XXXV Edição Revista RESSONÂNCIA

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XXXV

JUN 2022

AÇÃO-REAÇÃO


Por definição um conflito consiste num choque, num embate. É a palavra utilizada para definir uma luta, uma oposição. Palavras são aquilo que utilizamos para passar uma mensagem, mas, infelizmente, o conflito não se restringe ao papel. Faz questão de existir na nossa vida, na nossa sociedade, no nosso precioso minuto de vida como força propulsora do progresso, mas também como matéria instintiva de ser mais e melhor! O conflito é intrínseco ao ser humano e contagia tal qual uma pandemia por declarar. Pandemia que não teremos a possibilidade de erradicar nesta XXXV Edição da RESSONÂNCIA. Contudo, não nos manteremos inertes! Malala Yousafzai, vencedora do Nobel da Paz em 2014, disse: “One child, one teacher, one book, one pen can change the world.” Talvez tentemos este feito com a presente revista. Na arte médica, a empatia tem de estar de mãos dadas com a compreensão e deixar de lado qualquer barreira à relação médicodoente. A Medicina resgata vidas, independentemente do contexto político, social ou cultural. Nesta edição procuramos abraçar o conflito e medicar esta reflexão de perceções várias sobre o impacto que os conflitos têm na rotina de cada um de nós, enquanto pessoas e futuros médicos. O conflito interno não estará assim tão distante do externo, pelo que, enquanto sociedade, somos o que dizemos e fazemos. Do conflito interpessoal no trabalho ou em casa até aos confrontos armados na Ucrânia ou no Médio Oriente, a empatia e a solidariedade vão sendo menosprezadas em prol da guerrilha consumista do ego individualista. A 3ª lei de Newton afirma que para toda a ação há uma reação. Em pleno ano 2022 assistimos à erupção de ânimos políticos e económicos, à degradação dos direitos humanos, ao retorno de ideias não progressivas e de índole discriminatória, a conflito cíclico e infindável. Para todas estas ações, colocamos a questão. Que reação nos espera?

Catarina Monteiro & Pedro Freitas Coordenação-Geral da Revista RESSONÂNCIA


CRÓNICA L i Ve r d a d e !

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A Te r c e i r a L e i d e N e w t o n

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Mediatismo Corrompido

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Quebrar os Ciclos Infinitos Para Que Possamos Dar Um Passo em Frente

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Grande Entrevista

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Colheita de História

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A I n s u s t e n t á v e l L e v e z a d o Te r

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Conflito em Saúde – Onde está a empatia?

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Os Médicos no Nascimento da Democracia em Portugal

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CULTURA 1917

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O Arquipélago Gulag

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M ú s i c a e m Te m p o d e C o n f l i t o

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CRÓNICA Ouvidos Moucos

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CRÓNICA

Catarina Monteiro

LI VERDADE! É

dia 1 de abril e acordo dois minutos antes da horaregime definida no despertador. Desperto com o mesmo pensamento de todos os dias. Já passaram uns seculares meses, mas na minha mente a rotineira lengalenga não desaparece. Vem importunar-me sem pedir licença e sufoca-me até ao tutano. Tento a todo o custo ignorar essa sombra que me persegue, mas quando regresso à minha solidão mental, ei-lo retornado das trevas: se calhar o problema sou eu mesmo. Passam alguns minutos das oito da manhã quando chego ao destino habitual e encontro as mesmas testemunhas oculares destas semanas de estágio. Aceno e distribuo bons dias, mas quem é esta gente afinal? Eu própria sou uma desconhecida na multidão. Sempre gostei de observar o mundo ao meu redor, mas recentemente lembraram-me que ver e ouvir não são ferramentas capazes de construir vínculos nutritivos. Sinto-me refém do socialmente correto, da cordialidade num tête-à-tête, da amizade de circunstância, do parecer estar bem quando está tudo mal, do calar a minha voz perante os egos que monopolizam conversas, dos tóxicos comentários depreciativos, da regra padrão, do “normal” (pausa para respirar). Sinto-me como fotocópia de um código de estrada, mas sem saber bem o propósito de tanta autoimposta lei, em diminuto conforto perante a crítica alheia e tudo e todos me fazem duvidar sobre quem sou. Serei eu livre ou finjo que o sou? O conflito interno vai-se agigantando com o acumular de angústias, de sentimentos negativos e de gíria entendida como hábito comum. Cá dentro ganha o rancor e a anedonia.

Talvez seja errada a minha perceção, mas já nem consigo ser mais que esta inóspita versão, que é minha também, mas nem metade do que trago para se ler. Chega a ser ingrato não sentir a liberdade onde se costura democracia há já 48 anos. Se tenho liberdade para ser livre porque insisto em carregar estas cruéis amarras? Neste turbilhão oculto nem distingo quem sou. Não me defino, não me decido, não me partilho. Aceito o que vivo e evito querelas para mal da minha ambição. Embrulho o atrito externo no peito para continuar a promulgar mais uma dose de “causa-sem efeito”! Como evitar esta arte da autorrepressão que cada vez mais me esconde dentro de mim, aprisionando-me numa livre solidão não subjugada a rótulos e escrutínios? Estou presa ao que sou e escasseia-se-me a coragem de vivê-lo em voz alta... ― “Estás a ouvir? (desperto pela segunda vez nessa manhã) Traz compressas”. — Com pressas? Calma, sem pressas! Temos todo o tempo do mundo! – respondo encenando a personagem destes três meses de quotidiano. Ao meu lado, uns olhos reviramse perante a minha fala de improviso. Se calhar já é tarde para mim – despoleta-se o meu monólogo interno. Se calhar deveria ter feito tudo da mesma maneira, mas sem medo de errar. Há beleza no erro, ainda que nos ensinem o contrário! (Até à vista...)

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A TERCEIRA LEI DE NEWTON

André Fialho

A TERCEIRA LEI DE NEWTON N

o século XVIII, Isaac Newton publicou a sua mais aclamada obra, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, onde expôs as suas três Leis do Movimento, que constituíram um grande marco no desenvolvimento da Ciência e da Física. A Terceira Lei é classicamente reconhecida pela frase: “Para cada ação, existe uma reação oposta e igual.”. É uma descrição muito sintética e didática, onde os conceitos “ação” e “reação” procuram representar o resultado de uma força aplicada sobre um corpo. Contudo, podemos assumir que não vemos o contexto da Física nesta descrição. Imaginemos, por exemplo, que “ação” se refere, passo o pleonasmo, às ações que uma pessoa realiza. Estas ações podem ser feitas acidentalmente ou com um propósito definido, segundo as nossas convicções e atitudes, ou, porventura, sob a vontade de outros com influência sobre nós. Destacase que muitas destas ações têm um impacto noutras pessoas, sendo que o seu resultado cria o laço entre a nossa ação e a reação dos outros.

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Chegando a este ponto, pode-se refletir na possibilidade de as ações humanas com influência nos outros terem em retorno uma reação de igual intensidade, à semelhança do que é afirmado na frase. Será que isto acontece sempre? O quão bem é que a Terceira Lei de Newton descreverá o comportamento humano? Para indagarmos mais sobre estas questões, começo por distinguir a bondade da maldade, os dois polos do espetro que definem os nossos atos. Infelizmente, vivemos num mundo que é confrontado com frequência pelas más ações de alguns, ora numa maior, ora numa menor dimensão. É necessário mencionar a invasão russa na Ucrânia, que é um dos exemplos mais atuais e com maior relevância para as nossas vidas. Contudo, também podemos observar más ações num assalto, num assassínio, ou noutras formas de crime. Todas elas estão associadas a uma malevolência, sendo condenáveis por parte de quem as julga, conduzindo assim a um sentimento de justiça, de recompensar pelos prejuízos causados. No entanto, existe outro sentimento que temos de ter em consideração. É algo que fomenta a vontade de quem é atingido pela má ação: a vingança. De certo modo, a vingança é a perspetiva inicial que as pessoas afetadas têm quanto ao conceito de se fazer justiça. A vingança tem um carácter primitivo, desprovido da razão. É uma forma de as pessoas procurarem um consolo perante os danos e as perdas que sofreram. Curiosamente, o tema da vingança encontra-se bem representado, por exemplo, nos enredos de filmes como os westerns, ou de livros.


