CLASSE #3

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Revista de Política e Cultura da ADUFF Ano 2 - nº 3

PELO FIM DA GUERRA INTERNA NA PERIFERIA A arte militante do Gíria Vermelha e o trabalho do Quilombo Urbano



NĂşmero especialmente dedicado ao povo haitiano e a Daniel Bensaid



ADUFF

SSind

Seção sindical do Andes Filiado à CONLUTAS

SUMÁRIO

Associação dos Docentes da UFF

“Cantamos porque chove sobre os sulcos... e somos militantes desta vida. E porque não podemos e nem queremos deixar que a canção se torne cinzas.” (Mário Benedetti)

Revista da Associação dos Docentes da UFF. Rua professor Lara Vilela, 110. São Domingos, Niterói-RJ. CEP: 24.210-590.Tels: (21) 2622-2649 e 2620-1811. Correio eletrônico: revistaclasse@uol.com.br EDIÇÃO GERAL e REDAÇÃO: Stela Guedes Caputo. PROJETO GRÁFICO: Cláudio Camillo e Stela Guedes Caputo. DIAGRAMAÇÃO: Luiz Fernando Nabuco. ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO: Carolina Barreto da Silva Gaspar. REVISÃO: Isabel Correia. Conselho Editorial: Marina Barbosa Pinto, Suenya Santos da Cruz, Gelta Theresinha R. Xavier, Juarez T. Duayer, Elisabeth Carla Barbosa, Eliane Arenas Mora, Paulo Cresciulo de Almeida, Larissa Dahmer Pereira, Claudia March, Julio C. Figueiredo, José R. Bokehi, Ângela R.M.B Tamberlini, Eunice Treim, Catharina M. Meirelles. Gestão: Autônoma, Democrática e de Luta ISSN: 2176-9605 Revisão: Isabel Correia. Impressão: ZIT Gráfica. Tiragem: 3000 exemplares

Apresentação ....................................................................................................... pág. 2 Contra Corrente Marcelo Dias Carcanholo A crise atual do capitalismo e seus impactos para o Brasil ...................................................pág. 4 Amauta Carlos Walter Porto-Gonçalves Venezuela profunda e as contradições da revolução bolivariana ....................................... pág. 13 Pública, Gratuita e de Qualidade O novo rosto da educação superior pública: ..............................................................pág. 17 Entrevista com Kátia Lima ......................................................................................pág. 18 Entrevista com Ângela Siqueira ..............................................................................pág. 25 De Capa “Nem guerra entre as gangues, nem paz entre as classes” ......................................pág. 32 Entrevista com o grupo Gíria Vermelha .....................................................................pág. 34 Mídia e política Marcelo Salles Interesse público X interesse publicado .....................................................................pág. 52 Privatizações pioram a vida de usuários de trens e barcas ........................................pág. 54 Sucatear para privatizar ............................................................................................pág. 55 Ineficiência das Barcas S/A causa indignação e revolta ........................................pág. 59 A Revolta da Cantareira ..........................................................................................pág. 63 “Um profeta é aquele que rasga o céu do amanhã com a sua palavra e marx fez isso”: entrevista com Lirinha ........................................pág. 66 Filmes Rosa Malena Carvalho Entre os muros da escola: Quando o “entre” significa encontros .......................................pág. 74 Nossa resenha Ronaldo Rosas Reis Trabalho intensificado nas federais: Um estímulo à resistência ..................................pág. 77 Histórias de Vida Professora Ismênia de Lima Martins .........................................................................pág. 80 Poesia Manoel Filó ............................................................................................................. pág. 83 Diálogos com a cidade Serra da Tiririca: uma área de preservação ambiental cheia de conflitos ...................................................................pág. 84 Hiperfocal Samuel Tosta ...........................................................................................................pág. 91


Apresentação

Privatizações, rap, intensificação do trabalho docente, Haiti... Fechávamos essa edição de Classe e, mais uma vez, vemos o Haiti convulsionado. Neste momento, não são mais os negros escravos demonstrando que eram seres pensantes, sujeitos de sua própria história e realizando a primeira grande revolução escrava das Américas. Também não eram as ditaduras apoiadas pelas potências imperialistas, nem as invasões patrocinadas por aquelas mesmas potências e referendadas pela ONU. Agora, o “detonador” foi a “força da natureza”. Ocorre que nenhum terremoto seria tão desastroso se não atingisse o país mais miserável das Américas, vítima de invasões como a atual, coordenada pelo Exército brasileiro, em nome da ONU. Como se os haitianos tivessem que pagar eternamente pela ousadia de terem feito a primeira revolução de escravos negros do mundo moderno. Mas não só no Haiti bate forte o pulso da revolta negra e periférica. Aqui mesmo, em vários locais, ela se faz sentir. Em poucos, porém, pode ser tão audível e visível quanto na periferia de São Luís do Maranhão, de onde ecoam as vozes do grupo Gíria Vermelha e do Quilombo Urbano, movimentos militantes que encontra-

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ram no rap sua forma de expressão e tem na revolução seu objetivo declarado. Nesta edição de Classe, nossa matéria de capa traz essa cultura militante, com sua visão crítica da sociedade. Em tempos de tanto empreendedorismo, o Gíria reafirma que a única saída para os explorados e exploradas desse país e do mundo, é coletiva, precisar unir as questões de classe e de raça, mas sem trégua e sem concessões. É importante dizer que entendemos raça como Antônio Sérgio Guimarães, no livro Classes, Raças e Democracia. Para ele, raça é: “não apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil, mas também categoria analítica indispensável: a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de cor enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe”. Não há raças biológicas, diz ele, ou seja, na espécie humana não existe nada que possa ser classificado a partir de critérios científicos e corresponda ao que comumente chamamos de ‘raça’ tem existência real. O que chamamos de raça, explica esse autor, tem existência nominal, efetiva e eficaz apenas no mundo

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uma nova forma para poetizar um Brasil profundo e profetizar um outro mundo. E o que tudo isso tem a ver com a UFF, com o Reuni, com as privatizações dos transportes, com a luta pela punição aos crimes contra a humanidade dos ditadores e torturadores brasileiros? É só aceitar o convite da Diretoria da ADUFF e abrir o terceiro número de Classe, nossa revista de cultura e política. Antes de encerrar esta pequena apresentação, não podemos deixar de lamentar a morte, no dia 12 de janeiro, em Paris, Na Marcha da Periferia, realizada em São Luís do Maranhão, no dia 20/11/2009, de Daniel Bensaid, um dos funprotesto contra a ocupação militar do Haiti. Foto: Stela Guedes. dadores da Jeunesse Communiste social e, portanto, somente no mundo social pode Révolutionnaire (JCR), em 1966. Bensaid e parter realidade plena. “O problema que se coloca é, ticipou ativamente do movimento de Maio de 68, pois, o seguinte: quando no mundo social, pode- antes de participar da criação da Ligue Commumos, também, dispensar o conceito de raça? A res- niste (LCR), em 1969. Durante muitos anos, foi posta teórica parece ser bastante clara: primeiro, dirigente da LCR e da Quarta Internacional. Em quando já não houver identidades raciais, ou seja, 2009, engajou-se na criação de um novo partido quando já não existirem grupos sociais que se de esquerda na França, o NPA (Novo Partido identifiquem a partir de marcadores direta ou in- Anti-Capitalista). Professor de Filosofia na Unidiretamente derivados da idéia de raça; segundo, versidade de Paris VIII, Bensaid publicou diverquando as desigualdades, as discriminações e as sos livros de filosofia e debate político, ajudou hierarquias sociais efetivamente não correspon- a construir as revistas Critique Communiste e derem a esses marcadores; terceiro, quando tais ContreTemps e participou ativamente da criação identidades e discriminações forem prescindíveis da Fundação Louise Michel, defendendo nestes em termos tecnológicos, sociais e políticos, para a espaços um marxismo aberto e não dogmático. afirmação social dos grupos oprimidos”. (GUIMA- Esteve diversas vezes em Porto Alegre e foi um participante ativo do Fórum Social Mundial, RÃES, 2002, p. 50 e 51). Ainda do nordeste, mas a 1820 km de dis- cuja edição local comemorativa dos dez anos do tância de São Luiz, buscamos, em Arcoverde, a primeiro encontro em Porto Alegre acontece de declamação da música do Cordel do Fogo Encan- 25 a 29 de janeiro. Dedicamos a ele, e ao povo do tado. Lirinha, poeta e pseudo-místico, inventa Haiti, este número de nossa revista.

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Foto: Stela Guedes

Contra Corrente

A CRISE ATUAL DO CAPITALISMO E SEUS IMPACTOS PARA O BRASIL Marcelo Dias Carcanholo Prof. Adjunto da Faculdade de Economia da UFF e membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-Marx) da UFF. Numa esquina da Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro

A atual crise pela qual passa o capitalismo contemporâneo permite resgatar, ao menos, duas coisas fundamentais para o entendimento da natureza de seu funcionamento. Em primeiro lugar, o fato de que o processo de acumulação de capital se dá em ciclos. Em segundo lugar, a perspectiva marxista como um referencial teórico sólido para o entendimento desse fato. Não há momento na história do capitalismo em que fases de crescimento, mais ou menos sustentadas, não tenham sido sucedidas por fases de crise, mais ou menos profundas, e em que estas conformem novos períodos de acumulação de capital, crescimento. É da natureza do capitalismo funcionar em ciclos, e isto por uma razão relativamente simples. Os processos

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de acumulação de capital desenvolvem as contradições do capitalismo a um ponto tal que as crises são a forma que esse mesmo modo de produção encontra para, ao mesmo tempo, manifestar o momento de irrupção dessas contradições e o restabelecimento da unidade entre a produção e a apropriação do valor. Isso significa que, se quisermos encontrar a(s) causa(s) da crise, devemos enfrentar o fato de que o capitalismo, recorrentemente, entra em crise porque cresceu, e voltará a crescer porque entrou em crise. Este caráter objetivamente dialético da acumulação de capital exige de uma teoria da crise cíclica três coisas: (i) explicar os processos cumulativos que propagam os efeitos das inflexões, isto é, porque o capitalismo continua crescendo durante algum tempo sim-

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plesmente porque já estava crescendo, e continua em recessão simplesmente porque já estava em crise; (ii) explicar os pontos de inflexão, ou seja, porque, a partir de determinado momento, o crescimento se transforma em crise/recessão, e o descenso se transforma em nova etapa de acumulação de capital; esta última exigência é ainda mais complexa do que aparenta, já que, se o fenômeno do ciclo é próprio do capitalismo, não é uma anomalia, um acaso, (iii) os pontos de inflexão tem que ser conseqüência necessária das características provocadas pela inflexão anterior. Estas características próprias do fenômeno (crise cíclica) é que fazem da teoria de Marx uma das mais sólidas para o seu entendimento, assim como, para os nossos propósitos aqui, obriga-nos a recuar um pouco no tempo. Esta crise atual só pode ser entendida a partir das características da fase anterior de relativo crescimento do capitalismo que, por sua vez, se relaciona com as formas como ele conseguiu se “recuperar” de sua última grande crise estrutural.

A Crise do Capitalismo nos anos 70 e as respostas do capital: os componentes mais estruturais da crise atual No final dos anos 60 do século passado, a economia capitalista mundial chegou ao limite de uma etapa de expansão que caracterizou o pós-guerra, e esse momento de crise, que perpassou os anos 70, apresentou as duas formas clássicas de manifestação desse fenômeno no capitalismo: reduções das taxas de lucro e superacumulação/superprodução de capital. As crises no capitalismo nada mais representam do que uma produção excessiva de capital frente às suas possibilidades de valorização e/ou de manutenção da lucratividade obtida até aquele momento. Produz-se capital em demasia em todas

as suas formas, seja na forma mais perceptível, a forma monetária, mas também na forma produtiva (meios de produção) e na forma mercadoria. Essa superprodução de capital frente a suas possibilidades de valorização se traduz na queda da taxa de lucro que, por sua vez, desestimula novos investimentos, levando a crise enquanto inflexão do crescimento a um processo cumulativo de recessão/depressão. Foi exatamente isso o que ocorreu naquela época. O conjunto de fatores que constituem a resposta que o próprio capitalismo deu a esta crise conforma o que se convenciona chamar de capitalismo contemporâneo. Entre esses fatores encontramos, dentre outros: a implementação das reformas neoliberais - no centro e na periferia do sistema como uma forma de elevar as taxas de mais-valia e incentivar a retomada da lucratividade do capital; a exacerbação da transferência de recursos da periferia para o centro, que permitem impulsionar a dinâmica de acumulação nos principais países capitalistas; a expansão dos mercados, como forma de garantir novos espaços de realização para o capital sobrante, manifesta na pressão por aprofundamento da abertura e liberalização do comércio mundial; a aceleração da rotação do capital, tanto na esfera produtiva quanto na circulação de mercadorias, o que propicia o aumento das taxas de lucro. O que importa é que, independente dos elementos que constituem essa resposta, a saída da crise para o capitalismo tem que passar, necessariamente, pela criação/ampliação de espaços de valorização para o capital sobrante, ao mesmo tempo em que são elevadas as taxas de mais-valia. Isto propulsiona a lógica fundante do capital: produção crescente de um valor excedente (mais-valia) que, se realizado a uma taxa de lucro razoável, deve ser crescentemente acumulado, recolocando a mesma lógica, em maior magnitude, para adiante. Interessa-nos aqui um aspecto em específico.

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As reformas neoliberais contra o trabalho representam, em última instância, a elevação necessária (para o capital) da taxa de mais-valia

Não é uma casualidade histórica que, nessa época, tenha tornado-se hegemônica a grita por abertura e liberalização dos mercados, sendo que dois deles com maior ênfase. O mercado de trabalho é o primeiro, e pela razão apontada. As reformas neoliberais contra o trabalho representam, em última instância, a elevação necessária (para o capital) da taxa de mais-valia. Entretanto, há um outro mercado em que o clamor neoliberal foi tão candente: o mercado financeiro. É nessa época que a lógica da desregulamentação e abertura dos mercados financeiros, associada à crescente produção de novos instrumentos financeiros, no que se costuma chamar de inovações financeiras, começa a ganhar corpo. O desenvolvimento dessa lógica nos anos 80 e, principalmente, nos anos 90, é que dá uma característica específica a esta etapa do capitalismo, ao capitalismo contemporâneo. O que significa esse processo? Qual a sua especificidade? Como se relaciona com a crise atual? Para enfrentar essas questões, consideramos necessário fugir das noções corriqueiras de capital

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financeiro, “finanças”, que contaminam o debate atual sobre a crise, seja porque confundem categorias, o que não permite caracterizar apropriadamente a especificidade desta crise, ou porque simplesmente não dizem nada. Do nosso ponto de vista, a categoria capital fictício é muito mais profícua para entender a atualidade do que as noções, mais densas ou não, de capital financeiro/finanças. Em primeiro lugar, é preciso destacar que a categoria capital fictício, desenvolvida por Marx em O Capital, não pode ser confundida, de forma alguma, com a noção corriqueira do que se convencionou chamar de “capital financeiro”, ou ainda com a categoria capital financeiro, desenvolvida por Hilferding no início do século XX. A categoria capital financeiro, neste último autor, procurava dar conta da unificação/fusão do capital produtivo com o capital bancário, sob a hegemonia deste último, e seria uma das formas preponderantes do capital na sua fase imperialista clássica, segundo a apropriação desta categoria feita por Lênin. Como se verá, esta noção não pode ser confundida com a de capital fictício. Já a noção corriqueira de capital financeiro (“financeirizado”) costuma se referir ao capital remunerado basicamente com ganhos especulativos na esfera financeira, além da remuneração derivada dos juros. Em última instância, tratar-se-ia de todo aquele capital que se apropria de juros, isto é, que se apropria de uma renda que, na realidade, não foi ele que produziu. Ora, o capital – qualquer que seja a sua adjetivação – se caracteriza pela apropriação de um valor (mais-valia) que, de fato, é produzido pelo consumo do valor de uso da força de trabalho, dentro do processo produtivo. Assim, todo e qualquer capital, em última instância, se define pela apropriação de um valor que não foi ele quem o produziu. A conclusão é que a noção corriqueira de capital financeiro valeria para todo o conjunto do capital. Uma categoria que vale para absolutamen-

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te tudo passa a não ter, em termos de compreensão (teórica), absolutamente nenhuma serventia. Mas, de fato, o que é o capital fictício? Ele pode ser entendido como um desenvolvimento/complexificação da lógica do mero apropriar-se de um valor excedente. O que constitui o capital é a apropriação da mais-valia que é produzida pela força de trabalho no processo produtivo, mas o primeiro adquire (no mercado) o direito de se apropriar do resultado dessa produção. O capital a juros é uma primeira etapa na autonomização da apropriação do valor frente à sua produção. Supondo um capital monetário de $ 100, e uma taxa de juros de mercado de 10%, o proprietário desse capital monetário pode emprestar essa quantia para um capital produtivo que, ele sim, encarregar-se-ia de ingressar no processo produtivo. Supondo uma taxa de mais-valia de 20%, isso significaria que a massa de mais-valia atingiria $ 20. Ao final do processo, o capitalista em função pagaria o empréstimo de $100, acrescido dos juros de $ 10, e ainda ficaria com um lucro de $ 10. Esta é a essência da relação entre o capital a juros e o capital produtivo. A complexificação dessa lógica, isto é, a “especialização” de frações do capital total no mero apropriar-se de uma fração da mais-valia produzida constitui a base de constituição do capital fictício, mas não pode ser confundida com ele. A generalização e aprofundamento dessa lógica exacerbada de apropriação de valor, como se ela fosse totalmente autônoma do processo de produção, faz com que qualquer indivíduo que perceba um rendimento periódico de $ 10 apareça como proprietário de um capital no valor de $ 100, ainda que esse capital, de fato, não exista. Isso porque, realmente, uma renda de $ 10, capitalizada a uma taxa de juros de 10%, é igual a um montante de $ 100, uma vez que 10 / 10% é igual a 100. Mas, efetivamente, o rendimento de $ 10 não provém da remuneração de um capital já existente,

Uma categoria que vale para absolutamente tudo passa a não ter, em termos de compreensão (teórica), absolutamente nenhuma serventia

que só se constituiria se esse rendimento fosse capitalizado. Tanto é assim que o indivíduo pode vender no mercado esse direito de apropriação periódica de $ 10, o que será feito ao valor de mercado, no caso, $ 100. Constituiu-se um capital de $ 100 puramente pela venda de um direito de apropriação sobre um valor que nem sequer existe, ainda. Esta é a base categorial do capital fictício, um desdobramento dialético e, por isso, com autonomia categorial, em relação ao capital a juros. Esses rendimentos periódicos, base para o capital fictício podem provir de várias fontes como títulos de crédito, ações, e mesmo salários, ou melhor, a parcela deles que é aplicada na forma de capital monetário. O que o processo de desregulamentação e inovações financeiras propiciou, a partir dos anos 70 do século passado, e com mais força dos anos 90, foi o crescimento substancial de novos instrumentos desse capital fictício, assim como a expansão brutal da massa de valor desse tipo de capital. De que forma essa lógica exacerbada do capital fictício influencia e, de forma importante, caracteriza o capitalismo contemporâneo? Através do que pode ser chamado de dialética do capital fictício. Como todo o processo de autonomização das formas do capital, o capital fictício apresenta

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Ora, o capital – qualquer que seja a sua adjetivação – se caracteriza pela apropriação de um valor (mais-valia) que, de fato, é produzido pelo consumo do valor de uso da força de trabalho, dentro do processo produtivo

mento do comportamento cíclico da crise. Por um lado, a funcionalidade do capital fictício permite o prolongamento da fase ascendente do ciclo, possibilitando a redução do tempo de rotação do capital global e elevação da taxa de lucro. Por outro lado, quando sua lógica individual de apropriação se expande, a fase descendente (crise) do ciclo também é aprofundada. A “disfuncionalidade” do capital fictício amplia as potencialidades da crise. A dialética do capital fictício, com sua (dis)funcionalidade, complexifica/amplia a tendência cíclica do processo de acumulação de capital. O último ciclo de acumulação do capitalismo a partir dos anos 70 do século passado pode ser entendido a partir dessa dialética do capital fictício

uma funcionalidade para a acumulação de capital. A sua constituição permite o funcionamento de atividades produtivas que, de outra forma, teriam que esperar muito tempo para serem implementadas. Isso leva à maior acumulação global de capital, a redução do tempo de rotação do mesmo e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período. Todavia, o capital fictício possui uma “disfuncionalidade” que não pode ser negligenciada. O capital fictício, do ponto de vista individual, por si só não é capaz de produzir valor excedente, mais-valia, pelo simples fato de que não entra no processo produtivo. A sua lógica diz respeito à apropriação do excedente, não a sua produção, embora ele contribua indiretamente – via rotação do capital global – para o aumento da acumulação. Assim, se a lógica da apropriação de mais-valia é alastrada/expandida, em detrimento da produção do excedente, uma parcela cada vez maior do capital global procurará apropriar-se de um valor que está sendo produzido cada vez menos. O resultado final é a redução da taxa de lucro e o aprofunda-

Manifestações conjunturais da crise: o século XXI

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Dentro dessa nova etapa do capitalismo, devese destacar o período iniciado no século XXI, pois é nele que a dialética do capital fictício se manifesta com toda clareza. Inicialmente, entre 2002 e 2007, podese identificar certa funcionalidade do capital fictício para a acumulação de capital, definindo inclusive um cenário externo favorável para a periferia do sistema. Por um lado, a alta no ciclo de liquidez internacional permitiu um ambiente mundial de baixas taxas de juros, o que dava às economias periféricas uma margem para reduzirem as suas e, portanto, criando certo alivio na restrição externa ao crescimento. Por outro lado, a própria retomada de algum crescimento mundial foi acompanhada de uma elevação da demanda por commodities, normalmente exportadas pela periferia. A este movimento se agregou a forte elevação dos preços dessas commodities – em muito explicada também pelo comportamento do capital fictício nesse setor. Assim, ocorreu um grande crescimento das

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exportações das economias periféricas, fortemente centradas em produtos primários. Por último, a alta liquidez internacional também permitiu a entrada de capital externo nessas economias, o que promoveu um movimento de valorização de suas taxas de câmbio e alguma estabilidade nos preços internos. O resumo é que o cenário externo favorável propiciou às economias periféricas uma folga que, a reboque do crescimento mundial, permitiu a reversão do estancamento da década anterior, com relativa estabilidade de variáveis-chave das economias: juros, câmbio, reservas internacionais e balanço de pagamentos. Este cenário externo favorável foi revertido justamente em função da crise. Quando a economia capitalista mundial entra em crise em 2007/2008, as economias periféricas acompanham o movimento, uma vez que são dependentes dessa dinâmica de acumulação. A crise já se ensaiava quando da formação da bolha especulativa junto às ações de empresas de alta tecnologia, as famosas empresas pontocom. O estouro dessa bolha nada mais representou do que a desvalorização do capital fictício acumulado especulativamente nesse mercado que, com a sua retração, se viu obrigado a encontrar novos espaços de valorização, ou pelo menos para aquela parcela do capital fictício que sobrou ao estouro dessa bolha. Esse novo espaço de valorização, e que definiu um segundo momento de atuação do capital fictício, é justamente o mercado (basicamente norte-americano) de financiamento de imóveis, justamente o local de estouro da atual crise financeira por que passa o capitalismo contemporâneo. A expansão nesse mercado imobiliário se dá, basicamente, pelo crescimento na captação de empréstimos bancários via crédito hipotecário. O crescimento do mercado imobiliário, com base nesse tipo de financiamento, propiciou a elevação dos preços dos imóveis que, por sua vez, e em um efeito auto-expansivo, possibilitou o refinanciamento das

hipotecas de uma forma que o montante refinanciado de recursos permitia tanto o pagamento dos débitos anteriores quanto recursos adicionais utilizados para novas aquisições de imóveis, impulsionando ainda mais o efeito auto-expansivo de elevação dos preços dos imóveis, o crescimento do mercado hipotecário, e sua implicação de elevação do endividamento dos tomadores desses empréstimos. Entretanto, já no momento de alta do ciclo percebia-se o caráter especulativo do processo autoexpansivo, uma vez que a elevação dos preços dos imóveis permitia a ampliação dos empréstimos para novas compras de imóveis, que voltavam a elevar os preços dos imóveis, e assim por diante. Essa bolha especulativa, enquanto o ciclo de alta na liquidez e no crédito internacionais permitia e chancelava os problemas conjunturais de liquidez dos tomadores de empréstimos, apresentou esse caráter “virtuoso” para a economia mundial, dentro de um processo, como visto, de funcionalidade do capital fictício para a acumulação do capital total. Em meados de 2006, esse processo começa a emitir os seus primeiros sinais de esgotamento com a redução da taxa de crescimento do crédito ao consumo e o leve aumento da inadimplência. Com isso, a eclosão da crise do setor imobiliário era uma questão de tempo. Essa crise se manifestou primeiro no segmento do mercado com mais risco, que é aquele representado por tomadores com histórico de inadimplência. Detonada a crise, o seu processo de expansão e contágio se dá pelo fato de que, ao aumentar a inadimplência, os credores passam a sofrer também com problemas de liquidez e solvência, uma vez que os ativos que eles tinham a receber são desvalorizados e, portanto, seus compromissos financeiros podem não ter mais garantia de pagamento. Os credores são obrigados a vender (parte de) seus ativos em troca de dinheiro para, com este, saldar suas obrigações. Esse movimento de ven-

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Quando a economia capitalista mundial entra em crise em 2007/2008, as economias periféricas acompanham o movimento, uma vez que são dependentes dessa dinâmica de acumulação

da de ativos provoca a redução dos seus preços e reforça a pressão pela alta da taxa de juros cobrada pelas instituições financeiras, agravando ainda mais crise. A “contaminação” ocorre justamente porque os investidores se vêem na obrigação de vender outros ativos para contornar problemas de liquidez/solvência provocadas pelo estouro dos títulos podres relacionados ao mercado hipotecário, generalizando o movimento de desvalorização de ativos e propagando a crise.

