Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano I - nº 2
2 Violência, Mídia e Criminalização da Pobreza
ADUFF
SSind
Seção sindical do Andes Filiado à CONLUTAS
SUMÁRIO
Associação dos Docentes da UFF
“Cantamos porque chove sobre os sulcos... e somos militantes desta vida. E porque não podemos e nem queremos deixar que a canção se torne cinzas.” (Mário Benedetti) Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ. CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811. Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo. PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco. ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto. REVISÃO: Isabel Correia. Conselho Editorial: Marina Barbosa Pinto, Suenya Santos da Cruz, Gelta Theresinha Ramos Xavier, Juarez Torres Duayer, Elisabeth Carla Barbosa, Eliane Arenas Mora, Paulo Cresciulo de Almeida, Larissa Dahmer Pereira, Claudia March, Julio Carlos Figueiredo, José Raphael Bokehi, Ângela R.M.B Tamberlini, Eunice Treim, Catharina Marinho Meirelles. Colaboraram nesta edição, além de todos os que assinam textos e fotos: Roberto Leher, Marcelo Badaró Mattos, Juliana Caetano, Isabel Correia e Luiz Fernando Nabuco. Gestão: Autônoma, Democrática e de Luta
Editorial ........................................................................................ pág. 2 Contra Corrente Guetos e antiguetos: a nova anatomia da pobreza urbana ..................................... pág. 4 Amauta Criminalização dos movimentos sociais na América Latina ................................... pág. 10 Pública, Gratuita e de Qualidade Desvio do caráter da Universidade: administração mercantil fere a democracia e deturpa essência da instituição ............................................................ pág. 14 “Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá” ............................... pág. 19 Estação Terminal ............................................................................... pág. 25 Lima Barreto: um intelectual militante ................................................... pág. 26 De Capa Violência, mídia e criminalização da pobreza ............................................. Entrevista com Cel. Mário Sérgio Duarte, Presidente do ISP ............................. Entrevista com Cecília Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais ............................................... Entrevista com José Damião de Lima Trindade, Procurador do Estado de São Paulo .....................................................
pág. 28 pág. 30 pág. 36 pág. 46
Mídia e política Comunicação e controle social .............................................................. pág. 53 Mais do mesmo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro ............................... pág. 56 Filmes Algumas reflexões a partir do filme “Quanto vale ou é por quilo?” .......................... pág. 58 Nossa resenha Planeta favela ................................................................................... pág. 61 Histórias de Vida Professor Ronaldo Coutinho ................................................................. pág. 66 Poesia Deley de Acari .................................................................................. pág. 69 Diálogos com a cidade Aldeia Imbuhy: clima de tensão com o Exército há mais de uma década ........................................................... pág. 70 ADUFF: 30 anos de luta! ..................................................................... pág. 76 Hiperfocal João Ripper .................................................................................... pág. 79
Editorial
De Maio a Dezembro 40 anos, depois? Em maio deste ano a ADUFF lançou o primeiro número de sua revista Classe. 40 anos depois do maio de 1968 francês refletíamos sobre como nossas expectativas de mudar o mundo se apresentavam (e se apresentam ainda) na produção artística. Arte e política – há arte e cultura não-política? – era o tema central daquele primeiro número. Arte e política estarão sempre presentes nas páginas de Classe, como nas páginas seguintes, através das músicas de BNegão, dos poemas de Deley, das fotos de Ripper, das peças e filmes aqui comentados. Mas é em dezembro que trazemos a público este segundo número de Classe. Por isso, 40 anos depois do AI-5 e 60 anos após a assinatura da Declaração dos Direitos Humanos indagamos sobre Violência, Mídia e criminalização da pobreza. Mais uma criança de favela assassinada. Dessa vez, o menino Matheus Rodrigues Carvalho, de 8 anos, morto por um policial na manhã de 4 de dezembro, ao sair de sua casa, na Maré, para comprar pão. Questionamos então: que democracia é essa que afirma ter superado a ditadura e seu AI-5 mas mantém de pé, e mais forte do que nunca, a institucionalização da violência contra os cidadãos que constituía o cerne daquele Ato Institucional?
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Sim, os alvos hoje não são os mesmos, os “subversivos” de 1968 já não estão aí (ou estão, só que agora do outro lado dos gabinetes – e das baionetas). Mas, isso ajuda a desvelar as máscaras: o inimigo continua sendo criminalizado, mas o inimigo tem várias faces, numa só, de Classe. O inimigo, criminalizado, é o(a) trabalhador(a), especialmente o(a) trabalhador(a) empobrecido(a), precarizado(a), Menino morto pela polícia no Complex desempregado(a), negro(a), favelado(a). Porque assim como na fase inicial de implantação do capitalismo o grau violentíssimo de expropriação a que se submeteu a maioria da população, para se criar uma massa de homens e mulheres “livres como um pássaro” para que vendessem sua força de trabalho por um salário, exigiu a criação de corpos profissionalizados de “impositores de regras” e “mantenedores da ordem” – a polícia – a extrema violência do capitalismo contemporâneo, nessa sua contraditória e necessária fúria para superar a(s) sua(s) crise(s), que impõem novas expropriações
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Foto: Naldinho Lourenço/Imagens do Povo
xo da Maré quando ia comprar pão, no dia 4 de dezembro.
(entre elas a de direitos) aos(às) trabalhadores(as), exige o reforço da repressão policial, da criminalização de comportamentos, da jurisdicialização dos conflitos. Criminalização da pobreza é como chamam mais corriqueiramente esse processo. E se esses mesmos trabalhadores ousam ainda se organizar e, eventualmente, mobilizar-se para exigir, a receita não poderia ser outra: criminalização dos movimentos e organizações da Classe. Esse não é um fenômeno brasileiro: Loïc Wacquant, Claudia Koroll e Mike Davis (resenhado por
Maurício Vieira) demonstram a escala planetária (como planetário é o violento avanço expropriativo e exploratório do capital) do fenômeno da implantação de um verdadeiro Estado policial-penal cujo objetivo é controlar as populações trabalhadoras e os territórios que habitam. Todos sabemos, entretanto, pela simples leitura dos relatórios das organizações internacionais envolvidas na questão dos direitos humanos, que o Brasil não é campeão apenas de futebol, mas que a violência de Estado contra os cidadãos assume aqui proporções absurdas. Neste número de Classe, através de três entrevistas, damos voz ao coronel Mário Sérgio Duarte, ex-comandante do BOPE e atual presidente do Instituto de Segurança Pública, de forma a deixar evidente as bases da atual política de “segurança” pública. Ouvimos Cecília Coimbra, professora aposentada da UFF e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, para entender como a ditadura militar ainda vive na ditadura do mercado. E José Damião Trindade, ex-presidente da Associação de Procuradores do Estado de São Paulo, que nos deu uma aula sobre a história dos direitos humanos. Ao fim da leitura dessas entrevistas assumimos a escolha por Prometeu, que nos apresenta Damião e diante de um capitalismo regressivo em que “não há mais nenhuma esperança de melhoria social significativa” escolhemos lutar pelos direitos humanos da única e necessária forma em que ela pode ser feita hoje, como uma luta de Classe(s), contra a ordem do capital. E com Cecília afirmamos que como “toda identidade é conservadora se não lutar contra o capital”, nossa identidade é anti-capitalista, pela humanidade livre, é identidade de Classe.
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Contra Corrente
GUETOS E ANTIGUETOS ANATOMIA DA NOVA POBREZA URBANA Entrevista com Loïc Wacquant Realizada por Caroline Keve para a Debate (julho de 2007)
Nascido no sul da França em 1960, Loïc Wacquant é professor da Universidade da CalifórniaBerkeley e Pesquisador do Centro de Sociologia Européia – Paris. Autor de numerosos trabalhos sobre desigualdade urbana, dominação etno-racial, Estado penal, corpos e teoria social, traduzido em mais de uma dezena de idiomas. Entre seus livros, encontram-se, em português, “As prisões da miséria” (Jorge Zahar, 2001), “Os condenados da cidade. Estudos sobre marginalidade avançada” (Revan, 2001) “Corpo e alma” (Relume-Dumara, 2002), “Punir os Pobres” (Revan, 2007), “Repensar os Estados Unidos” (Papirus, 2003), “O mistério do mistério” (Revan, 2005), “Um convite à sociologia reflexiva” (Relume-Dumara, 2006) e “As duas faces do Gueto” (Boitempo Editorial, 2008).
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Em “Os condenados da cidade”, você traça uma comparação metodológica entre a evolução do gueto negro nos Estados Unidos e da periferia francesa operária, o banlieue¹, durante as últimas três décadas. Por que você se aprofundou nessa comparação e o que ela revela sobre a mutante cara da pobreza na cidade? Loïc Wacquant: Esse livro nasceu da confluência de dois choques, o primeiro pessoal e o segundo, político. O choque pessoal foi o descobrimento em primeira mão do gueto negro estadunidense – ou do que resta dele – quando me mudei para Chicago e vivi no South Side por seis anos. Vindo da França, me chamou à atenção a intensidade da desolação urbana, as privações sociais e a violência das ruas concentrada nessa terra non grata que era univer-
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salmente temida, evitada e denegrida pelo mundo exterior, inclusive por muitos acadêmicos. O choque político foi a difusão de um pânico moral sobre a “guetização” na França e em muitas partes da Europa Ocidental. Na década de 90, a mídia, os políticos e até alguns pesquisadores acreditavam que os bairros operários das periferias das cidades européias estavam se transformando em “guetos” ao estilo daqueles dos EUA. Desse modo, o debate público e as políticas de Estado se reorientaram para lutar contra o crescimento disso que chamavam de gueto. Baseavam-se na premissa de que a pobreza urbana estava sendo “americanizada”, ou seja, marcada por uma divisão étnica cada vez mais profunda, por uma crescente segregação e pela criminalidade desenfreada. Juntando esses dois choques, chegamos à pergunta que provocou uma década de pesquisa: o gueto dos EUA e os distritos de classe baixa da Europa convergem? Se não, o que está acontecendo com eles? O que provoca sua transformação? Para responder a essas perguntas, juntei dados estatísticos e observações de trabalho de campo de uma seção dilapidada do “cinturão negro” de Chicago e do subúrbio parisiense desindustrializado, o “cinturão vermelho”. Também reconstruí a trajetória histórica desses bairros – porque não se pode entender seu declínio na década de 90 sem considerar o que sucedeu no século XX, marcado pelo auge e pela desaparição da industrialização fordista, assim como do Estado de bem-estar social keynesiano. Então, o que aconteceu no cinturão negro americano e no cinturão vermelho francês? Eles, de fato, convergem? Do lado americano, mostro que depois das re-
voltas da década de 60 o gueto negro implodiu, entrou em colapso por si mesmo devido à simultânea contração da economia de mercado e retirada do Estado social. O resultado foi uma nova forma urbana que denomino “hipergueto” e que se caracteriza por uma dupla exclusão, baseada na raça e na classe, e reforçada por uma política de retirada do Estado de bem-estar e de abandono urbano. Assim, quando falamos do gueto estadunidense, devemos contextualizá-lo historicamente, sem confundir o “gueto comunal” da década de 50 com sua descendência do final do século. O gueto comunal era um mundo paralelo, uma “cidade negra dentro da branca”, como os sociólogos afro-americanos St. Clair Drake e Orase Cayton o chamam na sua obra-livro Black Metropolis. Esse gueto funcionava como uma reserva de trabalho não qualificado para as fábricas. Essa reserva fazia parte de uma densa rede de organizações, que oferecia proteção contra a dominação branca. Com a desindustrialização e a mudança para o capitalismo financeiro, o hipergueto perde sua função econômica e se desprende das organizações comunais, que, por sua vez, são substituídas por instituições estatais de controle social. Este é claramente um instrumento de exclusão, um mero receptáculo para as estigmatizadas e superficiais frações do proletariado negro: os desempregados, os beneficiários da assistência social, os criminosos e os participantes da expansiva economia informal. Do lado francês, a percepção dominante politicamente e nos meios de comunicação é fatalmente equivocada: os municípios de classe baixa passaram por um processo de empobrecimento e deteriorização gradual que os afastou do padrão de gueto.
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Um gueto é um território encravado noutro, etnicamente homogêneo, que abarca todos os membros de uma categoria subordinada e suas instituições e também previne sua expansão para a cidade. Atualmente, os banlieues, em deterioração, são muito heterogêneos e se tornaram mais diversificados em termos de composição étnica nas três últimas décadas; tipicamente, contêm uma maioria de cidadãos franceses e imigrantes de cerca de duas ou três dezenas de nacionalidades. A crescente presença desses migrantes pós-coloniais é o resultado de uma diminuição da separação espacial: eles costumavam ter seu acesso negado às habitações públicas e, em conseqüência, mais se segregavam. Os residentes que ascendem nessa estrutura de classe, seja pela escolarização, pelo mercado de trabalho ou por empreendimentos, rapidamente abandonam essas áreas degradadas. Os banlieues do cinturão vermelho também perderam a maioria das instituições locais ligadas ao Partido Comunista (ao qual devem seu nome), que costumava organizar a vida ao redor das fábricas, os sindicatos e o próprio bairro, e dava às pessoas um orgulho coletivo da sua classe e da sua cidade. Sua heterogeneidade étnica, as fronteiras porosas, a decrescente densidade institucional e a incapacidade de criar uma identidade cultural comum fazem com que essas áreas sejam o oposto dos guetos: são antiguetos. Isto vai contra a imagem pintada pela mídia e pelos políticos franceses (de direita e de esquerda), assim como dos ativistas mobilizados em torno dos temas imigratórios, raciais e de cidadania. Esta é uma boa ilustração, uma contribuição cha-
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ve da sociologia ao debate civil: através da conceituação precisa e da observação sistemática, vêem-se as grandes brechas – que nesse caso configuram uma total contradição entre a percepção pública e a realidade social. Os imigrantes e seus filhos se Protesto contra a morte de três jovens do Morro da Pr mesclaram mais a traficantes do Morro de São Carlos. Foto: Marcelo Sa nas cidades francesas, não se separaram; por seus perfis sociais e oportunidades, se parecem mais com os nativos da França, deixaram de ser diferentes. Dispersaramse no espaço, em vez de se concentrarem. Precisamente porque agora estão mais “integrados” na vida nacional dominante e competem pelos bens coletivos, eles são vistos como uma ameaça, e a xenofobia aparece entre os segmentos nativos da classe trabalhadora, ameaçada pela instabilidade social agravada. As periferias urbanas na Europa Ocidental não sofrem de “guetização”, mas da dissolução da classe trabalhadora tradicional como resultado da normalização do desemprego massivo e da expansão de trabalhos instáveis a médio prazo, além de serem difamadas no debate público. Objetivamente, o discurso da “guetização” faz parte da demonização simbólica dos distritos de classe baixa, que os debilita socialmente e os marginaliza politicamente.
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“Os Condenados” demonstra que a tese da “convergência” entre Europa e América dentro do modelo do gueto negro é empiricamente incorreta e enganosa em termos políticos. Em seguida, revela a “emergência” de um novo regime rovidência, entregues por militares de pobreza urbaalles na em ambos os lados do Atlântico, distinto do regime da metade do século passado, que estava ancorado no trabalho industrial estável e na rede de segurança do Estado keynesiano. A atual marginalidade avançada se alimenta da fragmentação do trabalho assalariado, da reorientação das políticas de Estado, contrária à proteção social e a favor da compulsão do mercado, e do generalizado ressurgimento da desigualdade – isto é, marginalidade produzida pela revolução neoliberal. Isso significa que tal marginalidade não está ficando para trás, mas que ainda vem muito pela frente. Está destinada a persistir e a crescer enquanto os governos implementarem políticas de desregulação econômica e de “acomodação” dos bens públicos. Mas esta nova realidade social, engendrada pela escassez e instabilidade do trabalho e pelo volúvel papel do Estado, é ofuscada pelo “etnizado” idioma da imigração, da discrimi-
nação e da “diversidade”. Tratam-se de temas reais, sem dúvida, mas não são a força motriz da marginalização da periferia urbana européia. Mais do que isso, não servem para esconder a nova questão social do trabalho inseguro e suas conseqüências para a formação de um novo proletariado urbano do século XXI. No livro, você ressalta a indignidade coletiva sentida por aquela gente imobilizada no hipergueto e no desindustrializado banlieue. Os moradores do cinturão negro perderam o orgulho racial e seus correlatos do cinturão vermelho perderam o orgulho de classe. Você sustenta que a “estigmatização territorial” é uma nova dimensão da marginalidade urbana, tanto nos EUA, como na Europa, no amanhecer de um novo século. De fato, uma das características distintivas da marginalidade avançada é a propagação do estigma espacial, que desdenha das pessoas vindas dos bairros relegados. Em toda sociedade avançada, determinados distritos ou bairros urbanos se tornaram símbolos nacionais e referenciais como portadores de todos os males da cidade. A crescente difamação dos distritos de classe mais baixa das metrópoles é uma conseqüência direta do enfraquecimento dos afro-americanos no sistema político estadunidense e da classe trabalhadora no cenário político europeu. Quando um distrito é amplamente visto como um “ninho de criminosos”, onde só os detritos da sociedade podem tolerar viver, quando seu nome, para a imprensa e para a política, é sinônimo de vício e violência, o lugar é infectado e essa condição se sobrepõe ao estigma da pobreza e etnicida-
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de (que significa raça, nos EUA, e origem colonial na Europa). Aqui, me remeto às teorias de Irving Goffman e de meu mestre Pierre Bourdieu para ressaltar como a desgraça pública que afeta essas áreas desvaloriza o sentido de ser de seus residentes e corrói seus laços sociais. Em resposta à difamação espacial, os residentes recorrem a estratégias de distanciamento mútuo e denegrimento uns dos outros, se voltam para a esfera privada da família, saem do bairro (quando têm opção). Essas práticas de auto-proteção simbólica disparam um mecanismo de realização pessoal, no qual a reação às representações negativas do lugar acabam por produzir a mesma anomia cultural e pulverização social que tais representações acusam existir. A estigmatização territorial não só debilita a capacidade de identificação e ação coletiva das famílias de classe baixa, como também desencadeia prejuízos, burocracias e discriminação por parte de quem se encontra no mundo exterior, como os funcionários públicos, por exemplo. Os jovens de La Courneuve, o estigmatizado cinturão vermelho parisiense que estudei, se queixam constantemente de serem obrigados a esconder seu endereço quando se candidatam a um emprego, começam algum relacionamento ou freqüentam a universidade, para evitar reações negativas de medo ou rechaço. A polícia, considerando que os jovens vêm desse gueto freqüentemente visto como temível, já “infectados”, é particularmente suscetível a tratá-los com maior severidade. O estigma territorial é um obstáculo a mais no caminho da integração sócioeconômica e da participação civil. Note-se que o mesmo fenômeno se observa na América Latina entre os habitantes das malreputadas favelas do Brasil, das poblaciones do
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Chile e das villas miréria da Argentina. Suspeito que os residentes da vila do Bajo Flores, La Cava ou da vila do Retiro, em Buenos Aires, sabem muito bem o que é a “discriminação domiciliar”. Esse estigma territorial se anexa aos distritos de classe baixa da cidade argentina pela mesma razão que se anexa ao hipergueto dos EUA e ao antigueto da Europa: a concentração de desempregados, de sem-teto, de imigrantes sem documentos, assim como dos mais pobres segmentos do novo proletariado urbano, empregado na desregulada economia de serviços. Outro motivo é que a tendência das elites de Estado é usar esses espaços como “pára-raios” para evitar o enfrentamento dos problemas cuja raiz se encontra nas transformações do trabalho. Esse estigma territorial, por acaso, facilita um giro ao Estado penal e à implementação de políticas de tolerância zero, cuja expansão mundial você analisou em seu livro anterior, As prisões da miséria? A contaminação espacial oferece ao Estado maior amplitude para justificar políticas agressivas de controle da nova marginalidade, que podem assumir a forma de dispersão ou contenção, ou, melhor ainda, uma combinação de ambos os enfoques. A dispersão aponta para dispersar os pobres no espaço e recuperar os territórios que eles tradicionalmente ocuparam, sob o pretexto de seus bairros serem áreas demonizadas, às quais “não se pode chegar” e que simplesmente não têm salvação. Atualmente, isso funciona a partir da demolição massiva de moradias públicas no coração dos guetos das metrópoles estadunidenses e nas empobrecidas periferias de muitas
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cidades européias. Milhares de habitações são destruídas no meio da noite, e seus ocupantes são espalhados por zonas adjacentes ou por distritos pobres nas cercanias, criando a aparência de que “o problema foi resolvido”. Mas dispersar os pobres só os torna menos visíveis e menos capazes de intervenção politicamente; não lhes oferecem trabalho, nem tampouco um status social viável. A segunda técnica utilizada para lidar com o avanço da marginalização tem enfoque oposto: busca concentrar e conter as desordens geradas pela fragmentação do trabalho. O que faz é jogar uma rede policial cerrada ao redor dos bairros relegados e expandir os aprisionamentos e cárceres, para enviar os elementos mais rebeldes para um exílio crônico. Esta contenção punitiva é normalmente acompanhada, na frente social, por medidas destinadas a forçar o encaixe dos receptores de assistência pública na desregulada economia de serviços, em nome do “workfare”² (falo da invenção dessas novas políticas de pobreza nos EUA, casadas com o restritivo sistema de “workfare” e o expansivo “prisionfare” no meu livro seguinte, “Castigar os pobres”). Mas a política “pulso firme” ou “tolerância zero” é também de autoderrota. Enviar os desempregados, os empregados marginalizados e os pequenos criminosos para a cadeia os torna ainda menos empregáveis e mais desestabiliza os bairros e as famílias de classe baixa. Acionar a polícia, o judiciário e os cárceres para terminar com a marginalidade não só é enormemente custoso e ineficiente, mas também agrava o mal que se quer curar. Assim, voltamos a entrar no círculo vicioso há muito tempo delimitado por Michel Foucault: o fracasso do
aprisionamento como resolução para o problema da marginalidade serve para justificar a contínua expansão da mesma. Além do mais, na Argentina e em seus países vizinhos, que durante o século XX atravessaram décadas de governos autoritários, a própria polícia é um vetor de violência e o aparato judicial abunda em desigualdade. Assim, estender o Estado penal à correlação de classes e lugares equivale a restabelecer uma ditadura sobre as frações marginais da classe trabalhadora. Viola, na prática, o ideal da democracia cidadã, que teoricamente guia as autoridades. O que o Estado deve combater não é o sintoma, a insegurança criminosa, mas a causa da desordem urbana: a insegurança social que o mesmo Estado gerou ao se converter em um diligente servidor do despotismo do mercado. Tradução do original em espanhol de Juliana Caetano
Notas da tradutora: ¹ Zona periférica urbanizada, localizada em torno de uma grande cidade, sem ser independente dela; o que poderia ser traduzido por “subúrbio”. Entretanto, acabou por nomear especificamente as comunidades e comunas suburbanas francesas, sejam bairros ou municípios, onde vivem os trabalhadores que a metrópole emprega, mas não abriga, dotadas das características sociais abordadas na presente entrevista.
² Programa de assistência social que se contrapõe ao antigo welfare, ou Estado de bem-estar social, ou, ainda, Estado providência. No workfare, é preciso trabalhar para receber em troca o benefício social básico, ou seja, os desempregados participam de iniciativas do governo para que a renda do próprio trabalho seja sua providência.