A TERCEIRA LEI DE NEWTON

Isto mostra que as pessoas sentem uma atração irracional pelo resultado que a vingança traz, que foi assim aproveitado por estes meios de entretenimento para criar histórias. A vingança é, deste modo, o que sentimos no início como a reação “oposta e igual” à ação. Apesar disto, na nossa sociedade, a vingança não é a forma utilizada para a condenação de atos imorais. A justiça aplicada procura impor um castigo que seja proporcional ao ato, sem que estejamos a pagar na mesma moeda. Esta atitude de justiça procura transmitir uma maneira exemplar e honrada de compensar as perdas e prejuízos. A meu ver, não se trata de ser uma reação igual à ação, mas sim adequada a essa ação. Tendo isto em conta, volto a debruçar-me sobre a guerra na Ucrânia. Sabe-se que os combatentes do lado russo têm provocado atrocidades contra civis ucranianos, cometendo assim crimes contra a Humanidade. A invasão da Ucrânia foi um ato infundado que levou, inevitavelmente, a que os ucranianos tivessem de reagir em sua defesa. Deste modo, a posição legítima da Ucrânia na guerra é apoiada por quase toda a comunidade internacional. Ainda é difícil de se prever o desenlace deste confronto no Leste da Europa. Não obstante, coloco aqui uma situação somente hipotética: os ucranianos poderiam começar a fazer retaliações contra a Rússia, atacando os seus cidadãos. Se isto sucedesse, seria pouco provável que os outros países aprovassem estas agressões. Seriam reações baseadas na vingança, e não no princípio moderno da justiça. Perante estes crimes de guerra feitos pelos militares russos, a reação correta será julgar os responsáveis, segundo a Lei aplicada no âmbito internacional. Voltamos a ver que é possível existir uma reação que, apesar de não ser precisamente igual à ação, é a mais correta. Podemos afirmar que, para muitos, existe uma vontade de evitar a vingança, mesmo quando somos afetados por uma má ação. Julgo que isto se deve a virtudes como a bondade, a piedade e a honra. Estas

motivam-nos a condenar os criminosos sem a mesma barbaridade que os levou a cometer os seus atos. Perante boas ações, estes valores incentivam-nos a retribuir os que nos beneficiaram e a ter doravante um espírito mais solidário com o próximo. É difícil descrever o comportamento humano com a Terceira Lei de Newton. É verdade que, em muitos casos, as ações negativas conduzem a reações com um valor igual. Contudo, temos de continuar a promover um mundo em que se procura uma reação justa, ao invés de uma reação igual, face a um mau ato. Por fim, deixo a minha esperança de que um dia possamos falar apenas de boas ações, e que assim a frase: “Para cada ação, existe uma reação oposta e igual.” consiga descrever na perfeição o comportamento humano.

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MEDIATISMO CORROMPIDO

João Pereira

MEDIATISMO CORROMPIDO A

nossa frágil realidade sofreu um novo abanão e a onda inicial ainda repercute num trajeto indefinido e sem perspetiva. Enquanto uns tentaram travar o primeiro embate com a finidade da própria vida, os outros do costume pegaram na sua artilharia sentimental e ergueram as barricadas que acharam pertinentes para conter o que se avizinhava. A invasão da Ucrânia pela Rússia é a palavra de ordem nos últimos dias e sequestrou os holofotes, pois o mundo pareceu virar costas às outras guerras que perduram pelo globo. Levantamo-nos, arranjamo-nos, encaramos os problemas do dia e retornamos ao ponto de partida num loop constante e egocêntrico. Nestes dias, verificamos o obituário ucraniano e as consequências da arrogância humana, mas rapidamente voltamos à nossa bolha e somos atacados de amnésia total do que se passa no mundo em desenvolvimento. Todavia, se as desventuras que acontecem além-fronteiras nos vão ao bolso, rapidamente nos manifestamos impetuosamente procurando o fim de toda esta artimanha que nos suga o montante. A resposta do mundo ocidental é sempre a mesma, com uma indignação inicial nas redes sociais, conversas de café de que “isto vai muito mal” e um rápido altruísmo egoísta mascarado de voluntariado. Não obstante, temos o dever de ajudar de todas as maneiras os lesados, pressionar os governos a interceder por quem sofre e agradecer aos que se prontificam a prestar auxílio, só que o que realmente importuna é a seletividade com que o fazemos. Por onde andam as campanhas para ajudar o Iêmen, que desde 2014 se vê preso numa guerra civil que já ceifou a vida a 377 mil pessoas e coloca neste momento outras 19 milhões à fome. Verificamos pontualmente uma doação ou outra, mas a cobertura desta crise humanitária rapidamente cai em esquecimento alheio.

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Contudo, antes de angustiar este texto ainda mais, devemos destacar o que torna este conflito no leste da Europa tão omnipresente. Falamos de 2 grandes exportadores de matérias essenciais para o mundo e paira no ar o receio de um conflito nuclear local ou mesmo mundial caso a invasão se expanda mais ainda. Queiramos ou não, está bastante próximo de nós. Tudo isto é legítimo para a grande mobilização em função da paz, pois caso esta não seja alcançada, a inflação não será o nosso único problema.


MEDIATISMO CORROMPIDO

Logo, talvez seja isto o que nos distancia dos outros conflitos, o grau de ameaça que representam ao funcionamento da nossa sociedade. O que é que interessa às elites saber acerca do genocídio dos Rohingyas no Myanmar (uma minoria muçulmana não reconhecida e perseguida há décadas)? O que é que interessa a guerra civil na República Centro Africana, entre grupos religiosos desde 2013, que dividiu o país e o afastou da democratização? A nossa empatia esgota-se rapidamente enquanto milícias armadas extremistas crescem e o desrespeito dos direitos humanos mais básicos intensifica-se.

Continuamos anestesiados com o que se desenrola por este mundo fora. Adicionalmente a comunicação social tem aqui um papel bastante agridoce. Por um lado, são eles os elementos-chave na divulgação às pessoas, contudo são também aqueles que nos manipulam com o seu sensacionalismo apático. Testemunhámos um novo aumento das tensões no Médio Oriente em 2021 com o “apartheid” israelense na Cisjordânia e o despejo de famílias palestinianas, mas o conformismo com esta guerra já é tanto, que o jornalismo rapidamente sintoniza-nos nos temas que garantem audiências imediatas. As manifestações em maio desse ano pelo mundo foram sol de pouca dura e o desprezo dado pelos media não permite informar a população do que realmente acontece na Palestina. Por outro lado, este mediatismo diferencial também se entrelaça bastante com os preconceitos que ainda se regalam na nossa consciência. Face à fuga em massa de ucranianos da guerra, os diversos países europeus apressaram-se a prestar um rápido auxílio, quebrando as demais barreiras que impossibilitaram o acolhimento, assim como, os civis criaram iniciativas para recebê-los da melhor maneira possível. O desconcertante

disto tudo é que não há menos de 7 anos no apogeu da crise migratória no Mediterrâneo fomos também muito hábeis em encarcerálos em campos de refugiados abarrotados, sem condições dignas e a recambiá-los “para a terra deles”. Em ambos os casos, as centenas de ONGs e os diversos governos não tiveram mãos a medir para apoiar as pessoas, contudo, enquanto concedemos centenas de pedidos de asilo aos ucranianos por dia, outros aguardam há anos pelos mesmos, só que em situações precárias na Grécia. A cereja no topo de bolo é que aqueles que fogem da Eritreia, ou mesmo da Síria, onde o governo de Bashar al-Assad (apoiado por vários países, inclusive a Rússia) batalha desde 2011 com forças rebeldes que visam a instauração de um regime democrático, tenham de ser rotulados ao aumento da criminalidade, da subsidiodependência e ao fanatismo religioso. E mesmo assim continuamos anestesiados com o que se desenrola por este mundo fora. No Afeganistão, os talibãs vão instituindo a sua visão tribal e retrógrada sobre a comunidade, sobretudo nas mulheres, a Nigéria vê-se numa encruzilhada com os fundamentalistas religiosos, que vão perdendo terreno (mas nós só nos lembramos do caso insólito do rapto das 200 meninas) e Caxemira continua vítima dos joguinhos entre a Índia e o Paquistão. No início da pandemia, a tensão entre a Arménia e o Azerbaijão voltou a agravar-se com a disputa por Nagorno-Karabakh (zona autoproclamada que está incluída no domínio azerbaijano, mas com 95% da população arménia) e mesmo sendo um conflito próximo de nós, passou bastante despercebido. Assim sendo, resta-nos a nós decidir se retornamos à nossa bolha ou se a tentamos rebentar e enfrentamos a dismorfia da realidade. Torna-se imprescindível unir-nos para ajudar aqueles que sofrem e pressionar estes governos cujas as mãos andam atadas com o cinismo e a ganância.