Impactos da crise para o Brasil Apesar da vociferação inicial do governo brasileiro, a crise atingiu diretamente o desempenho da economia, e não por acaso. É possível perceber que o governo Lula não modificou substancialmente nada do que se fazia em termos de estratégia de desenvolvimento e política econômica do governo anterior. As reformas estruturais de liberalização, abertura e des-

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regulamentação não foram revertidas. Ao contrário, em alguns casos, foram aprofundadas, mantendo a estratégia neoliberal de desenvolvimento, em específico o alto grau de abertura externa da economia, o que majora a dependência e vulnerabilidade externa estrutural da economia. Relacionado a isso, a instrumentalização da política econômica tampouco se alterou em sua essência. A política fiscal continuou tendo como objetivo a obtenção de elevadíssimos superávits primários. A política monetária continuou com sua meta inflacionária e operação conservadora. Quanto à taxa de câmbio, ainda que não estejamos mais em um sistema de bandas cambiais, o Banco Central atua de forma a não deixar a taxa de câmbio superar um determinado patamar-teto e nem descer abaixo de um nível-piso. Ou seja, ainda que não pré-anunciada, a atuação do Banco Central continua referendada em bandas que, pelo seu próprio comportamento, são de conhecimento do mercado. Se nem a estratégia de desenvolvimento, nem a política econômica do governo Lula são distintas do período anterior, a reversão do cenário externo – até então favorável ao desempenho da economia sob tutela do novo governo – voltou a demonstrar a vulnerabilidade externa estrutural da economia, fruto da manutenção e aprofundamento da estratégia. Ou seja, em resumo, o período 2002-2007, em que imperou a funcionalidade do capital fictício, construiu um cenário externo extremamente favorável, justamente a partir do momento em que assumia o novo governo; e isso tudo sem que ele tenha feito nada para isso. Não há outra palavra para descrever o acontecimento que não sorte. A crise veio justamente modificar essa maré de sorte. A reversão do cenário internacional significou a volta dos problemas no balanço de pagamentos basicamente por duas razões: desa-

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celeração do crescimento das exportações, em função da recessão mundial que diminui a demanda por nossos produtos; e, redução dos preços das commodities, tanto pela recessão mundial como, principalmente, pela desvalorização do capital fictício aplicado no setor. Isso significa que a vulnerabilidade externa estrutural tende a se manifestar novamente na piora das contas externas. O impacto nas contas externas é agravado pela dinâmica de atração de investimentos externos de curto prazo e de natureza especulativa. Ainda que as taxas de juros internacionais estejam em queda – uma tentativa dos governos centrais de minorar os impactos da crise – nesse ambiente de aprofundamento da incerteza, desenvolvese uma maior aversão ao risco, fazendo com que os capitais exijam um maior diferencial de juros para aplicar nas economias periféricas. O que vem ocorrendo é que as taxas de juros no Brasil caem, mas em menor proporção em relação à queda nos países centrais. Mesmo com os juros em queda – em menor proporção nos países periféricos – a crise representa a virada do ciclo, a recessão. Assim, toda a dinâmica agraciada pelo acaso no período 2002/2007 se reverte. Se o que deu margem de manobra foi a explosão das exportações, essa válvula de escape não existe no atual contexto. A economia brasileira também entra em

recessão, o que significa elevação das taxas de desemprego, queda da proporção da renda na forma de salários, impactos sobre distribuição (de renda e riqueza) e pobreza, redução na arrecadação de governo, o que coloca em xeque a utilização de políticas públicas para minorar os efeitos da crise.

Notas conclusivas sobre o Capitalismo pós-crise Assim, a maré de sorte do governo Lula parece ter acabado. A vulnerabilidade externa estrutural volta a se manifestar na atual conjuntura desfavorável. E como o capitalismo está procurando “sair” da sua própria crise? A forma como os governos, tanto de países centrais, como de alguns periféricos, está intervindo não deixa dúvidas. São dois componentes básicos. De um lado, são tomadas medidas para aumentar a exploração do trabalho, isto é, fazer com que uma fração crescente do valor novo que seja produzido se transforme em apropriação do capital. Em termos de Marx, elevação da taxa de mais-valia. Isto é feito tomando-se todo o cuidado necessário no momento de apresentar, denominar e propagandear as medidas, pelo seu claro teor anti-popular. Por outro lado, e isso é o que nos permite algum exercício de prospecção, enormes quantidades de recursos (públicos em sua maioria) são

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utilizadas para obstruir o processo de desvalorização do capital fictício superacumulado nos últimos tempos. Isso provoca dois efeitos. Em primeiro lugar, não permite que a crise “cumpra o seu papel”. Como visto no início, a crise é uma forma que o capitalismo tem de recompor a unidade entre o processo de produção de valor e o de sua apropriação, desvalorizando toda a massa de capital que foi superacumulado. Em segundo lugar, e como conseqüência do anterior, esta forma como o capitalismo está “saindo” da crise nada mais é do que uma maneira de sancionar o comportamento e a lógica do capital fictício. A sua dinâmica está sendo validada e, portanto, a sua dialética também. Para irmos ao ponto. As maiores garantias de valorização para o capital fictício superacumulado provocará um crescimento ainda maior da fração do capital total que se destina à sua lógica, aprofundando a contradição dialética entre a produção e a apropriação de valor, o que recoloca os problemas, em maior intensidade, para adiante. Dessa forma, é possível que ocorra nos próximos meses uma recuperação da economia mundial e, portanto, um certo alívio para as economias periféricas, em razão tanto dos tradicio-

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nais elementos de recuperação cíclica quanto de alguma nova funcionalidade da lógica do capital fictício para o capitalismo global. Isso pode gerar algum tipo de novo otimismo, ou até de encantamento com alguns líderes de países periféricos que pretensamente teriam “resolvido” a crise. Mas isso é passageiro, pois a lógica (dialética) do capital fictício continua sendo alimentada. Pode-se jogar todos os efeitos necessários da crise do capitalismo para frente, sob pena de aprofundar a intensidade de sua ocorrência, assim como a duração de seus efeitos. É possível que o pior da crise ainda nem tenha passado.

Nota da Edição: Esse texto foi produzido (e depois atualizado), a partir da fala do professor Marcelo Carcanholo, na aula inaugural da ADUFF, em 26/3/2009. O professor da UFRJ, Roberto Leher, também participou da atividade. A íntegra das falas pode ser consultada em: www.aduff.org.br

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Amauta

Venezuela profunda e as contradições da revolução bolivariana Carlos Walter Porto-Gonçalves1

Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da UFF

A eleição de Hugo Chávez Frias para presidente da Venezuela, em 1998, surpreendeu a todos, inclusive aos que lançaram sua candidatura. De certa forma, aconteceu na Venezuela algo parecido com o que ocorrera no Brasil com a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989. Não que Collor e Chávez sejam iguais. Ao contrário, estão em campos opostos, sobretudo quanto às suas posições com relação ao imperialismo. Na verdade, os blocos de poder tradicionais na América Latina ao aderirem ao Consenso de Washington e todo o conjunto de políticas de estado mínimo para o povo (e máximo para o capital) acabaram por dar um tiro nos próprios pés ao desmontarem os mecanismos tradicionais de dominação. Sendo assim não conseguiram se apresentar como alternativa às intensas lutas sociais que se desencadearam na região contra as políticas neoliberais que, inclusive,

tiveram seu início na própria Venezuela, com o dramático 27 de fevereiro de 1989 quando milhares de venezuelanos foram massacradas nas ruas de Caracas ao protestarem contra medidas antipopulares do governo neoliberalizado de Carlos Andrés Peres. O episódio ficaria conhecido como Caracazzo. Desde essa época mais de uma dezena de governos eleitos democraticamente caíram na América Latina não mais por golpes de estado, mas sim por mobilizações de rua contra as políticas neoliberais antipopulares. Destaque-se, ainda, que duas grandes marchas cortaram a Bolívia e o Equador em 1990 trazendo à cena política o protagonismo dos povos indígenas que passariam a ter um papel de destaque na nova etapa que desde então se inaugura na América Latina. Sendo assim, se para muitos o ano de 1989 tem a marca da queda do muro e aparece como a vitória, ainda que parcial, do

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neoliberalismo, na América Latina o ano de 1989/1990 marca o início de um novo padrão de conflitividade onde essas políticas neoliberais começam a perder a legitimidade como o demonstram os inúmeros governos derrubados a partir de mobilizações callejeras. Será ainda na Venezuela que um novo deslocamento político com implicações continentais ocorrerá com a eleição de Hugo Chávez Frias em 1998. Desde então, inúmeros outros governos se

elegeram pela esquerda se beneficiando destas amplas mobilizações populares que foram, pouco a pouco, minando o consenso neoliberal. A eleição de Hugo Chávez acabou por propiciar que uma Venezuela Profunda ganhasse a cena política colocando uma série de demandas sociais, econômicas e políticas. Hoje, 46% do orçamento do governo venezuelano destinamse a fins sociais com várias missões de saúde,

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educação, assim como na área da produção. Nenhum país da América Latina tem um orçamento com esse perfil. Até mesmo uma reforma agrária, ainda que tímida diante das necessidades, vem sendo implementada. Todavia, há um núcleo de poder na Venezuela que, tudo indica, se mantém incólume e que impede que o socialismo de século XXI, tal como o Presidente Hugo Chávez com certa razão propugna, se liberte dos fantasmas do socialismo do século XX. Trata-se do setor de mineração, em particular do petróleo, que dá ensejo a gestores estatais que manipulam com certa maestria o discurso nacionalista. Segundo dados de 2008, aproximadamente 92% das divisas do país advêm do petróleo, recursos esses que vêm financiando o mesmo projeto desenvolvimentista de abertura de estradas, portos e de plantas energéticas, inclusive hidrelétricas. Para isso, o governo Chávez vem abrindo espaço para investimentos de empresas transnacionais como a Vale do Rio Doce, a Norberto Oderbrecht e uma série de outras empresas com capitais de origem russa, francesas, chinesas e, até mesmo, estadunidenses. Tal como o Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC de Lula da Silva, na Venezuela se põe em prática toda uma logística de apoio a IIRSA – Iniciativa de Integração Regional Sul Americana. Como é sabido, a IIRSA foi proposta no ano 2000 por FHC como a base material necessária para implementar a ALCA. O que merece atenção é que governos que numa das mãos se mostram críticos da ALCA com a outra realizam a sua base material com pesados investimentos numa integração continental que,

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na prática, vem ensejando enormes conflitos sociais. O significado político e social desse fato é muito mais importante do que o seu significado econômico, ainda que os dois estejam associados. É que há um núcleo de poder que se estrutura a partir do estado venezuelano que detém o monopólio da extração mineral e que a partir daí se arvora em guardião dos interesses nacionais ignorando a complexidade da nação que emana da própria revolução bolivariana. Uma das Etnia Yukpa melhores expressões do que denominamos Venezuela Profunda e que emanou dessa verdadeira revolução democrática porque passa a Venezuela é o reconhecimento na Constituição de 1999 dos direitos indígenas, direitos esses até então ignorados no país. Até mesmo uma Lei Orgânica dos Direitos dos Povos Originários foi promulgada onde se especificam os direitos desses povos aos seus territórios, além de um Ministério para os Povos Indígenas e do governo ter firmado o importante Convênio 169 da OIT, com o apoio do Congresso. Todavia, todo esse processo não tem sido capaz de impedir os conflitos envolvendo as populações indígenas, em particular as que tradicionalmente habitam a região do lago Maracaíbo, no estado de Zulia envolvendo diferentes

povos como os Yukpas, os Bari e os Wayuu. Ali, o governo Hugo Chávez vem encontrando dificuldades em se posicionar diante do núcleo duro do Estado venezuelano, ou seja, com o setor de mineração envolvendo os próprios militares. É que aqueles povos indígenas habitam a Serra de Perijá onde são grandes os interesses e as concessões históricas do estado venezuelano a empresas transnacionais de exploração mineira (carvão, urânio), concessões essas que não foram anuladas pelo governo atual. Ali, uma equivocada política de demarcação de terras em ilhas de inspiração estadunidense, muito semelhante a que a direita e os militares brasileiros defendiam diante de Raposa Serra do Sol, vem impedindo que a luta daqueles povos por seus territórios ancestrais seja implementada. Fazendeiros

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ocupam terras indígenas e embora o Presidente Chávez tenha declarado explicitamente que “entre hacendados (fazendeiros) e indígenas, ese gobierno está con los índios”, posição que nos parece correta, se mostra, porém insuficiente. Isto porque o verdadeiro teste revolucionário de um socialismo para o século XXI exigiria que, além disso, o governo pudesse dizer que “entre as empresas de mineração e os indígenas ese gobierno está con los indígenas”. Aí, sim, estaríamos diante de uma verdadeira revolução que sabe respeitar a quincentenária r-existência dos povos originários e incorporar a diversidade de cores que reconheça que o socialismo do século XXI terá as cores da Wyphala, isto é, o comple-

xo de cores do arco-íris da bandeira dos povos originários da Bolívia. A revolução bolivariana corre o mesmo risco de perder sua legimitidade ao não compreender a legitimidade histórica da luta desses povos, tal como os sandinistas com relação aos indígenas miskitos. O que surpreende no caso da luta dos povos Yukpas, Bari e Wayuu na bacia do Lago Maracaibo é o silêncio da direita que poderia tomar esse caso para brandir seu anti-chavismo inconsistente, posto que golpista e midiático. Todavia, a direita também é racista, latifundiária e tem interesses na exploração mineira da Serra de Perija, daí o seu silêncio cúmplice, o que nos mostra que na Venezuela há algo muito mais profundo que a polarização entre a direita e o chavismo, conforme a mídia por aqui tanto alardeia. Todo apoio à luta dos povos Yukpas, Bari e Wyuu na Serra do Perijá! Pela liberdade do Cacique Sabino da comunidade de Chaktapa, revolucionário que se reivindica chavista, que está injustamente preso por defender a demarcação dos territórios ancestrais! Por um socialismo com as cores de Wyphala!

Nota: Ganhador do Prêmio Casa de las Américas 2008 de Literatura Brasileira.

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Etnia Wayuu

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Pública, Gratuíta e de Qualidade

O novo rosto da educação superior pública Passados dois anos do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades (REUNI), há um novo rosto das instituições federais no Brasil pintado pelos grandes grupos econômicos nacionais e internacionais. Para falar sobre esse novo desenho de educação, a revista Classe entrevistou a professora da Faculdade de Serviço Social da UFF, Kátia Lima. O ano de 2010 também é o último ano do 4º Plano Nacional de Pós-graduação (PNG) e o rosto da Pós-Graduação brasileira tem os mesmos pintores. Para falar sobre a pós, entrevistamos a professora da Faculdade de Educação, também da UFF, Ângela Siqueira. CLASSE – Revista da Associação dos Docentes da UFF – JANEIRO/FEVEREIRO/MARÇO/2010

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Está ocorrendo uma perversa intensificação do trabalho docente nas universidades federais Entrevista: Kátia Lima Na versão online corrigimos a última pergunta da página 24 que foi publicada incorretamente na versão impressa.

Classe – Passados dois anos da implantação do Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades (REUNI) nas universidades Federais do país já podemos ver o novo desenho da educação superior pública? Kátia – Penso que sim. Pelo que estamos analisando no GEPES (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior/UFF) e nos estudos do GT de Política Educacional da ADUFF/SSind está em curso uma profunda reformulação da educação superior pública, particularmente nas federais. Uma reformulação que tem como um dos eixos condutores as metas do REUNI: o aumento do número de estudantes de graduação nas universidades federais; o aumento do número de alunos por professor em cada sala de aula da graduação; a diversificação das modalidades dos cursos de graduação, através da flexibilização dos currículos, da criação dos cursos de curta duração e/ou ciclos (básico e profissional) e da educação a distância,. Tudo isso

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incentiva a criação de um novo sistema de títulos e a mobilidade estudantil entre as instituições de ensino públicas e/ou privadas. Está sendo efetivado, portanto, um novo desenho da educação superior pública pautado na concepção da universidade como uma instituição de ensino, deslocada da pesquisa e da produção do conhecimento. Classe – As críticas ao REUNI argumentam que este não é novidade, mas que atualiza políticas elaboradas pelo Banco Mundial para a educação em países da periferia do capitalismo. Qual o caráter dessas políticas? Kátia – A fundamentação destas ações, como o REUNI, está na política de diversificação das instituições e dos cursos, através de cursos de curta duração, de ciclos e de cursos à distância - que resulta no aligeiramento da formação profissional, na intensificação do trabalho docente e na reconfiguração da universidade, concebi-

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da como uma instituição de ensino. Uma política que não é novidade do REUNI, pois vem sendo difundida pelos organismos internacionais, especialmente o Banco Mundial, desde o início dos anos de 1990 e tem como premissa que os países pobres, isto é, os países da periferia do capitalismo não precisam de formação de longa duração, não precisam de pesquisa e produção de conhecimento. A lógica é de uma hierarquização das instituições de ensino superior: algumas universidades que adaptam tecnologia produzida nos países centrais (nos marcos da inovação tecnológica) e a grande maioria que se caracteriza como “instituição de ensino de graduação” Classe - Além desta hierarquização entre instituições existe uma hierarquização interna entre os cursos? Kátia – Sim e que pressupõe a existência de alguns cursos/núcleos de excelência e outros voltados para a formação massificada. Vale conferir alguns documentos do BM que são referências importantes desta política como o documento publicado em 1994 (O ensino superior: as lições derivadas da experiência), o documento de 1999 (Documento estratégico do Banco Mundial. A educação na América Latina e Caribe) e mais recentemente (2002) um documento que assume explicitamente a denominação educação terciária em substituição a educação superior: Construindo sociedades do conhecimento: novos desafios para a educação terciária. Dois mecanismos devem ser destacados na análise deste último documento que faço referência: (i) o deslocamento da passagem de educação superior para educação terciária, isto é, a diversificação do ensino via instituições públicas e privadas e os cursos (de curta duração, ciclos, à distância, entre outros) ganha nova racionalidade na medida em que qualquer curso pós-médio é considerado de nível terciário e (ii) a ênfase na ex-

portação de serviços educacionais para formação de um mercado internacional de educação terciária, espaço de atuação dos provedores de serviços educacionais, especialmente os anfitriões da internet, como o documento denomina os EUA, Canadá, Europa e Austrália, Japão e Nova Zelândia, os mesmos signatários dos documentos da OMC sobre a internacionalização/comercialização dos serviços educacionais via ensino a distância. Classe - Como o governo Lula promove, na prática, essas políticas? Kátia – O REUNI é um programa elaborado pelo governo federal que operacionaliza esta política de diversificação das instituições e dos cursos elaborada, difundida e monitorada pelos organismos internacionais. O REUNI é uma inteligente ação do governo na medida em é apresentado como democratização do acesso, realizando a abertura de vagas em universidades públicas (federais) e permitindo a realização de concursos para docentes nestas universidades. É importante ressaltar, entretanto, três eixos de análise do processo de implantação do REUNI: (i) que o aumento do número das vagas de concursos para docentes não tem correspondido ao número de vagas e cursos que estão sendo criados nas federais, o que indica a materialização do aumento efetivo da relação professor/aluno na graduação; (ii) que os concursos que estão sendo realizados não levam em conta a ampliação de vagas e de cursos já realizada ao longo da década de 1990, portanto, a entrada de novos professores não tem alterado, de fato, a sobrecarga de trabalho já existente nos cursos de graduação e (iii) que este aumento de vagas/cursos e a contratação de professores, nos marcos do REUNI, está dando materialidade a política de massificação do ensino, de certificação em larga escala e de aprofundamento da concepção da universidade de ensino.

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Classe – Já que o foco do REUNI é a expansão da graduação, quais as conseqüências no trabalho docente? Kátia – As análises que estamos realizando no GEPES/UFF e no GTPE ADUFF/SSind indicam que está ocorrendo uma perversa intensificação do trabalho docente nas universidades federais em sua dupla face: o aumento do número de alunos em cada sala da graduação, somado ao aumento do número de cursos de graduação e da relação professor/aluno na graduação, está conformando a figura do professor de ensino. Esse professor é aquele que, pela quantidade de trabalho na graduação, não desenvolve ou desenvolve com muitas limitações um projeto de pesquisa e/ ou extensão. Um professor que não publica ou publica “pouco” (segundo as exigências da CAPES e do CNPq), pois não tem tempo para escrever; que não participa de eventos científicos nacionais e/ou internacionais porque não tem verba pública disponibilizada para garantir esta participação. É um processo difícil de ser rompido, já que o professor não é considerado produtivo porque está alocado na graduação, não atua em programas de pós-graduação, não pesquisa e não publica. Ao mesmo tempo ele não consegue sair do papel de professor de ensino na medida em que é avaliado como improdutivo pelos órgãos superiores das universidades (pró-reitorias) e/ou pelos órgãos de fomento. A outra face desta intensificação do trabalho docente ocorre pelo produtivismo acadêmico. São professores que além de atuarem na graduação, atuam nos programas de pós-graduação e têm metas de produção a serem atingidas, como o número de livros, capítulos de livros, artigos, participação em eventos nacionais e internacionais. O REUNI opera a primeira face da intensificação acima indicada e as políticas de pesquisa e pós-graduação operam a outra face desta intensificação do trabalho docente.

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De acordo com o reitor da Uff, Roberto Salles, está sendo preparado um dossiê com os números do REUNI (orçamento e alocação dos recursos). Foto: Stela Guedes.

Classe – O documento de adesão da UFF fala da criação de 25 cursos ou turnos, do aumento de matrículas nos cursos de graduação já existentes, mas não fala dos bacharelados interdisciplinares, dos ciclos básico e profissional, mas indica uma série de inovações curriculares. Quais os centros dessas inovações? Kátia – É importante reafirmarmos que a lógica que ordena o REUNI não está sendo efetivada apenas pelo documento de adesão que a reitoria da UFF encaminhou ao MEC. Esta lógica - de massificação e aligeiramento da formação profissional e de intensificação do trabalho docente - está em curso

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cia, dos cursos semipresenciais, do uso do EAD nos cursos presenciais e do uso de teleconferências; 4) a substituição do professor pelo aluno monitor ou tutor, de graduação ou de pós-graduação, considerado com “bom desempenho”; 5) a implantação de novos itinerários ou regimes curriculares e de um novo sistema de títulos que operacionalize a emissão de atestados de aproveitamento, certificados para cursos de curta duração e diplomas para integralização dos cursos de graduação e, por fim, 6) a mobilidade estudantil entre IES públicas e/ou privadas operacionalizando mais uma possibilidade de diluição das fronteiras entre público e privado na política educacional. Classe – O Termo de Acordo de Metas assinado entre a UFF e o MEC vai completar 2 anos no próximo 13 de março. Já há divulgação dos recursos que chegaram e de onde foram ou estão sendo investidos? Kátia – Tudo isso ainda está em estudo.

através de várias ações e entre estas podemos destacar o novo Regulamento dos Cursos de Graduação da universidade. Os dois documentos estão fundamentados nos mesmos eixos: 1) a reestruturação pedagógica dos cursos de graduação, realizada a partir da organização de disciplinas afins ou ciclos básicos, fundamentada no discurso sobre a necessidade de utilização do paradigma da interdisciplinaridade. Portanto, ainda que não explicitem a referência aos ciclos ou ao Bacharelado Interdisciplinar (BI) é desta reestruturação que os documentos tratam; 2) a flexibilização das estruturas curriculares, através da redução do número de pré e co-requisitos e de disciplinas obrigatórias e o aumento do número de disciplinas optativas; 3) o uso intensivo das tecnologias educacionais seja através dos cursos de graduação a distân-

Classe – A ADUFF recebeu denúncias de que o professor concursado pelas vagas do REUNI vem sendo discriminado e sendo chamado, inclusive de professor/REUNI. Você já ouviu isso? E o que pode dizer a respeito? Kátia – Sim. Soube que esta identificação do novo professor concursado como professor REUNI está ocorrendo principalmente nos pólos da UFF. Veja a situação: quando o Decreto de criação do REUNI (6096/07) foi divulgado abriu uma possibilidade de contratação de professores em regime de trabalho de 20 horas que, nos marcos do Banco de Professor Equivalente, poderiam assumir mais disciplinas de graduação do que os professores em regime de 40 horas/DE que devem realizar ensino, pesquisa e/ou extensão. O que estamos analisando é o fato de que os departamentos da UFF solicitaram, em sua maioria, concur-

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sos para professores em regime de trabalho de 40 horas/DE e não 20 horas. Esta demanda dos departamentos poderia significar uma resistência à lógica de intensificação do trabalho docente, mas o que verificamos é que, ao mesmo tempo em que ocorre a demanda por concursos para professores DE, dois processos acontecem: (i) o recém-concursado é identificado como professor REUNI recebendo, na alocação de sua carga horária docente, um conjunto de disciplinas de graduação que inviabiliza ou, pelo menos, dificulta, a realização de projetos de pesquisa e/ou extensão e a produção de conhecimento que resulta destas atividades e (ii) o governo federal elabora uma proposta de flexibilização do regime de DE, de forma a garantir, por um lado, a quebra da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (elemento central da lógica interna do REUNI em sua ação de transformação das universidades federais em instituições de ensino) e, por outro, a ampliação da ação do empreendedorismo acadêmico, da comercialização dos serviços educacionais através das parcerias com empresas e da venda de cursos pagos. Classe – Você e seu grupo de pesquisa fizeram um levantamento sobre os cursos pagos existentes na UFF. O que a pesquisa revelou? Kátia – Uma das linhas de pesquisa do GEPES está direcionada para análise da privatização interna das universidades federais, particularmente as federais situadas no estado do Rio de Janeiro. Nossos estudos iniciais demonstram que a privatização é um processo que está sendo intensificado e que esta intensificação ocorre pelo arcabouço jurídico construído pelo governo federal desde 2003 que cria as bases legais e normativas para que a venda de serviços educacionais seja realizada nas universidades federais. Duas impor-

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tantes referências destas bases legais são a Lei de Inovação Tecnológica (nº 10.973/2004) que trata do estabelecimento de parcerias entre as universidades e as empresas e o Decreto nº 5.205/2004, que regulamenta as ações das fundações de direito privado nas universidades. O segundo elemento que devemos considerar na análise da ampliação desta privatização interna diz respeito a alocação de verba pública para as atividades de ensino, pesquisa e extensão das universidades federais. Se analisarmos o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional para 2010, verificaremos que 30% estão alocados para o pagamento da dívida externa e apenas 2% para a educação. Fica evidente qual tem sido, portanto, a prioridade do governo federal no processo de alocação do fundo público. Estes dois elementos ganham materialidade quando analisamos o aumento do número de cursos pagos na UFF. Existem cursos pagos (lato sensu) cujo valor do investimento, como são denominadas as mensalidades, é de R$700,00 por mês (14 parcelas deste valor) como o MBA – Finanças Corporativas e Mercados de Capitais ou a Especialização em Endodontia que custa R$950,00 mensais. Vale conferir a listagem dos cursos pagos na UFF divulgada em um dos últimos jornais da ADUFF em 2009. Classe – O que se pode esperar da Conferência Nacional de Educação (CONAE) que ocorrerá, em março deste ano, em Brasília? Kátia – Avaliamos que o governo Lula vem realizando, desde 2003, uma importante estratégia de obtenção de consenso em torno de suas políticas: a cooptação de parte significativa do movimento estudantil, do movimento sindical, dos movimentos sociais e de entidades científicas. Trata-se de uma cooptação que busca obter um consenso ativo de setores destes movimentos e entidades com a aparência de que estes importantes sujeitos políticos estão construindo as políticas em parceria com o governo.