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Amauta
Criminalização dos movimentos sociais na América Latina¹ Claudia Koroll - Especial para a revista Classe Professora da Universidad popular Madres de Plaza de Mayo (Argentina)
Terminado o ciclo de ditaduras militares na América Latina, quando os povos comemoram a “conquista da democracia”, as classes dominantes começam o processo de readequação dos mecanismos de controle, de afirmação de sua hegemonia, de produção de consenso, de fragmentação social e de repressão, necessários para assegurar o modo de acumulação capitalista na presente etapa. As “democracias realmente existentes” asseguram a livre movimentação de capitais e reagem furiosamente se os movimentos populares criam obstáculos à sua reprodução ou circulação. Os organismos internacionais de gestão do “governo mundial das multinacionais” (FMI, Banco Mundial, OMC, G-8, etc.) criam programas para garantir que o saque sistemático dos bens dos territórios subordinados a suas estratégias tenha vias de saída para o Primeiro Mundo. Promovem legislações para defender seus direitos. Criam forças militares para patrulhar e controlar essas regiões (como a IV Frota norte-americana). O capital ganhou direitos nessas “novas democracias”. O que não se observa suficientemente é como, ao mesmo tempo, os povos perderam direi-
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tos, em especial @s socialmente excluíd@s, enclausurados em verdadeiros guetos de miséria e indigência, em regiões onde não há direitos nem lei, salvo o grito de ordem das forças repressivas. Da Doutrina de Segurança Nacional, passou-se à Doutrina de Segurança Cidadã, ou à Doutrina de Segurança Democrática. A primeira perseguia preferencialmente @s “subversiv@s”, ou seja, os que não aceitavam a “ordem” imposta pelas burguesias e pelo imperialismo para defender e reproduzir seu sistema. Hoje se perseguem “os criminosos”, entendendo por criminoso tanto um movimento social que se levanta para recuperar a terra, cuidar do território que habita, evitar a destruição da natureza, fazer produzir uma fábrica abandonada por seus patrões, como alguém que, empurrado violentamente ao desamparo, cata comida no lixo, ou papelão nas ruas para sobreviver penosamente. A criminalização dos movimentos populares é um aspecto orgânico da política de controle social do capitalismo para garantir sua reprodução e ampliação. Articula planos diversos que vão desde a criminalização da pobreza e judicialização do protesto social até a repressão política aberta e a militarização.
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A chamada “globalização” elevou a “guerra dos ricos contra os pobres” a uma dimensão mundial. Se os governos imperialistas, em nome da “democracia”, da “liberdade”, do “desenvolvimento” e do “progresso” invadiram e destruíram países e civilizações, promoveram a fragmentação dos Estados que se negavam a agir de maneira subordinada a seus interesses, assassinaram presidentes e colocaram numa lista de “criminosos” líderes populares como integrantes do “Eixo do Mal” (num discurso fundamentalista que tange o fascismo), isto, no âmbito local, se traduz na perseguição aos movimentos de defesa dos bens da natureza, dos direitos sociais, humanos, políticos. Como conseqüência das políticas de exclusão social e de precarização de todos os planos da vida, se produzem novos fenômenos nas relações sociais. O medo “do outro” é um dos dados significativos “organizadores” dessas relações de desigualdade, desconfiança e diluição das solidariedades. A fragmentação social funciona como estímulo desses medos. Os novos “desaparecidos sociais” configuram uma “fantasmática” aterrorizante, num corpo social várias vezes ferido e vulnerabilizado pelas contínuas perdas materiais e simbólicas. A exclusão social faz com que se busque satisfazer as carências de modo imediato para garantir a sobrevivência, tanto em termos individuais como coletivos, gerando, no imaginário construído a partir da hegemonia cultural, a identificação das zonas de pobreza com territórios de crime. Essas noções, que estimulam respostas conservadoras, são alimentadas pelos grandes meios de comunicação, que ativam deliberadamente os mecanismos de terror para levantar as exigências de “segurança”, que significam, em última instância, garantias para os direitos do capital. A ruptura de identidades leva a entender
a pobreza, a marginalidade, a miséria do outro como ameaça e a carregar esses sentimentos de conteúdo racista, xenófobo, violento, repressivo e autoritário. Esses mecanismos de alienação social são reforçados pela perda de sentido e despolitização da luta social, o que favorece que a mesma ingresse no índice da criminalização como “causa penal”. Os meios de comunicação cumprem um papel central na construção de uma subjetividade alienada. O discurso midiático se reforça a partir de políticas públicas que fragmentam o campo social e também territorial, com propostas diferenciadas de educação, saúde, habitação, construindo realidades geográficas que acentuam a distância entre incluíd@s e excluíd@s, inclusive no interior dos setores populares. Muitas universidades, centros de pesquisa, fundações e espaços de produção intelectual que respondem às agendas de interesses definidas pelo Banco Mundial e pelos grandes centros de poder produzem um amplo espectro de interpretações que tendem à dissociação de saberes, a uma funcionalidade que condiga com os interesses do poder mundial, à apropriação dos saberes populares e à assimilação até mesmo dos discursos progressistas para fundamentar propostas de desarticulação das possíveis alternativas populares. Uma medida essencial para reforçar a dominação é a criação de dispositivos de controle da pobreza. Esteban Rodríguez² escreve: “Neste contexto, caracterizado pela irrupção da exclusão, o Estado redefiniu sua intervenção. O Estado continuará intervindo, ainda que não seja no sentido da integração social. Sua intervenção será excludente. Se intervém para assegurar essa capacidade de excluir, ou para manter a exclusão, ou, o que dá no mesmo, para evitar a irrupção, a intervenção estatal torna-se desruptiva. A desrupção é a for-
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ma que o controle social assume quando se trata de manter a exclusão, quando o inviável se torna insustentável e, portanto, já não cabe mais qualquer inclusão. Essas tecnologias de controle têm a ver com: a) as agências políticas que, sobre a base do clientelismo, organizam a cooptação; b) as agências sociais que, baseadas na cooptação, organizam o assistencialismo; c) as agências repressivas, que articulam diferentes práticas (gatilho fácil, antitumulto, esquadrões da morte), que são formas de administrar o crime e o ascenso das mobilizações sociais; e d) as agências judiciais, que organizam a criminalização da pobreza e, logo, a criminalização do protesto. (...) Quando as multidões irrompem, é preciso intervir e a intervenção será brutal, ainda que focalizada, e contundente, ainda que imperceptível, se a multidão não se resignar. Da “doutrina de segurança nacional”, passamos à “tolerância zero” , da mesma maneira que a “mão invisível” se torna “mão dura”. Uma mão que se torna um punho fechado, mas fica invisível, intermitente, difusa e errante. Por isso não se consegue percebê-la como tal. O terror do qual falamos é um terror espectral, que já não tem base real num ponto determinado, numa instituição, mas se dissemina em diferentes práticas que organizam e administram a desrupção. Esse será o terrorismo de Estado nesta nova época marcada pela crise de representação: um punho sem braço”. Algumas das modalidades da criminalização da pobreza são o gatilho fácil, o aniquilamento das populações pobres, a discriminação no sistema penal e a militarização de determinados bairros ou regiões. Todos atuam como dispositivos de disciplinamento, sem outros critérios além do castigo à miséria e a violência constante como única face da lei. Geram-se verdadeiros assaltos à população mais vulnerável, que buscam estabelecer a ordem
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armada diante dos mais fracos. As organizações feministas vêm denunciando diversas modalidades de criminalização das mulheres pobres. Elas são capturadas pelas redes de prostituição, perseguidas por legislações que reprimem as vítimas enquanto protegem os chefes do tráfico, vítimas de assassinatos, em grande parte relacionados a essas redes de tráfico de mulheres. Também a proibição do aborto é uma forma de criminalizar as mulheres pobres e controlar seus corpos. Há um fio contínuo entre as políticas de criminalização da pobreza, a judicialização do protesto social e a criminalização dos movimentos sociais. O enquadramento d@s excluíd@s como ameaça e de suas ações como delitos interfere na representação simbólica que considerava o lutador social um militante solidário, justiceiro. Hoje, os que lutam são apresentados como delinqüentes, e sua prisão é propagada como castigo exemplificador. A partir dos meios de comunicação e de vozes oficiais do poder, se produz uma forte desqualificação do protesto social, o que promove sua ilegitimidade social. O resultado é outro mecanismo fundamental, a mudança das figuras penais empregadas nos processos dos militantes, utilizada pelo sistema judicial para evitar as libertações. Assim, o castigo se produz já no próprio processo. O trânsito pelas torturas nas delegacias e nas cadeias faz parte do dispositivo de criminalização da manifestação política e se tornou uma enorme pressão sobre as organizações sociais. A criminalização dos movimentos populares se exprime, então, em políticas como o avanço do processo de judicialização dos conflitos, visível na multiplicação e agravamento das figuras penais, na maneira como elas são aplicadas por juízes e afins, no número de processos contra militantes po-
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pulares, na estigmatização das populações e grupos mobilizados, no incremento das forças repressivas e na criação de tropas de elite especiais, orientadas para a repressão e militarização das zonas de conflito. Por todos esses caminhos, os problemas sociais e políticos tornam-se processos penais, nos quais o povo não tem mecanismo de intervenção, a não ser como espectador ou como réu. De possíveis atores sociais, os sujeitos em conflito se reduzem a excluídos, vítimas ou criminosos em potencial. No plano continental, a Colômbia é o país que funciona como laboratório privilegiado para os experimentos repressivos contra as organizações populares. Utilizando-se sempre do mesmo argumento – sua hipotética vinculação às guerrilhas –, se estabelece um regime ditatorial com aparência de “democracia representativa” e justifica-se a liquidação completa de organizações, a prisão de seus dirigentes e de seus militantes, assim como de comunidades inteiras. Entretanto, é preciso advertir que os repressores – polícias, militares, juízes, legisladores, jornalistas, políticos – hoje estão “assessorando” seus pares em vários países da América Latina. Torna-se alarmante o processo de criminalização do movimento popular no México, Peru, Haiti – sob comando da MINUSTAH –, mas também os ensaios de criminalização do Movimento Sem Terra do Brasil, no Rio Grande do Sul, a judicialização do movimento campesino do Paraguai (a Justiça continuando sob controle do Partido Colorado)³ e a perseguição e extermínio do povo mapuche no Chile. Destacando-se essas situações, vale chamar a atenção para o fato de que as modalidades descritas não são a “exceção”, mas as formas mais agudas dos mecanismos de repressão que se utilizam em praticamente todos os países da América Latina. Esses mecanismos são amparados por Leis
Antiterroristas - que parecem mais uma cópia que vai passando de um país a outro, e são executadas por forças repressivas que estudam os mesmos manuais e trabalham conjuntamente sob o comando norte-americano, ou em experiências humanistas de invasão de países, como é o caso do Haiti. Talvez seja uma necessidade e uma urgência dos movimentos populares do continente reativar os mecanismos de solidariedade internacionalista, promovendo uma forte campanha de denúncia da criminalização dos movimentos sociais, de luta pela retirada de processos contra @s militantes sociais judicializad@s, pela libertação dos presos e presas polític@s e pela legitimidade de defender todos e cada um dos direitos humanos, incluindo o direito à rebelião frente a todas as opressões. Tradução do original em espanhol de Juliana Caetano
Notas: ¹ A maioria das opiniões que se apresentam neste artigo é a síntese pessoal de uma investigação coletiva, realizada para o seminário “Criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na América Latina” – realizado pelo Instituto Rosa Luxemburgo e pela Rede Social de Direitos Humanos do Brasil, entre os dias 18 e 20 de junho, na Escola Nacional Florestan Fernandes, com participantes da Argentina, Chile, México, Paraguai, Brasil e Alemanha. ² RODRÍGUEZ, Esteban. “Un puño sin brazo. ¿Seguridad ciudadana o criminalización de la multitud?” In: H.I.J.O.S. La Plata, La criminalización de la protesta social, Ediciones Grupo La Grieta, La Plata, Argentina: novembro de 2003. ³ Neste caso, os mecanismos de repressão também funcionam combinados. Seis campesinos paraguaios estão presos injustamente há dois anos na Argentina. O governo “dos direitos humanos” é um dos que mais fez presos políticos desde a “recuperação da democracia”. Quando escrevo este artigo, os presos paraguaios na Argentina completam 50 dias de greve de fome, pedindo por asilo político no país. Mas também há presos campesinos, lutadores chilenos, peruanos, trabalhadores petroleiros, em diferentes cárceres argentinos.
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Pública, Gratuíta e de Qualidade
DESVIO DO CARÁTER da universidade: administração mercantil fere a democracia e deturpa essência da instituição Luiz Henrique Schuch Professor da UFPEL
Surpreendentemente, apesar de ter-se desenvolvido sob as asas de um Estado tipicamente patrimonialista, a jovem universidade brasileira, forjada há menos de um século, produziu, a partir do seu interior, considerável consciência da função eminentemente pública que deve desempenhar. Nisto, aproximou-se da trajetória que já vinha sendo traçada há mais tempo em outros países latino-americanos e das melhores tradições do pensamento humanista. Segundo o sociólogo Francisco de Oliveira, em palestra proferida na abertura do 6º Conselho Extraordinário do ANDES-SN - CONAD, realizado em Brasília, no mês de agosto de 2005, o surgimento desta consciência procedeu-se quase como um milagre e significa um escândalo aos olhos da elite político-econômica brasileira, ainda tão condicionada a uma relação do tipo colonial frente aos interesses e modelos impostos de fora.
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Por isso, não é casual surgirem em todos os períodos históricos abertos à expansão do ensino superior brasileiro avaliações produzidas alhures - imediatamente repetidas por membros da burocracia nacional - que localizam a raiz das mazelas das universidades públicas no seu descompasso em relação às conveniências empresarias. Tanto na década de 60, sob a vigência do acordo MEC/USAID, como na década de 90, nos documentos vindos dos grupos de economistas de Chicago e do Banco Mundial, foram formuladas engenhosas construções retóricas para justificar que “os muros das universidades deveriam ser derrubados” não para responder às indagações do povo brasileiro nem para ajudar a resolver os seus problemas fundamentais, mas como disfarce da intenção de conquistar o seu atrelamento instrumental aos interesses estratégicos dos negócios. Recentemente, a mesma coisa volta a se
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fotos: Stela Guedes Caputo
Anúncios de cursos pagos estão espalhados pela UFF. Na foto, faixas no campus do Valonguinho (note o erro de concordância na primeira delas). O primeiro custa 18 prestações de R$ 950,00 e o segundo, 18 de R$ 190,00.
repetir, agora com outras artimanhas, em decorrência do processo de internacionalização do chamado setor de serviços, transformado na “bola da vez” da expansão das possibilidades de lucro fácil mundo afora. A partir dele, são determinados novos contornos na distribuição internacional do trabalho e a sua conseqüência: novas exigências impostas aos sistemas nacionais de ensino, reservando, mais uma vez, posição subalterna a países como o Brasil. As políticas educacionais preponderantes nesses períodos resultaram em perda de qualidade social do ensino superior, em precarização do trabalho docente, em ampliação
do setor privado e ampliação da privatização por dentro do setor público, apesar de todas as lutas desenvolvidas pela comunidade universitária. A privatização por dentro do setor público sempre esteve associada à tentativa de transferir a pesquisa e a educação do âmbito da esfera pública para o regime fundacional. Na década de 60, a via empreendida foi o registro das próprias universidades públicas com o estatuto de fundações. Mas, como os dois regimes, autárquico e fundacional, foram praticamente igualados pela Constituição de 88, a privatização por dentro das instituições passou a trilhar uma via paralela: a transferência de
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razão que lhe tem garantido sustentação social desde quando e onde existem universidades como as que conhecemos. Desvio de caráter, no caso, não se refere ao componente moral, mas às características essenciais da instituição universitária, em particular aquelas que justifi“Investimento”: 15 parcelas de R$ 450,00, num total de R$ 6.750,00. cam o atributo da autonomia. Pelo menos dois pólos externos vêm atividades e funções das universidades para fundações inteiramente privadas, chamadas atuando no sentido de tirar proveito particular do patrimônio social representado pelas eufemisticamente de fundações de apoio. Não existe, por maiores que sejam as de- universidades públicas. Por um lado, govermandas acadêmicas, nenhum argumento ca- nantes tentam reduzi-las a meras repartipaz de legitimar a necessidade de fundações ções, obrigadas a cumprir caprichos e acordos privadas em uma universidade pública. Cria- imediatistas muitas vezes condicionados aos das com o pretexto de contornar dificuldades períodos de governo e aos interesses eleitode natureza administrativa e entraves legais, rais. Por outro, setores econômicos operam a acabaram por gerar enormes distorções nas des-instituição do espaço público destinado à atividades de ensino, pesquisa e extensão de- produção de conhecimento para transformásenvolvidas na universidade, submetendo-a à lo em mais um campo dos seus empreendilógica do mercado. Lógica essa da qual deri- mentos. Ambos incorporam em suas táticas vam prioridades incompatíveis com a ativida- a transferência de funções das universidades de acadêmica crítica e socialmente referencia- públicas para as fundações privadas. Somente a existência desses interesses externos é da, que é a essência da universidade pública. Diante do descaso dos governos com o fi- capaz de explicar o acobertamento das afronnanciamento das universidades públicas e das tas à Constituição e a neutralização dos efeidificuldades administrativas, os burocratas têm tos de tantas condenações dos Tribunais de incentivado e tirado proveito da fuga pela via Contas, apontamentos de irregularidades paralela, privatizante e ilegal, pelo desvio de das controladorias, denúncias do Ministério caráter acadêmico imprimido pelas fundações. Público e das comunidades universitárias. As fundações privadas ditas de apoio nada No sentido inverso, o equacionamento daquelas dificuldades só terá sucesso com o fortalecimen- mais são do que entes privados intermediando to do caráter público da universidade, da sua a relação financeira entre órgãos públicos, evaautonomia e da sua democracia, pois é esta a dindo-se dos controles e imprimindo, a partir
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dessa interposição, o interesse subjetivo, particular, nas decisões que, nesse caso, deveriam ser da esfera pública. Ferem, estruturalmente, o princípio da legalidade, que é uma das diretrizes básicas na conduta dos agentes públicos. Tal princípio tem origem histórica próxima à criação do Estado de Direito, consagrado por séculos de evolução política, e é uma das cláusulas fundamentais da Constituição brasileira. A lição dos juristas Ely Lopes Meirelles e José dos Santos Carvalho Filho é sintética e suficiente a respeito do tema: “Na administração pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe”. Além disso, a moralidade administrativa, que ultrapassa o princípio da legalidade, segundo os mesmos autores “não é meramente subjetiva, porque não é puramente formal, porque tem conteúdo jurídico a partir de regras e princípios da Administração”, distinguindo-se também da esfera do que é privado. Como seria possível, então, de boa fé, imaginar que a melhoria da regulamentação, ou o aperfeiçoamento de sistemas de controle, garantiriam resultados positivos ante a promiscuidade parasitária entre a esfera pública e a privada, estruturalmente operada entre as universidades públicas e as fundações privadas ditas de apoio? Na prática, a soma
de umas poucas vontades e interesses pessoais decide, discretamente, mas com grande poder, as operações desenvolvidas pelas fundações privadas, apesar de atuarem com recursos públicos e no espaço que deveria ser público. O que se identifica, claramente, nas tentativas de estabelecer pontes administrativas entre as fundações privadas e as universidades públicas, além da ilegalidade, é que estas servem muito mais para que os interesses privados nelas organizados controlem as universidades por meio do poder econômico do que para o estabelecimento de tutela pública sobre as fundações. Somente para citar alguns dos casos que mais repercutiram na imprensa, note-se que meses antes de sair algemado durante a operação RODAN da polícia federal, juntamente com outros dirigentes universitários, um dos conselheiros que também era dirigente da fundação privada de apoio levou “embaixo do braço”, para relatar na reunião do Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Maria, o processo que deveria chancelar as contas da FATEC.
“Investimento”: 12 parcelas de R$ 600,00.
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Vários conselheiros protestaram denunciando evidente conflito de interesses, mas as contas acabaram sendo aprovadas, assim mesmo, em uma reunião subseqüente. A crise que levou à exoneração do reitor da UNB, cujo emblema foi a lixeira adquirida pela FINATEC, já exaustivamente debatida e denunciada, revelou de forma maiúscula não só até onde pode chegar o arbítrio subjetivo na aplicação do dinheiro público quando gerido na lógica de uma instituição privada, mas também como, em pouco tempo, consolidouse uma cunha de poder a partir da fundação a controlar o funcionamento da instituição pública que deveria ser apoiada. O rodízio estabelecido nos cargos de mando financeiro da universidade e da fundação, nos últimos quinze anos, de um núcleo de poucos nomes, e o controle que passaram a exercer, estabeleceu uma situação na qual dificilmente alguém chegaria ao cargo de reitor sem o beneplácito desse núcleo, mesmo que processos eleitorais viessem a ser promovidos. Uma lição importante recolhida da experiência recente é a relação entre nível de promiscuidade da rés-pública com organismos privados patrocinado por determinadas reitorias na administração das universidades e nível de autoritarismo no exercício dos seus mandatos. Ao crescimento das denúncias, ao vazamento de evidências das falcatruas com dinheiro público, aos sinais de manipulação dos órgãos superiores das universidades, os gabinetes se fecham em comportamento despótico e passam a criminalizar o simples direito de divergir, reprimido com violência, como se divergir fosse elemento
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estranho ao ambiente acadêmico. Percebe-se uma perniciosa e crescente mudança de sentido no exercício do poder institucional, praticado cada vez mais ostensivamente de cima para baixo e relegando tarefa apenas homologatória aos conselhos e colegiados. Muitos anos de denúncias emanadas do movimento docente, dos estudantes e dos funcionários não sensibilizaram o reitor, fechado em sua cidadela que parecia inexpugnável, na Universidade Federal de São Paulo, a antiga Paulista de Medicina, até que as ilegalidades apontadas pelos órgãos de fiscalização, a maioria vinculadas às fundações privadas, foram publicadas com destaque em jornais de grande circulação nacional. Aquele que até a véspera usava mão-de-ferro para reprimir quem não lhe atendesse as conveniências foi forçado a pedir demissão, juntamente com todo o gabinete, e responde a vários processos. Os exemplos generalizam-se de norte a sul do país. Citá-los restringe-se simplesmente à necessidade de destacar algum aspecto específico, pois parece que a única diferença é o momento em que as máculas vieram ou virão a público, quanto à perniciosa relação das universidades públicas com as suas fundações privadas ditas de apoio. O quadro é nítido e desfaz, por si, qualquer possibilidade de buscar aperfeiçoamentos daquela relação gerada como uma aberração incorrigível. Caberá às próprias universidades públicas, em primeiro lugar, reacender a força de sua mobilização interna e, em decorrência disso, pressionando as administrações, retomar o papel que paulatinamente foi delegado às fundações privadas.
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“Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá” Entrevista: B Negão Por Stela Guedes Caputo
Fotos: Divulgação
Bernardo Ferreira Gomes dos Santos, conhecido como BNegão, é um dos rappers mais respeitados, mas desses que não tocam nas rádios e nem freqüentam o “Domingão do Faustão”. Ex- vocalista do “Planet Hemp” e “Funk Fuckers”, hoje ele experimenta a carreira solo com a indescritível banda “Os Seletores de Freqüência”. Seu CD “Enxugando Gelo” foi considerado um dos melhores de 2003 e vencedor do prêmio Dynamite (o maior da música independente no Brasil), como melhor disco de Rap/Black Music, o que rendeu duas turnês pela Europa. Militante da luta pela produção independente, foi também um dos pioneiros no Brasil a liberar suas músicas para download na Internet. Prejuízo? Nenhum. O álbum continua sendo um dos 20 mais vendidos pela distribuidora Tratore e é justamente graças ao MP3 que seus fãs não param de crescer, inclusive na Europa. Rock, Hip-Hop, funk, jazz, os estilos são muitos, assim como são muitas as suas bandeiras de luta, que vão da liberação da maconha ao movimento Jabasta, contra os jabás, um tipo de arrego que os músicos precisam pagar se quiserem tocar nas rádios. Para Bnegão, que lançou este ano o CD “Turbo Trio”, suas músicas posicionadas são “mensagens que joga na garrafa”, seu jeito de “seguir incomodando”.