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QUEBRAR OS CICLOS INFINITOS PARA QUE POSSAMOS DAR UM PASSO EM FRENTE

António Lopez

QUEBRAR OS CICLOS INFINITOS PARA QUE POSSAMOS DAR UM PASSO EM FRENTE H

istória é uma das disciplinas que mais nos acompanha durante o nosso percurso escolar básico. Desde cedo, assistimos a muito do percurso do Ser Humano desde que ele caçava e vivia em cavernas até à era moderna. Um dos acontecimentos que é comum a qualquer era é a guerra, o conflito. É curioso que sempre falámos nisso nas aulas, mas nunca paramos para refletir no porquê… De facto, a História é uma grande ponte que liga o passado ao presente, mas que também está sempre a criar os building blocks para o futuro. Não podemos fingir que entendemos o contexto, a ordem mundial atual se não soubermos o que a causou. Isto porque muitas das questões atuais têm raízes noutros períodos históricos (décadas ou mesmo séculos atrás). Se não tirarmos as devidas ilações, e se não formos educados sobre os erros que os nossos ancestrais cometeram, não seremos capazes de evitá-los quando o futuro da humanidade estiver nas nossas mãos. O filósofo alemão Georg Friedrich Hegel dedicou muito da sua vida a estudar estas questões. Ele advogava que a História é nada mais, nada menos que um processo que tem um destino predeterminado - a liberdade humana. Cada evento que teve lugar na História – do Império Romano à criação do Estado Israel – tenta aproximar-nos, passo a passo, desse mesmo destino. Além disso, Hegel acreditava que os eventos teriam que se repetir, muitas

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vezes num ciclo sem fim. Dizia também que somente experimentando a mesma coisa duas vezes podemos finalmente levá-la a sério. Nem a propósito, Karl Marx, na sua obra “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte” referia que na primeira vez as coisas acontecem “como tragédia, a segunda como farsa”. Infelizmente, todos os dias somos inundados de notícias, de informação que corrobora esta teoria, demonstrando que a maioria da população, principalmente quem está em posição de poder, ainda opta por ignorar, ou até lavar as mãos como Pilates, no que toca a estes assuntos tão fundamentais. Mas vamos a exemplos. Durante a Segunda Guerra Mundial, a Polónia viveu uma situação muito singular e conturbada em comparação com outros países – tinha dois inimigos diferentes dentro do seu território. A metade ocidental da nação era controlada pela Alemanha nazi, enquanto a porção oriental estava nas mãos de Joseph Stalin, o líder da União Soviética na época. Mas de facto, a situação da Polónia não melhorou muito. Foi sempre subjugada (ou alvo de tentativa de) por parte de outros Países mais poderosos até quase ao limiar do século XX. Em 2020, 30 anos depois da mesma finalmente recuperar o seu estatuto de estado soberano, o país está a voltar a deitar-se na mesma cama. Uma cama que ainda guarda as marcas,


QUEBRAR OS CICLOS INFINITOS PARA QUE POSSAMOS DAR UM PASSO EM FRENTE

e ainda o perfume do que foi uma democracia moribunda, de completa submissão perante um totalitarismo que ameaça valores tão básicos como a imparcialidade e a independência de todos os cidadãos. A situação atual da Polónia é um verdadeiro paradoxo - aceitar voluntariamente o mesmo destino que procurou evitar por décadas. Mas se este tipos de ocorrências se estão sempre a repetir diante dos nossos olhos, provavelmente poderemos dizer que não é o acaso a causa disto, mas que grande parte da culpa (se pudermos chamar culpa) nos pertence… Embora a hipótese de Hegel possa parecer persuasiva em alguns casos – por exemplo a pandemia de COVID-19 tem muitos pontos de contacto com a gripe espanhola – certamente poderíamos evitar a repetição de calamidades históricas se todos prestássemos mais atenção durante as aulas de história. Um olhar para o passado pode muitas vezes ser suficiente para perceber que já temos todas as respostas que procuramos e todas as ferramentas para evitar que os piores cenários aconteçam... novamente. Mas a pergunta fica: o que poderemos fazer como seres individuais? Não chega simplesmente memorizar datas, nomes e pequenos detalhes, enquanto nos escapa a “bigger picture”. Um dos grandes Professores de História que tive dizia que “aprender a lição errada da história é ainda pior do que não aprender nada”. Numa famosa conversa entre Albert Einstein e Werner Heisenberg, dizia o primeiro que “aqui construímos um belo navio, que tem todo o conforto e luxo, mas

uma coisa que não tem, é uma bússola, por isso é que não sabe para onde se dirige”. Falava de paradoxos quando mencionei a Polónia, mas os tempos modernos são riquíssimos nos mesmos. Fabricamos imensos mísseis teleguiados, mas cada vez temos mais gente completamente perdida na vida (e no que quer para a mesma). Ambicionamos ordenados maiores, mas à custa de valores menores; já dividimos o átomo, mas continuamos a ter dificuldade em quebrar certos preconceitos. Voltando a Einstein, é importantíssimo perceber que não podemos resolver os problemas do hoje usando simplesmente a mesma forma de pensar que usámos para os “criar”, porque se o fizermos, será apenas o princípio da insanidade a tomar conta de nós. É importante começar por arranjar o botão que nos faz estar sempre em loop, e para isso é preciso inovar. E inovar não significa simplesmente trazer algo de novo, mas ir às nossas raízes, ao básico. É importante parar, escutar mais, não usar aquela palavra desnecessária, naquele tom desnecessário, ser mais empático e aprender. Aprender a investigar todas as evidências, especialmente se não estiverem alinhadas com nossas noções pré-concebidas. Devemos questionar tudo, manter um olhar crítico e ajudar sempre o próximo a melhorar, para que o eu nunca supere o nós. Se conseguirmos “dominar a História” e fazê-lo da maneira certa, evitaremos reviver as tragédias do passado, mas acima de tudo, queremos que cada passo que dermos em frente, não seja simplesmente voltar a dar três passos atrás...

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gRANDE entrevista


GRANDE ENTREVISTA

Ana Catarina Manaças

DR. ALEXANDRE VALENTIM-LOURENÇO

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o âmbito da XXXV edição da Revista RESSONÂNCIA, entrevistámos o Dr. Alexandre Valentim-Lourenço, Especialista em Ginecologia e Obstetrícia e Assistente Convidado da disciplina de Ginecologia e Obstetrícia desde 1998. Formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, foi Presidente da Direção da Associação Nacional de Jovens Médicos entre 1995 e 1996 e é, desde 2017, Presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Conhecendo este currículo tão vasto, diversificado e abrangente, quisemos saber a opinião do Dr. Alexandre quanto aos conflitos armados que são uma presente realidade no nosso quotidiano, sobretudo o conflito em solo Ucraniano, dadas as ações humanitárias prestadas pela Medicina, bem como as ajudas vindas um pouco de toda a parte para restaurar a esperança de quem viu, de um dia para o outro, a sua vida no meio do caos. Neste sentido, a Ordem dos Médicos tomou posições para ajudar a integrar estudantes de medicina e médicos ucranianos chegados a Portugal, para que possam continuar os seus estudos ou exercer a sua profissão.

Q1: Assistimos nos últimos anos a um crescente de situações de conflito que foram ganhando terreno debaixo da nossa ingenuidade europeia. O conflito em solo europeu, após uma séria pandemia que revolucionou negativamente a economia, sensibiliza os portugueses para os restantes conflitos além-fronteiras ou só abana os valores europeus, muitas vezes menosprezados? Os conflitos que ocorrem em todo o mundo normalmente têm pouco impacto na sociedade portuguesa e nomeadamente nas instituições médicas. No entanto, em Portugal, sempre houve vários médicos que se voluntariaram para participar na atividade de organizações internacionais, deslocando-se para situações de conflito, muitas vezes longínquas, noutros continentes.

