço Social. A entrada na universidade e o meu desejo de “melhorar as injustiças sociais” me moveram para este curso. Para mim, a passeata teve o sentido de tornar visível com os nossos corpos em presença e união, nossa discordância radical, nossa resistência, nossa recusa à Ditadura Militar. Hoje, vejo uma distinção importante entre o tempo da ditadura e o de normatização democrática. No entanto, as desigualdades sociais se ampliaram, fato que me faz permanecer lutando por transformações reais na sociedade brasileira como professora e militante na formação política junto às classes trabalhadoras. Na universidade (UFRJ ) - em curso destinado ao MST e fora dela, em outros cursos e atividades de formação”.

Maria Lidia Souza da Silveira, professora aposentada da UFF e professora da UFRJ (Serviço Social)

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Foto: Marcelo Salles

“Em 1968, eu era recém-formada em História pela UFRJ e estudava Psicologia na UGF. Tinha um filho pequeno que no dia da passeata teve uma crise asmática e o deixei na casa dos avós. Minha mãe disse que eu era uma mãe desalmada. O sentimento reinante na passeata era um misto de indignação contra o regime autoritário, a cassação de direitos, as prisões e de alegria por estarmos ali. Mas não dava para imaginar o terror que viria com a decretação do AI-5, uma espécie de terrorismo de Estado. Isso que hoje atinge as comunidades pobres, só que com a classe média. Discordo dessa idéia de que hoje não existe mais movimento social ou utopia. Essa imagem é construída pelos meios de comunicação de massa como forma de invisibilizar os movimentos sociais, gerando apatia e conformismo”. Maria Cecília Coimbra, professora aposentada da UFF e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais “Manhã tão bonita manhã. O dia nasceu bonito. Amei ser mãe mais um dia. Minha filha, Maja, nasceu no dia 1º de abril daquele 68. À tarde, saí com a madrinha dela para ir à passeata. O pai, envolvido na organização, não tinha nem dormido em casa. A situação era tensa, mas o medo, o grande medo, só viria no final desse ano, no dia 13 de dezembro, com a decretação do AI-5. Busquei chegar à praça, por vias laterais, para sentir o ‘clima’. Ao chegar, encontrei a Cinelândia maravilhosamente cheia de gente. Não lembro de ter ‘visto’ o Vladimir discursando, nem muito menos aquela corrente de braços dados de gente jovem e não tão jovem, já ‘famosa’, que é mostrada abrindo a passeata que se formou para ir até a Candelária. Confesso que as lembranças do grande medo e de seu dia inaugural são muito mais vívidas em mim. De alegria, as lembranças são do “Comício da Central”, em 1964, ou do “Comício das Diretas”, na Candelária, em 1984. Nesta foto, estou com Maja, já no exílio, na França, na Páscoa de 78". Nilda Alves, professora aposentada da UFF e professora da UERJ (Educação) “Eu era estudante na época. Fui para a passeata grávida de cinco meses de minha filha Luciana, que hoje é professora do departamento de Psicologia, na Universidade Federal do Ceará. Nesta foto, estou com ela, na sua formatura, em 1992. Não dava para ficar fora e a passeata foi um momento muito importante para resistir e enfrentar a Ditadura Militar. Eu andava e, sempre que podia, parava um pouquinho para sentar no chão e descansar. Nem pensei em desistir, em ir para a casa. Nosso lugar era ali, juntos. Eu era da Ação Popular, mas não era liderança. Ajudei a esconder muita gente perseguida e, uma vez, o Betinho que era líder da AP, saiu do Brasil no meu fusquinha 67. Não me arrependo de nada. Não acho que lutar por um novo mundo, com menos injustiças sociais seja coisa “só de jovem”. Hoje as lutas continuam e muita gente que era jovem naquela época continua lutando, inclusive nós, professores nas universidades. Ainda há muita coisa para se sonhar e mudar”. Lilia Lobo, professora da UFF (Pisicologia)

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L U T A R M A D A : a arte com os oprimidos

Mimil e Gas-PA, do grupo O Levante, do coletivo LUTARMADA.

Tudo começou com reuniões de amigos de vários grupos de hip hop, nos domingos de 2004, para tomar cerveja e escutar rap. Depois, vieram as exibições de filmes seguidas de debates, que acabaram inspirando a composição de uma série de novas músicas. Assim surgiu o Coletivo de Hip-

Hop LUTARMADA, definido por seu fundador, o cantor e compositor Gas-PA como um “grupo de grupos” que reúne Mestres de Cerimônia (MCs), Disc-Jóqueis (DJs), grafiteiros, B-boys e B-girls (dançarinos de break, a dança do hip-hop), que buscam, através do movimento, difundir uma

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mensagem transformadora voltada para a superação das desigualdades sociais. O próprio Gas-PA confessa que já começou essa história de cervejinha do fim de semana “com segundas intenções”, já que pretendia transformar os encontros em “algo mais sério”. Foi então que sugeriu que a cervejada seria antecedida por exibições de filmes, que sempre acabavam desaguando em debates. Os filmes escolhidos tinham geralmente relação com a realidade social miserável em que vive boa parte da população brasileira. Sob essa inspiração o grupo decidiu que seu objetivo principal seria fazer com que as pessoas enxergassem a realidade desigual em que vivem os pobres desse país. “A gente foi batalhando outras formas de fazer com que o nosso povo debatesse outras coisas além do que já debatia no cotidiano. Ninguém precisa parar de discutir qual é o próximo paredão do “Big Brother”, quem vai ser o campeão carioca, quem vai para a Libertadores, quem matou Odete Roitman... pode discutir isso tudo, mas vamos discutir também outras coisas que são mais importantes no nosso dia-a-dia. Foi assim que surgiu o LUTARMADA”, explica Gas-PA. Apesar da existência de grupos como o LUTARMADA, se engana quem pensa que a politização é regra geral no mundo do hip-hop. Segundo o rapper, as pessoas já há algum tempo ten-

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dem a separar cultura hip-hop de movimento hiphop. Algumas até negam sua existência como movimento. O LUTARMADA, pelo contrário, se define, inclusive, como um “coletivo de trabalho político”, diferente da imagem normalmente veiculada pela mídia. Talvez por isso, de acordo com ele, o hip-hop seja o movimento mais desmoralizado do planeta. “Nem o MST aqui no Brasil é tão desmoralizado quanto o hip-hop. Você não vê o MST na televisão com tanta freqüência como você vê o hip-hop e toda vez que você vê o hip-hop na TV ele está deformado. Cerca de 99% das vezes, o hip-hop vai ser associado a uma imagem de mulher ou de homem: se for mulher, quase nua; se for homem, com o tórax desnudo... muita bunda de fora, muito peito de fora para que as pessoas compreendam que o hip-hop é aquilo ali somente: um movimento acéfalo”, critica o compositor. Brotando do chão da periferia A indignação se transforma em poesia Que desvenda os olhos E destapa os ouvidos Pra fatos esquecidos ou que estavam escondidos Como a guerrilha do Araguaia no regime militar Pedaço da nossa história que a imprensa não pôde contar