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Classe - Como foi acontecendo o interesse por música? BNegão – Sempre gostei de música. Primeiro música de rádio, normal. Depois, ouvia alguns discos do meu pai (Martinho da Vila Chico Buarque...). Ouvia Kiss(!), depois Michael Jackson e, em 82, veio o Rap... daí lascou.... Em 1987, junto com os primeiros lançamentos de rap nacional (Cultura de Rua, Racionais ...), eu comecei a ouvir muito punk rock (Inocentes, Cólera, Ratos de Porão, Garotos Podres, Olho Seco...), via Rádio Fluminense FM e Circo Voador. Classe - Tinha gente na família que tocava? BNegão – Eu tinha um tio que tocava, mas era considerado a “ovelha negra” da família. Ele tinha sido o primeiro cara a se separar que eu vi na vida, desde que o divórcio foi aprovado como lei (isso foi apenas em 1977,acreditem!!). Era meu tio Meirelles. Ele sumiu de tudo e todos por décadas, vendeu o sax, largou a música, virou semi-mendigo por muito tempo... Depois, eu já era fã dele há milênios, mas não ligava o meu tio (que sabia que tinha sido um maestro importante, por alto e que eu só conheci quando era criança), ao grande maestro J.T. Meirelles, que fez os arranjos e tocou sax e flauta nos cinco primeiros e clássicos discos do Jorge Ben (aquele sax de “Mas Que Nada” é composição dele, tocada por ele, naquela
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clássica gravação que ele mesmo produziu e arranjou...). Ele comandou a lendária banda Copa 5, que teve, entre seus componentes, músicos lendários como Edison Machado, Eumir Deudato, Dom Um Romão e Roberto Menescal, entre outros. No final dos anos 90, ele foi resgatado e voltou com força total. Tocamos juntos em São Paulo e ele ficou fã dos “Seletores”, o que para mim foi a maior honra que eu já tive musicalmente em toda a minha vida. Classe: Você divulga a cultura livre, a generosidade intelectual e a publicação aberta. Poderia falar um pouco sobre isso? BNegão – Não quero que as coisas que eu produzo, que normalmente freqüentam o meio alternativo, e que contêm elementos que considero de mudança (mínima que seja) fiquem restritas aos que conseguem comprar ou achar. Quero que o maior número de pessoas tenha acesso ao que faço. Quando comecei tudo isso nem sabia dessas nomenclaturas. Fiz porque senti e sinto necessidade de fazê-lo. Respeito quem pensa por outros caminhos. Cada um dá o destino que quiser à sua obra, à sua produção, mas o meu caminho é esse. Mesmo que um dia eu lance algo por algum selo/editora/gravadora que vete essa postura, ficarei muito feliz quando vir que alguém publicou meus textos ou minhas músicas na net para acesso gratuito. Classe – Por isso você disponibiliza seus CD´s na internet? BNegão – Para facilitar o acesso. E também porque, na época, estava tendo a primeira campanha mais forte contra o download no mundo,
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criminalizando esse ato de forma absurda. Os caras do “Metallica” encampando essa insanidade, perseguindo e mandando prender moleques de 15, 17 anos, as gravadoras querendo dizer que o Napster era o Bin Laden da net, e por aí vai. Achei que precisava dar a minha opinião e me posicionar politicamente sobre isso. Classe – Isso ajuda a desconstruir a versão de que a pirataria prejudica o artista? Na verdade, quem perde e quem ganha com a pirataria? BNegão – Os grandes vendedores de discos, os que estão ali pelo jabá, realmente perdem. Os que são grandes vendedores pela qualidade, às vezes, não perdem. É só ver o caso do Radiohead, do AC/ DC e tantos outros. É importante diferenciar cultura livre e download gratuito de pirataria. Tem gente que junta tudo no mesmo saco. Quem ganha com a pirataria são os chineses (hahahaha) e os consumidores de baixa renda, já que estes podem ter acesso à cultura por um preço acessível. Classe - Você é um militante na música. Quais as principais lutas que devem ser travadas hoje nessa trincheira? BNegão – Na trincheira da música nossa principal luta é contra o Jabá, que nega o acesso da cultura brasileira aos meios de comunicação, em especial às rádios, que, nos seus contratos de concessão, têm a OBRIGAÇÃO de divulgar a cultura brasileira. Isso move todo o resto. Outra coisa importante é a questão da Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), que é uma entidade fundada na Ditadura Militar e mantém várias pessoas ali,desde aquela época. Sua existência
não faz sentido. Ainda mais, cobrando taxas dos músicos que já têm um trabalho suado para sobreviver nessa profissão e não proporcionando a estes nenhum benefício. Classe - Quem são os verdadeiros piratas criminosos? Os camelôs que vendem as cópias dos CD´s ou os empresários das rádios que pirateiam o espaço da concessão pública? BNegão – Opção número 2 ... Classe – Por que música é uma arte tão cara no Brasil? O processo todo, eu quero dizer, desde fazer um CD e comercializar esse CD e botar esse CD nas rádios. Por que isso é tão caro? BNegão – Não precisava ser tão caro. Nestes CD´s de grandes gravadoras que chegam a ser vendidos a R$30,00 (ou mais), está embutido o preço milionário que eles têm de pagar de JABÁ, o cartão de crédito dos diretores de gravadora e por aí vai... Essa crise do mercado fonográfico foi criada pelas próprias gravadoras, as grandes gravadoras, por uma série de atitudes bizarras ao longo de décadas, em todo o mundo. As gravadoras atiraram tanto que acertaram o próprio pé. Classe – Como você pode-
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ria analisar o seu próprio processo de consciência política dentro da música? Ou seja, como eram as músicas que você fazia quando começou a compor e como elas são hoje? Como a sua visão de mundo mudou e, conseqüentemente, a música que você fez e faz? BNegão – Meu pai teve papel ativo na resistência contra a Ditadura, então, aqui em casa, o assunto “política” sempre foi muito discutido. Ele sempre conversou muito conosco sobre tudo isso. Eu comecei a fazer músicas próprias (fora versões que eu fazia quando era criança) por causa do punk, aos 16 anos. Arrumei uma guitarra (bem ruim) e fazia (e gritava) letras sobre polícia, política, o Brasil e o mundo. Hoje, logicamente, escrevo mais profundamente sobre as coisas que acho importantes: o ser humano, a situação do mundo, nosso momento atual no Estado, no país e no planeta.Uma mudança enorme: antes eu escrevia “vocês, você, eles fazem...”, e agora eu escrevo “nós fazemos...”... muda bastante o ponto de vista.
BNegão – Tem de tudo. Eu tenho uma treta com o Marcelo por atitudes dele como pessoa, não por coisas como essas. Porque, se for por isso, o “Planet” era de uma grande gravadora, e, mesmo sendo uma banda única e disseminando várias idéias libertárias, estava inserido dentro desse esquema. Claro que o Marcelo pisou no acelerador na carreira solo dele. Fez coisa que, antes, recusávamos fazer. Há casos e casos. Esse tipo de discussão tem mais a ver com o público do “Planet” - que se sentiu enganado por coisas que o Marcelo dizia e depois fez o oposto - do que comigo, em relação a ele.
Classe – Você mistura funk, rap, rock... isso cria uma outra música? Qual o seu estilo hoje? BNegão – Música Negra Universal
Classe: Eu pego um funk seu como a “Dança do Patinho” e outros funks onde mulheres são chamadas de cadelas, mesmo em letras que asseguram estar criticando a discriminação da mulher... Então, como olhar o universo tão diverso do funk sem ser moralista e sem ser populista e demagógico? BNegão – A verdadeira “Dança do Patinho” não tem nada a ver com esse tipo de funk depreciativo da mulher... não tem literalmente nada a ver. Nenhuma vírgula em comum. Acho que no funk, assim como na maioria dos outros estilos musicais, tem música boa e música ruim.
Classe – Existe a seguinte polêmica quando se fala de você e do D2: que o D2, por estar na mídia, teria se vendido e você, por continuar independente, por não tocar nas rádios... não se vendeu. Todo artista que está na mídia se vendeu? E o destino de quem não está... seria se vender para tocar?
Classe – Muitas produções de periferias, como músicas e filmes, afirmam um desejo de “dar visibilidade” a seus produtores para que assim aconteça uma aproximação entre classes sociais distintas e se promova um diálogo. Essa é a função da arte de periferia ou esse poderia ser mais um refrão para a “Dança do Patinho”?
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A Verdadeira dança do patinho
BNegão – Pois é... boa pergunta. Acho que arte da periferia, como qualquer outra arte, tem que ser encarada como expressão do que se vive, ou do que quer necessita ser dito. Tem gente que se interessa por isso porque realmente quer saber o que está acontecendo, quer saber o que essas pessoas pensam para tentar compreender ou intervir positivamente naquela situação. E tem outras pessoas que tratam a coisa como um zoológico, ou um filme de suspense/terror, com bastante adrenalina, onde podem ver, sentadas em suas cadeiras, protegidas, aquele universo tenebroso e saem do cinema ou desligam o som e seguem suas vidas sem uma mínima mudança de atitude. Tem outros tipos também, mas grosso modo, é assim. E, no meio de tudo isso, está quem precisa ser escutado...
Eles traçam e destraçam o seu caminho – É a dança – dança do patinho Eles mandam uma qualquer e tu leva fé direitinho – É a dança – dança do patinho DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA) Você que assina contrato sem ler Acha que a O.N.U. se importa com você Você que acredita no ouro nacional Chegou a sua hora isso é fenomenal Você que acredita no que falam na tv Dá seu dinheiro pro pastor pra fazer sua fé valer (eh, eh…) E pra você que acredita no velho azul-marinho, essa é sua dança DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!) Você que acredita na mega-sena, toto-bola, raspadinha e na garota de Ipanema Você que acredita nos caras pintadas, acredita que o Brasil vai tá ganhando com a ALCA Acreditou em inflação zero, no salário-desemprego Mas não viu que o governo tava botando no seu … Parabéns, você é perfeito, foi feito pra isso Pra dançar a dança, a verdadeira… DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!) Você que toma volta quando quer ficar ligado Acredita no bicho papão e no aumento de salário Você que paga seus impostos religiosamente, esperando algum dia uma aposentadoria decente Você que acredita em alguma punição pros que roubam e colocam no… da população E pra você que acredita que nunca foi lesado, cante comigo esse hino, esse é o meu recado: braço em forma de asa, alterna pé e faz biquinho tu entrou na dança DANÇA DO PATINHO (A VERDADEIRA!).
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O tio Meirelles Mencionado na entrevista por BNegão, o “tio Meirelles” é o saxofonista, arranjador e compositor João Theodoro Meirelles (mais conhecido como J.T Meirelles), um dos principais nomes do samba-jazz e falecido em junho deste ano. O músico iniciou sua carreira aos 17 anos e, aos 23, fez alguns arranjos, entre eles o de “Mas que Nada”, o primeiro sucesso do então Jorge Ben e hoje Benjor, para o disco “Samba Esquema Novo”, de 1963. Graças à repercussão de “Mas que Nada” e “Chove, Chuva”, J.T pôde fazer seus próprios discos livre de pressões comerciais ou artísticas por parte de gravadoras. No mesmo ano, juntamente com Manuel Gusmão (baixo), Luiz Carlos Vinhas (piano), Dom Um Romão (bateria) e Pedro Paulo (baixo), formou o grupo instrumental chamado “Copa 5”, com o qual se apresentou no Bottle’s Bar do Beco das Garrafas (RJ), executando suas próprias composições. A partir de 1964, começou a trabalhar como instrumentista, maestro, arranjador e produtor musical da gravadora Odeon, onde permaneceu durante 11 anos. Apresentou-se, em 1966, no Festival de Jazz de Berlim (Alemanha), ao lado de Dom Salvador, Sérgio Barrozo, Rosinha de Valença e Edu Lobo, entre outros. Viveu durante três anos no exterior (França. Suécia e Monte Carlo), integrando várias orquestras, como a do maestro Aimée Barelli. Em 2005, lançou o CD “Esquema novo” Fonte: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira
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OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008 – Revista da Associação dos Docentes da UFF – CLASSE
Estação Terminal Espetáculo baseado no Cemitério dos Vivos e Diário do Hospício de Lima Barreto pode voltar ao Rio no início do próximo ano Por três vezes Lima Barreto foi interno num manicômio. Escritor, alcoólatra, negro, pobre, indignado. Escreveu um diário. Teve seus sonhos e desejos destruídos pelo sistema correcional. Seu diário revela sua experiência de reclusão. Dividese um homem em pedaços como em uma autopsia. A observação é por camadas. O mesmo e o outro. Por camadas também é a Velatura, obra da artista plástica Suzana Queiroga, que serve de suporte cenográfico para o espetáculo. Com a Velatura criada por Suzana podemos ver dentro, fora e através. Ao nos envolver em epidermes vermelhas, nos remetemos a outra velatura: nosso próprio corpo e seu interior, também vermelho. É quando sentimos que podemos ser/conter as pulsações da arte, músculo sensório e motor de vida. Estação Terminal, última criação da Companhia Ensaio Aberto, estreou no SPILL Festival/2007, em Londres. No Brasil, permaneceu seis meses em cartaz no Fórum de Ciência da UFRJ. Nesse fim de ano dá uma parada, mas logo recomeça a temporada podendo voltam ao Fórum, no início de 2009. Atriz, produtora e fundadora da Ensaio Aberto, Tuca Moraes (na foto) e Luiz Fernando Lobo, diretor artístico, perseguem a dialética em seu trabalho. “Esse espetáculo é uma síntese de uma longa pesquisa sobre o teatro épico. Fizemos esse texto no mesmo local na estréia da Companhia Ensaio Aberto há 17 anos. O espetáculo tinha 21 ato-
res. Revisitá-lo agora foi um presente. Tivemos de desconstruir uma memória e criar um novo diálogo. Também foi muito importante como ele nasceu: um convite do diretor inglês Robert Pacitty para estrear um trabalho solo no Spill Festival, em Londres. Talvez a companhia que sempre trabalha com grandes elencos não tivesse ousado essa criação se não fosse pelo convite. O espetáculo foi nossa espinha dorsal em 2008”, conta Tuca, que adianta também o próximo projeto do grupo: “Sobre o Suicídio”, de Karl Marx, com estréia prevista para o SESC de Copacabana no primeiro semestre de 2009.
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Lima Barreto: um intelectual militante Magali Gouveia Engel Professora da UERJ-FFP
Lima Barreto foi um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Não há quem, ao ler um de seus romances, contos ou crônicas, não se apaixone perdidamente pelas suas idéias ou, pelo menos, passe a respeitá-lo, mesmo discordando de suas posições. Falar dele é falar de militância, de coerência, de compromisso com a construção de uma sociedade melhor, sem discriminações, mais solidária e igualitária. Talvez não por acaso, Afonso Henriques de Lima Barreto veio ao mundo no dia 13 de maio de 1881, sete anos antes da promulgação da Lei Áurea que aboliu a escravidão no Brasil. Herdou da mãe, a professora primária Amália Augusta, a cor da pele mulata, que ele sempre fez questão de assumir, transformando sua literatura em instrumento de luta contra os preconceitos raciais, infelizmente ainda hoje presentes em nossa sociedade. Proprietária de um pequeno colégio, o Santa Rosa, nas Laranjeiras, alfabetizou o filho, mas deixou-o muito cedo, falecendo em 1887. Órfão de mãe, mais velho dos três irmãos, Lima Barreto construiria uma forte relação afetiva com o pai, o tipógrafo João Henriques. Aos sete anos, começou a freqüentar a Escola Pública e em março de 1891 foi matriculado como aluno interno do Liceu Popular Niteroiense. Cinco anos depois,
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passou a estudar no curso anexo de preparatórios para a Escola Politécnica do Colégio Paula Freitas. Em março de 1897, ingressou naquela instituição de ensino superior. Seus estudos foram custeados por Afonso Celso, o Visconde de Ouro Preto, protetor da família. Em agosto de 1902, João Henriques não consegue encontrar uma diferença nas contas das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, onde ocupava o cargo de escriturário, começando a temer que o acusassem de desvio de dinheiro público. Sofre neste momento sua primeira crise de alucinação/perseguição. No ano seguinte, com a abertura de inquérito para apurar irregularidades no Serviço de Assistência aos Alienados – do qual as colônias da Ilha do Governador faziam parte – o estado de saúde do pai de Lima Barreto agrava-se e ele acaba sendo aposentado. Nesta época, após ter sido sucessivamente
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reprovado em Mecânica e vendo-se obrigado a assumir a responsabilidade pela sobrevivência da família, Lima Barreto abandona a Escola Politécnica e inscreve-se no concurso para amanuense na Diretoria do Expediente da Secretaria de Guerra, sendo aprovado em segundo lugar. Foi nomeado em 27 de outubro de 1903 e muda com o pai e os irmãos para a Rua Boa Vista, n. 76 no subúrbio de Todos os Santos. O escritor teve importante colaboração na imprensa carioca, intensificada, sobretudo, depois de sua aposentadoria concedida em dezembro de 1918, quando então passou a sentir-se mais livre para emitir opiniões profundamente críticas em relação aos poderes e autoridades públicas republicanas. Escreveu para jornais e revistas cariocas de grande projeção, incluindo uma expressiva atuação na imprensa anarquista. Embora Lima Barreto tenha afirmado categórica e recorrentemente não pertencer a qualquer corrente política organizada, é inegável que tenha buscado uma crescente aproximação com certas concepções anarquistas que acabariam por marcar profundamente os posicionamentos políticos que assumiria como escritor. Sua obra extensa e diversificada inclui romances, sátiras, contos, crônicas e epistolografia, toda ela marcada por uma linguagem direta e simples, através da qual pretendia fazer de sua arte um instrumento de libertação e de união entre os seres humanos. Entre seus romances, destacamse o controvertido “Recordações do escrivão Isaías Caminha” e o aclamado “Vida e Morte de Gonzaga de Sá”, ambos provavelmente escritos entre 1905 e1907 e, ainda, “Clara dos Anjos”, “Triste fim de Policarpo Quaresma” e “Numa e a Ninfa”. As muitas e profundas angústias e medos
que passaram a assombrá-lo, sobretudo a partir da doença do pai e das dificuldades financeiras que o impediam de se dedicar inteiramente ao seu projeto intelectual e literário; o tédio e as frustrações produzidos pela rotina do serviço burocrático e da vida no subúrbio; o fracasso do projeto da Revista Floreal são provavelmente alguns dos fatores que levariam Lima Barreto a começar a beber por volta de 1908. Os excessos de álcool provocariam crises de alucinações que o conduziriam por duas vezes ao Hospício Nacional de Alienados. A primeira internação ocorreu durante o período de 18 de agosto a 13 de outubro de 1914 e a segunda entre 25 de dezembro de 1919 e 2 de fevereiro de 1920, quando escreveu o Diário do Hospício, onde registrou as vivências naquela instituição, durante os dois momentos em que lá esteve. Pretendia utilizar essas anotações para elaborar um novo romance intitulado “Cemitério dos Vivos”, que infelizmente ficou inacabado. Tendo que lutar contra as dificuldades materiais, sobretudo por ter que arcar com a sobrevivência do pai doente e dos irmãos mais jovens e sentindo na própria carne o peso e a dor provocados pelas discriminações sociais, entre as quais os preconceitos raciais, a trajetória literária e intelectual de Lima Barreto oscilou entre a marginalidade e o reconhecimento. Se apesar de todos os obstáculos editoriais seu talento artístico foi reconhecido e exaltado por importantes críticos da época, o sonho de ingressar na Academia Brasileira de Letras jamais seria alcançado, após três tentativas. Lima Barreto morreu antes de completar quarenta e um anos de idade no dia 1o de novembro de 1922, vítima de uma gripe torácica e de um colapso cardíaco. Dois dias depois, morreria também seu pai, João Henriques.
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De Capa
Violência, mídia e criminalização da pobreza
PM ameaça menor com a pistola. No detalhe da foto da capa, o momento posterior em que, indignado, rapaz que aqui aparece ao fundo, enfrenta o policial. Fotos: Gabriel de Paiva/Agência O Globo.
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Stela Guedes Caputo, texto e entrevistas.
Um jovem enfrenta um policial armado. Seu rosto transtornado. A arma na mão direita do policial. O dedo mindinho de sua mão esquerda enruga o peito do rapaz e mostra a força que faz para segurá-lo. Ao fundo, uma menina olha a cena e se prepara para tapar os ouvidos. Dois adultos tentam impedir o pior. À esquerda, um menino não teve os olhos “tarjados” e por isso posso ver seu medo e desespero. Atrás deste, um policial que, ainda que decepado pelo corte da foto, deixa à mostra que está preparado para intervir. A foto que escolhemos para a capa desta edição de nossa revista foi publicada na primeira página de O Globo, em 23/3 deste ano pouco acima da manchete: “Mangueira fecha rua em protesto violento”. Na página 16 onde a matéria continua, mais seis fotos reforçam o título desta página inteira de reportagem: “Cenário de guerra e baderna na Mangueira”. Numa delas, a legenda: “Vandalismo...”. O primeiro parágrafo descreve as imagens: “Motoristas apavorados atacados a pedradas, tiros para o alto, veículos incendiados....” e informa que a morte de um “traficante, segundo a polícia, teria causado o tumulto”. Apenas no último parágrafo lemos que, “segundo uma tia da vítima, o morto de 30 anos era um contínuo desempregado”, portanto, podia até ser que não fosse um traficante (ainda que fosse não poderia ter sido executado). Entrevistado a respeito, o fotógrafo Gabriel de Paiva, autor da foto, fotografar é “tentar fazer com que o leitor sinta o que eu senti na hora do fato jornalístico”. Assim, a ilusão especular (Machado, 1984) que faz com que a fotografia possa
ser vista como “espelho do real” vai além daquilo que se pretender “revelar” e alcança o que se deve “sentir”. Para garantir o sentido único as legendas da edição ajudam, já que, para o fotógrafo, “estas impedem que o leitor tenha interpretação errada do acontecimento”. Paiva concordou com a edição que o jornal fizera de suas imagens e que tudo tinha sido mesmo uma “baderna”. Um box, na mesma página, vai relembrar outros casos “em que a rotina da cidade já foi sacudida outras vezes por protestos de moradores da favela”. Mas o fotógrafo também disse que “o tumulto começou quando a polícia chegou para conter os moradores que, misturados a traficantes, estavam no asfalto incendiando ônibus”. O próprio texto informa que a polícia esteve no morro antes e matou um homem. Paiva disse que talvez fosse revolta e indignação os motivos do protesto, já que todos os depoimentos dos moradores davam conta de que a polícia executara Wallace, o nome do morto. Além de uma frase da tia da vítima, esses depoimentos que o fotógrafo ouviu não estão na matéria. Faltam as fotos do morto, da tia, e dos moradores sem que estes estejam lançando tijolos em carros ou depredando ônibus. “Devíamos ter voltado lá”, concluiu o fotógrafo. Não voltaram. Não houve mais vestígio desse caso no jornal. Não desse especificamente, mas, todos os dias, de forma semelhante, outras matérias reproduzem cotidianamente a mesma política de criminalização dos moradores de favelas implementada pela grande mídia. Nas entrevistas que seguem abordamos sob diferentes aspectos a questão da violência no Rio de Janeiro.