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DR. ALEXANDRE VALENTIM-LOURENÇO

No entanto, um conflito que ocorre na Europa, que afeta as fronteiras da União Europeia, que está mais próximo e que responde mais aos nossos valores, desencadeia uma grande onda de solidariedade nestes médicos e também na sociedade portuguesa, que reagiu de uma forma rápida, o que parece revelar um espírito europeu de defesa mais forte do seu espaço comunitário. Q2: Tendo em conta a atual crise humanitária que tem vindo a assolar a Ucrânia nos últimos meses e a autorização especial para médicos ucranianos trabalharem em solo português, que medidas foram definidas de modo a auxiliar a integração destes profissionais? Os médicos refugiados ucranianos têm surgido em algum número em Portugal, acompanhando as suas famílias que se deslocaram para o nosso país. Será muito importante perceber se serão refugiados temporários ou se serão refugiados que escolherão, no futuro, o nosso país para exercer a sua profissão e viver. No caso de serem refugiados temporários, e já temos alguns casos de médicos que já retornaram à Ucrânia, as medidas extraordinárias não têm efetividade, porque o exercício da Medicina em Portugal obriga ao cumprimento de diretivas comunitárias, que preveem que a equivalência tenha de ser feita pelas universidades portuguesas, e ainda o reconhecimento da comunicação na nossa língua. É importante realçar que, para estes médicos, foi constituída rapidamente uma rede de apoio, com mais de 200 médicos ucranianos que já residiam e trabalhavam em Portugal. Assim, pode-se integrar a sua capacidade médica, apoiada noutros colegas médicos que já se exprimem bem na língua portuguesa. Ao mesmo tempo, os refugiados precisam de cuidados médicos adicionais num sistema de saúde que já está sobrecarregado, estando também prevista a transferência até 600 doentes de hospitais ucranianos para Portugal. Estes refugiados ucranianos e estes transferidos da Ucrânia também não falam português. Assim, estes médicos refugiados e os médicos ucranianos que se encontravam já em Portugal são essenciais para os tratar com qualidade.

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Por isso, esta rede que a Ordem ajudou a organizar, e a facilitação deste contacto de médicos refugiados com esta rede, contribui para melhorar os cuidados de saúde prestados aos refugiados ucranianos ou doentes que sejam transferidos. Em terceiro lugar, várias instituições do SNS, quer se tratem de instituições públicas ou privadas, abriram consultas específicas para estes refugiados ucranianos. A própria clínica onde eu trabalho abriu consultas de pediatria, ao sábado, voluntariando-se médicos pediatras e obstetras para receberem gratuitamente estes doentes, com o apoio de intérpretes que auxiliam na sua avaliação. Esta onda de solidariedade foi global, aconteceu em várias instituições públicas e privadas, e permitiu garantir para estas populações deslocadas, algumas delas de grupos particulares, como crianças, idosos e mulheres que muitas vezes deixaram os seus maridos na Ucrânia, uma assistência capaz de resolver os problemas de saúde e de doença, num SNS muito sobrecarregado pelos próprios doentes nacionais.


GRANDE ENTREVISTA

Q3: Os médicos estrangeiros que venham a exercer em Portugal necessitam a priori que o seu curso seja reconhecido no nosso país, processo esse que pode demorar quase um ano. Serão designadas estratégias de apoio ou algum tipo de agilização dos procedimentos face ao caráter urgente desta situação? As estratégias que a Ordem pode promover e auxiliar têm a ver com a capacidade de ensinar rapidamente a língua portuguesa. Porque o reconhecimento específico dos cursos de Medicina é feito nas universidades portuguesas, que podem, de alguma forma, agilizar e encurtar os tempos de exame, mas não podem diminuir os requisitos, para evitar que sejam introduzidos não médicos no sistema ou pessoas com qualificações insuficientes para a prática da Medicina. Mas esta é uma responsabilidade das universidades e das faculdades de Medicina portuguesas.

Mas independentemente do lado do conflito em que está cada um dos afetados, estes doentes devem ser sempre tratados da mesma maneira. Q4: Sendo a parte linguística um pilar da prática clínica, para médicos que chegam em busca de refúgio, sem dominar a língua portuguesa, que medidas de auxílio à integração e ensino da língua portuguesa estão disponíveis para estes profissionais de saúde? Tal como já aconteceu com os médicos sírios refugiados, há alguns anos atrás, foram criados cursos especializados e intensivos de português, em colaboração com uma instituição de ensino e com a Ordem dos Médicos. Da parte da Ordem dos Médicos existe a possibilidade de agilizar e aumentar o número de provas de comunicação médica, de maneira a que, em conjunto com o Instituto Camões, isso se possa fazer de forma mais célere e adequada ao reconhecimento destas competências linguísticas mínimas.

Q5: Face ao panorama do mundo atual, onde cada vez mais frequentemente surgem situações de guerra, seria viável alargar esta autorização especial a outros profissionais de saúde e estudantes de medicina que também se encontrem em situações de conflito no seu país natal? Não faz sentido criar situações que ultrapassem as normas de segurança e de qualidade dos médicos que temos em Portugal. Não garante a segurança dos doentes e torna-se um fator injusto para com os estudantes de Medicina que existem em Portugal. Podemos facilitar nos tempos e nas oportunidades de exames, mas não na qualidade e nas competências que são exigidas. Mas, por exemplo, o programa Erasmus poderia ser alargado a este tipo de estudantes. Q6: A medicina não escolhe bons nem maus e há a tarefa árdua de conciliar vidas humanas em situação de catástrofe. Em que medida é que as escolas médicas ensinam os seus alunos a estar preparados para lidar com opiniões divergentes num mundo de mudança e incerteza em que vivemos hoje em dia? Os princípios éticos de não discriminação que são próprios, quer do Juramento de Hipócrates, quer do Código Deontológico dos médicos, quer das declarações da Associação Médica Mundial, são cumpridos nas universidades portuguesas. Os estudantes de Medicina, desde cedo, são ensinados a não discriminar ninguém, independentemente das suas opiniões religiosas, raciais, económicas e certamente políticas, pelo que esse treino não precisa de ser aprofundado. No entanto, as situações de catástrofe, são um teste muito específico a esta capacidade ética de tratarmos os doentes todos por igual, nomeadamente quando a transmissão da informação e de comunicação transforma os beligerantes em bons e maus. Mas independentemente do lado do conflito em que está cada um dos afetados, estes doentes devem ser sempre tratados da mesma maneira.

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COLHEITA DE HISTÓRIA

Ana Catarina Manaças

Colheita de História

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o âmbito da mais recente rubrica da RESSONÂNCIA, falámos com a Drª. Maria Guilhermina Pereira, Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, ex-aluna da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa (AEFML), no ano letivo 2013-2014. Atualmente, desempenha o cargo de vogal no Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos. Não quisemos deixar de colocar algumas perguntas à Drª. Maria Guilhermina Pereira que focassem não só a AEFML e o seu passado recente nesta instituição, mas também a sua vivência diária enquanto profissional de Medicina Geral e Familiar, tendo por base situações de conflito que são uma realidade constante no nosso quotidiano. Q1: A arte da Medicina baseia-se no equilíbrio entre as expectativas do médico e do doente. Qual a importância da gestão de conflitos na consulta de Medicina Geral e Familiar? É de extrema importância. Na minha prática clínica, sempre que tive conflitos penso que fui bem sucedida a resolvê-los. Claro que não posso ser ingénua e acreditar que ficam todos os problemas sanados, mas o que me apercebo é que o mais importante é o diálogo. E quem não deve, não teme. Se estamos seguros daquilo que estamos a fazer, o segredo é abrir o livro e explicar as coisas. Os doentes percebem se temos de comer alguma coisa no intervalo das consultas, percebem se há uma pessoa com maior dificuldade em expor a sua situação e por isso consome mais tempo de consulta (sem exageros de maior, claro), entre todas as outras coisas que vão surgindo na prática clínica.