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Como referências deste processo, temos a participação de militantes e intelectuais em cargos de vários escalões do governo, a presença do ministro da educação em eventos de entidades científicas e a convocação, pelo governo federal, da CONAE através da divulgação de um documento-referência. Destaco o fato de que o documento-referência da Conferência apresenta bandeiras caras aos movimentos sociais em defesa da educação pública. Entretanto, não apresenta um diagnóstico profundo das reformulações em curso, particularmente na educação superior, que demonstre que o empresariamento da educação, seja pelo aumento do número de cursos privados (presencial e a distância) ou pela privatização interna das universidades públicas, é realizado com base normativa e política no arcabouço jurídico criado pelos governos neoliberais: de Collor a Lula. Classe – O Grupo de Trabalho de Política Educacional (GTPE) da ADUFF produziu material a respeito. Que análises o GT fez? Kátia – Em primeiro lugar é importante registrar que o documento-referência da CONAE deixa evidente que se trata de um evento que tem como objetivo construir o PNE 2010 que dará as diretrizes para a educação nacional pelos próximos anos. Em segundo lugar, faço alguns destaques recuperando as reflexões que construímos coletivamente no GTPE da ADUFF. Ao contrário do PNE da Sociedade Brasileira (1997), que inicia sua análise com um diagnóstico da Política de Educação implementada no governo Cardoso, o documento em análise parte de uma avaliação sobre o reduzido financiamento público da educação, sem conectá-la explicitamente com a manutenção da política do atual governo de contingenciamento de verbas públicas para a educação pública. O Documento não diagnostica e não faz menção, em nenhum momento, à política de

Avaliamos que o governo Lula vem realizando, desde 2003, uma importante estratégia de obtenção de consenso em torno de suas políticas: a cooptação de parte significativa do movimento estudantil, do movimento sindical, dos movimentos sociais e de entidades científicas.

Educação conduzida pelo governo Lula, como se o atual estado da política educacional no Brasil não tivesse qualquer ligação com o governo. Na análise do Documento, portanto, a questão do financiamento e do contingenciamento de verbas para a Educação passa ao largo. Classe - Onde está então o nó da questão para o documento? Kátia - Na organização do Sistema Nacional. Quanto às propostas direcionadas ao ensino superior, cabe destacar aqui as seguintes considerações referentes ao Documento-Referência. No primeiro eixo, o Documento trata da concepção do papel do Estado no financiamento, regulação e execução da política de educação. Parte de uma avaliação sobre o reduzido financiamento público

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da educação, omitindo que o atual governo mantém as mesmas taxas de alocação de verba pública para a educação, especialmente para a educação superior, em relação aos governos neoliberais de Collor e Cardoso. No que diz respeito à educação superior, o Documento destaca que às universidades é garantida autonomia com base no artigo 207 da CF1988, sem considerar as constantes ações de desmonte da autonomia universitária e de sua redução à autonomia financeira (para captação de verbas públicas e privadas), como o REUNI, que condiciona a distribuição de verba pública a um Acordo de Metas celebrado entre cada universidade federal e o MEC. Indicar a importância da gestão democrática da universidade em um contexto em que o presidente da República não revogou a lei que exige o encaminhamento de lista tríplice para escolha dos dirigentes das universidades federais é mais uma expressão da capacidade do documento apresentar um discurso distanciado das ações em processo. Classe – Sem contar a política de premiações e punições... Kátia – O governo operacionaliza uma política de premiações e punições – tendo como referência o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES). Fortalece o ranking dos programas de pós-graduação, das instituições e dos professores e defende, no Documento-Referência, uma política de avaliação na contramão do que ele próprio tem efetivado. Neste eixo, o documento critica o veto do governo Cardoso à meta de expansão da educação superior de, no mínimo, 40% das vagas públicas expressas no PNE aprovado em 2001. Entretanto, o documento não registra que este veto foi mantido pelo governo Lula. Outro aspecto merece destaque: no parágrafo 184, há a afirmação de que se garanta a criação de um “dispositivo legal que garanta a aplicação da dedicação exclusiva dos do-

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centes em uma única instituição de ensino” (MEC/ BRASIL, 2009: 73). Tal proposição não encontra materialidade nas políticas implementadas pelo governo federal: vale lembrar que a Secretaria de Recursos Humanos (SRH) do Ministério do Planejamento apresentou à Diretoria do ANDES-SN uma proposta de reestruturação da carreira dos docentes das universidades federais, indicando a reconfiguração do regime de trabalho de dedicação exclusiva. O quinto eixo apresenta a política de financiamento da educação retomando a vinculação de recursos da educação promovida pela CF1988, considerando o financiamento como o alicerce para a construção do sistema nacional articulado de educação e para a viabilidade das metas do PNE. Para tal, afirma que o financiamento deve tomar como base o mecanismo do custo-aluno, indicando o REUNI como parâmetro da elevação do quantitativo de estudantes matriculados na educação superior pública. Classe - Qual a posição do GTPE/ADUFF a respeito da participação na Conferência?” Kátia - Reafirmamos, portanto, no documento elaborado pelo GTPE da ADUFF a importância de uma leitura atenta do documentoreferência da CONAE e do seu significado no sentido de obtenção de consenso ativo em torno da política que está sendo conduzida pelo governo Lula. Ao ANDES/SN cabe a tarefa de reaglutinação das forças políticas para a defesa da educação pública e gratuita, retomando o PNE da Sociedade Brasileira, com a atualização de um diagnóstico lúcido da política educacional desenvolvida no pós-2003. Nesta direção, denunciar esta estratégia de obtenção do consenso ativo dos diferentes sujeitos políticos em torno do projeto de educação e de universidade do governo federal e reafirmar a defesa do projeto defendido historicamente pelo ANDES/SN é tarefa que está na ordem do dia.

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Produzir conhecimento e formar novos mestrandos e doutorandos não pode ser em série Entrevista: Ângela Siqueira

Classe – No ano passado você escreveu uma carta se desligando da Pós-Graduação na UFF. O que a levou a tomar essa atitude? Ângela – Eu ainda continuo na pós, mas solicitei minha mudança de permanente para colaboradora até que conclua as orientações que assumi de mestrado (3) e doutorado (1). O que me levou a encaminhar a carta foi a insatisfação com os critérios produtivistas, segundo os quais, o trabalho desenvolvido por um docente da pós deve ser mensurado (e não de fato avaliado) especialmente em termos de publicações. Mas não é qualquer publicação. De preferência, em veículos considerados qualis internacional e ainda baseado num indicador mais exógeno que é ISI, de citações internacionais. Enfim, esse reducionismo contábil/produtivista interfere diretamente na vida dos programas, professores e alunos,

que devem estar sempre voltados para trabalhar, isto é, priorizar publicações, dentro desses parâmetros. Classe – Como a lógica produtivista interfere na produção do conhecimento, na função da universidade e nas próprias relações pessoais entre docentes, colegas de universidade? Ângela – Produzir conhecimento e formar novos mestrandos e doutorandos não pode ser em série. Há necessidade de um tempo para amadurecimento/ confronto das pesquisas/análises, de sair do pensamento sincrético para se chegar a uma síntese mais elaborada. No que se refere aos alunos, por um lado, os prazos vêm sendo reduzidos e, por outro, a pressão para que publiquem e apresentem trabalhos é crescente. Como o tempo é mais curto, isso afeta o processo se-

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letivo. Os candidatos já precisam ter um certo embasamento teórico e demonstrar certa autonomia para elaborar um texto monográfico, o que face às pressões para o aligeiramento das graduações pode implicar ou em vagas ociosas, ou na entrada de candidatos que terão muita dificuldade de concluir dentro do prazo e ainda serem “produtivos”. A produção é medida por publicações e apresentação de trabalhos em eventos e, ainda, com pouca possibilidade de financiamento. Ou seja, há uma clara contradição entre as exigências de mensuração dos cursos e as efetivas condições para desenvolvimento do trabalho. Essa perspectiva produtivista fomenta também um espírito de competição e uma postura individualista, e não de colaboração. A consequência é que a produção do conhecimento passa a ser pautada por um ritmo e objetivos externos: aparecer bem na avaliação da CAPES, secundarizando debates, participações colegiadas, atividades administrativas, aulas, orientações, bem como a própria saúde e vida privada, o que tem levado a uma perda do prazer com o trabalho, stress e muitos adoecimentos, como algumas pesquisas vem demonstrando. Classe – Como vem sendo a repercussão da carta e o que você espera daqui para frente na sua própria vida na universidade? Ângela – Já recebi inúmeras cartas de professores de universidades de diferentes estados do país, e todas elas concordando com o que escrevi. Muitas lamentando que não tiveram coragem de se posicionar da mesma forma e destacando que mais pessoas deveriam tomar a mesma atitude. Como mencionei antes, se nada mudar, continuo na pós até concluir as orientações que assumi, o que deve ser em 2011. Como nunca deixei de lecionar na graduação, continuarei atuando neste nível, dando aulas e orientando alunos, participando de bancas e palestras que

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me convidem, na UFF ou fora da UFF, aqui ou no exterior, bem como de órgãos colegiados, dando pareceres para revistas nacionais e estrangeiras, etc. Classe - Em junho do ano passado, o presidente da Capes, Jorge Almeida Guimarães, disse que dali para frente a expansão dos chamados mestrados profissionais seria uma política de Estado e que “se ganharia dinheiro à beça”. O que são esses mestrados? por que o governo os elege à política de Estado e quem ganha dinheiro à beça com isso? Ângela – A lógica do governo é de acabar com as pós lato sensu e transformá-las em mestrados profissionais, que são cursos que tem um caráter mais prático/imediato/utilitário, em que a exigência de trabalho final é um projeto de intervenção em alguma empresa, escola ou algum novo produto para o mercado. O governo elege como política de estado porque quer reduzir custos de manutenção das universidades e, mais do que isso, deseja que as mesmas vendam mais serviços, sejam esses cursos, pesquisas, etc. Não será a lógica acadêmica que vai determinar os cursos, mas voltamos à Adam Smith, para ser algo “da moda” ou segundo os interesses (tempos, prazos, perspectivas) do mercado. Até que se mude o artigo constitucional, que determina que o ensino é gratuito nos estabelecimentos oficiais, qualquer cobrança será inconstitucional. Contudo, desde o processo constituinte, foi uma disputa manter a gratuidade do ensino e, desde sempre, há propostas para derrubá-l. Um dos itens do PL da reforma da educação superior, que está dormindo no Congresso, mas que pode virar uma MP (como foi por exemplo a instituição do Provão) ou um decreto (como foi o REUNI) pretende limitar a gratuidade redefinindo como ensino apenas a graduação

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e os mestrados e doutorados acadêmicos, excluindo os profissionais, extensões, etc. Classe – O primeiro Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) foi elaborado no regime militar. Hoje, a Pós-Graduação vive seu quinto Plano. Você poderia fazer uma breve avaliação das principais diferenças entre as propostas?

Ângela – Na verdade, estamos no último ano do quarto Plano, o de 2005-2010. Faço uma brevíssima visão dos PNPGs. O I PNPG (1975-1979), nos marcos da retórica desenvolvimentista-militar empresarial do “ Brasil grande potência”, preocupou-se em institucionalizar e fortalecer a pesquisa e pós-graduação no país, tendo o Estado assegurado o financiamento, incentivado programas institu-

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cionais de capacitação docente, triplicando ainda o número de bolsas para mestrandos e doutorandos. Já o foco do II PNPG (1982-1985) foi o de instituir mecanismos de avaliação, ante a preocupação com a massificação, que segundo análises da época, estaria gerando teses sem qualidade, com especialização precoce (isto é, passagem direta da graduação para o mestrado e deste para o doutorado, sem experiência do mundo do trabalho; da vida cotidiana), dentre outros. O III PNPG (1986-1989), dentro do espírito da redemocratização, do processo da Constituinte, enfatizou a pós-graduação como fundamental para a produção do conhecimento, isto é desenvolvimento de pesquisa básica e para o ensino; formação de profissionais-cidadãos e não apenas técnicos. Nesse sentido, destacou a necessidade de apoio do Estado à pós-graduação, com institucionalização da pesquisa, mais verbas e bolsas. O que deveria ser o quarto PNPG não saiu do papel. Assim, por 19 anos de 1989 até 2005, a pós-graduação andou por conta dos embates e disputas, mas sem ter um plano. Classe – Qual o papel dado à pesquisa nesse atual Plano 2005-2010? Ângela - Bastante reduzida, e quando existente, deve ser articulada aos interesses pragmáticos empresariais, pois a ênfase é na dimensão ensino e de forma mais aligeirada. Tal perspectiva se articula com a reforma do Estado, com a redução de recursos para as IFES e seu atrelamento a “projeto de desenvolvimento” de empresas públicas ou privadas, que tendem a reduzir o desenvolvimento da pesquisa à inovação; isto é, um produto com alguma aplicação imediata, de preferência que seja lucrativa, assegurando royalties/patentes. Isso implica também que o conhecimento produzido de forma coletiva, por alunos e professores, tenha

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sua circulação restrita aos seus financiadores e/ou aqueles que possam pagar. Outra característica é o acirramento do clima de competição por recursos, via editais específicos, fomentando grande disparidade entre áreas, regiões e universidades. Classe – O Plano avalia o ensino fundamental no Brasil e informa que apenas 56% dos professores possuem título universitário atentando para a necessidade de qualificar os docentes da educação básica. Mas como o plano pensou essa formação? Ângela – Infelizmente usando educação a distância, cursos mais rápidos, e de formação em serviço, que se restrinjam a prática de aula, sem muita formação política, econômica, filosófica etc. Aí sim seria formado o “professor eficaz”, aquele que vai preparar/treinar alunos para passar na provinha Brasil e outros testes padronizados, melhorando o ranqueamento da escola/cidades/ estado/ país. Há, de fato, uma crítica crescente à formação de professores na mídia e, em especial, de economistas e neo-especialistas educacionais, com boa base em relatórios do Banco Mundial, da UNESCO, da OCDE, onde todos vão endeusar as novas tecnologias ou os pacotes de formação, muitos deles oferecidos por empresas privadas que se propõe a desenhar currículos, administrar escolas, cuidar da merenda, do transporte, com a lógica e “eficiência” empresarial. Não se pensa que o professor que precisa se qualificar deveria ter tempo para que possa, de fato, se dedicar a estudar; que precisa de um salário condizente, para que possa se formar continuamente tendo acesso, tempo e condições para ter assinatura de jornais e revistas, comprar livros, ir a cinemas, teatros, bibliotecas, fazer viagens, etc. Mas, o “professor eficaz” desejado para o ensino fundamental, é outro. Ele deve saber lidar

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Você se consultaria com um médico formado a distância? Confiaria obras a um engenheiro formado nessa modalidade? Por que então incentivar a formação de professores a distância?

com as novas tecnologias e desenvolver “competências e habilidades”. Por isso poderá ser formado a distância, em serviço e em cursos mais aligeirados. Classe – Como ficaram as universidades privadas nessa perspectiva de formação do plano? Ângela – Para elas está muito bom, pois o filão dos cursos profissionais continuará sendo bem explorado, deixarão de ser lato senso, e serão mestrados. A queda da qualidade das públicas, face a “flexibilização” do REUNI, com mais alunos e mais horas de trabalho para os professores (tanto na graduação e na pós) e com menos tempo para pesquisa, orientações, leituras, etc. Também será bom no que se refere ao reiterado pleito por verbas públicas, que, cada vez mais, estão atreladas a indicadores de

produtividade/desempenho/eficiência, que podem ir sendo forjados, por pressões e interesses no Congresso, no MEC, na SESu, na mídia, etc, como fez o REUNI ou o PROUNI. Classe – E o ensino à distância? Agora tem Pós-Graduação até pela televisão fechada... Ângela – Você se consultaria com um médico formado a distância? Confiaria obras a um engenheiro formado nessa modalidade? Por que então incentivar a formação de professores a distância? Que tipo de educação poderá ter este formando e posteriormente seus alunos? Penso que o ensino a distância possa servir para algum tipo de atualização, mas não para a formação básica, seja na graduação ou na pós-graduação. Além disso, há no país severos problemas com a substituição de professores por tutores, visto que a maior parte do desenvolvimento desses cursos fica a cargo de tutores, que em sua quase totalidade são alunos em formação, muitos sem experiência acadêmica ou profissional, que vão atuar por conta da necessidade de uma bolsa (bolsa REUNI ou outra). Num curso presencial, mesmo com planejamento de aula e leituras marcadas, as aulas mudam de curso e são extremamente enriquecidas em função da interação dos alunos e do(a) professor(a). Tal riqueza se perde, pois o contato é eventual e na maioria das vezes com os tutore-alunos em formação. Há que destacar problemas de acesso à internet, seja de falta de sinal ou equipamentos, bem como a enorme evasão existente. Classe - Como se organizam os grandes grupos econômicos diante das regulamen-

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tações em vários países sobre a duração de cursos e o regime dos trabalhos docentes, por exemplo? Ângela – Eles pressionam por uma duração menor dos cursos. Aliás, está havendo uma ampliação do modelo de Bolonha, que na, verdade, foi a reestruturação dos sistemas universitários dos vários países da Europa, para formar um sistema comum europeu de educação superior. A intenção foi competir por alunos (e dinheiro de mensalidades, gastos com moradia, etc) com o sistema estadunidense dos community colleges, adotado também na Austrália, Nova Zelândia, etc, países que passaram a atrair maior número de alunos do que a Europa. Apesar das críticas de pesquisadores europeus ao caráter homogeinizador do processo de Bolonha que, dentre outras coisas, reduziu a duração dos cursos, vem pressionando para transformar conteúdos em competências e habilidades mensuráveis (computadas em unidades de créditos comuns europeus), transformou a avaliação em um sistema de certificação de competências e que também pressiona para a oferta de cursos em língua inglesa (em detrimento das línguas dos distintos países), as universidades européias querem conquistar novos mercados e, para isso, seu modelo precisa ser aceito e adotado em outros países. Tal adequação vem sendo promovido através do projeto Tuning-América Latina, que define competências básicas para todas as graduações no país, do projeto Alfa, dos esforços do Grupo de Coimbra (presidido pelo reitor da UFBa, Naomar de Almeida Filho, tudo visando criar a ALCUE (Área de educação da América Latina, Caribe e União Européia). Vale destacar que a primeira denominação era EULAC (Europa, America Latina e Caribe).

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Nesses projetos, os professores devem ser remunerados pela sua produtividade, seu vínculo de trabalho se dá por contratos renováveis ou não, segundo seu desempenho, número de alunos inscritos, etc. Enfim, eles devem trabalhar mais intensamente, atendendo mais alunos, orientar turmas inteiras e se subordinando as medições das agências de certificação de qualidade. Classe – Para a graduação o governo Lula criou o ProUni. Pode falar um pouco mais de como este programa se insere na lógica da qual estamos tratando? Ângela – Ele se encaixa na lógica de parcerias público-privada; de transferir recursos públicos ao setor privado, mesmo que seja via renúncia fiscal. Além disso, o PROUNI foi associado ao FIES e ao ENEM. A seleção e o financiamento são públicos, mas a instituição é privada e boa parte dela não é universitária, contradizendo o nome do programa de universidade para todos. Enfim, esse conjunto de medidas vem salvando e financiando o setor empresarial educacional, com a oferta de vagas em cursos a distância.

Classe – Qual a sua avaliação sobre a proposta do governo sobre o novo vestibular? Ângela – Foi uma proposta arbitrária de retirada do processo seletivo do âmbito das IFES e sua transferência para uma instância central, no momento o INEP/MEC. O governo propagandeou esse processo heterônomo como a mágica que tornaria o acesso às universidades um processo mais democrático, permitindo maior inclusão social e mobilidade estudantil,

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pois os alunos poderiam se candidatar para universidades (públicas e privadas) de todo o país. Na verdade, os maiores beneficiados, se o processo desse certo, seriam as IES privadas, que receberiam os alunos aprovados, mas sem nota suficiente para ingressar numa pública e que, se o exame de ingresso continuasse isolado, provavelmente não se inscreveriam nas mesmas. Tal processo já aconteceu no Estado do Rio, na época do unificado do Cesgranrio. Agora pretende-se que volte em escala nacional. No que se refere à maior inclusão social, o novo ENEM supostamente teria um grau de dificuldade menor, pois não deveria avaliar conteúdos, mas competências e habilidades (um outro passo para a adaptação à Bolonha?) e, por isso, favoreceria o aluno da escola pública, que tem habilidades e competências, mas que, carecendo de professores, boas escolas (adequamente equipadas com livros, espaço físico, merenda, etc) e aulas regulares de todas as disciplinas não vêm conseguindo entrar nas públicas. Na verdade, a proposta do ministro não resolve a falta de vagas e a “mobilidade” acabará por limitar ainda mais a possibilidade de acesso dos alunos de escolas públicas mais precárias. Aqueles que ainda conseguem entrar na universidade pública de seus estados poderão perder as vagas para alunos advindos de outros estados, em especial do sudeste, que vem obtendo as melhores notas no ENEM, mas que, se não forem suficientes para entrar nessa região (onde a disputa pela vaga é mais acirrada e a nota para aprovação maior), poderão ocupar as vagas em outros estados. Classe – Depois do roubo das provas

do ENEM, no ano passado, algumas universidades como a UFSCar, Unifesp e FURG bateram recordes de abstenção em seus vestibulares. Como você avalia o ENEM para além desse episódio? Ângela – O açodamento para a imposição do processo às IFES evidenciou mais uma cisão entre administração e boa parte da comunidade acadêmica. A adesão dos administradores das IFES ocorreu via promessa do ministro Fernando Haddad de repasse de recursos para as universidades, a fim de ressarci-las da perda de recursos que arrecadam com a realização desses concursos, o que, por conta da falta de verbas, acabou virando uma fonte de renda (não carimbada) das referidas instituições. As falhas levaram a que algumas universidades abandonassem totalmente o exame este ano e devem ser considerados pelo governo, pelas IFEs e pelos candidatos. A confusão foi de tal monta, que além de forçar mudança de datas, houve uma clara diferença no teor e direcionamento do exame. As provas que vazaram, seguindo a lógica de mensurar competências e habilidades, foi considerada bem fácil por candidatos, cursinhos e professores universitários. Com a substituição da empresa contratada pela Cesgranrio e UnB, o exame foi considerado muito mais difícil e cansativo do que os isolados das IES privadas. Além disso, no caso da direção central da UFRJ, que, desde o início, apoiou a proposta do novo ENEM, bem como o REUNI e manteve o uso do mesmo, todos os candidatos tiveram que fazer a segunda etapa da prova, em dois dias de sol quentíssimo, sem saber se teriam suas provas corrigidas. Isso, no mínimo, é desrespeito aos candidatos. Com tanta insegurança, os maiores prejudicados foram os alunos.

