XXXIV Edição Revista RESSONÂNCIA

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XXXIV

DEZ 2021

ESTÁS ON?


Einstein dizia que “O espírito humano precisa de prevalecer sobre a tecnologia”, mas numa época de crescente necessidade e desenvolvimento tecnológico torna-se difícil fugir à vaidade e ao vício tentador das diversas e apoteóticas possibilidades oferecidas por esse universo paralelo que é a Internet. Será possível tornar a viver sem a influência dos media, que todos os dias nos fazem companhia e nos moldam de formas que ainda nem descobrimos? Numa realidade onde a informação circula a velocidade supersónica, a escolha do que é correto ou errado oscila num espectro difícil de definir e a discussão que se gera não olha a distâncias, idades ou conduta moral. Um tweet, um insta story, uma publicação, um like podem mudar a vida de alguém numa questão de segundos. A genética é a base da vida, mas a essência do ser humano é moldada pelos contextos que o rodeiam. Se este é o nosso contexto, quem somos nós para lá das redes sociais? Quem somos nós fora dessa bolha tecnológica que nos ensinou tanto e condicionou ainda mais? No que toca à nossa estimada saúde, é notável o progresso na facilidade ao acesso de informação, na prestação de serviços e no contacto médico-doente, mas, como em tudo, há sempre um lado negativo que deve ser discutido e aprimorado. E discutido será certamente! Ambicionamos, com esta XXXIV Edição, induzir reflexões críticas sobre o poder das redes sociais, Media e restante realidade online no nosso dia-a-dia e as consequências por trás da vastidão que a Internet nos disponibiliza! Dedicamos assim, este trabalho aos que sonham além da virtualidade da tecnologia e continuam a preservar uma mente realmente criativa e crítica, com a capacidade de separar o real do virtual. Deixamos também um agradecimento a todos os colaboradores e, em especial, aos escritores desta edição que se juntaram à RESSONÂNCIA na busca pela resposta à pergunta: Estás ON?

Catarina Monteiro & Pedro Freitas Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA


CRÓNICA 5

Acordei, Estranhei, Prossegui

CABEÇA NAS REDES Influencing Influenza

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Mo n st ro s At rá s d o Ec rã — E xa g e ro o u Re a l i d a d e?

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O Algoritmo Do Algoritmo, Prisão É

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GRANDE REPORTAGEM 12

A Era d a (d e s) i nfo r m a ç ã o

SAÚDE VIRTUAL Desrotina a Inércia

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Mo n st ro s At rá s d o Ec rã — E xa g e ro o u Re a l i d a d e?

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VI CONCURSO LITERÁRIO U n i ã o E u r o p e i a d e Va l o r e s — U m a L u t a p o r D i r e i t o s Adquiridos

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CULTURA Our Social Dilemma

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“ N o O n e i s Ta l k i n g A b o u t T h i s ” – C r í t i c a

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Now Streaming

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CRÓNICA Mais Uma Hora

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ACORDEI, ESTRANHEI, PROSSEGUI

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CRÓNICA

Mariana Bonito

ACORDEI, PROSSEGUI Acordei. Abri os olhos a custo contra o peso do sono sobre as pálpebras e, de imediato, o meu braço ainda encortiçado pelas horas mal dormidas ergueu-se na direção da minha mesa de cabeceira. Ali, no seu lugar noturno cativo, está o ecrã luminoso retangular que me permite o contacto com o mundo: o meu telemóvel. A luz azul é a primeira que queima a minha córnea pela manhã. É esta a minha rotina: Ligar a Wi-fi e descobrir o que se passou no mundo durante os momentos em que nada se passou comigo. Há quem diga que para este cérebro madrugador vulnerável, tal hábito moldará o dia. Aparentemente, o excesso de informação ou uma má notícia pela manhã podem afetar o meu humor… mas isso não me aflige… não o suficiente para mudar. Mais uma vez, hoje, deslizo o dedo sobre a tela, mas… não encontro no seu lugar o ícone que inicia o meu dia… onde está a Wi-fi?… usarei… dados móveis, talvez? Nada. Desapareceram ambos, parece que hoje não há internet. Renderam-se também à ausência todos os ícones que dela necessitariam: não tenho Chrome, E-mail, Whatsapp, nada de Spotify, Instagram ou até Facebook (se é que ainda alguém usa isso). O dia começa como uma tela em branco. Estranhei, mas prossegui. Tenho de admitir que fazer a minha rotina sem a distração da vida dos outros é complicado. Sentir o peso da minha própria vida pela manhã, isso sim afeta o meu humor. Nem uma boa música no Spotify para fingir que não me lembro da dor de viver, para desligar o cérebro e no duche lavar a emoção do corpo. Estou só, só comigo. Os olhos ardem-me, um líquido mais quente que a água do duche escorre-me pela face. Finjo que não é salgado, finjo que foi do shampoo. Ignorando a minha mente, estranho este modo de viver, mas prossigo. No metro, ninguém olha para o telemóvel. Como eu, sem internet, nada lá devem ter que os motive a fazê-lo.

, Algumas pessoas até leem livros e jornais nesta viagem, parecem alimentar a alma e não distraí-la… Estranho, mas prossigo. Chego à faculdade e não tenho temas de conversa préplaneados com ninguém, nada sei sobre o que fizeram ontem, nada eles sabem de mim… Aproveito para falar com quem nunca tinha falado, aprendo novos nomes e não os pesquiso nas redes sociais para saber o que gostam, o que fazem… Pergunto. Olham para mim e esperam conhecer-me. Julgam com os olhos de quem nunca viu um único comentário por que se guiar. A vida é leve. As conversas fluem, ninguém se distrai porque o telemóvel vibra, se preocupa com os comentários na foto que publicou ontem, ou fica irrequieto porque um like surgiu. Estamos todos ali, mesmo ali. Estamos tão presentes que até reparam que os meus olhos estão ainda inchados… se calhar também sabem que não foi o shampoo. Estranho, mas prossigo. A caminho de casa comprei o jornal, e aí percebi, que afinal a vida não é tão leve assim, afinal o mundo continua a ruir. Mas hoje, até aqui, nada soube sobre isso. A informação que a mim chega, chega somente por entre estas páginas, pela televisão que em casa me espera, ou pela boca de quem por mim passa. Estamos todos offline. Mesmo se quisesse saber mais agora, não conseguiria, mas a vida hoje é leve porque não há internet. E não sei se não prefiro assim… Sei que pelo menos não recebi nenhum pedido de amizade de um bote, nenhum e-mail de spam para ganhar um cruzeiro, não vi hoje um único comentário néscio sobre o 5G da vacina… A vida é simples, a informação tem um limite. Haverá mais felicidade nesta ignorância? Achava que era a ausência da internet que esta manhã me pesava na alma, mas agora percebo que a alma já outrora tinha este peso, só há muito não parava para colocar as emoções na balança… é mais fácil continuar a deslizar sobre a tela até adormecer…

Acordei, deslizei o meu dedo sobre a tela, afinal havia internet. Estranhei, mas prossegui.

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CABEÇA NAS REDES

Raquel Pires

O

telemóvel toca para assinalar a mais recente publicação daquela pessoa especial. “Mais um treino!” escrevem, e num instante milhares de rostos num ecrã gostam, comentam e maravilham, inspirados pela súbita vontade de ir dar uma corrida, porque todas as pessoas bem-sucedidas vão ao ginásio. O que nos leva a aderir à tendência crescente do digital influencing? Talvez a necessidade de ter um modelo a seguir, de ver personificado tudo aquilo que gostávamos de alcançar para a nossa vida e ter a prova viva de que não é impossível lá chegar. Contudo, qual é a linha que separa a inspiração da ilusão obsessiva?

O perigo surge quando nos esquecemos de que (quase) todo o conteúdo online está sujeito a ser filtrado pela câmara e pelos desejos do criador, polido para corresponder às expectativas de uma sociedade que quer demais, e sempre mais. Não podemos confiar cegamente que a personalidade e estilo de vida que nos são dados a conhecer sejam um reflexo da realidade. Porquê? Porque como todos nós, os influencers cometem erros e têm na sua vida momentos de vulnerabilidade que podem preferir não mostrar, e em todo o seu direito. Cabe-nos ter bom-senso e evitar idolatrar estas personalidades como seres perfeitos e imaculados, pois essa mentalidade facilmente dá lugar a algo mais profundo e nocivo.