COLHEITA DE HISTÓRIA

Q2: Em cada conflito encontramos dois pontos de vista distintos, opostos, mas raramente inválidos, sendo por vezes difícil aceitar uma ideia diferente da que tínhamos originalmente. Na sua experiência enquanto médica, qual a importância de avaliar os dois lados de uma história, por muito improváveis que possam parecer? Avaliar os dois lados é fundamental. Lembrome sempre de uma aula do Prof. João Lobo Antunes que dizia “Empatia é simpatia para cá e simpatia para lá”. Precisamos de saber colocar-nos genuinamente no lugar do outro. Se há uma resposta mal dada, alguma voz mais levantada, certamente haverá uma razão mais profunda para isso que muitas vezes nem é clara para nós nem para o próprio doente. E aquilo que desarma completamente o outro é uma resposta de compreensão. E isso dános muito mais dados sobre o utente do que aquilo que imaginamos. Uma pessoa nestas circunstâncias não quer ser chamada à atenção nem ouvir um não. Só quer ser compreendida. Se ouvirmos com calma ambas as versões, compreendemos que houve um desalinhamento e má compreensão em dada altura e esclarecendo as dúvidas, resolve-se. Além disso gostaria só de acrescentar uma perspetiva muito pessoal minha que é a de partir do princípio de que toda a gente faz as coisas com a melhor das intenções. Q3: Foi de um confronto de listas candidatas à Direção da AEFML que nasceu a ideia de construir o “Piso 3”. Como candidata a Presidente nesse ano, vendo-se envolvida numa disputa, como surgiu a ideia de construção deste novo espaço para os alunos e que obstáculos teve de ultrapassar para a ver concretizada? A construção deste espaço já tinha sido ponderada e pensada por outras direções, mas não avançou porque estava dependente de fundos e projetos do hospital, tendo sido encontradas outras soluções na altura.

Ao avançar para uma disputa, seria importante ter grandes chavões para colocar no plano de atividades. Pensei que a AEFML tinha um fundo bastante grande que estava morto e não aplicado e lembrei-me de repensar este projeto, falei com algumas pessoas antes que me incentivaram, outras que me desmotivaram também, mas em equipa acabámos por arriscar esta ideia. Foi um desafio grande dado que as grandes obras costumavam ser preparadas na direção anterior, com um ano inteiro de negociações e autorizações. E esta obra que foi a maior de sempre da história da AEFML. Foi pensada em abril/maio de 2013 e erguida em março de 2014. Envolveu renegociação de apoios anuais, renegociação de contratos com o grupo Alfredo Jesus, que apoiou financeiramente a obra em troca de isenção de rendas nos anos seguintes, negociações com a faculdade e com o hospital, pareceres técnicos, licenciamentos de obra e até um parecer da ANA Aeroportos por ser uma construção em altura! Foi um desafio enorme, mas muito interessante e com o qual aprendi imenso! Q4: Tomando como ponto de partida o sucesso da construção do “Piso 3”, será possível considerar o conflito como uma entidade criativa, de onde podem advir resultados positivos? Sem dúvida. Mas depende do nível a que levamos o conflito. Penso que se for conflito agressivo que envolva difamação, agressões, competição desleal, é sempre difícil. Não posso deixar de mencionar que foi um ano difícil que deixou algumas marcas e em que percebi que em eleições vale tudo e que se dizem e passam coisas à margem dos candidatos sempre muito desagradáveis – parte a parte. E é triste perceber que há sempre muita sobreposição de interesses pessoais. Em suma, podem advir resultados muito positivos, mas sempre se houver respeito e acima de tudo diálogo.

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A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO TER

Bernardo Gunzburger Lopes

A IN NSU UST TEN NTÁ ÁVE EL LEVEZA DO TER C

ada pé de bailarina, por trás da beleza de sua angulação perfeita, revela uma escultura moldada por esforço e dedicação. O treino árduo, persistente e produtivo leva aos seus frutos, mas ao custo de tempo- muito tempo- além das bolhas e hematomas nos pés. No mesmo sentido que o estudante cansa e tranca-se nos estudos para um dia ser um profissional, uma pessoa ambiciosa esboça o presente pelo futuro. E embora o trabalho árduo seja necessário na vida de toda e qualquer pessoa que procure conforto e segurança futura, tais esforços, levados a extremos, nivela o ser humano como se este fosse uma máquina, como se não houvesse sentido além das tarefas que lhe são dirigidas. O número de estudos recentes realizados sobre burnout, ansiedade, stress e saúde mental indica um problema nesta abordagem da cultura de trabalho. Se mais nada, evidencia que a nível social, dividimos (e provavelmente priorizamos) o trabalho contra o viver. Mas, alguns poderiam argumentar, que mal há em abdicarmos do lazer presente por prazeres futuros? Afinal, Roma não foi construída num dia. Apesar de todos os caminhos para ali levar, uma vida ordenada somente na visão de Roma irá certamente encontrar o mesmo destino — uma decadência levada ao cabo por pressões exorbitantes, tanto internas como externas, mantidas suficiente tempo para acender o império todo como um barril de pólvora.

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O antropocentrismo, desde tempos primordiais, criou e fortaleceu a necessidade pela exaltação do mesmo. Neste esforço pela satisfação, de onde nasce a vontade por riquezas e complexidades desconhecidas e muitas vezes desnecessárias na natureza, cria-se também um conflito com a saúde física e mental. Sendo um animal ligeiramente mais ciente, desejamos atingir o ápex da existência e marcar-nos em uma filogenia distinta das demais. Tal é a ilusão do homem egoísta, que vindo do mundo, se acha seu dono. O problema do mundo non-stop é que a vida opera com muitos stops. Precisamos de dormir, de comer, de relaxar e de interatuar; o conflito que estas necessidades biológicas criam com a ambição ou desejo agora é mais evidente. Hoje o perfeito é pedido e não idealizado, e quando o melhor esforço do trabalhador inevitavelmente for inferior ao seu melhor hipotético ele será pressionado mais para conseguir atingir o impossível. Este standard da perfeição, além de desnatural, é prejudicial ao próprio por conta de muito desgaste (os workaholics são um bom exemplo, capazes de abdicar de quase tudo, menos do trabalho, através de mecanismos neuronais, a grosso modo, semelhantes aos vícios de jogos, álcool e drogas ilícitas). Além disso, quando na cultura de trabalho se cai abaixo da meta pedida, a pessoa é confrontada com a sua dispensabilidade e forçada a adaptar-se às condições desnaturais do mundo. Liberdade e mobilidade económica começam a ultrapassar o resto da vida, tudo que não garanta os frutos das ambições.


A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO TER

A ansiedade propulsionada por esta cultura de trabalho é típica do ciclo das necessidades paradigmáticas da nossa espécie. Por cada invenção que inovasse o nosso quotidiano, por toda ideia feita para ajudar e facilitar a vida, a sociedade aumentava de complexidade e tornava-se dependente das conveniências dadas. As máquinas que populam as nossas casas- o micro-ondas, o frigorífico, a televisão, o computador, o telefone- são alguns dos luxos passados que os olhos modernos veem como banais. Mesmo o homem que ambicione e atinja a riqueza precisará de outros aspetos para equilibrar a sua vida e, se não os tiver, os seus constantes desejos o irão devorar. Além desse aspeto individual, socialmente não há muita melhoria. Com a síndrome de burnout nota-se uma perda de empatia, inicialmente com o próprio e finalmente com aqueles que são próximos. A necessidade de haver um “alfa” (seja em trabalho ou a nível social) incentiva a competitividade entre as pessoas, traindo a função primordial do alfa entre primatas- proteger a sua tribo. Estas dinâmicas isoladoras garantem que o ciclo se propagueem que se anda sempre cansado, sequer com o luxo de muita melancolia (isso resolve-se com antidepressivos), e levados a esperar que não se exija ainda mais trabalho.

O produto destes fatores leva à criação de comportamentos mais tóxicos e violentos para tentar sustentar as exigências elevadas que nos são colocadas. Tipicamente nota-se alterações de sono, tendencialmente a diminuir, deixando o trabalhador exausto e com um funcionamento quase de autômato. Pode-se também notar no consumo de substâncias como: as smart drugs, umas anfetaminas fraquitas que possibilitam sessões de trabalho extensas e de alta concentração; a cafeína, tipicamente usada como contrabalanço à falta de sono; ou mesmo o álcool, tabaco e outras tais drogas ‘leves’ para aliviar quando não se trabalha.