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De Capa

“Nem guerra entre as “Muito mais do que artista, militante é que sou, muito mais do que artista, ativista é que sou. Pelo Quilombo eu sou. Quilombo Urbano eu sou”

(Música “Mil amores” – Gíria Vermelha)

Stela Guedes Caputo, texto e fotos

Hertz da Conceição Dias tem 39 anos e Rosenverck Estrela Santos, 33. Ambos nasceram nas periferias de São Luís do Maranhão. Hertz foi pedreiro e também trabalhou em uma lanchonete. Verck, desde os 7 anos, vendia sucos pelas ruas e, mais velho, lixava tamancos em uma pequena fábrica. Cada um, por seu lado, enfrentou as absurdas condições de existência da juventude pobre e negra das comunidades periféricas do Maranhão. Infelizmente, realidade não muito diferente das periferias de todo país. Os dois são graduados em história e mestres em Educação pela Universidade Federal do Maranhão. Contudo, não se conheceram na universidade e sim, no Movimento Hip Hop Organizado do Maranhão Quilombo Urbano, o maior e mais antigo movimento de hip hop de São Luís. Aliás, justamente por causa do Quilom-

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gangues, nem paz entre as classes” bo Urbano, os dois voltaram a estudar. Juntos, decidiram continuar a linha do hip hop militante e, em 2002, formaram o grupo de rap Gíria Vermelha cuja proposta é aliar a fala e a vida da juventude negra de periferia às lutas socialistas pela transformação da realidade. Luciana Pinheiro tem participação especial no grupo e também no CD “A Hora do Revide”, lançado em 2008, cuja renda, fica sob responsabilidade do Quilombo Urbano para a utilização político-cultural de suas atividades. O Quilombo Urbano, que completou “20 anos de correria, 20 anos de periferia”, como seus integrantes costumam dizer, é definido como uma organização negra, socialista e revolucionária. Além do Gíria Vermelha, fazem parte do Q.U, os grupos: Raio X do Nordeste, Q.I engatilhado, Milícia da Favela, Dialeto Preto, o rapper PRC + um comuna, Consciência Negra, Motim, Contravenção Penal, Renegados do Sistema, Ameaça e o Núcleo Preta Anastácia (esses dois últimos, de mulheres). Em 2008, o movimento fundou o Quilombo Brasil com a proposta de reunir grupos de hip-hop de todo Brasil. Já são do novo coletivo os grupos Cangaço Urbano, do Ceará; Atividade Interna, do Piauí; Movimento hip hop de Caxias (do Maranhão) e o Lutarmada, do Rio. Nos dias 19, 20 e 21/11 de 2009, muitos desses grupos se reuniram na capital maranhense para realizarem diversas discussões, a IV Marcha da Periferia e o 20º Festival de Hip Hop-Zumbi. Enquanto a correria acontecia, Hertz e Verck concederam a entrevista que segue à revista Classe.

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Classe – Você poderia falar um pouco de como começa a cultura do hip hop? Verck – Ele começa no início dos anos 70, justamente quando o capitalismo mundial enfrentava uma grave crise econômica. Nos EUA, um dos grandes atingidos pela crise, também era um período de intenso reordenamento urbano, em que vários bairros pobres americanos foram postos abaixo para serem substituídos por avenidas, condomínios fechados, shopping centers, etc. Claro que os maiores atingidos foram negros e hispânicos, que moravam nos subúrbios americanos. No campo social, o resultado disso foi o aumento do desemprego, a precarização do trabalho, o aprofundamento da miséria, da violência. Classe – Foi o contexto político e social que gerou o hip hop ... Verck - Justamente criado pelos jovens negros e pobres dos EUA, inicialmente na cidade de Nova Iorque. Ele junta o rap, que é sua música, o break, a dança e o grafite. Em sentido literal significa movimentar os quadris (to hip) e saltar (to hop). Para além da literalidade do conceito, esta manifestação foi usada como instrumento de resistência, alternativa de lazer e se transformou num movimento político-cultural de parte considerável da juventude negra e pobre americana e, a partir dos anos 80, em muitos outros países, ampliado pelo advento da reestruturação produtiva urbana vivida pelas grandes cidades. Também é herança de lutas e reivindicações de movimentos pelos direitos civis, liderados por Marthin Luther King, da retórica mais agressiva do líder negro Malcom X e de ações mais ousadas do Partido dos Panteras Negras, além da influência de ritmos musicais negros como o Blues, jazz e funk, durante a década de 60.

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Hertz

Classe – E no Brasil? Verck – No país, incluindo o Maranhão, o hip hop apareceu da década de 80, via indústria cultural, com seus videoclipes e CD´s, mas também veio como herança política através de exposições sobre a vida de líderes negros e imagens das passeatas pelos direitos civis. Nessa época, São Paulo se torna o maior centro do movimento. Classe – Como o hip hop contribui no processo de educação das classes populares? Verck – Uma de suas características principais é a crítica e a desconstrução dos padrões e valores hegemônicos que estigmatizam as classes

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Rebeldes”. Eu gostava muito de brigar e queria me auto-afirmar, meu pai me levou até para freiras para ver se elas davam jeito em mim. A GR foi crescendo e se tornou a maior gangue de SL, no início década de 90, e eu era um de seus líderes. A gente se encontrava no Centro da cidade, na Praça Deodoro, coincidentemente, no mesmo lugar onde o hip hop se encontrava, toda sexta feira. Classe – Trocou logo a gangue pelo hip hop?

Verck

subalternas. Constrói também um outro referencial étnico-racial e social para os envolvidos possibilitando uma identidade social coletiva e consciência crítica para refletir e intervir na realidade. Mesmo nos grupos de rap mais comerciais, as letras possuem um conteúdo crítico-social predominante sobre temas como amor, paixão, lazer e festas encaradas sob o ponto de vista individual. Classe – E como você se encontrou com o hip hop? Verck – Quando tinha 15 anos fundei com outros molecotes do ensino médio, a primeira gangue de pichação de São Luiz chamada “Garotos

Verck – Não, eu dei muito trabalho. Eu passava, achava legal, tinha break, mas a gente achava um estilo estranho eles com bonés, de preto, com correntes grossas. A gente respeitava, mas só passava ali porque ia pichar ou brigar com outra gangue (mostra as várias marcas de pauladas, pedradas, pregos no corpo, na testa). A gente brigava muito. Ia aos bailes e encontrava outro grupo, queria dominar o espaço e brigava. Quem vencesse ficava e o objetivo era botar a outra gangue para correr. Classe – E você Hertz, também era de gangue? Hertz – Não, meu caminho foi diferente. Eu abandonei a escola com 14 anos. Classe – Por que? Hertz – Então, por causa do racismo. Eu me sentia muito oprimido em sala de aula. Um professor de literatura, por exemplo, disse, certa vez, que, para conseguir ficar em clubes de reggae só muito drogado porque os negros fediam demais. Eu nem gostava de reggae, mas aquilo me chocou muito. Monteiro Lobato também ajudou. Por causa do Saci, eu e meus irmãos éramos chamados o tempo inteiro de Saci trink, Saci lambão. Os brancos viviam as aventuras e os ne-

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gros eram tia Anastácia, a empregada, tio Barnabé, o caseiro, o Saci era ladrão, aprontava. Isso contribui muito para eu me afastar da escola.

nome de 92, quando ganha contornos mais raciais. Classe – Voltando aos Garotos Rebeldes...

Classe – Mas você voltou. O que te fez voltar? Hertz - Escutando uma música dos Racionais, “Voz Ativa”, em 1992, decidi voltar a estudar. Passei a ler e o primeiro livro que li, estimulado também pela música dos Racionais, foi Malcom X. Não parei mais de ler. Eu já escrevia desde 1988, mas era um rap muito espontâneo, sem conteúdo racial. Decidi fazer faculdade de História e, claro, tinha de terminar o ensino médio, o que consegui fazer com 25 anos. Em 1989 eu já era do Movimento hip hop Organizado do Maranhão que vai passar a chamar Quilombo Urbano em 92, logo depois da gente ouvir a música dos Racionais. A organização é de 89 e o

A abertura das atividades da semana da consciência negra aconteceu na Lagoa Amarela, na noite de 19/11/2009. O lugar, hoje ocupado pelo Quilombo Urbano, era justamente onde ficava o Quilombo da Lagoa Amarela ou do Preto Cosme.

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Verck - A GR cresceu e se dividiu e, com as divisões, começaram a surgir gangues dos bairros. Aí começou a rivalidade, mortes, assassinatos...isso incentivado e patrocinado por radialistas de São Luiz, que faziam concursos nas danceterias para as galeras que gritassem mais. Eles davam troféus para a vencedora, imagina... os grupos se organizavam nos bairros, iam e brigavam. Uma vez, o movimento hip hop chamou a gente para uma conversa. Marcaram um encontro. Eu estava no 1º ano do ensino médio e eles disseram que nosso estilo de vida nos levaria ou para morte ou para a cadeia. Na verdade, era o que já vinha acontecendo com muitos amigos meus. O Hertz estava nessa reunião. Achamos tudo muito legal, mas assim que acabaram de falar, fomos pichar. Hertz – Até que foi detido... Verck - Fui detido pela polícia. Me levaram para uma FEBEM, saí e fui detido de novo quando pichava o muro da Coca-cola. Eu, bem no alto, e o segurança gritando para eu não me mexer. No que eu pulei, ele atirou. Eu caí e fugi, mas despenquei em um declive e me quebrei todo. Eu era menor de idade ainda e me levaram para a delegacia. O policial com a arma na minha cabeça e mandando eu dizer quem estava comigo tentando roubar a Coca cola. Para meu azar, a parede onde eu estava pichando era a da sala do cofre e eles acharam que eu queria roubar e eu nada, só tava pichando mesmo. Era eu e o Caveira que virou traficante e que depois foi morto com 5 tiros de escopeta na Cidade Operária. Classe – Aí bateu o medo? Verck – É, comecei a ficar receoso. A nossa

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... quem nunca teve nada, nada teme a perder / Hey! Boy cheio de frescura, cabelo degradê./ É fácil transformar um anjo em águia mortalha, / Me jogue na miséria, dê acesso às armas, / Que eu vou sobrevoar teu feudo eletrocutado, / Sabotar o teu castelo, legal tudo filmado. / Ninguém nasce bandido eu sou filho do sistema. (Ninguém nasce bandido – Gíria Vermelha)

gangue brigava, mas o objetivo principal era pichar. Acontece que surgiram outras como a “Bota Preta”, por exemplo, para quem pouco interessava pichar, o objetivo mesmo era bater e até matar, a violência aumentou assustadoramente. Na reunião com o hip hop, eu estava com um amigo, o Costelo que começou logo a participar do movimento. Esse cara ia todo dia na minha casa levar uma fita de rap, com músicas do Hertz e outras. Eu ouvia mais por respeito, mas não ligava. Até que o Hertz foi lá em casa e me chamou também para as atividades e fui para as reuniões de organização do 3º festival de hip hop. Comecei a ouvir o que o Hertz dizia e prestar atenção nas músicas. Um outro amigo chamado Segundo, me chamou para entrar numa banda de nome Esquina e comecei a pensar em escrever, só que não foi muito para frente. O melhor e mais

respeitado grupo era o Navalhas Negras que eram Hertz e Lamartine, os fundadores do movimento aqui, os dois melhores letristas. Sai do Esquina, mas continuei indo para as reuniões do Quilombo Urbano e cada uma tinha um tema. Eu ficava calado, não sabia falar, não sabia analisar as coisas, só escutava, mas não saber me incomodava muito. Uma noite, no ônibus, voltando para a Cidade Operária com um amigo, eu resmungava: “Pô Fábio não dá pra ficar nessas reuniões e não falar nadinha”. Decidi ler para poder falar nas reuniões e não parei mais, nem de ler, nem de falar. Um dia Hertz chegou lá casa e me chamou para fazer parte do Navalhas Negras. Eu nem entendi porque o cara do grupo que todo mundo queria fazer parte chamou um molecote para entrar. Classe – Por que Hertz? Hertz – Acho que era porque ele já fazia discurso! Classe – Você já estava na coisa com o rap há mais tempo.. Hertz - Em 89 eu já cantava rap solo, era MC Hertz. Depois organizei o Ilegal Beat (batida ilegal), mas nada disso tinha também conteúdo racial. Só quando organizei o “Navalhas negras” a intenção racial veio. Gravamos até um clip que passou na MTV, com o nome “Face Oculta Racista” que concorreu ao melhor demo da MTV. Por volta de 97 fizemos o “Clã Nordestino”, que ficou muito conhecido nacionalmente e que já era a fusão de dois grupos, o Zeca Baleiro até participou da gravação do CD de uma música minha.Quando foi para a prensagem, articulação com os selos, essas coisas, o grupo rachou. O Clã Nordestino ganhou o prêmio Grupo revelação MTV. Eu e o Verk saímos do Clã e o Clã saiu do Quilombo.

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Classe - Qual foi o motivo do rompimento e já na beira de gravar um CD? Hertz – Eles achavam que o grupo tinha de ir para SP e sobreviver de rap, já que o sucesso era uma possibilidade certa. Nós achamos que não. Achamos que a arte é um instrumento político e que não podemos abandonar nossos trabalhos. Outro pano de fundo foi que, todo ano, o QU se reúne e decide se vai apoiar algum candidato e eles, por fora do QU, que nem tinha discutido ainda, decidiram apoiar o Lula. Inclusive gravaram uma música no CD em apoio ao governo, aí rachou em 2002 e criamos o Gíria Vermelha, em 2003. Somos eu e o Verck. Fazem participações, a Luciana e os DJs do Quilombo Urbano. Classe – Por que é tão firme essa negativa de sobreviver com o rap? Hertz - Todo jovem pode fazer rap, mas existe uma grande ilusão criada nesse sistema e com a qual MTV joga, de que é possível enriquecer com o rap. Conhecíamos vários grupos de rap militante em que os caras largaram seus trabalhos porque queriam “ganhar um milhão” como a MTV divulga, principalmente depois dos Racionais. Muitos estão desempregados, viciados. Mas no capitalismo só tem espaço para o destaque de um ou outro grupo, para, inclusive, ele continuar acenando com essa possibilidade, iludindo e se alimentando das “saídas” individuais. Classe - E a ideia do CD? Hertz – Decidimos gravar o CD em 2007 para fortalecer o Quilombo Urbano que é uma entidade muito respeitada, mas que não tinha nenhum grupo com CD gravado. A decisão foi gravar primeiro o Gíria. Eu e o Verck somos professores do estado

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Quem conhece a peça, sabe muito bem quem eu sou, / Só não fui um bom pretinho, pros boyzinho de Bourdeaux. / Francês filho da puta invadiu Upaon-Açu, / Jogou índio contra índio, diz que nos colonizou, / Sangue azul, que és tu? Quem nós é? Vou dizer:/ Meu quilombo é comunista, não é ONG. (Música “Som de Rua” – Gíria Vermelha)

e do município e, com tanta aula, manhã, tarde e noite, não demos conta de cumprir a deliberação do coletivo, por isso, o PRC gravou o CD primeiro que a gente, em 2007. Nosso CD só saiu novembro de 2008. A gente queria fazer um CD que tivesse repercussão por aqui, mas ela é muito maior. Classe – Quem vive de rap no Brasil? Hertz – Os Racionais, o Facção Central... Classe - MV Bill? Hertz – Ele não vive do rap, vive da Central Única das Favelas, a CUFA. Classe – Vocês têm relação com o Bill? Uma vez eu o entrevistei, mas isso foi na épo-

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ca em que ele dizia que não dava entrevista para a Globo, que só falava dentro da Cidade de Deus e foi lá que conversamos... Hertz – Essa era a época boa dele. Por isso trouxemos ele aqui, em 2002, assim que surgiu a CUFA. Pessoalmente ele e o Celso Athaíde são gente boa. Não tínhamos condições de pagar cachê, nem de pagar avião. O Bill veio de avião por conta própria, o pessoal da banda veio de ônibus. Eles não cobraram cachê e fizeram shows através dos movimentos, no Piauí, em Fortaleza. Aqui deu pouco mais de 200 pessoas, passamos o que recolhemos para eles que foram extremamente humildes, não exigiram hotel nem nada. O problema é que depois propuseram que entrássemos na CUFA, deixaram até o estatuto. Na época, desde 2000, já existia aqui a Rima de Cima, uma organização chamada assim porque o Nordeste está na parte superior do mapa. A gente já discutia os males do mercado fonográfico para o hip-hop para não acontecer aqui o que aconteceu em São Paulo. Nós decidimos que não entraríamos na CUFA e que criaríamos selos independentes no Nordeste. Nenhum dos nossos grupos topou entrar. Classe - O que vocês pensam da CUFA hoje? Hertz – Um braço da Globo, do Estado, do Capital dentro das periferias. Onde a CUFA chegou o hip-hop militante foi destruído e é para isso que ela existe também, com sua estrutura de ONG. O rap não só do Maranhão, mas de todo o Brasil normalmente não deixa de falar de 3 coisas: negro, polícia e da Globo. A CUFA não deixa isso. Tem um grupo nosso que foi cantar no torneio de basquete organizado pela CUFA e ele tem uma música chamada “TV vendida”, que

fala da Mirante, filial da Globo aqui no Maranhão que apóia a CUFA. O Sarney Filho estava no evento e a CUFA não deixou o grupo cantar essa música. Classe - Por que essa cooptação acontece?

Hertz - Primeiro porque o hip-hop é um movimento de pobres e de miseráveis. Segundo, porque cresceu muito e o Estado tentar segurar. Terceiro, não tinha tradição de organização política e muita gente não tem a consciência necessária para se posicionar diante das armadilhas dessas ONGs e do capitalismo. Outros caem na ilusão de que é possível utilizar o dinheiro do governo para organizar a periferia e travar a luta contra o próprio governo e isso não é possível. A inexperiência e a pobreza ajudam nessa ilusão. E tem gente que é desonesta mesmo. De todo modo é um estrago feito no hip-hop do Brasil e do Nordeste, que tem uma tradição de hip-hop militante e que agora a gente está tentando reverter com a organização do Quilombo Brasil. Classe - Como a eleição do Lula contribuiu para isso? Hertz – Foi fundamental. Antes do Lula, o hip-hop se organizava em movimentos, depois do Lula, muitos se transformaram em ONGs que defendem o governo para terem financiamento. O governo Lula foi uma tragédia para os movimentos sociais e com o hip-hop não podia ser diferente. Classe – Por que vocês querem distância da grande mídia e do Estado? Hertz – Hoje temos mais claro isso e antes não tínhamos. Bastaram duas experiências. Em 92 tínhamos um programa numa rádio do Edison Lobão

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Pretas raízes, irmãos, felicidade/ hoje eu sei quem sou, me encontrei nessa cidade./ Meu mundo preto, a minha identidade (...) a história do meu povo/ (...) saber como eles viviam, as línguas, etnias, de onde eles provinham, como se organizavam, a forma que a nossa arte se expressava/ tecida ou esculpida, a arte africana é a coisa mais linda, mas aqui não tem valor / só no museu da Europa que da África roubou (...)/ foi no Quilombo Urbano que eu achei a minha história/ a África que existe em nós...ouça a batida, ouça a minha voz/ eu continuo resistindo como fez nosso avós/ arte preta produzindo, eu não preciso me esconder pra cantar o nosso hino.

Durante o festival, Higor canta trecho da música “Pretas Raízes”, do grupo Dialeto Preto formado por: Reginaldo (Sonianke), Higor Leon (preto Higor), Claudionice (preta Nicinha e mãe de Higor) e Afonso (preto Moura).

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(ministro das Minas e Energia) e, em 94, um outro, na Mirante, do Sarney. O texto era muito radicalizado e as músicas da mesma forma. Teve um momento em que nos mandaram continuar apresentando o programa, mas parar com os discursos e com as músicas mais radicalizadas. Não obedecemos e tiraram os programas do ar. Na época dos programas de rádio fazíamos festivais com mais de 5 mil pessoas nas ruas. Depois disso, continuamos fazendo atividades, mas as pessoas perguntavam se o movimento tinha acabado porque não escutavam mais o programa. Concluímos que nós mesmos acostumamos o público a ver o hip-hop a partir da grande mídia. É como se para existir, qualquer arte ou movimento precisasse da mídia e fora dela tudo estivesse morto. Decidimos buscar alternativas. Fizemos projeto, o “Ruas alternativas” o “Periferia urgente” e nosso caminho passou a ser dentro das comunidades e com as rádios comunitárias. Essa foi nossa experiência com a grande mídia e para nunca mais. Classe - E a outra experiência? Hertz – Foi o projeto “Ruas Alternativas”, que fizemos em 1995, em parceria com a prefeitura, através da Fundação da Criança Cidadã. A ideia era, através de shows, discussão, atividades culturais, percorrer os bairros das periferias difundindo o hip hop e ampliar seus militantes. Acabávamos mediando muitos conflitos entre as gangues e mesmo desarticulando-as. A DR (Detonadores de Rua), aqui na Liberdade, por exemplo, foi uma delas. Hoje, muitos de seus ex-membros são do Q.U. Porém, a fundação começou a dizer que nosso trabalho era muito interessante, mas nosso discurso, de novo, muito radicalizado, violento. As avaliações eram muito estressantes, já que criticávamos mesmo tanto o governo, como a administração municipal. Vimos que não era

espaço para nós e rompemos, mas tudo foi muito espontâneo. A experiência nos levou a compreender que qualquer vínculo com a grande mídia ou com o Estado não permite a autonomia política e financeira aos movimentos. Sem entender e assumir as conseqüências dessa compreensão, trabalhamos para quem nos oprime sempre. Não há modo de fazer concessão. Classe – Mas foi por causa do sucesso do “Ruas Alternativas” que o Q.U foi para a França... Verck – Foi. Fomos convidados por duas ONGs francesas, a “Les Gamins de L’art-rue” e “Music de nuit” e, em 2000, fizemos muitas atividades, principalmente em bairros de imigrantes. Mas, quando percebemos que essas viagens eram patrocinadas pelo Ministério da Cultura da França e as ONGs lucravam com esse intercâmbio, rompemos, fizemos até uma música denunciando. Os franceses mantém contato com o movimento hip hop “Favelafro” e outras viagens continuam acontecendo, inclusive para outros países da Europa. Classe – Então foi também com essa experiência que vocês passaram a ter uma visão crítica sobre as ONGs? Verck – Percebendo como elas atuam e estudando. O James Petras diz, por exemplo, que elas dão ênfase a projetos e não aos movimentos e mobilizam as pessoas para produzirem à margem e não para que lutem pelo controle dos meios de produção de riquezas. Não fazemos nenhum tipo de negócio e isso é motivo de crise dentro do próprio hip hop nacional. As ONGs ou entidades, sejam novas ou velhas, disputam espaço com a gente. Divulgam saídas individuais, chance de ganhar dinheiro com projetos. Isso na periferia é muito

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forte e perdemos pessoas para esse empreendedorismo. Essas entidades ou intelectuais que se aliam ao Estado podem até achar que não, mas somam para o projeto neoliberal e atrapalham o caminho para uma sociedade diferente dessa.

mento sindical e está nas periferias, de certa forma, empurramos a Conlutas para dentro das periferias.

Classe – E a relação de vocês com a Conlutas? Hertz - Antes de sermos professores, quando nenhum de nós estava em sindicatos, o Q.U já ajudou a parar a cidade em 94, na greve geral. Era a esquerda da CUT e nós. Aqui no Maranhão aprendemos muito com a esquerda da CUT, do PT, com o MST, com o PSTU e sempre estivemos muito próximos. O espaço de manifestação do hip-hop do Maranhão é a Praça Deodoro, onde fazíamos as rodas de break e onde também aconteciam as grandes manifestações da esquerda maranhense. Então eles sempre nos chamavam para dançar ou para cantar. A aproximação foi acontecendo lentamente porque havia muito preconceito por parte deles, que nos consideravam um movimento exótico, e nos chamavam para atos pequenos. Para os grandes atos com grandes estruturas, chamavam outros artistas. Quando houve a discussão sobre a construção da Conlutas já éramos um movimento bastante amadurecido, inclusive, com militantes nas universidades. Nós não entramos na Conlutas, nós ajudamos a construí-la aqui. Como o Q.U tem um pé no movi-

Classe – A IV Marcha da Periferia teve como tema a Guerra Interna na periferia. Fala um pouco sobre isso. Hertz – O próprio hip-hop cunhou esse nome que são os conflitos internos nos bairros das periferias. Algumas teorias falam em guerra interna como conflitos interétnicos, ou seja, como o Imperialismo manipula as etnias para que mantenham permanente conflito e não compreendam a dominação imperialista. Aqui se vive um conflito intraétnico, ou seja, um conflito entre jovens negros de todas as periferias. É uma campanha nacional puxada pelo Q.U, a partir de uma análise que fizemos aqui. Na década de 80 surgiram as galeras, como no Rio de Janeiro. Elas eram politerritoriais, formada pr jovens de diversos bairros, um exemplo era uma chamada “Os Bárbaros”. Os conflitos eram poucos, as mortes também. Na primeira metade da década de 90 surgem as gangues de pichação que já são cada gangue representando um bairro. O conflito fica mais intenso, as mortes aumentam, mas ainda não é como agora. Já na segunda metade da década de 90 em diante, a guerra sai dos conflitos entre os bairros e passa para o interior dos

Os CDs são vendidos nas comunidades e em: quilombourbano.blogspot.com

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Classe – O Q.U é filiado à Conlutas, mas na plenária do dia 21/11/09, o Quilombo Brasil decidiu não se filiar. Por que? Hertz - O Q.U é filiado à Conlutas desde a fundação da entidade. Já no Q.B, os grupos do Rio e de São Paulo discordam da filiação. Por isso, para preservar a unidade, a plenária decidiu que o coletivo vai participar do congresso de fundação da nova central apenas como observadores e tomaremos essa decisão mais tarde.

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Em São Luís, a partir da década de 90, inúmeras gangues surgiram, entre elas: Detonadores de Rua – DR (Liberdade), Mensageiros de Cristo – MC (Bequimão), Pichadores Rebeldes – PR (Macaúba), Ratos do Barulho – RB (Vila Flamengo e Vila Palmeira), Herdeiros do

Diabo – HD (Diamante), Bota Preta – BP (Alemanha), Garotos Rebeldes – GR (Anil). Para Verck, que organizou e liderou esta última, as gangues não deixam de ser uma resposta negativa aos problemas vivenciados por uma juventude oprimida e alijada de mecanismos de lazer.