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Torna-se mais fácil questionar o que vemos ao espelho, porque muitas destas pessoas aparecem sempre impecáveis nas fotos. Refletimos sobre as relações com quem temos à nossa volta, ou quem gostaríamos de ter, porque queremos o que os outros têm. Criticamos o facto de nos ser tão difícil manter a concentração para estudar horas a fio, e olhamos com desdém para todas as dúvidas que surgem no caminho, porque estas pessoas são produtivas e cumprem todos os seus objetivos. Sentimo-nos culpados quando abrimos os olhos e já são 11 da manhã, porque tínhamos prometido que desta vez íamos acordar com o nascer do sol como eles fazem. De um dia para o outro, a nossa casa parece mais pequena, e suspiramos quando pensamos naqueles destinos de férias que mais parecem saídos de filmes. Torna-se mais fácil ver tudo o que não somos e tudo o que não temos em comparação, e começamos a questionar - somos felizes e bem-sucedidos, tanto quanto eles? Alguma vez seremos? Vamos voltar um pouco atrás antes que me comecem a chamar boomer nos corredores. A admiração não é em si uma coisa má, pelo contrário! É importante termos pessoas na nossa vida que nos inspirem a fazer melhor, a continuar a trabalhar para chegar onde queremos. Não há problema nenhum que os influencers sejam a fonte dessa motivação. No entanto, quando deixamos


INFLUENCING INFLUENZA

de ter em mente que nem tudo neste mundo digital é transparente, podem surgir danos graves à nossa autoestima, sentido de valor próprio, e inclusive saúde física. Por outro lado, mesmo os influencers sofrem com esta cultura tóxica. Na nossa sociedade sempre vigoraram modelos desejados de beleza, produtividade e fortuna, mas o nível de exigência e a quantidade de pessoas que se acham no direito de ir à internet dizer aos outros como podem ou não ser não para de aumentar. O público não só idolatra estas personalidades seguidas por milhares e milhões de pessoas, como aprendeu a esperar ver nelas refletidos os standards que eles próprios cobiçam atingir. Afinal, de qualquer influencer que se preze, não se espera menos que a perfeição. Estas celebridades são escrutinadas dos pés à cabeça no dia-a-dia e têm grande parte da sua vida exposta aos olhos do mundo para entretenimento alheio. Sim, é o trabalho delas. Sim, a maioria escolheu o caminho da fama. Mas não as censuro por quererem manter privados os seus momentos mais frágeis. É muito tentador mostrar apenas as partes boas quando qualquer deslize recebe uma chuva de críticas. Para além disso, não consigo imaginar o quão extenuante é ser colocado debaixo de fogo cada vez que se atrevem a desafiar estes ideais e mostrar alguma vulnerabilidade.

Felizmente nem tudo é preto e branco. No meio desta epidemia da era digital e das redes sociais têm surgido cada vez mais pessoas que utilizam a sua influência para quebrar estes padrões e dar a conhecer um “eu” mais acessível, repleto dos bons e maus momentos que as definem e dos pequenos problemas do quotidiano. Há que procurar motivação, mas viver conscientemente alheios às expectativas que o mundo tem para nós. Há que mostrar com orgulho que a beleza do que é ser-se humano não está na luta pelo inalcançável, mas sim no facto de que apesar de tão diferentes, no que toca ao mais importante estamos ligados como um só. Talvez partilhemos paixões. Talvez até partilhemos inseguranças ou preocupações. Uma coisa é certa, mesmo alcançando tudo aquilo que queremos e mais, nunca vamos ser como eles, porque eles sempre foram como nós. Não somos perfeitos, e está tudo bem assim.

#influencer #lifestyle #like #redessociais #realidade #like #boomer #questionar #fake #privacidade #vulnerabilidade #seguidores #quotidiano #tóxico #personalidade #influencingInfluenza #ressonancia

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CABEÇA NAS REDES

Maria Teixeira

MONSTROS ATRÁS DO ECRÃ EXAGERO OU REALIDADE? Q

uem são aqueles que vivem atrás das teclas em telas de malícia? Que magoam em segredo, (des) protegidos por um sistema sem rasto? O cyberbullying, cronologicamente, é um evento recente, sem referência em artigos prévios a 2004,1 mas tem vindo a ganhar proporções ingentes, agravadas durante a pandemia.2

De um modo geral, o cyberbullying corresponde a qualquer conteúdo desrespeitoso e/ou desagradável intencionalmente publicado online, em qualquer plataforma informativa ou rede social para magoar outro indivíduo.3,4 Adicionalmente, pode ser um ato elaborado por um só indivíduo ou grupo deles − pluralidade − e repetido ao longo do tempo − repetitividade −,4 sendo que o tempo passado online influencia positivamente tanto a perpetuação como a vitimização deste fenómeno agressivo5. Todos nós já assistimos, pelo menos uma vez, a uma daquelas sessões na escola acerca dos “perigos da internet” e todos nós soubemos de, pelo menos uma pessoa que se tornou “famosa” na escola pela nude que o namorado enviou ao melhor amigo, que enviou ao amigo mais próximo, que enviou ao amigo e, ainda, apenas ao amigo do amigo… Sabemos o que significa expor-nos e sermos gozados por isso ou o que significa publicarmos um comentário mal intencionado online quando nos sentimos mais enervados, frustrados. Qual é a fronteira?

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O cyberbully é uma pessoa que encontra refúgio no anonimato, apoiando-se, normalmente, numa identidade falsa ou inexistente com a qual fabrica um ciclo de violência raramente responsabilizável.6,7 A noção física, frequentemente encontrada no bullying tradicional, do impacto escalável de um ato violento na vítima está ausente no cyberbullying.6-8 Consequentemente, poderá diminuir a sensibilidade e mesmo impossibilitar o estabelecimento de uma ligação empática, e de um sentimento de remorso que demova o agressor.4,6 O que é que o motiva? Há quem diga que é a baixaautoestima intimamente conectada com a necessidade de se sentir no controlo7 ou que, online, o seu palco não tem limites − diz e faz o que, provavelmente, não faria nem cara-a-cara nem na presença de uma figura de autoridade.5


MONSTROS ATRÁS DO ECRÃ — EXAGERO OU REALIDADE?

De acordo com vários estudos internacionais, este indivíduo, comummente, vem de um meio familiar de baixo rendimento cuja mãe tem um nível de escolaridade baixa, sofre de uma inadaptação social, angústia emocional, baixa empatia cognitiva, de comportamentos irascíveis, de isolamento, tem um reduzido aproveitamento escolar, uma forte tendência para o consumo de substâncias, e alguns efeitos psicossomáticos, como dor de cabeça.4-7 Efetivamente, a caracterização de um cyberbully está bem documentada: o estado psicológico inconstante, o desequilíbrio emocional, o défice cognitivo… Aparentemente fácil, não? Mas, de acordo com os mesmos estudos, constatase também que, frequentemente, o agressor é vítima, que ambos os conceitos são indissociáveis, complementando-se. Na prática, um cyberbully é vítima das mesmas circunstâncias psicossociais do seu alvo, ataca-se a si próprio e refugia-se da sua fraqueza, escondendo-se na própria. Uma cadeia alimentar constituída por um predador que se consome e por uma presa que o distrai. Atualmente, a ubiquidade dos meios eletrónicos introduz nos adolescentes um novo círculo social do qual preferem fazer parte a ficarem desconectados, independentemente da violência a que estão sujeitos.7 Com o(s) ca(s)os a aumentar(em),2 em quem podemos confiar? No âmbito de um artigo desenvolvido pelo International Journal of Communication da University of Southern California (USC) foram elaboradas várias entrevistas a representantes das redes sociais das empresas, a representantes de organizações não governamentais, e a peritos de segurança eletrónica dos EUA e da UE e, surpreendentemente, chegouse à conclusão de que o modus operandi da segurança eletrónica das grandes empresas (como o Facebook, Instagram, Youtube) assenta, principalmente, numa política de self-moderation da comunidade,9 mais “avançada” - deposita a responsabilidade dos conflitos