O problema do mundo non-stop é que a vida opera com muitos stops. Até sem a dependência de qualquer substância, a condição desta ambição excessiva e descontrolada pode ainda traduzir-se para outros comportamentos compensatórios (que, descuidados, podem se tornar vícios) tal como comer, sexo e jogo. Na capacidade de imaginar algo além da subsistência, o ser humano é único. Ainda mais impressionante é como depois de imaginar consegue, se se aplicar à tarefa, engenhar maneira de realizar o seu sonho. Como prova de inteligência avançada é indiscutível, mas se será sempre a melhor escolha para essa pessoa individual é outra questão. Tal como os submarinos e foguetes predestinados por Verne, agora também vivemos entre o soma de Huxley, os pesadelos de Orwell e a alienação de Bradbury. Resta saber se a próxima ficção que materializarmos será mais ciente das necessidades da vida.

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CONFLITO EM SAÚDE – ONDE ESTÁ A EMPATIA?

Inês Pereira Maia

CONFLITO EM SAÚDE – ONDE ESTÁ A EMPATIA? Olhar debaixo do tapete da perfeição programada

Q

uando as nossas histórias não são ouvidas e o nosso personagem desenhado a lápis num mundo em que as armas são de borracha, o conflito nasce, colocando frente a frente duas partes cujos interesses e valores estão em posições diferentes ou, muitas vezes, na mesma posição, mas detentoras de uma incapacidade de o reconhecer.

Por vezes, podemos deixar vencer a tendência de a varrer para baixo de um tapete por ser um conceito de aparente, e apenas aparente, complexidade que divaga nos conflitos que assentam por cima dele. Mas a verdade é que, quando esse tapete é sacudido em pleno conflito ou de forma a evitá-lo, o conceito torna-se a base ideal das resoluções.

Estendendo a mão, saindo da nossa personagem para tentarmos perceber como se sente aquele que nos aguarda do outro lado do palco, questionamos “onde estará escondida a empatia?”. Existirá, muito tenuemente, apagada pelas exigências do processo de desumanização a que, diariamente, nos propomos? A borracha passa, mas o decalque fica em cada um dos nossos papéis onde essa palavra “empatia” marcou a sua existência, sendo algo que nos é inerente quando nada se interceta no processo do nosso desenvolvimento.

A área da saúde, lidando com pessoas, seres únicos com os próprios interesses, experiências únicas e visões singulares em mundos esculpidos à sua medida, pode tornar-se um berço de conflitos no seio da convivência social. Seja enquanto profissionais, estudantes, mas principalmente, como pessoas e, igualmente, como histórias, lidamos com o estado de vulnerabilidade dos outros e, simultaneamente, estamos acampados nesse mesmo estado que também nos é próprio.

Apoiando os seus alicerces, por vezes trémulos, na ausência de julgamento (realidade não dotada da impossibilidade aparente), tomada de perspetiva, reconhecimento de emoções e experiências nos outros e capacidade de comunicação, a empatia (sobre)vive em nós. Então, porque chegamos ao ponto de nos questionarmos onde está, apagada pelos vultos que nos nossos dias se depositam com o mesmo pesar, abafado e pesaroso, com que a palavra descansa na retaguarda das nossas ações?

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Varre-se a empatia quando nos cruzamos com a dificuldade da escuta e da presença e cedemos à tendência de esquecer que os outros também sentem ou de achar que sentem o mesmo que nós, quando sentimos, pelos mesmo motivos e da mesma forma como o fazemos. Do alto dos nossos pedestais e de uma posição em que, sob qualquer circunstância, somos, única e exclusivamente, “nós”, podemos ter tendência a achar, arrogantemente, que à frente temos um espelho que mostra o reflexo das nossas sensações em determinada situação.


CONFLITO EM SAÚDE – ONDE ESTÁ A EMPATIA?

Mas, por muito semelhante que a história possa parecer, o personagem é outro, assim como as experiências e as sensações e poderá ser-nos impossível sequer compreender, não estando nunca ao nosso alcance o estado completamente alienado de nós próprios que nos permita encarnar na outra pessoa. Somos VIDAS, no plural, pois a nossa não é a dos que se figuram perante nós, dispostos a guiaremnos o mais próximo possível dos passos deles para que possamos dividir pesos e olhar novos caminhos. Procurar entender a perceção dos factos para além de apenas os constatar, não nos confundindo com o outro, aceitando e compreendendo que a empatia tem muitas limitações de exatidão e que as pessoas são universos completos na sua experiência, revela-se um desafio da atualidade. Um outro universo prende-se com os momentos em que, ao entrarmos em conflito connosco próprios, um dos tipos perigosamente mascarados de inocência no que aos conflitos diz respeito, ficamos mais suscetíveis a focarnos apenas no nosso ego ferido e inseguro no campo de batalha e a passar para segundo plano as pessoas. Afogados e direcionando toda a nossa energia para o que nos atormenta, atingimos um estado de existir sempre sem chegar a estar, muito menos “estar lá” para quem lá está. Num mundo maquinizado que venera uma “perfeição programada”, num extenso romance de amor proibido entre o Homem e a beleza questionável da virtuosidade alheia e computorizada, surge, ainda, a fusão destes dois conflitos, arma mortífera para o conceito que exploramos…

Cada um tem diversas linguagens, mas a empatia é a nossa forma de comunicação, o que nos une e nos faz temer o sofrimento do outro e sentir a frustração e o desconforto de não termos as ferramentas suficientes para o impedir. No entanto, com constantes processos de mecanização e “desumanização” da sociedade, o ser humano sente-se (e é) substituído e imagina-se incapaz de tudo, olhando e verificando que nada do que faz se assemelha à perfeição que as máquinas alcançam. Perdido e estupefato diante de milhares de quadros expostos nas paredes da casinha de bonecas onde se aprisionou, nunca pondera pintar os seus porque pintar à mão perdeu a beleza... A máxima produtividade e eficácia da maquinaria é duradoura e inerente aos considerados “dramatismos sentimentais e feridas emocionais” dos imperfeitos mortais… O Homem SENTE-SE vencido. Assim, coloca escudos para impedir o sofrimento vindo das diferentes realidades e o que se perde é a empatia que, mais que varrida, é tapada com o tapete numa tentativa de não escorregar tão facilmente no resvalado traiçoeiro da humanidade. De pessoas, para pessoas e por pessoas… Aceitamos o cenário atual ou ressignificamos a medicina moderna através de um novo conceito de empatia? Ou, simplesmente, esquecemos todos os conceitos difíceis e deixamos que o tempo a modifique? Talvez pudéssemos começar a sacudir os tapetes…

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OS MÉDICOS NO NASCIMENTO DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL

Rita Bernardo

OS MÉDICOS NO NASCIMENTO DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL

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os anos do Estado Novo, Portugal encontrava-se, em vários aspetos, menos desenvolvido do que a maioria dos restantes países da Europa. Assim, por um lado, a medicina praticada era, de certa forma, rudimentar, verificando-se, para além dos poucos meios de diagnóstico e tratamento disponíveis, grandes disparidades na distribuição de recursos humanos; por outro lado, os serviços médicos não estavam disponíveis à totalidade da população. No último quarto do século XX, a transição do regime fascista para a democracia resultou, por isso, na mudança de paradigma da prática da medicina, que passou a estar acessível a todos. A melhoria dos cuidados de saúde foi, aliás, um dos mais importantes fatores que contribuíram para a melhoria da qualidade de vida da população portuguesa, e deveu-se, em grande medida, à contribuição direta de médicos e estudantes de medicina por todo o País. Antes da Revolução dos Cravos, a saúde da população refletia o empobrecimento geral, os baixos níveis de educação e as más condições sanitárias, catalisado pela pouca resposta de serviços públicos de saúde. Este facto transparece-se, desde logo, pela análise de um exemplo paradigmático, a taxa de mortalidade infantil. Em 1974, a média nacional situava-se nos 37,9‰ (1) , “uma vez e meia superior à Itália, duas vezes e meia da França e quatro vezes as da Holanda e Suécia” (2) . Entre regiões do território nacional, as assimetrias também eram gritantes: por cada 1.000 nascimentos, morriam no primeiro ano de vida 60,5 e 65,0 crianças nos distritos de Bragança e Vila Real, respetivamente; valores mais baixos verificavam-se em distritos mais industrializados do litoral, como Lisboa