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Foto: Débora Agualuza
Entrevista: Mário Sérgio de Brito Duarte, Coronel da PM – Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP) Ex-Comandante do BOPE
“O exército tem que estar investido de poder de polícia”
Nomeado pelo Governador Sérgio Cabral em 22 de fevereiro de 2008, o atual Diretor- Presidente do Instituto de Segurança Pública (ISP), Mário Sérgio de Brito Duarte, 49 anos, é Coronel da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Ingressou na corporação em 1980 e já comandou a Academia da Polícia Militar, o Batalhão da Maré e o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), no qual, em 1989, recebeu a designação de “Caveira n. 37”. Na estrutura da Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro ele ocupou os cargos de Superintendente de Planejamento Operacional e o de Diretor de Inteligência. Aluno do curso de Filosofia da UFRJ, escreveu, em 1994, o livro “Incursionando no Inferno – a verdade da Tropa”, que só conseguiu publicar depois do sucesso do filme “Tropa de Elite”. Nesta entrevista ele dá sua opinião sobre o ISP e diz o que pensa sobre a utilização dos “caveirões” nas comunidades cariocas.
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Classe – O senhor assumiu o cargo de presidente do Instituto de Segurança Pública quando a cúpula da Polícia Militar foi substituída, o que, na verdade, tratava-se de uma reestruturação da política de segurança para o Estado? Cel Mário Sérgio – Não creio que minha indicação para o cargo de Diretor-Presidente do ISP tenha alguma conexão com as substituições no comando da PM. Na verdade, já de algum tempo a Secretaria de Segurança pensava em dar ao Instituto um aspecto diferente daquele com o qual foi idealizado. O ISP foi criado para ser uma espécie de “superestrutura da segurança pública”, cuja ideologia, em formato acadêmico, deveria ser absorvida pelas polícias. Não obstante o poder que lhe foi conferido pela lei de criação, que lhe autorizava “assegurar, executar, gerenciar e administrar a política de segurança pública do Estado, através das polícias”, o ISP jamais conseguiu penetrá-las ao preferir a imposição e não a negociação de suas intenções.
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Classe – O Secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, disse que desejava um Instituto mais “pró-ativo”, mas o que se veiculou na época, era que a mudança significava uma opção do governo por uma linha ainda mais dura de repressão... Cel Mário Sérgio – O ISP trabalha episteme. É marcadamente uma instituição voltada para a construção do conhecimento e desvelamento de saberes de interesse da Segurança Pública. Há três eixos no órgão: o Núcleo de Pesquisas em Segurança Pública e Justiça Criminal, a Coordenadoria dos Conselhos Criminais e a Coordenadoria de Projetos de Segurança Pública. Destes, apenas a Coordenação dos Conselhos não tem um formato marcadamente científico e sim sócio-organizacional. Todavia, sua atuação é fundamental para o Sistema de Segurança, pois lhe dá a chave necessária à interface com a população com vistas à participação comunitária. O ISP, como disse, não formula a política, não sugere as ações e não determina as estratégias. O ISP apenas exibe o que mensura e o que conhece. Classe – Com a demissão da antropóloga Ana Paula Miranda, da presidência do ISP e sua substituição por um tenente-coronel, o senhor, a integridade e a independência desse órgão não ficam comprometidas? Cel Mário Sérgio – O ISP é uma autarquia do Estado vinculada à Secretaria de Segurança. A isenção que possui hoje é mesma que a doutora Ana Paula possuía antes de minha assunção. Não sou o primeiro coronel da PM a assumi-la; antes, dois já haviam passado pela função. Ocorre que o ISPestava sendo entendido como uma espécie de departamento de ciências sociais, quando ele
não deve ser isso. A sociologia, a ciência política e a antropologia têm grande contribuição a dar ao ISP, mas há outras ciências e saberes que podem e devem concorrer para essa construção de conhecimento. A hegemonia de uma ciência a partir da “embocadura” da chefia é compreensível, mas temos que cuidar para não nos fecharmos em círculos de idéias. Estamos buscando fazer um ISP mais plural. Classe – Depois de sete meses já é possível fazer um balanço da sua gestão? O ISP está mais “pró-ativo”? Cel Mário Sérgio – Estamos trabalhando muito; celebrando convênios, estabelecendo novas parcerias. Para exemplificar com trabalhos mais recentes de nossa gestão, a Secretaria Estadual de Educação, o DETRAN, a Secretaria Estadual de Saúde e a Petrobrás nossos mais novos parceiros, com projetos em fase de desenvolvimento. Da gestão anterior concluímos o Observatório de Análise Criminal e o convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos, com recursos da União Européia. Sobre estar mais ou menos pró-ativo eu não gostaria de fazer comparações com outras gestões. Classe – No ano passado, o governador do Rio, Sérgio Cabral, chamou de “débil mental” o policial que matou o vigia Rubineu Nobre, de 29 anos, em um posto de gasolina, na Baixada Fluminense, no dia 10 de fevereiro. Se um governador se refere assim à sua própria polícia, como a população pode pensar o contrário? Cel Mário Sérgio – Creio que “a boca fala daquilo que está cheio o coração”. Num momento marcado pelo paroxismo da dor, dizemos muitas
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vezes o que não diríamos em outro momento. Classe – O governador também já defendeu o modelo colombiano de polícia.O ISP tem uma avaliação sobre esse modelo, que também recebe críticas por parte da esquerda por considerar que este modelo criminaliza a pobreza e os movimentos sociais? Cel Mário Sérgio – Avaliação não, mas eu conheço o trabalho realizado na Colômbia, marcadamente em Bogotá e Medellín. Estive três vezes com o sociólogo colombiano Hugo Acero somente neste ano de 2008. Como policial, digo sem medo de errar que deveríamos seguir o mesmo caminho. Sobre críticas da esquerda àquele modelo, conversei com pessoas nas ruas e nas favelas que visitei e mesmo na esquerda encontrei aprovação do projeto, mas, claro, não estive com ninguém das FARCS e nem do ELN. Classe – O que é e o que deveria ser a Segurança Pública? Cel Mário Sérgio – Deveria ser o conjunto de ações necessárias à promoção da ordem pública e da paz social. Todavia, embora seja uma opinião pessoal, o Rio de Janeiro tem um quadro que ultrapassa a dimensão da Segurança Pública, neste conceito, quando se fala de normalidade. Há pelos menos quinze anos o Rio convive com um “conflito urbano armado de baixa intensidade”, com combates cotidianos travados entre agentes da lei e quadrilhas, e essas entre si. Faz-se mister a retomada definitiva dos espaços onde o poder público perdeu o controle para as “facções” criminosas que dominam os territórios das áreas mais carentes do Rio de Janeiro. Através de uma estrutura de coerção despótica e assassina, assente
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no poder de fogo das armas de guerra que dispõem, o narcotráfico se exibe como um pequeno exército imprevisível na dimensão de suas violações. Sua força motriz é a “ideologia de facção”, que se sobrepõe à vontade de lucro no comércio ilícito de drogas. Classe – Qual seria o papel da polícia dentro da Segurança Pública? Cel Mário Sérgio – Seu papel constitucional. Classe – De acordo com os jornais, a Secretaria de Segurança do Rio comprou mais nove blindados, os chamados “caveirões”, ao custo de R$ 403 mil cada que se somarão aos 12 atuais. Os novos veículos são mais potentes e com mais saídas para armas, ou seja, vai matar mais? Cel Mário Sérgio – O “Caveirão” não é uma viatura militar, mas um carro civil; não possui acopladas metralhadoras, lança-granadas e outros petrechos. É utilizado, essencialmente, para conduzir policiais a locais de alto risco e nenhum equipamento mortal transporta além do armamento dos soldados. É forçoso utilizá-lo em áreas onde os traficantes estão à espreita, seja em lajes, becos, interior de construções ou trilhas de florestas para letal emboscada. A viatura blindada é uma estratégia de ação policial que preconiza a proteção do policial individual e coletivamente. Classe – É verdade que a Secretaria quer, ainda, comprar um blindado israelense capaz de explodir pequenas áreas? Qual a função de um veículo assim atuando em favelas? Cel Mário Sérgio - Não creio ser verdade. Embora eu não mais acompanhe a seleção de equipamen-
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não estão onde mora a burguesia? Cel Mário Sérgio - Porque o veículo blindado objetiva proteger os policiais dos disparos das armas de guerra e elas estão nas mãos dos narcotraficantes justamente nas favelas. São fuzis AK47, AR-15, RUGER, SIGSAUER, NORINCO, granadas M3, M4 e assim por diante. Compreende-se, e devemos concordar que palavras ofensivas não devem ser dirigidas a nenhuma Em mais um dia de ação da PM no Morro de São Carlos em busca das armas roubadas de seguranças do governador, um uspeito, conhecido como Risadinha, foi morto no confronto. pessoa de nenhum estrato Desesperada, a mãe tentou barrar o caveirão. Foto: Agência JB social, de orientação sexual tos por não ser este meu trabalho no ISP, creio que específica ou religiosa por essa condição. As polínão seja verdade. Todavia, a idéia de que as polícias cias devem respeitar pessoas e espaços públicos, insempre atentam contra o estrato social pobre, “crimi- distintamente; sobre isto concordo plenamente. Tonalizando a pobreza”, é espraiada a todo tempo por davia, reitero, as ações marcadamente de conflito grupos com interesses particulares, seguindo a orien- urbano armado são protagonizadas por criminosos tação ideológica que infere o crime como um processo que se estabeleceram nas favelas, subjugando seus coletivo de “luta de classes”. Assim, quando o Estado moradores com uma estrutura de poder cruel. adquire um equipamento de proteção para os policiais é natural que esse tipo de discurso surja, procurando Classe – Foi divulgado que a Secretaria de desqualificá-lo e exibindo-o como objeto de opressão. Segurança comprou um helicóptero modelo Huey II, empregado pelos Estados Unidos Classe – Para aprofundar essa lógica que o em operações no Iraque e no Afeganistão senhor expõe... então, o senhor diria que o que já está sendo chamado de “caveirão voEstado é neutro? E, por que os veículos ci- ador”. O custo divulgado foi de US$ 4,5 mivis blindados só atuam nas favelas? Os blin- lhões. Há um balanço do quanto se investe dados permitem disparos sem que policiais em formação para os policiais, em salários sejam identificados, transmitem gravações e em armas? Há uma correlação importante ofensivas contra a população... Por que eles de ser avaliada nesse tipo de investimento
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para que se observe o perfil da política de Segurança Pública de um Estado? Cel Mário Sérgio – Sobre o helicóptero blindado, sua aquisição se deve em razão dos muitos tripulantes que foram baleados por atiradores do narcotráfico, em terra, quando em operação nos helicópteros que as policias dispõem. Eu mesmo perdi dois amigos baleados dentro de aeronaves em vôo, um em Niterói e outro no Morro do Adeus, na Penha. Em relação ao balanço sobre investimentos em formação policial é uma questão que não está afeta ao ISP. Classe - O ISP divulgou que entre janeiro e março desse ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia no estado nos chamados “autos de resistência”, 12% a mais do que o registrado no mesmo período de 2007. Qual a metodologia aplicada nesses levantamentos? E os desaparecidos? Os mortos de quem não se acham os corpos? Como entram nesse levantamento? Cel Mário Sérgio – O auto de resistência, como indica o nome, é um documento lavrado pela autoridade policial quando ocorre resistência frente a uma ação legal e legítima do agente do Estado. A classificação é retirada daí. Sobre os desaparecidos gosto de lembrar que a estatística é uma ciência, e com tal, possuí regras e métodos que devem ser aplicados com rigor para que seus resultados possuam verossimilhança. Assim, podem existir desaparecimentos que são provenientes de homicídio, contudo, num primeiro momento não há como saber. O fato exposto é o simples desaparecimento de uma pessoa. Se, e somente se, for comprovada a morte por causa externa, é que, efetuando um registro de aditamento, o delegado irá trocar o título da ocorrência para o que melhor definia
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o acontecido. Mas, um homicídio ser registrado, em primeira instância, como desaparecimento de uma pessoa, é uma situação que não é prerrogativa do estado do Rio de Janeiro, isto pode acontecer em São Paulo, Minas Gerais, Nova Iorque ou em qualquer lugar. Classe – Como o senhor vê a ocupação dos morros pelo exército? Cel Mário Sérgio – Sou a favor. Todavia, entre muitos cuidados, um é fundamental: o Exército tem que estar investido de Poder de Polícia. Como disse anteriormente, perdemos há pelo menos quinze anos o controle de muitas favelas para o tráfico, e retomá-lo é trabalho duríssimo para o qual as polícias não possuem efetivos. A participação do Exército é sempre bem recebida pela população e mal-vista nos círculos intelectuais; haveria aplausos e críticas. Eu creio que estando o Exército com seus efetivos preparados para garantia da lei e da ordem, seu papel poderia se tornar definitivo para a mudança desse quadro atual. Insisto na questão do Poder de Polícia porque sem ele a participação da força terrestre seria inócua; num primeiro momento somente a presença do Exército já promoveria alguma dissuasão, mas logo que os traficantes percebessem sua limitação, haveria provocação e desrespeito à tropa, e isso poderia trazer conseqüências desastrosas. Classe – Vendo por outro lado coronel, a presença do exército dos morros cariocas já trouxe conseqüências desastrosas. A morte de Davi, Wellington e Marcos Paulo, entregues por militares a traficantes da facção rival, em junho desse ano, prova isso. E os protestos que se seguiram na comunidade também provam
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que a presença do exército não é bem vinda. Cel Mário Sérgio - O que aconteceu no Morro da Providência teve início justamente no erro de se colocar a força terrestre numa área geográfica onde havia um grupo armado, com representações simbólicas próprias, inserido socialmente, ditando valores aceitos sem reflexão, sem poder legal para superá-los com ações legítimas. Se o Exército entra com seu “ethos”, seus símbolos e seu aparato de força, que leve consigo o poder de agir como polícia, para conter, preventiva e moderadamente, no nascedouro, quaisquer manifestações provocativas contra sua presença. Naquelas condições em que foi colocado, exibindo-se, mas eximindo-se, era certo que logo teria problemas com a população local. Com “poder de polícia” pequenos problemas não ultrapassariam tal dimensão; sem “poder de polícia”, pequenos problemas tendem a se tornar hecatombes. Classe – Como a mídia ajuda a construir a imagem da polícia no Rio? Cel Mário Sérgio – Isso não é de interesse da mídia. Classe – Toda divulgação do filme “Tropa de Elite”, por exemplo, não constrói uma certa imagem da polícia? Cel Mário Sérgio – Sim, eu creio, mas não é uma imagem real e sim uma imagem idealizada pelo cineasta. Comandei o BOPE e asseguro que grande parte do filme é acidente e não essência. Classe - Como o ISP pode ajudar a melhorar não a imagem da polícia no Rio, mas, efetivamente, a atuação da polícia no Rio?
Cel Mário Sérgio – Apresentando dados confiáveis e projetos consistentes para uso das polícias. Classe – Como o senhor vê a aproximação da polícia com as universidades via cursos de segurança pública nas graduações e especializações? Cel Mário Sérgio – Estamos falando dos cursos da área de humanidades? Acho ótimo, mas é bom que se estabeleçam algumas questões muito pouco definidas, ainda. Policiais têm preferido cursos da área tecnológica e da ciência jurídica. Por que? Bem, tenho a intuição de que isso decorre da posição adotada pelos centros de ciências sociais, ou por alguns de seus maiorais, que postulam um saber válido e de oposição ao saber policial, o que fomenta a rejeição. Afinal, quem é “especialista de quê e por que?”. Qual ciência, e qual corrente acadêmica, possui o privilégio do saber de algo marcadamente de interesse das polícias e superior ao seu saber? E quem disse à “Academia” que o saber policial não é acadêmico? Bem, são algumas questões importantes em forma de escolhos teóricos a serem removidos. Classe – O que o senhor poderia falar da sua experiência como ex-comandante do BOPE e como atual diretor-presidente do ISP. Como esses dois espaços dialogam? Cel Mário Sérgio - Como comandante do BOPE pertenci ao “mundo dos encarnados”; mexi, revolvi, manuseei os problemas; senti os odores e enxerguei a escuridão do crime e suas conseqüências mais imediatas. Como presidente do ISP participo do “mundo dos espíritos” e aí enxergo as “luzes” e tenho contato com a perfeição abstrata das idéias. Transito bem nos dois mundos.
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Entrevista: Cecília Coimbra, Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e professora da UFF.
“Vivemos a fascistização do cotidiano” Foto: Stela Guedes Caputo
Professora do curso de Psicologia da UFF, Cecília Maria Bolsas Coimbra, é presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, fundado em 1985, por iniciativa de ex-presos políticos torturados durante o regime militar brasileiro e por familiares de mortos e desaparecidos políticos. A entidade, que faz questão de afirmar que não é uma ONG e sim um Movimento Social, tornou-se uma das principais referências nas lutas em defesa dos Direitos Humanos. Cecília é uma sobrevivente de 67 anos. Foi presa e torturada em agosto 1970, mas teimou em viver para contar a sua e outras histórias dos que foram massacrados pela Ditadura brasileira. Seu objetivo não é vingança, é justiça e, para isso, é incansável na luta para denunciar e responsabilizar torturadores neste País. Em entrevista, ela critica o governo Lula que, segundo Coimbra, “faz uma política pífia de Direitos Humanos. Fala também da ligação entre a tortura e o extermínio dos presos políticos durante o regime militar e a tortura e o extermínio dos pobres de nossos dias.
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Classe – Como está a questão da luta pela abertura dos arquivos da Ditadura? O Legislativo aprovou a lei de reparações, mas retrocedeu com a lei do sigilo de documentos. Que pacto é esse, mantido pelo Governo Lula, que faz com que, mesmo submetido à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, não haja justiça para as vítimas da Ditadura e para suas famílias? Cecília - Tem duas questões aí. A primeira é a interpretação que foi dada à lei da Anistia, uma interpretação dos juristas da Ditadura naquele período e que até hoje é vigente, ou seja, aqueles que teriam cometido os chamados “crimes conexos” teriam sido anistiados também. O Grupo Tortura Nunca Mais, desde que surgiu, questiona essa interpretação da Lei da Anistia porque não existe nenhuma conexidade entre o fato de você seqüestrar, prender ilegalmente, torturar, ocultar cadáveres, com a oposição que se fez ao regime militar naquele período. Crime conexo é a forma deles dizerem que a repressão usada contra os opositores políticos é uma ação conexa aos atos praticados contra a Ditadura Militar, o que é uma coisa
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totalmente perversa. Ora, existem dois grandes juristas como Hélio Bicudo e Fábio Konder Comparato que já provaram que não há nenhuma conexidade entre as duas coisas e que os torturadores não estão anistiados. Mas a interpretação dada pelos juristas da Ditadura foi engolida pela sociedade e pela própria esquerda brasileira quando também diz que os torturadores estão anistiados. Não estão! Classe – Pedir a punição dos torturadores é ser taxado de revanchista.... Cecília - A gente não quer revanche, a gente quer justiça. E hoje, mais do que nunca, temos argumentos jurídicos que embasam que não houve crimes conexos ali. A segunda coisa é que não queremos anular a Lei de Anistia. O que queremos é uma outra leitura da Lei de Anistia. A questão dos arquivos é puramente política. Nós sabemos dos acordos que foram feitos desde a anistia, como ela foi feita, que não foi ampla, social e irrestrita como os movimentos sociais pediam na época e que vem com essa interpretação da conexidade. Todas as forças que apoiaram a Ditadura continuam hoje apoiando os governos civis. O Governo Lula não tem nada de diferente dos governos civis anteriores. O Governo Lula está complementando, em termos neoliberais, a obra iniciada pelos militares, que é a implantação efetiva do neoliberalismo no país. O que o Governo Lula tem feito é pior, inclusive, do que os governos anteriores. Com relação à questão dos direitos humanos, os avanços que aconteceram foram mínimos para um governo que se colocava comprometido com a democracia e que se dizia um governo popular. Posso dizer isso de cadeira porque fui fundadora do PT no Rio e saí do PT há 3 anos e hoje não tenho partido nenhum.