online nos utilizadores, visto que são os únicos que conhecem o contexto, e não recomenda retirar-se o conteúdo, só em último recurso, uma vez que viola a liberdade do criador, do tipo “a minha liberdade acaba quando começa a dos outros” -, reforçam o facto de não estarem em posição de interferir nos conflitos, e que o “cyberbullying é um fenómeno comportamental que acontecerá independentemente do que as empresas fizerem”.9 Então, a ver se percebi bem, desviam-se da responsabilidade moral e legal, apesar de condenarem o “fenómeno comportamental”,9 dão-lhe “tempo de antena” na sua plataforma “avançada” e “bestial”, esperam dos adolescentes/menores responsabilidade total e, ainda assim, lucram bem com este mal. É verdade que há conceitos implicados no cyberbullying que são difíceis de estabelecer nas redes sociais, como o de repetitividade,4 havendo diferenças nas políticas das várias empresas,9 mas o crescente apego das pessoas às redes sociais10 empodera a privatização das próprias empresas que estabelecem regras exclusivas e independentes das normas legislativas do país onde estão inseridas.10 Deste modo, torna-se crucial IDENTIFICAR, RECONHECER, ACREDITAR e AGIR − sermos bystanders ATIVOS, ou seja, upstanders. Em 57% dos casos, quando um bystander intervém, o cyberbullying cessa em dez segundos!11 O papel dos professores e dos pais é também fulcral na prevenção/combate deste fenómeno e deve ser bastante interventivo: ensinar e cultivar a empatia, o respeito, a gentileza.12 A tolerância à diferença é outro mandamento fundamental na tomada de consciência do outro e no desenvolvimento humano da nossa sensibilidade; previne a violência e ajuda a combatê-la. No final de contas, todos somos potenciais vítimas, agressores ou bystanders. Participamos numa comunidade global, ativa 24h/dia e controlada por CEOs e algoritmos manipuladores, por isso, cabe-nos a nós decidir: agir ou agir?

(1) Robert S. Tokunaga. (2010) Following you home from school: A critical review and synthesis of research on cyberbullying victimization. Computers in Human Behavior. 26 (3): 277-287. https://doi.org/10.1016/j.chb.2009.11.014. (2) L1ght. (2020) L1ght Releases Groundbreaking Report On Corona-Related Hate Speech And Online Toxicity. https://l1ght.com/l1ght-releases-groundbreaking-report-on-corona-related-hate-speech-and-online-toxicity/ (3) Li, Q., Smith, P.K. and Cross, D. (2012) Research Into Cyberbullying: Context. In Cyberbullying in the Global Playground (eds Q. Li, D. Cross and P.K. Smith): 3-12 https://doi.org/10.1002/9781119954484.ch1 (4) Smith, P.K., Mahdavi, J., Carvalho, M., Fisher, S., Russell, S. and Tippett, N. (2008) Cyberbullying: its nature and impact in secondary school pupils. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 49: 376-385. https://doi.org/10.1111/j.1469-7610.2007.01846.x (5) Goran Livazović, Emanuela Ham. (2019) Cyberbullying and emotional distress in adolescents: the importance of family, peers and school. Heliyon. 5 (6) e01992 https://doi.org/10.1016/j. heliyon.2019.e01992. (6) Sourander A, Brunstein Klomek A, Ikonen M, et al. (2010) Psychosocial Risk Factors Associated With Cyberbullying Among Adolescents: A Population-Based Study. Arch Gen Psychiatry. 67(7):720–728. doi:10.1001/archgenpsychiatry.2010.79 (7) Hamm MP, Newton AS, Chisholm A, et al. (2015) Prevalence and Effect of Cyberbullying on Children and Young People: A Scoping Review of Social Media Studies. JAMA Pediatr. 169(8):770–777. doi:10.1001/jamapediatrics.2015.0944 (8) Aboujaoude, Elias et al. (2015) Cyberbullying: Review of an Old Problem Gone Viral. Journal of Adolescent Health. 57 (1): 10 - 18. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2015.04.011 (9) Milosevic, Tijana. (2016) Social Media Companies’ Cyberbullying Policies. International Journal of Communication. 10. https://ijoc.org/index.php/ijoc/article/view/5320 (10) S. O’Dea. (2021) Number of smartphone users from 2016 to 2021 (in billions). Statista. https://www.statista.com/statistics/330695/number-of-smartphone-users-worldwide/ (11) Joshua R. Polanin, Dorothy L. Espelage & Therese D. Pigott | Joseph Betts (Action Editor). (2012) A Meta-Analysis of School-Based Bullying Prevention Programs’ Effects on Bystander Intervention Behavior. School Psychology Review. 41 (1): 47-65. DOI: 10.1080/02796015.2012.12087375 (12) Faria Natália. (2020) Mais de 60% dos jovens foram vítimas de cyberbullying na pandemia. Agressores indiferentes. Público. https://www.publico. pt/2020/09/16/sociedade/noticia/60-jovens-vitimas-cyberbullying-pandemia-agressores-indiferentes-1931643

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CABEÇA NAS REDES

Raquel Morgado

O ALGORITMO DO ALGORITMO, PRISÃO É

New User • Paweł Jońca

const userInfo = { firstName:”Raquel”, lastName: “Morgado”, fullName: function () { return this.firstName + “ ” + this.lastName; } }

“Oh Raquel, mas então essa coisa do algoritmo é muito má, não é?” Cada um de nós terá uma opinião formada sobre o mundo do algoritmo associado aos meios de informação. Partindo do princípio de que o algoritmo é, nada mais nada menos, que uma predefinição oculta associada a cada veículo de comunicação para nos serem apresentados conteúdos que, à partida, são “à medida” do nosso interesse, surgem muitos argumentos a favor e contra esta ferramenta. Acesos debates e discussões têm-se multiplicado sobre os seus benefícios e malefícios, não se tendo dado a atenção necessária às consequências a longo prazo da sua ação. Quando as regras deste “jogo” não são claras, uma vez que não somos nós quem define a fórmula algorítmica, a gestão da informação filtrada é, por si, manipulação.

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userInfo.fullName();

O algoritmo é um crivo seletivo que se molda em função do rasto que cada um de nós deixa na internet. Cada rede social, ou até motor de busca, cria o seu algoritmo à medida e de acordo com o que mais lhe convém. Nos primórdios das redes sociais, a informação que nos era apresentada baseava-se na ordem cronológica das publicações ou das notícias. Esta era tem o seu término em 2007, com a revolucionária criação do botão “like” pelo Facebook e, em 2009, com a introdução oficial de um algoritmo.


O ALGORITMO DO ALGORITMO, PRISÃO É

No prato da balança dos “prós”, podemos encontrar o maior conforto e a comodidade que o algoritmo nos traz como utilizadores da internet, ficando expostos ao que aparentemente gostamos e às novidades daquelas que são as nossas áreas de interesse. Sem esta ferramenta, não se chegaria à mesma quantidade de informação triada em tão pouco tempo. Em 2015 o Facebook deu o primeiro passo em direção ao que foi anunciado como um empoderamento dos seus utilizadores, ao permitir a seleção do tipo de publicações que gostariam de ver primeiro: “assuma o controlo e personalize o seu feed de notícias” proclamavam eles. Concomitantemente, esta funcionalidade diminuiu a quantidade de spam, com a eliminação de biliões de contas falsas nas redes sociais, permitiu a identificação de bullies e, até, o investimento no marketing digital. Por outro lado, devemos refletir sobre os argumentos “contra”. Este mecanismo opaco capta os nossos padrões de utilização, conseguindo incrementar o tempo que despendemos com as redes sociais, ao bombardear-nos com anúncios escolhidos “a dedo”. Há uma retenção e correlação dos nossos dados de navegação, muitas vezes, com fins mercantilistas. No meu ponto de vista, existem consequências negativas que, previamente, não conseguimos antever e que, agora, se conhecem. A estratificação de cada um de nós e posterior match entre aquilo que gostamos e o que as plataformas definem e interpretam como seja aquilo que queremos ver, garante a segmentação do públicoalvo. Como repercussão, há um afunilamento, mesmo dentro dos nossos gostos. Sabemos mais e mais, mas sempre do mesmo.Todos nós gostamos de ver vídeos de cães na internet, mas... queremos vê-los sempre e a toda a hora? Paralelamente, há um empobrecimento informativo. Onde estão os tesourinhos que íamos encontrando pela internet e onde está o lugar para a novidade e para o que vai contra as nossas convicções? Deixamos de ter contacto com realidades discordantes com a nossa e, por conseguinte, polarizamos a sociedade. Ao limitarse o confronto com a diversidade de pensamento, promove-se a segregação intelectual e erradica-se o debate público.