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(31,6‰) e Setúbal (19,3‰) (1) . Para estas taxas elevadas contribuiu a prática de “nascer em casa”, que se encontrava sobretudo enraizada, em zonas rurais: 60-70% do total de partos não tinham assistência médica. As carências da população condicionavam um mau estado de saúde - apenas 1⁄3 da população tinha acesso a água ao domicílio, 1⁄5 tinha WC com duche ou banheira, 40% das casas não possuíam eletricidade, e cerca de 80% não tinham sistema de esgotos. (1)(4)(7) — eram comuns, por exemplo, algumas doenças infecciosas que já não existiam noutros países da Europa. Para além disso, muitas aldeias apenas tinham acessos por estradas de terra, e encontravam-se, por isso, praticamente isoladas. Esta condição dificulta a deslocação dos médicos em caso de urgência, e os clínicos “de aldeia” não estavam munidos dos conhecimentos mais atualizados, nem dos meios de diagnóstico mais modernos. (5) De qualquer forma, devido às dificuldades económicas, eram poucos os que podiam acorrer aos médicos de forma regular, optando a maioria pelos “bruxos” e “endireitas”. Em 1967, em consequência das cheias que assolaram a região do Vale do Tejo, os alunos da FMUL foram mobilizados para algumas aldeias limítrofes, onde participaram no socorro, através da instalação de postos clínicos, inquéritos epidemiológicos e vacinação. Através da sua participação nesta missão, os jovens puderam testemunhar as difíceis condições de vida das populações. Este choque com a realidade exacerbou o descontentamento que já se verificava entre o meio académico nos anos finais da ditadura. De facto, a oposição dos alunos da faculdade ao regime era maioritária. A AEFML chegou mesmo a ser encerrada pela PIDE e ilegalizada (8) , e alguns dos seus


OS MÉDICOS NO NASCIMENTO DA DEMOCRACIA EM PORTUGAL

dirigentes foram presos, nomeadamente Isabel do Carmo, Eurico de Figueiredo e José Matos de Almeida. (6) Em abril de 1974, a maioria dos jovens médicos encontrava-se frustrada, precisamente, pela dificuldade em construir carreira. Com o amanhecer da Democracia, a Constituição passou a ditar que o Estado deve “garantir o acesso de todos os cidadãos aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação, independentemente da sua condição económica.” (8) . Nos primeiros meses, foi feito um levantamento das necessidades da população, e verificou-se que não havia médicos suficientes para cumprir de imediato a nova Lei. Para catalisar a transformação necessária, o Ministério da Saúde democrático criou, conjuntamente com os representantes dos estudantes, o Serviço Médico à Periferia (SMP) em 1975, onde se definiu que, após o internato “de policlínica”, os médicos recém-formados que desejassem progredir na carreira teriam de cumprir um ano de serviço numa zona periférica, garantindo que a prestação de cuidados de saúde cobria todo

o território nacional. Assim, os médicos saídos da FMUL ficaram responsáveis por assegurar cuidados médicos a muitas populações do Alentejo, onde reativaram hospitais e estabeleceram consultas de saúde primária e até de psiquiatria, fizeram ações de educação sanitária e saúde escolar. A maioria dos médicos que participaram no SMP até ao seu término, em 1986, realça a cooperação entre colegas, que estavam pela primeira vez a realizar trabalho clínico sem tutores, e a autonomia na gestão dos turnos. A evolução da medicina em Portugal davase, então, a duas velocidades. Durante os anos da ditadura, as carências da população eram, simultaneamente, causa e consequência do “empobrecimento da medicina” praticada pelos “médicos da aldeia”. Uma das conquistas mais importantes da Revolução de abril em Portugal foi a promessa de cuidados de saúde públicos para todos, independente da condição socioeconómica, que se viria a materializar no Serviço Nacional de Saúde em 1979. Já antes disso, os jovens médicos e estudantes de medicina contestaram a falta de condições para trabalhar e para estudar, nos hospitais e na faculdade. Após 1974, foram muitos os médicos, nos consultórios das aldeias, surpreendidos por pessoas que os visitavam simplesmente porque “nunca tinham visto um médico na vida”. (2) A taxa de mortalidade infantil diminuiu 97% ao longo dos anos: em 2019, a taxa de mortalidade infantil em Portugal foi de 2,8‰, uma das mais baixas da União Europeia. (3)

(1) Campos, A. C., Simões, J. (coord). 40 ANOS DE ABRIL NA SAÚDE. Coimbra: Edições Almedina, 2014. (2) Varela, R. UMA REVOLUÇÃO NA SAÚDE - história do Serviço Médico à Periferia. V. N. Famalicão: Edições Humus, 2020. (3) PORDATA, Taxa de mortalidade infantil. Disponível em https://www.pordata.pt/Europa/Taxa+de+mortalidade+infantil-1589 . consult. 09/05/2022 (5) Documentário “Nados e Criados Desiguais”, RTP, 1974. Disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/nados-e-criados-desiguais/ consult. 10/05/2022 (6) Documentário “Sampaio, Salazar e Caetano: O Confronto de 1962”. RTP, 2022. Disponível em https://www.rtp.pt/programa/tv/p42154/e2# consult 10/05/2022 (7) Texto intitulado “Solidariedade estudantil, n.l., de 4 de Dezembro de 1967, disponível em http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=09615.044#!2 (8) “Mulheres de Abril: Testemunho de Isabel do Carmo.”, 2017 https://www.esquerda.net/artigo/mulheres-de-abril-testemunho-de-isabel-do-carmo/47937?fbclid=IwAR0Fi1BjhdvXo8 T0OKdhzdjJkivuNKwUNGUgH1XNTbZ_q0rpzQCAAyZ276g

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arte literatura cinema música teatro


CULTURA

Anamélia Almeida

F

ilho de imigrantes portugueses e nascido em 1897, Alfred Mendes alistou-se no exército britânico aos 19 anos. Ainda que a sua família não concordasse, Alfred lutou por dois anos na Frente Ocidental da Primeira Guerra. Na sua passagem pela França, apaixonou-se por uma jovem chamada Lucille, mas em 1918, seis meses antes do término da guerra, ao inalar gases tóxicos foi enviado de volta ao seu país. Anos mais tarde, em 1950, Alfred apanhou um comboio com destino à França na esperança de encontrar seu antigo amor, e conseguiu. No entanto, Lucille já havia se casado e possuía nove filhos. Nos anos 70, Alfred reuniu essa e outras memórias em uma autobiografia, publicada após a sua morte, em 2002. Inspirado nas histórias narradas pelo seu avô, Sam Mendes, realizador do filme 1917, convidou uma equipa de historiadores e trabalhou numa brilhante representação do que foi a Primeira Grande Guerra. Embora o enredo e personagens do filme sejam fictícios, os elementos históricos foram fiéis, incluindo uma grande operação militar que ocorreu nos meses de fevereiro e março de 1917, a Operação Alberich. O filme foi gravado a simular um longo plano em sequência, ou seja, um único take, mas com cortes imperceptíveis. O filme acompanha a saga de dois soldados com uma perigosa missão: atravessar o território inimigo para enviar uma mensagem que pode salvar um batalhão com 1600 homens. As cenas captam as personagens principais sobre uma única perspectiva, tornando o enredo ainda mais intenso e cativante.

1917 Realizador: Sam Mendes Duração: 1h59m Ano: 2019 Ação, Drama, Guerra

8.2/10

Ao contrário dos muitos outros filmes sobre guerra, 1917 traz-nos um olhar muito particular sobre um conflito e os seus elementos. A história retrata o lado mais hostil de um combate e conduz o espectador pela dura e cruel realidade de um conflito armado: sem grandes heróis, sem grandes façanhas ou reviravoltas, apenas a crua e solitária condição de uma guerra. Assim como a história de Alfred Mendes, e diferente do que imaginaríamos para os dias atuais, as guerras continuam a ser uma amarga e angustiante ferramenta política, onde muitos outros jovens seguem carregando na memória o dissabor de tais atrocidades.