(trechos do rap Rimas da libertação) A pergunta que fica é: se o hip-hop originalmente era comprometido com a transformação social, o que desencadeia a sua deformação? Para Gas-PA, a investida do capital contra o hip-hop foi muito pesada. A partir dos anos 90, o rap, que nascera como música combativa em reação à opressão

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vivenciada pelos negros nos Estados Unidos, passa a ser alvo da cooptação do capital. Segundo ele, esse processo já havia acontecido com uma série de outros ritmos musicais: jazz, rock, soul e funk, todos teriam sido absorvidos pela classe dominante branca e domesticados. Nos anos 90, foi a vez do rap. Hoje, o chamado “gangster rap” americano, definido por Gas-PA como de caráter auto-destrutivo, é majoritário no meio do hip-hop. Para ele, essa vertente prega o uso desenfreado de drogas e bebidas, a rivalidade entre pessoas de regiões diferentes, a ostentação e o machismo. “Nos clipes, há sempre carros e jóias caras, além de muita bebida. Nas letras das músicas, a mulher é tratada de maneira degradante, como mero objeto sexual.Certamente essa descrição é familiar a qualquer um que tenha MTV em casa”, diz Mimil, também integrante do grupo. Nadando contra a corrente nessa maré desfavorável, o LUTARMADA continua afirmando o hip-hop como um movimento e produzindo arte de caráter contestatório. Além do rap, o hip-hop engloba mais três modalidades de expressão artística: a dança (break), o DJ e o grafite. As quatro artes se juntaram com o objetivo de passar uma mensagem transformadora às pessoas e é nisso que o LUTARMADA acredita. “As artes envolvidas no hip-hop nasceram separadas, mas aí veio um DJ e propôs que tudo se juntasse porque o cacetete que batia no MC era o mesmo que batia no DJ, no grafiteiro; o hospital que atendia precariamente o MC atendia igualmente ao grafiteiro, o MC e o DJ. A união veio numa perspectiva de ajudar na conscientização das pessoas”, revela Gas-PA. Apesar das dificuldades, o LUTARMADA vai muito bem e cresceu bastante. Hoje reúne DJs,

MCs, grafiteiros e, atualmente, está formando B Boys e B Girls numa oficina em Costa Barros. “Joaninha, Perfumado, Belinha, Juliana, Raven, são nomes que prometem emergir nas rodas de break, em breve”, arrisca Gas-PA. Dentre os diversos grupos que fazem parte do LUTARMADA, está o grupo de rap O Levante, do qual GAS-PA é compositor e vocalista, ao lado do seu parceiro Mimil. O Levante, que já lançou o CD “Temeremos mais a miséria do que a morte” prepara agora um outro CD. As letras das músicas são explícitas em sua opção pela luta popular e pela revolução, sem qualquer vacilo. Em pelo menos quatro letras do primeiro CD, há várias referências ao capitão Carlos Lamarca, que aderiu à luta armada contra a Ditadura militar brasileira e foi assassinado pelo exército. Aliás, uma das várias tatuagens de Gas-PA é justamente o rosto de Lamarca em seu braço direito. “É preciso relembrar nossos verdadeiros heróis negligenciados pela história oficial”, afirma Gas-PA. Como o nome do coletivo suscita muita polêmica porque sugere que só através de uma revolução armada as desigualdades sociais seriam resolvidas, o compositor finaliza: “Eu não acredito que vamos acabar com a pobreza pedindo ajuda ou consciência aos ricos como muitos acham, inclusive alguns que se dizem artistas comprometidos com a transformação. O problema do Brasil não é a pobreza é a riqueza concentrada nas mãos de uns poucos que não vão largar o osso só na conversa. Nossa logomarca é uma pessoa lendo um livro. Uma puta arma o conhecimento e a educação, ou não? Mas, que cada um se rebele e se arme, como digo na música, com as armas que sabe usar.”

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Fotos: Stela Guedes

A crítica política no humor da Cia Emergência teatral Falar sobre a reestruturação produtiva do mundo do trabalho e os aumentos dos acidentes causados pela terceirização ou denunciar a máfia do mensalão e os assassinatos no campo em nosso país. Mas nada de texto pesado no velho “sindicalês”. Tudo tem de ser bonito, traduzido em linguagem simples e muito, mais muito bem humorado. Para quando? Para ontem, claro! Ou no máximo, para amanhã de manhã, na porta de alguma fábrica, no meio da rua, no hall de um banco ou no pátio da escola. O trabalho impossível é feito há 17 anos por um grupo de atores que transformou a pressa e a correria de quem os contrata no próprio nome da Cia: Emergência Teatral. Tudo começou em 1991, quando o Sindicato dos Bancários do Rio chamou o ator Marco Hamellin para interpretar o personagem Walter Mentira Salles, uma paródia com o dono do Unibanco, Walter Moreira Salles. A encenação, uma entrevista ao vivo com o personagem, fez tanto sucesso que Marco passou a ser chamado para todas as atividades do sindicato nos bancos. “A loucura era tanta que os caras me ligavam às 22h para fazer um esquete na manhã seguinte. Mais emergencial não podia ser. Chamei, na época, Dila Guerra e Anita Terrana para formar uma equipe. Nosso nome surgiu da realidade em que fomos construídos desde o início”, revela Marco, o mais antigo integrante do grupo, formado atualmente também pelos atores Fátima Patrício e Pedro Ozella. De lá para cá, o “Emergência” foi conquistando cada vez mais espaço e atualmente é conhecido por praticamente todos os movimentos sociais, estabelecendo uma relação extremamente fecunda. Por um lado, o grupo se alimenta da imensa diversidade de assuntos para criar personagens, figurinos, roteiros, encenações. Por outro, os movimentos abrem novos caminhos na sua própria atuação e relação com trabalhadores e trabalhadoras, esgarçam velhos preconceitos contra a arte

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Apresentação da Cia em manifestação no Centro do Rio.

e, principalmente, contra o humor. “Acho que uma das principais dificuldades é fazer com que a entidade que nos contrata entenda que o cachê pago não se refere apenas aos 15 minutos que em geral duram os esquetes, embora façamos apresentações de uma hora também. Existe um preparo árduo que é anterior e consiste em transformar um texto muitas vezes difícil e impenetrável em uma história divertida e clara. Há o desgaste físico, principalmente da voz, há a confecção de figurinos, tudo isso faz parte do trabalho”, conta Marco. Em tempos em que a busca frenética por patrocínios e financiamentos por vezes transforma a cara e o objetivo de muitos grupos de teatro, o “Emergência Teatral” também parece ir na contra-mão. Sem qualquer financiamento, o grupo conta apenas com o que recebe por trabalho encomendado e com doações que resultaram em um imenso acervo de figurinos e adereços. “O apoio mais constante vem do Sindicato dos Bancários, que nos abriga até hoje e que sempre apostou em nosso trabalho. Quando precisamos de coisas novas para um determinado pedido incluímos no preço e o próprio contratante paga”, diz Marco. O paradoxo é que mesmo sem patrocínio, o grupo vive de teatro e do seu teatro. “Todos nós vivemos da Cia. Com alguns bicos por fora, é claro. O que acontece é que

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a Cia. cresceu tanto que não trabalhamos mais só para entidades. Muitas empresas nos contratam para fazer esquetes sobre AIDS/DST, qualidade de vida e modernidade, alcoolismo, tabagismo, ergonomia e doenças de trabalho como Lesão por Esforço Repetitivo (LER), por exemplo. Claro que existem períodos em que as vacas ficam magras, mas são poucos, graças a Deus”, revela o ator.