O Governo Lula está complementando, em termos neoliberais, a obra iniciada pelos militares” Além disso, o GTNM é um grupo suprapartidário. A política de direitos humanos que esse governo vem efetivando é pífia. É uma política semelhante à de FHC, ou seja, é para “inglês ver”, apenas para dar satisfação às entidades internacionais. Classe – Amílcar Lobo era o médico que examinava os presos políticos para atestar até onde eles agüentariam. Você conseguiu identificá-lo, ele foi denunciado e teve seu registro cassado. Quem mais teve algum tipo de restrição? Onde estão os torturadores hoje? Cecília – Fui presa em agosto de 70, fiquei 2 dias no DOPS e depois fui para a polícia do Exército, o DOI-COD. Fui encapuzada e levada para uma cela. Quando me tiraram o capuz, entrou um homem vestido de militar que se disse médico, mas estava com um esparadrapo cobrindo sua identificação. Ele verificou a pressão, perguntou se eu era cardíaca e, logo depois, comecei a ser torturada. Fiquei presa 3 meses e meio sem nenhuma acusação contra mim. Um dia,
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esse mesmo médico esqueceu seu receituário na cela em que eu estava com uma companheira, a Dulce Pandolfi, que tinha ficado praticamente paralítica de tanto ser torturada. Apenas por isso consegui ver seu nome: Amílcar Lobo Moreira da Silva. Quando saí, fiz a denúncia. Foi uma celeuma internacional. A notícia saiu em uma revista de psicanalistas progressistas da Argentina chamada “Questionamos” onde se denunciava o Amílcar Lobo como assessor de tortura e, pasmem, ele era então candidato a psicanalista, fazia formação em psicanálise. Em 81, ainda na Ditadura, período do Figueiredo, fomos num grupo de ex-presos políticos ao consultório dele e saiu na primeira página do Jornal do Brasil. Três ministros militares fizeram um manifesto dizendo que não aceitariam revanchismo e a coisa recuou. Só em 85 o Conselho Regional de Medicina abriu um processo contra ele e nós ajudamos muito conseguindo depoimentos. Eu fui testemunha e, em 86, conseguimos a cassação dele. Isso foi muito importante porque a Anistia Internacional nos disse que criamos jurisprudência. Nenhum outro médico, de nenhum outro país, que tenha passado por recente ditadura e que assessorava tortura havia sido denunciado e tido seu registro cassado. O Brasil foi o primeiro. E, embora isso seja limitado porque foi conseguido via Conselhos, e se limita ao campo profissional, pelo menos a sociedade fica sabendo quem são essas pessoas.. Classe – Como a ditadura “legalizava” o extermínio sob tortura e que herança isso deixa? Cecília – A Ditadura tinha 3 formas de divulgação oficial para legalizar seus assassinatos: morto em atropelamento, suicídio e resistência à prisão. A herança é justamente este último que encontramos agora nos famosos “autos de resistência”
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praticados pelo Estado contra a pobreza. Ou seja, a polícia extermina e, na delegacia, se registra: “ morto ao reagir à prisão”. Outra herança é a figura do desaparecido. O número de pessoas desaparecidas é incalculável, outra prática de agentes do Estado para a qual não há dados. A Ditadura não inventou a tortura. A tortura sempre existiu nesse país para a pobreza. O que a Ditadura fez foi sofisticar as práticas de tortura. Classe – Em 12 de agosto deste ano, o presidente Lula disse que toda vez que falamos dos estudantes e dos operários que morreram, falamos xingando quem os matou e que esse martírio nunca vai acabar “se a gente não aprender a transformar nossos mortos em heróis, não em vítimas”... Cecília – Papo furado do Lula. E a gente também deve ter cuidado para não transformar ninguém em herói. Essas pessoas foram de uma generosidade muito grande porque deram suas vidas por um outro Brasil. Mas sou contra a heroificação de qualquer coisa e sou contra também a vitimização. Fomos atingidos sim pela violência do Estado. Somos sobreviventes dessa violência. Não usamos a palavra vítima porque esta expressão desqualifica o outro e todos passam à condição de “coitadinhos”. Não somos isso. A fala do Lula é extremamente demagógica por tudo isso. O que queremos é que os crimes que essas pessoas cometeram às escuras nos porões da Ditadura e nos aparatos clandestinos venham a público e que essas pessoas sejam conhecidas, com seus nomes publicados e seus atos publicizados. Agora, não estamos pedindo prisão perpétua e nem pena de morte para ninguém. Disso a Justiça vai cuidar. O que a gente quer é que essas pesso-
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as digam publicamente o que fizeram e assumam os crimes contra a humanidade que praticaram. Então, essa fala do Lula, como sempre, é uma fala em nome de uma pseudo-governabilidade, que é o que se vem falando desde o primeiro governo dele. Quando a gente fala de questões como a da abertura dos arquivos, a gente percebe que não há vontade política. E por quê? Porque as forças que apoiaram a Ditadura continuam presentes no cenário político apoiando os diferentes governos civis. Classe – Qual a diferença entre indenização e reparação? Quem já conseguiu receber a reparação do governo? Cecília – Indenização para nós é apenas indenizar financeiramente, o que, embora seja um direito, é pouco, muito pouco. A ONU usa o termo reparação como um processo onde primeiro se investiga o que aconteceu, responsabiliza e repara os atingidos com a colocação de que isso não volte a acontecer. Então, estamos muito longe de um processo reparatório. A reparação financeira é o final desse processo, é quando o Estado assume sua responsabilidade com o que fez. Isso não foi feito no Brasil até hoje. O que vem sendo feito no Brasil é o que chamamos de “cala a boca”. É pagar para esquecer o que aconteceu quando a gente sabe que nenhum dinheiro paga o que as pessoas sofreram, o que os familiares dos desaparecidos, por exemplo, sofrem até hoje. Tem mãe que ainda acha que o filho vai voltar. Mães que não mudam de telefone nem de endereço achando que os filhos podem estar por aí com alguma amnésia e que vão aparecer. Quando a gente inaugurou, há alguns anos, ruas com nomes de companheiros mortos e desaparecidos, alguns familiares não quiseram ir porque ver o nome
dos filhos em uma placa de rua era confirmar sua morte. A figura do desaparecido, criada pela ditadura brasileira e exportada para outras ditaduras latino-americanas, é uma coisa perversa porque tortura até hoje. A própria Ditadura caçoava dos familiares dizendo: “de repente, não desapareceu, está morando em um país comunista! Abandonou a família!” É uma perversidade sem tamanho. Classe - Só as pessoas mais conhecidas recebem? Cecília – Só as que aparecem mais. Veja bem, a reparação financeira é um direito, mas acho que os critérios tinham de ser mais transparentes. Ela deve ser o final do processo e não como esse grande “cala boca” que a caracteriza hoje no Brasil. Acho que umas mil pessoas já receberam. Eu mesma fui presa, torturada, perdi meu emprego, fui anistiada e até hoje não recebi nada. Não é por acaso que algumas pessoas mais conhecidas, escritores e jornalistas, recebam as reparações, às quais, repito, essas pessoas têm direito. Mas, lamentavelmente, essas pessoas quando recebem o dinheiro não lembram que sua história precisa ser contada. O Estado brasileiro, além de reparar financeiramente, precisa contar o que aconteceu. Ele precisa apontar os crimes cometidos em nome da Segurança Nacional. O triste é que companheiros que recebem as reparações não lembrem de falar isso, de contar o que foi o sofrimento e essa história desse sofrimento. Os critérios devem ser transparentes e publicizados porque, do contrário, a direita e a grande mídia adoram fazer isso, fica aquela coisa de “vejam as indenizações milionárias!”, que é uma forma de se jogar uma cortina de fumaça em cima do que efetivamente
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é uma reparação financeira. O Brasil exportou know-how de tortura para as ditaduras latinoamericanas, exportou torturador, pau-de-arara, manual de tortura. Apesar disso, é o mais atrasado de todos os países da América Latina em relação às reparações e de contar uma outra História, porque o que temos é a História dos milicos. Classe – Como você comentaria a recente frase do deputado federal e capitão da reserva do Exército, Jair Bolsonaro, “O erro foi torturar e não matar!” , diante de uma manifestação que exigia punição para os torturadores no Brasil? Cecília – Mostra a mentalidade fascista hoje desse país. O que foi e o que continua sendo. Para alguns segmentos da sociedade, a morte. Para os “terroristas” daquele período, que era como eles nos chamavam, e para a pobreza hoje, a morte. Para alguns segmentos rotulados de “perigosos” você justifica a tortura e o extermínio. Essa fala mostra muito bem o que hoje está se espraiando na sociedade e não só a brasileira, mas em todo o planeta. Classe – Uma fascistização generalizada? Cecília – É... vivemos hoje uma fascistização do cotidiano. Queremos um Estado punitivo, pedimos um Estado forte, penal. Todo mundo acha que a sua segurança está em cima de maior policiamento, de leis mais duras e repressivas, de se criminalizar todo e qualquer pequeno delito. Isso é o que vivemos hoje. Um Estado penal punitivo e uma política de tolerância zero. Isso se espraia por todo o planeta e está aqui. A política do casal Garotinho foi desenvolvida dentro dessa concepção de se criminalizar a pobreza, os movimentos sociais e todo e qualquer delito.
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Classe – Em que medida a impunidade em relação aos militares que torturaram na Ditadura se relaciona com a polícia que tortura hoje? Cecília – A Ditadura fez escola. E o fato da gente não conhecer nossa história recente contribui. Num primeiro momento da repressão brasileira, que vai até 70, 71, era só porrada pura e simples. A partir daí, se inaugura o que eles chamam de tortura científica. Você não encosta um dedo no sujeito, mas o desestrutura. Por exemplo, se colocava a pessoa em uma cela, que chamávamos de geladeira por sua temperatura baixíssima, com gritos e sons que você não identifica, ininterruptos, onde a pessoa simplesmente enlouquece. Nos EUA, algumas prisões de segurança máxima são assim: através da privação sensorial se produz a loucura. No Brasil, nem foi muito utilizado, mas teve sim companheiros que enlouqueceram em função disso. O golpe do Brasil foi o primeiro e os militares passaram a exportar essas técnicas que experimentavam aqui. Classe – Você disse, em seu livro “Operação Rio – o mito das classes perigosas”, que muitas pessoas ficam horrorizadas porque houve tortura na Ditadura Militar brasileira não por serem contra a tortura, mas porque esta foi praticada contra a classe média. Ou seja, tortura contra os pobres tudo bem? Cecília – Eu sempre digo isso. Não é que no movimento de oposição ao regime militar não estivessem presentes operários e camponeses, muitos estavam, mas não são falados e ficam esquecidos. Os que são falados são os intelectuais e estudantes, mas a tortura, a prisão e o desaparecimento se naturali-
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A política de direitos humanos que esse governo vem efetivando é pífia. É uma política semelhante à de FHC, ou seja, é para‘ inglês ver’” zaram como sendo só para a pobreza e não para a classe média e a elite. Se há horror da sociedade, é só em relação a isso, mas temos de nos horrorizar independente da classe social. Classe – Por que está cada vez mais comum pensar que falar em direitos humanos é “querer passar a mão na cabeça dos bandidos”? Cecília – Por que está sendo disseminado na sociedade através dos grandes meios de comunicação de massa, mas não só eles, isso é uma construção histórica no Brasil. Ou seja, vai se ligando indissociavelmente e naturalmente pobreza e criminalidade. Ou seja, onde está o pobre, está o perigo. Onde está o pobre, está o crime. É o que o psicanalista francês Félix Guattari fala quando se refere a produção de subjetividades. Ou seja, tão importante como a produção do aço, das riquezas, é a produção de modos de viver e de existir. Através dessas subjetividades produzidas, você domina. A ligação entre pobreza e
criminalidade é algo que está naturalizado em cada um de nós. Essas forças nos atravessam. E isso, na Europa, começa em meados do séc. XIX e, no Brasil, chega no final do século XIX e início do XX. Classe – No livro, outro conceito com o qual você trabalha bastante é o de periculosidade, do Foucault... Cecília – É, o Foucault falava que no século XIX emerge um dispositivo presente entre nós chamado de periculosidade. Ou seja, tão perigoso quanto aquilo que o sujeito fez é aquilo que ele poderá vir a fazer, dependendo da essência desse sujeito. Aí você dá uma essência para a pobreza, de perigosa e de criminosa, uma coisa perversa. Classe - Se pensarmos que os empresários financiaram a ditadura e a tortura, isso define o caráter de classe da Ditadura Militar brasileira. Esse ainda é o caráter de classe que marca a tortura contra os pobres em nosso país? Cecília – As Madres da Praça de Maio têm uma: “Da Ditadura Militar à ditadura de mercado”. Obviamente sabemos que os militares foram testasde-ferro das multinacionais. Os golpes militares na América Latina, nos anos 60 e 70, servem à implantação das multinacionais. Vários empresários deram dinheiro para a formação dos DOI-CODIS para a Operação Bandeirantes, o laboratório que começou a funcionar em 69 em São Paulo, onde se unificou toda a repressão. Daí é que se originaram os DOI-CODIS. É por isso que muitos historiadores afirmam que não devemos usar o termo Ditadura Militar, e sim civil-militar. Os empresários deram um apoio muito grande à tortura. Raros não fizeram isso. Portanto, o caráter de classe está presente
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porque é o caráter do capital. A Ditadura vem para implementar um determinado momento do capitalismo internacional. Os militares iniciam a implantação do projeto neoliberal e os governos civis vão complementando, mantendo e aprofundando esse projeto. E chega ao ponto em que temos um governo do Partido dos Trabalhadores, que tem uma responsabilidade social enorme em completar essa obra. Classe – Em novembro de 2007, o médico Harry Shibata, que foi diretor do IML e assinava atestados de óbito durante a Ditadura, deu uma entrevista. Nela, ele diz que bandido tem “um componente genético” e defende a eugenia porque, para ele, “o pessoal lá do Norte e Nordeste não tem cultura nem inteligência para entender que é melhor qualidade do que quantidade” e precisa ser controlado. Um mês antes, o governador do Rio, Sérgio Cabral, defendeu a legalização do aborto para reduzir a violência, afirmando que o índice de natalidade nos bairros de classe média e alta do Rio possuem padrão “europeu”, enquanto as periferias e favelas possuem níveis “africanos”. Já em agosto deste ano, o senador Marcelo Crivella, candidato do PRB (derrotado) à prefeitura do Rio, defendeu a redução da idade mínima para laqueadura de trompas e vasectomia, “sobretudo nas áreas carentes”. Esse pensamento que relaciona natalidade, pobreza e violência vem da direita, mas cria cada vez mais lastros na sociedade? Cecília – Essas teorias ditas “científicas” estão presentes no Brasil desde o início do século XX,
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como a eugenia, que pregava a esterilização dos considerados “perigosos”, e o higienismo, que vai dizer que os pobres não têm condições de criar seus filhos. Uma aliança entre o Direito e a Medicina aponta quem são os indesejáveis e vai dar uma essência a essas pessoas, a esses segmentos pobres da sociedade. Isso se atualiza hoje e de várias formas, no Congresso Nacional por exemplo. Hoje, existem 1457 projetos de lei, todos versando sobre penas mais duras e severas, não só para diminuição da maioridade penal, mas para que a criança possa civilmente responder a processos como testemunha. Existem projetos para que pedófilos sejam esterilizados quimicamente. Hoje vemos novas modalidades de eugenia e higienismo. Isso é o avanço do Estado penal. Quando falo do fascismo social, estou falando desse resgate dessas teorias ditas científicas, que voltam a ser utilizadas no século XXI com outras caras e fisionomias. É uma forma de se dizer que sim, alguns merecem a tortura e o extermínio. Classe - Shibata também disse o seguinte: “A repressão tinha de combater a subversão na Ditadura. É a mesma coisa que a Tropa de Elite fez e faz combatendo o tráfico no morro. Tem que acabar com a liderança, tem que matar a liderança mesmo. Mas é pouca gente na Tropa. Por que quantos morros tem?” Cecília – Então é isso, bota mais “homens de preto no morro”. Essa é a mensagem do filme, que é muito bem feito tecnicamente e totalmente fascista. De uma forma heróica e naturalizada, mostra a participação da polícia na tortura e no extermínio. Não é por acaso que eles dão tanta ênfase aos treinamentos. Os treinamentos militares hoje produzem
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torturadores. Isso precisa ser pensado pelo Estado brasileiro porque acontece tanto na Polícia Militar, como na Guarda Municipal e nas três Forças Armadas. Inclusive há casos de jovens que morrem em treinamento no Exército e que as famílias não conseguem denunciar porque têm medo. Classe - O que as Forças Armadas representam hoje? Cecília – O que sempre representaram: o braço armado do capitalismo, como as polícias também. Se o atual governo diz que é popular e democrático, as Forças Armadas deveriam ser as primeiras a desejar trazer à tona o que aconteceu em nossa História para toda a sociedade. Trazer os crimes que foram praticados em nome da Segurança Nacional, crimes praticados por seus agentes, com o apoio dos comandantes militares, dos presidentes militares. Se as Forças Armadas querem pensar na construção de uma sociedade um pouco mais aberta e democrática, essa História precisa ser contada. Classe – Como se gestou esse conceito de “classes perigosas?” Cecília – Ele aparece em 1857 na Europa, num livro do Morel chamado “Teoria da Degenerescência”. É a primeira vez que se usa esse termo e o Morel diz que na sociedade existe uma variedade de “espécies” perigosas. Daí por diante, esse pensamento veio se alastrando. Classe – Como a imprensa ajudou e continua ajudando na construção desse pensamento? Cecília – Naturalizando isso, a essência. A imprensa ajuda quando não cessa de repetir que o pobre, se ainda não é perigoso, vai se tornar. Quando
produz o terror e o inimigo: o negro, o pobre. O Milton Santos dizia que, nesse processo, não só caracteriza como perigosos os segmentos pobres da população, mas também os territórios que eles habitam. São territórios perigosos, como as favelas. Então, a sociedade passa a achar que isso é natural. A situação é tão terrível que tem um filósofo italiano, Agamben, que diz que se produziu hoje o que ele chama de “vida nua”, aquele que é matável e que, portanto, não é considerado homicídio. O que se dissemina é que para a minha segurança é necessário que esses “matáveis” sejam mortos. Daí a política de segurança pública militarizada. Classe – A maximização desse Estado penal é propícia para a criminalização do movimento social? Cecília – Sim, e principalmente a criminalização dos que não foram capturados pelo Governo Lula. Vivemos também um momento de judicialização do cotidiano. Ou seja, a justiça penetra no cotidiano e a gente não se dá conta disso. Passamos a defender também que para a nossa segurança precisamos de leis mais duras, penas mais severas e mais agressivas como prisão perpétua, diminuição da maioridade penal, pena de morte. Aqui na UFF, por exemplo, já existe um curso de especialização em segurança pública que eu acho muito estranho. É um curso que, para meu espanto, ao que parece, substituiu um curso que havia na PM. Ou seja, para se chegar a coronel era necessário passar por esse curso, que se assemelha a um doutorado. Acho que a formação de policiais, civis ou militares, precisa ser feita em academias próprias para isso.
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Classe – E po r onde passaria essa discussão na universidade? Cecília - A questão da segurança pública precisa ser discutida nas ciências humanas e sociais. Essa discussão tem de estar presente na Psicologia, na Sociologia, no Direito, nas ciências políticas. Hoje, se tenta criar um curso de graduação em segurança pública (* o curso não foi aprovado), o que eu acho muito perigoso dentro desse contexto em que vivemos. Por que criar um especialista em segurança pública se o sociólogo pode discutir isso? Se o psicólogo pode discutir isso? Se o antropólogo pode discutir isso? A resposta que encontro é porque a segurança pública virou também um grande mercado, outra conseqüência desse Esta-
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do Penal que se maximiza. Hoje, os estudantes que criticam a implantação desse curso são também criminalizados. Classe - A quem interessa difundir essa idéia de que vivemos uma guerra civil? Cecília – Aos poderosos, já que, uma vez aceita essa idéia, entramos no vale-tudo. Significa dizer que se a minha segurança depende da eliminação do outro, que morra o outro. Mas a segurança em questão é sempre a do rico e o outro que precisa morrer é sempre o pobre. Classe – Isso subjetividade?
gerou
um
novo
tipo
de
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Cecília - É o que eu chamo de uma subjetividade moralista-policialesca-punitiva-paranóica: todos com medo de todos, mas o alvo maior de nosso medo e, portanto, alvo da maior punição, é o pobre. A Vera Malaguti fala muito bem que a produção do medo na cidade do Rio de Janeiro é uma forma de controle social.
foto: Stela Guedes Caputo
Classe – É esse medo produzido que faz com que se exija mais leis? Cecília – Sem dúvida. O homossexual quer criminalizar o homofóbico, os ecologistas os que poluem, os pais que não mandam seus filhos para a escola são criminalizados. Você criminaliza tudo e a gente acaba achando que a solução é por aí. Não adianta pedir mais leis, pedir mais tutela do Estado: as leis estão aí. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, está fazendo 18 anos e nunca foi implementado. A criança pobre continua sendo chamada de menor e não de criança. O meu filho é criança, o filho da pobreza é menor. Para que mais leis? Classe – Em que medida a construção dicotômica da “cidade partida”, do Zuenir Ventura, atrapalha a compreensão da cidade como uma única realidade onde o embate, das mais variadas formas, é entre as classes sociais? Cecília – Eu acho que nada melhor do que voltar para Karl Marx, que dizia que miséria e capital se complementam. Não existem duas cidades partidas. O capital precisa da miséria e a miséria é efeito do capital. A cidade se integra e é uma só, onde o capital produz os explorados que, juntos, precisam se insurgir contra o capital.
Classe – Como os movimentos culturais podem ajudar no avanço da consciência da classe trabalhadora e como também podem atrapalhar? Em que medida alguns movimentos reforçam o mito da “cidade partida” e se conformam numa luta pelo “diálogo entre o morro e o asfalto e pela visibilidade?” Cecília – Eu acho que alguns movimentos sociais são atravessados não só por essas dicotomias, mas também pela crença de que a luta pela visibilidade resolve alguma coisa. Não resolve nada. Essa coisa da visibilidade até reforça isso, sou contra tudo isso, que não passa de assistencialismo. Além disso, toda identidade é conservadora se não lutar contra o capital. Classe – Por onde passa a mudança de tudo isso? Cecília – Pelos movimentos sociais. Eu só entendo as lutas institucionais vinculadas aos movimentos sociais. Quando ocupamos espaços de poder, é para apoiar os movimentos sociais, e não para capturá-los, mas importantes lideranças foram capturadas por esse governo neoliberal do Lula e isso não pode mais acontecer. O problema é que os movimentos que não foram capturados pelo governo estão sendo capturados pela subjetividade penal, pela luta dos movimentos culturais pura e simples e devemos também estar alertas para isso. As mudanças não virão nem em curto nem em médio prazo, mas, para que as alcancemos algum dia, é preciso deixar de achar que tudo o que acontece é natural. É preciso desconfiar dos meios de comunicação, da mídia de uma forma geral e dos movimentos conformadores.
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Entrevista com José Damião de Lima Trindade, ex-presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo
“Só a esquerda socialista pode carregar a bandeira dos Direitos Humanos” O ex-presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo, José Damião de Lima Trindade, lançou recentemente a segunda edição de seu livro “A História Social dos Direitos Humanos” (Editora Petrópolis). O livro e a atuação incansável em defesa dos Direitos Humanos fizeram com que o advogado recebesse, no dia 24/10, no auditório central da UFRJ, o prêmio “João Canuto de Direitos Humanos”, na categoria “Destaque em Educação em Direitos Humanos”, promovido pela entidade carioca “Movimento Humanos Direitos”. No ano em que a Declaração Universal completa 60 anos (10/12/2008), a visão singular deste autor recoloca a questão da classe social nesta importante discussão. Na entrevista que segue ele fala sobre o livro, polícia, criminalização dos movimentos sociais, mídia e segurança pública.