Já em 2011 o ativista americano Eli Pariser publicava o livro The Filter Bubble: What the Internet is Hiding from You, levando-nos a refletir sobre como seria o mundo onde todas as notícias seriam definidas pelo nosso salário, laços familiares e localização geográfica. Imaginemos um mundo onde não descobrimos novas ideias e onde não podemos ter segredos. Uma década depois, estaremos assim tão longe desta realidade? Vivemos à frente de ecrãs, achando que temos acesso a toda a informação disponível no mundo. Assim deveria ser. Mas, efetivamente, estamos apenas no nosso cantinho a ser o alvo da apresentação do mesmo tipo de dados. Como humanos, sentimo-nos naturalmente impelidos a procurar aquilo com o que concordamos mas, quando temos um sistema invisível que exacerba tudo isto, acabamos confinados a ver, ler e ouvir “mais do mesmo”. O algoritmo condiciona as nossas escolhas. Deixamos de ter uma ferramenta útil e relativamente inócua e passamos a ter algo que nos manipula. Nas penúltimas eleições americanas rebentaram a primeiras consequências tangíveis da utilização do algoritmo, tendo-se estimado que, a simples ordem pela qual eram listados os artigos sobre os concorrentes à presidência da Casa Branca, podia influenciar até 25% o resultado da eleição, independentemente da fiabilidade dos factos. É difícil controlar aquilo que vemos, impossível perceber o que perdemos e quão condicionados já nos encontramos. O algoritmo dita, sem que nós consigamos controlálo, que partes do mundo vemos. Assim, o que podemos esperar para o futuro e o que poderemos fazer? Entendo que a solução passará pelo estímulo de iniciativas, como as que estão presentemente a ser discutidas no Parlamento Europeu, que visem regulamentar os fatores que integram um algoritmo.

Sugestões de leitura para si Privacidade e Termos de Utilização. Li e concordo.

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gRANDE REPORTAGEM


GRANDE REPORTAGEM

Ana Catarina Manaças & António Lopez

O ato de suprimir informação, de minimizar a sua importância ou de modificar o seu sentido com o intuito de induzir em erro ou dar uma falsa imagem da realidade constitui desinformação. O termo desinformação tem vindo a ser cada vez mais utilizado nos últimos anos. Nomeadamente nestes tempos de insegurança, nos quais são apresentadas teorias e ideias infundadas que podem ser mais fáceis de acreditar que uma pandemia que tomou o mundo pela mão. Além disso, parecem oferecer saídas e soluções sedutoras pela simplicidade e facilidade de execução. De facto, é com certeza que podemos afirmar que o nível de literacia geral da população mundial tem vindo a aumentar exponencialmente nos últimos anos e que a informação a todos os níveis está cada vez mais ao alcance de todos. Contudo, ter um acesso fácil a tanta informação não nos faz ser (mais) capazes de distinguir a verdadeira da falsa, apenas nos faz sentir confiantes por termos acesso à mesma. Infelizmente, esta pode ser uma falsa sensação de confiança. Na realidade, ninguém é detentor de uma verdade absoluta. Sabemos que o mundo tem vindo a evoluir no rumo do método científico. Há pessoas que dedicam a sua vida a estudar detalhadamente pequenas partes do mundo e é assim que temos um conhecimento geral, apesar de limitado, daquilo que nos rodeia. Por isso, hoje em dia, não nos basta ter leite e mel na dispensa para podermos dizer que sabemos tratar uma dor de garganta. No entanto, é isso que se passa cada vez mais frequentemente. Sendo tão fácil a pesquisa na internet, tão imediata e provedora de soluções simples, porque não o fazer? Além disso, a partilha imediata da nossa opção, ficando ao alcance dos nossos amigos, torna este modus faciendi o favorito de muita gente.

Já Platão na Alegoria da Caverna faz menção ao princípio subjacente a este fenómeno: “não achas que os prisioneiros tomariam por objetos reais as sombras que veriam?” É claro que sim. E curiosamente o erro repete-se século após século, agora mais do que nunca, com o imediatismo, o brilho do toque no ecrã, levando várias pessoas instruídas e capazes a abandonar a sugestão médica em prol das explicações e curas mais recomendadas pelo “Dr. Google”. Infelizmente, ao longo destes dois anos em que sofremos com a pandemia provocada pelo coronavírus à semelhança do acontecido em tantos outros períodos da história em que, sagrando crises de carácter social, económico, político, a tendência humana é um movimento de «encolha» das pessoas, de busca de soluções simples e facilmente partilháveis por todos. Estamos muito longe do Paleolítico, em que o homem observava a natureza procurando aprender com ela o que lhe era impossível aprender de outra forma, e estamos muito longe das épocas em que a doença era infligida pelos deuses como castigo à humanidade. Hipócrates permitiu um salto e um distanciamento em relação a essa medicina feita de milagres e rezas, oferendas aos deuses e ervas, fogo, água e terra. Contudo, no séc. XIII, numa época da história da Europa da qual não nos recordamos bem, voltou a praticar-se uma medicina cheia de crendices, devido à fragmentação da sociedade pelas pestilências que devastavam a terra, às guerras e à instabilidade social e política provocada pela queda do Império Romano. Ao longo desta pandemia voltamos atrás na história: ficámos, de repente, indefesos perante uma infecção terrível, com formas de disseminação nunca antes vistas em termos de contagiosidade absoluta. Além disso, sem tratamento possível, sem vacina e sem forma de a impedir, atingindo pobres e ricos, idosos e novos da mesma forma… voltaram os medos ancestrais e irracionais, e algumas pessoas passaram a difundir

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“Não precisa ser, basta que aparente tais qualidades”


A ERA DA (DES)INFORMAÇÃO

alegações anti vacinas não científicas, informações falsas sobre o potencial curativo de fármacos... ideias irresistíveis, a esperança renascida. Este género de raciocínios e alegações alimentam-se do medo das pessoas, causando danos significativos à saúde pública. As informações enganosas, teorias cientificamente não comprovadas e alegações não fundamentadas sobre vacinas que alteram o ADN ou que constituem meios de controlo através de microchips implantados pelos governos, provocam hesitações em relação à vacinação e dissuadem as pessoas de serem vacinadas. Hoje em dia, a facilidade com que se usa as várias plataformas, a velocidade com que circula a informação e o enorme alcance das redes sociais são, sem dúvida, um dos maiores trunfos dos difusores da disseminação de informação falsa. E a acrescentar a estes factos estão as célebres palavras de Nicolau Maquiavel - “Não precisa ser, basta que aparente tais qualidades”. Apresenta-se uma ideia, e se ela criar uma dúvida razoável, passa a circular como uma verdade. Recentemente, um estudo conduzido pelo MIT concluiu que as fake news circulam no Twitter com maior rapidez que as notícias verdadeiras, o que nos permite ter uma ideia do enorme poder de difusão de fake news nas redes sociais. Mas aliada a esta difusão por partes dos próprios utilizadores das plataformas, existem ferramentas como os bots (aplicações autónomas que funcionam com um algoritmo limitado, mas que no futuro, com o desenvolvimento da Inteligência artificial, poderão ter um papel muito perigoso). São inúmeros os exemplos de polémicas nascidas e/ou alimentadas nas mais diversas plataformas, nas quais a radicalização do discurso desvia (propositadamente) a discussão do seu verdadeiro cerne para meras questões laterais do assunto. Isto remove o foco e impossibilita o debate saudável, pelo que a troca de ideias se torna impossível.