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bairros e é isso que chamamos de guerra interna. Classe - Dá um exemplo. Hertz – Aqui, dentro do bairro da Liberdade, temos a Floresta, que é uma área grande. Temos a rua da Vala, e, do lado desta, o Promorá. Floresta e rua da Vala viviam em conflito permanente. Rua da Vala e Promorá, também em conflito. Promorá e Brasília, em conflito. Tudo dentro de um único bairro. Só que não é um conflito que acontece a toa, nas quebradas, que são as ruas, os bairros. Existe uma política do imperialismo para isso, inclusive, uma política cultural, com a indústria cultural. O Estado, com sua polícia, faz isso e a grande mídia ajuda na provocação desses conflitos. Tem casos aqui de jovens que são presos por assassinato e que com menos de 1 mês são soltos. Por não terem para onde ir, voltam para o bairro e lá são assassinados. Outros são jogados nas celas de grupos rivais. A notícia chega nos bairros e o ciclo da violência se reinicia. A polícia mata e, se quiser, nem dispara um tiro. Além disso, estimula a guerra interna para também eliminar os pretos e pobres. Outra coisa que faz a guerra na periferia ser importante para o Estado é que ela impossibilita qualquer organização militante e coletiva das juventudes de periferias. O Estado tem especial interesse em fazer isso aqui na Liberdade Classe – Por que? Verck – O bairro é fruto de ocupação, tem um contingente negro muito grande e uma história intensa de resistência. Muitos militantes antigos do PT e do PSTU, de São Luiz, saíram daqui. Até as quadrilhas das festas juninas já foram politizadas aqui. Tinha uma que chamava “Oposição do sertão”. Mas a guerra interna quebra essa tradição de resistência do bairro

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Classe – Algumas músicas de vocês falam das drogas. Como pensar essa realidade no Brasil fugindo de uma análise conservadora? Hertz - Se a perspectiva é só o indivíduo, podemos cair em análises conservadoras, quem usa é visto como drogado ou marginal. Mas, se pensarmos na perspectiva coletiva, a gente entende que as drogas também entram na periferia para destruir, para dizimar as comunidades pobres e desorganizá-las, assim como se distribui armas para os moleques. O Secretário de Segurança Pública daqui é o delegado Raimundo Cutrim. Teve uma época que ele baixou o toque de recolher, alegando que já havia drogas e armas demais. Quando prenderam um dos maiores traficantes de Merla do Maranhão veio a público que esse traficante é irmão do Cutrim, que saiu em sua defesa alegando que tudo não passava de uma ação para prejudicá-lo. Nossos manos, mesmo passando por dificuldades imensas, conseguem entender que, caso se entreguem às drogas, é mais uma vitória da burguesia e, aqui, ninguém quer ser derrotado por ela. Classe - Na década de 90, o atual vice de Roseana Sarney, João Alberto de Souza (PMDB), também era vice de Epitácio Cafeteira, que renunciou para candidatarse ao Senado. Quando ele assume, cria a “operação tigre” e fica conhecido como “Carcará”. Imagino o que essa operação não ensinou... Hertz – Oficialmente mataram mais de 100 pessoas. O advogado José Agenor Dourado, que presidia a Comissão de Direitos Humanos da OAB, em Imperatriz, disse, na época, que a operação foi um dos maiores extermínios insti-

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De De acordo acordo com com oo IBGE, IBGE, na na década década de de 90, 90, oo Maranhão Maranhão possuía possuía oo maior maior contingente contingente de de miseráveis miseráveis do do Brasil Brasil ee inicia inicia oo século século XXI, XXI, na na incômoda incômoda posição posição de de último último lugar lugar do do ranking ranking nacional nacional em em diversos diversos setores, setores, entre entre

os os quais: quais: falta falta de de água água tratada, tratada, de de rede rede de de esgotos, esgotos, de de coleta coleta sistemátisistemática ca de de lixos, lixos, renda renda inferior inferior aa dois dois sasalários lários mínimos, mínimos, analfabetismo, analfabetismo, etc, etc, tudo tudo isso isso associado associado àà falta falta de de invesinvestimentos timentos na na agricultura agricultura familiar. familiar.

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tucionalizados do país. Ainda hoje, João Alberto diz que tem orgulho disso e que só matava bandido. Em Imperatriz, a gente tem informação de que a polícia agia assim: pegava um bandido, soltava e dizia que ele tinha de matar outro bandido, do contrário ele morreria. O cara matava, ela soltava outro, mandava matar o anterior e foi isso, matou muita gente assim também. Mas

não foi só a tigre não. Depois tiveram os grupos do delegado Luiz Moura. Essa política de extermínio e, principalmente de negros, coincide com o crescimento da política neoliberal que demitiu muito, fortaleceu o aparato repressivo do Estado e criou os grupos de extermínio, essa é a marca da década de 90 no Maranhão.

No hip hop, o grafite também assume a forma de informação e denúncia. Sua origem está situada entre meados da década de 60 e início de 1970, nos EUA, como protesto contra as condições precárias dos guetos nova-iorquinos. (Santos, Rosenverk Estrela, dissertação defendida na UFMA, 2007). Na foto, integrantes de diversos grupos do Quilombo Brasil, grafitam nos muros do bairro da Liberdade.

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Classe - Comparando com o Rio, a diferença com os esquadrões da morte das décadas de 60 e 70 e das milícias atuais é que aqui, o Estado assumia publicamente a operação tigre? Verck - É aqui a coisa era assumida. Inclusive, a figura pública do João Alberto foi construída nessa fama de matar bandido e um

suposto combate à violência. A relação dele com o Raimundo Cutrim, que é o secretário de segurança atual, é nesse sentido. Tanto é que desde que ele assume como secretário os homicídios cresceram em 30%. A polícia é muito responsável por isso. A escola deles é essa. Há alguns anos também surgiu o “serviço velado” feito por militares à paisana, chamados de “velados” que invadem as casas nas periferias sem qualquer mandado, batem e prendem. Também é institucionalizado e o Estado assume esse “serviço”. Evidentemente que não dizem que torturam e matam, mas que são a “inteligência”. A OAB já entrou com representação, mas isso vai e vem. Quer dizer nunca vai, só dão um tempo. Classe – Qual foi o processo para vocês unirem raça e classe nas lutas e nas músicas? Verck - A gente costuma dizer que nem o economicismo e nem culturalismo. Durante muito tempo os movimentos de classe e partidos de esquerda absolutizaram as lutas econômicas e negligenciaram completamente as questões relativas à raça. As demandas de opressão eram apenas acessórios. Por seu lado, o movimento negro assume uma postura racialista que exclui a discussão e as lutas da classe trabalhadora. Isso porque acreditam que todo negro é irmão, que independente de sua classe, ele sofre racismo. No Q.U, nos seus primeiros encontros de norte e nordeste, encontramos uma organização chamada MH2O Ceará. Eles chegaram aqui com uma camisa com a cara do Che e escrito Pobre X Ricos, sendo que a nossa perspectiva era Negros X Brancos. Éramos radicalizados e racializados, isso em 94/95. Mas estávamos discutindo com esse grupo

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porque queríamos formar uma aliança e em cada reunião dava briga, não tinha acordo porque, nos textos, eles queriam colocar a juventude pobre e a gente queria escrever a juventude negra. Ninguém cedia e acabávamos sem acordo e deixando para o próximo encontro. Classe – Mas o acordo veio... Verck - No encontro do Piauí encontramos os militantes dizendo que estavam perdidos entre a raça do Maranhão e a classe do Ceará. Vimos que precisávamos resolver e entendemos todos que o sujeito de nossas lutas tinha de ser a juventude pobre e negra. As conquistas de classe devem ser aliadas a todas as opressões. A política universalista supostamente unifica a classe operária, mas a classe operária não é homogênea tem negros, mulheres, orientações sexuais diferentes. Vimos também que os negros ricos não eram e não são nossos aliados. Era preciso defender a luta contra o racismo e defender a juventude negra, mas inserir essa luta em um recorte de classe. Obama, por exemplo, é negro, mas não é nosso irmão, não é aliado, muito pelo contrário. Classe – E o machismo no hip hop? Hertz - É muito forte, inclusive aqui. Mas quando nossos manos tentam gravar música machista a gente faz a luta pelo convencimento, a gente não toca nas nossas rádios. Todas as músicas do Racionais que falem mal de mulher, como a famosa “Mulheres vulgares”, a gente também não toca, tanto que ela fez sucesso no Brasil todo, menos aqui. É contraditório porque é fruto da sociedade machista em que vivemos. O próprio Racionais tem outro hit, o “Floresta de Concreto e Aço”, em que exaltada a figura da mãe solteira, da mulher trabalhadora. Acho que com o aumento da participação das mulheres no

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movimento hip hop, o problema tende a diminuir. Classe – Já que estamos falando do Racionais, o Mano Brown é capa da Rolling Stone de dezembro. Ele diz que mudou, que se a Globo voltar a convidá-los para um programa de TV, vai pensar. Que não dá para ser politizado sempre. Que não está “aberto para os negócios”, mas explica assim: “tudo o que for para um progresso auto-sustentável, estou aí para ouvir... esse é o termo do momento: sustentabilidade”. A revista diz que Brown aceitou encomenda da Nike para um CD disponibilizado gratuitamente no site da empresa e revelou: “Eles querem que eu faça uma ponte com a juventude para aliar esporte, música e a marca”. Mudou mesmo não é? Verck – O Racionais foi e ainda é (para muitos que não refletem sobre a importância política do hip hop), importante para toda uma juventude negra de periferia que passou a se enxergar com outros olhos. Entretanto, há muito, optou pela carreira comercial e, com isso, necessitava mudar seu perfil, pelo menos no que diz respeito a sua inserção televisiva. Nunca tiveram uma linha ideológica definida. Nem, tampouco, agiam na coletividade em termos políticos. O que ocorre no momento com os Racionais, penso, representa apenas uma adequação que já vem se processando há algum tempo, para conseguir se viabilizar financeira e artisticamente. No entanto, não percebem ou não querem perceber que toda a sua carreira foi pautada (pelo menos no fenomênico), já que, em essência, deram entrevistas para quase todos os grandes órgãos de imprensa e para a MTV, que é empresa imperialista (fizeram exceção à Globo). Quando renegam essas características, renegam também todo um público que os apoiou e esteve nas suas fileiras

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de ação e pensamento. O que ocorrerá? O Racionais ficará mais forte? Ou perderá base social e com isso cairá no ostracismo como muitos que procuraram esse caminho como o Xis, o Pavilhão 9, Thaide e DJ Hum, etc.? A história responderá. Mas, como acredito que quem faz história são os seres humanos, os jovens de periferia que acreditam que o hip hop é um importante instrumento na luta pela transformação de suas vidas, cobrarão o seu preço. E será mais caro do que um CD do Racionais! Hertz - Eu mesmo devo muito aos racionais pelo que eu sou hoje, inclusive no nosso CD, na música Herói de Preto é Preto, eu falo “meus heróis eu conheci no hip hop não na escola/ professor desinformad o deturpou minha história/ ora bolas minha senhora vê se pode/ meus primeiros professores foram Racionais e GOG”.O momento que estamos vivendo é ímpar. Nossa geração nunca viveu uma crise econômica do capitalismo tão profunda e grave com a atual. Para Gramsci, é nesses momentos que a burguesia utiliza a política do “transformismo”, isto é, na impossibilidade de atender minimamente as necessidades básicas do povo pobre, ela opta por cooptar suas principais lideranças que tentarão legitimá-la junto aos pobres. A parceria CUFA/Globo/UNICEF não é só financeira, assim como não é a parceria Racionais/ Nike, é po-

lítica. O Racionais despertou a consciência crítica de milhões de jovens negros e pobres deste país, o que não os isenta de críticas. Que eles optem entre viver de cabeça erguida com a periferia ou morrer de joelhos dobrados perante a burguesia. Para a periferia o que está em jogo no momento é sua sobrevivência política. Tanto nós, como o capital precisamos recompor as forças, mas só um conseguirá ter êxito. Classe – Quem fala um pouco sobre o lema de vocês: “Nem guerra entre as gangues, nem paz entre as classes”? Verck – Acreditamos que a paz e a igualdade social só virá pela revolução socialista. Não comungamos com a visão romântica e burguesamente ideologizada de que para se conseguir paz ou progresso é necessário ordem, inexistência de conflitos. Não dissimulamos nossas intenções. Acreditamos na violência revolucionária: aquela que sabe que deve existir solidariedade entre a classe trabalhadora (aqui se inclui os desempregados), entre a juventude negra de periferia, entre os explorados e oprimidos para lutar contra os opressores e exploradores, contra as classes que nos dominam e querem nos ver numa guerra fratricida. Pelo contrário, queremos união e paz entre nós para lutar e transformar nossa realidade por meio da ação.

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O baile das rosas Luciana Pinheiro tem 37 anos e é farmacêutica. É dela a voz feminina em algumas músicas do Gíria Vermelha. Uma das mais pedidas onde se apresentam é “Baile de lokos e das rosas”, além da emocionante versão de trechos da Internacional Comunista inseridos em “Lutar é preciso” terceira facha do CD “A hora do Revide”. Desde pequena amava os filmes de, como ela diz, “cientistas malucos”. No ensino médio fez patologia clínica e depois cursou farmácia da UFMA. Diferente dos homens do Gíria Vermelha, Luciana não nasceu na periferia do Maranhão, mas na capital. “Mas tivemos dificuldades também. Minha família, hoje composta de meus pais e seis filhos, veio do interior. Meu pai trabalhou na estrada de ferro e minha mãe, como empregada doméstica. Eles vieram para a capital em busca de melhores empregos”, afirma. Como sempre gostou de música, na faculdade entrou para o coral, e a referência era a MPB. Logo começou a cantar em bares. Formou uma banda, que seria de reggae, mas virou de rock. “Foi ótimo descobrir o rock”, diz ela. Até aí, ela nem sabia que o rap existia, mas o encontro

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com a música militante não tardaria. “Eu estudei todo o segundo grau com a Claudicéa, esposa do Hertz. Em 2007 eu a reencontrei e ela me chamou para conhecer o trabalho do Gíria Vermelha. Fui, e tudo mudou. Conheci não só a música, mas a verdade dura que ela mostra e que estava na minha cara e eu não via. Eu era uma alienada, só estudando e trabalhando. Não tinha compromisso social. Com eles eu abri os olhos e vi a necessidade de contribuir. A primeira música que gravei foi logo uma sobre grilagem de terra, coisa que nunca imaginei que acontecesse. Eu cantava só MPB em barzinho. Daí vieram esses meninos e deram um nó na minha cabeça cantando ‘a arte pela arte pra nós é surda e muda’. Puxa, eu fazia e ainda faço muito ‘arte pela arte’. Eles plantaram a contradição em mim que um dia vai ter de ser resolvida”, conta Luciana, que afirma também ainda estar aprendendo para poder atuar em algum movimento de forma mais dedicada. Enquanto isso, ela se multiplica para dar conta dos trabalhos na farmácia, no hospital, das músicas nos bares da cidade e dos shows com o Gíria. É muita correria!

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Cláudia Alves Durans, diretora do ANDES-SN e da Associação de Professores da Universidade Federal do Maranhão (APRUMA)

IV Marcha da Periferia divulga pauta de reivindicações

As Marchas das Periferias acontecem em São Luis desde 2006 e marcam as atividades da semana da consciência negra no estado. No dia 19/11/2009 aconteceu a IV Marcha, cujo tema era “Pelo fim da Guerra interna nas Periferias”. Sua convocação começou em maio do mesmo ano, com o Quilombo Urbano Urbano e parcerias percorrendo oito bairros de São Luís (Liberdade, Areinha, João Paulo, Vila Embratel, Cidade Olímpica, Bequimão, Rio-Anil e Novo Angelim). Fruto dessas atividades, o Q.U elaborou uma carta de reivindicações da 4ª Marcha, composta de 20 itens, e que foi protocolada junto à Assembléia Legislativa, no próprio dia 19. O ano de 2010 será marcado pela cobrança dessas reivindicações. Na pauta constam: construção de escolas públicas

com qualidade de ensino de acordo com a demanda do estado e reformas das escolas já existentes. Construção de áreas para a prática do lazer, esporte e cultura nos bairros de periferia. Desmilitarização da polícia. Fim da perseguição das rádios comunitárias e contra a criminalização praticada pelos grandes meios de comunicação contra os moradores da periferia. Fim de repasse de verbas públicas para a imprensa comercial burguesa. Pela eliminação gradual do sistema prisional que não ressocializa pobre e nem mantém preso o rico. Formação de conselhos populares de segurança pública que possibilitem à própria comunidade resolver democraticamente os conflitos entre os seus moradores. Conheça a íntegra do documento em: quilombourbano.blogspot.com

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Mídia e Política

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INTERESSE PÚBLICO

INTERESSE PUBLICADO Marcelo Salles Jornalista

A doutrina neoliberal encontrou terreno farto no Brasil, sobretudo na década de 1990. Sua principal característica publicável, a redução do Estado, ficou evidente. O alto escalão do governo FHC trabalhou dia e noite para entregar o patrimônio nacional para o setor privado. Assim, o povo brasileiro perdeu rodovias, siderúrgicas, empresas de energia, poços de petróleo, empresas de telecomunicações e, talvez o mais grave: a confiança em seu país. Ou seja, tudo o que é estratégico para o desenvolvimento de uma nação e o bem estar da sua população. O principal argumento dos que defendiam as privatizações era que desse modo o governo atrairia os dólares necessários para que a dívida externa fosse reduzida. Só que aconteceu o contrário, como registrou o jornalista especializado em economia Aloisio Biondi, no livro “O Brasil privatizado”: “As vendas foram um ‘negócio da China’ e o governo ‘engoliu’ dívidas de todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar a dívida interna.

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Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras que ‘compraram’ as estatais não usaram capital próprio (...), mas tomaram empréstimos lá fora para fechar os negócios. Assim, aumentaram a dívida externa do Brasil”. O jornalista lembra ainda que o processo das privatizações foi extremamente nebuloso, para dizer o mínimo. Exemplos: dois anos e meio antes da venda das empresas telefônicas, o governo havia investido R$ 21 bilhões no setor; a Vale do Rio Doce foi vendida pela décima parte de seu valor real; bancos estaduais foram entregues de mão beijada e os compradores ficaram livres dos passivos trabalhistas; poços de petróleo descobertos pela Petrobrás foram vendidos a preço de banana para empresas privadas. O resultado foi muito bem descrito por Jefferson José da Conceição, no livro ABC da Crise: “(...) a exclusão social (milhões de famílias extraídas do mercado de trabalho e do mercado de consumo); o acirramento sem controle da competição em todos os níveis (inclusive en-

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tre países, regiões, governos); a desvalorização do papel do empreendedor produtivo em prol do “especulador financeiro”; a instabilidade e a precarização nas relações de trabalho (incluindo a informalização do trabalho e os baixos salários); o descaso com o desenvolvimento ambientalmente sustentável, entre outros”. A propaganda oficial coincidia com a linha editorial dos meios de comunicação de massa, em sua maioria controlados por gente que fez fortuna com a ditadura política e que depois veio a lucrar horrores com a ditadura financeira. Dizia-se que as empresas públicas eram ineficientes. Que seus funcionários eram preguiçosos e marajás. Que a privatização era coisa de país moderno, e que quem defendia o contrário era caipira, atrasado. A ideia-chave imposta pelas corporações de mídia era a seguinte: tudo o que é público é ruim, enquanto tudo o que for privado é bom. Isso é bastante preocupante, posto que a mídia, hoje, é a instituição com maior poder de produzir e reproduzir subjetividades, ou seja, ela determina formas de pensar, sentir e agir de pessoas, entidades e, consequentemente, da própria sociedade. Até hoje é bastante comum ouvir alguém dizendo coisas do tipo: “essa estrada só está esburacada porque o governo não faz nada; se tivesse administração privada não estaria assim”, da mesma forma como é frequente a indignação popular frente à corrupção de agentes públicos, mas quase não se escuta críticas em relação aos corruptores privados. É como se apenas o setor público devesse ser investigado, posto que é sustentado com dinheiro dos impostos, enquanto que o setor privado estaria acima

do bem e do mal. “Ninguém tem nada a ver com isso, porque não é dinheiro público”, dizem. Só esquecem que planos de saúde, bancos, empreiteiras e telefônicas, por exemplo, prestam serviços que afetam a vida de milhões de cidadãos e por isso devem, sim, ser fiscalizados. Um bom exemplo do trabalho de manipulação da mídia foi o recente massacre contra o Programa Nacional dos Direitos Humanos, um dos textos mais democráticos da história da República. Tanto porque sua redação, ratificada por 31 ministérios, foi fruto de aproximadamente 50 conferências temáticas, quanto porque trata de forma bastante progressistas demandas historicamente reprimidas. Mesmo assim, emissoras de televisão, rádios e jornais disseram textualmente que se trata de um texto stalinista, autoritário e que ele daria margem para a instalação de uma ditadura no país. Contra a campanha de políticas PÚBLICAS dos Direitos Humanos estão os interesses PRIVADOS de latifundiários e oligopólios de mídia, além de preconceitos medievais contra mulheres, os setores LGBTs e praticantes de religiões afro-descendentes. Há também os interesses particulares de quem seqüestrou, torturou e assassinou durante a ditadura de 1964. As corporações de mídia mentiram, distorceram fatos, omitiram informações, mas no final acabaram conseguindo fazer com que o presidente revisse o decreto para agradar aos comandantes das Forças Armadas. Duvido que o desfecho fosse o mesmo caso houvesse um único veículo de comunicação de massa sério, comprometido com o interesse público e a prática do bom Jornalismo.

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Privatizações pioram a vida de usuários de trens e barcas Texto: Carolina Barreto Gaspar

15 de abril de 2009. Trens absolutamente lotados. Empurra-empurra. Ninguém pode perder a viagem e todos se apertam nas portas do trem da Supervia. Enquanto isso, os “agentes da segurança” têm uma “excelente” ideia para conter o tumulto: chicotear os passageiros para que eles se espremam – ainda mais – no interior dos trens. Meses depois, paralisações, atrasos e panes em trens da Supervia provocam a ira dos usuários, que, no dia 8/10, ateiam fogo a composições e promovem tumulto na Central do Brasil. A polícia é imediatamente chamada para conter o problema, e usa a violência de sempre: spray de pimenta, cassetetes, bombas de gás lacrimogêneo. Quem mora no Rio de Janeiro não estranha essa breve descrição, já que

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remete a episódios recentes ocorridos no transporte ferroviário do estado. Seria lícito dizer que em 2009, mais do que nunca, ficaram evidentes as imensas fragilidades do transporte ferroviário em todo o estado do Rio. Contudo, não foi à toa que chegamos a esse estado de coisas. Foram anos e anos de sucateamento do sistema de transporte ferroviário, que acabaram por culminar na sua privatização. Esta, ao contrário do que muitos diziam lá atrás, não melhorou a qualidade do serviço prestado à população. Além disso, as tarifas sobem a cada ano, de maneira que hoje os trens do Rio são os mais caros de todo o país. Os usuários das também privatizadas barcas no Rio enfrentam problemas parecidos.

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Sucatear para privatizar portados no estado caísse vertiginosamente, chegando a 250 mil durante o Governo Marcelo Alencar. Em 1998, a privatização foi vendida como a grande solução para os graves problemas enfrentados pelo transporte ferroviário no Rio de Janeiro. Naquele momento, a Supervia assumiu a operação dos trens, enquanto novas estações e várias reformas seguiam sendo feitas sob o patrocínio Passageiros que protestavam, no dia 8/10/2009, contra os atrasos da Supervia, foram encurralados pelo Batalhão de Choque. do governo. Naquela época, Até o início da década de 1980, o transporte fer- o valor da passagem de trem girava em torno de 60% roviário era de responsabilidade do governo federal. da tarifa dos ônibus. Hoje, os usuários do transporte Os investimentos eram grandes, de forma que, no es- ferroviário pagam uma tarifa no valor de R$ 2,45, entado do Rio de Janeiro, chegou-se num determinado quanto os que andam de ônibus pagam R$ 2,20. Se momento a transportar em média um milhão de pas- engana, no entanto, quem pensa que o aumento nas sageiros por dia. No entanto, esses tempos passaram tarifas beneficiou de alguma forma a população atrae, com eles, se foram os grandes investimentos no vés da melhoria na qualidade do serviço prestado. sistema de transporte ferroviário. Com a onda neoliberal que já começava a aparecer no Brasil, o governo federal passou a administração do transporte ferroA ganância da Supervia viário aos estados. Na época, o governo do estado do Segundo Luiz Antonio Cosenza, representanRio de Janeiro assumiu a prestação desse serviço em troca do perdão de algumas de suas dívidas junto à te do Sindicato dos Engenheiros no CREA-RJ, são União. A partir desse momento, o sucateamento foi muitas as denúncias contra a Supervia em relação a regra em termos de transporte ferroviário no Rio, o à falta de manutenção dos trens. Isso talvez ajude a que fez com que a média diária de passageiros trans- explicar os constantes acidentes e problemas técni-

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cos que acontecem com os trens. Só para se ter uma idéia, desde a privatização do sistema de transporte ferroviário do Rio de Janeiro, a conta é: 17 mortos e mais de 300 feridos em acidentes de trem no estado. A AGETRANSP, que deveria fiscalizar o serviço prestado pela concessionária, tem deixado bastante a desejar nesse sentido. Boa parte desses incidentes poderiam ser evitados, mas não são, graças à ganância da Supervia, que movimenta a cada ano cerca de R$ 900 milhões. A empresa herdou do governo 220 km de malha ferroviária, distribuídos por 11 municípios da região metropolitana e englobando 89 estações, além de oficinas de manutenção e controle operacional. Infelizmente, a manutenção de toda essa estrutura é precária, conforme atestam denúncias de origens diversas. Cosenza revela que cerca de 90% dos trabalhadores ocupados no transporte ferroviário antes da privatização foram demitidos. “Eles não colocam dinheiro nem pessoal para fazer manutenção. Além disso, não há fiscalização da Supervia. Ela consegue reduzir os custos porque a manutenção é muito precária. Isso para não falar do aumento do preço das passagens desde a privatização: de 1998 para cá, as tarifas aumentaram cerca de 500% em relação ao salário mínimo,” afirma o engenheiro.