Para representar: esquecer e lembrar Então, como criar personagens da noite para o dia e textos que atendam a demandas específicas e urgentes de categorias tão diferentes como professores, petroleiros, metalúrgicos, bancários ou movimentos de mulheres, negros e Sem Terra? O caminho, explica Marco, foi criar uma galeria de aproximadamente 72 personagens. “Os usamos de acordo com a demanda e adequação dos temas a serem abordados. O fato de termos um elenco fixo faz com que cada ator já saiba qual é e como fazer seu personagem em determinada situação. É como dizer que cada um já tem os seus bonecos e o que muda é o texto, que varia muito. Mas isso é treino”, afirma o ator, revelando também que cada integrante do grupo é capaz de decorar dez, doze páginas em meia hora, mas é capaz de esquecê-las mais rapidamente ainda. “É preciso deletar para caber mais coisa na memória”, conta. Mas há coisas que o grupo não esquece facilmente, entre elas, o momento considerado mais importante para a Cia. “Quando fizemos o esquete do massacre dos Sem Terra em Eldorado dos Carajás, em 1996. Foi a primeira vez que a Cia não fez humor. Era uma enorme bandeira brasileira toda ensangüentada que nós limpávamos enquanto reproduzíamos as notícias de jornal e depoimentos dos Sem Terra. Ufa, de chorar!”, lembra Marco.

Nessa relação de simbiose entre o movimento e o grupo, Marco avalia que a Cia aprendeu no desafio do improviso para um público que precisa ser conquistado rapidamente onde quer que armem seu “palco”. “Não é fácil encarar uma platéia que não pediu para assisti-lo e que, às vezes, nem quer ou não tem tempo e segurá-la durante vinte minutos numa praça cercada por passantes e o barulho pesado de trânsito. Esse fazer teatral precisa sempre de identificação com a causa da entidade que nos contrata, senão, não rola”, garante o ator para quem o balanço desses 17 anos é extremamente positivo. “Acho que ajudamos a organizar e a discutir o pensamento para que os trabalhadores reflitam mais criticamente e queremos continuar fazendo isso”. Além de manter as atividades no grupo, Marco Hamellin tem planos de lançar um livro quando a Cia completar 20 anos. A idéia é falar de um período do movimento sindical, através do teatro a partir das fotografias da Cia. Se o teatro vem ajudando a construir novas formas de relações entre as entidades e suas categorias, quem sabe possa também ajudar a contar essa história.

O ator Marco Hamellin, em um de seus muitos personagens

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Mídia e Política

Lucro e controle no carnaval carioca Marcelo Salles Jornalista

No terceiro dia de fevereiro deste ano, um domingo, teve início o carnaval carioca. Antes do primeiro desfile, o puxador da São Clemente pegou o microfone e dirigiu ao público uma saudação emocionada. E enquanto falava sobre a alegria de estar ali e coisas afins, a câmera da única emissora de televisão que transmitiu o evento captou uma imagem simplesmente impagável: um funcionário da TV Globo, devidamente identificado, pega o cantor pelo braço e tenta virá-lo de frente para a câmera, o que só é conseguido após alguns demorados e constrangedores segundos. Ato contínuo, ele puxa pelo braço os homens da equipe de apoio, que trazem na camisa a inscrição “Controle” sob o logotipo da Prefeitura do Rio. Nada mais significativo: era a Globo dizendo onde, quando e como o cantor popular (representante do povo) e o poder público deveriam se posicionar durante a maior festa popular do planeta. Dia seis de fevereiro, quarta-feira de cin-

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zas. Novamente as câmeras da TV Globo voltam suas atenções para a Praça da Apoteose. Dessa vez, o foco principal é a mesa da BeijaFlor de Nilópolis, que lidera a competição do início ao fim. Com o samba-enredo sobre Macapá, capital do Amapá, a escola da Baixada Fluminense arrancou o quinto título em seis anos – sendo que o anterior foi marcado por muitas suspeitas de corrupção, ameaças e chantagens contra os jurados (veja texto de apoio). Custa a acreditar que os locutores da Globo conseguiram a proeza de não mencionar o nome de Aniz Abrahão David, o Anísio, que estava no centro da mesa da Escola de Nilópolis e ao lado do cantor e compositor Neguinho da Beija-Flor, este sim citado à exaustão. Anísio não é um desconhecido para os locutores da emissora. E o foco da câmera, que insistia em exibir seu rosto, contrastou com o silêncio daqueles que deveriam informar ao público o que lhes era apresentado pela imagem. Trata-se de um indivíduo recém-libertado pela Operação Hurricane da Polícia Federal, que foi preso no ano passado junto com Ailton Guimarães Jor

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Foto: Mauricio Seidl

ge, o Capitão Guimarães, por envolvimento com caça-níqueis, jogo do bicho e as ramificações criminosas daí advindas, como geralmente tráfico de drogas e armas e grupos paramilitares. O bicheiro está solto por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello. Talvez essa vista grossa possa ser esclarecida pelo escritor Roméro Machado, que trabalhou durante dez anos na Fundação Roberto Marinho, onde alcançou a posição mais alta, a de controller. Romero também foi assessor especial do vice-presidente das Organizações Globo, José Bonifácio Sobrinho, o Boni. Em seu livro A Fundação Roberto Marinho, publicado em 1988, ele afirma que Boni possuía laços com a criminalidade: “Boni também era um dos que tinham notas enfiadas [frias] na Fundação, sem falar de sua porção ‘bandido’ com ligações com o submundo do crime (bicheiros, gângsteres, etc.) onde o grande ‘capo’ da criminalidade, Castor de Andrade, era simplesmente ‘irmãozinho’ do Boni”. De lá pra cá, o monopólio da Globo sobre o carnaval carioca aprofundou-se. De modo que um mês antes dos desfiles deste ano a Cidade do Samba já se assemelhava a um set de filmagens. Funcionários vestidos com uniforme da Rede Globo estendiam cabos e fios dos mais variados tipos e tamanhos, num emaranhado de fazer inveja à gravação de qualquer novela. O aparato contava também com três furgões para entradas ao vivo. “Qualquer outra TV que quiser entrar aqui tem que pedir autorização para a Globo, a administração (da Cidade do Samba) já manda direto perguntar para a Globo”, relatou um funcionário da Prefeitura.