O crescimento do mundo digital propiciou a criação de cada vez mais “locais” nos quais se confundem conteúdos noticiosos com boatos. Um recente trabalho jornalístico levado a cabo pelo Diário de Notícias estima que existem mais de 40 páginas de desinformação portuguesas, ou seja, toda uma indústria que é autosustentável. Por conseguinte, urge fazer a pergunta: como poderemos combater esta difusão de desinformação? A resposta passa muito pela criação de vias que assegurem que as notícias de fontes credíveis, com qualidade, se encontram facilmente disponíveis e acessíveis no ambiente digital, ou seja, que estes conteúdos comecem a ter relevância nos algoritmos dos motores de busca e das plataformas digitais, com especial ênfase para as redes sociais, que são muitas vezes os locais “mais populosos” do planeta. Deste modo, poder-se-ão destacar os factos, os conteúdos noticiosos de fontes fidedignas e em maior evidência, em vez de conteúdos cujas fontes são duvidosas ou desconhecidas, e que não cumprem as normas éticas e deontológicas do jornalismo. Assim, estaremos a promover a literacia mediática e digital de uma forma a que o prefixo da desinformação comece cada vez mais a cair, e que se fomente o que parece cada vez mais uma hábito fora de moda - a nossa capacidade de refletir, de raciocinar, e de conseguir ter uma atitude crítica relativamente àquilo que circula na Internet. Reconhecer o que é ou não fidedigno, o que pode ou não ser plausível, independentemente das nossas convicções, são armas muito poderosas contra ciclos viciosos, permitindo alimentar cada vez menos os trolls e contribuir para um fluxo saudável da informação. Umberto Eco escreveu que “as redes sociais deram o direito à palavra a uma legião de imbecis...promovendo o idiota da aldeia a detentor da verdade”. Esperemos que o futuro o venha a desmentir e o amanhã seja cada vez mais polvilhado de verdades e de mentes capazes de as encontrar.

Kit de ferramentas de transformação digital “Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19” elaborado pela Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/Factsheet-Infodemic_por.pdf?sequence=16 (visualizado em 15/11/2021) Desinformação sobre questões políticas e saúde sobe mais de 50%. Disponível em: https://www.jn.pt/artes/media/desinformacao-sobre-questoes-politicas-e-saude-sobe-mais-de-50-13342154.html (visualizado em 13/11/2021) Immunizing the public against misinformation by World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/news-room/feature-stories/detail/immunizing-the-public-against-misinformation (visualizado em 12/11/2021) A Desinformação - Contexto Europeu e Nacional. Entidade reguladora para a comunicação social. “Fake news & Desinformação: Estudo de caso numa instituição de ensino superior em Portugal” Manuel João Cruz. Escola Politécnica de Saúde de Viseu

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SAÚDE VIRTUAL

Pedro Rainho

DESROTINA A INÉRCIA À

s sete menos um quarto, despertava. Dois minutos antes das oito, desperto. O recomeço diário, pelas oito da manhã. Toda a azáfama diária e rotineira que se fazia sentir pelas ruas e pelos transportes públicos estagnou. O enlatado de multidões nas carruagens deu lugar ao aumento do tráfego online. As vozes das crianças e jovens deixaram de ecoar pelas escolas, sussurrando agora por detrás dos pais, em teletrabalho. Tudo isto se eclipsou de um dia para o outro, mas será que nós, seres com capacidade de adaptação variável, conseguimos fazer o switch assim tão rapidamente?

Estávamos roboticamente programados para que todos os dias se sucedessem da mesma forma. Executávamos os mesmos gestos: acordar, comer, vestir, maquilhar, conduzir ou arranjar algum meio de transporte que nos fizesse chegar ao nosso destino, todos os dias, à mesma hora, ultrapassando todos os pequenos incidentes ou stresses que se pudessem intrometer nesta rotina. Todo este desafio foi interrompido, sendo-nos exigido apenas que ficássemos em nossa casa, no nosso conforto, em frente a um ecrã a fazer exatamente tudo o que faríamos ao chegar à meta para onde corríamos todos os dias, desesperadamente. Seria assim tão enclausurante e frustrante aceitar esta poupança de tempo em tudo o que se interponha na nossa rota, e ficarmos simplesmente na companhia dos nossos gadgets? Pois, o que não mencionaram neste novo “contrato” é que tudo isto seria por tempo indefinido e que não seria apenas o nosso trabalho a ser colocado em pausa, mas sim tudo o que em torno de nós existia.

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Com as portas de casa trancadas e, com sorte, não fechados numa divisão, existíamos neste novo habitat. Porventura aprimorámos e fortalecemos os nossos laços familiares. Talvez nos tenhamos arrependido, verdadeiramente, por não ir àquele jantar, há um mês. Quiçá até começássemos a sentir saudades de ir àquela aula teórica das oito da manhã, mas por mais coisas que pensássemos o tempo chegava e ainda sobrava. Apenas nos permitiram uma coisa: estudar ou trabalhar, em casa. Nada mais. Somente podíamos realizar as nossas funções, das quais queremos fugir o mais rapidamente à sexta-feira. E então o resto? Onde podíamos encontrar o alimento da nossa sanidade? Passámos fome. Alguns, infelizmente, fome de nutrientes. Os restantes, sofreram fome de tudo o que lhes fora roubado. A mente de muitos não acompanhou esta mudança tão abrupta. Muitos se esforçaram para ativar os mais variados mecanismos de coping. Alguns conseguiram, outros tentaram. Começa a sentir-se a indignação, por estarmos agora limitados a quatro paredes, a preocupação por nós próprios e por quem amamos, pelas contas e rendas de casa que disparam e pelos salários que são cortados. Receio pelo futuro, pelo desconhecido. O desmazelo da imagem, do brio e da elegância pela qual, acelerada e diariamente, todos os dias, lutávamos por fazer aparecer. A angústia de permanecermos inertes, à medida que os dias se atropelavam uns aos outros. Ficámos doentes. Muitos fisicamente, quase todos mentalmente. Este padrão de rotina não era compatível com a essência humana.


DESROTINA A INÉRCIA

Precisávamos de sentir aquele abraço do amigo, aquela saudação matinal dos colegas, aquelas gargalhadas durante o almoço, no refeitório. Ansiávamos poder voltar a ser uma “manada” e não um ser em cativeiro. Agora, apenas o podíamos ser atrás de um ecrã, utilizando todas aquelas aplicações sociais que de um dia para o outro surgiram. Mas isso não chegava. No entanto, não havia alternativa. A indignação deu lugar à resignação, a angústia foi substituída por conformismo, mas a resiliência estava presente. É unânime o facto de que as palavras “videoconferência”, “teletrabalho”, “telescola”, entre outras da mesma índole, nos trazem memórias menos boas, recordações que remontam a um passado muito recente e ainda parte do presente que estamos a vivenciar. Todos nós, quer mais intensamente ou de forma mais moderada, quer mais cedo ou mais tarde, sentimos o quão limitada é a comunicação, a aprendizagem e a dinâmica de tudo o que quer que se desenrole nestes moldes. Não é natural. Foi improvisada e gradualmente otimizada. Toda a nossa concepção de realidade teve de ser ajustada.

Apesar desta estranha interação e vivência social serem carregadas, em grande parte, de uma conotação limitada e em certos casos constrangedora, não se pode deixar de referir o lado positivo. É incontestável que se solucionaram muitos problemas logísticos, não resolúveis com a conceção de tempo e espaço que outrora dominava. Reuniões transatlânticas, contratos feitos na poltrona da sala, aulas assistidas no conforto da cama. O que antes se desenrolava nestes moldes, começou a não ser exceção, mas sim o quotidiano. Um quotidiano que se criou a despachar, pois não englobava a realidade de todos. Nem todos os trabalhos se podem resolver em modo tele. A inércia provocada pela monotonia dos dias teve de dar lugar à inovação, que se tornou urgente para permitir o escape à realidade. A mente tinha de arranjar uma fuga, e no geral, a fuga foi o hábito. Habituámonos a isto, acostumámo-nos a trabalhar e a conviver assim. Persistimos, mas tivemos de nos alterar. Desapegar, relativizar e acreditar foram máximas para conseguir chegar ao hoje. Um presente no qual nos tentamos desapegar da ansiedade social que sentimos. Um presente no qual nos esforçamos para subtilmente retomar à rotina do passado, que fora suspensa. Um presente que carrega todo um conjunto de pessoas mudadas, roboticamente programadas para trabalhar, agora, a partir de casa, mas que contrariamente ao início, começam a ser mandadas para “a rua”. Desrotinate. E volta a rotinar-te.