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Classe – O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou que, entre janeiro e março deste ano, 358 pessoas foram mortas pela polícia no estado nos chamados “autos de resistência”, 12% a mais do que o registrado no mesmo período de 2007. A polícia está matando cada vez mais. Como avaliar essa realidade? José Damião – O crescimento da violência policial, tanto nas ruas quanto no interior das delegacias, é uma tendência estatisticamente verificável em praticamente todas as grandes cidades brasileiras. O caso do Rio chama mais atenção devido a certas especificidades muito conhecidas. Primeiro, porque a topografia carioca faz com que bairros de classes média e alta convivam lado a lado com bolsões de miséria – diferente-
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mente de outras capitais, onde já vai adiantado o processo de expulsão da miséria para a periferia. São Paulo, que outrora tinha favelas em regiões centrais da cidade, empurrou-as para longe nas últimas décadas. Quem entra ou sai da cidade por qualquer das rodovias de acesso tem de atravessar o ostensivo cordão de favelas. E é sobre a pobreza que a violência policial mais se abate. Por isso, no Rio, a violência policial acaba sendo mais “visível” para a classe média. Outro aspecto que chama a atenção no Rio é o sério envolvimento de policiais militares e civis com as violentas “milícias” criminosas das zonas norte e oeste, bem armadas e municiadas, até representadas politicamente, cada vez mais atrevidas. Não fosse o episódio de torturas praticadas durante horas contra repórteres do jornal “O Dia”, em março de 2008, talvez sequer tivesse sido instalada na Assembléia Legislativa a CPI sobre as milícias, que o deputado Marcelo Freixo havia proposto um ano antes. Outro fator a conferir notoriedade à violência policial carioca é, digamos, de ordem “publicitária”: os “caveirões” tornaram-se símbolos aterrorizantes da brutalidade institucional no estado. Classe – Como repensar a segurança pública dentro dos marcos do capitalismo, posto que nesta ordem é impossível uma sociedade justa? Afinal, segurança pública para quem? José Damião – No capitalismo, seja aqui, seja na Noruega, a função primária do aparato policial e dos aparatos privados complementares não é propiciar segurança ao “público” em geral, mas sim assegurar proteção, difusa ou ostensiva, à propriedade privada e aos seus detentores. Essa condicionante básica já limita severamente todos os projetos
de “democratizar” ou “humanizar” o corpo policial numa sociedade capitalista. Mas numa Noruega, em que as contradições sociais foram minimizadas pelo Estado de Bem-Estar (que só agora começa a ser destruído por lá), a polícia não precisa ser tão violenta para defender a propriedade privada. Já na América Latina e África, com desigualdades sociais extremadas, a violência policial erigiu-se em principal método profissional das instituições de segurança. No caso brasileiro, há um agravante: a impunidade dos assassinos e torturadores da época da Ditadura Militar acabou sendo uma espécie de “garantia” de impunidade para os assassinos e torturadores fardados e sem farda de hoje. Philip Alston, o relator especial da ONU para execuções sumárias asseverou que, no Brasil, a polícia tem “carta branca” para matar. Basta registrar: “resistência seguida de morte” ou “morte em troca de tiros”. Classe – É possível pensarmos em ações específicas para o combate ao racismo nas instituições de segurança pública, já que a juventude negra é a principal vítima da violência policial? José Damião – Ações educativas interna corporis na instituição policial têm se mostrado de eficácia duvidosa, ao menos até agora. O policial civil ou militar é convocado para assistir umas aulinhas sobre direitos humanos, igualdade racial, respeito ao cidadão, e fica nisso. A “ideologia” da violência, da bala, da pancada, do choque elétrico e do preconceito racista e classista, que fincou raízes em toda a instituição policial desde a Ditadura Militar, acaba pesando mais. Essas aulinhas acabam se tornando objeto de galhofa. Eu mesmo, chamado para dar aulas de direitos humanos em cursos de formação
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Edna Ezequiel, mãe de Alana, de 12 anos, assassinada por policiais militares, em março de 2007, no Morro dos Macacos. Foto: Agência O Globo
de policiais militares em São Paulo, percebia o enfado e o escárnio em muitos semblantes. Não que tais ações educativas devam ser interrompidas, mas, sozinhas, são impotentes para transformar mentalidades e práticas. Faz falta um conjunto de medidas que amenizaria a situação: salários dignos, para que os policiais não precisem “trabalhar” para o tráfico de drogas/armas e para as milícias; recursos tecnológicos modernos, para que o pau-de-arara deixe de ser o principal “método” de interrogatório e investigação; e a mobilização da sociedade, que deveria se organizar e pressionar para exigir rigor e verdade na ação da Corregedoria das polícias. Mas, note bem: usei o verbo amenizar. Essas e ou-
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tras medidas poderiam amenizar a situação, o que já seria um avanço em termos de vidas poupadas, redução da truculência policial e colocação da corrupção policial “sob certo controle”. Porque a função policial básica exigida pelas instituições, pelas classes dominantes e pela grande mídia, porta-voz das classes dominantes, continuaria a ser a mesma: reprimir a pobreza, mantê-la afastada da propriedade, mantê-la trabalhando quietinha e conformada. Sob o capitalismo, não nos transformaremos numa Noruega. Mais fácil, com essa crise mundial, a Noruega retroceder para Brasil. Classe – Passou a ser comum que manifes-
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tações contra a violência reúnam mães que perderam seus filhos. Consolam-se mutuamente os pais de João Hélio, comerciantes; os pais de Gabriela Prado, psicólogos (a mãe faleceu recentemente); a mãe da menina Alana, morta no Morro dos Macacos, empregada doméstica; a mãe de Hanry da Silva, morto por policiais no Lins. O que une e o que separa essas pessoas? José Damião – A dor comum as une. E a dor humana é território sagrado. Consegue, durante certo tempo, diluir as fronteiras de classe que separavam essas pessoas. Mas se a dor e a revolta não se amalgamarem com um projeto de democratização profunda das nossas corporações policiais, a dor que hoje arma vozes acabará, por falta de resultados, se cansando e se calando. Já aconteceu antes. Classe - No dia 22 de agosto de 2007, a tropa de choque invadiu a Faculdade de Direito da USP. Em artigo, na ocasião, você disse que o ato, além de configurar, por si mesmo, uma agressão à autonomia universitária, pôs a nu sua natureza de preconceito de classe, já que, dentre os presos naquela madrugada, somente os ativistas de movimentos sociais foram fichados na delegacia de polícia. José Damião – É verdade, os estudantes foram liberados sem fichamento. A ideologia dominante até admite que os filhos das classes dominantes às vezes cometam alguns “excessos”, como protestar, denunciar, participar de ocupações simbólicas. Coisa de juventude: quando começarem a ganhar dinheiro isso passa, é o que dizem – e geralmente passa mesmo. O patrimônio familiar, a consciência
No capitalismo, não há mais nenhuma esperança de melhoria social significativa, o movimento é regressivo, aponta para a supressão de direitos que, em alguns casos, os trabalhadores haviam conquistado já no final do século dezenove” de pertencer à elite econômica ou de estar em suas imediações, quase ingressando nela, acaba se impondo, salvo as exceções de plantão. Mas pobres, negros, índios, camponeses, favelados, desempregados ocuparem por algumas horas o pátio de uma faculdade pública para protestar contra as injustiças da sociedade, isso é intolerável: chamem a polícia! Classe – Como você vê a crescente criminalização dos movimentos sociais, em especial, do MST? José Damião – Vejo com temor devido à falta de uma reação apropriada, enérgica, da sociedade. Os movimentos sociais ainda padecem de desnorteamento político-ideológico, muitos estão paralisados pela cooptação institucional de seus líderes ou depositam esperanças em bolsas assistenciais. O movimento sindical chegou ao fundo do poço, encolhido, desmobilizado, com uma parcela imensa corrompida. Mas as contradições sociais, a desigualdade brutal e a concentração de renda continuam operando, geran-
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do dor social, mal-estar, criminalidade, desemprego. Isso ainda pode ser contido por uma polícia repressiva. O que não pode ser admitido é a atividade daquela franja de movimentos que não se rendeu, que insiste em organizar os oprimidos, mobilizá-los para a ação consciente. Isso pode crescer, tornar-se perigoso no primeiro abalo econômico que o país sofrer. Antes que saia de controle, é preciso cortar o “mal” pela raiz. Demissão de sindicalistas, imposição judicial de “interditos proibitórios” para que os piquetes de greves não possam se aproximar dos portões das empresas, multas milionárias contra os sindicatos combativos, tentativa de colocar o MST na ilegalidade, uso até da infame Lei de Segurança Nacional da ditadura... Um novo macartismo começa, aos poucos, a tomar os poros da sociedade. E não temos conseguido reunir forças para dar resposta à altura. Muito preocupante. Se a crise econômica mundial se precipitar com severidade, isso pode piorar muito, e rapidamente. Em épocas de crise, as classes dominantes sempre encontram os seus Roosevelts ou Mussolinis e usam um ou outro conforme for mais conveniente para manter seus interesses. Classe – Muitas universidades estão organizando pós-graduações e graduações em Segurança Pública. Como você vê isso? José Damião – O tema “segurança pública”, como qualquer outro tema relevante, poderia ser objeto de atenção científica na academia. O problema não reside aí. O problema surge na ideologia que perpassa tais cursos. Estamos numa época em que o Estado Social cede lugar ao Estado Penal e a burguesia, em vez de, como antes, administrar as contradições sociais mediante concessões pontuais, mas reais, aos trabalhadores, passa a fazê-lo
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mediante a combinação de um duplo movimento: anestesiamento da miséria (assistencialismo) e repressão ao que restar de manifestações daquelas contradições. Com esse espírito dos tempos, o tema “segurança pública” acompanha esse movimento: estudar a segurança pública na academia tem o propósito de torná-la “mais eficiente”, assimilar técnicas de contenção social que deram certo em outros países, sem atenção às conexões sociológicas da criminalidade e sem investigar a função social que o capitalismo atribui às forças de segurança. Isso torna toda transgressão legal um fenômeno merecedor de atenção puramente “técnica”, “neutra”, alienada. Exatamente o tipo de formação de profissionais que convém ao status quo. Classe - É comum que parentes e pessoas amigas de vítimas da violência peçam mudanças no Código Penal, em geral o endurecimento das penas e a redução da maioridade penal. A mídia é responsável por essa associação? José Damião – A mídia é cúmplice consciente, cínica. Que familiares e amigos de vítimas, trespassados pela dor por perdas violentas, queiram “vingar” o derramamento de sangue com mais derramamento de sangue, é compreensível. A dor humana, malgrado sagrada, pode cegar, toldar a lucidez e conduzir ao insensato. Mas a grande mídia burguesa toma essa dor humana e transforma-a em espetáculo, com o propósito de adicionar mais cegueira à cegueira, para que as vítimas escolham o caminho errado, o caminho da vingança penal, e não tomem consciência das raízes sociais da criminalidade. Os juristas, os políticos, os intelectuais orgânicos das classes dominantes sabem disso e ocultam. Está demonstrado
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internacionalmente que o “endurecimento” penal é inócuo, não altera a curva estatística do delito. Nenhum delinqüente “consulta” o Código Penal antes de transgredir. Também está nauseantemente demonstrado que calabouços não “ressocializam” ninguém. A privação de liberdade, salvo naqueles raros casos de psicopatas violentos, fracassou no mundo todo enquanto instrumento de defesa social. É baixíssimo o índice de reincidência após o cumprimento de penas alternativas (prestação de serviços à comunidade, restrição de direitos, etc.). E é cada vez maior o índice de reincidência após o cumprimento de penas de encarceramento. Esses dados são públicos, estão disponíveis. Mas, como a burguesia não consegue aliviar o mal-estar social – precisaria mexer com os lucros – ela prefere alimentar essas ilusões penais de Talião, trágicas para os oprimidos. Classe – Quando se vai contra essa lógica, seus defensores criticam “a turma dos direitos humanos”. Como responder a esse endurecimento social cada vez mais cimentado? José Damião – É muito difícil dar essa reposta porque, como se sabe, a ideologia dominante numa sociedade é sempre a ideologia da classe dominante. Se não conseguirmos estabelecer uma conexão eficiente entre cada uma das mazelas sociais e o verdadeiro epicentro do problema – a divisão social em classes – não conseguiremos manter um discurso coerente nem convincente. Classe – No seu livro “A história social dos Direitos Humanos”, relançado agora, o senhor diz que a burguesia, que originalmente concebeu o discurso dos direitos humanos, precisa hoje rejeitá-lo e que a es-
querda, que o identificava como mistificação ideológica, tomou-o para si. Mas como a esquerda deve carregar essa bandeira? José Damião – Só a esquerda socialista pode hoje carregar a bandeira dos direitos humanos. A burguesia desinteressou-se dela – não pode mais sustentá-la. Poderia hoje o capitalismo universalizar direitos econômicos, sociais e culturais, da Namíbia à Holanda? Obviamente, não. O movimento do capital, a acelerada incorporação da ciência e da tecnologia nos processos produtivos e a desregulamentação dos mercados acirraram dramaticamente a concorrência mundial inter-capitalista nas últimas duas ou três décadas. Para sobreviver nessa guerra hobbesiana, o capital precisa cortar custos de produção de mercadorias. Economizar com meios de produção tornou-se impossível, a produtividade despencaria. O único “custo” que restou disponível para ser cortado é o da própria força de trabalho. Redução/supressão de direitos econômico-sociais – eis a sacrossanta consigna que entoam os capitalistas ao redor do planeta. Desunidos e confusos ideologicamente, acuados pela maré montante do novo exército industrial de reserva (o desemprego estrutural), os trabalhadores não têm conseguido resistir. No capitalismo, não há mais nenhuma esperança de melhoria social significativa, o movimento é regressivo, aponta para a supressão de direitos que, em alguns casos, os trabalhadores haviam conquistado já no final do século XIX. E os direitos individuais? Quanto a eles, qual o significado de Abu Ghraib, Guantánamo, dos navios-prisões que hoje os EUA mantêm em águas internacionais do Pacífico, dos centros secretos de tortura que instalaram na Europa Ocidental, no Egito, no Paquistão? Qual o significado das guer-
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A esquerda está “condenada” a defender os direitos humanos ou capitula miseravelmente” ras de agressão da maior potência imperial? Qual o significado da covarde conivência/complascência da “comunidade internacional” em relação a tais violações? A esquerda está “condenada” a defender os direitos humanos ou capitula miseravelmente. Classe – O senhor também explica que a Declaração de 1948 tentou conciliar liberalismo e socialismo, mas manteve o direito de propriedade ilimitado. Os socialistas porém querem socializar os meios de produção. Como resolver a contradição? José Damião – Essa contradição é reveladora do duplo discurso existente sobre direitos humanos. Um discurso hipócrita, para uso político e diplomático, e outro discurso inescapavelmente libertador. O discurso hipócrita é o da diplomacia norte-americana e de seus repetidores em todos os países, que separa a humanidade em duas classes distintas de “hu-
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manos”: de um lado, as classes dominantes do mundo; de outro lado, os subalternos de toda parte. Aos primeiros, vale tudo para defender seus interesses egoístas, predadores, destruidores da humanidade e do planeta, desde sanções econômicas até disparos de mísseis. Aos subalternos, nega-se direitos os mais elementares. Que importância tem para Wall Street a miséria apavorante da África subsaariana? Ante a perspectiva da globalização da barbárie, é Karl Marx – não Adam Smith ou Hayek – quem tem algo a nos dizer. E que o ouçamos logo, se é que ainda não renunciamos ao sonho belo, possível e, hoje, crucialmente necessário de edificarmos um mundo que permita a todos sobreviver – sobreviver com dignidade e com um pouco de amor, sem desperdício e sem terrores pré-históricos. Temos escolha, e é esta: entre Sísifo e Prometeu. Ambos foram condenados a tormentos eternos. Prometeu, porque roubou fogo aos deuses e o entregou à humanidade, libertando-a. Já o tormento de Sísifo é acabrunhante, porque sem sentido: carregar nos ombros uma grande rocha até o alto de uma montanha, perdê-la logo antes de chegar ao cume, vê-la rolar de volta ao sopé, retomar a pedra, subir novamente a montanha, a rocha a escapar-lhe novamente das mãos... Ambos os mitos podem ser tomados como metáforas da condição humana. O de Sísifo, metáfora da persistência, do eterno recomeçar – mas um recomeçar solitário e trágico, sem sentido e sem liberdade. Já Prometeu, mesmo acorrentado e com uma ave de rapina a devorar-lhe o fígado, é livre e libertador: porque escolheu transgredir a lei dos deuses em favor da humanidade.
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Mídia e Política
Comunicação e controle social Marcelo Salles Jornalista
As corporações de mídia são as principais responsáveis pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Não há outra instituição da república com maior poder de produzir e reproduzir o discurso que associa pobre a bandido – e organizações de trabalhadores a bandos criminosos. Mais que a família, a escola, as Forças Armadas ou qualquer outra instituição, a mídia alcança um poder desmedido e destrutivo no Brasil basicamente por dois motivos: a brutal concentração dos veículos de comunicação de massa nas mãos da direita e o avanço das tecnologias da informação, o que permite que sua mensagem alcance praticamente a totalidade da população. Apenas para se ter uma idéia, nos EUA é proibido que um mesmo grupo empresarial controle, na mesma praça, um veículo de comunicação impresso e uma emissora de rádio; ou uma emissora de rádio e outra de televisão; e assim por diante. Além disso, o conselho federal de comunicação estadunidense proíbe que
o mesmo proprietário detenha mais de 30% da audiência dos veículos de radiodifusão num mesmo local. Aqui no Brasil, por outro lado, uma única empresa controla 40% da audiência e recebe 60% das verbas publicitárias. Para piorar o quadro, há um dado impressionante do Instituto Paulo Montenegro, que foi citado pelo pesquisador da UnB Venício Lima em seu livro “Mídia: teoria e política” (Fundação Perseu Abramo): apenas 26% da população brasileira entende o que lê. Isso significa que o rádio e a televisão ganham ainda mais poder, já que para transmitir suas mensagens não dependem que o público seja alfabetizado. Esta característica da mídia de massa poderia ser um dado positivo, já que no Brasil os veículos de radiodifusão são concessões públicas e, portanto, deveriam ser controlados pelo povo brasileiro – e em seu benefício. Erradicar o analfabetismo, por exemplo, levaria apenas 30 meses pelo método cubano “Yo sí Puedo”, que emprega o sistema audiovisual. Entretanto, os parlamentares que autorizam a renovação das concessões são, muitas vezes, proprietários de emissoras afiliadas às grandes redes – o que fere o artigo 54 da
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Constituição Federal – uma situação que perpetua a relação fisiológica estabelecida com a ditadura civil-militar de 1964. O resultado é que hoje, em 2008, o Brasil, país de 190 milhões de habitantes, possui apenas 7 emissoras abertas de televisão, sendo que seis delas são ideologicamente afinadas e estão a serviço da exploração dos povos para garantir os lucros das corporações privadas mundo afora. A outra emissora apenas agora começa a buscar uma outra narrativa, mas ainda não ofereceu elementos concretos que apontem para uma alternativa ao pensamento único. Não parece casual que um dos países mais desiguais do mundo seja também um país com esse nível de concentração midiática. Uma pesquisa da ONU revela que os meios de comunicação estão em segundo lugar entre os poderes de fato da América Latina, muito à frente dos três poderes da república e um pouquinho atrás do poder econômico (ver tabela). O cruzamento dos dados permite afirmar: as corporações de mídia são diretamente responsáveis pelas mazelas brasileiras. Esse monopólio midiático atua em todos os setores da sociedade. Desde política e economia, passando pela cultura e pelo entretenimento, até chegar nas questões internacionais, ciência e turismo, entre outros. Suas intervenções nunca são neutras ou imparciais, como alguns sustentam. Como as corporações de mídia estão organizadas enquanto empresas, elas também buscam o lucro acima de tudo – para si e para as empresas associadas. Essa característica, por si só, inviabiliza a busca do equilíbrio e, mais além, torna-se
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determinante na elaboração das mensagens (objetivas e subjetivas) que projeta. Esse olhar interessado também é percebido no tratamento das classes trabalhadoras e dos movimentos sociais. A solução encontrada pelo capitalismo tardio na América Latina para lidar com a pobreza é inspirada no “Tolerância Zero”, nascido em Nova York, de modo que as medidas punitivas são cada vez mais direcionadas aos que não se submetem aos postos de trabalho mal remunerado e sem qualificação. O sistema coloca a seguinte alternativa: salário mínimo de R$ 415 ou trabalho informal. Num, o cidadão vai ser oprimido pelo patrão e pela remuneração insuficiente; noutro, pelas forças de segurança do Estado. Os movimentos sociais são igualmente reprimidos pela imprensa hegemônica. Como esses grupos querem transformar a realidade, os porta-vozes dos que lucram com o atual estado de coisas vociferam – e distorcem e mentem. Foi o que aconteceu com uma chamada na primeira página do jornal O Globo de 30 de setembro de 2008, que teve a intenção de criminalizar o MST: “Maiores desmatadores do país são semterra, revela Minc”. A informação foi desmentida na página do movimento (www.mst.org), mas o jornal não a publicou nos dias seguintes. Está claro que o objetivo desse sistema é manter o controle social. Um controle voltado, notadamente, para pobres, negros e jovens. E os veículos de comunicação de massa jogam papel decisivo. Eles disseminam o medo e afirmam que os pobres são bandidos e os movimentos sociais, criminosos. O resultado é um clamor público pela repressão. Obediente,
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a polícia reprime, promove chacinas, mas logo tudo volta a ser como era antes. Se os movimentos sociais quiserem promover mudanças substanciais, mudanças que causem impacto positivo na vida das pessoas,
será preciso enfrentar a luta pelo controle dos meios de comunicação de massa. Só assim o povo deixará de ser manipulado e passará a defender os interesses da maioria em vez de se voltar contra eles.
Quem exerce o poder na América Latina? Poderes de fato
Grupos econômicos/empresariais/setor financeiro 79,7% Meios de comunicação
65,2%
Poder executivo
36,4%
Poderes Poder legislativo constitucionais Poder Judiciário Forças de segurança Instituições e líderes políticos Fatores extraterritoriais
12,8% 8,5%
Forças armadas
21,4%
Polícia
2,7%
Partidos políticos
29,9%
Políticos/líderes políticos/operadores políticos
6,9%
EUA / Embaixada dos EUA
22,9%
Organismos multilaterais de crédito (FMI, BID, Banco Mundial, etc.)
16,6%
Empresas multinacionais
4,8%
Base: 231 entrevistas com líderes políticos, incluindo presidentes em exercício (51% do total), intelectuais (14%), empresários (11%), jornalistas (7%), lideranças da sociedade civil (6%), etc. Fonte: La Democracia en America Latina.PNUD, 2004
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Mais do mesmo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro Fernanda Chaves jornalista
O povo do Rio de Janeiro acaba de eleger para mais quatro anos a nova formação da Câmara Municipal. Entre os representantes, tem de um tudo. Dos de sempre aos chamados fichassujas. Do que há de mais conservador às figuras polêmicas. E nem sempre uma classificação invalida a outra. Entre eles, alguns com ligações com o crime organizado ou já respondendo a processos criminais, em situações já mais que esplanadas pela imprensa. Hoje, existem acusações do Ministério Público e condenações de quadros políticos do vários partidos. O ex-vereador Jerominho Guimarães (PMDB), o deputado Natalino Guimarães (DEM) e Carminha Jerominho (PTdoB), todos da mesma família, estão presos por liderar, segundo a polícia, a quadrilha autodenominada Liga da Justiça, que atua na Zona Oeste do Rio de Janeiro. No entanto, estar num
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presídio em regime disciplinar diferenciado não impediu que Carminha tivesse conquistados astronômicos 22 mil votos. Jorge Babu, deputado estadual (PT), é também acusado pelo Ministério Público por envolvimento com milícias. Seu apoio foi fundamental para eleger o irmão, Elton Babu, o segundo vereador mais votado do PT, com mais de 11 mil votos. É possível considerar, contudo, que um provável “efeito-CPI das milícias” tenha recaído sobre alguns candidatos - já um pouco desgastados, é verdade - como Nadinho de Rio das Pedras (DEM) e Luiz André Deco (PR), que não conseguiram manter suas vagas na Câmara Municipal. É possível também ter a sensação de que a CPI que investiga as milícias, na Assembléia Legislativa, está vencendo a batalha pedagógica de entendimento do que elas representam:
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o tema está na pauta, nos papos, já não é mais considerado um mal menor. Mas, paradoxalmente, quadros como Cristiano Girão (PMN) (que chegou a admitir durante seu depoimento à CPI que na “sua” área ele não permitia “maconheiros e cheiradores”) e o já citado Elton Babu figuram na leva de 40% de renovação do parlamento municipal do Rio de Janeiro. Isso para ficar no crime de milícias - que até recentemente sequer tinha tipificação no código penal brasileiro - porque, se giramos o foco para outro tipo de crime representado na Câmara, temos Claudinho da Academia, do PSDC, suspeito de ser o candidato apoiado pelo tráfico varejista de drogas na favela da Rocinha, na zona sul do Rio, eleito com 11.513 votos. Ok, Carminha Jerominho teve sua candidatura impugnada e, caso o recurso dela seja rejeitado, seus votos serão considerados nulos. Tudo bem. Mas o fato é: ela recebeu 22 mil votos. De eleitores. Pessoas físicas, como eu e como qualquer cidadão, não é isto? Canso de ouvir falar sobre a responsabilidade do eleitor, coisa e tal. Outro dia era o motorista do táxi. Acabava de dar no rádio que os dados na cidade davam conta de cariocas votando em uma candidata presa, um suspeito de integrar milícias e outro de ser o candidato apoiado pelo tráfico de drogas na Rocinha. Ele, o motorista, revoltado com a configuração do novo legislativo carioca e naquela de que “o povo tem o que merece porque dá seu voto a esses bandidos para se representar, e não é porque não sabe, pois os jornais estão aí”. Discurso que você quase absorve. Quase. Porque, nem que seja intuitivamente, você se dá conta de que ser humano algum
quer ser representado por um corrupto. E não é difícil concluir que a política é produto de um processo que não é individual, do meu ou do seu voto. E o que prevalece é a idéia de sustentação política clientelista - seja legal ou criminosa, seja oficial ou paralela, utilizando-se ou não do Estado - é que permite que essas pessoas sejam eleitas. O motorista de táxi já estava longe a essa altura da minha lenta reflexão, e já não era mais possível compartilhar com ele a opinião do cientista político Eduardo Alves: “Não há diferença POLÍTICA entre o clientelismo de Estado e outros tipos de clientelismos. As diferenças são legais e morais. Algumas morais assimilam o clientelismo de Estado e não o clientelismo ilegal. Outras morais assimilam o clientelismo consentido, mas rechaçam o clientelismo feito por meio da coerção. Mas do ponto de vista POLÍTICO não há diferença entre esses modelos de clientelismo. A política clientelista das milícias, do tráfico, dos chamados centros sociais, do setor privado, das organizações assistenciais mantidas por vários políticos ou do Estado (em qualquer dos seus níveis), possui como objetivo manter o controle sobre um determinado setor da sociedade; justamente o setor mais penalizado pelo empobrecimento, mais sacrificado pela prática da exploração, mais discriminado por sua condição social. É esse setor que está mais suscetível às políticas clientelistas. E como tais políticas fazem diferença concreta, real, objetiva para a reprodução da vida dessas pessoas, que são maioria na sociedade brasileira, as conseqüências dessa política nos processos eleitorais são das mais profundas perversidades”.