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Desfile da Beija-Flor,em 2008

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A CPI do Carnaval Em abril de 2007, a Polícia Federal divulgou indícios de manipulação no resultado do desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial daquele ano. A partir daí, a Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro instalou CPI para investigar as denúncias. Durante 120 dias foram analisados documentos encaminhados pela PF, o material veiculado pela imprensa e todos os contratos e participações realizados pela Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), assim como o contrato firmado pela mesma Instituição e a Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro S.A (RIOTUR). A CPI ouviu os jurados, o atual Presidente da LIESA, Jorge Luiz Castanheira Alexandre, que ocupava o cargo de Vice-Presidente em 2007; o Presidente da LIESA no Carnaval de 2007, Ailton Guimarães Jorge, mais conhecido como Capitão Guimarães; o coordenador de jurados no Carnaval 2007, Júlio César Guimarães Sobreira; a secretária pessoal de Júlio César Guimarães Sobreira, Jacqueline da Conceição Silva; a secretária da Presidência da LIESA, Janice Regina Prist Teixeira, o Diretor-Presidente da RIOTUR, Luiz Felipe Bonilha, e o Presidente de Honra da Beija-Flor, Aniz Abrahão David, o Anísio, que presidia o Conselho Deliberativo da LIESA no Carnaval 2007 e também é conhecido. Durante os depoimentos, os vereadores constataram diversas contradições. A primeira refere-se à seleção de jurados. Alguns deles afirmaram ter enviado currículo para a LIESA, enquanto outros alegaram ter recebido convite ou indicação. Outra contradição ocorreu em relação à entrega do “Kit Jurado”, que contém o caderno das notas. Ocorre que os jurados ouvidos pela CPI disseram ter recebido o Kit nas instalações da LIESA, o que está em desacordo com o

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depoimento da secretária do Coordenador de Jurados, Julio César Guimarães Sobreira. Esta senhora, Jacqueline da Conceição Silva, a encarregada de entregar os kits, afirmou enviá-los através de motoboys para a residência dos jurados. Além disso, o relatório final da CPI, divulgado no final de fevereiro deste ano, afirma que uma das juradas mentiu e teve comportamento antiético. “A julgadora Cris Moura, em seus depoimentos, faltou com a verdade e deixou claro o seu envolvimento profissional com o coordenador de jurados, Júlio César Guimarães Sobreira, e até evidências de um envolvimento sentimental entre a jurada e o referido coordenador. Isso caracteriza, no mínimo, um comportamento antiético e de conflito de interesses, nocivo à lisura tão necessária à apuração do resultado do desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial”. Por fim, a CPI constata que o contrato realizado entre a Prefeitura do Rio e a LIESA é extremamente lesivo aos cofres públicos, que teriam prejuízos de aproximadamente R$ 100 milhões. Chamou a atenção dos vereadores o fato de que o contrato permita, ainda, que a LIESA negocie, direta e livremente, o milionário direito de imagem com as emissoras de televisão. “Nesta questão causam estranheza dois fatos: o de a LIESA realizar e assinar um contrato válido por cinco anos com a REDE GLOBO (até 2009), quando o contrato firmado entre a Liga e a Prefeitura é realizado anualmente; e o da coincidência do término deste contrato entre a LIESA e a REDE GLOBO e o término do mandato da atual administração municipal, considerando que o contrato entre a Prefeitura e a contratada para o Carnaval de 2009 é firmado ainda em 2008”, concluiu o relatório, que foi enviado para o Ministério Público estadual e para o Tribunal de Contas do Município.

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Filmes

Centralidade do trabalho: humanismo e barbárie em Le couperet (O Corte) M. Cristina Miranda da Silva Professora do CAp-UFRJ e presidente da ADUFRJ

Ao longo das últimas décadas, as alternativas burguesas para suplantar a crise do capitalismo têm incidido sobre o mundo do trabalho objetivando destruir todas as conquistas da classe trabalhadora ao longo do século XX. Mas não basta retirar direitos. Para levar adiante a ofensiva do capital precisam quebrar toda idéia de solidariedade de classe. Por isso, celebraram a idéia pós-moderna do fim da centralidade do trabalho, tanto como categoria analítica como forma de sociabilidade humana. Nesse quadro, homens e mulheres não mais se referenciariam nas suas classes sociais e suas lutas para alterar a realidade histórica. Esse é o pano de fundo do filme Le Couperet (O Corte) de Costa Gavras (2005) que, conforme já assinalou Ignácio Ramonet (2005), pode ser compreendido como “uma espécie de conto moral contemporâneo no sentido que lhe dava Voltaire, (...) uma situação amoral para melhor fazer ressurgir em nós o sentido moral”. O filme apresenta a vida de um executivo francês especializado no ramo do papel, Bruno Davert (José Garcia), de 41 anos. Desempregado havia 2 anos, sem ter conseguido retornar ao mercado de trabalho em sua área de atuação, decide eliminar, um a um, seus concorrentes potenciais. No filme, a empresa de papel reciclado – Papéis Kamer – sofre uma fusão, reduzindo seu pessoal e se deslocando para a Romênia - “onde se trabalha por 3 vezes menos”. Uma ‘reestruturação produtiva’, na qual os acionistas, antes da ‘deslocalização,’ às custas de centenas de demissões, ganham um bônus de 16%. O diretor grego apresenta um painel de um dos maiores problemas do

Bruno Davert (José Garcia) é um engenheiro especialista em papéis que perde seu emprego.

atual estágio do capitalismo: o crescente desemprego, suas conseqüências e reverberações na sociabilidade humana.

As novas relações de trabalho Para a pesquisadora Danièle Linhart (2006), é preciso que se compreenda o que mudou nas condições de inserção social/trabalho. Em contraposição à antiga ‘classe operária’ que se mobilizava e lutava coletivamente para obter conquistas trabalhistas, expressando seus valores de solidariedade e resistência de forma autônoma, na nova fase do capitalismo “as ‘novas’ relações de trabalho destróem a solidariedade, invadem o espaço privado, solapam relações com amigos e família e impõem uma ética que valoriza a submissão”.

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Em última instância, o filme de Gavras fala sobre esta mudança. Apresenta a vida dos trabalhadores sendo corroída em nome de uma racionalidade (?) econômica e dos valores veiculados por ela. De acordo com Linhart (2006), para impor a ideologia do individualismo e da concorrência, as direções de inúmeras empresas lançaramse numa “verdadeira batalha de identidade, com objetivo de racionalizar e formatar a subjetividade dos assalariados”, que passaram a internalizar as pressões, os interesses e os valores da empresa como seus. Dessa forma, fica mais difícil escapar da lógica de ‘rentabilidade’ das empresas a que estão submetidos os trabalhadores em sua ‘maneira de ser privada e pública’. Para Mattos (2007), frente a um quadro de transformações profundas na economia capitalista em escala internacional e do avanço generalizado das políticas neoliberais, ganha corpo entre alguns teóricos, a partir dos anos 80, a idéia de que essas mudanças poderiam indicar “o fim da centralidade do trabalho, no seu uso como categoria de análise ou na experiência de vida da maioria da população”. A reflexão suscitada pelo filme de Gavras, entretanto, nos envia ao caminho contrário do entendimento de que o trabalho estaria se tornando subjetivamente periférico e que não mais poderia conter o poder de determinar a vida social dos indivíduos e dos coletivos: “Tirando meu trabalho, me tiraram a vida”, diz Davert ao personagem terapeuta, ainda que este insistisse em que o protagonista deveria “tirar uma mensagem positiva do desemprego”. Gavras expõe as feridas abertas pelas teorias pós-modernas que entoam o discurso da perda da centralidade do trabalho na vida do homem.