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SAÚDE VIRTUAL

Mariana Bettencourt

AS REDES SOCIAIS E A PERDA DE EMPATIA

S

éculo XXI. Era do acesso ao conhecimento e à informação (fidedigna e relevante, ou nem tanto e nem sempre). Campo fértil (se bem que, às vezes, estéril) da globalização. Entendemo-nos? Sentimo-nos? Tocamo-nos? Toque como mais do que um embate, mais que encontro casual de corpos no espaço. Somos de carne e osso, mas conservamos marcas das mãos com que nos cruzamos. Os laços intelectuais e/ou afetivos que se estabelecem entre mim e ti, tu e ele, ele e vós, elas e nós, constituem um dos pilares fundamentais da humanidade e, diz a filosofia, acrescem valor à vida: é isto a empatia. Do outro lado do espectro, a apatia – que nos impede de sentir e ser sentidos. Segundo dados recentes, ao longo das últimas 4 décadas houve um declínio de cerca de 40% na capacidade empática dos estudantes universitários(a). “Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais dececionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.”1

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As redes sociais existem desde os primórdios da humanidade: apenas não com o significado que hoje lhes atribuímos, veiculadas pela Internet. Cada pessoa insere-se num meio, pelas suas condições, família, amigos, carreira: rede de ligações intrínseca. Ivan Ilitch2 cercado por oficiais do tribunal, Frodo Baggins3 por Hobbits, Harry Potter4 por feiticeiros. Não deixa de ser, em certa medida, restritivo e sufocante que assim seja. No entanto, as atuais redes sociais, tão apetecíveis, disseminadas e acessíveis poderiam ser um alargamento deste campo de visão. E não, como diz Lispector a propósito de uma outra coisa, um encontro dececionante. O avanço vertiginoso da tecnologia nos últimos anos trouxe, entre tantas outras mudanças, a Internet como um dado adquirido no nosso modo de vida. Assim, ela deu umas quantas voltinhas, tipo cachorrinho, e assentou. Foi-lhe dada de bandeja a oportunidade de pertencer a praticamente todas as nossas atividades quotidianas, desde o trabalho, estudo, lazer, ao exercício físico ou até no descanso. Como uma serva discreta, espreitava aos cantinhos das salas, para ver do que precisávamos e desde logo se voluntariar. Em 2020 pareceu evidenciarse quando com ela ficámos confinados. Da tomada de consciência desta presença, pretensamente inócua e até benéfica, surgiram na sociedade múltiplas questões, visando este artigo centrar-se numa: afinal existe, ou não, uma relação entre a utilização da Internet, com particular enfoque nas redes sociais, e o impacto nas relações humanas? A pergunta desdobra-se em numerosas outras e mesmo em acusações – algumas


AS REDES SOCIAIS E A PERDA DE EMPATIA

das quais, dirigidas às gerações cujo crescimento foi influenciado pelo Facebook, Instagram, WhatsApp, Tumblr, Skype, Pinterest, Snapchat, Youtube, Linkedin, Twitter e que tais. Sintam-se aqui incluídos, mas retrospetivamente não pertencemos à geração que mais estará em jogo, dado que hoje as crianças nascem unidas a dois cordões umbilicais: o materno, e o do telemóvel/pc/tablet que as acompanha. Nos estágios de pediatria, vão entender ao que me refiro. Discutese igualmente a influência que as redes sociais exercem na vivência e saúde da dinâmica intra e interpessoal - até que ponto se repercutem na capacidade de nos ligarmos e identificarmos uns com os outros? Serão as recriminações de crescente egoísmo e narcisismo subsequentes reais? A expressão self-centered encaixa no núcleo do debate. A empatia sofre uma redução em pessoas emocional ou estruturalmente distanciadas das realidades dos outros.(a) – as redes sociais, afinal, afastam-nos ou aproximam-nos? Uma definição concreta de empatia referese à capacidade de compreender as emoções de terceiros (componente cognitiva) e de as partilhar (componente afetiva)(b). Na análise de diferentes artigos que abordam a relação entre as redes sociais e o nível de empatia, há a considerar: as faixas etárias abrangidas (frequentemente, mas não exclusivamente, abarcando uma população mais jovem); outras características do grupo populacional visado (como o sexo, nacionalidade ou nível de literacia); quais as redes sociais em particular que cada estudo abordou; o tipo de interação com a rede social em questão (chat vs publicação de fotografias, por exemplo) – estes parâmetros são relevantes na discussão dos resultados

obtidos. Diversos artigos concluíram que a utilização de redes sociais poderia até (surpreendentemente, ou não) potenciar o desenvolvimento da empatia(b), (c) . Algumas investigações mencionam limitações e restrições a esta associação positiva(d), mas destacase que comportamentos como a publicação frequente de fotografias(b), (e), ou os videojogos(f), se encontram associados de facto à diminuição empática. A diferença essencial seria, portanto, se a ação propicia a conexão, ou a autopromoção. Como ferramenta de valor, refere-se a relevância da pedagogia, ou seja, de cursos de relações interpessoais, para que o ser humano se ajuste a este novo modo de vida(e). Admito que, porém, toda esta conversa me recorda outra narrativa: Fahrenheit 4515, romance distópico que retrata uma sociedade disfuncional, desapegada, apática, onde se incendeiam os livros, e com eles arde também o condão de amar. É inegável que a literatura nos acresce, transcende o espaço e o tempo, propiciando os elos mais improváveis – com personagens que, diga-se, se calhar eu não seguiria no Instagram. Será coincidência a simultânea redução da leitura e da empatia? Redes sociais e literatura partilham esse toque virtual, deslocado. Nenhum é o demónio, a praga dos últimos dias. Nenhum é, aliás, sempre de qualidade. Há apenas, em cada instante, que atentar, se isto que sinto nas mãos, vindo do ecrã ou do papel, é uma corrente elétrica de vozes, ou um choque pessoal de vaidade.

Referências literárias: (1) Clarice Lispector (1974). Conto Uma Amizade Sincera. (2) Leon Tolstói (1886). A Morte de Ivan Ilitch. (3) J. R. R. Tolkien (1954). Trilogia O Senhor dos Anéis. (4) J. K. Rowling (1997-2007). Saga de livros Harry Potter. (5) Ray Bradbury (1953). Fahrenheit 451 (adaptado para cinema em 1966 pelo realizador François Truffaut) Artigos citados: (a) Dolby, N. (2014). The future of empathy: Teaching the millennial generation. Journal of College and Character, 15(1), 39-44. (b) Guan, S. S. A., Hain, S., Cabrera, J., & Rodarte, A. (2019). Social Media Use and Empathy: A Mini Meta-Analysis. Social Networking, 8(4), 147-157. (c) Vossen, H. G., & Valkenburg, P. M. (2016). Do social media foster or curtail adolescents’ empathy? A longitudinal study. Computers in Human Behavior, 63, 118-124. (d) Collins, F. M. (2014). The relationship between social media and empathy. A Thesis Presented to the College of Graduate Studies of Georgia Southern University in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree Master of Science Statesboro, Georgia. (e) Alloway, T., Runac, R., Quershi, M., & Kemp, G. (2014). Is Facebook linked to selfishness? Investigating the relationships among social media use, empathy, and narcissism. Social Networking. (f) Carrier, L. M., Spradlin, A., Bunce, J. P., & Rosen, L. D. (2015). Virtual empathy: Positive and negative impacts of going online upon empathy in young adults. Computers in Human Behavior, 52, 39-48. (g) Blakemore, T., & Agllias, K. (2020). Social media, empathy and interpersonal skills: Social work students’ reflections in the digital era. Social Work Education, 39(2), 200-213.

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VI concurso literário

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VI CONCURSO LITERÁRIO

Miguel Bernardino

UNIÃO EUROPEIA DE VALORES

A pedra basilar a partir da qual ressoam quaisquer reflexões sobre Direitos Humanos é, de forma tão invariável quanto justificada, aquele que é o documento traduzido no maior número de línguas do mundo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não obstante o mais alto apreço que à mesma é devido, o imperativo moral da União Europeia não se esgota no cumprimento destes “mínimos olímpicos” consensualizados em sede de Assembleia Geral das Nações Unidas. A União Europeia transcende a noção de um mero mercado único de produtos e serviços, prefigurando uma efetiva comunidade de valores. Assim sendo, uma reflexão compreensiva sobre esta estrutura não pode dispensar o conhecimento dos valores europeus consagrados no Artigo 2.º do Tratado da União Europeia, que podem ser enunciados como: respeito pela dignidade humana, pela liberdade, pela democracia, pela igualdade, pelo Estado de direito e pelos direitos humanos, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. O entendimento do projeto europeu supramencionado tem permitido uma melhoria contínua das condições de vida nos Estados-Membro, contribuindo de forma importante para a sua democratização, para a promoção da tolerância e para a manutenção da paz entre os mesmos. Talvez um dos exemplos mais paradigmáticos desta asserção seja o facto de nos encontrarmos presentemente a viver o maior período livre de conflitos armados nesta região, durando a paz entre a Alemanha e a França – que têm sido inimigos históricos – mais de sete décadas. Estas conquistas vieram a ter reconhecimento público mais alargado com a atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2012 à