Denúncias em vão Não é por falta de denúncia que a Supervia deixa de ser punida pelo poder público. Em 2001, o Sindicato dos Engenheiros denunciou ao Ministério Público problemas graves de segurança identificados nas operações da concessionária. A denúncia do SENGE apontava problemas com os cabos de sinalização, com os transformadores de alta tensão e com os pos-

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tes de concreto, identificando a falta de pessoal como uma das principais causas de acidentes. Tais problemas colocam em risco a segurança dos usuários do transporte ferroviário no Rio de Janeiro. Ao constatar isto em 2004, a AGETRANSP decidiu aplicar à Supervia uma “vultosa” multa no valor de 0,01% do faturamento anual do exercício de 2000. Para além disso, não se tem notícias de outras sanções, mesmo após o bizarro escândalo das chicotadas.

Ao invés de punição, subvenção Quem entra no site da Supervia descobre que, além de não ser punida como deveria pelo poder público, ela é frequentemente presenteada pelo governo do estado: só nos últimos quatro anos, recebeu 23 trens equipados com ar-condicionado e sistema computadorizado. Para Luiz Cosenza, a Supervia não investe, mas lucra – e muito. “O sistema público de transporte deve ser pensado para atender à população. O atual estado de coisas parece indicar que ele deve ser mantido bem longe dessas concessionárias privadas, que negligenciam de maneira flagrante o bem-estar do usuário em favor de seus lucros. O transporte público não deve ser privatizado”, diz Cosenza. Enquanto vozes como essa não se fazem ouvir, vamos levando a vida, agüentando chicotadas, panes, negligência e humilhação. A pergunta que fica é: até quando? A insatisfação com relação ao sistema público de transportes cresce a olhos vistos, conforme demonstram as recentes explosões populares nos trilhos da Supervia e no interior da Central do Brasil. Ao contrário do que parecem pensar as autoridades, essa insatisfação não será calada com spray de pimenta ou bombas de gás lacrimogêneo.

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“Os trens estão um fracasso!. Sempre lotados e insuportavelmente quentes. Os que vêm do subúrbio quase nunca têm ar-condicionado, o que é um absurdo, pois são os passageiros dessas linhas os que vêm de mais longe. Para os idosos como eu, é um sacrifício muito grande ter que pegar o trem todos os dias.” Rina dos Santos tem 75 anos e pega o trem todos os dias para ir e voltar do trabalho. Ela mora em Cascadura e é passadeira no Estácio.

Fotos: Stela Guedes

USUÁRIOS RECLAMAM

“Há muito tumulto nos trens, que estão sempre lotados. Acho que isso acontece porque há poucos trens, e aí somos nós que sofremos. Os idosos são os que mais sofrem, pois vão espremidos dentro dos vagões. Além disso, há muita sujeira também. Quando acontece algum problema, a comunicação da Supervia com os usuários é muito ruim. Isto muitas vezes acaba gerando tumultos, pois não nos dão as devidas satisfações a respeito dos problemas que ocorrem.” André Augusto pega o trem todos os dias para ir de casa para o trabalho e vice-versa. Ele mora em Nova Iguaçu e trabalha em Botafogo.

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“Os trens pioraram muito nos últimos dois meses: há muitos atrasos e os vagões estão sempre lotados. Também acho que a segurança deveria ser reforçada. Apesar de todos os problemas, continuo usando o trem porque através dele consigo chegar rapidamente ao trabalho.” Vanderson de Assis utiliza diariamente o trem para ir para o trabalho. Ele mora em Quintino e trabalha em Botafogo.

“Problema é o que não falta nos trens: eles estão sempre muito cheios, atrasam e vários não têm ar-condicionado. Nesse calor, quando o trem não tem ar, vai todo mundo pingando em cima uns dos outros. Quando acontece algum problema, a Supervia não dá as devidas informações. Seria muito bom que houvesse menos atrasos e que entrassem em circulação novos trens. Com ar-condicionado, é claro.” Elisabeth Theodoro e Leonardo da Rocha também utilizam o trem para chegar a seus empregos. Ambos moram em Deodoro. Ele trabalha em Copacabana e ela, no Flamengo.

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Ineficiência das Barcas/SA causa indignação e revolta

Tumulto na estação da Praça XV devido ao atraso das barcas. Foto: Fernando Quevedo

Praça XV, estação das barcas. Filas imensas e extremamente lentas, tanto para comprar o bilhete como para entrar na estação. Passo curtinho, sensação de confinamento dentro do terminal. Finalmente, correria em direção à barca da vez. “Parecemos gado”, é comum se ouvir. Quem faz a travessia Rio-Niterói todo dia sabe do que estamos falando. A verdade é que o serviço oferecido pela companhia Barcas S/A é de péssima qualidade. Em abril do ano passado, por exemplo, na véspera do feriado da semana santa, a população se insurgiu contra a ineficiência do serviço prestado pela Barcas S/A. O que se viu foi um grande tumulto que culminou na invasão do terminal e, posteriormente, na promoção de um quebra-quebra no inte-

rior de suas instalações. A polícia foi rapidamente acionada reprimir a manifestação. A indignação dos usuários das barcas se justifica. No dia 8 de abril, dia do incidente, cerca de 13 mil pessoas não conseguiram embarcar no horário previsto devido ao número insuficiente de barcas disponibilizadas para realizar a travessia Rio-Niterói. Era véspera de um feriado, o que, naturalmente, já aumenta o número de usuários. Além disso, havia uma greve de ônibus em curso na Baixada Fluminense, o que contribuiu para aumentar ainda mais a procura pelo serviço prestado pela Barcas S/A. A concessionária tentou se explicar alegando que barcas extras foram disponibilizadas com o objetivo de atender a todos, mas não convenceu ninguém. Resultado: instau-

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rou-se um verdadeiro caos e a multidão enfurecida enfrentou o batalhão de choque da polícia. É preciso levar em consideração que os problemas são freqüentes. Também em abril do ano passado, o terminal que liga Ilha Grande a Angra dos Reis ficou desativado durante 24 horas, deixando os moradores da ilha sem qualquer possibilidade de contato com o continente; no dia 22 de março, uma barca que fazia o trajeto Praça XV-Paquetá ficou à deriva durante mais de uma hora. Em novembro de 2008, uma rampa do terminal Paquetá desabou, deixando cerca de 20 pessoas feridas.

CPI prova que passagens foram reajustas acima da inflação Os problemas com o serviço prestado pela Barcas S/A são tantos que, ainda no final de 2008, foi aberta na Assembléia Legislativa uma CPI para investigar as causas do acidente com a rampa do terminal de Paquetá, bem como o descumprimento de cláusulas do contrato de concessão. A CPI, criada no dia 9 de dezembro, foi presidida pelo deputado Gilberto Palmares (PT) e encerrou seus trabalhos no dia 12 de junho de 2009, depois de ter realizado 14 reuniões ordinárias, cinco audiências públicas e 20 reuniões externas. Dentre os 31 órgãos ouvidos pelos parlamentares, estiveram presentes nos encontros representantes da Capitania dos Portos do Rio de Janeiro, da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes (Agetransp), das secretarias de Estado de Transportes, Ambiente, Saúde e Defesa Civil, das prefeituras de Niterói, São Gonçalo, Angra dos Reis e Rio de Janeiro, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Ministério Público Estadual e da própria Barcas S/A.

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No relatório final da CPI, constam 64 propostas para melhorar o serviço prestado pela Barcas S/A. Ao fim e ao cabo, a CPI das barcas provou que, de 1998 (início da concessão) a 2009, as passagens em todas as linhas de Barcas S/A foram reajustadas acima da inflação. Isto é comprovado pelo presidente da comissão parlamentar de inquérito: “Tivemos muitos problemas. O preço da tarifa, por exemplo, nunca havia sido discutido. Os valores das linhas Ilha do Governador e Paquetá tiveram aumento de 270% e 324%, respectivamente, enquanto a inflação foi de 162%. Também queremos que a vida útil de uma embarcação seja respeitada e que novas linhas possam compor o transporte para agilizar o trajeto e aumentar a oferta para quem utiliza as barcas”.

Nem mais eficiência, nem mais segurança para passageiros Até 1998, o serviço hoje de responsabilidade da concessionária Barcas S/A era prestado pelo poder público. Na época, a exemplo do que ocorreu em outras privatizações, prevaleceu a tese neoliberal da ineficiência do Estado na administração de empresas e na prestação de serviços públicos. Graças a essa lógica, foram vendidas (a preço de banana), estatais bastante lucrativas, como é o caso, por exemplo, da Vale do Rio Doce, em 1997. Para além disso, serviços que antes eram prestados pelo Estado passaram às gananciosas mãos da iniciativa privada, supostamente mais eficiente na administração da coisa pública do que o próprio poder público. Esse foi o caso do metrô, em 1997, da telefonia, em 1998 e do transporte ferroviário, também em 1998, só para ficar em alguns exemplos.

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Só lucro para empresários A concessão do serviço das barcas foi entregue a um grupo empresarial composto, entre outros, pela Auto Viação 1001 e pela Construtora Andrade Gutiérrez S/A. Esse grupo arrebatou a concessão por um lance simplesmente igual ao preço mínimo

do edital do leilão. A partir de então, passou a explorar o transporte aquaviário, atividade altamente rentável. Aliás, os empresários da Barcas S/A parecem ter de fato um bom faro para os negócios, uma vez que também fazem parte da exploração de outra lucrativa concessão: a Ponte Rio-Niterói. Contrariando o mito neoliberal que justificou

Policiais com cães ameaçam usuários após o quebra-quebra. Foto: Fernando Quevedo

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a privatização do transporte aquaviário, os empresários da Barcas S/A têm dado um verdadeiro show de incompetência, que se expressa inclusive em números. Só para se ter uma idéia, antes da privatização a travessia Rio-Niterói era feita de 7 em 7 minutos, sendo que cada embarcação comportava cerca de 2 mil passageiros. Isto significa que, no período de uma hora, as barcas transportavam cerca de 18 mil passageiros. Enquanto isso, os modernos catamarãs utilizados atualmente para a travessia transportam, no mesmo período de tempo, a ínfima quantidade de 7200 passageiros. No horário do rush, o que se vê são apenas seis embarcações trabalhando durante uma hora. Isso significa que, apesar do aumento populacional registrado no estado do Rio de Janeiro de 1998 para cá, as barcas hoje transportam um número de passageiros muito menor do que há onze anos atrás. Apesar da nítida piora do serviço prestado em termos de transporte marítimo no estado, as tarifas não param de subir, e bem mais que a inflação. Diante dessa situação, está claro que as privatizações só beneficiam os empresários, que se apoderam da coisa pública em proveito única e exclusivamente de seus lucros. A realidade exige a reversão dessa lógica privatista. No caso das barcas, a melhor solução seria o fim da concessão à Barcas S/A e a reestatização do serviço. Afinal, se a concessionária descumpriu inegavelmente até aqui os compromissos que ela mesma assumiu junto ao poder público, por que agora seria diferente? O relatório final da CPI das barcas faz à empresa um amplo conjunto de exigências. Parece difícil, no entanto, acreditar que tudo isso sairá do papel de bom grado. Apenas os movimentos sociais organizados podem fazer a luta pela reestatização.

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Conheça algumas propostas da CPI * Retorno da barca da madrugada. * Redução das tarifas para Paquetá, Ilha Grande e Ilha do Governador. * Utilização dos recursos do ICMS pagos pela Barcas S/A na melhoria das linhas de * * Paquetá, Ilha do Governador, Ilha Grande. * Implantação de uma estação em São Gonçalo. * Garantia do oferecimento de 12 mil lugares nos horários de rush na linha Rio/Niterói/Rio. * Realocação dos quiosques do terminal da Praça XV. * Validação do RioCard em todas as roletas. * Reabertura do edital de licitação para a estação de São Gonçalo. * Apresentação de projeto de lei estabelecendo um tempo de vida útil para as embarcações. * Construção, pela Barcas S/A, das três embarcações previstas no empréstimo feito junto ao BNDES. * Implantação do bilhete único no próprio sistema, permitindo que os usuários possam reembarcar em qualquer estação sem pagar nova passagem. * Implantação, a curto prazo, do sistema de integração intermodal. * Realização, pelo governo do estado, de estudos que permitam a instalação de uma estação de passageiros em um dos armazéns do porto. * Recomendação ao governo do estado de que as multas aplicadas sejam realmente pagas e não supostamente revertidas em benefício dos usuários. * Um conjunto de regras para futuras concessões, estabelecendo que os novos contratos proíbam o controle acionário das concessionárias de serviços públicos de transporte de passageiros por acionistas de modais concorrentes.

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A Revolta da Cantareira

Manoel Martins: testemunha ocular da História

Naquele dia, a paciência dos usuários das barcas acabou e milhares se levantaram contra a péssima qualidade do serviço prestado. Não estamos falando dos incidentes ocorridos no feriado da Semana Santa do ano passado, mas do episódio em 22 de maio de 1959, que ficou conhecido como “A revolta da Cantareira” ou “A revolta das barcas”. Há, sem dúvida, semelhanças marcantes entre um momento e o outro, apesar da distância temporal de cinqüenta anos entre eles. Para entender melhor a insurreição popular de 1959, conversamos com Manoel Martins, que testemunhou aqueles fatos por ser, na época, advogado do Sindicato dos Operários Navais. De acordo com ele, o governo JK fez

grandes investimentos na construção naval. Para se ter uma idéia, a Superintendência da Marinha Mercante subsidiava 90% da folha salarial das empresas da construção naval. Nessa época, o transporte de barcas entre Rio e Niterói havia sido entregue ao Grupo Carreteiro, cujo patrimônio crescia a olhos vistos graças aos subsídios governamentais. Por incrível que pareça, este grupo estava insatisfeito com a vultosa subvenção que recebia do governo. Em março de 1959, a empresa alegou que o dinheiro do salário dos empregados estava sendo absorvido na manutenção das embarcações, o que impediria o pagamento dos trabalhadores. Inconformados em terem de arcar com uma parcela, ainda que ínfima, da folha sala-

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rial, os empresários queriam o aumento dos subsídios governamentais e das passagens. Desse modo, promoveram uma interpelação judicial solicitando os aumentos. Diante da negativa do governo, os empresários começaram a reter os salários . O pagamento dos trabalhadores era quinzenal. Em abril, o Grupo Carreteiro começou a atrasar sistematicamente os salários. O objetivo dessa manobra era fazer do desespero dos trabalhadores um instrumento em favor dos interesses patronais. O Sindicato dos Operários Navais buscava, a um só tempo, evitar a eclosão de uma greve e apontar ao governo a manobra operada pelos empresários. No dia 22 de maio, no entanto, os Carreteiros finalmente conseguiram montar uma paralisação das embarcações, forjando a greve. Para a sua surpresa, no entanto, o povo entraria em cena nesse episódio – e de maneira aterradora. A paralisação começou na manhã do dia 22 de maio. Prevendo possíveis contratempos, os Carreteiros solicitaram a presença dos fuzileiros navais na estação das barcas para proteger seu patrimônio. Numa época em que ainda não existia sequer a Ponte Rio-Niterói, é possível imaginar o tamanho do caos que essa paralisação gerou. A população, cada vez mais irritada, passou a exigir informações dos fuzileiros navais, mas foi recebida debaixo de tiros e coronhadas. Um dos disparos feitos atingiu um homem que observava o tumulto da janela de

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um prédio situado em frente à estação das barcas. Foi o estopim da ira popular. A massa enfurecida investiu então sobre o terminal das barcas enquanto os fuzileiros afastavam as embarcações do cais. A multidão simplesmente destruiu e incendiou a estação de embarques, pondo em fuga os fuzileiros navais. Nem mesmo a mansão da Família Carreteiro foi poupada pelos manifestantes que queimaram e destruíram praticamente tudo o que havia dentro dela. A multidão não se apropriou de nada, ao contrário, destruiu tudo o que encontrou pela frente. À tarde, a normalidade começou aos poucos a ser restabelecida e o transporte marítimo foi feito por embarcações da Marinha pelo o resto do dia. Quatro pessoas morreram e o número de feridos era superior a cem. Tudo graças à irresponsabilidade dos empresários. Dois dias após esses incidentes, o governo federal assume o controle das barcas. Nas palavras de Manoel Martins, “a Revolta das Barcas foi uma explosão espontânea do povo que se sentiu usado como massa de manobra pelos empresários do Grupo Carreteiro. Hoje, parece que a história se repete. Estamos diante da submissão e sofrimento dos usuários para arrancar dinheiro do governo. Felizmente, o povo, também como há cinqüenta anos, tem reagido a esse tipo de manobra. O tumulto ocorrido às vésperas da Semana Santa no ano passado, é prova disso”, diz Manoel.

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Foto: Stela Guedes

86 anos e firme na luta Nossa testemunha ocular nasceu em 1923, na cidade de Niterói e iniciou sua militância política no começo da década de 40, quando se filiou ao PCB. Nessa mesma época, ingressou no curso de Direito e foi diretor do Centro Acadêmico Evaristo da Veiga (CAEV). Por suas atividades políticas, foi preso durante o Estado Novo. Em 1947, participou do histórico Congresso da UNE em que a esquerda assumiu a direção da entidade que, desde sua fundação, era comandada pela UDN. A partir daí, se tornou 4º secretário da UNE. Ao se formar, iniciou sua trajetória como advogado trabalhista e defendeu diversos sindicatos de categorias importantes como os operários navais, rodoviários, ferroviários, professores e outros. Com o golpe de 64, seu escritório de advocacia foi invadido e vários de seus livros apreendidos. Mais uma vez ele seria preso, agora durante a Ditadura Militar. Em 1979, já no contexto da reabertura política, Manoel Martins entrou com uma ação na justiça que tirou a UNE da clandestinidade em que esta entidade se encontrava desde 64, permitindo a realização do famoso congresso de reorganização em Salvador. Em 2008, se filiou ao PSOL e disputou as eleições para vereador sendo o terceiro candidato a vereador mais votado do partido. Naquele mesmo ano, ele entrou com uma ação popular na justiça contra a venda da Concha Acústica, que já havia sido anunciada pelo então prefeito Godofredo Pinto. A prefeitura queria ceder aquele que é um dos poucos espaços públicos de lazer exis-

Manoel Martins

tentes na cidade à iniciativa privada para a construção de hotéis de luxo. Esse plano esbarrou na ação impetrada por Manoel, que acabou sendo acatada pela justiça, e na ampla campanha de denúncia desenvolvida pelos movimentos sociais de Niterói. Ainda hoje, o atual prefeito Jorge Roberto Silveira tenta derrubar a ação de Manoel para que possa vender o espaço da Concha Acústica. Hoje, do alto de seus 86 anos, Manoel Martins ainda advoga e é militante ativo em vários movimentos sociais de Niterói. Ele se mostra bastante disposto para os próximos enfrentamentos que, certamente, surgirão em defesa dos interesses do povo.

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Um profeta é aquele que rasga o céu do amanhã com a sua palavra e Marx fez isso a tel :S

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Entrevista: José Paes de Lira, Lirinha s

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José Paes de Lira Filho nasceu em 1976, em Arcoverde, sertão de Pernambuco, a 252 km da capital. Cresceu rodeado de sol, poeira e violeiros e, aos 9 anos, já declamava versos imensos na família. “Com 12 anos recebi meu primeiro cachê para recitar uma poesia. Achei estranho ser pago pelo que eu fazia de graça”, diz Lirinha, como é mais conhecido o vocalista e principal compositor da banda “Cordel do Fogo Encantado”, que surgiu em 1997, como um espetáculo de teatro, na própria cidade. Nessa época, além de Lirinha, estavam no grupo o violonista Clayton Barros e o percussionista Emerson Calado. Quando vai para Recife, se juntam ao grupo os percussionistas Nego Henrique e Rafa Almeida, que, ao trazerem a força dos tambores dos terreiros de umbanda e candomblé, mudam ainda mais a trajetória da banda. A música ganha mais atenção, mas a intenção do Cordel continua sendo dizer e cantar poesia, literatura ou qualquer vestido que a desejada palavra escolha. João Cabral de Melo Neto, Ítalo Calvino, Fernando Pessoa, Euclides da Cunha, Bio Gomes, João Paraibano, Manoel Chudu, Zé da Luz, Manoel Filó, Brecht, tudo misturado. E a poesia corta como na música “Ela disse assim (ou

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A teus pés)” que conta a história de uma mulher que se matou ao pular de um prédio: “se ela quer voar, é porque tem asas”. O nordeste do Cordel não é o mesmo da música ou da literatura regionalista, também não é o do movimento que ficou conhecido como mangue beat, surgido na mesma década de 90, na capital Pernambucana. É outra invenção que eles já vinham matutando há muito tempo e não “da noite para o dia”, como diz a grande mídia. Experimentando, refazendo, jogando fora e recolhendo, a banda fez três CDs: Cordel do Fogo Encantado (2001), O Palhaço do Circo sem Futuro (2002) e Transfiguração (2006), todos independentes, sendo que o último, distribuído pela Trama. No fim de 2007, Lirinha estreiou o monólogo de sua autoria “Mercadorias e Futuro” e lançou seu primeiro livro, com o mesmo nome do espetáculo. Seu personagem Lirovsky é um vendedor de livros que criou uma parafernália na forma de carrinho para ajudar em seu ofício. Nessa entrevista, concedida à Revista Classe antes de uma das apresentações da peça, no Rio, Lirinha fala um pouco de tudo isso. Para melhorar, o quarto CD do Cordel está quase pronto e com instrumentos de sopro!

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Classe - Você começou o Cordel para ser um espetáculo de teatro, que virou o Grupo de música Cordel do Fogo Encantado e agora você volta ao teatro. Ou seja, não só as várias linguagens artísticas se misturam nos espetáculos como você mesmo transita por elas. Lirinha – Minha primeira atividade foi a declamação. Com 9 anos eu vivia declamando versos no meio da família. Mas isso acontecia junto com cantorias de viola com repentistas violeiros. Minha família por parte de pai era muito envolvida nessa poesia de trovismo feita pelos violeiros e eu decorava poesias longas nos livros de minha casa e os poemas que os cantadores improvisavam. Isso era estranho para uma criança e comecei a ser convidado para recitar nos festivais de violeiros, um tipo de formato que surgiu depois da cantiga de viola. Era tipo um teatro em que os cantadores tinham tempo limitado para se apresentar. Eu fazia participações especiais. Passei boa parte da minha vida nessa experiência já com relação com o público, com o palco, com um pedestal. Tanto que no espetáculo “Mercadorias e Futuro” eu já entro com um pedestal, justamente para marcar essa lembrança. Só depois de muito tempo é que fui entender que eu já estava envolvido. Numa relação de representação e teatro. Classe – Quando você começou a estudar teatro? Lirinha – Em Arcoverde, com 16 anos. Com 18 comecei o projeto chamado Cordel do Fogo Encantado que era um encontro da poesia com o teatro que eu acabava de descobrir. O Cordel queria criar uma música para essa poesia ser dita. Não sabíamos nem o que era e nem como fazer direito, mas começamos, já no grupo, a exercitar umas bases para essa poesia ser dita.

Cena do espetáculo “Mercadorias e futuro”

Classe- Até então você só recitava. Quando começou a compor? Lirinha – Foi nesse período, já dentro do Cordel que descobri que podia compor. Eu acredito muito na potência artística que cada um carrega. Acredito mais nas pessoas capazes de artes do que naquilo que se chama de artista. Não sei te dizer se essa possibilidade de potência já existia em mim, sei que encontrei o caminho por algum motivo e comecei a compor quando idealizei esse espetáculo Cordel que era um espetáculo de teatro com poesia, com esses mesmos membros do grupo de hoje, sendo que mudaram dois. Já tinha o Clayton, por exemplo, que toca violão e que é meu parceiro de composição, mas mesmo sem ele eu comecei a compor músicas juntando a poesia numa idéia de uma música dentro de uma ação, de qualquer forma, algo dentro do teatro. Me encantei com essa descoberta e comecei a fazer canções que era algo que eu não fazia. O Cordel conseguiu assim reunir poesia, teatro e música. Classe - Queria que você falasse sobre o nome do grupo e como o Cordel entra nisso?

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Lirinha – Para nós o Cordel é sinônimo de história “A História do Fogo Encantado”, isso porque literatura de cordel é herança escrita. Nenhum poeta dizia “faço cordel”, dizia “faço folheto, romance, poesia”, e aí pendurava em cordões. Hoje eles até falam assim, mas muito por conta de um olhar intelectual pejorativo lançado sobre a poesia que faziam, e incorporaram esse nome. Mas usamos também para dizer que expomos nossa poesia e música nesse grande cordão que é o

Cena do show do Cordel do Fogo Encantado

mundo. O fogo é o elemento que mais representa o que somos e onde existimos, ao mesmo tempo é nosso lugar de origem, mas mutável. O encantado vem da visão apocalíptica de nossa poesia. Classe- No meio de tudo isso você ainda veio escrevendo seu livro? Lirinha – É, escrevo esse tempo inteiro.