vítima com a qual Davert dialoga sobre o desemprego e a crueza do avanço do capitalismo. Davert avaliava, entretanto, que precisava continuar – “O corte de funcionários é cíclico” – pois logo haveria novos concorrentes, embora tivesse consciência dos reais inimigos – “Enquanto isso as ações da empresa crescem”; “Eles [os acionistas] fazem milhares serem demitidos de empresas saudáveis, para dar mais aos gananciosos”. A lógica imposta pela reengenharia e deslocamento territorial das empresas forja sociabilidades incompatíveis com o ‘fazimento’ da classe objetivando a sua constituição como classe para si. Assim, a questão é desviada para os concorrentes: “Se eu matasse mil acionistas, não adiantaria nada; ou 10 diretores que demitiram mil funcionários... eles são meus inimigos, mas não é problema meu...”, conclui o personagem. A alternativa da eliminação dos concorrentes, nesse sentido, é a exacerbação dessa ruptura de classe e da própria sociabilidade do trabalho. “O Corte” é a lâmina da guilhotina (le couperet) que vem cindindo o vínculo dos trabalhadores enquanto indivíduos com a sua classe. Uma ruptura com a classe, por meio da navalha da reengenharia ou do “novo espírito do capitalismo”. As questões apresentadas por Gavras em seu personagem são complexas. “O que fazer?”, pergunta Davert. “Tornar os seres humanos o centro de tudo”, responde o interlocutor, “Mas é tarde demais”, conclui. Como no conto moral volteriano, o filme é, dialeticamente, uma exortação à recusa da barbárie capitalista. Todas as brechas para a afirmação do humano são alusivas às formas históricas da luta dos trabalhadores. O corte pode ser com o capitalismo?

O ‘Corte’ com o vínculo de ‘classe’ Sobre o estudo do processo de formação de classes, Mattos (2007) ressalta a definição de E. P.Thompson de que a ‘consciência’ de classe não é determinada a priori, mas a partir das ‘experiências’ de classe “encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais”. O desespero de Davert tem vínculo direto com a relação que estabelece com uma de suas vítimas – o concorrente que trabalhava como garçom à noite, primeira

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*Fontes: LINHART, Danièle. A caminho da desumanização. Le Monde Diplomatique-Brasil, março de 2006. Disponível em: http:// diplo.uol.com.br/2006-03,a1265 MATTOS, Marcelo Badaró. Classes sociais e luta de classes. Mimeo., 2007. RAMONET, Ignácio. Un Conte Amoral. Le Monde Diplomatique, março de 2005. Disponível em: http://www.mondediplomatique.fr/2005/03/RAMONET/11982

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Nossa Resenha

Juarez Duayer, Lukács e a Arquitetura João Leonardo Medeiros Professor da UFF Economia

João Leonardo Medeiros *

O livro Lukács e a Arquitetura, de Juarez Duayer, recentemente lançado pela Eduff, pode ser tomado, por uma leitura apressada de seu título, como uma obra voltada exclusivamente para o público interessado por Arquitetura e/ou pela obra do intelectual marxista G. Lukács. Não é preciso, contudo, avançar muitas páginas para reconhecer no texto indicações de fundamental relevância para os leitores que se interessam não apenas por aqueles dois temas específicos, mas também por arte, ética e filosofia. Quem, por outro lado, se lança à leitura esperando encontrar um livro sobre arte, ética e filosofia, vai descobrir que o título captura sinteticamente a sua temática central: a concepção lukácsiana da arquitetura.

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É precisamente porque tal concepção, como sempre em Lukács, tem o suporte de uma profunda análise da realidade social em seus momentos decisivos é que o escopo da obra se amplia, cativando um público mais extenso do que o inicialmente contido num projeto sobre a arquitetura. Uma das maiores virtudes de Duayer foi ceder humildemente o espaço de sua própria análise (que, diga-se de passagem, comparece em grandes e diversos momentos do texto) para resgatar a riquíssima crítica de Lukács da arquitetura e, por seu intermédio, da arte, da ética, da filosofia, da sociedade capitalista etc. Em se tratando do argumento do livro, o que talvez seja marcante é a coragem demonstrada por Duayer ao resgatar a polêmica tese de Lukács a respeito do desenvolvimento da arquitetura: a de que essa forma de arte atravessa uma crise de aproximadamente 300 anos (período correspondente, grosso modo, à emergência das relações sociais que culminaram no capitalismo), na qual a arte arquitetônica viuse impedida de expressar-se com autenticidade. Em lugar de diminuir a tese de Lukács, de considerá-la absurda e sair em busca de alguns insights pontuais – um caminho oportunista, mas sem dúvidas mais fácil para tratar da obra do autor –, Duayer enfatiza a tese de Lukács e a alça ao seu devido lugar: o de momento conclusivo de um sofisticado argumento teóricofilosófico. O ponto de partida do argumento de Lukács, e da recuperação de Duayer, é a tentativa de estabelecer a peculiaridade do reflexo estético arquitetônico. Três elementos se destacam neste particular. Em primeiro lugar, Lukács

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observa que a arquitetura é, como a música, mas de forma diferente, constituída por uma dupla mimese (forma de reproduzir a realidade no pensamento). Na primeira, uma mimese técnico-científica, a arquitetura captura e expressa a real constituição do mundo e as possibilidades nele contidas de desenvolvimento (no caso “espacial”); a segunda mimese, a mimese propriamente estética, nos termos de Lukács, “generaliza a missão social que vai amadurecendo nos indivíduos”, isto é, expressa a relação entre o ser humano individualizado num momento histórico particular e a sua constituição genérica. A segunda e a terceira peculiaridades da arquitetura a diferenciam de todas as demais formas de arte. Quanto à segunda peculiaridade, trata-se do fato de que, na arquitetura, o “novo” se manifesta não na categoria do “singular” (nas obras de arte em si), como nas outras formas de arte, mas na categoria do “particular” (nos estilos). É, portanto, o particular arquitetônico que se relaciona com o “universal” (a arte, seu desenvolvimento e sua relação com as relações sociais), e não o singular, por intermédio do particular. Por fim, Lukács observa que a arquitetura tem um caráter necessariamente “positivo”, não podendo, como as outras formas de arte, assumir uma negatividade crítica. Isso se deve ao fato de o reflexo arquitetônico pôr no mundo um espaço, o espaço especificamente humano, de criar realmente uma nova realidade, em lugar de simplesmente refleti-la. A positividade da arquitetura, devese observar, a torna incapaz de refletir o ser humano e sua condição histórica concreta. Reconhecida a peculiaridade da arquite-