União Europeia, tendo esta, como forma de exaltar a importância da solidariedade enquanto valor europeu, optado por investir o prémio monetário em quatro projetos educativos destinados a apoiar crianças que sofreram a infelicidade de nascer em países onde esses conflitos são uma realidade dramática. Se, por ora, o projeto europeu é um caso de marcado sucesso, urge a necessidade de zelar pela sua manutenção. Tomar as conquistas por garantidas e optar pela complacência pode, em última instância, comprometer a continuidade da União e levar a efeitos nefastos para a vida de todos os cidadãos europeus – situação que, evidentemente, afetaria de forma desproporcional aqueles que pertencem a minorias e os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade. Um exemplo que ilustra a necessidade de batalha constante pela manutenção dos direitos conquistados é o ganho de tração, um pouco por toda a Europa, de movimentos chauvinistas de extrema-direita, cuja plataforma assenta sobretudo em teses populistas anti-imigração e, não infrequentemente, opostas aos ideais de respeito pelo multiculturalismo e pelos direitos fundamentais. A oposição aos valores europeus deteriora a essência da União e conduz inexoravelmente a uma situação de ameaça à sua solidez e sustentabilidade. Desta forma, importa batalhar estes movimentos no campo das ideias – desconstruindo simplificações e generalizações grosseiras – e executar uma abordagem sistémica efetiva, que mitigue de forma eficaz a proliferação deste flagelo. A emergência da direita populista não pode ser totalmente desconectada de um sentimento de descontentamento quanto às condições de vida e de uma certa desconfiança em relação às instituições – e,

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UNIÃO EUROPEIA DE VALORES — UMA LUTA POR DIREITOS ADQUIRIDOS

particularmente, em relação à classe política – que são experienciados por determinadas franjas da população. Assim, o combate ao populismo passa necessariamente por uma melhoria das condições de vida, com reformas que valorizem o trabalho e restituam rendimentos às pessoas em situações mais precárias, bem como pelo aprofundamento da transparência em relação às ações dos decisores políticos. Simultaneamente, deve ser fomentada a inclusão sustentada da promoção dos valores europeus nos programas curriculares das escolas, o que corresponde, no fundo, à defesa dos ideais de inclusão, tolerância, justiça, solidariedade e não discriminação. Para além da resposta à problemática da emergência de movimentos populistas de extrema-direita, é tão ou mais importante refletir sobre o rumo de países que, pertencendo à União Europeia, têm promovido políticas contrárias aos valores europeus. Refiro-me concretamente ao caso da Hungria e da Polónia, onde se têm verificado violações dos direitos das pessoas LGBTI+, bem como a adoção de medidas autocráticas que põem em risco o Estado de direito democrático nessas duas regiões. No capítulo da violação dos direitos das pessoas LGBTI+, mais diretamente pertinente para a presente reflexão, está em causa a aprovação de uma lei húngara que proíbe a divulgação de conteúdos relacionados com a homossexualidade ou a mudança de sexo a menores de idade, bem como a decisão polaca de criar “zonas isentas da ideologia LGBTI+”. Estas medidas entram em rota de colisão clara com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e, como tal, não podem ser toleradas. A bem da integridade do projeto europeu, é necessário um diálogo político construtivo que ofereça soluções imediatas ou, na impossibilidade do mesmo, é imperativo que se avance

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na execução dos mecanismos previstos no Artigo 7.º do Tratado da União Europeia, concretizando as sanções previstas para os casos de violação dos valores da União. Neste contexto, impõe-se uma questão de consentânea pertinência: como pode uma pessoa comum contribuir para a resolução de questões tão complexas e que, em grande medida, dependem da vontade política dos decisores? A melhor arma ao alcance de cada um de nós parece-me, justamente, a consciencialização dos decisores de que este assunto é uma prioridade absoluta para os cidadãos que representam. Quem tiver acompanhado de forma atenta as eleições legislativas de 2019, terá certamente notado que o assunto das alterações climáticas entrou na agenda política de todos os partidos, sem exceção, da esquerda à direita. Esta instância representou um caso de marcado sucesso na transmissão das prioridades dos cidadãos aos seus representantes, correspondendo precisamente ao que é desejável neste caso. Com efeito, constatamos que a construção de uma União Europeia mais inclusiva e da qual nos possamos continuar a orgulhar se encontra nas mãos de cada um de nós, na qualidade de cidadãos conscientes, e de todos nós, enquanto sociedade tolerante e multicultural. Este empreendimento é intrinsecamente premente pois, se a luta contra as alterações climáticas é o veículo para que tenhamos um planeta futuro onde viver, a luta pelos Direitos Humanos é o garante de que esse é um planeta onde vale a pena viver.


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arte literatura cinema música teatro


CULTURA

Anamélia Almeida

T

odos nós já nos questionamos, em algum momento, sobre a horas perdidas diante de um dispositivo eletrónico, ou até mesmo nos surpreendemos ao nos depararmos com o “relatório semanal” do nosso telemóvel e, junto dele, as estatísticas sobre todo aquele tempo “desperdiçado” quando estamos absorvidos pelas redes sociais. Mas será que já paramos, de facto, para nos perguntar quais as reais consequências, a nível global, destas ferramentas que tomam horas do nosso dia? Será que já refletimos verdadeiramente sobre as suas vantagens e desvantagens?

O que sabemos, até agora, é que estas ferramentas nos facilitam a vida. Óbvio! Quando precisamos de enviar um e-mail, ou falar com algum amigo/familiar por videochamada, ou até mesmo reunir aquele grupo da faculdade para realizar um trabalho. Simples! Além de que, temos ainda todas as informações que necessitamos ao alcance das nossas mãos. Vendo por esta perspetiva não há nada de assustador em utilizar estas networks. Será? Em mais um documentário original, realizado por Jeff Orlowski e lançado em janeiro de 2020, a Netflix traznos uma sequência de depoimentos, de ex-executivos das maiores empresas do Vale do Silício e de outros especialistas no assunto, nas quais são abordadas as mais desconhecidas preocupações éticas destes profissionais quanto aos problemas das redes sociais na nossa sociedade. O documentário “The Social Dilemma” ganhou atenção mundial e chegou, em apenas duas semanas, ao primeiro lugar da plataforma em diversos países. Uma realização que, por vezes desconfortável aos olhos dos telespectadores, despertou ondas de indignação por todo o mundo quando revelados os métodos de manipulação digital utilizados por grandes empresas para seduzir os seus utilizadores. A verdade é que tamanho escarcéu é compreensível, pois nunca ficou tão nítido o impacto que estas ferramentas têm na vida de biliões de pessoas.

“Fake news, ataques cibernéticos, vício, isolamento, baixa autoestima, perda do senso de identidade, ansiedade, depressão, desinformação, vigilância, roubo de dados, polarização, manipulação eleitoral e ameaça às democracias”. Estes são apenas alguns exemplos do “outro lado moeda” e das nefastas consequências a que estamos efetivamente sujeitos. Mas afinal, deveriam ter essas empresas responsabilidades ética e moral sobre o que produzem e sobre o que nós consumimos? A resposta para esta questão deveria ser indiscutível, mas a realidade é que a regulamentação prevista para essas ferramentas ainda é algo escassa e imprecisa. E o que podemos esperar pela frente? Quais são as consequências futuras? Com o que nos devemos preocupar a curto e a longo prazo? Segundo os especialistas no tema, a pressão para essas regulamentações deve partir de toda sociedade, no entanto, devemos dar importância, sobretudo, à nossa conduta individual, onde cada sujeito deve salvaguardar a sua segurança digital e impor limites a este atual dilema. 5 Dicas dos especialistas para nos protegermos e não cairmos nos “truques” dos algoritmos nas redes sociais: 1. Desative as notificações no seu dispositivo; 2. Evite aceder a conteúdos como: “sugeridos para si” e “recomendações”; 3. Antes de partilhar uma informação verifique as fontes; 4. Obtenha diferentes informações por conta própria, exponha-se a pontos de vista diferentes do seu; 5. Diminua o tempo de ecrã, sobretudo antes de ir para cama. The Social Dilemma Realizador: Jeff Orlowski Duração: 1h34m Data de Lançamento: 26/01/2020 Documentário, Drama Streaming: Netflix

7.6/10

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CULTURA

Bernardo Gunzburger Lopes

“NO ONE IS TALKING ABOUT THIS” – CRÍTICA Q

uando um dos maiores prémios literários (The Booker Prizes) oficializou a sua lista de candidatos há umas semanas, entre o mar de romances desconhecidos e os suspeitos do costume, incluindo o Nobel da Literatura em 2017, não esperava encontrar uma obra sobre o “portal” online.