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Filmes
Algumas reflexões a partir do filme “Quanto vale ou é por quilo?” Dora Henrique da Costa e Lea Calvão da Silva Professoras da Faculdade de Educação da UFF
“Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”, conta Machado de Assis.
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Cento e vinte anos passados do que se chamou o fim da escravidão negra no Brasil, uma imensa maioria de homens, mulheres e crianças livres - descendentes, muitos deles, daqueles que fugiam e apanhavam - sofre de outra tortura. Não a pancada, a chibata, a máscara de folha de flandres, os anéis de ferro ao pescoço, a argola aos pés. Não mais esses sinais ostensivos de dominação e dor. Igual em crueldade, o instrumento de agora é outro e, como aqueles, humilha e avilta. Mais que isso. Mata. No século da produção abundante de alimentos, da prosperidade deslocada de uns poucos, dos cânones do trabalho flexível, esses homens – também são muitos e também não gostam da tortura – não conseguem fugir da fome e do que a provoca, o não-trabalho. “Quanto vale ou é por quilo?” fala desses dois tempos. O filme situa-se ora como documental, ora ficcional. Ao basear-se em material pesquisado no Arquivo Nacional, introduz-nos na linguagem documental; ao apoiar-se no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, remete-nos a momento histórico-literário. Ao trazer a ação para os dias atuais, e embora partindo de análises científicas sobre a realidade, introduz-nos à ficção.
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Seu autor, Sérgio Bianchi, entrecruzando cenas do conto, registros em documentos oficiais de época e ações exercidas por ONG´s, denuncia a lógica da desumanização. A cena inicial do filme é a de uma negra alforriada, lutando para reaver sua propriedade, um escravo que lhe fora roubado. Na seqüência, cenas de iniciativas individuais ou empresarias voltadas à ajuda aos pobres. Divulgando-se como ação humanitária, a disputa pela propriedade e pelo ganho de dinheiro, tendo como fonte a miséria, marca todo o desenvolvimento do filme. A trama partida em dias da escravidão e dias de hoje vai revelando faces da realidade. Assim contada em dois tempos, é a história de uma mesma totalidade. O termo totalidade é aqui tomado como a idéia que ampara o mecanismo de apropriação da realidade. Portanto, a que é usada para a explicitação de aspectos importantes do tratamento metodológico dado a qualquer objeto de estudo. Milton Santos entende ser a totalidade uma noção das mais fecundas legadas pela filosofia clássica, constituindo-se em elemento fundamental para o conhecimento da realidade. Podemos dizer que as faces da realidade mostradas no filme expressam o mesmo sistema – totalidade em movimento – resultado do processo histórico que a elas deu origem. O filme deixa claro que, ontem como hoje, são as relações mercadológicas as que predominam nas relações interpessoais. São elas que evidenciam, como mostra o filme, o quanto a pobreza e a miséria se transformam em negócios lucrativos. Ao analisar o momento atual, o autor con-
Zezé Mota na cena inicial do filme.
centra a atenção em ações desenvolvidas por ONG´s, mostrando como elas, em sua maioria, alimentam-se exatamente da existência e profundidade da pobreza e da miséria. O termo ONG, utilizado pela ONU em 1940 e adotado largamente a partir dos anos 1960, designava organizações não governamentais – hoje também denominadas terceiro setor - definidas como de direito civil, sem fins lucrativos e sem vínculos com governos, sindicatos ou partidos políticos. Até a década de 1970, as ONG´s increviam-se nos movimentos sociais, atuando em vários ramos de atividades, trabalhando com projetos sociais e de promoção da cidadania, defendendo o meio ambiente e os direitos das minorias. Elas se constituíam, então, em instrumento eminentemente polí-
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tico. No caso brasileiro, por exemplo, foram instrumento de luta pela democratização da sociedade nos anos da ditadura. A partir da década de 1990, já totalmente absorvidas pelo sistema, as ONG´s têm tido como marca fundamental a parceria com o Estado, com instituições religiosas e com fundações empresariais, exercendo papel paliativo e amortecedor da luta social. Vale observar que a existência das ONG´s está ligada, de forma diretamente proporcional, à sua capacidade de angariar fundos para seu funcionamento, sendo, pois, relativa a sua autonomia. Esta dependerá sempre da origem dos recursos. A ação das ONG´s, ao se dirigir a grupos específicos, acaba negando a universalidade das lutas sociais. Em outras palavras, na medida em que dirigem suas ações a grupos específicos, fragmentam as reivindicações de políticas sociais e universais de cidadania. Dessa forma, o dito terceiro setor torna-se braço auxiliar na implementação de políticas favoráveis à reestruração do capital. E mais: tal como o filme denuncia, as ONG´s se constituem, elas mesmas, em agentes da exploração direta da miséria. Podemos concluir que o papel efetivo das ONG´s tem sido – direta ou indiretamente – o de contribuir para a manutenção da hegemonia do projeto social sob a égide da burguesia. Ao partir para a ação diretamente ligada a grupos de interesse que não se definem pelas relações de trabalho, tais como mulheres, crianças, homossexuais, terceira idade, ecologia, etnia, as ONG´s, além de pulverizar e particularizar as atuações desses grupos de
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referência, ao colocar as lutas fora do campo econômico, não representam um perigo para o funcionamento da sociedade capitalista. Na realidade, suas ações acabam por desviar a reflexão que deveria estar voltada para os mecanismos de exploração e expropriação a que está submetida a classe trabalhadora. Filmes como esse permitem a reflexão sobre a realidade. Possibilitam-nos pensar em formas de rejeição da exploração, primeiro passo para a luta por uma outra forma de organização societária. Por uma organização em que os homens, afinal saindo do ensaio de humanidade, possam exercer sua humanidade em plenitude.
Ficha Técnica: Título Original: Quanto Vale ou é por Quilo? Gênero: Drama Tempo de Duração: 104 minutos Ano de Lançamento (Brasil): 2005 Site Oficial: www.quantovaleoueporquilo.com.br Estúdio: Agravo Produções Cinematográficas S/C Ltda. Distribuição: Riofilme Direção: Sérgio Bianchi Roteiro: Sérgio Bianchi, Eduardo Benaim e Newton Canitto, baseado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis Produção: Patrick Leblanc e Luís Alberto Pereira Fotografia: Marcelo Copanni Desenho de Produção: Jussara Perussolo Direção de Arte: Renata Tessari Figurino: Carol Lee, David Parizotti e Marisa Guimarães Edição: Paulo Sacramento
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Nossa Resenha
Mike Davis, Planeta favela Maurício Vieira Martins Professor do Depto. de Sociologia da UFF
“Mas o que é slum, palavra inglesa que significa ‘favela?’”, pergunta-se Mike Davis num certo momento de seu livro “Planeta favela” (Editorial Boitempo, 2006). Para responder esta pergunta, Davis recua até o início do século XIX, na Inglaterra pós-Revolução Industrial, onde localiza a primeira definição de que se tem notícia de “slum”, que associa a palavra a “estelionato” (racket), e ao “comércio criminoso” (p. 32). Não demorou muito para que, de designação de um ato, a palavra passasse a ser atribuída também aos locais urbanos degradados onde habitavam trabalhadores pobres. Marcada pelo preconceito, a definição associada a estelionato desliza, de maneira nada sutil, à moradia dos próprios habitantes desfavorecidos. CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – OUTUBRO/NOVEMBRO/DEZEMBRO/2008
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Já no século XX, sofistica-se a categorização de favela, que passa a ser associada, de acordo com documentos recentes da ONU, a um “excesso de população, habitações pobres ou informais, acesso inadequado à água potável e condições sanitárias e insegurança da posse da moradia.” (p. 33). Porém, se a consulta às fontes históricas do século XIX revela o caráter mais do que secular da pobreza urbana concentrada, não resta dúvida de que ela sofreu uma explosão a partir da década de 80 do século XX. É possível descobrir com maior precisão as causas, nas palavras de Davis, deste verdadeiro Big Bang da pobreza; na verdade, este é talvez o maior objetivo de seu livro. Já conhecido pelo leitor brasileiro por outros textos, como “Cidade de Quartzo” e “Holocaustos coloniais”, desta vez o autor amplia o escopo de sua análise e realiza um vasto percurso pelo planeta afora, numa investigação sobre porque, em época de altíssimo desenvolvimento tecnológico – que possibilitaria, em tese, a resolução de problemas bem mais difíceis – a moradia urbana degradada só faz crescer. Para aqueles que possuem uma visão localizada do processo de empobrecimento urbano (vinculando-o, por exemplo, apenas à conduta inadequada de políticos locais), a leitura do “Planeta favela” é especialmente instrutiva. Ela nos mostra de forma persuasiva como só uma abordagem macro-social pode captar a dimensão decididamente transnacional do fenômeno. Na medida em que o texto percorre as regiões empobrecidas da América Latina, Ásia, África e dos ex-países socialistas, somos apresentados aos diferentes nomes de uma
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mesma realidade: slums, barrios, gecekondus, desakotas, até a brasileiríssima favela. Se os nomes locais diferem, a realidade de precarização da moradia urbana é recorrente, o que motiva Davis a usar toda a primeira parte de sua pesquisa para apresentar as características mais centrais desta precarização. Ele alerta para as dificuldades presentes no empreendimento, devido ao fato de que as estatísticas produzidas sobre o tema são lacunares e, em muitos casos, pouco confiáveis, pois sofrem a interferência de governos que visam maquiar as reais condições de vida de suas populações. Para tentar corrigir este limite, o texto recorre a um amplo conjunto de análises, desde aquelas produzidas por autores independentes, até um importante documento elaborado pelo Programa de Assentamentos Urbanos das Nações Unidas (UN-Habitat, instituição pouco suspeita de esquerdismo...), que utiliza um banco de dados comparativo de 237 cidades do mundo. Mesmo recorrendo a uma categorização que, no entendimento de Davis, é restritiva, “os pesquisadores da ONU estimam que havia pelo menos 921 milhões de favelados em 2001 e mais de 1 bilhão em 2005” (p. 34). E a tendência é de crescimento. Ao longo deste trajeto, algumas conclusões se impõem com força. A primeira delas é que o contraste das condições de vida dos países capitalistas centrais com o que ocorre no chamado Terceiro Mundo (conceito questionável para alguns autores das Ciências Sociais, mas que comparece no texto de Davis) permanece sendo gritante: apenas 6% da população urbana dos primeiros podem ser considerados
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favelados, percentual que pula para mais de 70% nos países menos desenvolvidos. Mas nem por isso a realidade destes últimos – objeto principal de Davis - pode ser considerada homogênea. Longe disso. Também neles, ilhas de prosperidade convivem lado a lado com a miséria mais degradante: a proliferação de favelas encontra sua antítese complementar nos condomínios de luxo, fechados, que se isolam do contato com o mundo exterior. Nesta configuração que se repete, diferencialmente, pelo mundo afora, o paradigma vem a ser uma estética e um padrão de consumo norte-americanos. Para os que supõem que os brasileiros abastados são únicos em sua tendência a copiar compulsivamente o modo de vida norteamericano, convém saber que “Beverly Hills não existe apenas no código postal 90210 dos Estados Unidos; também é, ao lado de Utopia e Dreamland, um subúrbio do Cairo, uma rica cidade particular ‘cujos habitantes podem manter distância da vista e da gravidade da pobreza e da violência...’ ” (p. 120) Além disso, o texto chama a atenção também para a feminização da pobreza, tendo em vista a drástica perda de oportunidades de empregos formais para os homens. Resultado disso é que as mulheres de boa parte do Terceiro Mundo passam a arcar com o sustento de seus filhos, mesmo num contexto em que a pressão para que a totalidade da família ingresse no mercado de trabalho é cada vez maior. Aliás, a análise das condições de vida da infância vem a ser um dos momentos mais tocantes do livro, como quando é abordado o episódio das Bru-
xinhas de Kinshasa (no Congo). Em clima de exasperação de formas de religiosidade que findam por ganhar contornos de um desespero coletivo (p.195-196), crianças são denunciadas como bruxas pelos seus vizinhos, que afirmam que são elas as responsáveis pelos males que afligem as comunidades. Incapazes de se defender destas acusações, estigmatizadas pelos próprios familiares e, finalmente, introjetando os supostos crimes que lhes são imputados (“Meu pai perdeu o emprego de mecânico por minha causa”, diz uma delas), as crianças são expulsas de suas famílias, abandonadas nas ruas, podendo chegar a ser assassinadas como causadoras dos infortúnios locais. Na outra ponta deste debate, Mike Davis questiona também o que ele nomeia como histórias de sucesso, aquelas que apresentam de modo unilateral experiências bem-sucedidas, tomando-as como exemplos passíveis de serem universalmente seguidos, não importa em que circunstâncias. É o que acontece com os que fazem o elogio do trabalho informal como oportunidade ímpar para que auto-empreendedores bem sucedidos possam se emancipar da tutela patronal (desconhecendo a duríssima realidade enfrentada pela maioria dos que perdem seus empregos). Num âmbito mais abrangente, Davis problematiza uma certa versão divulgada acerca dos processos de industrialização intensiva sofridos por países como a China e a Índia. A partir do trabalho de pesquisadores que fazem uma investigação in loco, fica claro como indicadores macro-
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econômicos favoráveis, que de fato impressionam pelo aumento de produtividade de uma economia, podem ocultar uma realidade humana indigente, que simplesmente não aparece nos quadros estatísticos. Daí a importância de se chegar até a vida dos trabalhadores reais, os responsáveis anônimos pela opulência que é divulgada pelos meios de comunicação. Quando se faz isso, percebe-se por exemplo que a “mobilidade ascendente na economia informal é em grande parte um ‘mito inspirado pelo mero excesso de otimismo’ ”. (p.174). Esta visão muito crítica de Davis acabou gerando reações contrárias no âmbito da própria esquerda. Neste sentido, é proveitosa a leitura do Posfácio à edição brasileira, assinado pela urbanista e professora da USP Ermínia Maricato. O texto é muito elogioso ao trabalho de Davis, mas se permite apresentar as restrições formuladas, por exemplo, por Tom Angotti, que entende que a visão veiculada pelo “Planeta favela” seria por demais negativa, não levando em conta algumas diferenças nacionais importantes, que confeririam um tom mais diferenciado à realidade exposta. Tocamos aqui numa questão complexa, que não seria possível desenvolver no âmbito de uma resenha; de todo modo, parece-nos que cabe distinguir entre dois níveis distintos de análise. No que diz respeito ao nível macro-social, entendemos que a análise de Davis atinge com precisão seu alvo, apontando com clareza para as linhas de fundo do processo de favelização urbana. Já no nível das diferenças entre as realidades nacionais e locais, talvez
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coubessem de fato algumas ressalvas que, de resto, vêm sendo feitas por grupos de ativistas de direitos humanos e sociais, que sabem que o registro dos ganhos da luta democrática serve como alimento essencial ao seu próprio prosseguimento. Para o leitor que tenha um interesse maior nesta questão, convém ler a entrevista de Mike Davis ao jornalista brasileiro Sérgio Pompeu (disponível em www.boitempoeditorail.com.br). Questionado se seria contrário, por exemplo, a uma política de legalização de posse nas favelas, Davis responde que “A legalização é uma demanda justa e antiga na América Latina. O que eu critico é a expectativa quase mítica de que a legalização criaria alguma forma de capitalismo dinâmico nas classes baixas”. Após um longo percurso por vários continentes, merece destaque especial o capítulo 7 do “Planeta favela”, intitulado “Desajustando o Terceiro Mundo”. É nele que Davis faz, de forma mais explícita, o que poderíamos nomear como uma pesquisa de causas para o fenômeno que estuda. E é neste momento que avultam em importância as conseqüências dos PAEs (Planos de Ajuste Estrutural), prescritos pelos organismos financeiros internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Drásticas condicionalidades são impostas ao empréstimo de quantias monetárias (para países já sufocados pelo pagamento dos juros referentes à dívida externa), que interpretam qualquer investimento social como sendo, na linguagem de seus mentores internacionais, um “populismo econômico”. Pois foram estes PAEs os responsáveis pelo incremento mais recente da pobreza, gerando
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desindustrialização, quedas acentuadas de postos de trabalho no mercado formal e também dos investimentos em serviços sociais básicos. É possível mesmo fazer uma cronologia da expansão das moradias precarizadas; nas palavras de Davis: “Os anos 1980, em que o FMI e o Banco Mundial usaram a alavancagem da dívida para reestruturar a economia da maior parte do Terceiro Mundo, foi a época em que as favelas transformaram-se no futuro implacável não somente dos migrantes rurais pobres como também de milhões de habitantes urbanos tradicionais” (p. 156). O resultado destas políticas de ajuste foi o crescimento pelo mundo de milhões de seres humanos que não têm acesso não só a uma moradia, mas sobretudo a uma vida digna. Se antes cabia falar num exército industrial de reserva, disponível para a economia em seus ciclos de expansão, talvez agora a situação seja mais dramática: estamos diante de uma massa de sujeitos sem perspectiva nenhuma de trabalho, humanidade excedente, cujas manifestações de insatisfação sem dúvida existem, mas ainda não encontraram uma orientação política mais abrangente (e parece-nos que este é também um dos sentidos presentes no trabalho de Davis). No final de seu livro, ele nos apresenta documentos que revelam as preocupações de estrategistas militares ligados ao Pentágono norte-americano com as multidões empobrecidas de algumas das principais favelas do Terceiro Mundo. Ao depararmo-nos com o tom maniqueísta destas análises, que preferem eleger bodes expiatórios circunstanciais
para um processo muito mais complexo, fica patente que a “retórica demonizadora das várias ‘guerras’ internacionais ao terrorismo, às drogas e ao crime são igualmente um apartheid semântico: constroem paredes epistemológicas ao redor das favelas, gecekondus e chawls, que impossibilitam qualquer debate honesto sobre a violência cotidiana da exclusão econômica. E, como na época vitoriana, a criminalização categórica dos pobres urbanos é uma profecia que leva ao seu próprio cumprimento...” (p. 202). É neste momento que o trabalho de Mike Davis pode ser articulado ao do importante sociólogo francês Löic Wacquant (autor de “Prisões da miséria” e de “Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos”). Com efeito, a pesquisa de Wacquant nos mostra que o crescente inchaço do sistema prisional nos últimos anos é observável em praticamente todos os países, mesmo no chamado Primeiro Mundo (como ocorre com os Estados Unidos). Ora, tal inchaço das prisões é também uma resposta conservadora para lidar com a pobreza que invade as ruas das grandes metrópoles: transitar das favelas para os presídios – mesmo que apenas em função de pequenos delitos - é o triste destino de muitos cidadãos pobres, donde a formulação bastante cáustica de Wacquant: trata-se de um “sinistro programa habitacional para os novos pobres”.... Como se vê, encaixamse aqui mais algumas peças do contraditório quebra-cabeças contemporâneo: o “Planeta favela” se ramifica, infiltrando-se também pelas prisões do mundo afora.
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Histórias de Vida
Professor Ronaldo Coutinho: uma história de lutas dentro e fora da universidade
Carolina Barreto da Silva Gaspar, texto e foto
A história de vida do professor Ronaldo Coutinho se mistura com a história do ANDES-SN e da ADUFF, uma vez que a fundação de ambas as entidades contou com sua participação ativa. Militante comunista desde muito jovem, aos 16 anos Ronaldo ingressaria no PCB. Sua entrada no Partido Comunista Brasileiro assinala uma opção de vida que ele mantém até hoje e que deixou marcas significativas em sua trajetória. Antes de se tornar professor universitário, já havia atuado em sindicatos de outras categorias e também no movimento estudantil. Sua militância política lhe traria alguns problemas no período da Ditadura Militar, inclusive para tomar posse da vaga de professor da UFF para a qual havia sido aprovado em concurso. Driblados esses contratempos iniciais, teve uma passagem marcante pela universidade. Foi vice-diretor do ICHF e um dos responsáveis pela montagem do curso de graduação em Ciências Sociais e de pós-graduação em História. É com grande prazer que publicamos aqui um pouquinho dessa trajetória pontuada por tantas lutas.
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Em nossa conversa com o professor Ronaldo Coutinho, descobrimos que, antes de se tornar professor universitário, ele foi bancário, comerciário e aeroviário. Como não poderia deixar de ser, militou nos sindicatos de todas essas categorias. Também teve uma passagem marcante pelo movimento estudantil, tendo sido o primeiro presidente do DCE-UERJ escolhido em uma eleição direta (1960-1961), vice-presidente da Associação Nacional dos Estudantes de Ciências Sociais, 2º secretário da UME (União Metropolitana dos Estudantes) e diretor da UNE. Uma militância tão intensa desde a juventude não passaria despercebida pela Ditadura Militar. Na época do golpe de 64, Ronaldo já era professor da UERJ. Acabou sendo afastado de suas atividades docentes naquela universidade por justa causa, já que, numa das vezes em que foi preso pela Ditadura, ficou um mês sem aparecer na UERJ. Ainda assim, seguiu lecionando na UFF, onde era professor horista. Em 1965, fez concurso para se tornar professor do quadro efetivo da UFF e foi aprovado em primeiro lugar. Tomar posse da vaga, no entanto, exigiria dele mais do que a compro-
vação de seus méritos acadêmicos. Na época da Ditadura, era exigido dos professores da universidade um “Nada Consta” emitido pelo DOPS que atestasse a sua não participação em atividades ligadas à militância política de esquerda. Ronaldo, que já havia sido preso por suas atividades políticas, evidentemente não receberia o documento. Não por vias lícitas, pelo menos. Para tomar posse de sua vaga de professor no concurso da UFF, ele se vira obrigado a subornar um funcionário do DOPS. Por uma bagatela que hoje equivaleria a cerca de 20 mil reais (pagos à vista e em dinheiro), o “Nada Consta” foi liberado. O dinheiro foi conseguido junto à sua mãe, que para isso empenhou algumas jóias e pegou um empréstimo.