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tura como forma de arte, Duayer procura em Lukács o fundamento da alegação de sua duradoura decadência. Dois elementos são decisivos aqui. O primeiro é a hostilidade do desenvolvimento das relações sociais capitalistas à elevada subjetividade necessária à construção da arte “autêntica” (e também da ciência e da filosofia): isto é, a arte que captura o que podemos denominar de sentimento genérico do ser humano. Lukács baseia-se aqui, explicitamente, na crítica ao caráter fetichista (estranhado) das relações sociais capitalistas, isto é, na objetivação de relações sociais como relações entre coisas. O segundo elemento é a degradação do particular (classes sociais, laços comunais etc.) em favor das singularidades atomísticas (individualismo) que a sociedade capitalista promove tanto no plano objetivo quanto no plano subjetivo. Como forma de arte e como forma de arte em que o novo se manifesta como particularidade, a arquitetura é diretamente afetada pelas relações sociais capitalistas por essas duas vias: pelo fetichismo que apresenta as relações sociais de forma invertida aos sujeitos, dificultando seu espelhamento crítico nas diferentes formas de consciência, e pela “degradação da particularidade”, como o podemos chamar o segundo processo. É preciso agora assinalar que a hostilidade do capitalismo “à arte e à poesia” não se manifesta da mesma maneira em todas as formas de arte. Determinadas formas de arte, como a música ou a literatura, podem atravessar momentos de grande florescimento artístico em meio à hostilidade provocada pelo capital justamente por reagir ao fundamento dessa hostili-

dade, o caráter fetichista da realidade, a sua desumanização imanente. A arquitetura, entretanto, se vê impedida de reagir ao mundo posto pelo capital por conta do caráter necessariamente positivo de seu reflexo artístico. Explica-se assim, finalmente, o fato de esta forma de arte atravessar um longo período de decadência. É claro que, mesmo na decadência, continua a haver arquitetura. Mas uma arquitetura cada vez mais instrumental, cada vez mais preocupada em oferecer à vivência social criada pelo capital o espaço adequado, cada vez mais se expressando no primeiro momento de sua mimese (tecnológico) do que no segundo (artístico). Trata-se, portanto, muito mais de construções do que propriamente arquitetura. De construções no plural porque reproduzem, salvo alterações de menor importância (cores, revestimentos, fachadas etc.), os estilos arquitetônicos (os particulares) postos no passado. Não é pouco resgatar uma análise da profundidade da leitura lukácsiana da arquitetura. Não é pouco defender com rara consistência argumentativa uma tese polêmica como a de que a arquitetura atravessa 300 anos de decadência. Não é pouco defender a posição de um autor como Lukács que, em sua crítica de arte, foi acusado (injustamente) de stalinista e de praticar um “classicismo”, “antimodernismo” e “antivanguardismo”. Juarez Duayer é bem sucedido em todas essas tarefas. É impossível, por isso, não resistir ao chavão de qualificar seu livro como uma referência obrigatória para quem se interessa seja por arquitetura, seja por Lukács, por arte, por estética.

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Histórias de Vida

Professora Aidyl de Carvalho Preis: uma vida dedicada à Universidade Federal Fluminense Foto: Stela Guedes

A história de vida da professora Aidyl certamente se confunde com a própria história da UFF. De 1953, quando inicia o curso de Geografia e História, até hoje como aposentada, tem sido uma vida inteira dedicada a esta universidade. Aidyl lecionou na UFF de 1957 a 1992 e exerceu nesse período um amplo leque de atribuições: chefe do Departamento de História, diretora do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, fundadora e coordenadora, por doze anos, do curso de pós-graduação em história, vice-reitora da universidade e, depois de aposentada, pró-reitora de extensão e presidente e vice-presidente da Associação dos Professores Inativos (ASPI-UFF), da qual é fundadora. Sua trajetória na UFF foi sempre marcada por uma luta intransigente em defesa da liberdade acadêmica, inclusive nos difíceis anos de chumbo da Ditadura Militar. É com muita honra que inauguramos nossa seção “Histórias de Vida” com essa lutadora.

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Brincando, Aidyl diz se sentir parte da “pré-história” da UFF que, embora fundada oficialmente em 1960, já funcionava com faculdades isoladas. Da recém-criada UFF faria parte, inclusive, a antiga faculdade de filosofia, ciências e letras de Niterói, onde Aidyl já lecionava História Antiga e Medieval desde 1957. Desse modo, ela assistiu a criação do Departamento de História da universidade, do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, mais conhecido como ICHF, e a fundação do curso de pós-graduação em história. Com uma invejável memória, a professora destacou alguns momentos mais importantes de sua trajetória. O dia 18 de fevereiro de 1963 é citado como especial porque participou da reunião realizada na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFF para instalação do Departamento de História do qual foi eleita secretária. Neste ano, os movimentos sociais brasileiros estão organizando várias atividades para marcar os 40 anos de 1968, considerado um dos mais duros da Ditadura Militar Brasileira. Aydil, que fazia pós-graduação em História, na USP, participou ativamente da luta contra a ditadura. Logo após o decreto do AI-5 (13/12/68), ela e todos os estudantes que moravam no Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), foram detidos. O episódio quase impediu seu casamento que ocorreria no dia 21 de dezembro daquela ano, Aydil também faz questão de registrar que a criação do curso de pósgraduação de História da UFF ocorreu em 1971, ainda no contexto do AI-5. “Naquele momento as ciências sociais viviam uma fase de perseguição política. O exílio de professores e a pri-

Ilustração feita e gentilmente cedida pelo professor Robert Preis, marido da professora Aydil

são de estudantes eram coisas que, infelizmente, faziam parte do cotidiano da universidade. Por isso, a criação do curso foi importante tanto pelo aspecto político como pelo acadêmico, uma vez que não havia no estado do Rio de Janeiro nenhum curso de pós-graduação em história”, afirma.

Driblando a censura “Muito difícil”: assim a Professora Aidyl classificou o trabalho na universidade durante a Ditadura Militar, já que “havia uma legislação

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que impedia praticamente o exercício acadêmico livre, seja exigindo dos professores que tivessem um ‘nada consta’ do setor de segurança, seja perseguindo alunos que eram considerados suspeitos.” Na época, além das disciplinas que lecionava na universidade, ela também se ocupou da direção do ICHF no período de 1970 a 1974. Segundo a professora, exercer função administrativa na universidade naquela época era algo extremamente complicado, porém mais complicado ainda era abrir mão dessa prerrogativa, deixando o caminho aberto para que alguém de fora cumprisse esse papel. “Ocupar cargos de direção nesse período levava as pessoas a uma interpretação ambígua, como se todos os que ocupassem esses postos fossem coniventes com aquela situação. Não era essa a nossa intenção. A nossa intenção era exercer nossa função de professor e a função administrativa de diretor buscando sempre defender os interesses de nossa categoria. Prova disso é que criamos um curso de pós-graduação em História, que não era obviamente algo que os militares fossem aplaudir. Conseguimos também o reconhecimento do curso de Ciências Sociais. Essas duas frentes foram feitos importantes”, lembra. Em sua gestão à frente do ICHF, destaca a divulgação do trabalho científico da universidade. Isso porque, naquela ocasião, uma portaria do MEC obrigava todas as universidades a manterem uma comissão que tinha como principal tarefa censurar a produção acadêmica. Aydil integrou a comissão que, de acordo com ela, rapidamente começou a fazer o oposto da censura, estimulando a produção acadêmica.