“No One is Talking About This” (Ninguém Está a Falar Disto) de Patricia Lockwood é um romance estranho. Situado no “portal”, a designação simbólica que a autora engenha para a internet, e nas várias cidades estadunidenses que a protagonista sem nome visita no enredo da narrativa, o livro lê-se quase como um feed. Escrito em blocos do tamanho de um tweet, Lockwood, inspirada em eventos da sua vida pessoal, escreve precisamente sobre uma mulher que fica famosa por um tweet e que tem de enfrentar a sua fama e vida.

“Muitas das vezes, as pessoas que viviam no portal eram comparadas com os míticos ratinhos de laboratório, que premiam o mesmo botão continuamente para receber uma pastilha. Pelo menos os ratinhos recebiam uma pastilha, a esperança de uma pastilha, ou a memória de uma pastilha. Quando nós premimos o botão, tudo que nos acontece é continuarmos a ser ratos.”

No One is Talking About This ostenta seguir na tradição distópica de preconizar um futuro que se encontra infinitamente mais perto do que possamos imaginar; mas, em luz da apresentação do Metaverse de “Nenhuma Mark Zuckerberg e de todos outra obra os outros acontecimentos captura tão concomitantes do nosso perfeitamente mundo (por não mencionar as a sensação inúmeras alusões e referências a acontecimentos atuais no do online e as livro), subverte essa expetativa suasconsequem não servir como um aviso ências” para o futuro, mas como A obra alterna entre momentos lembrete de um presente que não de lirismo prosaico e prosa lírica, queremos aceitar. Nenhuma outra tornando-se poética em vários obra captura tão perfeitamente momentos cruciais da história. O tom, a sensação do online e as suas especialmente o humor, assemelha-se consequências concretas sem sacrificar quase a uma ode ao digital (particularmente ousadia artística como o romance caloiro na primeira parte), e acredito que o leitor que de Lockwood. Por agora, ou pelo menos até não esteja bem digitalizado poderá ter problemas de à próxima distração imprescindível, talvez seja hora compreensão até chegar aos pensamentos conflituosos de começarmos a falar disto. do americano moderno, ou às reflexões lúcidas de alguém que vive online. Nas poucas mas importantes vezes que entra no espetro político, a narradora retrata uma modernidade de complicações tão grandes e severas que a esperança só aparece na indiferença. E acaba por ser na indiferença, para não dizer “desatualização”, que a protagonista encontra paz:

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CULTURA

João Pereira

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ovembro quase a passar pelo meio dos nossos dedos e perguntamo-nos se resistimos ao fenómeno “Squid Game” ou se já aclamamos “Glória”, a primeira produção portuguesa na Netflix. Claro que não nos podemos esquecer de atualizar as nossas playlists para a época festiva que se aproxima ou de estar a par dos lançamentos dos nossos artistas favoritos. Mas será que conseguimos amortecer o impacto do streaming na nossa rotina? Subtilmente se infiltrou na indústria musical e audiovisual lançando-as para uma nova direção. Os grandes, como a Netflix ou a HBO, rapidamente substituíram os, por nós muitos estimados, clubes de vídeo, e converteram muitos em consumidores famintos. Entraram em ruptura com o método tradicional da libertação do conteúdo e popularizaram as estreias de temporadas completas numa só levada (induzindo muitos de nós à loucura com maratonas desmedidas). Adicionalmente, aliciaram os seus utilizadores com um cardápio extenso adequado às suas preferências. Todavia, a sua fome gananciosa não parou por aqui e rapidamente ambicionaram a produção dos seus próprios projetos cinematográficos e atualmente já lutam com os grandes estúdios pelas estatuetas. Se o pobre Hitchcock desconfiasse que até agora podemos assistir à estreia dos grandes filmes no pequeno ecrã, as urgências ganhavam um novo inquilino.

Seria de uma hipocrisia inimaginável, se não reconhecesse que nos momentos mais turbulentos do confinamento, a possibilidade de ter este espólio de produções televisivas à mão de semear era reconfortante. O aumento do consumo do streaming com a pandemia foi exponencial e não deverá abrandar pois o capitalismo não permite sequer essas ideias. Além disso, com a aplicação certa conseguimos ter maior partes dos projetos lançados mundialmente à distância de um clique. Despedimo-nos da pirataria para o nosso mp3 e criamos playlists para as diferentes modulações de serotonina ao longo da semana. Logicamente nem tudo é flores, pois até o mercado do pop mais comercial não está a dar luta ao círculo vicioso do streaming. A luta pela maior quantidade de streams deixou canções órfãs com menos de 3 minutos, saturou o mercado com pseudo artistas e acentuou as diferenças nos lucros entre os mais populares e os mais underground e os independentes. Dito isto, da próxima vez que estivermos a destilar com aquela balada desconhecida que nos deixa sem chão, talvez fosse razoável verter as mesmas lágrimas ao ouvir a mesmo no nosso leitor de discos. Escrevo isto enquanto o Spotify toca-me os meus hits favoritos da década de 80, os quais só me estariam tão acessíveis em discos (que apanham pó na minha estante) caso não houvesse o streaming. Concluo ao concordar que as novas plataformas tiveram os seus benefícios, mas não nos podemos esquecer que a extorsão é cada vez mais iminente.

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MAIS UMA HORA

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CRÓNICA

Bruna Paulino Alves

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“Quando vocês se deitam à noite, são felizes?” 3

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“Pelo menos já falta pouco para o fim” 2

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“18 anos a mais, não chego aos 19” 1

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“Bué vontade de desaparecer” 41

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O vidro reflete as luzes vermelhas e azuis. Eles falam no banco da frente, como se fosse só mais uma hora na vida deles. As minhas mãos estão a tremer. Estará frio? Não, é uma noite de verão. Avenidas, ruas, alamedas, jardins, passeios, curvas, tudo fica iluminado pelas sirenes quando passamos. Viram-se para trás para falar comigo. Os lábios deles mexem-se, mas não consigo perceber os sussurros que oscilam na minha direção. Como é que ele está vestido? Volto a descrever a imagem que não me sai da cabeça - blusa vermelha, calções pretos, alto, moreno. Será esta a última ideia que terei dele, a última coisa que me lembrarei para o resto da minha vida? Os meus pais não sabem o que fazer. Olham para mim como se não me conhecessem. Se calhar nunca nos conhecemos realmente uns aos outros. Faço chamadas para pessoas que eles nunca viram. Ligo aos amigos dele, ligo à psicóloga que eu paguei para ele sair a meio da consulta e nunca mais voltar, ligo à polícia, aos bombeiros, ao 112. Vejo as redes sociais dele, à procura de pistas neste mapa do tesouro. Ninguém sabe o que fazer. Os meus pais choram. Eu não posso chorar, tem de haver algo que eu possa fazer. Sou a única pessoa sentada na receção. Os minutos arrastam-se nesta espera infinita. Inspeciono o meu corpo à procura de lesões. Tenho de estar a sangrar, os meus ossos deformados, todos os tendões e vísceras soltas a flutuar por baixo da minha pele, algo que explique esta dor que me esmaga. Expiro pela boca, com medo de me esquecer de respirar. Acho que é por isto que as pessoas rezam. O meu pai encontrou-o. Levou-o para casa, onde ele se fecha no quarto e suplica que não quer falar ou ver ninguém. Levo a minha almofada e um cobertor para o cadeirão do pátio, junto à porta de casa. As estrelas cintilam, como se fosse só mais uma hora na vida delas. Fecho os olhos e agarro-me à memória da voz dele, do seu sorriso, do cheiro e da sensação dos seus braços quando me abraça. Guardo as suas chaves de casa à volta do meu pescoço. Elas balançam e tilintam junto do meu coração, onde existirá sempre um lugar onde ele pertence. As lágrimas surpreendem-me quando finalmente chegam, mas deixo-me dormir. 29


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DEZ 2021


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