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CULTURA

Rafael Rosa

O ARQUIPÉLAGO GULAG O

livro O Arquipélago Gulag é da autoria de Aleksandr Soljenítsin, que relata sobre a vida dos prisioneiros dos Gulag nos tempos de Estaline, tendo sido escrito clandestinamente entre 1958 e 1967 à base de relatos, recordações e cartas de 227 pessoas e publicado em 1973, sendo considerado o primeiro do estilo de Investigação Literária. Esta obra está dividida em 7 partes e descreve a criação dos campos e das prisões, a solidificação dos mesmos e sua “metastização” numa rede, a forma como estes funcionavam, a vida que os prisioneiros tinham durante a sua pena, o desterro e a transição para o governo de Khrushchov após a morte de Estaline, incluindo também reflexões e comentários do autor sobre os acontecimentos que ele vai relatando. É um livro difícil de ler devido aos relatos perturbantes e à escrita muito elaborada utilizada, mas faz-nos pensar imenso. De facto, o autor consegue transmitir as mensagens que pretende, sendo que estas podem ser extrapoladas para os dias de hoje. Soljenítsin faz reflexões sobre o sentido da vida e o que devemos dar mais valor nela, sobre como a humanidade foi parar a um estado daqueles e como podemos impedir que isto aconteça novamente, sobre a natureza do ser humano e até como haveremos de tratar os outros no meio de tanto sofrimento, que é a característica intrínseca principal da vida humana. É uma obra que faz mudar a forma como qualquer um olha para o mundo, para a sua própria vida e como cada um se comporta e reage ao quotidiano, pelo que recomendo vivamente a leitura da mesma.

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Para concluir, deixo algumas marcantes presentes neste livro:

expressões

“Não, nós somos pó! Estamos sujeitos às leis da poeira. E nenhuma medida do nosso sofrimento é bastante para nos fazer sentir para sempre a dor geral. E enquanto não dominarmos em nós próprios a poeira, não haverá na terra organizações justas sejam democráticas, ou autoritárias.” “A linha que separa o bem e o mal atravessa o coração de cada pessoa. E quem destrói um pedaço do seu próprio coração?” e “Não seria então mais justo dizer que nenhum campo pode corromper aqueles que possuem um núcleo firme, e não a lastimável ideologia segundo a qual «o homem foi feito para a felicidade», que se esboroa ao primeiro golpe desferido pelo capataz?” (SOLJENÍTSIN, Aleksandr. António Pescada. O Arquipélago Gulag. Portugal: Sextante Editora, 2017.)

O Arquipélago Gulag Autor: Alexander Soljenítsin Ano da 1ª edição: 1973 História Moderna e Contemporânea


CULTURA

Simão Espinho

MÚSICA EM TEMPO DE CONFLITO A

música é parte integrante da vivência humana há tempo suficiente para lhe ser algo indispensável e indissociável; seja pela satisfação que quaisquer melodias possam trazer a quem as ouve ou pelas diferentes temáticas que tornem a música mais do que uma simples obra como também o passar duma mensagem para quem ouve. E, sendo o conflito (de que natureza for) algo presente na História e quotidiano do ser humano; a música serviu sempre magnificamente bem como ferramenta para transmitir uma mensagem. Evitando entrar por chauvinismos, Portugal possui um repertório magnífico, grande parte dele construído em tempos de oposição à ditadura e nos tempos que a seguiram. A chamada “música de intervenção” era exatamente o que o nome propunha fazer: intervir sobre “o que se passa”, difundindo esperança, resistência e sensibilização. Foi surgindo por contextos diferentes: “Pedra Filosofal”, poema de António Gedeão, escrito em 1952, é mais tarde musicado por Manuel Freire em 1970, “Tourada” de Fernando Tordo, com letra de Ary dos Santos, passou por entre as garras da censura com uma mensagem fortíssima naquele que era, à altura, o expoente máximo da divulgação musical em Portugal - o Festival da Canção, ou “E Depois do Adeus”, na sua essência uma balada, não tendo à primeira vista qualquer cunho interventivo mas tendo ficado para sempre associada a Abril não só por ter sido, efetivamente, uma das senhas da revolução, mas pela mensagem que o povo quis encontrar nela. Muitos outros podiam ser destacados aqui: o incontornável Zeca, José Mário Branco, os irmãos Salomé, Sérgio Godinho, e tantos outros que mereciam claramente a referência mas seria uma lista, orgulhosamente, muito extensa.

Obviamente, não só no nosso país surgiu música como forma de confronto ao status quo: o Brasil tem também o seu repertório com nomes como Chico Buarque ou Gilberto Gil e noutros países já muitas e diversas causas moveram canções de protesto social e em tempos bélicos; num registo mais mainstream, encontramos muitos nomes que se expressaram vivamente: Bruce Springsteen, U2 nos The Troubles, Bob Dylan, Joan Baez, The Clash, Nina Simone, Rage Against The Machine, etc… A Cantiga foi, de facto, uma arma; não de guerra, mas de consciencialização social e de vontade de mudança. A canção como contestação social repetir-se-á sistematicamente por existir algo a contestar e fá-lo-á com a independência e democratização no acesso que outras artes não têm; os tempos que vivemos não são exceção. A música nasce da criatividade do artista mas não deixará nunca de ser fruto do tempo e do povo que a ouve, e será sempre pela mão do tempo e do povo que desta se fará mensagem no presente e para o futuro.

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C

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CRÓNICA

Mariana Bettencourt

OUVIDOS MOUCOS E

mpoleirada na janela velha e decrépita, a senhora Hortênsia, que de si também não é nova nem leve, faz sentir o seu peso sobre o estrado para melhor ouvir as cusquices do dia. Os anos roubaram-lhe aos poucos os sentidos, desfocando-lhe a visão, tremendo-lhe as mãos e corrompendo-lhe os ouvidos. A má-língua, no entanto, teimou, e a curiosidade com que abre os olhos à janela para as notícias do bairro é a mesma com que fitou o abecedário no primeiro dia de aulas, há 81 anos atrás. Portanto, debruçase na direção das vozes matinais, na esperança de descobrir o paradeiro noturno do vizinho da frente, os desastres dos estudantes que habitam o andar inferior e as aventuras tórridas dos amantes secretos. As novidades, apesar de se fazerem ouvir em sussurros baixinhos, saltitam pelas pedras da calçada, trepam agilmente às paredes e espremem-se por debaixo das portas. De modo algum Hortênsia deixa que a surdez que se instala a impeça de as escutar. Para ela, a falta de acuidade auditiva é impedimento pouco, quase uma opção. Com outros tantos surdos, o mesmo não acontece. Parece impossível sairmos à rua ou fazer uma vã tentativa de compreender o que se passa no mundo sem um diapasão. Teste de Rinne ou Weber, tirar logo as dúvidas sobre o tipo de surdez de ideias que nos rodeia e conduz a humanidade à agressão, violência e loucura. Talvez seja do volume alto da música, da vibração latente do dinheiro, poder e ambição, ou apenas do ritmo acelerado que se vive, e em que pouco ou nada se vive, mas as conversas, ao invés de trocas, são armas. Há bocas, vozes e ouvidos, mas algures surge uma quebra, uma impossibilidade extrema de chegar a consenso e coexistir sem sangue, preconceito ou nepotismo.

Hortênsia sentiu-se amiúde só, sentada à mesa com o marido, os filhos e as irmãs. Discussões que brotavam de palavras agrestes, de desentendimentos e opiniões controversas. Erguiam-se vozes sem abrir ouvidos, sintoma de discórdias que nunca iam parar a bom porto e nada tinham a oferecer aos intervenientes. Sairiam sempre incólumes, enfurecidos e frustrados. Agora, longos silêncios sentam-se com ela às refeições. Cada um partiu para outras paragens cegas, onde bebem o café calados. Calar-se é coisa fora de moda. Falar alto e interromper prospera e o volume sobrepõe-se ao conteúdo. A era das redes socias, das ligações fáceis, da divulgação e globalização deu à luz megafones. O som amplificou-se. Engrandeceu. Digeriu-se, distorceu-se. No final, já com sonhos de fama, e não de intenções ou eloquência, brota como ruído. A minha voz preenche o quarto branco, no despertar da madrugada. Chamo Dona Hortênsia. A conversa é curta, ausculto S1 e S2, sopros ou extra sons, murmúrio vesicular, ruídos adventícios e hidroaéreos. Tudo ouvido, pelo menos tudo o que é audível pela minha inexperiência, permanecemos de mãos dadas. As minhas, geladas, suadas de álcool, as suas quentes, pedindo atenção. No diário do dia, não poderei registar esta parte. Mas, entre a passagem das 8h e a das 15h, ela mudou em mim. De patologia descompensada a mulher viva, falou-me em coisas que faziam sentido, e noutras que nem tanto. E não temos que nos estender por completo, ver o mesmo, ou concordar, para ambas sabermos de antemão que a vida é breve e a passos largos se esgota, e um pouco mais de escuta a tornaria melhor, mais suportável.

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XXXV

JUN 2022


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