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Em síntese, ela caracteriza a época da Ditadura Militar como “um período muito difícil, marcado por uma vigilância contínua do serviço de segurança da universidade, com imposição de documentos que os professores deviam apresentar comprovando que eles não tinham nenhuma militância em partidos de esquerda, os alunos eram perseguidos... Havia um clima muito difícil, mas a gente, apesar desse clima, pode apresentar alguns pontos que foram muito importantes”, diz. Entre outras conquistas, ainda naquela fase, a professora destaca o reconhecimento do curso de Ciências Sociais, o que liberou a expedição de diplomas após vários anos de espera. Criou e coordenou, por 12 anos, o curso de pós-graduação em História da UFF que, desde aquela época, já havia obtido o conceito “A” na avaliação da CAPES. Aquela foi, para alguns exilados, a primeira oportunidade de trabalho, quando, em muitos outros lugares, a repressão ainda pesava. Já no período de reabertura política do país, Aidyl ainda encontrou tempo e disposição para exercer mais um cargo administrativo na universidade e foi vice-reitora de 1983 a 1987, durante a primeira gestão do professor José Raimundo Martins Romeu. De acordo com ela, essa experiência foi importante porque lhe permitiu ver a universidade por outro ângulo, gerando reflexões sobre o papel social que esta instituição deveria desempenhar. Nessa época, pôde ver as dificuldades decorrentes da ausência de políticas públicas que consagrassem a Educação como prioridade absoluta para o desenvolvimento do que considera cidadania plena.

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Aposentada e na luta Ela se aposentaria da universidade em 1992, portanto, em plena Era Collor, marcada por intensa perda de direitos e precarização da educação pública e do serviço público de maneira geral. Neste quadro, muitos professores foram pressionados a se aposentar de maneira precoce para evitar a perda de direitos adquiridos. Como ainda tinham muito a colaborar com a universidade, esses professores fundaram em 92, a Associação dos Professores Inativos da UFF (ASPI-UFF), um espaço para continuar na luta. Desde então, as principais frentes de atuação da ASPI-UFF têm sido a relação com a universidade, a melhoria da qualidade de vida dos professores aposentados e a defesa de seus direitos. Segundo a professora Aidyl, a ASPI-UFF considera muito importante a sua inserção na comunidade. Prova maior disso é que todos os cursos e atividades desenvolvidos pela associação são abertos à comunidade. Ela destaca também a participação da entidade em conselhos municipais, nos colegiados da universidade e até em instituições de nível nacional, como a Federação Nacional das Associações de Aposentados e Pensionistas das Instituições Federais de Ensino (FENAFE), e internacional, como a Organização dos Estados Americanos (OEA). Desde a aposentadoria, Aidyl fez parte de

todas as gestões da ASPI-UFF, seja como vice-presidente, presidente e, atualmente, como 1ª vicepresidente (mandato 2007-2009). Convicta da importância da organização dos aposentados e pensionistas, presidiu a Federação das Associações de Aposentados e Pensionistas das Instituições Federais de Ensino (FENAFE), sendo hoje presidente do seu Conselho Deliberativo. Também participa do Instituto MOSAP (Movimento dos Servidores Públicos). Entre 1996 e 1998 ela ainda arranjou tempo para ser pró-reitora de extensão. Hoje segue dedicando sua vida à universidade e diz porque: “Nós temos uma responsabilidade muito grande com as gerações futuras. Cada geração tem um compromisso em relação ao legado que vai deixar. Afinal, nós também tivemos um legado para chegarmos aonde chegamos. Então, nós também temos que dar uma contribuição, e temos que dar uma contribuição positiva para que a outra geração se beneficie. Eu acho que a minha geração foi uma geração de luta: lutou pela fundação da universidade, lutou contra a Ditadura, lutou pelo estabelecimento de uma academia qualificada... Isto a nossa geração, essa geração que hoje a ASPI representa, fez o seu papel. O que nós queremos é que outros no futuro possam também fazer. Nós, graças a Deus, fizemos nosso papel.”

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Eu sou uma preta

Poesia Foto: Stela Guedes

Eu sou uma preta, muito negra brilhante cintilante, faço verso com requinte para o deleite das pessoas que amam a vida e fazem das tripas, coração para prosseguir ampliando a estética do mundo, que sabe Deus ou “Olorum” pela perfeição de sua criação. Sou preta, muito negra, faço verso muito prosa, por sermos assim tão retintos, somos tratados a ferro e fogo, subvertemos a ordem social que vigora silenciosamente onde o preto quando chamado é somente para concordar.

Mãe fez roda no terreiro

A poetisa e escritora Ana Cruz nasceu em Minas Gerais e mora em Niterói. Jornalista, trabalhou durante algum tempo com assessoria na área de formação sindical, mas há muito percebeu que seu caminho teria a poesia como companheira e como instrumento de expressão e intervenção na luta contra as desigualdades sociais, o racismo, a discriminação contra a mulher. Inaugurando nosso espaço reservado à poesia, ela deixa por aqui uma amostra do que será seu quarto livro de poesia e prosa, em gestação e quase nascendo.

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Mãe fez uma roda no terreiro; sentamos, forrou no centro uma toalha chique, colocou flores, fotografia de bisavós, uma tigela de porcelana nigeriana e uma elegante e majestosa galinha d’angola. Tia avó entoou um canto com o que ainda restara do Yorubá em sua memória, pôs a mão no peito, e reverenciou a mesa. Prosseguiu o ritual, tocava as fotografias, a tigela, a cabeça da galinha d’angola e em seguida colocava uma mão sobre nossas cabeças e outra em nossos peitos, repetiu o gesto dezena de vezes. No final da cerimônia, avô disse todo garboso, revisitamos nossos antepassados, graças a Deus estamos consubstanciados.

Mãe preta Mãe preta, bonita, sorriso longo, completo, nem parece que passou por tantas. Deu um duro danado entre a roça e os bordados. Virou ao avesso só para não desbotar. Dizia, não com soberba: não esfrego chão dessas Senhoras, essa gente coloniza, se a pessoa não tiver orgulho de ser assim, Zulu fica domesticada, sem opinião, se autodeprecia, adoece. Então o anjo da guarda arrefece com tanta ausência de bem querer.

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Fotos: Luiz Fernando Nabuco

Diálogos com a Cidade

A vida e o trabalho tirados do mar Carolina Barreto da Silva Gaspar

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“Carregaram aqueles carrinhos que ficam lá em cima, carregaram tudo e disseram que não era para trabalhar mais ali. Então, a gente fica enrolado, ninguém sabe o que faz. Aí chegaram lá e ainda tiraram o tabuleiro de mexilhão, botaram lenha para cima” (Luzia).