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Estou com 32, escrevo o “Mercadorias e Futuro” desde os 25. Fiquei um pouco confuso quando fui publicar o livro porque eu não acredito no “ multiartista”. Eu acho que terminamos não aprofundando em nada. Fiquei receoso de ser mais uma coisa para fazer e sem fundo. Mas algumas pessoas me acalmaram dizendo que a palavra é algo que faço desde criança, ela foi, inclusive, meu primeiro material de trabalho. E o próprio nome do grupo “Cordel”, já marca nossa ligação com a literatura. No livro eu estava apenas registrando essa palavra, essa memória. Então percebi que estava retornando e registrando algo que é muito vivo. Classe – E o livro virou um monólogo. Esse círculo híbrido continua girando... Lirinha – No “Mercadorias e futuro” aparece o ator, mas é algo muito semelhante no que faço no Cordel. No espetáculo também vivencio teatro, poesia e música. Não me distanciei e nem inventei novas formas de dizer as coisas que acho. Há muito tempo estou fazendo um trabalho no limite do teatro, poesia e música. Em alguns momentos vou estar mais dentro do texto, como no caso do livro, em outros dentro da música, como no Cordel. Se, como eu disse, somos todos capazes de arte, a definição de artista soa para mim como pejorativa. A definição de artista como pessoa que faz arte já está enfraquecida pelo tempo e pelas surpresas que temos na vida, como o surgimento de poesia na boca de pessoas que não são consideradas poetas. O que percebo é que faço um trabalho que talvez pudesse ser definido como performance. Acontece que no Brasil, a palavra performance foi muito abalada nos anos 70 por uma utilização muito grande desse conceito na área da poesia. Por aqui, o entendimento de performance está como algo diluído, espalhado por várias artes, mas acho que seria a concentração desses terrenos. A performance é a união, a

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Classe – Entendo que tudo se aproxima, mas tudo também é diferente. O que você experimentou de diferente nessas artes? Lirinha - Escrever algo dos seus sonhos não se faz nas horas vagas. A escrita obriga a uma entrega e posso até dizer a você que experimentar essa forma de escrita foi algo de chocante na minha vida. Eu nunca tinha me deparado com a exigência que eu tive comigo mesmo para escrever esse livro. É um universo muito diferente da música que é algo mais da sensibilidade. A música, embora seja matemática, é como se respira. No teatro há diferenças também muito latentes. O camarim do teatro e o camarim de um show, por exemplo, são muito diferentes. No teatro há uma necessidade de concentração absurda. Há um texto que existe. Um texto com seu trabalho de repetição e é na repetição que se cria. A música é mais pomba-gira, cinco minutos antes de entrar no palco a gente está fumando, bebendo, recebendo amigos. Nos shows temos muito improviso, a condução no momento, feito uma fotografia. O livro, mesmo pequeno, me exigiu quase sete anos. Não se pode escrever com pressa . Para compor não preciso me recolher, minha relação é mais na rua. A confecção de uma música para mim é mais solar, a do livro é mais subterrânea, mas quando a gente lança as duas vão para o sol. Classe - Imagino que a atriz Leandra Leal, sua esposa, que co-dirigiu a peça com você, tenha ajudado muito nisso, nessa adaptação às exigências do teatro.. Lirinha – É, ela foi muito responsável por esse retorno. Eu não fazia, por exemplo, aque-

Foto: Stela Guedes

fronteira entre esses terrenos. Não é uma confusão, é uma mistura. Se, para mim, a performance é a origem de todas as manifestações artísticas estou mais sossegado em relação ao que faço.

cimento para entrar na peça em que uso a voz durante 1 hora e meia, sozinho no palco e ainda levando os shows do Cordel. Acabei tendo um problema sério na voz justamente porque aplicava técnicas do show no teatro e nada a ver. Passei a fazer outros exercícios, melhorei muito. Classe – Qual a diferença na sua relação a partir de um palco de show e um palco de teatro com o público.

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Lirinha – Olhar no olho de quem assiste. No Cordel eu vejo uma massa, uma multidão. No teatro, o mais difícil é olhar cada pessoa em um teatro mais vazio, menos gente. Demorei alguns meses para olhar no olho de alguém na platéia, hoje já consigo. Classe – O espetáculo critica a arte/mercadoria, a venda do conhecimento... Por que você quis falar disso? Lirinha - É, eu queria falar da situação difícil e conflituosa entre arte e negócio. Esse questionamento já existe em muitas obras artísticas. O que o capitalismo deixa claro é que a arte, dentro dele, apesar de sublime, não consegue deixar de ser comércio, não consegue vencer essa lógica da mercadoria. Esse é meu ponto de partida. A partir daí pensei em não tocar no assunto poesia diretamente então pensei nas profecias que representam muito na minha vida. A minha opção na poética do Cordel é uma poesia apocalíptica, embora eu a considere mesmo anárquico-apocalíptica. Isso criou uma confusão do Foto: Stela Guedes

tipo se o que eu digo no Cordel são coisas que eu determino que vão acontecer, porque é isso que se espera dos profetas.. Classe – Então, no livro, o Lirovsky, o vendedor de profecias é uma auto-ironia? Lirinha – É uma possibilidade de brincar com o personagem que o Cordel criou para mim. No momento em que comecei a estudar profecia um novo universo se abriu porque quando você escreve você vira leitor de muita coisa. A escolha do título tem a ver com a bolsa de valores. A bolsa de valores é o único oráculo que sobreviveu no capitalismo, o único profeta que esse sistema deixou viver. Os profetas passaram a ser perseguidos a partir de um determinado momento histórico, e a Igreja Católica tem um importante papel nisso. As pessoas já tiveram uma relação com os profetas como poetas que escreviam sobre o futuro e não tinham obrigação de acertar. O livro tenta devolver essa característica à profecia. Essa exigência de acertar é mais uma das esperanças humanas e de suas exigências de felicidade e o profeta paga um preço alto por isso. O livro e o espetáculo trazem referências a quem considero profetas como Heráclito, Ovídio, Platão, Antônio Conselheiro, às vezes abertamente, outras nem tanto e estão mais escondidas. Também há referências a quem não necessariamente é considerado profeta, mas já que libertei os profetas do acerto e os liguei aos poetas que escrevem sobre o futuro, tem também Karl Marx. Meu livro é marxista na essência. Classe – Quando fala do trabalho, o espetáculo reafirma sua centralidade no mundo atual... Lirinha – Eu tenho uma tia marxista, ela leu o livro e meio que criticou eu ter misturado Marx aos profetas. Mas, para mim, Marx é um profeta, até

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porque eu não acredito na profecia como revelação do melhor caminho. Para mim, um profeta é aquele que rasga o céu do amanhã com a sua palavra e Marx fez isso, rasgou o céu com todas as possibilidades que se abrem quando se rasga um céu, com todas as conseqüências disso. Marx é um profeta e não há nada de negativo nisso. Classe – Mas como você se situa nessa contradição de fazer arte num mundo em que arte quase sempre vira negócio? Lirinha - Não acredito na possibilidade de resolução desse conflito arte/mercadoria, conhecimento/mercadoria no sistema capitalista. É preciso outro sistema, outras relações sociais e humanas para chegarmos a uma arte que não seja mercadoria, a uma relação com o conhecimento que não seja de comércio. Passei minha adolescência inteira me negando a aceitar que alguém botasse preço na minha arte, o mercado faz isso. Tem gente que não tem problema com isso e vende seu conhecimento numa boa e para quem pagar melhor, mas eu continuo achando que o que eu faço é vender o que não se vende, é botar preço no que não tem preço. O que eu faço é procurar integridade no meu trabalho, corpo e mente dilatados e não devo construir algo preenchido pelo objetivo do lucro porque senão eu aniquilo o conteúdo do que eu faço. Eu não deixei de achar, mas essa contradição é própria ao mundo do capital, eu não escapo dela porque é nesse sistema que, por enquanto, vivemos. Classe - Os espetáculos têm uma marca de misticismo muito grande. Você é tão místico assim? Lirinha – Não, não sou nada místico. Sou de uma família católica. Arcoverde é uma cidade muito católica, estudei em colégio de padre e rompi com o catolicismo. Depois que se constrói uma visão crítica

do mundo é impossível não romper com o catolicismo. O catolicismo oprimiu minha cidade que tem uma população miserável que só espera um mundo melhor depois desse mundo. No Cordel eu sou envolvido pela religiosidade afro-descendente, frequentei muitos terreiros, estudo profecias, mas não sou místico. Classe – No CD “O Palhaço do Circo sem futuro”, de 2002, tem “A matadeira” que se refere à arma para destruir Canudos, mas não se pode deixar de associá-la às matadeiras que matam nas favelas cariocas, aos caveirões, por exemplo Lirinha – O lugar de Canudos era chamado de “Alto da Favela”. A palavra favela aparece nas reportagens de Euclides da Cunha e tanto é o nome da região, como de uma vegetação emaranhada, conhecida como vegetação de favela. A matadeira é o canhão usado pelo governo para destruir Canudos. Essa é a nossa referência histórica, mas claro que pode, a partir disso, se pensar nas favelas do Rio sim, não só pela violência que enfrentam como pela própria origem de seu nome. Classe – No 3º CD, “Transfiguração”, a música “Pedra e Bala (Os sertões)” diz: “ Guerra pela terra a pedra contra o tanque... na inverção dos papéis do pequeno Davi contra Golias, o Gigante como os barões das mega-corporações/Gigante como o coronelado dos grandes e pequenos sertões/Como os vários Ubiratans... com seus sanguinários batalhões”. E finaliza sem planos de final conciliador para as contradições sociais: “Desejo a pedra e a bala/E a santa paz fora do jogo.” Como veio a parceria com o rapper carioca e a decisão de falar do cel Ubiratan (já assassinado), mas que foi o comandante do massacre no Carandiru, em 1992?

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Lirinha – O Bnegão era fã do Cordel, foi a vários espetáculos e falava sobre o som. A gente fez a base da música e chamou ele, não tinha letra ainda, mas a ideia era falar da pedra contra o tanque, a intifada e todas as intifadas cotidianas. Cada um fez a parte que canta nessa música. Nesse disco tem as críticas que queremos fazer ao sistema e tem também o ponto de vista de quem está preso. A gente abre esse disco falando da prisão com o poema do Manoel Filó. Veja, quando acontece o episódio do PCC em São Paulo, a realidade de quem está preso salta fora do muro, um muro que serve justamente para que não se veja que a prisão é tratada pelo Estado como depósito de lixo humano. Eu fiquei pensando em como alguém que está preso sonha, com uma poesia de dentro da cadeia. Classe – No mesmo CD, a música “Morte e Vida Stanley” faz evidente referência ao poema dramático do João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Mas quem é Stanley? Lirinha – Stanley foi um rapaz que eu conheci em São Paulo. Ele estava trabalhando numa obra numa universidade, a Uninove. Ele veio todo

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sujo de cal e nos reconheceu, disse que era de Serra Talhada, vizinha de Arcoverde, que tocava guitarra numa banda, mas estava trabalhando em SP dia e noite, de empreitada, dormindo na obra quase como um escravo para cumprir o contrato e voltar para casa depressa. Queria encontrar o pai, que chamava Severino, e que já havia também trabalhado da mesma forma em São Paulo. Não sei por quais influências esse Severino resolveu dar o nome “Stanley” para seu filho, mas, apesar de trocar de nome, Stanley cumpria a mesma sina severina. Na música, como no poema, nasce um novo homem. E a gente canta “Vai nascer outro homem ouviram? Vai nascer outro homem e seu nome é Stanley”. Esse novo homem é necessário para um novo tempo que está surgindo porque estamos em cima dos cacos de um tempo que passou. Esse novo homem a gente não sabe direito qual é, mas ele vai nascer porque a história, com sua tarefa de construir um novo mundo, exige isso, esse novo homem, esses Stanleys. Dizem que esse sonho está morto, mas eu não acredito na morte das coisas, eu acredito na transformação, na transfiguração.

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Morte e Vida Stanley Cordel do Fogo Encantado Composição: José Paes de Lira Direção do videoclip: Ivan Mola Roteiro: Ivan Mola e Thaysa Rubiane Animação: Ivan Mola e Dênio Amorim

Na madrugada de vento seco No clarão da grande lua prateada No recôncavo do sol Na montanha mais longe do mar Numa serra talhada espinho fechado coivara caieira vereda Distância da rua Mato cerca pedra fogo faca lenha Cerca bote bala bote bala bote senha Tabuleiro tabuleiro em pó Na pedra dos gaviões Uma mulher deitada

Confira em: www.youtube.com/watch?v=t1B _g52JJvc

O nome é Maria A dor conduzindo o filho terceiro Nas garras do mundo sem guia Vai nascer outro homem Ouviram Vai nascer outro homem Outro homem O seu nome é Stanley Mais um filho da pedra dos gaviões Da montanha Do recônvavo do sol E eu aqui vou cantar Sua morte sua vida Seu retrato sem cor

Seu recado sem voz Morte e vida Stanley Morte e vida Stanley Morte e vida Stanley Morte e vida Outro homem O seu nome é Stanley Mais um filho das pedras dos gaviões Mais um homem pra trabalhar Na cidade sem sol E eu aqui vou cantar Sua morte sua vida Seu retrato sem cor Seu recado sem voz

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Filmes

QUANDO O “ENTRE” SIGNIFICA ENCONTROS Rosa Malena Carvalho Profª Adjunta do Instituto de Educação Física da UFF.

Assisto ao filme “Entre os muros das escolas”, de Laurent Cantet e sinto-me próxima a esta obra cinematográfica. O que acontece nesta escola da periferia de Paris que me é tão familiar? Revejo o filme, que não tem áudio em português e, mesmo ouvindo o francês, continuo achando que a realidade é a mesma. Movida pela estranheza de achar um “longe tão familiar”, compartilho algumas impressões e interrogações, com a premissa de que podemos revisitar e reconstruir os cotidianos em que vivemos, a partir das provocações e afetos despertados por outros lugares e pessoas. Afinal, as imagens dos filmes, como narrativas, podem se constituir em “(...) experiência de revelação e de conhecimento”1, tornando-se verdadeira “arte de reparar”, quando damos atenção e olhamos com curiosidade para o habitual e trivial, como sugere Saramago:

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara (provérbio citado por José Saramago em “Ensaio sobre a cegueira”)

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Talvez, as primeiras sensações do filme estejam impregnadas de uma visão idealizada que nós, moradores abaixo do sul do Equador, “terceiro-mundistas”, temos do chamado “primeiro mundo”. Neste processo predominante, aceitamos como inquestionável o fato de que “lá” a vida acontece, flui, os serviços e instituições funcionam, enquanto “aqui” nada tem vigor e serve às pessoas e situações. Movimento que descontextualiza os acontecimentos e, ao mesmo tempo, petrifica espaços, tempos e pessoas. Mas a escola que aparece tem muitos problemas: professores e professoras desanimados/as, alunos e alunas com dificuldades na aprendizagem. Então, podemos deduzir que um dos convites do filme é sair do lugar? Arriscamos que sim, embora, os mais apressados e/ou aflitos, possam logo paralisar em outro lugar, dizendo que “é tudo igual”, “não tem mais jeito, seja lá ou aqui!”. O filme, como nossos cotidianos na educação básica e no ensino superior, revela cenas do nosso dia-a-dia na escola, como os momentos de aulas, os intervalos, as dificuldades em dialogar com as famílias dos/as alunos/as. Porém, aguçando mais o olhar, mesmo havendo uma rotina, começamos a perceber que nenhum dia é exatamente igual ao outro – por isto, abordar o que é cotidianamente construído é

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considerar que “tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo macropolítica e micropolítica”2. É no plano do cotidiano, da micropolítica, que a ideologia, a economia, a cultura – enfim, as práticas sociais - se materializam, acontecem. Ao mesmo tempo, afirmando que queremos intensificar novos fluxos (como a cena final do filme), podemos aproximar a nossa e aquela organização social (plano da macropolítica). A história desenvolve-se em uma escola pública, na periferia de uma grande cidade, em um país organizado como o nosso: com a marca da hierarquia, da exclusão, da meritocracia, do racismo, do sexismo e de outras formas que tentam rotular e ajustar as pessoas a um tipo de vida em sociedade, na qual o maior valor é a produção e acumulação de bens. Neste tipo de sociedade, como muitos de nós em diversos momentos, o professor do filme parece um “peixe fora d`água”. Deseja ampliar o leque cultural e de leituras de seus alunos/as, admitindo as diferenças de condições sociais entre ele e os/as alunos/ as, fazendo o melhor de si, porém, sente-se sozinho para acreditar e potencializar os discentes. A escola, por exemplo, tem medo de emprestar livros novos e de autores que acham que alunos/as não são capazes de ler. Ao mesmo tempo, o professor muitas vezes se perde no diálogo com os alunos e alunas. Em um momento do filme, refere-se, com palavras ambíguas a atua-

ção das alunas representantes da turma e, em outro, quase bate nelas no meio do pátio. Como aqui, em espaços tão homogeneamente organizados, em que determinadas condutas são prescritas e previstas pela ordem instituída, como aprender a conviver com as diferenças, as diversidades, incluindo a geracional? O que também vai ao encontro das gestões dos espaços e processos escolares. Em lugares em que as hierarquias sociais predominam, as políticas educacionais são governamentais – o que sinaliza a defesa dos interesses dos grupos sociais que estão nas direções. Sem políticas efetivamente públicas, as pessoas e grupos sociais que não têm seus representantes, estão “abandonados à própria sorte” ou – como na maioria das vezes acontece – seguem modelos e padrões que desqualificam sua forma (aprendida) de ser. Neste movimento, as questões étnico-raciais ganham destaque no filme. Não só pela menção às interrogações, lutas e conflitos dos descendentes africanos (como aqui), mas por outras questões tão presentes nas cidades européias com melhores condições de trabalho, alimentação e moradia: os estrangeiros que, além da diferença étnica, estão ilegais no país. Em relação aos afro-descendentes – geograficamente, mais próximos ao continente africano do que nós – uma das cenas é contundente quanto à “diás-

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pora” africana: quando os alunos falam as redações solicitadas pelo professor e, neste momento, vão para frente da turma, no lugar que habitualmente é do/a professor/a, ganha foco “a cara e a cor” de quem sofre a violência armada e simbólica... Quanto aos ilegais no país, como no filme brasileiro “Embarque imediato”, muito mais do que mostrar as conseqüências de quem fantasiou a vida em um lugar diferente, expõe situações daqueles que sonham e problematizam as condições de existência – o que significa tensões, saudades, imprevisibilidades, não tendo a certeza de que haverá “final feliz”(como nas novelas ou filmes românticos), mas destacando os desejos e a vontade de que as situações adversas sejam modificadas. Pensar os cotidianos, portanto, é relacioná-lo com as questões estruturais da vida em sociedade. Assim, falar o que acontece “entre” os muros das escolas pode ser um novo convite: o de pensar, relacionar, aproximar os sentidos impregnados aos processos e organizações escolares com o que acontece fora dos muros das escolas – ou seja, nas relações sociais, políticas, culturais e econômicas que afetam as instituições sociais – inclusive as escolares. E muito pode ser mencionado sobre isso, como os conhecimentos do professor, a sua bagagem cultural, o que a escola considera importante e, os saberes e as experiências dos alunos e alunas. Tudo atravessado por um momento difícil que é a adolescência: outro “entre” lugar nada fácil. No filme, os próprios alunos e alunas alternam, com conflitos, medos e dificuldades estes lugares: mostram uma segurança absoluta e, em seguida, expressam o desejo de cuidado e proteção. Ignoram, afastam, algumas vezes agridem o adulto e, logo depois, demonstram grande afeto e admiração. Com tantas idéias, sentimentos, movi-

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mentos particulares e coletivos fervilhando no filme, muito mais do que um “jogo de cenas”, o filme escancara dores e alegrias que vão marcando, de forma singular, todos nós e o nosso contexto. O que indica o quanto os processos escolares transbordam o enquadramento do universo escolar – ou seja, desmedem as (tentativas de) restrições de entendimento desse sistema, como exemplo: ser formado apenas pelos conceitos e conteúdos da matemática, história, ciências, língua materna, etc Além de indicar o filme, sugiro a leitura das “Diretrizes da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, coloco como urgente que nós, professores/as, cada vez mais consideremos nossas condições do trabalho, pressionando a condução pública das políticas educacionais. Também convido a todos e todas para participar do “Cine-debate: CineMarx” – projeto de extensão que venho desenvolvendo no Instituto de Educação Física da UFF, com o objetivo de consolidar espaços lúdicos de formação, no qual as práticas corporais hegemônicas são problematizadas e o corpo seja compreendido como construção sócio-histórica.

Notas: MANGUEL. Lendo Imagens. 2ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p.29.

1

2 DELEUZE, Gilles & Guattari, Félix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol 1. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 90.

Ficha Técnica: Título original: Entre les Murs Ano de Lançamento: 2007 Direção: Laurent Cantet Distribuidora: Sony Pictures Classics / Imovision

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Nossa Resenha

um estímulo à resistência Ronaldo Rosas Reis Professor Associado da Faculdade de Educação da UFF

Uma das melhores notícias editoriais de 2009, o lançamento do livro Trabalho intensificado nas federais. Pós-graduação e produtivismo acadêmico, de Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Jr., trouxe consigo o paradoxo de ser também uma das piores notícias para a nossa categoria de professores universitários. De melhor, um denso estudo analítico e crítico acerca do trabalho dos professores-pesquisadores nas Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) em tempos recentes (1995-2005). De pior, a constatação de que a categoria caminha celeremente para um estágio de vida profissional e pessoal coisificado, sendo que talvez, para alguns, sem retorno. Como sugere o sociólogo Francisco de Oliveira no prefácio da obra para aqueles que se recusam a olhar para as vísceras mercantilizadas da universidade, trata-se de uma oportunidade singular para recuperarem a visão. Para ler de um único fôlego. Muitas (e graves) razões justificam o

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investimento de quatro anos de uma investigação extensa cujo livro em questão constitui um “novo passo” de um ciclo de estudos sobre a educação superior em nosso país. Dentre tantas diria que uma das razões centrais é a evidente carência de estudos que revelem as entranhas da universidade, a despeito da importância fundamental que ela tem historicamente assumido na vida das sociedades em toda parte. De fato, considerando especificamente a problemática das relações sociais de produção do conhecimento científico e cultural, nestas incluídos os aspectos relativos à produção da subjetividade do trabalhador docente, raros são os investimentos em pesquisa que se debruçam sobre o sentido e o destino da universidade olhando para o seu próprio interior. Nas palavras de seus autores, privilegiou-se a abordagem da instituição universitária “[...] como resultado do próprio processo histórico” no qual ela constrói e incorpora uma cultura mediante o que passa a se orientar “[...] na adesão a políticas oficiais, normas e projetos [reproduzindo] essa cultura, atualizando-a, ao mesmo tempo em que transforma o seu processo institucional” (p.20). Trata-se, assim, de uma obra ampla cujo primeiro passo foi dado antes mesmo do presente lançamento e que nele não se esgota. Isto é, conforme explicam Valdemar Sguissardi e João dos Reis na sua introdução, se a publicação em 1999 (Edusf) do livro Novas faces da educação superior no Brasil (reeditado pela Cortez em 2001) representou o passo anterior, o passo adiante será dado, em data ainda não definida, com uma nova publicação centrada

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nos sentidos do trabalho do professor na universidade pública, uma das dimensões do objeto da investigação1. Partindo da problematização da reforma da educação superior que teve início em meados dos anos 1990, os autores procuraram apreender a relação entre as mudanças econômicas e do Estado brasileiro e o trabalho dos professores na universidade. Nesse sentido, o estudo teve como universo de análise 15 Ifes da Região Sudeste, tendo como amostra sete delas, conforme a seguinte relação: Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal Fluminense (UFF); Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Universidade Federal de Uberlândia (UFU); Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Assim, Valdemar Sguissardi e João dos Reis examinaram de que modo essas Ifes colocaram em prática as diretrizes e metas oficiais da reforma; os traços mais significativos resultantes desse processo e ao mesmo tempo constituintes da nova identidade institucional; as mudanças ocorridas no trabalho do professor em razão das mudanças no seu cotidiano; como o professor reage a essas mudanças e quais as consequências dessas mudanças na sua vida. Tomando de Michalet e de Chesnais a categoria analítica mundialização para fundamentar e orientar o estudo sobre a intensificação/precarização do trabalho do professor-pesquisador das Ifes (mas não apenas), Valdemar Sguissardi e João dos Reis defendem a tese de que experimentamos na universidade um novo tipo de

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sociabilidade institucional, isto é, a sociabilidade produtiva. Para os autores a mundialização é entendida como um processo em que a soberania econômica de uma empresa multinacional se sobrepõe “[...] a de um Estado nacional e suas instituições republicanas” (p.27) e é precisamente nesse sentido que eles apreendem a importância dada à reforma da educação superior no país iniciada no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e continuada no de Lula da Silva. Na prática a reforma consubstanciou estrategicamente diferentes ações do Estado com o intuito de habilitar as multinacionais para a obtenção de vantagens tais como “[...] ‘sugar’ tecnologias e inovações tecnológicas das próprias universidades federais com indução financeira por meio de recursos originários do fundo público estatal (p.31)”. Indo além, Valdemar Sguissardi e João dos Reis dão a palavra aos próprios professores-pesquisadores das sete Ifes relacionadas para apreender como estes se vêm/sentem/reagem nesse novo contexto. Dizer que o quadro pintado pelos professores sobre a mercantilização da prática universitária é dramático é dizer apenas meia verdade. A verdade inteira é que ele não é somente trágico na medida do aumento da cobrança produtivista, da competição entre pares, da omissão político-institucional, do incremento de aulas remuneradas em cursos de especialização cobrados, do abandono da ética e do crescimento do amoralismo do tipo “[...] você põe o meu nome no seu artigo e eu ponho o seu no meu e assim vai” (p.160), como também é trágico porque muitos professores-pesquisadores sentem-se verdadeiramente integrados e satisfeitos nessa condição de “empreendedores” associados do sistema.