Corredor vermelho e movimento docente Empossado, participou da fundação do curso de graduação em Ciências Sociais e, em pouco tempo, seria vice-diretor do ICHF exatamente na gestão da Professora Aidyl à frente do Instituto. Segundo Ronaldo, os dois tinham um bom entrosamento
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na direção do ICHF, que na época funcionava no prédio que hoje abriga o IACS. Ronaldo também participou ativamente da montagem dos cursos de graduação e pós em História, tendo viajado a São Paulo várias vezes para recrutar professores e a Brasília para conversar com o MEC. Também foi chefe do departamento de Ciências Sociais. Nessa época, segundo ele, seu departamento era conhecido como “corredor vermelho”. Suas atividades de militância nunca o impediram de exercer atividades administrativas na universidade e, sobretudo, de estudar. Foi assim que também participou dovimento docente. E de maneira marcante, diga-se de passagem. Afinal, trata-se de alguém que participou da fundação do ANDES-SN, da ADUFF e da ASDUERJ. De acordo com Coutinho, mesmo ocupando poucas vezes um cargo formal, sua participação no movimento sempre foi intensa: “Sempre fui de inventar formas de luta, como por exemplo o Universidade na Praça, usado na ADUFF, pela primeira vez, na greve de 1985. Sugeri que cada professor fosse para a praça Araribóia desenvolver as atividades criativas de suas aulas. De lá para cá, muitas greves de docentes têm usado esse recurso”, conta ele. Na ASDUERJ, ajudou a criar a “Advir”, revista da associação docente daquela universidade, sendo até hoje membro de seu conselho editorial. Ele se arriscou a fazer algumas análises acerca do atual momento vivido pelo movimento docente, marcado por uma tentativa direta de ingerência do governo no mo-
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vimento sindical. “Em termos da nossa luta específica de movimento docente, eu acho que nós temos que ter algumas ações. Uma delas é a gente fazer uma avaliação crítica da atuação do próprio sindicato. Não desse sindicato, mas do movimento como um todo. Nessa hora, nós temos que mobilizar, temos que engrossar o movimento. Como? Nós temos que ampliar. Está na hora de construir uma frente organizada de resistência e isso só se faz com frente ampla”.
“Lênin estragou a farra acadêmica” Ronaldo Coutinho se aposentou da UFF em 1992. Sua aposentadoria foi precipitada pelo Governo Collor, marcado por uma série de medidas que retiravam direitos dos trabalhadores, principalmente os do serviço público. Apesar da aposentadoria, mantém ativas sua militância e atividade acadêmica. Entre outras coisas, continua no conselho editorial da “Revista Advir”. Em termos de produção acadêmica, tem se dedicado a dois projetos, um deles relacionado ao meio ambiente e direito urbanístico e o outro, um livro sobre a contribuição de Lênin à academia. Segundo Coutinho, a obra é sua maneira de demonstrar indignação em relação ao exílio de Lênin da academia: “Lênin cometeu um delito imperdoável: ele discutiu toda uma teoria ao mesmo tempo em que praticava isso fazendo uma revolução. Estragou toda a farra acadêmica”, afirma.
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Poesia Vandery da Cunha, o Deley de Acari, nasceu no estado do Rio e tem 54 anos. Milita no movimento negro e favelado há mais de trinta anos e é fundador e participante do “Grupo Negrícia - Poesia de Crioulo”. Bastante conhecido em diversas rodas de leituras, Deley diz que escreve muito ao sabor da tensão e do stress da favela. “Uma amiga feminista costuma dizer que sou um poeta afro-prófeminista, porque a maioria de meus poemas e outros escritos têm a mulher como tema, abordada de formas positivas”, afirma. O poeta também participa do “Movimento Funk é Cultura” na Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência. Publicou seus escritos nas décadas de 80 e 90 em alguns fanzines e, mais recentemente, no livro “Um século de favela”, de Marcos Alvito e Alba Zaluar.
Síndrome do Desemprego Saindo do barraco bem cedo à procura de emprego, levou a força do meu amor, minha fé. No último anúncio marcado, mente e corpo abalados, pela má aparência rejeitado, deixou que vissem seus olhos pela fome bem fundo escavado, que vissem o carapinha emaranhando, deixou o suor fazendo da face negra um ébano vitrificado mas não deixou que lhe vissem o medo comum a quem vive a síndrome do desemprego não deixou que lhe vissem o velho medo porque é da certeza que existe o medo em nós é que o burguês racista faz do humano dócil escravo um inimigo finalmente vencido depois que de sua humanidade ele mesmo já havia se esquecido.
Saindo do barraco bem cedo à procura de emprego levou a força do meu amor, minha fé deixou um beijo gostoso de Colgate e café saboroso feito mel voltou à noite trazendo um beijo mau gosto de caldo de cana amargoso feito fél. Ah, a insegurança do amanhã de todos, do tudo, ah, seu velho medo desaguado em lágrimas no regaço do meu colo, chorado em segredo, longe do olhar racista do senhor burguês dono e senhor dos empregos ah, esse imenso desejo que seu velho medo se transforme com o axé do meu amor, minha fé na minha, na sua na nossa nova e indestrutível coragem libertária do amanhã.
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Diálogos com a Cidade
Aldeia Imbuhy: clima de tensão com o Exército há mais de uma década Carolina Barreto da Silva Gaspar
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Fotos: Luiz Fernando Nabuco
Nesta segunda edição de nossa seção “Diálogos com a cidade”, fizemos uma matéria com os moradores da Aldeia Imbuhy, comunidade tradicional situada junto à praias paradisíacas, no interior de fortaleza militar que leva o mesmo nome. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, morar na Aldeia Imbuhy não é assim tão maravilhoso quanto parece. Isso porque há mais de 10 anos ,os moradores do local vivem em verdadeiro clima de guerra com o Exército. Tudo começou em 1995, quando o Coronel Paulo Roberto Bueno Costa proibiu a passagem de moradores, visitantes e convidados pela Guarda do Forte Barão do Rio Branco. Desse modo, a única passagem liberada era a do portão situado na Guarda da Lagoa. Essa determinação se tornou sinônimo de um grande transtorno para os moradores do local, que decidiram então entrar com uma ação na Justiça para reabrir a outra passagem. Simultaneamente, entraram com uma ação de interdito proibitório. Isso abriu espaço para que o Exército entrasse com um pedido de reintegração de posse e obtivesse vitórias judiciais em 1ª e 2ª instâncias. Por decisão da Justiça, os moradores da Aldeia Imbuhy, que lá vivem há décadas, devem desocupar a área, uma vez que supostamente “constituem ameaça à segurança nacional”. Dessa contenda judicial de 1995 para cá, a relação dos moradores da Aldeia com o Exército se deteriorou progressivamente. Em nossa visita ao local, conversamos com diversos aldeões e não faltaram denúncias de arbitrariedades que teriam sido cometidas pelos militares nesse período. Também existem denúncias de
omissão de socorro. Num dos casos, uma ambulância que chegou ao Forte para socorrer moradora em trabalho de parto teria sido simplesmente barrada na entrada do local. Por conta disso, um morador teve que levá-la em seu carro até o hospital. Em outro episódio semelhante, a moradora Vanda Leão Barbosa passou mal na calçada do Forte Rio Branco, mas não pôde ser socorrida porque um tenente do Exército impediu que lhe fosse prestado qualquer tipo de auxílio. Esse caso gerou registro de ocorrência na 79ª DP por omissão de socorro, ameaça e constrangimento ilegal. Resultado: não deu em nada. Segundo o morador Fábio Ferreira da Silva, eles agora sequer têm registrado queixa contra esse tipo de abuso, já que nunca dá em nada. Fábio nos contou que, em 95, foi agredido por soldados quando voltava para casa. O caso gerou um IPM, mas, nas palavras dele, “ficou tudo por isso mesmo. Toda a situação que ocorre aqui com a gente eles transformam em problema. Hoje, sou surdo e mudo por aqui.” Se engana, no entanto, quem pensa que acabou a lista de arbitrariedades. Só para se ter uma idéia, os moradores da Aldeia Imbuhy só podem entrar no Forte se estiverem munidos da chamada “permissão de morador”, único documento que os habilita a ter acesso ao local onde moram há anos. Como se não bastasse, eles só podem receber em suas casas cinco visitantes de cada vez, devendo ainda assim comunicar ao Exército os nomes dos mesmos com pelo menos 48 horas de antecedência. Nas palavras de Aílton Nunes Navega, presidente da Associação de Moradores do Forte Imbuhy, “nem o Elias Maluco tem limite de visitas, mas
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nós temos: são só cinco pessoas de cada vez.” Em 95, os aldeões foram proibidos de utilizar os telefones públicos existentes no interior do Forte. Algum tempo depois, os telefones foram simplesmente retirados. Hoje, é proibido instalar novas linhas telefônicas no local. Em nossa visita à Aldeia Imbuhy, pudemos perceber que grande parte das casas lá existentes encontra-se em péssimo estado de conservação. Isto ocorre simplesmente porque o Exército não permite a entrada de material de construção no local. O objetivo por trás desta medida, segundo Aílton Navega, é “deixar que tudo se deteriore, pois isso, na visão deles, facilita a nossa expulsão daqui”. Em 2004, a Defesa Civil chegou a condenar e interditar uma das casas da Aldeia, por estar “colocando vidas em risco”. Os moradores
conseguiram junto à prefeitura uma doação de material de construção para fazer obras na casa, mas o Exército impediu a entrada desse material nas dependências do Forte. Tivemos acesso a uma notificação da Defesa Civil que diz: “... embora esta Coordenadoria tenha comunicado ao comando do Forte do Imbuhy da situação de risco que encontra-se o seu imóvel apontado no relatório número 791/04 originando uma interdição, não nos foi permitido na data de 27/07/2004, a entrega de 1000 (mil) tijolos e 10 (dez) sacos de cimento através do ‘Projeto Morar Certo’. Esclareço ainda que os materiais seriam para realizar a segurança do seu imóvel.” A verdadeira guerra de nervos travada entre aldeões e o Exército, como se vê, já produziu um sem-número de arbitrariedades. Em
Na aldeia, construções como o hotel de trânsito e um centro de convenções do Exército tomaram o lugar de casas e até de uma escola.
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conseqüência disso, das 800 famílias que originalmente habitavam o local, restam hoje apenas 32. Atualmente, a pesca, que durante décadas foi a atividade responsável pelo sustento de boa parte dos moradores, quase não é mais praticada. Isto porque os militares passaram a confiscar 10% do pescado, além de proibirem a entrada de caminhões pesqueiros no Forte. Hoje, após mais de uma década de conflitos com o Exército, os aldeões que restaram no Imbuhy estão ameaçados de despejo do local onde nasceram e cresceram por uma ação de reintegração de posse
“Ameaça à segurança nacional” A justificativa do Exército para desalojar os moradores da Aldeia Imbuhy é de que a presença deles no interior da fortaleza militar constitui “ameaça à segurança nacional”. No entanto, documentos revelam que os militares realizam uma série de eventos no Forte: réveillon, happy hour, churrascos, rodeios e festas em geral. Tudo sempre com muita bebida alcoólica, é claro. É curioso observar como, na concepção do Exército brasileiro, a presença de milhares de pessoas estranhas no interior do Forte em eventos como esses não parece constituir ameaça à segurança nacional. Enquanto isso, 32 famílias que lá vivem há décadas são vistas como um grande perigo que precisa ser eliminado “pelo bem da pátria”. Nas palavras de Aílton Navega, “isso aqui
“isso aqui não é área de segurança nacional coisa nenhuma. É área de lazer dos militares, que ganham muito dinheiro alugando o espaço para eventos e vendendo passes àqueles que desejam freqüentar a Praia do Imbuhy” Aílton Navega não é área de segurança nacional coisa nenhuma. É área de lazer dos militares, que ganham muito dinheiro alugando o espaço para eventos e vendendo passes àqueles que desejam freqüentar a Praia do Imbuhy. Em fins de semana de sol, isso aqui fica coalhado de gente!” Decidimos checar a informação de que há comércio de passes para se freqüentar a praia do Forte. Em telefonema ao 21º Grupo de Artilharia de Campanha, que administra o local, fomos informados de que, para freqüentar a Praia do Imbuhy, é necessário ter um passe que custa a bagatela de R$ 400,00. Tudo pago à vista e em dinheiro. Nesse contexto, fica mais fácil entender porque tanta fixação em expulsar os aldeões, que
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certamente devem estar atrapalhando os negócios. A sentença judicial que ordena a reintegração de posse nos chamou a atenção por ser extremamente dura com os aldeões. Há uma parte do texto da sentença que diz: “declaro ser legítimo o direito da UNIÃO, pela Administração Militar, exercer poder normativo e de polícia no âmbito de suas atribuições (...) Declaro ainda ser legítimo o exercício do atributo da auto-executoriedade deste mesmo poder de polícia, autorizando a UNIÃO, pelos seus prepostos, por exemplo, a apreender mercadorias e a demolir as benfeitorias edificadas a partir das notificações realizadas em julho de 1995, bem como impedir que outras sejam feitas, salvo as absolutamente necessárias à segurança dos moradores.” Trocando em miúdos, a sentença emitida pelo juiz federal Rogério Tobias de Carvalho atribui ao Exército poder de polícia numa contenda em que esse braço das Forças Armadas está diretamente envolvido. Com o clima de guerra vigente na Aldeia Imbuhy há mais de dez anos, dá para imaginar a carnificina que vai acontecer caso os militares resolvam se utilizar da “auto-executoriedade deste mesmo poder de polícia” para desalojar os aldeões. Diante da iminente consumação dessa verdadeira tragédia anunciada, a Associação de Moradores da Aldeia Imbuhy enviou carta solicitando providências ao presidente Lula e a seu vice. Num trecho da carta, se lê: “Os aldeões, ao verem suas casas demolidas e seus pertences jogados no meio da rua sem terem para onde ir talvez reajam de forma emotiva, inconseqüente e insensata, desencadeando desta forma, uma onda de violência de conseqüências imprevisíveis e que certamente nos fará relembrar, doze anos após, a Chacina de Eldorado dos Carajás,
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só que desta vez, acontecendo em pleno coração cultural do país. Nossas autoridades constituídas tomarão conhecimento do fato somente por ocasião da remoção e sepultamento de corpos de homens, mulheres e crianças.” A única resposta recebida até hoje, que partiu do vice-presidente José de Alencar, veio em forma de telegrama e diz apenas: “transmito votos de que o assunto relatado por Vossa Senhoria se encaminhe dentro da lei.” Diante dessa situação, Aílton Navega desabafa: “Nós resistimos à Ditadura Militar e agora, em pleno governo popular do Partido dos Trabalhadores, vamos sair daqui sem nada.” O pai de Aílton, Antônio Navega, mora na Aldeia Imbuhy há 82 anos. Em 1939, chegou a servir ao Exército no Forte Imbuhy, tendo sido depois transferido para o batalhão de Santa Cruz. De acordo com ele, durante muito tempo a convivência entre moradores e militares foi, na medida do possível, harmônica. Hoje, no entanto, os aldeões estão na iminência de serem expulsos do local onde passaram suas vidas inteiras. A possibilidade de sair do Imbuhy é qualificada por S. Antônio em uma palavra: “Nenhuma”. Como ele, diversos outros moradores construíram suas vidas naquele lugar e muitos sequer têm para onde ir. O advogado dos aldeões, Arthur Floriano Peixoto, fez várias críticas à maneira como esse processo tem sido conduzido pela Justiça. “A parcialidade da Justiça nesse caso é revoltante. Inclusive porque existem dois precedentes de casos semelhantes, ambos com ganho de causa para os aldeões do Imbuhy. Além disso, a União teria perdido o prazo de defesa duas vezes ao longo do processo. Ainda assim, obte-
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ve ganho de causa. Querem botar as pessoas para fora na marra sem pagar nada. Para haver uma reintegração de posse, a União teria que provar a posse anterior do local, ou então que foi desempossada pelos aldeões. Ela não
fez nenhuma das duas coisas, e por um motivo muito simples: os aldeões chegaram primeiro no local, isso está muito claro. Até porque, se tivessem chegado depois, o Exército não permitiria que se instalassem”, afirma.
Antônio Navega, morador da Aldeia há mais de 80 anos, serviu no Forte Imbuhy e diz não ver posibilidade de deixar sua casa.
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ADUFF: 30 anos de luta! No dia 10 de outubro de 2008, a ADUFF completou 30 anos. Nossa associação já nasceu forte porque foi fundada em plena Ditadura Militar e em plena luta pela democratização do país. No rastilho do conflito dessas lutas, outras associações também foram construídas em todo território nacional, nas universidades federais, estaduais e particulares. O que nos movia? O desejo de liberdade, de melhores condições de trabalho, a defesa irredutível do ensino público e gratuito e contra a privatização da educação. Nos moviam esses princípios e as flores, porque nascemos em plena primavera. Um ano depois, a realidade exigia articular as lutas nacionalmente e fizemos o I Enad (Encontro Nacional de Associações de Docentes), ao qual sucederiam outros, até a realização, em fevereiro de 1981, em Campinas (SP), do I Congresso Nacional de Docentes Universitários. Trezentos delegados, entre eles os da ADUFF, representando mais de 70 AD´s, participaram do Congresso histórico em que foi fundada a ANDES - Associação Na-
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cional dos Docentes de Ensino Superior. Com a promulgação da Constituição Federal de 88, a ANDES pôde, finalmente, transformarse no Sindicato Nacional, o ANDES-SN. Nosso sindicato rompeu com a estrutura sindical autoritária implantada no Brasil na década de 30 e se consolidou pela organização de base nos locais de trabalho, pela democracia interna fundada no respeito às deliberações da base da categoria e defesa intransigente do princípio da autonomia sindical em relação às instituições universitárias, aos partidos políticos, credos e governantes. Além disso, o sindicato, assim como as AD´s, é mantido pela contribuição voluntária de seus sindicalizados: somos contrários ao imposto sindical compulsório. Fomos nos constituindo como entidade, na luta e junto com o ANDES-SN. Em 1986, para ampliar o espaço das lutas em defesa dos interesses e conquistas da categoria e após intenso processo de mobilização, deixamos de ser associação e nos transformamos em seção sindical do ANDES-SN. Em sua trajetória de luta em defesa
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da universidade pública, a ADUFF sempre entendeu que as reivindicações mais imediatas dos professores também dizem respeito às lutas mais gerais da maioria da população, daí seu histórico de envolvimento com as grandes mobilizações nacionais como a Campanha das Diretas, contra as privatizações e a terceirização dos serviços públicos, pela reforma agrária, contra a criminalização dos movimentos sociais e da pobreza, entre outras tantas. A partir dos anos 90, experimentamos dificuldades de mobilização idênticas aos movimentos sociais que não se dobraram à ordem, tanto em âmbito local quanto internacional. No Governo Lula, esta situação se agrava ainda mais com a transformação da CUT em um verdadeiro braço do governo no movimento sindical. O resultado de todo esse processo é que hoje o movimento sindical combativo se vê forçado a intensificar sua presença junto à categoria para reafirmar a importância do sindicato e da luta sindical como espaço privilegiado de resistência e defesa de direitos dos trabalhadores. Isto se deve, em grande medida, a dois fatores: a cooptação de parte expressiva do movimento pelo governo e a lógica de criminalização do movimento sindical combativo. Nesse quadro de adversidade, a ADUFF, por se man-
ter fiel aos princípios que a orientam desde sua fundação, ainda consegue manter alto grau de representatividade junto à base da categoria, mesmo em meio a todos os ataques protagonizados pelo Governo Lula aos sindicatos combativos. A vitoriosa greve de 2005 é um exemplo recente dessa legitimidade junto à sua base, da mesma forma que seu posicionamento quanto à contra-reforma universitária do governo, especialmente nas lutas da ADUFF por ocasião do debate do REUNI. Em 2007, a luta contra o REUNI fez
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com que o sindicato conseguisse movimentar um grupo importante de professores comprometidos com a defesa da universidade pública. Esse movimento permitiu ao sindicato dialogar com a categoria sobre seu projeto de universidade e, após visitas da direção da ADUFF a várias unidades, inclusive do interior, cerca de quinze colegiados se manifestaram contrariamente à adesão da UFF ao REUNI. Como sabemos, e a exemplo do que aconteceu na UFF, no país inteiro foi preciso o uso da repressão, da força, para que o termo de adesão fosse assinado. Mesmo após a adesão da universidade ao REUNI, a ADUFF segue apontando os problemas que virão com a implementação do decreto. Conforme nossa seção sindical já alertava desde o ano passado, a expansão da universidade tem sido marcada pela lógica da fragmentação. Para além disso, os recursos humanos e materiais de que a UFF disporá para fazer a expansão com que se comprometeu são claramente insuficientes.
Então, o que comemorar? Diante de uma História de trinta anos pontuada por tantas lutas importantes, certamente há muito a comemorar na ADUFF. No entanto, o momento por que passa o sindicato não poderia ser negligenciado
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nas comemorações de nossos trinta anos de existência. No plano nacional, os ataques ao ANDES-SN por parte do governo a seu registro sindical afeta diretamente o conjunto de suas seções sindicais, inclusive, no que diz respeito às consignações voluntárias na folha de pagamento dos professores. Essa situação significa para a ADUFF, como informamos na última assembléia e em nosso boletim eletrônico, uma grave crise financeira em função da queda de cerca de 40% na arrecadação mensal do sindicato pelo não desconto da GTMS, que substituiu a GED. Isso significa que o que está em jogo neste momento é a própria sobrevivência do nosso sindicato enquanto instrumento de luta da categoria docente. Embora estejamos movendo todas as ações necessárias para enfrentar o problema, sabemos, entretanto, que a resposta não pode ser dada apenas nos planos jurídico e administrativo. É preciso que a categoria, conhecendo a situação, crie as condições para uma resposta política mais incisiva. Para garantir nossos direitos, só podemos contar com nossas próprias forças. Aprendemos com Goethe que só merecem a liberdade e a luta aqueles que lutam por elas todos os dias. É na luta, portanto, pelo seu mais legítimo direito de EXISTIR que a ADUFF comemora seus 30 anos. Vida longa à ADUFF e ao ANDES-SN!
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Hiperfocal
Ripper: olhos na realidade A vida do homem do campo, indígenas, a seca do Nordeste, o ambiente urbano, o trabalho escravo de carvoeiros, crianças em Mato Grosso do Sul. Alguns desses temas nunca perdem o foco nas lentes do fotógrafo carioca João Ripper, que com 19 anos ingressou na carreira de repórter-fotográfico na “Luta Democrática”, do controvertido Tenório Cavalcanti. Vieram em seguida o “Diário de Notícias”, a “Última Hora”, a sucursal carioca do “Estadão” e “O Globo” e os muitos trabalhos como free-lancer. Isto até ele perceber que gostaria que suas fotos tivessem o poder de levar as pessoas a refletir sobre a realidade registrada através de sua câmera sem estereótipos — apenas um retrato da desigualdade social que o incomoda muito. Deixou “O Globo” e foi participar da criação da Agência F4. “A F4, do Rio; a Ágil, de Brasília; e a Angular, de São Paulo, foram muito importantes, porque permitiram aos fotógrafos iniciar um movimento. Passamos a pensar as pautas, documentar de forma livre e optar pelo comprometimento com causas populares. Além de criar mercados de trabalho, este movimento começou a romper com a hipocrisia de que o jornalista é imparcial”, diz ele, para quem jornais e jornalistas são veículos dos mantenedores da sociedade dividida entre pobres e ricos, na qual impera a discriminação que faz com que os moradores das periferias e favelas “sejam excluídos e tratados como subalternos, atendendo aos interesses das classes média e alta e do regime repressor, autoritário e racista que criminaliza a pobreza”. (Resumo a partir do texto de José Reinaldo Marques, no site da ABI)
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No sentido horário a partir de baixo, e da esquerda: • Trabalho escravo - Família espera volta do pai que está preso em fazenda no Sul do Pará.; • Índio guarari Kaiowá trabalhando, em condições análogas a de escravo no corte da cana de açúcar MS; • Criança carvoeira em Ribas do Rio Pardo, MS. • Trabalho escravo em fazenda de cana de açúcar também no MS João Batista Alves - trabalho análogo ao de escravo no Pará.
Confira mais imagens do fotógrafo no seu site:
www.imagenshumanas.com.br
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