Icaraí, Praia das Flechas, Boa Viagem. Pela manhã ou à tardinha, lá estão eles na praia, todos os dias. Banhistas? Surfistas? Não. Eles são homens e mulheres de todas as idades que sobrevivem da atividade extrativa nas praias da cidade, tirando do mar o seu sustento. Esses trabalhadores convivem com a indiferença e por vezes até mesmo hostilidade dos moradores do entorno, sendo constantemente molestados pela própria

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prefeitura. Inauguramos a seção “Diálogos com a cidade” ouvindo essas pessoas que raramente são ouvidas, apesar de terem muito a dizer. Famílias inteiras trabalham hoje catando mexilhões nas praias da cidade. Muitas dessas pessoas têm se dedicado a essa atividade há décadas e a maioria não tem qualquer outro trabalho. Vivem do mar e daquilo que ele traz. Diante disso, em dias de ressaca ou quan-

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do a água está escura, o jeito é “ficar em casa”, como disse o catador Rogério Tavares. Quando a natureza não colabora, não dá para trabalhar com o mexilhão. Por isso, em dias de águas calmas e límpidas, os catadores aproveitam para fazer uma reserva que seja capaz de garantir seu sustento nos dias em que as condições do mar não permitirem que eles trabalhem. Segundo a maioria entrevistada, apesar das dificuldades, o trabalho com o mexilhão consegue prover o sustento da família. O preço do quilo do marisco varia bastante segundo a época do ano e a própria demanda, oscilando entre R$ 2,50 e R$ 5,00. Isso significa que, tomando por base que o quilo de mexilhão seja vendido por uma média de R$ 4,00, cada catador precisa vender aproximadamente cem quilos do marisco por mês para ganhar quantia equivalente a um salário mínimo. Os principais compradores do mexilhão extraído na orla de Niterói são peixarias e restaurantes. O trabalho é muito cansativo, mas esse não chega a ser o maior problema enfrentado pelos trabalhadores. Na avaliação dos catadores, nada é pior do que o tratamento hostil que recebem de alguns moradores da orla, que freqüentemente reclamam da fumaça e da sujeira que a extração de marisco ocasiona nas praias. Quanto maior a expansão imobiliária no local, maior a tensão. Para o catador Rogério Tavares, contudo, seria muito simples resolver esse problema: “Se a prefeitura apoiasse, ajudasse a gente a conservar a área e fizesse um

Famílias inteiras trabalham no mar todos os dias

esquema para passar a cozinhar no gás e mandasse sacos de lixo, essa sujeira acabava, não ficava casca aqui. A prefeitura precisa colaborar. Aí não teria fumaça, porque tudo seria cozido no gás. As cascas seriam ensacadas e colo-

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cadas para cima. Essa seria a resolução, porque isso aqui é uma questão social. Se eles quiserem tirar a gente daqui, a gente não vai querer sair. Aí, vai dar problema”, diz. Enquanto apurávamos essa matéria, mais precisamente no dia 28 de fevereiro, a prefeitura fez nova incursão à praia, na altura da Pedra de Itapuca, para expulsar de lá os trabalhadores com quem havíamos conversado no dia anterior. Quando voltamos para nossa segunda visita, encontramos poucos catadores de mexilhão trabalhando na Pedra de Itapuca. A maioria preferiu ficar um tempo em casa, certamente por medo de nova aparição da repressão no local. Conversando com as poucas pessoas que estavam trabalhando lá, ouvimos o relato do que havia sido a “visita” da prefeitura: expulsão sumária, apreensão de material de trabalho e mercadorias, nenhuma satisfação sobre o destino do que estava sendo apreendido. “Carregaram aqueles carrinhos que ficam lá em cima, carregaram tudo e disseram que não era para trabalhar mais ali. Então, a gente fica enrolado, ninguém sabe o que faz. Aí chegaram lá e ainda tiraram o tabuleiro de mexilhão, botaram lenha para cima”, disse a catadora Luzia. A revolta também era evidente no depoimento de outra catadora identificada apenas por Rosêngela... “Por que eles vêm aqui com polícia? Aqui não tem vagabundo, não tem marginal... Para quê polícia? Polícia para quê? Eu fiquei revol-

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tada. Trabalhamos aqui honestamente. Vivemos do mar, que foi a criação que Deus deixou. Eu vou fazer 49 anos, ele tem 54. Aonde a gente vai arrumar mais serviço nessa idade? Infelizmente, no Brasil em que nós vivemos, quando os brasileiros atingem uma certa idade, eles não dão mais serviço. É melhor trabalhar honestamente do que roubar. É por isso que muitos roubam, porque tem que sobreviver. Aí vêm com polícia, vai catando tudo, vai quebrando tudo... não é assim não! As autoridades não fazem nada por nós, não dão emprego. Tem dinheiro para Pan, tem dinheiro para Copa do Mundo, só não tem para dar emprego. A gente tem que sobreviver”, lamentava-se Rosângela.

“Nós somos trabalhadores” Apesar das reivindicações dos catadores, a prefeitura de Niterói nunca esboçou qualquer intenção de apoiar esse tipo de atividade. Ao invés disso, tem adotado uma postura sistematicamente repressiva, o que não chega a ser uma novidade no que tange ao tratamento de questões sociais no Brasil. Assim como os camelôs, os catadores de mexilhão são freqüentemente perseguidos. “A prefeitura já expulsou a gente daqui algumas vezes, mas voltamos porque precisamos trabalhar, temos que ganhar dinheiro... senão, como é que a gente vai sobreviver? Tem vezes que a prefei-

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tura pega nossos instrumentos de trabalho e tem vezes que não”, contou Renato Nunes Pessoa. “Os órgãos competentes olham a gente com um olhar discriminativo, não como um trabalho, uma produção na área de Niterói. O dinheiro que a gente faz aqui fica aqui em Niterói. A gente não leva esse dinheiro para outro município. A gente gasta esse dinheiro aqui. A gente produz aqui, gera recurso que também fica para o município. Nós somos trabalhadores. Nós não somos ladrões, nós não somos marginais. Conforme o crescimento da cidade, muitas pessoas que não moravam em Niterói estão vindo para cá, também por causa da violência no Rio. Você pode ver que tem mais de 10 ou 15 prédios novos construídos em Icaraí. O sistema de esgoto eles não vêem. O crescimento desordenado eles não vêem. Eles só querem construir. As grandes empresas só querem construir. Agora, nós que trabalhamos e vivemos aqui há anos, dependendo dessa situação, eles querem que a gente saia daqui. Só gostaria que eles nos vissem com olhos diferentes. Para a gente, eles vêem a gente como vagabundos. Não vêem como trabalhadores”, disse outro catador que também preferiu se identificar apenas por Francisco.

Na foto, os catadores Rosângela e Renato

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Hiperfocal

Meu ambiente: a rua dores do impasse do mundo. E desperta nos homens o desejo de destruir este impasse. Dirijo minha energia à perseguição deste objetivo: captar a aventura de cada um, desvendando, através da imagem, seus pequenos mistérios. Gosto de ter absoluta visão da rua, meu ambiente, lugar onde os homens lançam desejos e sofrem destinos. Na rua, me esforço para atender ao mundo, e reproduzir o meio físico através da minha maneira particular de olhar a vida. Nesse esforço de desvendar a alma das coisas, sou um profissional insatisfeito. Minhas fotografias são tristes. Sou fotógrafo que anda devagar com sua máquina. A ênfase que coloquei no meu trabalho, cristalizando o meu momento numa imagem, não contribuiu para trazer alívio às minhas aflições. O mais importante é o que deixei de fazer e o que deixarei de realizar vida afora. (Evandro Teixeira)

...Sou um homem manejando uma câmera. Quando bem operada, é um fósforo aceso na escuridão. Ilumina fatos nem sempre muito compreensíveis. Oferece lampejos, revela

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É com honra, orgulho e gratidão que inauguramos esse espaço dedicado à fotografia com Evandro Teixeira, um mestre do fotojornalismo. Agora é com os fotógrafos e fotógrafas que virão...

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Repressão às manifestações contra a Ditadura Militar. Rio, 1968.

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Tomada do Forte de Copacabana, Rio - 1964

Repressão às manifestações contra a Ditadura Militar. Rio, 1968.

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