Por felicidade e acaso tive a oportunidade de assistir a palestra que João dos Reis proferiu em meados de dezembro na Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Na ocasião ele cumpria o compromisso que assumira juntamente com Valdemar Sguissardi de oferecer um retorno às Ifes e aos seus professores por eles entrevistados. Logo no início da palestra João dos Reis recordava que uma das motivações que o levara à realização da pesquisa ainda na década de 1990 era bastante prosaica. Ou seja, há muito que os colegas da sua universidade não tinham mais tempo para o happy hour. Cá com os meus botões pensei que há muito não temos tempo para mais nada. A nova sociabilidade produtiva resultante de ações políticas induzidas, gerenciadas e controladas pela Capes e pelo CNPq consolidaram em cada um de nós o escopo gerencial do trabalho do professor-pesquisador das Ifes. O professor-pesquisador das Ifes teme o tempo livre e o acaso, dada a sua incapacidade de gerenciá-los. Imerso no trabalho prescrito e no gerenciamento da sua produção resta ao professor-pesquisador se excitar competindo com os colegas sobre o tamanho do seu Currículo Lattes.

Nota: Segundo os autores trata-se de pesquisa ainda em curso sob a responsabilidade de Silva Jr.. Ver nota 1, p.18.

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Ficha Técnica: Título: Trabalho intensificado nas federais. Pós-Graduação e produtivismo acadêmico. Autores:Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Júnior. Editora: Xamã. Ano da edição: 2009.

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Histórias de Vida

O bom humor e a luta de Ismênia de Lima Martins Foto: Stela Guedes

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A professora Ismênia de Lima Martins está perto de completar seu jubileu de ouro na UFF. Professora do departamento de História, ela é uma referência quando o assunto é História do Brasil. No entanto, os méritos de Ismênia na universidade vão muito além da questão acadêmica pura e simples. Sempre envolvida com as questões políticas da UFF, ela foi fundadora da ADUFF, candidata à reitoria da universidade por duas vezes e pró-reitora de extensão, para falar de algumas poucas coisas. Ismênia entrou na universidade em 1963 como estudante de História, após ter abandonado a graduação de Sociologia e Política, que cursava, até então, na PUC. Bem-humorada, ela explica o porquê da mudança de curso: “Me casei com 19 anos e, naquela época, não tinha ponte nem pílula. Então, em 20 meses de casada, eu já tinha dois filhos, de modo que se tornou impraticável ir para a PUC todos os dias”. Graças à impossibilidade de conciliar a sua vida privada com os estudos na PUC, Ismênia acabou vindo parar na então recém-fundada UFF, não no curso de Ciências Sociais, mas no de História, que já gozava de um certo prestígio. Ela fez questão de registrar que ingressou na universidade antes do sistema de créditos, o que foi uma grande felicidade porque sua turma era ótima. Nesse período, Ismênia fez grandes amizades, estudou e ensaiou seus primeiros passos na militância política através daquilo que ela mesma definiu como um “namoro com o PCB”. Uma vez formada, Ismênia, que era uma das melhores alunas de sua turma, anseava por uma vaga no corpo docente da UFF. Naquea época, ainda não havia concursos públicos. O que em geral acontecia, explica, era que os melhores alunos eram convidados pelos professores da universidade para trabalharem como auxiliares de ensino. Era a porta de entrada na carreira docente. Apesar de ter

sido convidada por um professor para ser auxiliar de ensino, ela não iniciou sua carreira no magistério a partir dali em razão de algumas resistências que havia ao seu nome no interior do departamento de História. Vista como alguém que criticava muito os professores e que, pela sua boa condição financeira, não precisava trabalhar, sua vaga na UFF acabou sendo oferecida a outra pessoa. Ismênia, no entanto, não desanimou. Ao invés disso, fez doutorado em São Paulo, enfrentando todo o tipo de restrições por parte da família. Em suas próprias palavras, “para uma família conservadora como a minha, já que eu era uma mulher casada, eu não precisava estudar mais. As mulheres da minha família, em diversos momentos, foram muito mais um instrumento do machismo do que os homens. De qualquer maneira, eu enfrentei tudo isso”, lembra. A recompensa viria logo a seguir: em 1970, Ismênia foi aprovada no primeiro concurso público realizado pelo departamento de História da UFF. Concorrendo, inclusive, com diversos de seus ex-professores, ela foi aprovada em primeiro lugar e começou a lecionar História do Brasil na UFF. A professora conta que, também por essa época, o programa de pós-graduação em História da UFF teve início. Eram os anos de chumbo da ditadura militar. Apesar da difícil conjuntura vivida pelas ciências sociais por um lado, Ismênia explica que também houve avanços importantes. Isso porque os militares, ao incentivarem a criação de programas de pós-graduação nas chamadas “áreas duras”, acabaram criando um vácuo que permitiu a abertura de cursos de pós também na área de ciências humanas. No bojo da criação do programa de pós em História da UFF, foram trazidas para a universidade professoras que tinham sido aposentadas pela ditadura, como Maria Yeda Linhares e Eulália Lobo. Desse modo, antes da anistia, essas professoras já estavam

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contratadas pela UFF e deram início ao programa de pós-graduação em História.

No Movimento Docente Levada a participar do movimento docente pelos professores Francisco Soeiros e Helena Müller, acabou exercendo um importante papel de pioneirismo e liderança que ficaria para sempre marcado na História de nossa seção sindical. Ismênia foi fundadora da ADUFF, tendo sido a primeira vice-presidente da entidade em 1978. Em suas duas gestões à frente do sindicato, Ismênia enfrentou enormes problemas da categoria, que acabaram levando à grandes greves. Logo após ser empossada presidente da ADUFF, na segunda eleição de diretoria realizada, ela dirigiu uma assembléia geral convocada pela entidade no hospital universitário. Ismênia ressaltou o grau de mobilização docente alcançado na época: “Nós decretamos a greve naquela assembléia com a presença de quatro ex-reitores da universidade votando pela deflagração da greve. Por que houve tanta mobilização? De repente, o conjunto dos professores se mobilizou para enfrentar a ditadura? Não. Nós tínhamos um enorme problema corporativo: não tínhamos um quadro de carreira definido. Isso para não falar na questão dos colaboradores, contratados ao longo da ditadura militar para tampar os buracos de uma expansão que era realizada sem concursos públicos suficientes. Acredito piamente que, naquele momento, eu fui apenas um instrumento, porque a conjuntura era altamente favorável: de um lado, havia um ministro general querendo caracterizar uma fase de abertura política e, do outro, a categoria precisando de tudo”. Graças à mobilização alcançada na universidade, a ADUFF foi a primeira entidade sindical a ser recebida por um ministro militar.

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Algum tempo depois, Ismênia seria candidata a reitora da universidade num pleito em que, só do departamento de História, havia três concorrentes. Ela foi a mais votada entre os estudantes, obtendo cerca de 80% dos votos desse segmento, mas isto não foi suficiente para que saísse vitoriosa da eleição. Algum tempo depois ela tentaria novamente uma nova eleição para a reitoria, agora pela última vez – e, de novo, sem sucesso. Entre uma campanha e outra, Ismênia acabou sendo nomeada pró-reitora de extensão da universidade. Seu primeiro ato no cargo foi pedir aos funcionários de cada setor da extensão que se reunissem e indicassem as suas chefias. Depois disso, chamou cada funcionário em sua sala e perguntou a todos o que gostariam de fazer no setor, atendendo sempre que possível os pedidos. Nas palavras de Ismênia, “administrar é descobrir os talentos das pessoas e criar oportunidades para que eles se realizem”, garante. Aposentada há 14 anos, Ismênia nem pensa em se desligar da universidade apesar dos problemas de saúde que tem enfrentado. Até hoje ela coordena diversos projetos de pesquisa do departamento de História. Nesse momento, tem se ocupado particularmente do estudo da imigração no Brasil. Ao encerrar a conversa com a revista Classe, Ismênia deixou uma reflexão que sintetiza sua personalidade e visão de mundo: “Não escolhi minha família e nem origem social. Amo muito a minha família, mas eu não tive escolha. No entanto, lutar pela igualdade social, pela divisão das riquezas, pelo acesso de todos a uma boa qualidade de vida é uma opção. Eu não escolhi a minha cor: eu nasci branca. Mas escolhi ser mãe de uma negra. Eu não escolhi ser mulher, mas escolhi lutar por melhores condições de vida e trabalho para as mulheres”.

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Poesia

Manoel Filomeno de Menezes, Manoel Filó ou Manoel filósofo, nasceu no dia 13/10/1930, no então município de Afogados da Ingazeira, no interior de Pernambuco. É um dos poetas mais declamado nos espetáculos e músicas do Cordel do Fogo Encantado. Lirinha, o vocalista da banda, tem nele uma herança abraçada. Conhecido como “o cantador sem viola”, é um dos 12 filhos do agricultor José Filomeno de Vasconcelos, ou José Filó, poeta repentista responsável por transmitir essa paixão aos descendentes. Segundo Zelito Nunes, Manoel Filó foi empresário bem sucedido no ramo de autopeças, “mas a sua natureza de poeta, não lhe permitia conviver com o espírito do lucro, vivia distribuindo o que juntava, com os mais necessitados ou não, por isso a sua vida foi toda de altos e baixos até o fim quando partiu em 2005, levando somente uma alma de cara limpa, as mãos vazias e um coração pleno de bondade e poesia”, afirma. É de Manoel Filó, a poesia “Tlank” que abre o 3º CD do Cordel do Fogo Encantado (Transfiguração), reproduzida aqui. E mais um verso, para alargar a vontade de conhecer o poeta.

Tlank A prisão é sinistra, amarga e fria dum velório tem pouca diferença não conheço quem vá pedir licença pra entrar num portão duma cadeia só à noite, depois que a lua alteia aparecem sinais de claridade uma sombra distante ocupa a grade limitando a visão do indeciso u’a gota de pranto molha o riso quando o preso recebe a liberdade. ...................... No sertão tem uma aranha De uma qualidade escassa Que tapa a sua morada Com lã da cor de fumaça O tecido é tão perfeito Que a chuva bate e não passa.

Fonte: http://www.interpoetica.com/ figura_da_vez5.htm

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Diálogos com a Cidade

Serra da Tiririca:

uma área de preservação ambiental cheia de conflitos Texto: Carolina Barreto da Silva Gaspar e Fotos: Stela Guedes Caputo

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Situado em uma região extremamente cobiçada pelos poderosos interesses da especulação imobiliária, o Parque Estadual da Serra da Tiririca (PESET) é uma área de preservação ambiental de mais de 2 mil hectares encravada em plena Região Oceânica de Niterói. São muitos os conflitos envolvendo comunidades tradicionais, ambientalistas, grileiros e construtoras. Nem mesmo a transformação da área em Unidade de Conservação foi capaz de arrefecer as tensões. Na terceira edição de nossa seção “Diálogos com a cidade”, abordaremos essa realidade complexa da Serra da Tiririca com o objetivo de chamar a atenção para o que vem acontecendo naquela região, que muitas vezes acaba tendo pouca visibilidade na grande mídia.

Ataque contra as comunidades é antigo Contar a história do PESET é contar a história da comunidade da Serra da Tiririca. Aqueles que residem hoje dentro do parque são, em sua maioria, descendentes de pescadores tradicionais, colonos, ex-trabalhadores da Fazenda Engenho do Mato e pequenos agricultores. É esta a origem dos sitiantes que até hoje habitam o local. Não é de hoje que esta comunidade sofre com os ataques de grileiros e da especulação imobiliária. Após a falência da antiga Fazenda Engenho do Mato, grande parte de seus trabalhadores – inclusive ex-escravos – continuou morando na região e cultivando a terra por anos e anos. No início da década de 60, porém, a loteadora Terrabraz comprou aquela massa falida e buscou

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expulsar os trabalhadores que lá viviam através do incêndio de plantações e de estratégias de intimidação. A situação chegou a tal ponto que, em 1962, o Estado criou o Plano de Ação Agrária e dividiu a terra em lotes que foram distribuídos às famílias dos trabalhadores. Esta pequena reforma agrária só foi possível graças à luta e resistência da comunidade da Serra da Tiririca. O sitiante Renato da Costa, 42 anos, é prova viva dessa história de resistência. Descendente de escravos que trabalharam na Fazenda Engenho do Mato, ele guarda em seu sítio, conhecido como “Quilombo do Grotão”, uma série de documentos relacionados ao Plano de Ação Agrária de 1962. Num desses documentos, consta a relação dos trabalhadores que receberam do Estado a posse de lotes de terra naquele ano. Nessa relação, há três parentes de Renato: Adalício Lisboa da Costa (tio), Manoel Lisboa da Costa Filho (pai) e José Gomes (avô materno). Sua família vive na Serra da Tiririca há pelo menos cinco gerações. O Plano de Ação Agrária, porém, não pôs fim à ganância da especulação imobiliária na região. Com a ponte Rio-Niterói e o maior crescimento da cidade, principalmente da Região Oceânica, as pressões voltaram e muitas famílias locais passaram a ser constantemente oprimidas para que deixassem suas terras, seja vendendo ou mesmo sendo expulsas por algum grileiro que, mediante documentos falsos ou até de arma em punho, se dizia o “dono” do local. Alguns sitiantes acabaram não resistindo a essa pressão, o que ajuda a explicar a existência de enormes condomínios na região, como o UBÁ Florestas, situado no Engenho do Mato, e o UBÁ Itacoatiara. Ambos foram construídos em

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Renato Costa com documento que comprova a posse dos lotes por sua família

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locais antes ocupados por pequenas famílias de agricultores, sitiantes ou pescadores. Apesar da pressão, muitas famílias resistiram e lutaram pelos locais de moradia onde permanecem até hoje. De acordo com o advogado Fernando Tinoco, membro da Associação dos Sitiantes da Serra da Tiririca (ASSET), foi essa luta que impediu que os condomínios de luxo invadissem ainda mais a área da serra. “Em 1991, quando ambientalistas tiveram a idéia de criar o PESET, este local estava preservado graças a essa resistência. Só por isso foi possível a criação do parque, porque ainda havia o que proteger”, afirma o advogado.

A criação do PESET No início da década de 90, ambientalistas e associações de moradores se mobilizaram pela criação do Parque Estadual da Serra da Tiririca. Em 1991, um decreto do governo estadual cria o parque, porém ainda sem qualquer definição dos seus limites. Em 1993, por força do decreto 18598, o PESET ganha limites provisórios com a criação da chamada “zona provisória de uso especial”, que abrangia uma área de cerca de 2400 hectares. Essa definição não foi, entretanto, capaz de conter o avanço da especulação imobiliária, que seguia acontecendo de maneira cada vez mais predatória. Infelizmente, o poder público pouco fez para evitar que isto ocorresse. A Lei 5079, sancionada pelo governo estadual em 2007, fixou os limites definitivos do PESET, tendo diminuído sua área em relação ao que fora

estabelecido em 1993: o parque passava agora a ter uma área de 2077 hectares. Um ano depois, novo decreto integraria ao parque uma área de 181 hectares no entorno da Lagoa de Itaipu. Ainda assim, no cômputo geral, percebe-se que houve uma diminuição da área que integrava o PESET. Essa diminuição foi operada ao gosto da especulação imobiliária, que já havia construído condomínios em diversos locais situados no interior dos antigos limites do parque. O que fez o poder público diante disso? Corroborou o criminoso avanço das construtoras sobre áreas de preservação ambiental através da aprovação da Lei 5079. Num contexto como esse, seria de se esperar que ambientalistas e comunidades tradicionais estivessem atuando de forma integrada para conter o avanço da especulação imobiliária na região.

Condomínios ocupam áreas que antes pertenciam a agricultores, sitiantes e pescadores

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No entanto, também se observam conflitos entre esses dois grupos no que se refere à preservação do meio ambiente na Serra da Tiririca. Conforme explica Fernando Tinoco, existem, no interior do movimento ambientalista, duas grandes vertentes de pensamento: o preservacionismo e o conservacionismo. Em síntese, os preservacionistas acreditam que o ambiente natural deve permanecer intacto, Fernando Tinoco sem nenhum tipo de intervenção humana. Por isso, defendem a remoção das pessoas que vivem em áreas de Unidades de Conservação. Enquanto isso, os conservacionistas defendem a proteção da natureza a partir de uma utilização sustentável dos recursos naturais por parte do homem. Desse modo, acreditam que se uma comunidade conseguiu viver um bom tempo dentro de uma Unidade de Conservação sem afetar demasiadamente o meio ambiente, não há justificativa para retirá-la desse local. Para o advogado, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), órgão criado pelo governo estadual para trabalhar na proteção do meio ambiente, tem hoje sua direção hegemonizada pelos preservacionistas, que entendem que

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uma Unidade de Conservação não é compatível com a ocupação humana. Isto evidentemente gera conflitos com as comunidades tradicionais que vivem no PESET. “Esses ambientalistas são, além de tudo, extremamente contraditórios. Para eles, atividades como o montanhismo e o surfe podem ser praticadas no interior do parque. Já morar aqui traz impacto negativo para o meio ambiente. Eles se esquecem de que esta área só foi preservada até hoje graças às lutas dessas comunidades tradicionais que aqui vivem há tantos anos. Agora, está sendo discutido no INEA o plano de manejo do PESET. Eles criaram um grupo de trabalho de uso e ocupação tradicional do solo, o que é um avanço, mas nós sabemos que os preservacionistas são maioria na direção do INEA, o que é um problema. Acabam sempre dando um jeito de criar termos de ajustamento de conduta que geram restrições descabidas às atividades dos moradores, como aconteceu no Morro das Andorinhas”, argumenta. Renato da Costa, do “Quilombo do Grotão”, constata com tristeza: “quando a criação do PESET ganhou o apoio da UNESCO, passaram a descartar os moradores que tanto lutaram pela preservação deste espaço. Nossa luta hoje é para permanecer, a relação que temos é uma relação histórica com a Serra, com a terra, não queremos sair. Aqui no Quilombo, temos promovido algumas atividades com o objetivo de gerar uma ocupação cultural da área como rodas de capoeira e de samba nos finais de semana. Esses eventos são importantes porque congregam a comunidade e mantêm vivas as nossas tradições”, diz o morador.

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A história do sitiante Davi Côrtes dos Santos: um conflito típico da região Os sitiantes da Serra da Tiririca estão mobilizados em torno do problema vivenciado por Davi Côrtes dos Santos, cuja família reside na região há mais de um século. Ninguém menos do que a poderosa família Cruz Nunes deseja desalojá-lo judicialmente de seu sítio e do Armazém Fiel, que ele herdou de seu pai. Davi diz que há

duas ações impetradas na justiça para isso: uma de reintegração de posse e a outra de despejo por falta de pagamento. “Rodrigo da Cruz Nunes alega que seus avós franquearam aos meus a ocupação do sítio e do armazém, pelas quais pagavam um aluguel. Nós teríamos interrompido o pagamento desse aluguel, daí a ação de despejo. Isso é um absurdo, pois nem meus pais nem meus avós jamais pagaram aluguel aqui. Tanto o armazém quanto o sítio são nossos”, explicou Davi. Fernando Tinoco diz que a ASSET já tomou providências em defesa do sitiante, como a tentativa de tombamento do armazém, o que deve diminuir a cobiça da especulação imobiliária por um terreno numa área valorizada. Motivos para o tombamento não faltam, conforme parte do conteúdo de moção subscrita por uma série de entidades que compõem o Conselho Consultivo do Parque Estadual da

Davi Côrtês em frente ao Armazém Fiel. A é casa centenária e, em tempos antigos era o caminho de tropeiros que cruzavam Niterói vendendo banana, aipim, legumes e matérias-primas da serra da Tiririca. Compõe o acervo histórico, cultural e etnográfico das comunidades tradicionais que hoje habitam a região de Itaipu. O Armazém Fiel é um valioso patrimônio da memória brasileira. Foto menor: Helmut Heske. Acervo de Cassio Garcez.

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PL 2430/2009: em defesa das lagoas de Niterói

Até a Igreja Nossa Senhora da Conceição já foi ameaçada de demolição

Serra da Tiririca: “O Armazém Fiel, centenário imóvel de pau-a-pique e estuque, situado ao lado da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, é um dos mais antigos redutos de sitiantes tradicionais da Serra da Tiririca. Foi ponto principal de passagem de diversas tropas de burros que cruzavam a cidade até meados da década de 1960, vendendo banana, aipim, diversas frutas, legumes e matérias primas. Assim, o mesmo é um patrimônio histórico, cultural e social de grande importância para a Região Oceânica, devendo ser por isso preservado e, se possível, restaurado.” Um abaixo-assinado em defesa da causa de Davi já conta com mais de mil assinaturas. Além disso, planeja-se a realização de atividades culturais no Armazém Fiel com o objetivo de dar maior visibilidade à questão e aumentar a mobilização da comunidade.

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O entorno da Lagoa de Itaipu, que até o início de 2009 fazia parte do PESET, também é alvo da cobiça das construtoras que, através de uma ação judicial, derrubaram o decreto que protegia a área até então. Diante dessa situação, o PL 2430/2009, de autoria dos deputados estaduais Marcelo Freixo (PSOL), Rodrigo Neves (PT) e Luiz Paulo (PSDB), pretende ampliar novamente a área do PESET até o entorno da Lagoa de Itaipu. Este projeto de lei já deveria ter tramitado na ALERJ, mas infelizmente está sendo segurado pelo presidente da casa, Jorge Picciani (PMDB). Para denunciar a manobra, o deputado Marcelo Freixo já fez um discurso enfático no plenário da ALERJ, acusando Picciani de atrasar a tramitação do PL a pedido de Jorge Roberto Silveira. O prefeito de Niterói é conhecido por sua amizade com os agentes da especulação imobiliária na cidade. Neste momento, os movimentos sociais de Niterói se mobilizam para exigir a aprovação do PL 2430/2009 tão logo termine o recesso parlamentar na ALERJ.

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Hiperfocal

O sentido do ato de fotografar para mim está nos movimentos sociais Samuel Tosta No sol, na chuva, nos grandes ou pequenos atos, onde estiver o movimento social organizado sempre o vemos. Mochila nas costas, cabelos compridos (embranquecendo enquanto corre atrás das mobilizações). Samuel Tosta, ou Samuca, nasceu em março de 1957 e, no início da década de 90, quando era funcionário do departamento Rural de uma entidade sindical, começou a fotografar. “Foi o movimento de luta pela terra que me levou a fotografar. Nessa época fiz minhas primeiras fotografias, mesmo como principiante e de forma não profissional. O importante era retratar as ações e a realidade dos trabalhadores rurais sem terra e, mais que isso, retratá-los a partir de um olhar que os colocasse como sujeitos conscientes de suas ações, contrapondo o olhar das classes dominantes”, diz Samuel, que imaginava essa iniciativa como uma atividade passageira, um desejo militante de contribuir para o avanço da luta. “Aos poucos, a dedicação à fotografia foi suplantando as demais e se transformou na principal: eu queria ser fotógrafo e fo-

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tografar os movimentos sociais”, definiu. Para isso fez alguns cursos e realizou trabalhos em parceria com a agência de fotografia Imagens da Terra, coordenada pelo fotógrafo João Roberto Ripper. Na central sindical onde trabawlhava foi transferido para o departamento de imprensa, passando a cobrir o cotidiano do movimento sindical e social no Rio de Janeiro. “O sentido do ato de fotografar para mim está

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nos movimentos sociais, onde a fotografia, mais do que nunca, narra e não apenas ilustra. Ela é um documento, uma ferramenta mobilizadora, é história também”, afirma Samuca que atualmente trabalha como freelancer para vários sindicatos e movimentos. Para ele, é difícil escolher os momentos marcantes de sua vida com a fotigrafia. Mas cita os fatos que ocorreram durante as comemorações oficiais dos “500 anos de Brasil”, em Cabrália, quando, em contraponto a estas, os movimentos sociais criaram o “Brasil outros 500”, contestando as comemorações oficiais. “Dois aspectos me chamaram a atenção: um foi a capacidade de mobilização envolvendo setores tão diversos, como sindicatos, estudantes, índios, movimento negro, etc...; e o outro foi a reação dos governantes que, com tropas de choque da PM, passaram um dia inteiro sitiando, provocando e agredindo os militantes com bombas, cassetetes, gás lacrimogêneo e tiros para o alto..., isso tudo debaixo de uma tremenda chuva, não foi fácil fotografar”, lembra. Outra situação marcante foi conhecer de perto a realidade dos sertanejos em época de seca, durante uma matéria que fez no sertão da Bahia e Pernambuco, no final da década de 1990. Ou, recentemente, a luta dos povos e comunidades do Rio São Francisco que se contrapõem à transposição. Samuca também evidencia a criminalização dos movimentos sociais. “Em dezembro de 2008, quando documentamos a violência da polícia do Rio de Janeiro durante uma manifestação contra o leilão do petróleo, foi uma verdadeira caçada aos manifestantes, muitos deles foram agredidos e tiveram de ser medicados. Outros foram espancados e presos, só sendo liberados mediante pagamento de uma fiança de valor extremamente alto”. Samuel diz que não dá para falar de todas as lutas. É verdade, na mesma medida, não dá para dizer aqui, a imensa importância de seu trabalho.

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Na página 82, a patir do alto: Seca da década de 90 Família em busca da água, arredores de Canudos, sertão da Bahia. Agosto 1997. Pequeno cultivo, SobradinhoBA. Jan 2008.

Na página 83, a patir do alto: Interior de uma casa no sertão. Serra do Inácio, município de Santa Filomena-Pe. Agosto 1998. PMs caçam militantes que se manifestavam contra os leilões do petróleo. Rio de Janeiro –RJ. Dezembro 2008.

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A partir do alto: Elza Oliveira da Silva vive a poucos quilômetros do açude de Sobradinho, 10 vezes maior que a baia de Guanabara, se quiser água tem que comprar do caminhão pipa. BA-Janeiro 2008. PMs caçam militantes que se manifestavam contra os leilões do petróleo. Rio de Janeiro –RJ. Dezembro 2008.

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